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1 A&D Reforma Do Estado 2009

Date post: 22-Nov-2015
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Revista temática que teve seu primeiro exemplar publicado em 1991. Com uma média de quatro lançamentos anuais, a publicação aborda temas atuais, de forma contextualizada, retratando a realidade do estado. Através de artigos e entrevistas, elaborados por colaboradores externos e especialistas da SEI, a revista proporciona uma reflexão sobre questões de interesse da sociedade.
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ISSN 0103 8117 BAHIA ANÁLISE & DADOS Salvador SEI v. 19 n. 1 p. 1-368 abr./jun. 2009 Foto: Roberto Viana/Agecom
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  • ISSN 0103 8117

    BAHIA ANLISE & DADOSSalvador SEI v. 19 n. 1 p. 1-368 abr./jun. 2009

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  • Governo do Estado da BahiaJaques Wagner

    Secretaria do Planejamento SeplanWalter Pinheiro

    Secretria da Administrao SaebManoel Vitrio da Silva Filho

    Escola de Administrao da Universidade Federal da Bahia UFBAReginaldo Souza Santos

    Superintendncia de Estudos Econmicose Sociais da Bahia SEI

    Jos Geraldo dos Reis Santos

    Diretoria de de Indicadores e Estatsticas DistatGustavo Casseb Pessoti

    Coordenao de Acompanhamento Conjuntural CACLuiz Mrio Vieira

    BAHIA ANLISE & DADOS uma publicao trimestral da SEI, autarquia vinculada Secretaria do Planejamento. Divulga a produo regular dos tcnicos da SEI e de colabo-radores externos. Disponvel para consultas e download no site http://www.sei.ba.gov.br.As opinies emitidas nos textos assinados so de total responsabilidade dos autores.Esta publicao est indexada no Ulrichs International Periodicals Directory e na Library of Congress e no sistema Qualis da Capes.

    Conselho EditorialAndr Garcez Ghirardi, ngela Borges, ngela Franco, Antnio Wilson Ferreira Menezes, Ardemirio de Barros Silva, Asher Kiperstok, Carlota Gottschall, Carmen Fontes de Souza Teixeira, Cesar Vaz de Carvalho

    Junior, Edgard Porto, Edmundo S Barreto Figueira, Eduardo L. G. Rios-Neto, Eduardo Pereira Nunes, Elsa Sousa Kraychete, Guaraci Adeodato Alves de Souza, Inai Maria Moreira de Carvalho, Jair Sampaio Soares Junior, Jos Eli da Veiga, Jos Geraldo dos Reis Santos, Jos Ribeiro

    Soares Guimares, Lino Mosquera Navarro, Luiz Antnio Pinto de Oliveira, Luiz Filgueiras, Luiz Mrio Ribeiro Vieira, Moema Jos de Carvalho Augusto, Mnica de Moura Pires, Ndia Hage Fialho, Nadya Arajo

    Guimares, Oswaldo Guerra, Renata Prosrpio, Renato Leone Miranda Lda, Ricardo Abramovay, Rita Pimentel, Tereza Lcia Muricy de Abreu,

    Vitor de Athayde CoutoEditor

    Francisco Baqueiro Vidal

    Coordenao EditorialLuiz Mrio Vieira, Mercejane Wanderley Santana, Zlia Maria de C. Abreu Gis

    Reviso de LinguagemChristiane Eide June (ing.), Lus Fernando Sarno (port.)

    Coordenao de Documentao e Biblioteca CobiAna Paula Sampaio

    NormalizaoRaimundo Pereira Santos

    Coordenao de Disseminao de Informaes CodinMrcia Santos

    Padronizao e Estiloe Editoria de Arte

    Elisabete Cristina Teixeira Barretto, Aline Santana (estag.)Produo Executiva

    Anna Luiza Sapucaia, Mariana BritoCapa

    Julio VilelaEditorao

    Nando Cordeiro

    Bahia Anlise & Dados, v. 1 (1991- ) Salvador: Superintendncia de Estudos Econmicos eSociais da Bahia, 2009.

    v.19 n.1 Trimestral ISSN 0103 8117

    CDU 338 (813.8)

    Impresso: EGBATiragem: 1.200 exemplares

    Av. Luiz Viana Filho, 4 Av., n 435, 2 andar CABCEP: 41.745-002 Salvador Bahia

    Tel.: (71) 3115-4822 / Fax: (71) [email protected]

  • SUMRIO

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    Apresentao 5

    Entrevista com o Secretrio do Planejamento do Governo da Bahia

    Walter Pinheiro

    7

    SEO 1: REFLEXES SOBRE A REFORMA DO ESTADO E ADMINISTRAO PBLICA

    Ideologia e crise fiscal: uma interpretao crtica dos elementos

    bsicos da reforma do EstadoFbio Guedes Gomes

    15

    Reforma do Estado e da administrao pblica necessria ao Brasil

    na era contemporneaFernando Alcoforado

    35

    As reformas institucionais do estado da Bahia entre 1955 e 2004

    Marcelo Rodrigues Vieira

    49

    Encarando os desafios da governana pblica no Brasil do sculo XXI

    Marcelo Viana Estevo de Moraes

    67

    Aspectos evolutivos da administrao pblica brasileira

    Maria Gravina Ogata

    83

    Importncia dos controles na administrao pblica brasileira: uma reflexo

    compartilhando pressupostos da teoria de agncia e da teoria da cultura poltica

    Ana Rita Silva Sacramento Jos Antonio Gomes de Pinho

    95

    Limites da interveno estatal no sistema econmico da livre iniciativa

    Jos Carrera-FernandezLudymilla Barreto Carrera

    109

    Ambiguidades no governo Lula: o que se fez do legado do MARE?

    Leonardo Barbosa e Silva

    127

    Estado gerencial: a necessidade da concretude da eficincia, eficcia e efetividade em prol da coletividade

    Ana Maria Menezes FerreiraLdia Boaventura Pimenta

    Luiz Carlos dos Santos

    137

    Reforma do Estado e servio pblico: a negociao coletiva em debate

    Edvaldo PitangaPedro Armengol

    Vanusa Lopes

    147

    As mutaes do Estado e da administrao pblica engendrando mecanismos

    de gesto descentralizadaLuciano Chaves de Farias

    161

    SEO 2: GESTO E POLTICAS PBLICAS SETORIAIS

    O mito do inchao da fora de trabalho do Executivo federal

    Marcelo Viana Estevo de MoraesTiago Falco Silva

    Patricia Vieira da Costa

    175

    Concepo de avaliao no plano diretor da reforma do aparelho do Estado

    Jean Mrio Arajo CostaRosemeire Silva Barana

    189

    O combate pobreza e a necessidade de uma nova institucionalidade no Brasil

    Andr Silva PomponetNair Mamede Couto

    199

    Avaliao ambiental estratgica: uma proposta de integrao da poltica ambiental

    ao processo de planejamento governamentalSeverino Soares Agra Filho

    209

  • Gesto pblica no estatal na rea da cultura: riscos, vantagens e desafios para o Estado

    Elizabeth Ponte de Freitas

    221

    Estratgias para o desenvolvimento do turismo na Bahia

    Maria Margarete de Carvalho Abreu Perazzo

    235

    O Estado e a educao indgena na Bahia: possveis caminhos

    Valuza Maria Saraiva

    243

    SEO 3: EXPERINCIAS E ESTUDOS DE CASO

    O valor da participao na educao para a cidadania: a experincia do

    oramento participativo no municpio de Alagoinhas, na Bahia

    Mayra Landim Ricci

    253

    Gesto educacional participativa: uma anlise da eficcia do Oramento Participativo no atendimento de demandas educacionais

    Alexssandro Campanha RochaRobinson Moreira Tenrio

    263

    Avaliao e gesto de polticas pblicas educacionais: contribuies para a

    construo de indicadores de qualidadeRosilda Arruda Ferreira

    277

    Pintadas e sua rede: aes de desenvolvimento local e

    capital social na BahiaAntonio Muniz dos Santos Filho

    Reuelio Marques Rios

    291

    A reforma administrativa da dcada de 1990: o caso do Ministrio Pblico do Trabalho na Bahia

    Maria do Carmo de Souza Sales

    303

    Proposio de um modelo de relatrio para a administrao pblica: um

    instrumento de governana corporativa aplicado aos municpios do Corede

    Nadia Mar BogoniEdison Ryu Ishikura

    Eduardo Belisrio de Castro Fimanore

    315

    A avaliao de desempenho e suas contribuies para o alcance da eficcia

    na prestao de servios sociedadeSuely Silva

    Renata Miranda Savoy

    329

    Dimensionamento da fora de trabalho: a experincia no estado da BahiaJorge Alexandre Rosa de Moura

    343

    Os avanos da gesto de carreiras no estado da Bahia

    Ivone Maria Silva Miranda

    357

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    APRESENTAO

    A Reforma do Estado tornou-se um tema central nas ltimas dcadas. De fato, diversos pases empreenderam, nos ltimos anos, reformas em seus aparelhos estatais, em um contexto internacional e institucional de profundas transforma-es, e buscando, inicial e prioritariamente, atender aos requisitos da chamada com-petitividade global, neles includa a reduo do papel do Estado na interveno social e econmica. Independentemente dos contedos expressos por essas reformas, bem como dos resultados efetivamente alcanados pelas mesmas, permanecem atuais os desafios impostos a governos e governantes, a exemplo do desemprego, da insegurana (de todos os tipos), do bem-estar e sade dos cidados, da sustentabilidade ambien-tal, entre outros, exigindo daqueles reflexes e prticas institucionais de adequao s necessidades atuais. Tais desafios tornam-se ainda mais complexos diante de uma crise econmica e financeira mundial mpar, que reclama, urgentemente, um reposicionamento das polticas pblicas e aes governamentais.

    Repensar o Estado significa abandonar um vis conservador e paternalista que durante muito tempo o caracterizou; mas tambm a noo de um Estado gendarme, dado o fra-casso das polticas liberalizantes em promover o desenvolvimento social e econmico, com busca de equidade. Nesse sentido, diversos governos vm passando por processos de reestruturao, buscando enfatizar uma gesto pblica baseada em parmetros de eficincia e eficcia, focada em resultados, porm sem comprometimento da sua funo precpua de atendimento s diversas necessidades no apenas as essenciais do cidado, em particular, e da sociedade, em geral. Tais princpios mostram-se relevantes para a prpria capacidade de responsividade do Estado frente s demandas da socie-dade civil. Muitos tm sido os esforos direcionados para o estabelecimento de critrios de avaliao de desempenho para polticas pblicas e programas governamentais.

    Este nmero da Revista Bahia Anlise & Dados tem o propsito de contribuir para o aprofundamento do debate sobre a Reforma do Estado e da Gesto Pblica. Os arti-gos aqui reunidos refletem a riqueza analtica do tema e fornecem uma viso de diver-sos caminhos percorridos, os quais podem ainda ser explorados pelo Estado nesse seu processo de contnua reconfigurao. A Superintendncia de Estudos Econmicos e Sociais da Bahia, em parceria com a Secretria da Administrao do Estado da Bahia e a Escola de Administrao da Universidade Federal da Bahia, agradecem aos autores que, de forma criativa, apresentaram suas contribuies; e prestam, de modo especial, sua homenagem pstuma a Mayra Landim Ricci, por suas instigantes reflexes e sua atuao militante para a construo de uma sociedade mais justa e igualitria.

