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ESTRUTURAS DE SENTIMENTO QUE EMERGEM, DRAMATURGIAS QUE PRECIPITAM
Nayara Macedo Barbosa de BritoUniversidade Federal do Rio Grande do Sul
nay_brito13@hotmail.com
Pensar a criação artística como uma atividade humana deprodução cultural relacionada às condições históricas emateriais de seu contexto torna insuficientes as análisesformalistas das artes. Suprir essa insuficiência analítica éuma das contribuições que a noção de estrutura de sentimento,elaborada por Raymond Williams, buscar realizar. Apresentamoso conceito de Williams e propomos um exercício de análiseformal-conteudística de Pinokio, do dramaturgo Roberto Alvimpara, então, trabalharmos sobre a hipótese de Frederic Jamesonde que o pós-modernismo seria a nova estrutura de sentimento.
Palavras-chave: Estrutura de sentimento. Dramaturgia. Pós-modernismo.
O conceito que ora apresentamos é uma das chaves de uma
pesquisa de mestrado que vem sendo desenvolvida no Programa de
Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRGS e que se intitula, até
o momento, Estrutura e sentimento na dramaturgia brasileira contemporânea: as
perspectivas de Fernando Bonassi, Newton Moreno e Roberto Alvim. Esse
conceito, a saber, o de estrutura de sentimento, é fundamental
para praticamente toda a obra de seu autor, o teórico
britânico Raymond Williams, pois é com ele que consegue
elaborar um novo critério de análise da cultura e das formas
artísticas que leva em conta a sua historicidade e a relação
material de suas manifestações.
O termo surge inicialmente em seus estudos sobre o drama
(em Preface to film (1954) e depois em Drama from Ibsen to Brecht
(1968)) com o intuito de resolver um problema analítico que
fizesse entender a prevalência de dadas convenções
cinematográficas em determinados períodos históricos, fato que
não se explicava pelas análises formalistas, então em voga. A
existência de traços comuns em um conjunto de obras de um
mesmo período era o indicativo de que as estruturas que elas
apresentavam não se formavam autonomamente ou por processos
internos a elas. Essas estruturas eram – e são – respostas
elaboradas em uma linguagem artística específica à experiência
histórica de seus criadores. Com isso, Williams descreve e,
por esta nova metodologia de análise, demonstra a relação
íntima entre as obras artísticas e o seu contexto histórico,
social e material de produção, o que gera uma mudança do
status das artes, tomadas pela crítica marxista como uma
atividade secundária da vida humana, assim como todas as
atividades ligadas à área da superestrutura do modelo de base-
superestrutura. A nova perspectiva que Williams abre a partir
deste modelo, e que chama de materialismo cultural, coloca as
práticas artísticas e de produção simbólica das sociedades num
lugar de paridade com as demais atividades de produção humana.
Para ele, a produção cultural e artística não reflete a
realidade material e social na qual está inserida, mas,
trabalhando também ela com elementos materiais condicionados,
é formada e formante das relações históricas em que está
imbricada.
As artes não estariam, portanto, separadas da vida
social, em um nível superior (metafísico) em relação a esta,
como o modelo marxista fazia crer. De modo que se a separação
entre os domínios artístico e social é negada, o modelo de
análise das artes pautado unicamente pelos seus referentes
formais, estéticos e de estilo não dá mais conta da totalidade
da obra: falta, justamente, pensar essas formas em relação ou
como resposta a determinada conjuntura histórica.
A ideia de estrutura de sentimento está relacionada ao
fato de que as convenções formais das linguagens artísticas
vão sendo criadas e transformadas pela relação que articulam
com a realidade social. A expressão encontra uma explicação
mais objetiva em Drama from Ibsen to Brecht, mas não é, e nem pode,
por sua natureza, ser colocada de maneira simplista. Os vários
teóricos que se debruçaram sobre ela posteriormente clarearam
um pouco o seu entendimento. Para Cora Kaplan, citada por
Maria Elisa Cevasco no livro Para ler Raymond Williams1, o termo
designa “o sentimento vivido de um tempo, suas histórias
dinâmicas e efêmeras, que contêm e revisam [...] contradições”
(s/d, p. 231 apud CEVASCO, 2001, p. 151); para Luiz Fernando
Ramos, que prefacia a edição brasileira de Drama em cena,
estrutura de sentimento diz respeito a “modos de sentir de uma
determinada época” (2010, p. 8); para Betina Bischof, que
traduziu a edição brasileira de Tragédia moderna, um “conteúdo de
experiência e de pensamento [...] histórico em sua natureza”
(2011, p. 36).
