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14 MAR TEXTO CHICO€¦ · Title: Microsoft Word - 14 MAR TEXTO CHICO.docx Created Date: 3/15/2017...

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CIDADE, TIPOGRAFIA, FOTOGRAFIA_ Chico Homem de Melo 1 ENQUADRAMENTO Nossa percepção do mundo que nos cerca não se dá no vazio, mas ocorre sempre dentro de um contexto. A eliminação desse contexto é uma diferença fundante entre a percepção que um espectador tem quando está mergulhado num determinado ambiente e quando contempla uma imagem fotográfica desse mesmo ambiente. No primeiro caso, o espectador está dentro da cena, está envolvido por informações visuais por todos os lados. No segundo caso, o espectador está fora, a informação visual lhe é externa, os limites da cena são pré-definidos e arbitrários. A arbitrariedade do enquadramento que o fotógrafo faz da cena é decisiva para gerar a imagem final. Esse é o recurso mais poderoso para a seleção das informações visuais desejáveis e eliminação das indesejáveis. O estúdio fotográfico é a concretização dessa operação arbitrária, na qual tudo é explicitamente controlado visando a obtenção de uma determinada imagem da realidade. Toda a fotografia publicitária é produzida dessa forma. No entanto, o estúdio é apenas a explicitação desses recursos, que na verdade ocorrem na geração de qualquer imagem fotográfica, independente de sua natureza. A fotografia sempre reduz a um campo geometricamente definido, uma realidade que não tem limites determináveis. EXCLUSÃO DE ELEMENTOS A desarticulação que o enquadramento produz na realidade observada, ao isolar um fragmento e descontextualiza-lo, tem por isso mesmo o poder de surpreender-nos. O enquadramento reconstrói a realidade, operando com uma fração isolada do visível, e esse isolamento pode por vezes nos revelar o imprevisto. A prática mais corrente do enquadramento, na verdade, uma operação inevitável, é a eliminação de parte das informações visuais da cena representada. O fotógrafo limpa a cena através da retirada de informações que poderiam vir a se constituir em ruído na imagem desejada. O cartão-postal é um exemplo privilegiado desse recurso. Ele está a serviço de uma determinada visão da cidade e, com o objetivo de potencializá-la, elimina tudo que não estiver a seu serviço.
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CIDADE, TIPOGRAFIA, FOTOGRAFIA_ Chico Homem de Melo

1

ENQUADRAMENTO Nossa percepção do mundo que nos cerca não se dá no vazio, mas

ocorre sempre dentro de um contexto. A eliminação desse contexto é uma

diferença fundante entre a percepção que um espectador tem quando está

mergulhado num determinado ambiente e quando contempla uma imagem

fotográfica desse mesmo ambiente. No primeiro caso, o espectador está

dentro da cena, está envolvido por informações visuais por todos os lados. No

segundo caso, o espectador está fora, a informação visual lhe é externa, os

limites da cena são pré-definidos e arbitrários.

A arbitrariedade do enquadramento que o fotógrafo faz da cena é

decisiva para gerar a imagem final. Esse é o recurso mais poderoso para a

seleção das informações visuais desejáveis e eliminação das indesejáveis. O

estúdio fotográfico é a concretização dessa operação arbitrária, na qual tudo é

explicitamente controlado visando a obtenção de uma determinada imagem

da realidade. Toda a fotografia publicitária é produzida dessa forma. No

entanto, o estúdio é apenas a explicitação desses recursos, que na verdade

ocorrem na geração de qualquer imagem fotográfica, independente de sua

natureza. A fotografia sempre reduz a um campo geometricamente definido,

uma realidade que não tem limites determináveis.

EXCLUSÃO DE ELEMENTOS

A desarticulação que o enquadramento produz na realidade

observada, ao isolar um fragmento e descontextualiza-lo, tem por isso mesmo

o poder de surpreender-nos. O enquadramento reconstrói a realidade,

operando com uma fração isolada do visível, e esse isolamento pode por

vezes nos revelar o imprevisto. A prática mais corrente do enquadramento, na

verdade, uma operação inevitável, é a eliminação de parte das informações

visuais da cena representada. O fotógrafo limpa a cena através da retirada de

informações que poderiam vir a se constituir em ruído na imagem desejada.

