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18351-91835-1-PB

Date post: 17-Nov-2015
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OPSIS, Catalão, v. 12, n. 2, p. 48-71 - jul./dez. 2012 48 ESTABELECENDO A ORDEM: A FORMAÇÃO DA GUARDA NACIONAL E SUA IMPORTÂNCIA NA MANUTENÇÃO DA ORDEM INTERNA DURANTE A GUERRA COM O PARAGUAI (1864-1870) ESTABLISHING THE ORDER: THE FORMATION OF THE NATIONAL GUARD AND ITS IMPORTANCE IN THE MAINTENANCE OF THE INTERNAL ORDER DURING THE WAR WITH PARAGUAY Aline Cordeiro Goldoni * Resumo: Criada em agosto de 1831, a Guarda Nacional brasileira teve como modelo principal a Garde Na- tionale francesa. Inicialmente, a fun- ção da Guarda Nacional brasileira era manter a ordem social, conter as revol- tas populares e propiciar a sustentação do aparelho estatal, a fim de manter a integridade do Império. Criada em meio a grandes agitações políti- cas, logo após a abdicação de Pedro I (abril de 1831), a Guarda Nacional foi um instrumento de imensa impor- tância no processo de apaziguamento dessas revoltas. Este artigo analisa o processo de formação da Guarda Na- cional e a importância que esta teve na manutenção da ordem na Corte e na província do Rio de Janeiro durante a Guerra do Paraguai. Assim como os pontos inerentes a sua estrutura, fun- cionamento e atuação. Palavras-chave: Guarda Nacional, Exército, Regência, ordem, guerra. Abstract: Created in August 1831, the National Guard took as its main model the french Garde Nationa- le. Initially, the Brazilian National Guard’s functions were to keep the social order, to contain the popular insurgencies, and to propitiate the maintenance of the State apparatus, in order to keep the Imperial integri- ty. Created among political turmoil, just after the abdication of Pedro I (April 1831), the National Guard was an instrument of great importance in the process of pacification of those insurgencies. This article analyses the process of formation of the National Guard, and the importance of its pre- sence in the maintenance of the order in Court and in the province of Rio de Janeiro during the Paraguayan War. Just as of the inherent points of its structure, operation, and agency. Keywords: National Guard, Army, Regency, order, war. * Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Historia Social (PPGHIS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: [email protected]
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  • OPSIS, Catalo, v. 12, n. 2, p. 48-71 - jul./dez. 201248

    Aline Cordeiro Goldoni

    ESTABELECENDO A ORDEM: A FORMAO DA GUARDA NACIONAL E SUA

    IMPORTNCIA NA MANUTENO DA ORDEM INTERNA DURANTE A GUERRA COM O

    PARAGUAI (1864-1870)

    ESTABLISHING THE ORDER: THE FORMATION OF THE NATIONAL GUARD AND ITS

    IMPORTANCE IN THE MAINTENANCE OF THE INTERNAL ORDER DURING THE WAR WITH PARAGUAY

    Aline Cordeiro Goldoni*

    Resumo: Criada em agosto de 1831, a Guarda Nacional brasileira teve como modelo principal a Garde Na-tionale francesa. Inicialmente, a fun-o da Guarda Nacional brasileira era manter a ordem social, conter as revol-tas populares e propiciar a sustentao do aparelho estatal, a fim de manter a integridade do Imprio. Criada em meio a grandes agitaes polti-cas, logo aps a abdicao de Pedro I (abril de 1831), a Guarda Nacional foi um instrumento de imensa impor-tncia no processo de apaziguamento dessas revoltas. Este artigo analisa o processo de formao da Guarda Na-cional e a importncia que esta teve na manuteno da ordem na Corte e na provncia do Rio de Janeiro durante a Guerra do Paraguai. Assim como os pontos inerentes a sua estrutura, fun-cionamento e atuao.

    Palavras-chave: Guarda Nacional, Exrcito, Regncia, ordem, guerra.