Experiência e pensamento seriam, inclusive, segundo o
próprio Williams, outras palavras que poderiam designar o que
ele quer dizer. Mas aponta ressalvas ao seu uso, por certos
sentidos que uma e outra carregam e que poderiam resultar numa
1 Este livro é fundamental para quem quer entender mais a fundo o pensamentode Williams, sua posição crítica em relação ao marxismo e aquilo a que ele chama de materialismo cultural. Ver referência completa ao final do trabalho.
interpretação equivocada daquilo que ele está tentando
demonstrar. Experiência, para ele, seria a “melhor palavra, a
mais ampla, mas [que, contudo, possui] a dificuldade de que um
dos seus sentidos tem o tempo verbal do passado que é o
obstáculo mais importante ao reconhecimento da área da
experiência social que está sendo definida.” (WILLIAMS, 1979,
p. 134). Pensamento, por sua vez, remeteria a formas fixas,
estáticas, já definidas e bem compreendidas, sendo justamente
o contrário daquilo que ele está tentando demonstrar com o
novo termo.
Os argumentos que Williams dá nos ajudam a compreender o
sentido que ele busca, finalmente, com sentimento, “termo
difícil”, diz ainda, mas escolhido, “para ressaltar uma
distinção dos conceitos mais formais de ‘visão de mundo’ ou
‘ideologia’” (1979, p. 134). Williams buscou um termo que não
remetesse ao passado nem a alguma ideia já definida porque o
que queria designar era um processo ainda em curso, o processo
de uma experiência social que corria no tempo presente. Eis a
dificuldade de sua apreensão.
Nesse sentido, torna-se particularmente difícil distinguir
a estrutura de sentimento quando ela ainda está sendo vivida e
quando se está inserido nesse processo. É aí que a produção
artística surge como instrumento fundamental para sua
apreensão, uma vez que é nas obras de arte que tal processo
primeiro encontra uma articulação formalizada. Segundo
Williams, é nas artes que se encontram os primeiros indícios
da formação de uma nova estrutura de sentimento (cf. WILLIAMS,
1983, p. 9-10).
As obras que Williams analisa em Drama from Ibsen to Brecht são
basicamente as mesmas de que Peter Szondi se vale como
argumento para a elaboração de sua Teoria do drama moderno e estão
situadas entre o final do século XIX e o imediato pós-guerra.
As obras desse período anunciariam a emergência de uma nova
estrutura de sentimento, contemporânea aos teóricos citados e
completamente distinta da do final do século anterior. As
diferenças que se observavam estavam, por exemplo, na relação
entre o texto e a cena, foco do estudo de Williams que se
desenrola no posterior Drama em cena, e nas relações entre
autor, texto e sociedade como articuladas na linguagem, no
caso do estudo de Szondi.
Tomemos como exemplo a dramaturgia de Tchékhov e sua
relação com a encenação, particularmente com a de
Stanislavski. As peças do dramaturgo russo, a exemplo de A
Gaivota (1895), se organizam segundo uma forma que não condiz
com as convenções cênicas do drama burguês, que constituía, em
meados do século XIX, a estrutura dominante2 do que se entendia
por teatro. Sendo um dos principais representantes do teatro
naturalista (primeira das vanguardas modernistas), o autor
coloca em crise a relação entre o texto dramático e sua
dimensão cênica na medida em que se consuma, no texto, a
2 Williams percebe, em cada processo cultural, a existência de elementos a que chama de dominantes, residuais e emergentes. No contexto que citamos aqui, para que se entenda brevemente, a estrutura dominante (ou hegemônica)da sociedade era a cultura burguesa e, como parte dela, o drama burguês enquanto gênero dominante no teatro. Acontece que, num processo cultural, podemos encontrar elementos residuais, quer dizer, que foram formados num período passado, mas que ainda atuam efetivamente no presente, de forma alternativa ou incorporada ao dominante. E podemos encontrar, por último, elementos emergentes, que indicariam a formação de novos significados, valores e tipos de relação surgindo a partir de uma transformação dentro dacultura dominante. (Cf.: Marxismo e literatura, p. 124-129).
separação entre fala e ação: Tchékhov não escreve mais
necessariamente a cena como ela será materializada pelo
encenador3. Seus textos apresentam lacunas de tal modo que se
faz necessário a escritura de um outro texto, o cênico, cujo
autor não é mais ele senão uma figura que começa a entrar em
evidência: o encenador. Até Brecht, ponto onde terminam os
estudos referidos de Williams e de Szondi (mas continuamente
até o teatro contemporâneo, segundo os estudos de Jean-Pierre
Sarrazac4), o que se observou foi um movimento cada vez mais
nítido de autonomia do texto em relação à cena e vice-versa.