O cartão-postal é um exemplo privilegiado desse recurso. Ele está a serviço de

uma determinada visão da cidade e, com o objetivo de potencializá-la,

elimina tudo que não estiver a seu serviço.

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Esse procedimento repete-se nas fotos dos compêndios de arquitetura,

visando dar a maior nitidez possível às obras.

Os edifícios são vistos sempre como

protagonistas incontestes da cena urbana. Suas

linhas são enfatizadas, seu desenho é destacado

do entorno, ele aparece com uma clareza de

concepção que somente em circunstâncias

muito particulares podemos contemplar. A foto

da Figura 1, do edifício Guaranty Trust Bank, de

Louis Sullivan, ilustra bem esse procedimento.

A imagem enfatiza as linhas da

perspectiva, isola o edifício de seu entorno,

elimina qualquer vizinhança que possa rivalizar

com seu desenho. Ele adquire uma legibilidade

máxima. No entanto, se examinarmos os esquemas da

Figura 2, feitos a partir da foto, veremos como sua imagem

perde o poder de impacto quando aparece mergulhada num

hipotético contexto de edifícios vizinhos. Apesar da

manutenção do ponto de vista da foto, que por si só já lhe

assegura o lugar de centro das atenções, podemos perceber

a nitidez de seu desenho diluir-se na paisagem.

Essa estratégia de construção da imagem ajuda a

explicar nossa surpresa quando tomamos contato direto

com a escala de edifícios e ambientes urbanos que

conhecemos somente através de fotografias. A sensação

mais frequente é que as obras têm dimensões menores do

que nossa expectativa poderia supor. Entre outras razões,

esse fenômeno ocorre em virtude da exclusão – pelo recurso

do enquadramento – de informações visuais do contexto em

que as obras estão mergulhadas, estabelecendo uma

hegemonia absoluta delas em relação ao entorno. Dessa

2. Esquemas mostrando a inclusão e exclusão de elementos na imagem

fotográfica.

1. K Kitajima. Guaranty Trust Bank, de Louis Sullivan. Foto sem data.

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forma, o esforço das imagens fotográficas em concentrar toda a atenção na

obra faz com que ela sofra um processo de diluição no momento em que a

presença do contexto passa a estimular nossos sentidos. Ao mesmo tempo,

isso não implica numa perda de qualidade da informação arquitetônica. Pelo

contrário, o fenômeno mais comum é que o contato direto com as obras

supera nossa expectativa global em relação a elas, frequentemente revelando

aspectos insuspeitados da linguagem da arquitetura.

O procedimento do fotógrafo não constitui uma falácia. É um recurso

usado para representar determinados aspectos da linguagem dos edifícios.

Uma vez que o objetivo é descrever com a máxima nitidez o desenho do

edifício, nada melhor que destacá-lo do contexto para se poder observá-lo de

um ponto de vista privilegiado. O prejuízo que a difusão indiscriminada

desse tipo de imagem causa está no fato de que esse olhar particular da

fotografia instaura-se como o olhar universal pelo qual apreende-se a

arquitetura. Passamos a acreditar subliminarmente que é assim que se vê a

arquitetura e, por consequência, passamos a projetar para esse olhar. O

modelo de representação do espaço próprio da fotografia institui-se como o

modelo de representação do espaço por excelência, sem mediações.

A radicalização do recurso de eliminar toda informação visual

supérflua e a explicitação do uso do enquadramento rigorosamente seletivo

podem revelar uma realidade insuspeitada. É o caso do conjunto de fotos de

Anna Mariani, reunidas no livro

Façades, das quais são

reproduzidas três na Figura 3. São

imagens de habitações simples do

Nordeste brasileiro, nas quais o

enquadramento elimina toda a

informação visual que não seja a

fachada da casa retratada, além de

faixas de piso e de céu de

tamanhos equivalentes. Não há 3. Anna Mariani. Fachadas. Foto de 1988.