    Abstract: Created in August 1831, the National Guard took as its main model the french Garde Nationa-le. Initially, the Brazilian National Guards functions were to keep the social order, to contain the popular insurgencies, and to propitiate the maintenance of the State apparatus, in order to keep the Imperial integri-ty. Created among political turmoil, just after the abdication of Pedro I (April 1831), the National Guard was an instrument of great importance in the process of pacification of those insurgencies. This article analyses the process of formation of the National Guard, and the importance of its pre-sence in the maintenance of the order in Court and in the province of Rio de Janeiro during the Paraguayan War. Just as of the inherent points of its structure, operation, and agency.

    Keywords: National Guard, Army, Regency, order, war.

    * Doutoranda do Programa de Ps-Graduao em Historia Social (PPGHIS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: [email protected]

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    Estabelecendo a ordem...

    Entretanto o tempo correu, o anno de 1831 apareceu, e as grandes necessidades da ordem fizero crear a

    Guarda Nacional [...].Pronunciamento do deputado Justiniano Jos da Rocha. Anais do Parlamento Brasileiro Cmara

    dos deputados. Sesso de 25.06.1850.

    Criada em 18 de agosto de 1831, poucos meses aps a abdicao de D. Pedro I (7 de abril), a Guarda Nacional brasileira tinha como principal funo, segundo a legislao que a originou, defender a Constituio, a Liberdade, e a Integridade do Imperio; para manter a obedincia as Leis, conservar ou restabelecer a ordem, e a tranquilidade publica; e auxiliar o Exercito de Linha na defesa da fronteira, e costas. (Coleo de Leis do Imprio do Brasil, 1831, p.49) Este artigo abordar o processo de forma-o da Guarda Nacional, pontos inerentes a sua estrutura, funcionamento, atuao e a importncia que esta teve na manuteno da ordem provincial durante situaes de emergncia, dando destaque para a Guerra do Paraguai (1864-1870). Para tanto, considerarei a relao da corporao com outras instituies e as funes que foram delegadas Guarda na provncia do Rio de Janeiro, como por exemplo: o papel de polcia que, em muitos momen-tos, precisou ser desempenhando pelos seus membros.

    Aps o sete de abril eclodiram rebelies em diversas provncias do Im-prio. O pas foi tomado por uma intensa agitao poltica e social. Durante aquele perodo a unidade nacional esteve em xeque e os debates em curso discutiam o tipo de Estado que seria capaz de garantir a ordem. A situao do pas demandava medidas urgentes para que as autoridades regenciais pu-dessem estabilizar o sistema poltico brasileiro. Entre os grupos sociais de maior influncia poltica no havia consenso sobre qual arranjo institucional seria mais conveniente para o pas vrios temas foram debatidos, entre eles: a centralizao do poder, o grau de autonomia das provncias e a organizao das foras armadas. Tais debates procuravam, dentre outras coisas, o estabe-lecimento de medidas que buscassem a manuteno da integridade nacional, situar o grau de atribuies dos diversos rgos da monarquia e a criao de uma nova forma de organizao militar para auxiliar de maneira efetiva o Exrcito de Linha, cuja lealdade era vista com reservas pelos regentes.

    Para que tais medidas pudessem ser postas em prtica era necessrio estabelecer a ordem e extinguir as revoltas sociais e separatistas, que durante o perodo se manifestaram por todo territrio nacional. As foras militares, que teoricamente seriam responsveis pela conteno desses movimentos, no inspiravam confiana muitos dos motins que tiveram lugar na capital do Imprio, nesse momento, contaram com a participao de povo e tropa, situao agravada pelos constantes boatos sobre as posies restauradoras de parte da oficialidade.

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    Durante o perodo inicial da Regncia o grupo poltico que esteve no poder imps crescente controle sobre os regimentos profissionais e, como parte desta ao, os corpos das tropas de 1 linha foram desmobilizados. A maioria dos oficiais portugueses integrantes do Exrcito imperial foi reforma-da, o que ajudou a estabilizar a situao institucional. Os governantes temiam que, aliada falta de disciplina dos soldados, a presena de oficiais portugueses no Exrcito, supostamente favorveis restaurao, pudesse inflamar revoltas internas. Numa perspectiva contrria ao que acontecia com as foras militares naquele momento e com base neste contexto, a Guarda Nacional surgiu como opo por uma fora que simultaneamente estivesse desvinculada do antigo imperador, evitando os fantasmas de uma possvel restaurao e, principal-mente, dissolvesse as ameaas ordem pela indisciplina, oriundas da grande concentrao de tropas ociosas e mal pagas nas cidades.