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    BAHIAAnlISE & DADoS

    BAHIAAnlISE & DADoS

    O tamanho do Estado o tamanho das necessidades

    ENTREVISTA COM WALTER PINHEIROSECRETRIO DO PLANEJAMENTO DO GOVERNO DA BAHIA

    O Estado cresce na medida das necessidades do povo. Este o raciocnio do homem que responde pela pasta do Planejamento na Bahia. Nesta entrevista concedida revista Bahia Anlise & Dados, Walter Pinheiro inverte a lgica do debate sobre o papel do Estado: Ns precisamos fazer o debate sobre a necessidade de polticas pblicas para que tenhamos um funcionamento da estru-tura de Estado levando servio e permitindo acesso. Ento no um problema de um Estado gigante, mas um Estado necessrio, diz ele. Aos 50 anos e com a experincia acumulada em quatro mandatos como deputado federal, cargo de vice-lder do governo Lula para Acompanhamento de Projetos Estruturantes do PAC e Execuo do Oramento junto ao Ministrio do Planejamento, alm de ter passado pela presidncia da Comisso de Cincia e Tecnologia, Comunicao e Informtica da Cmara, este tcnico em telecomunicaes vem assumindo o papel de principal arti-culador entre as secretarias do governo estadual. E contribuindo para redesenhar a funo do Planejamento na Bahia.

    BA&D A Bahia tinha uma tradio em Planejamento que se perdeu nos ltimos anos. De que maneira a Seplan est bus-cando recuperar esta funo no estado da Bahia?

    WALTER PINHEIRO O pro-cesso de mudana se baseia em alguns pilares importantes. O primeiro que voc no planeja sem o envolvimento de diver-sos segmentos da sociedade. O

    segundo um planejamento que esteja associado, principalmente, necessidade de superao dos problemas e desafios para apon-tar novos vetores de crescimento, com duas direes: o desenvol-vimento econmico, que natu-ral para gerar renda, trabalho e aproveitar as potencialidades da riqueza; e o desenvolvimento social, com o acesso a servios e, principalmente, com equidade,

    ou seja, distribuio de renda. E outro aspecto fundamental para o planejamento a capacidade de montar uma estrutura de Estado que preencha as lacunas, que prepare o Estado para o presente e para o futuro, e que trabalhe numa lgica do servio pblico como uma ferramenta essen-cial para superar os problemas e para atender populao. a histria que termina remetendo

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    para a definio de qual o tama-nho do Estado necessrio, e a sua presena, de maneira a esti-mular todo um processo de apro-veitamento das potencialidades locais e integrar esse Estado em todo o seu universo, ou seja, os seus territrios em cada canto, e, obviamente, promover a equi-dade social, gerar servio, traba-lho e renda.

    BA&D O oramento, no Bra-sil, no perodo inflacionrio, para muitos era uma pea de fico. Com a estabilidade econmica, qual a importncia do oramento para a execuo dos programas e das polticas pblicas?

    WP O oramento tem valor em qualquer situao. Quando voc tem pouco, tem que prio-rizar. Quando voc tem muito, tambm tem que estabelecer onde gasta mais. E o conceito de oramento o que funda-mental. Oramento no uma espcie de caixa onde a gente vai registrando tudo o que entra e sai, como se fosse uma mera operao de entrada e sada de dinheiro. Oramento programa. E programa obedece a um rigor no sentido de estabelecermos atividades, aes, finalidades e objetivos. Portanto, o ora-mento deve ser uma pea capaz de materializar o desejo de um Estado, de um governante e de uma sociedade. Ento, ele uma espcie de caderneta de anota-o que vai servir para orientar o que eu vou fazer. E para quem est do outro lado, esperando o servio do Estado, a oportuni-dade de fiscalizar e ao mesmo

    tempo cobrar a execuo. uma pea que um componente numa estrutura programtica, e no simplesmente uma estru-tura contbil.

    BA&D Diante dessa crise econmica e financeira mun-dial, que muitos atribuem falta de regulamentao e fiscaliza-o por parte do Estado, qual o papel reservado ao Estado na nova ordem econmica que se configura?

    WP J se discutiu muito, ao longo dos anos, a chamada des-regulamentao da economia. Espalhou-se pelo mundo que era hora de discutir um Estado mnimo como sinnimo de efi-cincia e um Estado ausente do mercado, como se ele atra-palhasse a economia. Mas isso deu em gua, no mundo inteiro, e particularmente no Brasil. Esse desmonte do Estado, patrocinado pelo governo Collor, terminou jogando o Brasil em dificulda-des extremas. Rompemos esse paradigma com o governo Lula. Hoje ns estamos discutindo a importncia do Estado como ele-mento aglutinador, orientador e de planejamento. um Estado que organiza, que vem com mar-cos regulatrios, com processos cada vez mais consistentes de fiscalizao, com aes perma-nentes de transparncia. Esse Estado que cresce medida que voc vai tendo a necessidade de faz-lo chegar a diversos lugares aonde a iniciativa privada no quer ir. Nesse momento de crise, por exemplo, isso ficou evidente. Foram as polticas pblicas que

    garantiram que mesmo numa crise internacional brutal a nossa economia conseguisse se man-ter aquecida. Essa histria de qual o tamanho do Estado, a gente precisaria inverter a lgica. Ns precisamos fazer o debate sobre a necessidade de polticas pblicas para que tenhamos um funcionamento da estrutura de Estado levando servio e per-mitindo acesso. Ento no um problema de um Estado gigante, mas um Estado necessrio.

    BA&D Como que o senhor avalia as medidas adotadas pelo Estado para minimizar os impac-tos da crise?

    WP O Estado reagiu de forma muito correta, rpida e eficiente. bvio que ns tivemos que fazer parcerias com as polticas adota-das pelo governo federal. Muita gente dizia que a reduo do IPI ia ser um desastre para ns aqui na Bahia. verdade que ns per-demos receitas, mas, por outro lado, voc criou um ambiente de estmulo a uma atividade comercial no estado e de forma muito descentralizada. Ento, a gente buscou priorizar os inves-timentos em reas que pudes-sem resolver o nosso problema social, atacar os problemas de infraestrutura para gerar ativida-des econmicas localmente, ao mesmo tempo em que estimulou o consumo interno. Ns vamos injetar esse ano na economia R$ 400 milhes de folha. As pes-soas que entraram no mercado de trabalho aplicaram o salrio no consumo. Ns temos hoje um comrcio em crescimento com

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    possibilidade efetiva de manu-teno do aumento da arreca-dao. As oportunidades foram sobejamente aproveitadas. Eu diria que ns fizemos uma ver-dadeira reforma tributria sem aprovar nenhuma matria nem na Assembleia Legislativa nem no Congresso Nacional. De certa forma o dinheiro no foi nem muito para a mo do Estado nem muito para os bancos, o dinheiro ficou na economia.

    BA&D Para minimizar os impactos da crise, o governo do Estado conseguiu alguns emprstimos junto a organismos internacionais e ao governo fede-ral. Em quais setores esto sendo alocados esses recursos e quais os benefcios para a populao?

    WP Ns fizemos duas ope-raes de crdito de grande vulto nesse perodo. Uma com uma agncia internacional, o Banco Interamericano, que foi aplicada para resolver um problema com fornecedores, com empreiteiros, com empresas que haviam sido contratadas para desempenhar diversas tarefas na nossa rea de logstica e infraestrutura estra-das, cisternas, poos artesianos. Isso deu um alvio enorme. O outro recurso foi o que ns obti-vemos junto ao BNDES numa operao de crdito feita com a anuncia do governo federal para compensar o que ns tnha-mos perdido de arrecadao no Fundo de Participao dos Estados. Esses recursos foram utilizados para que a gente no baixasse o nvel de investimento e deixasse de preparar o Estado

    para enfrentar a crise. Ns apli-camos esses dois crditos de forma que a gente pudesse aten-der tambm a essa demanda de aes descentralizadas e desen-volver diversas regies, estimular a agricultura familiar, recuperar estradas, levando infraestru-tura para que mesmo no arranjo produtivo local, na pequena ati-vidade, as pessoas pudessem enfrentar a crise com desenvol-vimento e com renda.

    BA&D O PAC, quando foi lanado em 2007, previa a rea-lizao de investimentos nas reas de infraestrutura (logstica, energtica e social e urbana), visando a elevao das taxas de crescimento do pas. Ser poss-vel realizar at 2010 tudo aquilo que foi previsto?

    WP Ns vamos ter proble-mas, no que seria uma espcie de coroamento de toda essa pol-tica, motivados por questes de carter ambiental, onde correto o rigor, para que voc no tenha um desenvolvimento sem olhar o meio ambiente. Ns tivemos problemas envolvendo a prpria elaborao de projetos, as rela-es com as instituies finan-ceiras, liberao e avaliao de cada projeto. Mas, no geral, eu diria que o PAC vai cumprir o seu papel. Por exemplo, na Bahia ns estamos injetando R$ 1,2 bilho para atender a uma demanda antiga, que solucionar o pro-blema de esgotamento sanitrio. Isso est de longo curso avan-ado. Combina-se a isso o Pro-grama gua para Todos. Hoje ns temos um nmero expressivo

    da populao baiana atendido com gua encanada, com esgo-tamento sanitrio, com cisternas, com poos artesianos, com sis-temas simplificados. Alm disso, o PAC trouxe a possibilidade de diversos empreendimentos que tm a ver com o desenvolvi-mento da Bahia: o novo polo de desenvolvimento na regio Sul; as iniciativas envolvendo a regio Oeste; o PAC cacau; a melhoria dos portos baianos, com draga-gem e ampliao; a infraestrutura urbana, com Salvador recebendo um importante sistema virio no aeroporto e outro sistema virio na Rtula do Abacaxi, ligado a uma via expressa. Atendemos a populao e criamos uma estrutura capaz de atrair novos investimentos.

    BA&D A ferrovia Oeste-Leste pode mudar a concentra-o econmica do Estado?