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vestígios de edificações vizinhas, e o ângulo de visada é sempre o mesmo –

perpendicular ao plano da fachada, centralizado em relação a ele, na altura do

olho do pedestre. O resultado é surpreendente. Defrontamo-nos com um

conjunto de fachadas que apresentam, aliados ao caráter singelo das

habitações, um requinte gráfico e cromático insuspeitado. Nosso repertório

visual normalmente nos remete, em se tratando de pequenas cidades do

interior nordestino a cenários de pobreza e precariedade. Mesmo em nossas

vivências diretas desses ambientes, há pouco espaço para a percepção da

singularidade das casas retratadas pela fotógrafa. O recorte radical nos revela

uma paisagem com características opostas às nossas expectativas – riqueza de

desenhos e rigor de composição que nos remetem até mesmo a tradição da

pintura abstrata erudita.

INCLUSÃO DE ELEMENTOS

Se por um lado a exclusão de elementos indesejáveis é a prática mais

corrente – e inevitável, é bom que se lembre –, por outro a inclusão de

elementos aparentemente estranhos aos objetos retratados é um recurso

frequente para a construção de significados normalmente ausentes da

linguagem fotográfica dos cartões-postais.

Na fotografia de um aeroporto

americano reproduzida na Figura 4,

de autoria dos suíços Peter Fischli e

David Weiss, podemos ver a

desintegração da hierarquia habitual

das fotos oficiais através da

incorporação de elementos

normalmente eliminados pelo

enquadramento padrão. Os aviões,

invariavelmente os protagonistas da

cena fotográfica ícones do avanço tecnológico da humanidade, estão

equiparados aos demais elementos da paisagem: carros dispostos

aleatoriamente por toda parte, postes enferrujados, cercas tortas, edifícios de

4. Peter Fischli e David Weiss. Sem título. Foto de 1989.

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formas variadas e, em primeiro plano, um monte de terra e entulho.

O enquadramento-padrão providenciaria a eliminação dos elementos

de cena que ofuscam o brilho dos aviões, e o primeiro a ser eliminado seria

indiscutivelmente o monte de terra. O próprio enquadramento dos aviões está

deslocado da hierarquia habitual das fotos oficiais de aeroporto, pois além de

dispostos em desacordo com qualquer princípio compositivo que lhes garanta

o papel de protagonistas da cena fotográfica, o poste em primeiro plano

esconde sua cabeça e rompe a integridade do desenho da aeronave. A força

da imagem constrói-se exatamente através da quebra da composição

equilibrada que se espera da cena retratada, e pela revelação de uma

banalidade da paisagem incompatível com nossas expectativas culturais.

Nessa outra realidade revelada, o monte de terra informe equipara-se às

formas rigorosas e precisas dos aviões.

INFORMAÇÃO EXTRACAMPO

Na foto da Figura 47 fica explicitado o recurso da informação extra-

campo usada pelos cartões-postais para criar uma imagem idealizada do

ambiente urbano. A informação extracampo é a continuidade virtual da

imagem para além dos limites impostos pelo enquadramento, obedecendo

aos modelos figurativos que constituem nossa cultura visual.

Assim, um cartão-postal de um monumento não nos permite sequer

considerar a possibilidade de que contigua a ele pudesse estar localizada uma

favela escondida pelo enquadramento. Ao contrário, imaginamos sempre

uma continuidade harmônica da cena retratada. O mesmo gesto que exclui

elementos da cena, inclui virtualmente outros elementos que não podemos

contemplar naquele enquadramento, mas que ficam subentendidos. E o

mesmo recurso que faz com que, numa foto, enfatizando o garbo de

aeronaves dispostas numa pista de aeroporto, não possamos supor que

contiguo a elas estejam presentes cercas e postes enferrujados ou um monte

de terra e entulho. Na medida em que os cartões restringem todos os

elementos de cena a um único sentido, a informação extracampo vem sempre

reforçar esse sentido, e nunca contradizê-lo.

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Os cartões-postais que transformam a paisagem urbana numa textura

regular de prismas como na Figura 5, são exemplos de exploração do recurso

da informação extra-campo. Através do enquadramento fechado num campo

visual que repete um padrão uniforme de distribuição de edifícios, a imagem

torna-se contínua para além dos limites do

visível, sem interrupções previsíveis desse

padrão. A cidade ganha homogeneidade de

um tecido que se estende indefinidamente

sobre um território. O resultado é uma

paisagem idealizada, vista como um padrão

gráfico contínuo e homogêneo, sem relação

com nossa experiência sensorial dos

ambientes urbanos, mas que, apesar disso,

não perde sua verossimilhança.