    Neste sentido, durante todo o perodo regencial e grande parte do Se-gundo Reinado, a Guarda Nacional atuou como uma instituio essencial para sustentar a ordem interna e defender a soberania nacional do pas contra inimigos externos. O perodo do confronto com o Paraguai um momento exemplar desta situao, pois a corporao foi obrigada a cumprir essas duas funes de maneira simultnea. Internamente, em muitos casos, os corpos de polcia de diversas provncias do Imprio foram imediatamente incorporados ao exrcito, restando Guarda Nacional o servio de policiamento. Externa-mente, milhares de homens da Guarda Nacional de todo o Imprio foram incorporados aos batalhes do exrcito e enviados para o campo de batalha. Como ser mostrado ao longo desse artigo, o quadro que se formou na pro-vncia do Rio de Janeiro bastante ilustrativo desta condio.

    Por sua proximidade da Corte, centro poltico do Imprio, a regio teve um papel estratgico durante o conflito com o Paraguai, funcionando como ponto de reunio das tropas que vinham de diversas provncias para serem direcionadas ao teatro da guerra. Essa conjuntura requereu uma pre-ocupao maior com a manuteno da ordem e, com a anexao dos corpos policiais s tropas de 1 linha, a Guarda Nacional da Corte e da provncia fluminense ficaram encarregadas de suprir essa ausncia.

    Objetivo principal: a manuteno da ordem

    O perodo regencial foi um dos mais agitados da histria poltica do Brasil. Alm da constante ameaa de restaurao, as rebelies provinciais perturbaram a ordem interna e a estabilidade do governo. O vazio de poder propiciou a abertura de um espao poltico para que os segmentos menos favorecidos da sociedade [...] manifestassem sua insatisfao, gerando um clima de permissividade, inquietao e incerteza (GUIMARES, 2001, p.109). Em meio a este cenrio de dvida e insegurana, que somente veio

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    se estabilizar no fim da dcada de 1840, surgiu a Guarda Nacional brasilei-ra, como um instrumento criado pelo governo regencial para promover a efetivao da ordem.

    Para Jeanne Berrance de Castro (CASTRO, 1977), no momento de sua criao, a Guarda Nacional foi considerada como um elemento de pro-teo ao trono brasileiro, em oposio ao Exrcito imperial ainda bastante identificado com o antigo imperador e favorvel restaurao (CASTRO, 1977, p. 27). Em seu livro A milcia cidad: a Guarda Nacional de 1831 a 1850, a instituio abordada em amplitude nacional, com destaque para a Guarda Nacional de So Paulo, no perodo que vai de 1831 (ano de forma-o da Guarda) at 1850 (ano em que a instituio passa pela sua principal reforma legal). Para Castro, durante o perodo regencial a ausncia de uma tropa de 1 linha disciplinada e controlada pelo poder civil foi um fator de-terminante no surgimento de uma milcia cidad.

    A autora tambm argumenta que com a instaurao da Guarda Nacio-nal houve uma importante integrao social, uma vez que essa instituio po-deria agregar todos os cidados eleitores, independentemente da cor. Como na Frana ps Revoluo, o fato de todo cidado votante poder participar da Guarda Nacional brasileira sugeriria que esta se aproximasse da viso de mil-cia democrtica, pelo menos at a reforma de 1850. De acordo com Castro, a partir desse momento, houve a [...] transformao da milcia cidad em um elemento ativo de ao poltica provincial (CASTRO, 1977, p.217).

    Apesar da relevncia deste trabalho, para o estudo da Guarda Nacio-nal brasileira, o amplo destaque que Castro confere ao carter democrtico e de integrao tnica e social da instituio, baseado no fato do preenchi-mento dos cargos de oficiais ocorrer prioritariamente atravs do processo eletivo, pode ser questionado. Ao exacerbar o carter eleitoral do processo de preenchimento dos postos de oficiais, no qual supostamente os soldados seriam os responsveis pela eleio de seus superiores diretos, Castro negli-gencia a origem social dos oficiais de alta patente, que eram nomeados pelo governo. Alm disso, a autora minimiza possveis manipulaes nas eleies internas por parte dos oficiais superiores ou mesmo de autoridades locais como o juiz de paz. A existncia de eleies no impedia que as mesmas fos-sem controladas, especialmente nos comandos estabelecidos em municpios de pequena populao, nos quais os contatos pessoais refletiam a operao das hierarquias locais.