    WP A ferrovia vira um marco de integrao. E ela inaugura um processo importante, que tam-bm faz parte de um projeto do Estado, que rasgar a Bahia no sentido leste-oeste, permitir a ligao. Agora, a ferrovia no pode ser adotada como uma fer-ramenta que substitui a cultura do cacau. Est errado. Ela uma ferramenta a mais para a gente modificar essa lgica. Porque se for para ficar com uma nica ati-vidade de novo, monotemtica, no resolve nosso problema. Ento, a ideia estimular o sur-gimento de uma zona de pro-duo com um carter especial para exportao; estimular toda aquela produo de minrio e

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    a industrializao; chegar at a regio de gros para permitir o movimento de carga; estimular a instalao de indstrias locais. Assim, os baianos param de exportar aquilo que primordial e passam a exportar produtos com valor agregado. Ela servir para toda a Bahia no sentido de captar aquilo que trafega por outras estradas, por outras fer-rovias, e que agora pode passar por dentro da Bahia. Por isso que ela no foi discutida e trabalhada de forma isolada, ela asso-ciada a um conjunto de modais: o rodovirio, portanto a chegada de novas estradas no sentido oeste-leste; aerovirio, com um novo aeroporto na regio; e o sistema de portos, com o novo porto. A essa poltica de desen-volvimento industrial, associa-se a instalao de escolas e a for-mao de profissionais, para que a gente qualifique o nosso povo para esse mercado de trabalho. A gente quer construir a ferro-via, operar a ferrovia e a gente quer trabalhar nessas indstrias, nessas empresas em toda essa regio da Bahia que a ferrovia vai cortar, por onde esse novo marco de desenvolvimento vai passar.

    BA&D Na Lei Oramentria Anual, a LOA, quais projetos o senhor destacaria no sentido de fazer a Bahia entrar num novo ciclo de desenvolvimento?

    WP Ns adotamos no ora-mento um percentual na ordem de quase 60% (58,7%) ao social, com a coragem de apor-tar, mesmo num momento de crise, um volume expressivo para

    essa que a importante rea que o Estado deve olhar. Ns tivemos um cuidado enorme de prepa-rar um oramento que tambm guardasse relaes com o que a populao nos respondeu no Plano Plurianual, buscando aten-der quelas demandas como as mais importantes. E nosso maior desejo que a economia cres-cendo, a gente continue repar-tindo esse crescimento com o povo baiano. O primeiro aspecto foi dividir a Bahia em diversas regies, com polos de desen-volvimento no norte, no oeste, no extremo-sul, no sudoeste, no miolo da Bahia, no litoral norte. A gente trabalhou o oramento no sentido de descentralizar o atendimento sade, para equipar e construir hospitais de grande porte em todas as regi-es, evitando assim o desloca-mento permanente das pessoas para somente dois pontos: Feira de Santana ou Salvador. Isso importante para a economia. A Sade um dos setores que mais empregam na Bahia. A gente aplicou muito na rea edu-cacional, no s com a contrata-o de professores e a melhoria da qualidade do ensino, mas com a modificao do sistema de formao profissional, instalando diversas unidades por regies. A gente incentivou a chegada do parque tecnolgico, a atrao de investimentos nessa rea. Preparamos no oramento ques-tes como segurana: aumentar o efetivo, capilarizar o atendi-mento, melhorar os servios com o uso de novos equipamentos e

    tcnicas, para que a segurana esteja permanentemente pre-sente, combinada com os outros fatores. A gente tem a oportuni-dade, por exemplo, de enfrentar o crime organizado do mundo das drogas no s com cadeia, pancadaria e muita bala, mas com poltica cultural, com gera-o de trabalho, com educao, para permitir as modificaes das bases sociais da nossa Bahia.

    BA&D O Estado sempre foi alvo de crticas relacionadas burocracia, morosidade e falta de eficcia. Com as inovaes que esto sendo implantadas nos mbitos federal e estadual, como melhoraram esses processos?

    WP Melhoraram bastante. Uma das coisas hoje importantes no Estado, alm do Servio de Atendimento ao Cidado, toda uma corrida para a implantao do e-Gov. Agora, no adianta voc implantar um sistema extre-mamente moderno de governo se voc no levar para as pes-soas a possibilidade do acesso que essa modernidade traz. O que ns buscamos fazer foi apro-veitar o momento e, por exem-plo, instalar diversos centros de cidadania com incluso digital. Voc aprimorar o modo como o Estado chega a cada canto, atra-vs dos seus servios, atendi-mento ao cidado, o servio de sade, o sistema de matrcula e acompanhamento dessa escola, para quebrar exatamente essa necessidade do sujeito se dirigir a um nico ponto do estado ou a uma lgica permanente de uma verdadeira maratona de papel,

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    onde voc tem que percorrer diversos rgos e experimentar a caminhada dos carimbos pelas almofadas. Ento, acho que essa foi a grande virada. Ns acaba-mos com essa estrutura carto-rial e criamos um mecanismo onde em cada canto do estado voc pode acessar os servios e pode se dirigir a qualquer ser-vio do Estado sem ter que se dirigir necessariamente ao ponto central. Esse foi um esforo bru-tal, que continua sendo feito em cada secretaria com as direto-rias de modernizao, com o processo cada vez mais cres-cente de eliminao das etapas carcomidas de burocracia. Um processo que eu diria de melho-ria das condies de trabalho do servidor, no s as condies salariais, mas as prprias condi-es de trabalho, isso impor-tante. E um processo tambm crescente de profissionalizao dessa estrutura pblica. Ou seja, o Estado tem que ser perene, o governante que passageiro.

    BA&D Quais mecanismos a Seplan tem utilizado para avaliar os resultados das polticas pbli-cas do governo do Estado?

    WP Ns temos buscado fazer um acompanhamento quase que permanente, primeiro de como os servios pblicos so prestados, como cada secretaria tem executado seu oramento e quais as prioridades. Esse tem sido o esforo cotidiano para a gente trazer cada secretaria para um programa central. Cada um

    tem o seu planejamento, mas esse programa deve combinar com o eixo central de governo que foi apresentado sociedade na campanha eleitoral e que foi consubstanciado com o Plano Plurianual. A ausculta feita pelo Estado para que a gente pudesse ouvir da populao todos os seus questionamentos e desejos s fez solidificar a nossa estrutura de acompanhamento. Agora, a pre-ocupao nossa hoje no sen-tido que essa leitura tem que ter resposta imediata e provocao permanente, porque no basta s a gente ficar lendo como cada secretaria est funcionando sem que isso seja devolvido com a sua devida crtica e, bvio, com a capacidade de correo de rumo e aprimoramento nas tarefas. Essa tem sido, eu diria, a ques-to mais incisiva do trabalho por parte da Seplan.

    BA&D Os dados divulgados recentemente pela PNAD mos-tram avanos, embora tmidos, no campo social. Quais diretrizes o Estado deve adotar para se tor-nar mais equnime?

    WP O que a PNAD aponta para a gente: a poltica, por exemplo, de priorizar o abaste-cimento de gua foi uma pol-tica acertadssima. Outro dado importante que na execuo oramentria de 2009 vamos encontrar um crescimento acen-tuado no item urbanizao. Voc bota gua, bota esgoto e o sujeito pede o outro passo, que a sua rua calada, urbanizada.

    E a PNAD tambm traz um dado importantssimo, que prova o acerto da nossa poltica, que a quantidade de domiclios que ns conseguimos atender com o Luz para Todos. Em dois anos ns ultrapassamos a marca de 330 mil unidades beneficiadas com a chegada da energia. A gente teve um crescimento acentuado da taxa de ocupao. Tudo isso vai mudando a qualidade de vida das pessoas. A PNAD serve tam-bm para a gente analisar, com muita frieza, o que que a Bahia ainda precisa. E tem um dado que eu acho que muito legal a gente olhar na PNAD, que a renda per capita, que no uma das melhores do Brasil no estado onde mais de 260 municpios esto cravados no Semirido, com dificuldades. Mas a gente v a chegada do computador, as pessoas acessando a informa-o, um nmero expressivo de crescimento de domiclios com esse tipo de equipamento. Eu espero que ns, com um olhar mais criterioso nessa PNAD, tenhamos oportunidade de con-tinuar com a nossa poltica de habitao, que importante para a gente resolver esse pro-blema do dficit habitacional, e acentuar a nossa poltica de gua para Todos, para que de uma vez por todas ns pos-samos universalizar o acesso gua na Bahia e o acesso rede de esgotamento sanitrio, melhorando consideravelmente o nosso sistema de sade.

    ENTREVISTA CONCEDIDA S JORNALISTAS ANA PAULA PORTO E LUZIA LUNA

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    Seo 1Reflexes sobre a

    Reforma do Estado e Administrao Pblica

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    Ideologia e crise fiscal: uma interpretao crtica dos elementos

    bsicos da reforma do Estado*Fbio Guedes GomesA

    Resumo

    O trabalho tem a pretenso de discutir de forma crtica os elementos tericos subjacentes aos argumentos do discurso da reforma do Estado. Mais propriamente, toma-se a tese da crise fiscal como um elemento controverso e defende-se que seus pressupostos tinham uma carga muito mais ideolgica e que assumiu um papel importante no avano das polticas neoliberais na periferia do sistema capitalista, mais especificamente na Amrica Latina e Brasil.

    Palavras-chave: Capitalismo. Estado. Ideologia. Crise fiscal.

    * Esse texto trata-se de um captulo reformulado da tese de doutorado intitulada Acu-mulao de Capital via Dvida Pblica: contribuio para uma crtica razo da crise fiscal, defendida pelo autor na Escola de Administrao da Universidade Federal da Bahia, em julho de 2007.

    A Doutor em Administrao pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), com rea de concentrao em Gesto Pblica e Instituies; mestrado em Economia Regional pela Universidade Federal da Paraba (UFPB); professor adjunto do Mestrado em Econo-mia Aplicada da Faculdade de Economia, Administrao e Contabilidade (FEAC) da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Campus A. [email protected]

    BAHIAAnlISE & DADoS

    Abstract

    This paper intends to discuss the theoretical elements underlying the arguments of the discourse on State reform in a critical manner. More appropriately, the fiscal crisis theory is taken as a controversial element and it is defended that the presuppositions had a much more ideological load and took on an important role in advancing neo-liberal policies on the periphery of the capitalist system, more specifically in Latin America and Brazil.

    Keywords: Capitalism. State. Ideology. Fiscal crisis.

    As ideologias existem porque h coisas sobre as quais, a todo custo, no se deve pensar, muito menos falar (EAGLETON, 1997, p. 62).[...] a crena na crise fiscal do Estado decorre da sublimao da moral e da ideologia capitalistas (SANTOS et al, 2004a, p. 92).

    sociedades da regio. Impactadas pela crise da dvida externa dos anos oitenta do mesmo sculo, as economias dos pases latino-americanos apre-sentaram os piores ndices de desempenho de toda sua histria, com o aprofundamento da desi-gualdade de renda e riqueza. No entanto, ao ini-ciar-se a dcada de 1990 novas promessas de um futuro promissor para essas sociedades surgiram, dessa vez sob o discurso dominante da moderni-zao, abertura econmica e reformas estruturais, tudo isso registrado nos documentos da imprensa internacional dos principais rgos multilaterais, como Banco Mundial e Fundo Monetrio Interna-cional (FMI).