PONTO DE VISTA Quando olhamos o mundo, nossa atenção normalmente volta-se para o

que se olha, e negligencia-se o lugar de onde se olha. No entanto, sempre

olhamos o mundo a partir de um ponto de vista, e esse ponto de vista molda

nosso olhar. Trata-se de um componente subliminar das imagens fotográficas,

responsável muitas vezes pelo fascínio que elas exercem sobre nós. Fotos

tiradas de lugares inacessíveis, de ângulos surpreendentes, de pontos de vista

desconhecidos, nos revelam o mundo sob um prisma que por vezes nunca

tivemos oportunidade de olhar.

DE BAIXO, DE CIMA

As três fotos de Robert Frank das Figuras 6,

7 e 8 exemplificam pontos de vista distintos. Na

primeira, a imagem das autoridades vistas de baixo

para cima amplifica-lhes o poder já conferido pelo

palanque, pela postura e pela indumentária. Na

5. São Paulo – Avenida Paulista. Cartão Postal da Mercator. Sem autor e data.

6. Robert Frank. Hoboken, New Jersey. Foto de 1955-56.

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segunda, a imagem dos transeuntes vistos do ponto de vista de quem está

entre eles estabelece um sentido de solidariedade

com o espectador. Na terceira, o casal é visto de

cima para baixo. A contrariedade do homem é

evidente, tanto em virtude da invasão de sua

intimidade, quanto da situação de inferioridade a

que ele se vê submetido pelo ponto de vista

sobranceiro do fotógrafo. Uma foto mais recente

do mesmo Robert Frank, reproduzida na Figura 9,

um retrato do músico Tom Waits para a

contracapa do disco Rain Dogs, alia o recurso do

ângulo ao do enquadramento. O fotógrafo olha o

mundo a partir de um ponto de vista

normalmente ausente de nossa percepção do

mundo, numa altura próxima a 80 cm do piso.

Como o ângulo de visada continua paralelo ao

plano do piso e os objetos retratados estão

próximos, as figuras humanas aparecem cortadas

na altura do peito, eliminando-se os rostos,

sempre presentes em imagens de pessoas. No

entanto, o músico está agachado, e o que poderia

ser um ponto de vista fora do lugar passa a

estabelecer um vínculo de cumplicidade entre

observador e fotografado. Na verdade, ambos

estão fora do lugar, mas ambos estão juntos,

olham o mundo a partir desse lugar particular,

descentrado. Trata-se de um exemplo de ângulo

surpreendente, obtido através de um

deslocamento de poucos palmos em relação ao

nosso olhar cotidiano, deslocamento capaz de

registrar um outro olhar possível sobre a

imagem habitual.

7. Robert Frank. New Orleans. Foto de 1955-56.

8. Robert Frank. San Francisco. Foto de 1955-56.

9. Robert Frank. Tom Waits. Foto de 1985.

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Nos cartões-postais e nas fotos dos

compêndios de arquitetura alternam-se o ponto

de vista de cima para baixo e de baixo para

cima. Raramente temos o ponto de vista de um

transeunte ao nível da via pública, o seu espaço

habitual. Nos planos gerais, adotados para

retratar paisagens em grande escala, o ponto

de vista é sempre de cima para baixo, como

veremos adiante. Nos planos médios,

normalmente adotados para retratar edifícios

de destaque, o ângulo de baixo para cima é o

recurso mais usual. Ele confere

monumentalidade aos edifícios, acentua sua

volumetria através da ênfase na ordem

perspectiva e a pequena o espectador, como

pode ser visto nas Figuras 10 e 11.

DE DENTRO, DE FORA

Assim como se vê o mundo de baixo ou de cima, pode-se vê-lo de

dentro ou de fora da cena. O grau de envolvimento que a imagem produzirá

no espectador dependerá de sua inclusão ou exclusão na construção da

imagem. É possível traçarmos um paralelo com a narração em primeira e em

terceira pessoa do texto literário. Quando se narra em primeira pessoa, o

leitor partilha do ponto de vista do narrador, ele participa dos acontecimentos

pelo lado de dentro. Na narração em terceira pessoa, normalmente a distância

em relação aos acontecimentos aumenta, acompanha-se a trama pelo lado de

fora.