Esse movimento, repetimo-nos, não se deu por um processo
interno às obras e seus autores, mas como resposta às mudanças
na conjuntura histórica do período determinado nos estudos,
entre cerca de 1880 e 1950. Williams percebe em Brecht e,
segundo Luiz Fernando Ramos, intui em Beckett que essa nova
3 Não que um dia isso tenha de fato acontecido na história do teatro. Luiz Fernando Ramos, no prefácio citado, chama atenção para isso, mas justifica a posição de Williams dizendo tratar-se da criação de uma “grande conceitual, em que por contraste fosse possível analisar o fenômeno que se manifestava contemporaneamente a ele [Williams], em que os dramaturgos cadavez mais prescindiam de uma escritura cênica para realizar seus projetos.” (2010, p. 14). Assim, a convenção ou padrão dramático que Williams relaciona com a estrutura de sentimento da época de Tchékhov/Stanislavski éa que ele chama de “comportamento”, em que o dramaturgo não indica claramente a ação a ser mostrada em cena. Da Antiguidade, cujo padrão seriaa “fala encenada”, passando pelo teatro medieval (“encenação visual”), seguindo por Ibsen (“atividade”), a simultaneidade entre fala e ação vai perdendo cada vez mais essa sintonia até chegar à separação consumada entreelas na convenção do “comportamento”. Para um comentário mais desenvolvido a esse respeito, ler o prefácio de Drama em cena (Williams, 2010).4 Jean-Pierre Sarrazac é o principal pesquisador vivo das poéticas do drama moderno e contemporâneo. Para ele, a autonomia que a cena contemporânea ganhou em relação ao domínio do texto dramático foi benéfica tanto para um quanto para o outro, pois deu liberdade também para a dramaturgia experimentar formas até então impensáveis pelas condições impostas por sua relação com a cena. Sugerimos a leitura do artigo A Reprise (resposta ao pós-dramático), publicado pela revista Questão de crítica, v. 3, n. 19, março de 2010.
conjuntura solicitava “uma forma em que a realização cênica se
sobrepusesse à construção dramática literária” (2010, p. 14).
Tal processo chega ao final do século XX na forma de criações
cênicas que, por prescindir às vezes completamente do texto
para se realizar, são organizadas teoricamente em torno de uma
nova categoria, a do teatro pós-dramático, como pensada por Hans-
Thies Lehmann em livro homônimo. Não nos interessa, contudo,
as novas convenções cênicas que este teatro estabelece, mas as
convenções dramáticas que ainda são estruturadas/reinventadas
no nosso presente histórico, e que se inserem num conjunto da
produção teatral contemporânea que não pode ser chamada
efetivamente de pós-dramática.
Além da relação texto-cena que Williams examina, há também
uma tensão que é interna à obra, à parte sua articulação
cênica, e que é objeto da análise de Szondi. Uma tensão que se
configura na forma de uma contradição: as peças de Tchékhov,
novamente, apesar de se estruturarem segundo os princípios da
forma dramática cerrada, com a ação (categoria aristotélica)
sendo movida pelos diálogos entre os personagens, estes, de
fato, não “conversam”. As trocas aparentes entre suas falas
revelam, para o leitor atento, uma proximidade com a forma
monologada, embora ainda querendo conservar na antiga forma –
na antiga convenção – um conteúdo social – ou aquilo que seria
uma estrutura de sentimento – que já não cabe nela. A
incapacidade de ouvir o outro, tão presente em suas peças e
formalizada num “diálogo de surdos”, seria uma marca e uma
contradição sociais que encontraram resposta nessa contradição
interna da obra.