    INTRODUO

    Nos anos noventa do sculo XX, a Amrica Latina se viu envolvida na onda da globalizao econmica e do avano das foras polticas neo-liberais. Os anos anteriores, caracterizados por crises econmicas, recesses e elevados nveis inflacionrios, pesaram sobre a dinmica das

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    As principais causas daquele passado sombrio das economias da Amrica Latina foram sendo atribudas ao comportamento errtico das gestes governamentais e s anacrnicas estruturas esta-tais. A crise do Estado, tomada como a crescente incapacidade de financiamento de seu papel pol-tico, social e econmico, impunha um pesado nus em termos fiscais e inflacionrios s sociedades, segundo a interpretao convencional. Assim, o discurso em defesa da reconstruo das econo-mias subdesenvolvidas da Amrica Latina e de sua transformao em mercados emergentes, passava, necessariamente, pelos argumentos em defesa da reforma do Estado. Mas, essas reformas s se justificariam diante de um problema real, que fosse capaz de convencer a sociedade em geral das necessidades de se realizar mudanas profundas nas relaes entre o prprio Estado e a sociedade. Nesse sentido, o poderoso argumento da crise fis-cal do Estado se apresentou como um problema crucial que, se no fosse resolvido, condenaria as economias da regio reproduo do medocre padro de crescimento das dcadas passadas.

    Este artigo tem, portanto, a pretenso de situar melhor a discusso sobre a tese da crise fiscal como elemento vital dos argumentos das necessidades de reforma do Estado na Amrica Latina. No se trata de uma defesa cega do Estado, mas, antes de tudo, de uma avaliao crtica dos argumentos e uma tentativa de situar melhor os interesses sub-jacentes posio conservadora que acabou pre-dominando no embate terico e poltico em torno da prpria proposta de reforma. Assim, prope-se discutir esses argumentos luz das interpretaes que defendiam (e ainda defendem) a reforma na linha neoliberal; e tambm discutir outras perspecti-vas, que se chocam com essa corrente e procuram avanar numa perspectiva mais crtica de compre-enso dos fenmenos subjacentes ao movimento de transformaes das estruturas estatais.

    O trabalho se subdivide, portanto, em quatro par-tes. Na primeira, discute-se a fora da ideologia na conformao das ideias enquanto representativas do jogo de interesses determinados, circunstancial-mente, em um dado contexto histrico. Na segunda

    seo, apresentamos os principais argumentos da ortodoxia econmica em suas duas linhas interpre-tativas: neoliberal e social-liberal. Na parte seguinte, apresentamos algumas interpretaes heterodoxas, mas ainda incapazes de realizar uma crtica mais avanada sobre a perspectiva ortodoxa. Essa difi-culdade ser superada na quarta e ltima seo, quando discutimos alguns trabalhos que tentam cap-tar a essncia das relaes entre Estado e capital, que se desvencilham dos argumentos puramente macroeconmicos para compreender a crise como um elemento muito mais sistmico do que algo con-centrado somente na figura do Estado. Assim, a concluso a que chegamos que a tese da crise fiscal assume muito mais uma conotao ideol-gica, com um importante papel na congregao das foras polticas em torno da defesa da reforma do Estado na linha conservadora adotada em alguns pases da Amrica Latina, especialmente no Brasil.

    SOBRE IDEOLOGIA

    O filsofo hngaro Istvn Mszros, em O poder da ideologia, tem a preocupao de situar a ide-ologia no seu contexto histrico especfico, com-batendo os mitos da neutralidade ideolgica e da pureza cientfica que vm predominando no pen-samento social, principalmente no sculo XX. O materialismo dialtico a compreenso das contra-dies que se do no plano concreto das relaes sociais de produo e de poder, no contexto da evoluo do sistema capitalista de produo. No por acaso que esse autor consegue, com den-sidade e muita fora intelectual, transitar do con-creto ao abstrato, do local ao global, do passado ao presente, com habilidade insofismvel. O real tomado como ponto de referncia para a constru-o de categorias abstratas que possam explicar as condies concretas da dinmica social com maior rigor analtico.

    Mszros (2004) tece uma crtica abrangente s cincias sociais e a seus principais expoen-tes que se distanciam das condies concretas e tentam explicar e compreender os fenmenos de

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    natureza social adotando uma transcendentalidade formal. mais fcil compreender, com o autor, que a construo cientfica, em vrios campos do conhecimento, desde a fsica s cincias sociais, passa pela subjetividade, algo inerente ao processo de desenvolvimento das ideias, por mais que as cincias sociais defendam uma neutralidade episte-molgica em relao ao conjunto de valores e ide-ologias de um determinado tempo e de um dado sistema social e econmico. Em ltima instncia, o desenvolvimento cientfico reflete a heterogenei-dade de vises de mundo e interesses materiais. A verdade que em nossas sociedades tudo est impregnado de ideologia, quer a percebamos, quer no (MSZROS, 2004, p. 57). O sistema ideolgico um dos pilares de sustentao da sociedade liberal-conservadora.

    Nas sociedades capitalistas liberal-conser-vadoras do Ocidente, o discurso ideolgico domina a tal ponto a determinao de todos os valores que muito frequentemente no temos a mais leve suspeita de que fomos levados a aceitar, sem questionamento, um determinado conjunto de valores ao qual se poderia opor uma posio alternativa bem fundamentada, juntamente com seus com-prometimentos mais ou menos implcitos (MSZROS, 2004, p. 58).

    Na ordem econmica global, principalmente depois da desintegrao do mundo sovitico e da queda do muro de Berlim, a carga ideolgica neoli-beral-conservadora se fez presente com muito mais intensidade e amplitude. Parte da sociedade mundial foi aceitando a ideia de que a alternativa capitalista ocidental tinha sido vitoriosa, que a histria chegara ao seu captulo final com as reformas pr-mercado, libe-ralizao do comrcio e mercados desregulados1.

    Bron (2001) aponta para uma questo extre-mamente importante, que merece ateno nesse

    1 Para uma compreenso crtica das ideias sobre o fim da histria, ver Anderson (1992).

    contexto. Diz o autor que, na agenda pblica e nos principais fruns que discutem a economia interna-cional, o tema capitalismo saiu completamente da agenda nas ltimas duas dcadas do sculo passado.

    O autor confirma, ainda, que um dos maiores triunfos do neoliberalismo foi apontar o capitalismo como um fen-meno natural, buscando cristalizar as tendncias ina-tas aquisitivas e possessivas da espcie humana.

    Em certo momento os processos histricos perderam importncia explicativa e os grandes movimentos da dinmica econmica capitalista so naturalizados, tornados a-histricos. No por acaso que Mszros (2004) afirma que jamais foi to necessrio um exame crtico dos estratagemas da ideologia dominante. Mas essa necessidade encontra obstculos, porque exis-tem dificuldades de se encontrar referncias, dado que o sistema capitalista e seu metabo-lismo pem todas as estruturas burguesas em funcionamento no sentido da destruio do pen-samento alternativo.

    Diante do exposto, podemos arriscar definir ideologia como um conjunto de ideias e representa-es, coerentes ou no, com objetivos de legitimar procedimentos e comportamentos sociais, polticos e econmicos. Tem o intuito de alcanar determina-das posies de vantagem em detrimento de uma maioria de agentes, indivduos etc., que se compor-tam acriticamente diante do plano das ideias e das relaes de explorao.

    Para Chau (1981), a ideologia tem como funo apagar as diferenas e servir como ins-trumento de persuaso dos indivduos para que os mesmos aceitem sua condio social e, ao mesmo tempo, se sintam partcipes da experin-cia dos bem-sucedidos econmica e socialmente, ou seja, que os indivduos tenham identidade social. Esta identidade pode ser expressa na defesa dos interesses nacionais, na religio, no futebol etc. Na tradio marxiana a ideologia tem como funo primordial reforar as condies de

    [...] podemos arriscar definir ideologia como um conjunto de

    ideias e representaes, coerentes ou no, com objetivos de legitimar procedimentos e comportamentos

    sociais, polticos e econmicos

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    dominao e obscurecer a natureza de classe do sistema2.

    Se a ideologia um instrumento de dominao, podemos deduzir, ento, que o conceito de hege-monia, como Gramsci to bem definiu, tambm inclui a fora das ideias como um dos elos do exer-ccio do poder, aliado coero ou ameaa de uso da fora fsica ou material. Ento, uma classe social pode ser hegemnica porque manipula as ideias e os valores que influenciam e mantm sob domnio uma parte da sociedade3. Um corpo doutrinrio e cientfico pode assumir uma posio hegemnica quando a sociedade o aceita como um princpio dado, ex ante. Qualquer tentativa ou esforo de interpretao e explicao de algum fenmeno, com base numa racionalidade lgica, partindo-se desse suposto conjunto doutrinrio, estar fadado ao malogro porque, possivelmente, o alcance da compreenso do movimento din-mico da sociedade, suas bases materiais em fun-cionamento, ser muito menor.

    conhecido o valor que Marx atribui ao movi-mento real da sociedade, s relaes sociais que os homens estabelecem entre si, enquanto clas-ses sociais. Marx e Engels destilam suas crticas aos jovens hegelianos4 por estes desconsidera-rem a atividade real, objetiva dos homens, como o verdadeiro edifcio em que se erguem as estru-turas da sociedade. Alguns dos principais filso-fos iluministas buscaram interpretar o mundo no plano da abstrao ou, ento, sob a influncia de uma carga ideolgica inerente s suas condies de classe social. Carga esta que servia muito mais para obscurecer o processo de dominao e explorao do que para desmistificar a crueldade da realidade, porque a maioria daqueles pensa-dores tinha suas razes no mundo burgus. neste sentido que se interpreta a viso de Marx e

    2 Nascida por causa da luta de classes e nascida da luta de classes, a ideologia um corpo terico (religioso, filosfico ou cientfico) que no pode pensar realmente a luta de classes que lhe deu origem (CHAU, 1981, p. 114).

    3 Sobre Gramsci e o conceito de hegemonia, ver o excelente trabalho de Coutinho (2003).

    4 O sistema hegeliano, principal base da filosofia alem, compreendia que o deter-minante da vida dos homens, e suas relaes com a natureza e entre si, eram as ideias, os pensamentos e os conceitos produzidos pelos prprios homens. O tipo de ideologia idealista censurado em A ideologia alem vergastado por Marx e Engels precisamente por causa de sua impraticabilidade, de seu distanciamento arrogante do mundo real (EAGLETON, 1997, p. 53), de seu misticismo.

    Engels sobre a ideologia, mais pelo lado negativo, quer dizer, da crtica5.

    A superao das dificuldades em compreender a prxis humana em uma sociedade estratificada em classes sociais foi, tambm, um dos objeti-vos importantes dos dois autores em A ideologia alem e em Teses sobre Feuerbach. Ento, retirar o vu que encobria a verdade e realizar a crtica ao transcendentalismo do pensamento que, de certa maneira, predominava na tradio filosfica ilumi-nista, foi uma das grandes contribuies da crtica ideologia na tradio marxiana.

    Assim, tomando conscincia de que as situa-es sociais so historicamente determinadas, a ideologia como um sistema de ideias, conceitos e representaes tambm sujeita s determina-es econmicas e polticas definidas na sociedade estratificada em classes sociais e em contradio contnua. Isto no significa dizer, entretanto, que apenas a classe dominante responsvel pelo sistema de crenas e pensamento que constitui o sistema de poder e o perpetua. A ideologia pode, tambm, servir como importante instrumento de persuaso por parte de outros grupos ou classes sociais que se mantm no poder sem, necessaria-mente, ter origem na base social6.