Nas manifestações de maio de 1968 em Paris, muitos dentre os maiores

fotógrafos do mundo estiveram no palco dos acontecimentos. Cada um

produziu um conjunto de imagens que revelava aspectos diversos dos

acontecimentos, e que se construía em função do grau e do tipo de

envolvimento de cada um com as manifestações. Tomemos duas dessas

10. Templo de Netuno. Cartão-postal da Alterocca Terni. Sem autor e data.

11. São Paulo – MASP. Cartão-postal da Postais do Brasil. Sem autor e data.

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imagens para exemplificar a diferença entre o olhar

de dentro e de fora das cenas retratadas. As fotos

que se enquadram no primeiro caso são abundantes,

pois invariavelmente os fotógrafos tomaram o

partido dos manifestantes revoltosos, e partilharam

ativamente de seu ponto de vista. A foto da Figura

12, de Gilles Caron, é eloquente para exemplificar a

identificação entre o olhar do fotógrafo, que passa a

ser o nosso, e o do manifestante. Na verdade, o que

se vê é a luta contra uma grande névoa, é a luta

contra um inimigo sem rosto, é a luta do pequeno,

que atira uma pedra, contra o grande, que não pode

ser atingido porque nem sequer materialidade tem.

Tomamos imediatamente o partido do manifestante,

pois partilhamos seu ponto de vista, estamos mergulhados dentro da cena.

As fotos que se enquadram no segundo caso são

mais raras. Um dos fotógrafos presentes alinhava-se

contra os manifestantes, e seu olhar retratou os

acontecimentos de forma peculiar, sempre de fora.

Tratam-se das fotos do chefe de polícia de Paris da época,

Maurice Grimaud. Suas imagens são sempre distantes,

em planos gerais, nos quais os manifestantes reduzem-se

a uma pequena massa frente à grandiosidade de Paris.

São imagens nítidas, claras, analíticas, verdadeiros

diagramas de um general que dispõe suas tropas nos

pontos chave, visando minar as forças do inimigo. Na

foto da Figura 13, o desenho das aglomerações de

manifestantes revela-se com frieza, visto de longe, de

cima para baixo, de fora da cena. Torna-se impossível

partilhar do ponto de vista dos manifestantes, e resta-nos um papel de

espectadores analíticos dos acontecimentos. O cartão-postal repete o mesmo

procedimento. Seu discurso é em terceira pessoa, um discurso à distância que

12. Gilles Caron. Rua Saint-Jacques. Foto de 1968.

13. Maurice Grimaud. Manifestação de 13 de maio. Foto

de 1968.

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descreve a cidade sem inscrever o espectador no ambiente urbano, como pode

ser observado no exemplo da Figura 14.

PLANO GERAL

O plano geral com ponto de vista de cima para baixo é um recurso

recorrente em toda a iconografia fotográfica urbana. As cidades são vistas a

partir de lugares altos ou de tomadas aéreas,

ambas situações normalmente inacessíveis ao

espectador comum. O resultado são imagens

produzidas por um olhar situado em lugar

nenhum – não há primeiros planos que

forneçam qualquer referência de escala ou de

origem da tomada. São imagens que nos

seduzem pelo seu poder de recuperar um

sentido de totalidade perdido na percepção cotidiana da cidade, frutos de

uma espécie de desterritorialização do olhar. O ponto de vista do cidadão

mergulhado no ambiente urbano está eliminado

em favor de um olhar globalizante que nos

oferece uma cidade ao mesmo tempo

compreensível e invisível no cotidiano, como na

Figura 15. Encontramos nessas imagens um

mapeamento da estrutura da cidade, uma

dimensão descritiva que se impõe como um

componente fundamental na construção de sua

linguagem. A nós, espectadores, não está

reservado um lugar cena, mas apenas um lugar

na representação da cena. Como contraponto, a

foto de Cartier-Bresson da Figura 16 estabelece

com clareza um lugar geográfico a partir do

qual se vê o skyline de uma metrópole

pontuado por silhuetas de edifícios. Não é mais

um olhar totalizante, mas o olhar de um

14. Vaticano – São Pedro. Cartão-postal da Alteroca Terni. Sem autor e data.

15. São Paulo – Parque do Ibirapuera com Avenida 23 de Maio. Cartão Postal da Postais

do Brasil. Sem autor e data.