Tal contradição é recorrente em um número expressivo de
obras dramáticas da modernidade. Para Szondi, a inadequação
entre forma e conteúdo aparece ainda nos trabalhos de Ibsen e
Strindberg – citados também por Williams (1983) pela
dificuldade que, com esses autores, começa a haver na relação
entre literatura e teatro –, e Maeterlinck e Hauptmann. A
emergência de conteúdos épicos, como a Revolução Industrial e
as duas guerras mundiais que, embora não representadas
diretamente nos textos, alteraram radicalmente as relações
entre as pessoas e seus modos de vida e, consequentemente, a
representação dessas relações e modos em cena, exigiram um
tratamento diferenciado daquele dramático feito até então;
exigiram a elaboração de uma ou de novas convenções que se
acordasse com a estrutura de sentimento que emergia a partir
daqueles eventos que marcaram a virada do século XX até
Auschwitz. Apesar da resistência pela manutenção da antiga
convenção, elementos épicos vieram implodir a forma dramática
(segundo a tese szondiana) para dar conta dos novos conteúdos,
o que resultou, eis o grande exemplo, no drama-épico de
Brecht, que apesar de apresentar um modo novo de elaboração
dramatúrgica, pela combinação dos gêneros épico e dramático,
guarda, exatamente por esta combinação, estruturas residuais
da antiga forma – embora já a partir daqui possamos falar em
texto dramatúrgico ao invés de dramático, para destacar o
afastamento das obras em relação à forma do drama absoluto que
Szondi indica.
É com alguma clareza que conseguimos ver, hoje, o processo
da construção de uma nova conjuntura histórico-social, logo,
de uma nova estrutura de sentimento, e suas implicações nas
convenções do drama/teatro modernos. Olhando para trás, vemos
quase a totalidade e as contradições de um contexto e podemos
observar como tal se formalizou nas obras de arte. O trabalho
se complica, contudo, quando temos que fazer o caminho inverso
para tentar apreender a nossa atual estrutura de sentimento
contemporânea: olhar atentamente as obras que vem sendo
produzidas e buscar elementos que sejam comuns a elas para,
daí, ver o que dessa estrutura de sentimento emergente, em
formação, encontra-se em solução nas obras. A hipótese de
Frederic Jameson, segundo a qual o pós-modernismo seria a
estrutura de sentimento de nossa época, pode nos ser útil em
alguma medida. Para ele, ambos os termos teriam funções muito
semelhantes, que seriam a de “coordenar novas formas de
práticas e de hábitos sociais com as novas formas de produção
e organizações econômicas postas em prática pela modificação
no capitalismo [...] nos últimos anos.” (apud CEVASCO, 2001, p.
151). Uma dessas práticas sociais é, justamente, o fazer
artístico, que já apresenta características pós-modernas em
sua forma de criação e nas estéticas produzidas. Entre os
termos mais caros à arte desse movimento estão a
desconstrução, a fragmentação, a colagem, a paródia,
procedimentos que podemos identificar no texto que analisamos
mais à frente.
Contudo, para dar conta desta empreitada não basta uma
análise formalista das obras, pois, segundo Williams, sempre
sobra “algo para o quê não há uma contraparte externa.”; esta
parte que a análise formalista não toca é, justamente, a
estrutura de sentimento, que “só pode ser percebida pela
experiência da própria obra de arte.” (WILLIAMS, 2011, p. 37).
Surge aí uma questão: se o nosso objeto de análise é um
texto dramatúrgico, há então duas formas de “experienciá-lo”:
a primeira é claramente pela leitura da obra; a segunda,
através da sua materialização cênica. Acreditamos que esta
última teria a capacidade de tornar latente esse elemento que
se encontra no interior da obra dramatúrgica, pois, através
das articulações com os demais elementos que compõem a cena –
iluminação, presença física dos atores, sonoridade,
movimentação –, o que seria a estrutura de sentimento interna
à obra emergiria e, pela presença sentida entre atores e
público muito mais do que pelos sentidos apreendidos pela
narrativa do espetáculo, poderia ser, enfim, percebida.
Mas há uma questão interessante a se considerar na
primeira possibilidade que indicamos de experienciar o texto
dramatúrgico. Há em qualquer texto escrito para a cena, e até
naqueles que a princípio não foram escritos para este destino,
uma performatividade que lhe é inerente, que pode estar nas
possíveis rubricas e indicações/sugestões cênicas ou mesmo na
própria forma como ele se estrutura5. Para os fins deste
trabalho, vamos nos deter a esta possibilidade, buscando a
5 É interessante notar como algumas obras da dramaturgia contemporânea tem feito um uso muito particular e inédito da rubrica, incorporando-a aos trechos convencionalmente destinados a serem falas pelos atores, funcionando, muitas vezes, como o meio por onde o autor pode se expressar mais diretamente e se comunicar com o público. Essas modificações, esse hibridismo no interior da obra dramatúrgica dá a ela um outro tipo de performatividade, que não aquela do drama cerrado. É o caso de textos como Clansed, de Sarah Kane, ou Por Elise, de Grace Passô. Outras considerações sobre a rubrica você encontra em: Luiz Fernando Ramos, A rubrica como literatura da teatralidade: modelos textuais & poéticas da cena. São Paulo: Revista Sala Preta, v. 1, 2001.