    Por outro lado, como apontaram de maneira dis-tinta Eagleton (1997, p. 50) e Lwy (1985), Lnin deu um novo significado ideologia, superando, rela-tivamente, a carga pejorativa que tinha em Marx e Engels. Para o revolucionrio russo, no eram apenas as classes dominantes responsveis por esquemas ideolgicos, pela construo de sistemas de ideias. Conforme Eagleton (1997) e Lwy (1985), para Lnin o termo ideologia foi ampliado e passou a significar qualquer doutrina sobre a realidade social que tenha vnculo com uma posio de classe. Pode ser, por-tanto, tambm, um conjunto de ideias e crenas

    5 Em Marx, a ideologia um conceito pejorativo, um conceito crtico que implica ilu-so ou se refere conscincia deformada da realidade que se d atravs da ideologia dominante; as ideias das classes sociais dominantes so as ideologias dominantes na sociedade (LWY, 1985, p. 12). Cf. tambm Eagleton (1997, p. 40).

    6 Mesmo as formas de conscincia que tm razes na experincia das classes opri-midas podem ser apropriadas por seus senhores. Quando Marx e Engels (1996) co-mentam (a ideologia alem) que as ideias governantes de cada poca so as ideias das classes dominantes, provvel que tivessem em mente aqui uma observao gentica, significando que essas so as ideias verdadeiramente produzidas pela clas-se dominante; mas possvel que sejam ideias que apenas estejam em poder dos go-vernantes, sem importar de onde provm (EAGLETON, 1997, p. 50, grifos do autor).

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    que so responsveis pela unio de indivduos em classe, com o propsito especfico de perseguir seus interesses e objetivos polticos particulares, indepen-dentemente das estruturas de poder.

    evidente que no se deve correr o risco de sim-plificar esta questo, mas as classes subordinadas tambm so capazes de influenciar na determina-o do sistema de crenas. Isto amplia o escopo de anlise sobre a ideologia e talvez seja nesse sentido que Mszros (2004) define outros aspectos onde a ideologia pode ser compreendida para alm de um sistema de poder, mas, tambm, como uma prtica consciente de transformao das estruturas sociais.

    Como observamos inicialmente, a ideologia parte constituinte do conjunto de instrumentos a servio dos interesses de classes. O capitalismo, em vrias esferas da vida social, transforma o que puder em valor material; at a cincia no escapa sua lgica de mercantilizao. A fabricao de ideias tambm um dos elementos vitais da conti-nuidade do sociometabolismo capitalista.

    Longe de um positivismo acrtico, os sistemas cientficos nas cincias sociais podem ser con-tra-argumentados, desde que se compreenda, e isto muito importante, seu contexto histrico e os interesses materiais que os envolvem. Na frase que iniciamos o texto, Eagleton (1997) foi muito feliz em afirmar o carter mistificador das ideologias. Assumimos nesse trabalho que esse mesmo papel coube ideologia da crise fiscal do Estado na Amrica Latina. No menos feli-zes foram Santos et al (2004a) quando coloca-ram que a tese da crise fiscal representou uma sublimao moral e ideolgica do capitalismo contemporneo. Ideologia essa que se espraiou com um conjunto de argumentos, relativamente sofisticados, buscando encobrir as verdadeiras razes em defesa da reforma do Estado. O pro-blema sim era aqui e alhures adequar [o Estado] s relaes vigentes e tradicionais de produo (MARX, 1982, p. 198) e s prprias prticas do capitalismo contemporneo e suas relaes de explorao na periferia do sistema.

    A ideologia neoliberal da crise fiscal do Estado na Amrica Latina, portanto, nada mais representou

    que um sistema de ideias conservadoras, mesmo que seus argumentos estejam baseados numa cr-tica ao desenvolvimento capitalista liderado pelo Estado na regio. Buscou, ao mesmo tempo, res-gatar, novamente, o papel do Estado sob novas configuraes e funes, nos marcos estabelecidos pelo sistema capitalista. Agora, sob a supremacia do capital financeiro e das novas redes de interde-pendncia determinadas pelas necessidades de expanso mundial das atividades comerciais, pro-dutivas e, sobretudo, financeiras.

    A seguir veremos algumas interpretaes defensoras e crticas da tese da crise fiscal do Estado. Inicialmente trataremos do pensamento convencional.

    ORTODOXIA ECONMICA E A IDEOLOGIA DA CRISE FISCAL

    A corrente neoliberal

    A corrente neoliberal do Consenso de Washing-ton busca uma conceituao de crise fiscal a partir da crtica ao papel do Estado na economia, princi-palmente no ps-Segunda Guerra Mundial. Impres-siona o modo como os neoliberais se preocupam, no geral, em separar as relaes de causa e efeito das crises no seio do prprio sistema econmico de mercado. Geralmente, as crises econmicas tm como eixos determinantes fatores externos economia de mercado. Isto j tradicional na viso da ortodoxia econmica.

    A profunda crise econmica que assolou a Am-rica Latina, na dcada de 1980, e as transformaes na economia internacional, que vinham ocorrendo desde a dcada anterior, reservaram para a regio importantes mudanas. O principal argumento neoliberal para explicar principalmente o dficit do crescimento econmico e os altos ndices inflacio-nrios era o crescimento desmesurado do Estado e as polticas econmicas errneas.

    Por sua vez, com a retomada da hegemonia norte-americana e a expanso dos mercados

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    financeiros internacionais no incio daquela dcada, outros espaos econmicos passaram a ser alvos de interesses dos grandes capitais monopolistas. A reintegrao internacional des-ses espaos perifricos representou, at mesmo, mudanas de terminologias usualmente dispensadas aos pases do bloco ter-ceiro-mundista. Se depois da Segunda Guerra Mun-dial essas economias eram denominadas de subde-senvolvidas e, logo depois, nas duas dcadas posteriores, a literatura as tratava como econo-mias em desenvolvimento, aps os anos 1990 passaram a ser reconhecidas como mercados emergentes.

    Para a Amrica Latina, por exemplo, essa meta-morfose semntica ilustra o esvaziamento das pro-postas de desenvolvimento econmico e social para a regio. Os espaos se tornaram sinnimos de mercados, perdeu-se a noo de heterogenei-dade e as especificidades das diversas regies se esvaiu dentro das necessidades de ampliao das redes comerciais e financeiras. O processo de rein-tegrao latino-americana dinmica da economia internacional, na dcada de 1990, foi extraordinrio. Conforme o discurso neoliberal, se a regio conti-nuasse insistindo em um modelo de desenvolvi-mento econmico voltado para o mercado interno e com forte presena do Estado na determinao dos investimentos domsticos, os pases da regio no estariam preparados para o jogo competitivo global.

    Para os neoliberais, o modelo de desenvol-vimento por substituio de importaes tinha alcanado seus limites porque as condies inter-nacionais mudaram e as finanas pblicas do Estado intervencionista contriburam para o qua-dro recessivo da economia. A crtica, portanto, ao grau de interveno estatal na regio j denotava os contornos do que se pretendia: adotar uma nova viso de gesto estatal, voltada para a busca da eficincia, produtividade com metas fiscais conser-vadoras e polticas monetrias ortodoxas.

    A crise econmica interpretada a partir da tica ortodoxa explicava que a situao financeiro-ora-mentria do Estado se agravava porque a recesso diminua a possibilidade de expanso da arrecada-

    o de tributos (o chamado efeito-Tanzi). Neste caso, s haveria duas maneiras de financiar os dficits ora-mentrios: pela emisso monetria ou pelo endivida-mento pblico. O primeiro expediente receita certa para a elevao dos preos

    e, por este motivo, foi amplamente rechaada pela ortodoxia econmica, mesmo sem levar em conta em que nvel se situava a atividade econmica, se com taxas de desemprego elevadas ou no.

    Com relao ao endividamento pblico, os economistas neoliberais tambm demonstravam preocupaes, porque quanto mais o Estado pro-movesse a expanso da dvida pblica, maior seria a concorrncia com a iniciativa privada pela pou-pana lquida agregada disponvel para emprs-timos e financiamentos. Por consequncia, esse problema provocava o movimento que a ortodo-xia econmica denomina de crowding out, isto , as empresas que buscavam emprstimos encon-travam dificuldades, em virtude da escassez de dinheiro; e as taxas de juros mais elevadas refle-tiam, justamente, essa escassez e a preferncia dos bancos em conceder emprstimos ao setor pblico. O efeito imediato disto a reduo dos investimentos privados e, consequentemente a retrao do ritmo do crescimento econmico. Com base nesta avaliao de causa e efeito, a ortodo-xia econmica buscava culpar a gesto estatal pela crise econmica na Amrica Latina. A irresponsa-bilidade fiscal teria um componente poltico impor-tante: o populismo. As foras polticas dominantes nesses pases (principalmente os grupos oligrqui-cos) no mediam esforos ou no se preocupavam com a questo fiscal, e atendiam os pleitos sociais em troca de favores eleitoreiros ou de apoio na con-solidao do poder. Dessa maneira, o populismo foi acusado de ser o responsvel, em ltima instncia,

    [...] o populismo foi acusado de ser o responsvel [...] pelos desequilbrios oramentrios

    e aumento do poder de interveno econmica e

    crescimento do tamanho do Estado na Amrica Latina

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    pelos desequilbrios oramentrios e aumento do poder de interveno econmica e crescimento do tamanho do Estado na Amrica Latina, causando ineficincia alocativa e declnio da produtividade sistmica da economia. A sntese do diagnstico da ortodoxia econmica apresentada, em linhas gerais, na Figura 1.

    A partir de um diagnstico bastante conserva-dor que no se interessava por levar em considera-o as especificidades das economias nacionais, a ortodoxia econmica recomendava algumas prioridades em seu pacote de medidas reformis-tas para a Amrica Latina: conteno dos gastos pblicos; reduo da dvida pblica; privatizaes; abertura comercial; abertura financeira; e reforma do setor pblico.

    Os primeiros sinais da crise [1970] foram sufi-cientes para fazer levantar do limbo acadmico dos departamentos de economia o iderio libe-ral (nas verses do monetarismo, da economia de oferta e dos novos clssicos a corrente das expectativas racionais) diagnosticando que o excessivo intervencionismo combinado com a ineficincia alocativa produzia dficit [pbli-co]; como este era financiado em nveis cada vez maiores atravs da emisso monetria, o resultado imediato era a elevao dos preos, que implicava no desincentivo a investir e que, por sua vez, repercutia negativamente sobre o nvel de emprego. Com este diagnstico a so-luo era nica e definitiva: fazer uma poltica de equilbrio fiscal do Estado mediante a redu-o dos gastos, ou seja, reduo das aes do grande governo (SANTOS, 1998, p. 12-13).