16. Henri Cartier-Bresson. Hudson e Manhattan. Foto de 1946.

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observador mergulhado numa situação específica. Através do contraste entre

o primeiro e o último plano, a imagem subverte o arquétipo da massa de

edifícios grandiosos que compõe a imagem oficial da metrópole.

As fotos de Reinhart Wolf de edifícios célebres da cidade de Nova York

abandonam os planos gerais e optam por planos fechados em detalhes das

obras. Como os cartões-postais, elas também são

realizadas a partir de ângulos inacessíveis, através do

uso de lentes de aproximação que conferem às imagens

um caráter fantástico, como na Figura 17. No entanto, ao

contrário do que ocorre nos cartões-postais, as imagens

surpreendem o espectador pela enunciação clara da

inacessibilidade do ponto de vista fotográfico. Por serem

edifícios célebres, suas imagens são reconhecidas, ao

mesmo tempo em que causam um choque pelo olhar

inesperado. Eles são vistos como nas elevações das

pranchas de arquitetura. Contempla-se um ângulo

virtual dos edifícios, uma imagem que eles poderiam ter

se pudessem ser vistos daquela maneira. No entanto,

sabemos que não se trata de um desenho técnico, mas

de uma imagem do edifício real construído. Cria-se uma espécie de hiper-

realidade, uma realidade moldada até o limite da perfeição pelos recursos da

linguagem fotográfica explicitamente revelados.

HORIZONTE INCLINADO

Inclinar a linha do horizonte é um recurso recorrente utilizado por

fotógrafos na tentativa de romper o caráter

abstrato e totalizante dos planos gerais e explicitar

o olhar de um espectador particular. Rodchenko

foi o primeiro a utilizar sistematicamente esse

recurso. A horizontalidade do horizonte – quase

uma tautologia – é uma vivência profundamente

introjetada na experiência humana. Quebrar essa

17. Reinhart Wolf. Edifício General Eletric. Foto de 1976.

18. Estocolmo. Cartão-postal da Immenco. Foto de Svenska Aerobilder AB, sem data.

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regra introduz imediatamente um ruído na imagem, substituindo o olhar

"neutro" por um olhar particular. Paradoxalmente, o rompimento de um

hábito perceptivo tão enraizado aproxima a imagem da experiência humana,

uma vez que é possível reconhecer com nitidez o ponto de vista do

observador. Substitui-se a naturalidade da percepção da imagem fotográfica

por uma explicitação de seus recursos enquanto construção deliberada da

vontade do fotógrafo. Não por acaso, os cartões postais evitam inclinar a linha

do horizonte e sempre que possível reafirmam sua horizontalidade, na

tentativa de estabelecer uma condição de neutralidade da representação,

como pode ser visto na Figura 18.

A célebre foto da Figura 19, da Brooklyn Bridge em Nova York, de

Sherril Schell, nos mostra os componentes da estrutura clássica de construção

da imagem fotográfica tomada em plano geral, ponto

de fuga central, ênfase na regularidade do desenho da

estrutura da ponte, nitidez conferida por claros e

escuros bem delineados. William Klein revisita a

Brooklyn Bridge na foto da Figura 20, de 1954, desta

vez com outro ponto de vista. A nitidez de claros e

escuros se acentua, temos uma imagem quase em alto-

contraste, uma silhueta de fragmentos da estrutura

contra o céu. O plano geral fecha-se num plano médio,

e o que era regularidade na estrutura transforma-se

em irregularidade. O horizonte inclina-se e toda a

simetria da imagem

anterior cede lugar a uma

composição tensa, inacabada, desequilibrada.

Temos agora uma imagem particular da ponte, de

um espectador determinado, e não mais o

absolutismo da imagem anterior, a ilusão da

descrição fiel. O fotógrafo explora o recurso do

estranhamento ao romper com a naturalidade da

representação e reconhecer o objeto a partir de um

19. Sherril Schell. Brooklyn Bridge. Foto sem data.

20. William Klein. Brooklyn Bridge. Foto de 1955.

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novo ponto de vista. Trata-se de um movimento de dois tempos que inclui

um afastamento do objeto seguido de nova aproximação, no qual reconhecer

é efetivamente conhecer outra vez.


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