performatividade inerente ao texto Pinokio (2012), do dramaturgo
brasileiro Roberto Alvim, através de uma análise que tencione
a relação entre a sua forma e o seu conteúdo, na tentativa de
nos aproximar do que seria a estrutura de sentimento
contemporânea apontada por esta obra específica.
Pinokio é, segundo o seu autor, o exemplo mais bem acabado
daquilo a que Alvim tem chamado de dramáticas do transumano. Para
ele, cada técnica de criação artística está relacionada ou diz
respeito a uma determinada visão de mundo (donde podemos
encontrar uma homologia com a relação que Williams estabelece
entre convenção-estrutura de sentimento). O que ele propõe,
então, com a criação de uma nova técnica – estrutura,
arquitetura, modo de concepção – dramatúrgica é a produção de
novas visões de mundo que superem as velhas noções sobre o
homem que tiveram origem no Renascimento e que se arrastaram
até o século XX, mas que, segundo o autor, não dizem mais
respeito ao homem contemporâneo. Ele chama atenção para o modo
como Shakespeare (“não um filósofo, não um cientista, mas um
dramaturgo”) conseguiu traduzir em sua obra o homem que surgia
no Renascimento, e que viria a ser o sujeito moderno,
definindo uma ideia muito específica do que seja o humano6.
Chama atenção, ainda, para a semelhança entre aquele momento
da virada dos séculos XVI/XVII, em que o sujeito moderno se
desenhava, e o nosso presente histórico, desse início de
século XXI/terceiro milênio quando, mais uma vez, “estamos
diante da oportunidade de invenção de outras possibilidades de
6 Alvim cita o livro de Harold Bloom, Shakespeare: a Invenção do Humano, para a sua argumentação. Ver mais comentários na entrevista concedida à revista Urdimento, n. 18, 2012, p. 165.
experiênciação (sic) (o que eu chamo de transumano: outros modos
de subjetivação, para além do homem).”. E nos convida a esta
invenção, à invenção de uma espécie “que poderá habitar o
futuro de modo absolutamente distinto do modus operandi que
utilizamos nos últimos 400 anos.” (ALVIM, 2012, p. 165).
Alvim confirma, por estas colocações, a hipótese de
Williams de que é nas obras de arte que primeiro se
articula/formaliza aquilo que se percebe como novidade, como
estruturas emergentes a partir da experiência social. E como,
para além de refletir, as artes são também uma atividade de
produção da realidade – Shakespeare, segundo Bloom (ver nota
6), não só refletiu o homem contemporâneo a ele em suas obras,
mas inventou este homem.
Não queremos nos alongar demais aqui, mas só para que se
entendam as mudanças operadas na forma dramática do século
XVII para hoje e suas articulações com os respectivos
contextos históricos, vale tecermos ainda alguns comentários
sobre a obra shakespeariana.
O mundo de Shakespeare, e o humano que habita nele, é
ainda um mundo que preza pela ordem e pelo equilíbrio, que é
concebido por ideias totalizantes e unificadoras (as grandes
narrativas características do modernismo), exigindo de seu
sujeito uma postura centralizada. Se pensarmos na Ofélia de
Hamlet (1601), que se vê levada à loucura e consequente suicídio
após a morte do pai, que junto com seu irmão a dominava e
oprimia em todos os aspectos, como a cultura patriarcal do
pós-medievo garantia, e após a desilusão amorosa com Hamlet,
vemos como a perda da centralidade, sustentada à força pelos
personagens masculinos que a circundavam, tem um destino
trágico.
A forma encontrada para representar esse tipo de
drama/tragédia, com forte carga psicológica, foi o verso
dramático, capaz de fazer dialogar os personagens em cena, não
num sentido moderno, já que, como indica Williams, no “estilo
da performance elisabetana [...] os atores encenam poesia
dramática para um público em vez de representar
comportamentos.” (2010, p. 104). Eles não estão representando,
mas apresentando o seu drama para um público, ainda que não
rompendo com o plano da ficção, mas já, por um recurso épico,
comunicando nos versos dramáticos as suas angústias
diretamente para a plateia. As estratégias épicas utilizadas
pelo autor inglês não eram, contudo, predominantes no drama
daquele período, de cujas convenções, ainda pautadas pela
Poética aristotélica, Shakespeare se distancia.