    Outro trabalho importante sobre o tema o livro de Fernando Uri-coechea, O Minotauro Imperial A Burocratizao do Estado Patrimonial Bra-sileiro no Sculo XIX. Uricoechea (URICOECHEA, 1978) tambm situa a criao da Guarda Nacional brasileira como parte do processo de manu-teno da ordem, procedimento este que foi iniciado aps a abdicao de Pedro I. De acordo com o autor, [...] devia ela dar uma ajuda poderosa

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    aniquilao de qualquer grupo, instituio ou faco contestatria das no-vas autoridades imperiais [...] (URICOECHEA, 1978, p. 134). O autor situa a instituio como um elemento pertencente a uma conjuntura pr--burocrtica, ou melhor, de transio entre uma ordem patrimonial e uma ordem burocrtica. Neste sentido, os servios prestados por esta instituio preenchiam as lacunas deixadas por uma administrao central que ainda no havia alcanado um nvel suficiente e funcional de racionalizao dos seus servios.

    Uricoechea (URICOECHEA, 1978) discorda de Castro (CASTRO, 1977) em ralao profundidade do carter democrtico, afirmando que o efeito socializador da Guarda era limitado pelo carter patrimonial exercido pela milcia sobre seus membros. Se, em relao aos seus membros, ela atuaria de forma patrimonial, na relao com as autoridades centrais a Guarda Na-cional seria um servio litrgico, prestado pelos proprietrios locais em troca de status social. Dessa maneira, a milcia no se constitua nem como uma burocracia estatal, nem como uma entidade autnoma. Nessas condies, o verdadeiro sentido poltico da instituio se encontrava na utilizao da influ-ncia exercida pelos proprietrios locais a favor do governo central, j que o Estado no podia depender satisfatoriamente de seus prprios recursos para burocratizar a mquina estatal (URICOECHEA, 1978, p 203).

    Antonio Edmilson Martins Rodrigues, Francisco Falcon e Margarida de Souza Neves (RODRIGUES; FALCON; NEVES, 1981) ao abordarem os motivos que teriam levado criao da Guarda Nacional, assim como Castro e Uricoechea, (mesmo que exista diferenas entre eles), enfatizam a questo da manuteno da ordem. Segundo esses autores, no momento de sua criao, a instituio [...] era vista por seus idealizadores como o instrumento apto para garantia da segurana e da ordem, vale dizer, para a manuteno do espao da liberdade entre os limites da tirania e da anar-quia (RODRIGUES; FALCON; NEVES, 1981, p. 9). Numa anlise da trajetria da Guarda Nacional no Rio de Janeiro entre 1831 e 1918, eles conceituam a milcia como um objeto em torno do qual girava uma nego-ciao de interesses, cujas partes envolvidas eram o Estado e a esfera local. Sobre o carter democrtico da instituio, enfatizado por Jeanne Berrance de Castro (CASTRO, 1977), com base no principio eletivo para parte dos postos de oficiais, os autores argumentam que:

    Longe de garantir aspectos democratizantes ou niveladores, com base na elegibilidade de parte (grifo meu) da oficialidade da Guarda, esse pretenso princpio de igualdade, viciado em sua origem porque aplicado a uma sociedade essencialmente desigual, ter que ser redimensionado, transformando-se na prtica numa forma de reafirmar o poder local: as listas de classificao ana-lisadas demonstram que as eleies reproduzem no interior da guarda a hierarquia existente na sociedade, balizada fundamental-

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    mente pela propriedade. (RODRIGUES; FALCON; NEVES, 1981, p. 79).

    Na mesma direo, Maria Auxiliadora Faria (FARIA, 1979) definiu a Guarda Nacional como sendo uma fora para-militar criada para preservar a ordem poltico-econmica fundada no latifndio e no escravismo (FA-RIA, 1979, p. 153). Partindo de uma anlise provincial, a autora trabalha com a Guarda Nacional de Minas Gerais (1831-1873) demonstrando, com base no estudo dos quadros do servio ativo da milcia mineira, que [...] a massa dos que integram (praa e oficiais inferiores) no representativa de classe economicamente poderosa (FARIA, 1979, p. 189). O contr-rio, segundo Faria, acontecia com os postos de comando, que ficavam nas mos dos que detinham tambm o poder econmico e a eles no escapavam naturalmente o controle sobre as prprias autoridades civis de nomeao governamental [...] (FARIA, 1979, pp. 190 e 191).