    ESTADO

    Oramento

    Receitas Despesas >

    Dficit Pblico

    Inflao

    Emisso de

    ttulos

    Deciso de investir

    Emisso

    de moeda

    Taxas de

    juros

    elevadas

    Efeito-Tanzi

    Efeito-Ponzi

    Efeito crowding out

    Baixo crescimento - desemprego - queda da renda - diminuio da base tributria

    Figura 1Diagnstico da crise econmica na perspectiva da ortodoxia neoliberal

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    Controlar o dficit e a dvida pblica no representa polticas suficientes; os desequil-brios oramentrios deveriam ser anulados de vez. Era Importante, portanto, diminuir o tama-nho do Estado. Desta maneira, as privatizaes e a reforma do Estado so elementos vitais para a soluo dos desequilbrios oramentrios ou da chamada crise fiscal, dos desajustes financeiro-monetrios do Estado.

    Para completar a agenda neoliberal, defen-deu-se a ideia de que os mercados nacionais tinham que aumentar a eficincia produtiva, resultando no aumento da oferta de bens de consumo e de investimentos mais baratos. Isto teria que ser alcanado mediante introduo de novos arranjos tecnolgicos e organizacionais. A supresso das barreiras comerciais e finan-ceiras assumiria importncia vital para estimular e apoiar esse movimento abertura das contas comercial e de capitais. Portanto, conforme deno-minao de Gowan (2003), as trs izaes neo-liberais se autocomplementavam como proposta de um modelo de desenvolvimento econmico pr-iniciativa privada: liberalizao econmica (financeira e comercial), privatizao e estabili-zao monetria.

    A concluso a que podemos chegar acerca da interpretao da ortodoxia econmica sobre a crise na Amrica Latina de que sua deter-minao estava nas foras exgenas, princi-palmente por causa do esgotamento do modelo de desenvolvimento econmico com base no forte intervencionismo estatal e suas bases de financiamento.

    A corrente social-liberal

    Por sua vez, a corrente denominada social-li-beral ganhou notoriedade na Amrica Latina como fonte inspiradora de trabalhos e reflexes sobre a crise econmica da regio. Um dos principais expoentes dessa linha de pensamento Bresser-Pereira. Seus principais trabalhos, produzidos na dcada de 1990, so praticamente idnticos, no exigindo muito mais que a leitura de alguns de seus

    textos para que se tenha uma avaliao mais pre-cisa de suas ideias-chave7.

    Em A Crise econmica e reforma do Estado no Brasil, esse autor busca distinguir-se da abordagem do Consenso de Washington sobre a interpretao e diagnstico da crise econmica latino-americana. Todavia, seu ponto de partida o mesmo: a crise econmica regional uma crise do Estado. A solu-o para a crise alinhada ao pensamento ortodoxo: amplas reformas econmicas e do Estado, voltadas para o desenvolvimento dos mercados. Bresser-Pereira (1996, p. 24) define a abordagem social-liberal como defensora da combinao de uma limitada interveno do Estado no plano econmico e uma firme presena na rea social com a crena no mercado e na formulao e execuo de refor-mas orientadas para o mercado. Esta , portanto, a filosofia poltica que guiar o projeto de reforma do Estado no Brasil, a partir da segunda metade da dcada de 1990 (BRASIL, 1995). Entretanto, seria, ainda, preciso demonstrar a necessidade da reforma na Amrica Latina. neste contexto que a tese da crise fiscal ganha evidncia, tendo, na interpreta-o social-liberal, uma importncia vital. Vejamos, ento, como esta corrente define a crise fiscal e sua relao com a crise do Estado.

    Por crise fiscal queremos dizer no s que o dficit pblico crnico, ou que a dvida p-blica excessiva, mas tambm que o Estado perdeu a capacidade de financiar sua dvida em bases no inflacionrias. A eroso das poupanas pblicas priva o Estado da capa-cidade de adotar qualquer tipo de poltica de-senvolvimentista, e, quando o Estado chega beira da falncia e perde a capacidade de ob-ter emprstimos, todos os governos, qualquer que seja sua base social, a ideologia que pro-fessem ou as promessas de campanha que tenham feito, terminam tomando medidas que so necessrias para restabelecer seu crdito [...] se a retomada do crescimento econmico o que se busca, o objetivo das medidas de reforma no deve ser somente reduzir a infla-

    7 Outros trabalhos na rea de administrao pblica tomam o conceito de crise fiscal como um pressuposto axiomtico, tornando-se caudatrios da mesma perspectiva da ortodoxia econmica latino-americana. Podemos destacar alguns como: Diniz (1998), Souza e Carvalho (1999) e Fleury Teixeira (2001). Todos eles buscam encontrar um ponto de equilbrio entre as reformas institucionais liberalizantes e as propostas neo-desenvolvimentistas.

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    o e aumentar a competio, mas tambm o restabelecimento da capacidade do Estado de mobilizar poupanas e de adotar polticas pblicas orientadas para o desenvolvimen-to (BRESSER-PEREIRA; MARAVALL; PR-ZEWORSKI, 1996, p. 20, grifos nossos).

    A questo central que determina, portanto, a crise do Estado passa pelos sucessivos dficits pblicos, que levam, consequentemente, exausto das poupanas pblicas. A varivel-fluxo determina o tamanho do componente estoque, isto , define o grau de endividamento pblico, dependendo, entre-tanto, do tempo em que aquelas variveis persistem e em que ritmo se desenrola o crescimento do PIB. Se este crescer menos do que o dficit pblico, a relao dvida pblica/PIB tende a aumentar; se, ao contrrio, tende a diminuir.

    Para Bresser-Pereira (1996), as economias lati-no-americanas apresentavam baixo crescimento econmico, desequilbrios oramentrios e eleva-o da dvida pblica na dcada de 1980. Esses problemas causavam uma inflao crnica e dimi-nuam o nvel de poupana agregada. Para agra-var a situao, os desequilbrios do setor pblico exigiam emisses monetrias que provocavam presses sobre os nveis de preos. Assim, para a ortodoxia econmica, autodenominada social-liberal, quanto mais crescesse a dvida pblica e o instrumento para seu financiamento fossem recorrentes emisses monetrias, ocorreria desva-lorizao da moeda e diminuio da credibilidade do Estado junto aos mercados. A Figura 2 resume como a ortodoxia econmica, em sua verso latino-americana, percebe a crise fiscal.

    A interpretao social-liberal busca ser um meio-termo entre a concepo desenvolvimentista e a neoliberal. Porm, com um discurso que se autointitula pragmtico quanto ao diagnstico da crise latino-americana e ao conjunto de reformas propostas, no passou de uma verso tropica-lizada da ortodoxia econmica que ainda irradia dos grandes centros de estudos econmicos neo-liberais anglo-saxes. Uma questo evidente: as ambiguidades nos discursos e argumentos social-liberais. realmente muito difcil identificar os

    limites que separam as ideias social-liberais da perspectiva neoliberal.

    Noutro trecho, o autor se esfora, sem sucesso, para apresentar a abordagem social-liberal como algo diferente da perspectiva da ortodoxia econmica.

    O livro comea com uma interpretao da crise latino-americana, caracterizando-a como uma crise do Estado, e prope que a estratgia adequada para a sua superao , ou ser, uma estratgia orientada ao mer-cado, mas ser tambm pragmtica e social-democrtica ou, talvez mais precisamente, social-liberal , e no uma estratgia neoli-beral [...] O pressuposto do qual parto o de que as reformas orientadas para o merca-do ora em curso na Amrica Latina no so neoliberais, mas social-liberais (BRESSER-PEREIRA, 1996, p. 13).

    Os discursos se afinam e a harmonia das pro-postas regida pelo mesmo pensamento: o credo neoliberal. As reformas econmicas propostas pelo credo neoliberal eram radicais e irrealistas. Mas no h dvidas de que era necessrio implementar

    CRISE FISCAL

    Poupana pblica negativa

    Dficit pblico

    Falta de crdito ao Estado

    Falta de confiana na moeda

    (inflao -desvalorizao)

    Falta de credibilidade do governo

    Dvidas interna e externa

    altas

    Figura 2Ingredientes da Crise Fiscal na abordagem social-liberal

  • IdeologIa e CrIse FIsCal: uma Interpretao CrtICa dos elementos bsICos da reForma do estado

    24 BAHIA AnlISE & DADoS, Salvador, v.19, n.1, p.15-34, abr./jun. 2009

    reformas orientadas ao mercado (BRESSER-PE-REIRA, 1996, p. 16). Ora, as duas correntes defen-dem, abertamente, reformas pr-mercado. Em linhas gerais, no h como distinguir as duas con-cepes. O diagnstico da crise torna-se o mesmo em ambas as correntes. A crise fiscal tratada da mesma maneira e a sua soluo, no caso da proposta social-liberal, ainda mais abran-gente. Em poucas palavras, enquanto o Consenso de Washington prescreveu as linhas mais gerais, os social-liberais encontra-ram a maneira de propor, concretamente, a execu-o do programa de reformas na Amrica Latina e no Brasil na dcada de 1990. As duas correntes so faces da mesma moeda em relao ao contedo das reformas: Reformas econmicas orientadas ao mercado, privatizao, desregulamentao, libera-lizao comercial, assim como a disciplina fiscal e as polticas monetrias restritivas, so maneiras de reformar e fortalecer o Estado, de aumentar a sua governana, e no de enfraquec-la (BRESSER-PEREIRA, 1996, p. 20).

    Em suma, ambas as abordagens partem de diag-nsticos similares: a crise do Estado como causa central da crise econmica. No entanto, enquanto a corrente neoliberal deposita todos os problemas no populismo econmico, a corrente social-liberal descarrega a culpa na macroeconomia do setor pblico mais especificamente.

    CRISE FISCAL E ALGUMAS INTERPRETAES HETERODOXAS

    Um dos trabalhos mais mencionados sobre crise fiscal na literatura internacional o livro de James OConnor, USA: a crise do estado capitalista (1977). A questo central para esse autor a discusso acerca das antinomias do Estado capitalista na exe-cuo de suas funes de propiciar as condies adequadas ao processo de acumulao de capital. Por outro lado, a capacidade de se legitimar como

    entidade poltica, assumindo, tambm, compromis-sos com objetivo de minimizar os custos sociais do crescimento econmico sob bases monopolistas. Para o autor, o Estado norte-americano crescia em

    duas direes: em gastos com capital social e em des-pesas sociais.

    Capital social significa os gastos pblicos em: a) investimentos: projetos e servios responsveis por melhorar as condies de

    produtividade da mo de obra empregada (parques industriais, programas educacionais, infraestrutura etc.); e b) gastos sociais, que ele denomina de con-sumo social: projetos e servios responsveis por diminuir os custos de reproduo da fora de tra-balho (sade e educao). Em uma terceira dimen-so, OConnor (1977) define outro tipo de despesas sociais, representadas no conjunto de dispndios pblicos com projetos e servios que iriam manter a harmonia social e o controle das situaes confli-tantes. O autor apresenta duas teses para chegar compreenso daquilo que ele compreende como crise fiscal. A primeira tese afirma que:

    [...] o crescimento do setor estatal e da despe-sa estatal funciona cada vez mais como base do crescimento do setor monopolista e da pro-duo total. Inversamente [...] o crescimento do gasto estatal e dos programas do Estado o resultado do crescimento das indstrias mo-nopolistas. O crescimento do Estado tanto causa quanto efeito da expanso do capital monopolista (OCONNOR, 1977, p. 21).