Mas tanto o drama convencional (no sentido de convenção
que Williams estabelece (1983)) elisabetano quanto o
shakespeariano, da mesma época, apresentam características que
já não encontramos em boa parte da dramaturgia mais recente,
ou ao menos nos autores mais consagrados, porque não
correspondem à nossa atual estrutura de sentimento; essa
dramaturgia se pauta, agora, por novas convenções dramáticas
e, é claro, cênicas – convenções a que talvez possamos chamar
pós-modernas. Como diz Rosângela Patriota (2006, p. 21), “se
na tragédia do século 17 havia uma ordem e um equilíbrio a
serem restaurados, a Europa do século 20 tornou-se sinônimo
dos escombros que alguns identificaram como progresso.”. É o
caso do Hamlet que Heiner Müller recria em 1977 em Hamlet-
máquina, valendo-se de um processo de desconstrução da forma
dramática. O decoro e o luto público que, segundo Patriota,
havia na peça de Shakespeare e que, pensado na relação com a
forma, os versos dramáticos asseguravam é, em Müller,
dessacralizado, profanado, “seja pelo coito do casal real
sobre o caixão, seja pelos restos mortais consumidos pelos
miseráveis.” (2006, p. 21). Os versos são substituídos por
vários fragmentos de narrativas, que constituem as falas de
Hamlet, de Ofélia, e do “intérprete”, contrariando por
completo a estrutura dialógica do drama tradicional e, pela
assumida do ator enquanto intérprete de um personagem, abrindo
uma via mais direta de comunicação entre palco e plateia,
antes impossibilitada pelo fechamento do universo fictício. O
texto, agora sem dúvida ou dissimulação, é dirigido ao
público.
OFÉLIA(Enquanto dois homens com batas de médico a enrolam de baixo para cimana cadeira de rodas em faixas de gaze).Aqui fala Electra. No coração das trevas. Sob o Sol datortura. Para as metrópoles do mundo. Em nome dasvítimas. Rejeito todo o sêmen que recebi. Transformo oleite dos meus peitos em veneno mortal. Renego o mundoque pari entre as minhas coxas. [...] (MÜLLER, 1987, p.32 apud PATRIORA, 2006, p. 21)
INTÉRPRETE DE HAMLET[...]Arrombo a minha carne lacrada. Quero habitar as minhasveias, na medula dos meus ossos, no labirinto do meucrânio. Retiro-me para as minhas vísceras. Sento-me naminha merda, no meu sangue. N’algum lugar são rompidosventres para que eu possa morar na minha merda. [...](MÜLLER, 1987, p. 31 apud PATRIORA, 2006, p. 21)
E porque o texto, neste caso, é dirigido efetivamente para
o público, não há trocas entre as falas ou entre os
personagens/ator; estes estão isolados, separados por um ódio
e um desprezo mútuos que se deixa ver nas falas, um desprezo
em relação ao outro, ao mundo e ao próprio corpo. Essa é,
pensamos, a estrutura de sentimento que emerge da dramaturgia
mulleriana, e que se deixa ver pela estrutura e pelo discurso
do texto, noutros termos, pela convenção dramática que ele
estabelece, em que a ação mostrada em cena ocorre separada da
fala enunciada.
A dramaturgia de Roberto Alvim segue por caminhos
semelhantes aos de Müller, mas encara um processo de abstração
da forma dramática ainda mais radical. Os desvios que opera
nas categorias do drama aristotélico, como a fábula e o
personagem – e mais ainda, os desvios que opera na própria
língua portuguesa –, tem o intuito de revelar outra lógica de
subjetividade humana e das questões do homem contemporâneo. A
recriação que Alvim elabora, à semelhança do procedimento de
Müller, é feita, dessa vez, não a partir de um clássico do
teatro, mas da literatura infantil. O menino de madeira que
queria se tornar humano, criado por Carlo Collodi em finais do
século XIX, é ressignificado no texto de Alvim, que leva seu
Pinokio por um caminho inverso ao do autor italiano. Em Alvim, o
menino humano quer virar máquina (assim como o Hamlet
mülleriano):
O GRILO FALANTE.
no princípioum boneco
[...] (ALVIM, 2012, p. 111)
A MULHER VELHA.só o que faltaé undar-se à máquinaquer ele unar tudo
urdir-me à máquinaele dissequero untir-me
[...] (p. 112)
O MENINO.