    Mais recentemente, foi elaborado por Andr Fertig (FERTIG, 2003), um estudo sobre a atuao da Guarda Nacional no Rio Grande do Sul entre 1850 e 1873. Sobre a criao da instituio, Fertig trabalhou com a hip-tese de que a corporao foi criada com o objetivo de funcionar [...] como um instrumento centralizador de poder, pois delega poderes a chefes locais que sero fiscalizados diretamente pelos representantes do governo central. (FERTIG, 2003, pp. 15 E 16). Alm disso, o autor enfatiza a importn-cia da milcia gacha, visto o carter especfico que a instituio assumiu na provncia do Rio Grande do Sul, dada sua posio fronteiria, fazendo com que ela assumisse posio nuclear das atividades de defesa do Imprio. Fertig seguiu a linha de Richard Graham (GRAHAM, 1997), ressaltando o papel central do clientelismo para o controle da poltica em todas as esferas.

    Em um extenso trabalho que tambm aborda a Guarda Nacional gacha, porm partindo de outra perspectiva, Jos Iran Ribeiro (RIBEI-RO, 2001) analisa a instituio a partir dos indivduos que formavam o seu efetivo. Discutindo questes como qualificao, alistamento, dificuldades de organizao dos corpos e as funes desempenhadas por esses, no perodo de 1831 at 1845, Ribeiro busca entender o que significava ser um guarda nacional naquela poca. Quais benefcios e/ou nus que o alistamento na guarda podia trazer para os indivduos, quais eram as condies enfrentadas durante sua atuao na instituio. Este, ao contrrio da maioria dos traba-lhos sobre a Guarda Nacional brasileira, enfoca sua anlise nos guardas e no na instituio e conclui que: por mais difcil que tenha sido a trajetria desses indivduos [...] qualificados na Guarda Nacional os fazia, de certa forma, privilegiados, se comparado aos que eram recrutados no exrcito. 1

    1 Esses so alguns dos trabalhos sobre a Guarda Nacional no Brasil, j realizados. Atualmente, h uma quantidade considervel de pesquisadores que vem se dedicando ao estudo dessa insti-tuio to cara histria da sociedade poltica brasileira. Como resultado dessas pesquisas tem

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    Em suma, contrapondo esses trabalhos, possvel concluir que esses autores compartilham da ideia de que a Guarda Nacional funcionou como um instrumento utilizado pela elite poltica da poca de sua criao para estabelecer a ordem interna. Entretanto, a partir dessa premissa maior, os argumentos dos autores so desenvolvidos de maneira diversa. Efetuando-se uma comparao entre os dois principais autores citados acima, pode-se di-zer que Jeanne Berrance de Castro percebeu a milcia como uma ferramenta de reforo do poder civil instaurado aps a abdicao (CASTRO, 1977, p. 17). Fernando Uricoechea, por sua vez, entendeu a Guarda Nacional como uma instituio que durante boa parte do sculo XIX, operou de maneira a compensar o espao deixado pela inexistncia de uma burocracia racionali-zada e eficiente que pudesse se estabelecer de forma direta do centro at as localidades (URICOECHEA, 1978).

    Criada pela Lei de 18 de agosto de 1831, a Guarda Nacional bra-sileira teve como principal fonte de inspirao a Garde Nationale francesa ps-revolucionria, instituio de carter liberal amplamente influenciada pelo conceito de nao em armas.2 No Brasil, a iniciativa de armar civis e organiz-los em uma corporao paramilitar a Guarda Nacional foi parte da agenda dos liberais. A adeso a estes princpios descentralizadores tinha sua origem no combate ao poder central, inicialmente articulado imagem de um Imperador estrangeiro e autoritrio. O fortalecimento da Guarda foi ao encontro da desmobilizao do Exrcito, ambas mantendo [...] o firme propsito de dissolver uma estrutura burocrtica centralizada sob o cetro de uma Coroa estrangeira e absolutista (SOUZA, 2008, p.210). Esta situao era influenciada pela presena de um significativo nmero de oficiais portu-gueses no Exrcito, pois, [entre] os anos turbulentos de 1830 e 1831, um total de 44 homens serviram como generais no exrcito imperial. Desse total de 44 homens, 26 eram portugueses, 16 brasileiros, um ingls e um francs (SCHULZ, 1994, p.25).