    A segunda tese prope discutir a contradio entre a acumulao de capital social e as despesas sociais, criando tenses econmicas, sociais e pol-ticas. Essa contradio significa que medida que a produo social cresce e seu excedente vai sendo apropriado privadamente, os gastos pblicos em capital social e despesas sociais vo se alargando. Desta maneira, o que OConnor (1977) chama de crise fiscal justamente a contradio revelada pelo estgio de elevado grau de desenvolvimento do capitalismo monopolista sob bases nacionais. As

    [...] enquanto a corrente neoliberal deposita todos os problemas no

    populismo econmico, a corrente social-liberal descarrega a

    culpa na macroeconomia do setor pblico mais especificamente

  • FbIo guedes gomes

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    estruturas monoplicas se expandem e o excedente econmico se concentra extraordinariamente. Isto resulta no aumento da fora poltica dos capitalistas, a ponto destes se negarem a contribuir com impos-tos ao Estado, socializando, portanto, os custos de reproduo social do processo de acumulao com as classes sociais menos favorecidas.

    Porm, como as estruturas monopolistas no podem interromper o processo de acumulao, demandam cada vez mais do aparato estatal gas-tos elevados. Por outro lado, as presses mono-polistas por aportes estatais comprometem os gastos pblicos com polticas que do sustentao legitimidade institucional do Estado. Com isto, as bases de financiamento pblico no acompanham o processo de acumulao, porque, negando-se os capitalistas a contribuir com mais impostos, o sistema econmico entra em crise, com o Estado, consequentemente, comprometendo suas fun-es de acumulao e tambm de legitimao. Em OConnor (1977) a crise fiscal significa, em poucas palavras, um hiato entre as despesas do Estado e as suas bases de financiamento erodidas pelo esgotamento tributrio e oramentrio determinado pela condio hegemnica das classes capitalistas e pelo processo de acumulao.

    Em resumo, como o poder do Estado sofre a influncia direta dos interesses dos grupos mono-polistas, suas funes no escapam continuidade das polticas pblicas que mantm as despesas e os investimentos que impulsionam a acumulao de capital. Por outro lado, as bases de receitas oramentrias diminuem, em virtude da ampliao dos espaos de poder dos grupos corporativos, que se negam a contribuir para a socializao dos cus-tos da produo social. Portanto, a crise fiscal do Estado, na verdade, se trata de uma crise do modo de produo capitalista e da manifestao contra-ditria, do capitalismo em sua etapa monopolista (OCONNOR, 1977, p. 109).

    Um dos grandes mritos desse trabalho foi compreender o Estado como uma instituio social determinada historicamente. Determinada em cima das contradies de classes, no capitalismo. Ou seja, sua anlise rejeita, inteiramente, a perspectiva

    dicotmica: Estado versus mercado, Estado versus sociedade. A crise do Estado no , simplesmente, uma crise em si. Trata-se, fundamentalmente, de uma luta de classes pelo excedente econmico e pela socializao dos custos da produo deste excedente; um conflito social que impe ao Estado funes econmicas e polticas que, levadas s lti-mas consequncias, inviabilizam o prprio processo de reproduo do capital. Portanto, a manifestao desta disputa poltica a crise fiscal do Estado. O fator determinante a natureza intrnseca do processo de produo capitalista e suas relaes sociais de produo na etapa monopolista. Neste sentido, a categoria crise fiscal analisada como um fenmeno econmico dentro de uma totalidade sistmica. OConnor (1977) no se prende aos aspectos do Estado em si. Sua compreenso da crise fiscal do Estado capitalista tomada, enfim, numa perspectiva dialtica.

    Numa perspectiva parecida com a de OConnor (1977), Harvey (2004a; 2005) trabalha a questo da crise fiscal como um epifenmeno das transfor-maes poltico-econmicas do capitalismo do final do sculo XX. Ele no se debrua, exatamente, sobre o tema; trata-o como um pressuposto e busca explicar a crise fiscal a partir do processo de deteriorao do poderio econmico e poltico norte-americano, sobretudo a partir da dcada de 1970.

    Seguindo um pouco na mesma linha de OConnor (1977), Harvey (2005) associa a crise fiscal norte-americana ao seu desempenho econ-mico no financiamento do processo de acumulao do capital, atravs da excessiva militarizao de suas bases ao redor do mundo. Para ele os Esta-dos Unidos haviam se defrontado, na dcada de 1970, com um problema comum a todos os regimes imperiais: a abrangncia excessiva.

    Os crescentes custos do conflito militar no Vietn, quando associados regra de ouro do consumismo domstico interminvel [...] mostraram-se de impossvel manuteno, dado que os gastos militares fornecem ape-nas canais de curto prazo para o capital excedente e pouco contribuem para o alvio de longo prazo das contradies internas da acumulao de capital. O resultado disso foi

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    uma crise fiscal do Estado desenvolvimentis-ta no interior dos Estados Unidos. A resposta imediata foi o uso do direito de seigniorage e a impresso de mais dlares (HARVEY, 2005, p. 57, grifo do autor).

    A crise fiscal do Estado norte-americano tinha que ser contornada de alguma maneira, porque esta situao provocava presses inflacionrias mundiais e perturbava o poder do dlar como padro inter-nacional, ao mesmo tempo em que enfraquecia a capacidade econmica imperial do pas. A crise fiscal comprometia os Estados Unidos frente aos seus con-correntes mais diretos, como Japo e Alemanha Oci-dental, que ganhavam fora competitiva em vrios ramos produtivos na dcada de 1970. Ao mesmo tempo, as presses internas eram enormes para que houvesse alguma sada para que o pas recuperasse sua hegemonia mundial. Como o prprio Harvey aponta, os Estados Unidos, ameaados pelo lado da produo, reagiram afirmando sua hegemonia pelo lado das finanas (HARVEY, 2005, p. 58). Tal-vez, pela primeira vez na histria, depois do apogeu do Padro-Ouro, no sculo XIX, o Estado e as altas finanas se influenciavam mutuamente numa escala extraordinria de operaes integradas.

    O endividamento crnico do Estado gerou todo tipo de oportunidades de atividade especulati-va, o que, por sua vez, tornou o poder do Es-tado mais vulnervel a influncias financeiras. Em suma, o capital financeiro passou ao cen-tro do palco nessa fase da hegemonia norte-americana, tendo podido exercer certo poder disciplinar, tanto sobre os movimentos da clas-se operria como sobre as aes do Estado, em particular quando e onde o Estado assumiu dvidas de monta (HARVEY, 2005, p. 59).

    Porm, para que o sistema de fortalecimento do poder imperial do Estado norte-americano fosse restabelecido e as bases de seu financiamento no fossem comprometidas, as polticas neoliberais tiveram um papel vital. Propuseram estratgias de abertura dos mercados, com as desregulamenta-es econmicas e financeiras dos mercados de capitais das economias domsticas ocidentais. O Estado norte-americano, atravs da Secretaria de

    Tesouro Nacional e do Federal Reserve (FED), jun-tamente com o FMI e os interesses de Wall Street, estabeleceram as novas regras da governana glo-bal, quebrando, definitivamente, a institucionalidade de Bretton Woods. Isso tudo j na dcada de 1970!

    O desdobramento desse processo foi o alarga-mento dos limites das bases de financiamento do capitalismo central, com a emisso e negociao dos ttulos pblicos nos mercados secundrios de vrias partes do mundo. Assim, o dficit pblico e o endividamento estrutural do Estado norte-americano tornaram-se estratgicos para a sustentao do seu poder imperial. Os desequilbrios oramentrios se arrastam por mais de trs dcadas e foram respon-sveis pelo fortalecimento dos mercados financei-ros internacionais, com Wall Street no comando da corretagem internacional de compras e vendas de ttulos pblicos do Tesouro norte-americano.

    Na perspectiva brasileira, um dos trabalhos que tambm se preocupou em abordar as dimenses interna e internacional da crise da economia bra-sileira e a deteriorao das finanas pblicas do pas, na dcada de 1980, foi o desenvolvido por Baer (1993). Nele, a crise do Estado brasileiro abordada como consequncia de um movimento maior determinado pela crise da economia interna-cional, a partir do final da dcada de 1970. A crise do Estado teve como elemento central a crise da dvida externa na dcada de 1980, provocada pelos movimentos geoeconmicos no plano internacio-nal, principalmente pela poltica monetria adotada pelos Estados Unidos, em 1979. Este movimento provocou a ruptura do padro de financiamento externo brasileiro e exauriu as bases financeiras do Estado desenvolvimentista na periferia.

    As sucessivas tentativas de se ajustar frente aos efeitos econmicos externos levaram o governo militar, na primeira metade da dcada de 1980, a executar polticas econmicas ortodoxas, que s contriburam para aprofundar a crise e a recesso econmica no pas. Os mercados finan-ceiros internacionais, depois da moratria mexi-cana (1982), no estavam, de maneira alguma, dispostos a continuar financiando economias endividadas. Esta desmotivao se arrastou at

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    BAHIA AnlISE & DADoS, Salvador, v.19, n.1, p.15-34, abr./jun. 2009 27

    o final da referida dcada, prejudicando, tam-bm, as tentativas de estabilizao econmica e o ajuste externo com as polticas, agora, de corte heterodoxo, que foram adotadas a partir do Plano Cruzado, em 1986.

    A crise fiscal, para Baer (1993), no foi simples-mente uma crise do Estado e do seu padro de inter-veno na economia, como se defende comumente entre os neoliberais. Pelo contrrio, a crise fiscal significava a expresso do conflito distributivo, ou seja, a transferncia para o Estado do nus do ajuste do setor privado e a subordinao dita-dura dos credores internacionais, via estratgias draconianas de padres de refinanciamento da dvida externa, grande parte delas nas mos do prprio Estado.

    Apesar da saga dos planos de estabilizao heterodoxos na dcada de 1980, o ambiente finan-ceiro internacional era altamente imprprio para uma poltica de retomada do crescimento econ-mico. Dada a dimenso do desajuste financeiro do setor pblico, condies adequadas de financia-mento interno e internacional so imprescindveis para sustentar um patamar mnimo de crescimento que viabilize o ajuste fiscal e a reestruturao na base produtiva (BAER, 1993, p. 21).

    No entanto, como os desajustes da economia brasileira vinham dos desequilbrios das contas externas e o mercado financeiro internacional no estava disposto a abrir mo de sua postura de cre-dor implacvel com a periferia latino-americana8, o Estado brasileiro assumiu o nus do ajustamento. Concomitantemente, ele cumpriu seu desiderato de garantir a reproduo da riqueza privada atravs dos circuitos financeiros e comerciais com a securi-tizao dos ttulos da dvida pblica.