[...] com ele em vocêneleemmim esta casa [...]
escoam os restos de você detritos restos meus seusrestos dele escoam pelos canos intestinos víscerastubulações da casa o esgoto a água encanada saliva esuor e restos e detritos seu ventre [...] (p. 114).
A semelhança com o Hamlet-máquina, pela remissão ao ventre
(encontrado na fala citada de Ofélia) e às vísceras (na fala
do Intérprete de Hamlet), fica evidente, assim como o processo
simbiótico que o organismo do eu-ele-você, não identificável
ou não definível enquanto um personagem construído como uma
unidade, mas colocado ali apenas como um elemento em nome da
qual fala O MENINO e que tem por única função esta, falar; a
simbiose deste organismo, a princípio humano, já que composto
por intestinos, saliva e suor, com uma estrutura maquinal,
composta por tubulações, canos e detritos, dá origem a um
sujeito que traz em si essa dupla condição, de homem e de
máquina, talvez representativo daquilo a que Alvim vem
chamando de transumano.
Diante disso, perguntamo-nos: a separação iniciada em
Shakespeare e tornada mais evidente em Müller estaria levando
o homem a transformar-se numa espécie maquinal, num processo
que supera, inclusive, aquele demonstrado no Tempos modernos
(1936) de Charles Chaplin, alterando o que seria a
subjetividade humana? É este o homem pós-moderno? Seria esta a
nossa atual estrutura de sentimento (ou ao menos uma parte
constituinte desta)? Esta é, certamente, uma das respostas
cri-ativas que o drama vem dando às questões colocadas pelo
mundo contemporâneo.
Essa alteração da lógica subjetiva da modernidade é
formalizada, na peça de Alvim, por uma mudança no modo como
não só sua dramaturgia é organizada, mas como as palavras que
a constroem são desorganizadas, exigindo por parte do
leitor/espectador um novo modo de apreensão, condizente com a
subjetividade sugerida do homem contemporâneo.
No trecho citado acima, por exemplo, A MULHER VELHA usa os
verbos undar, unar, urdir e untir, inexistentes na língua
portuguesa, mas cujos radicais nos lembram de verbos
conhecidos nossos, como “unir” e “untar”, e nos sentimos
tentados a traduzir as palavras inventadas por sentidos que já
conhecemos. Diante da liberdade dada ao espectador
contemporâneo, esta será sempre uma possibilidade. Mas a
intenção de Alvim, que a declara em seus textos teóricos7, é
provocar a criação de novos significados, até então
inexistentes, a partir de significantes que também não
existiam, e que talvez não vão existir fora da realidade do
7 Condensados no livro Dramáticas do transumano e outros escritos seguidos de Pinokio (7Letras, 2012).
teatro, único espaço, diz o autor, onde nos é possível viver
“outras e insuspeitadas experiências”.
Há a possibilidade, também, de o espectador (neste caso,
mais que o leitor, a não ser que este experimente uma leitura
em voz alta, por exemplo) simplesmente abandonar a procura por
um sentido naquelas velhas-novas palavras e no modo como elas
estão (des)organizadas e abrir uma outra janela perceptiva,
que apreenda, por exemplo, o ritmo com que cada enunciado é
produzido, a musicalidade do texto verbalizado, o timbre da
voz que o enuncia e, por fim, a sensação que estes elementos,
materiais/presenciais muito mais do que lógico-linguísticos,
provocam em quem os experiencia. O tipo de encenação que o
próprio Alvim – que trabalha nesta função desde antes de
dedicar-se à escrita dramatúrgica – constrói valoriza esta
possibilidade de apreensão do texto, na medida em que exige de
seus atores um trabalho vocal talvez muito mais elaborado do
que o trabalho físico-corporal8, pois é esta vocalidade que
fica em evidência o tempo inteiro em suas encenações.