    Aliada a isso, a notcia de diversas revoltas iniciadas pelas tropas de 1 linha, constitua uma fonte de preocupao para o governo e conserv-las reunidas e armadas era um risco constante de novas sublevaes. Desde os ltimos anos do Primeiro Reinado eram constantes as rebelies de corpos militares; com o objetivo de cont-las de maneira eficiente, foi preciso que a Regncia tivesse, diante da tropa, uma atitude mais enrgica, anulando as possibilidades de anarquia ou revolta. A primeira medida legal aprovada pelo governo regencial, a Lei de 6 de junho de 1831, atuou justamente neste

    surgido dissertaes e teses dedicadas anlise da instituio em momentos diversos de sua longa existncia. Tais trabalhos acadmicos se colocam, em sua grande maioria, como estudos de casos que abordam a Guarda Nacional de uma determinada provncia em particular.2 Membros do governo viram alguns problemas na utilizao do modelo francs, devido s diferenas sociais e institucionais existentes entre os dois pases.

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    sentido. Aumentou a pena para o crime de ajuntamento poltico, que era qualificado pela reunio de trs ou mais pessoas; proibiu reunies noturnas com cinco ou mais indivduos, o infrator poderia ser punido com priso de um a trs meses, no sendo necessrio que ficasse provada a inteno crimi-nosa das pessoas envolvidas.

    No entanto, segundo alguns autores, a desmobilizao do Exrcito no se deveu exclusivamente atitude sediciosa da tropa. Para Vitor Izeck-sohn, a crise do Primeiro Reinado serviu no apenas para demonstrar que os grandes ajuntamentos das corporaes militares, na capital imperial e nas capitais provinciais, se constituam em uma situao potencialmente peri-gosa; ele tambm demonstrou o custo que a manuteno de um Exrcito profissional acarretaria a um Imprio financeiramente quebrado. A reorga-nizao institucional passava, portanto, pela redistribuio dos encargos do aparato militar entre diferentes agentes de ordem, no havendo garantia de que a exclusividade sobre os meios de coero acontecesse em benefcio do governo (IZECKSOHN, 1997, p.54).

    Desse modo, a deciso do governo regencial de desmobilizar as for-as militares no expressava somente falta de confiana no elemento militar. Ela tambm refletia a falta de meios financeiros, materiais e humanos que possibilitassem o fortalecimento do Exrcito. O Estado no podia depen-der satisfatoriamente de seus prprios recursos para bancar um processo de recrutamento amplo e eficiente, fato que o obrigava a recorrer aos servios proporcionados pelos chefes locais. A Guarda Nacional, uma milcia que no acarretava um excessivo nus financeiro, surgiu como uma alternati-va a esse impedimento; um incremento da dinmica extrativa do Estado. Durante a dcada de 1830, a descentralizao militar proporcionada pela utilizao da Guarda foi posta a servio da defesa de uma ordem cada vez mais centralizada.

    Numa outra perspectiva se coloca Adriana Barreto de Souza (SOU-ZA, 2008), que apesar de concordar com a ideia de que [...] os conflitos de rua, por si s, no explicam a poltica de reduo do Exrcito (SOUZA, 2008, p.206), faz a ressalva de que o impacto desses conflitos no pode ser minimizado. A autora corrobora a ideia de Thomas Holloway, segundo o qual o fantasma da anarquia (HOLLOWAY, 1997, p.83), to divulgado pela imprensa e pela fala dos polticos, no esteve unicamente ligado s re-belies militares. Para Holloway, estes movimentos seriam de fcil controle, sendo assim, a preocupao que mais afligia o governo era o potencial que existia para o surgimento de uma insurreio social (HOLLOWAY, 1997, pp. 82 e 83). Souza complementa a ideia de Holloway afirmando que a compreenso da ao repressora da Regncia fica mais completa se a ques-to contemplar a reunio, to incomum, de diferentes setores sociais que essas manifestaes promoviam.