    8 A Amrica Latina teve um tratamento diferenciado pelos mercados financeiros inter-nacionais, na dcada de 1980. Alguns autores, como Canuto (1994), Medeiros (1997), Carneiro (2002) e Camara e Salama (2005) demonstraram como esses mercados trataram, de maneiras distintas, a sia e Amrica Latina, durante a crise da dvida externa, criando um clima de instabilidade econmica nos pases em desenvolvimen-to. Enquanto isso, para a regio asitica os fluxos de capitais no cessaram, no comprometendo as estratgias de desenvolvimento econmico nacionais. Tampouco deterioraram-se as contas pblicas dos Estados da regio. Na Amrica Latina, aps a moratria mexicana de 1982, os capitais financeiros interromperam os fluxos, compro-metendo, sobremaneira, as economias latinas e, consequentemente, trazendo srios prejuzos sociais. (Cf. BAER, 1993, p. 202-203).

    O trabalho de Baer (1993) se destaca em dife-rir da avaliao ortodoxa sobre as principais cau-sas da recesso econmica brasileira na dcada de 1980. Ao contrrio do pensamento neoliberal, a

    autora busca na crise inter-nacional e seus efeitos na macroeconomia interna os elementos da exausto da poltica intervencionista do Estado desenvolvimentista e os desajustes das finanas

    pblicas. Tambm enfatiza a pilhagem do Estado pelos grupos privados que se protegiam da crise econmica nacional e garantiam o valor da riqueza contra o processo inflacionrio.

    Entretanto, o que podemos afirmar com certa exatido que, no campo da heterodoxia econ-mica, nenhum dos trs trabalhos abordados aqui conseguiu tratar, especificamente, do conceito de crise fiscal na direo de compreend-la em um contexto bem maior da reestruturao das relaes orgnicas entre capitalismo e Estado. Talvez o tra-balho de OConnor (1977) tenha sido o que mais tenha se aproximado desta questo, embora aceite que a crise fiscal seja, realmente, um problema e que ela reflete as contradies do elevado desen-volvimento das foras produtivas do capitalismo monopolista.

    A seguir, discutiremos alguns trabalhos que aprofundam melhor a discusso acerca do con-ceito de crise fiscal. A preocupao maior deles demonstrar que as relaes entre Estado e capi-tal mudaram completamente. Com a responsabili-dade de gerenciar as crises capitalistas, o Estado foi se destacando como um dos principais agentes do capital, com um grau de interao muito maior do que as estruturas que deram origem ao prprio sistema. A capacidade de assumir papis e gerir polticas, que somente o Estado rene, lhe garante uma situao de extraordinrio privilgio vis a vis os capitais individuais. Neste sentido, para com-preender a crise do Estado preciso extrapolar os limites daquelas perspectivas acima, e levar em conta as profundas relaes orgnicas entre Estado e capitalismo.

    [...] o ambiente financeiro internacional era altamente imprprio para uma poltica de retomada do crescimento

    econmico

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    CRTICA RAzO DA CRISE FISCAL

    Alguns importantes autores brasileiros tm dei-xado claro que a ortodoxia econmica no tem razo em justificar o conjunto de reformas econmicas, com especial nfase mudana de eixo das relaes do Estado com o sistema econmico, em virtude de uma suposta crise fiscal. Como foi abordado, este foi um dos principais argumentos que predominou em defesa da reforma do Estado e sobre as mudanas econmicas neoliberais, na dcada de 1990. At hoje, o discurso em defesa da responsabilidade fiscal, com o controle sobre as contas pblicas e a manuteno do equilbrio oramentrio, so argumento poderosos na justifica-o de polticas de estabilidade macroeconmica.

    Geralmente, o Estado responsabilizado por gas-tar demais e muito mal; isto quer dizer que a crise fis-cal concebida como um desequilbrio entre receitas e despesas oramentrias, e resultado da baixa efici-ncia na alocao e uso dos recursos pblicos. Ainda mais controverso quando algumas autoridades eco-nmicas, buscando argumentar em defesa do ajus-tamento fiscal e das solues para os desequilbrios oramentrios, apelam para argumentos esdrxu-los como, por exemplo, fazendo comparaes entre as finanas pblicas e a economia familiar. Tanto nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso (1995/1999, 1999/2003), quanto no primeiro mandato do presidente Lus Incio Lula da Silva (2003/2007), este tipo de artifcio foi repetido ad nauseam.

    A tese de que as finanas pblicas apresenta-vam, na dcada de 1990, desequilbrios oramen-trios que complicavam as funes pblicas do Estado brasileiro j foi rechaada por alguns estu-diosos. No obstante a importncia dessas crticas, a questo que mais chama a ateno a baixa pro-duo de trabalhos e estudos que aprofundem a questo com o objetivo de realizar uma avaliao mais radical daquilo que se constituiu como um dos maiores mitos da histria econmica recente9.

    9 O economista e ex-ministro do Planejamento do governo do presidente Jos Sar-ney, Joo Sayad, confirmou isto na ocasio dos dez anos do Plano Real. Vejamos: A dvida pblica interna [brasileira] aumentou de 30% para 60% do PIB por causa dos altos juros e do esforo de atrair dlares para manter a sobrevalorizao. A mesma coisa aconteceu na Argentina e em outros pases da Amrica Latina. Os conserva-dores, como sempre, apontaram o dficit pblico como causador do problema. Os dados mostram que, no perodo, o dficit pblico exceto os juros era nulo ou negativo. A tese de desequilbrio fiscal menos sofisticada do que uma ideologia. Era e conti-nua sendo uma mentira (SAYAD, 2004, grifos nossos).

    Entre alguns autores que emitiram opinio sobre as finanas pblicas no Brasil, na dcada de 1990, destacam-se Belluzzo e Almeida (2002). Os autores trabalharam o conceito de crise fiscal criticando os custos do ajustamento (externo e interno) da eco-nomia brasileira na dcada de 1980, e como eles recaram sobre o setor pblico.

    O governo utilizou de suas prerrogativas de gestor pblico para arbitrar favores e interes-ses particulares atravs do antigo Oramen-to Pblico [...] a reconstituio das contas do setor pblico no deixa dvida de que a origem da crise fiscal e do endividamento pblico est inteiramente ligada ao ajuste privado [...] O ajustamento no s preservou os lucros e o patrimnio do setor privado, como permitiu o reequilbrio externo em con-ta corrente, mas, ao mesmo tempo, produziu o agravamento das incertezas: inflao alta, sem mais confiana na indexao, a percep-o da precariedade da situao cambial, o aprofundamento da crise fiscal e de financia-mento do setor pblico e das empresas es-tatais (BELLUZZO; ALMEIDA, 2002, p. 145, grifos nossos).

    Como se pode observar, Belluzzo e Almeida (2002, p. 17) argumentam que o Estado brasileiro se defrontava com uma grave crise fiscal e que ela derivava, em ltima instncia, de uma crise da sobe-rania do Estado, [este] ameaado em uma de suas prerrogativas fundamentais, a de gerir a moeda. Desta maneira, as demais prerrogativas (poltica fis-cal e cambial, intermediao financeira, investimen-tos estatais etc.) se tornavam incuas, conforme os autores. Por sua vez, num breve artigo escrito recentemente, Belluzzo defende que na dcada de 1990 a situao financeira do setor pblico era completamente diferente daquela dos anos 1980. Que as finanas pblicas alcanaram uma situao extraordinria e isto teve uma influncia decisiva para o lanamento das bases do programa de esta-bilizao monetria e abertura econmica, proposto pela ortodoxia econmica, a partir de 1994.

    correto afirmar que, nos idos de 1994, na partida do Plano Real, a situao financeira do setor pblico brasileiro era invejvel. Ne-

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    nhum dos planos anteriores de estabilizao contou com essa vantagem. O ajuste fiscal e o encolhimento do endividamento pblico antecederam o Real e foram executados pelo governo anterior. Em 1993, por exemplo, o governo tinha supervit primrio e opera-cional, e tanto a dvida lquida como a dvida mobiliria eram quase insignificantes como proporo do PIB (BELLUZZO, 2004).

    Mais recentemente, Nogueira Batista Jr. tambm confirmou a falta de credibilidade da tese de que o setor pblico apresentava uma grave crise fiscal poca da proposta de reforma do Estado. O autor inverte a relao de causalidade mostrando que foi justamente a gesto da poltica monetria execu-tada pela ortodoxia econmica que causou gran-des impactos negativos sobre as finanas pblicas. Os altos juros praticados no pas em mais de uma dcada foram os verdadeiros responsveis pelo desequilbrio das contas pblicas. Ento, as polti-cas de estabilidade monetria e, principalmente, de abertura econmica cobraram seu preo no dese-quilbrio das finanas pblicas.

    Muitos analistas insistem em condicionar a reduo das taxas de juro ao prvio equacio-namento dos problemas fiscais do governo. Trata-se de uma inverso. O dficit pblico con-tribui para o nvel da taxa de juro, mas a relao de causalidade tnue e difcil de captar com preciso. J a relao inversa, da taxa de juro para o dficit, clara e cristalina, podendo ser mensurada com relativa facilidade [...] Graas overdose aplicada pelo Banco Central, o custo da dvida pblica continua nas alturas. O setor pblico, como um todo, paga juros equivalentes a nada menos que 8% do PIB [...] apesar das despesas financeiras, a situao das contas pblicas est longe de ser calamitosa. H diver-sos pontos de fragilidade, mas no existe crise fiscal (BATISTA JR., 2006, grifos nossos).

    No obstante a importncia da opinio desses autores, algumas questes caracterizam suas ava-liaes e as tornam insuficientes para compreender o movimento que esteve subjacente ao comporta-mento do Estado, na periferia capitalista, e de suas finanas pblicas: I) o predomnio do diagnstico macroeconmico (conjuntural); II) o conceito de

    crise fiscal para esses autores circunscreve-se aos estreitos limites do conceito de crise financeira, na qual os agentes econmicos encontram obstcu-los para financiarem suas posies devedoras; e III) no levam em conta a ampla relao de dbito (dvida ativa) e crdito entre Estado e agentes eco-nmicos, antes da formao do prprio oramento fiscal (SANTOS et al., 2004a, p. 86 ss.).

    A crtica que mais avanou no objetivo de com-preender o conceito de crise fiscal, dentro da lgica de funcionamento do sistema capitalista e das rela-es orgnicas estabelecidas entre Estado e capital, est reunida nos trabalhos desenvolvidos por San-tos (1998) e Santos e outros (2001, 2004a; 2004b). Neles, seus autores vo muito mais alm da viso financeira de crise. Tm uma preocupao original de compreender a natureza do papel do Estado no capitalismo contemporneo, desvencilhando-se dos estreitos limites da interpretao macroeconmica conjuntural. Tambm procuram discutir os elemen-tos essenciais que explicam a retrica em defesa da tese da crise fiscal e, com isso, do realinhamento do Estado e da periferia aos movimentos de expanso do capitalismo global, mediante o acirramento das dis-putas intercapitalistas. Isso tudo dentro do contexto da concorrncia entre naes e entre capitais lderes e rivais e que est levando a um acelerado processo de concentrao e centralizao de capitais (SAN-TOS et al.., 2001, p. 6). Para esses autores,

    [...] a crise fiscal algo construdo, pois a nica maneira


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