Dissemos mais acima que não iríamos nos ater, nos limites
já curtos deste espaço, à recepção do texto a partir de sua
materialização cênica, e sim pela leitura individual e
8 Algumas ressalvas são imprescindíveis a partir desta afirmação. Quando dizemos que o tipo de encenação que Alvim constrói exige um trabalho vocal mais elaborado que o trabalho físico-corporal dos atores, absolutamente nãoignoramos que a voz faz, sim, parte do corpo, sendo produzida por uma sériede componentes fisiológicos e anatômicos, que precisam também de exercíciosfísicos específicos. Por outro lado, a quase completa imobilidade em que osatores permanecem (veja link na nota 11), em geral, ao longo de suas encenações (assistimos somente ao Peep Classic Ésquilo, mas, segundo a crítica, o tipo de atuação dos atores da Club Noir, companhia de Alvim, é semelhanteem todas as suas montagens) nos sugere essa valorização do trabalho vocal, muito embora tal imobilidade também possa exigir um esforço físico tão intenso quanto o de uma sequência de ações físicas, por exemplo, como entendidas por Stanislavski.
provável performatividade nela contida9. Mas este último
parágrafo prova que é inevitável, em se tratando de
dramaturgia, deixar de lado o que seria a intenção cênica desse
processo; é inevitável imaginar as relações que a estrutura
textual que temos em mãos, a saber, a dramaturgia escrita,
pode tecer com os demais elementos que compõem uma encenação,
ainda que não tenhamos acesso às montagens já existentes do
material que está sendo trabalhado (no caso, a única montagem
do Pinokio de que temos conhecimento é do próprio Alvim). Mas
isto é trabalho para outra ocasião.
Ficamos, por agora, com estas reflexões iniciais – a serem
desenvolvidas na dissertação referida no início – sobre um
tipo de dramaturgia, expressa pelo trabalho de Roberto Alvim,
que se distancia cada vez mais das categorias que compunham o
drama tradicional, orientado pela Poética de Aristóteles, e que
teria dado conta de traduzir as problemáticas do homem até
pouco tempo. A nova dramaturgia que vem sendo elaborada, e que
desponta a partir do pós-guerra, é diversa até perder de vista
– não poderíamos reuni-la e determinar a forma como se
estrutura hoje, embora o que seria uma poética pós-modernista
das artes aponte muitas de suas características. O trabalho de
Alvim mostra apenas uma das vertentes que a dramaturgia
contemporânea seguiu, e segue, uma vertente que traz em si
9 A experiência de apreensão da dramaturgia alviniana mediada pela encenaçãorende uma longa discussão, que não cabe nem é o propósito aqui. Mas o leitor pode encontrar comentários bastante interessantes e teoricamente bemarticulados no texto Roberto Alvim e o futuro do drama, uma crítica do espetáculo Peep Classic Ésquilo escrita por Patrick Pessoa e publicada na revista eletrônica Questão de crítica. Disponível em: http://www.questaodecritica.com.br/2013/08/roberto-alvim-e-o-futuro-do-drama/. Último acesso: 04/09/14.
estruturas emergentes que indicam o que seria a estrutura de
sentimento de nosso tempo.
A noção-chave de Williams nos ajuda a compreender as
transformações por que atravessam as formas artísticas, e em
específico a linguagem dramatúrgica; nos ajuda a compreender o
movimento de influência mútua que ocorre entre as
transformações sociais e o desenvolvimento das formas
artísticas, esferas aparentemente autônomas, mas intimamente
relacionadas.
Esperamos que as reflexões aqui apresentadas sirvam para o
leitor pensar de que forma uma tal estrutura de sentimento –
quer dizer, um dado contexto histórico, um dado modo de sentir
e de pensar, uma dada experiência coletiva –, que talvez
possamos denominar, como Jameson, de pós-modernismo, interfere
não só na produção artística e simbólica de uma sociedade, mas
em todos os campos que a formam, sendo parte de nossa vida
mais ordinária.
REFERÊNCIAS
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MÜLLER, Heiner. Hamlet-máquina. In: _______. Quatro textospara teatro. São Paulo: Hucitec, 1987 apud PATRIOTA, Rosângela.Ruptura conceitual e a influência no fazer teatro. Revista Humanidades.Brasília, UnB, n. 52, novembro de 2006, p. 19-25.PATRIOTA, Rosângela. Ruptura conceitual e a influência no fazer teatro.Revista Humanidades. Brasília, UnB, n. 52, novembro de 2006,p. 19-25.RAMOS, Luiz Fernando. Prefácio. In: WILLIAMS, Raymond. Drama emcena. São Paulo: Cosac & Naify, 2010, p. 7-16.WILLIAMS, Raymond. Drama em cena. São Paulo: Cosac & Naify,2010._________. Introduction. In: _________. Drama from Ibsen to Brecht.London: Pelican Books, 1983, p. 01-14._________. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1979,p. 125-137._________. Tragédia moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2011.