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    Em contrapartida a um Exrcito reduzido, se criou a Guarda Nacio-nal, que, de acordo com Thomas Holloway, ocupou durante algum tempo no Rio de Janeiro parte significativa do aparato de represso disponvel para o policiamento (HOLLOWAY, 1997, p. 90). Os regimentos da Guarda Na-cional foram formados por municpio, ficando o alistamento e a qualificao dos integrantes da corporao a cargo das autoridades municipais juzes de paz e cmaras municipais. Para a criao desses regimentos foi necessria a formao de uma estrutura administrativa organizada. No entanto preciso destacar que a Guarda Nacional apresentou uma incongruncia bsica entre os fins para os quais foi criada e a sua utilizao prtica. A milcia acabou por se tornar um instrumento de barganha dos potentados locais com o governo central. Suas normas de funcionamento foram alvo de constantes adaptaes dos chefes locais, que as interpretavam com base na realidade social das localidades, adequando assim o funcionamento da Guarda aos seus prprios interesses, muitas vezes em detrimento dos interesses estatais. Durante a Guerra do Paraguai, essa situao constituiu-se num entrave ao recrutamento de tropas.

    Para ampliar rapidamente os corpos do exrcito, uma das primeiras aes encetadas pelo governo foi o destacamento de corpos da Guarda Na-cional para o exrcito em operaes, o que acabou restringindo o emprego da milcia como um instrumento de barganha e comprometendo o grau de cooperao que seus chefes mantinham com o governo central. O esforo para a Guerra alterou, momentaneamente, a dinmica das relaes institu-das entre os grupos locais e o governo central, que tinha como base o ge-renciamento das foras da Guarda Nacional. A partir do momento em que a milcia precisou ser deslocada das localidades onde atuava sob o comando dos grupos de maior influncia, para expandir os contingentes do exrcito no exterior, a conexo entre interesses particulares e estatais que sustentava a existncia daquela instituio passou por um teste severo. Isso porque o prestgio dos chefes locais estava diretamente relacionado capacidade prpria de manter seus protegidos resguardados dos inconvenientes que o recrutamento militar pudesse ocasionar. No alistamento de homens para o Exrcito, a partir do momento em que os comandantes percebiam sua autoridade ameaada por demandas externas, tendiam a cooperar menos.

    Estrutura e funcionamento da Guarda Nacional

    A partir da sua criao, o servio na Guarda era permanente, obriga-trio e pessoal. Todos os cidados brasileiros que participassem nas eleies primrias, com idade entre 21 e 60 anos, estavam sujeitos ao alistamento nos corpos da instituio. Posteriormente, um decreto de 25 de outubro de 1832 mudou o limite mnimo de idade para 18 anos e especificou o mon-

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    tante da renda lquida anual para o votante, que era estabelecida de acordo com a importncia do municpio.

    O alistamento de cidados para a milcia era feito no municpio onde estes residiam, e no caso de mudana, o guarda ficava excludo do batalho ou companhia a que pertencia originalmente, devendo se alistar na cidade na qual viesse estabelecer nova residncia. Ficava a cargo, e sob superviso, do juiz de paz a organizao de um Conselho de Qualificao que seria for-mado pelos seis eleitores mais votados do seu distrito. Esses indivduos fica-vam responsveis por verificar a idoneidade dos cidados aptos a assentarem praa na Guarda Nacional e, consequentemente, fazer seu alistamento. Era obrigao do juiz tomar nota de todas essas alteraes, que deveria, segundo a lei, ser feito rigorosamente no livro de matrcula.

    O papel do juiz de paz durante o processo de alistamento para a Guar-da era determinante no comprometimento dessa instituio com as autori-dades locais. Sua atuao junto aos conselhos de qualificao acabava forta-lecendo o poder local com atribuies judiciais e policias, enquanto reduzia, de certa forma, a autoridade do poder central. Muitas vezes a relao de troca de interesses estabelecida entre os juzes e os proprietrios locais fazia com que somente fossem qualificados para a Guarda os cidados indicados por influentes locais. Em muitos casos os juzes nomeavam protegidos seus como inspetores de quarteiro, para que esses ficassem isentos do servio ativo na Guarda Nacional. Como foi observado por Thomas Flory, tericamente no haba nada que impidiera al juez nombrar encargados a todos los ciudadanos del sexo masculino de su parroquia, eximindolos as de trabajar en la Guar-dia (FLORY,1986, p.147). Em muitas localidades, a completa organizao dos corpos da Guarda Nacional esteve comprometida pelos desmandos e pela falta de profissionalismo desses representantes do Estado.

    O processo de formao dos corpos de guardas nacionais nos diversos municpios do Imprio tardou; o processo de seleo era lento. Em 1832, o ministro da justia Diogo Antonio Feij deu conta, em seu relatrio anual, de alguns dos problemas que atrasavam a formao desses regimentos. A m diviso das Parochias: a negligencia de algumas Camaras, e Juizes de Paz [...], tem sido as causas deste retardamento (FLORY, 1986, p. 147).

    Na provncia do Rio de Janeiro, regio onde esse trabalho se con-centra, a formao dos corpos da Guarda Nacional tambm ocorreu, ini-cialmente, de maneira muito lenta e ineficiente. A anlise dos relatrios dos presidentes da provncia ilustra bem esse processo. Os relatos acerca das dificuldades encontradas para efetuar a organizao dos corpos perpassam a grande maioria dos seus informes, desde o ano de instaurao da milcia at o ano anterior ao incio do conflito com o Paraguai. Formada inicialmente por 11 legies (ver Quadro 1) as mesmas apresentavam problemas como: falta de meios financeiros para fornecer instruo adequada aos homens que

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    compunham os batalhes da milcia ou; falta de interesse dos prprios guar-das em comparecer aos treinamentos, pois desta forma teriam de deixar suas atividades de lado e; a escassa quantidade de armas.

    Legies Corpos Municpios

    1 Legio 1 Esquadro de Cavalaria e 4 Batalhes de Infantaria Niteri e Mag

    2 Legio 1 Esquadro de Cavalaria e 2 Batalhes de Infantaria Itabora

    3 Legio1 Esquadro de Cavalaria, 2 Batalhes de Infantaria e 1 Corpo de Infantaria

    Santo Antnio de S

    4 Legio 1 Esquadro de Cavalaria e 2 Batalhes de Infantaria Maric e Saquarema

    5 Legio 1 Esquadro de Cavalaria e 2 Batalhes de Infantaria Cabo Frio

    6 Legio 1 Esquadro de Cavalaria e 3 Batalhes de InfantariaCampos dos Goytacazes e

    So Joo da Barra

    7 Legio 1 Esquadro de Cavalaria e 2 Batalhes de InfantariaCantagalo e

    Nova Friburgo

    8 Legio 3 Corpos de Cavalaria e 1 Batalho de InfantariaValena, Vassouras e

    Paraba do Sul

    9 Legio 1 Corpo de Cavalaria e 2 Batalhes de Infantaria Barra Mansa e Resende

    10 Legio 3 Esquadres de Cavalaria e 1 Companhia de Artilharia Parati e Angra dos Reis

    11 Legio 1 Esquadro de Cavalaria e 2 Batalhes de InfantariaSo Joo do Prncipe e

    Mangaratiba

    Quadro 1 Legies de Guardas Nacionais formadas na provncia fluminense quando da organizao dos corpos. Fonte: Relatrios de presidente de provncia de 1836 at 1843.

    Ao passar a presidncia da provncia fluminense em 1848, Aureliano de Sousa e Oliveira Coutinho (futuro Visconde de Sepetiba) descreveu a persistncia de problemas estruturais que ainda eram sentidos mesmo passa-dos 17 anos de criao da Guarda:

    A Guarda Nacional nunca pode ser convenientemente organisa-da nesta Provincia, assim como em outras do Imperio [...]. Os conselhos de qualificaao e a falta de armamento so causa de que

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    em alguns pontos da Provincia ella no apresente como cumpria daquelles conselhos por considerao e muitas vezes por esprito de partido, nullifico batalhes inteiros [...]. (Relatrio presiden-cial, 1848, p. 22)

    Apesar da existncia de outros problemas, o ponto que mais chama ateno aquele relativo falta de armamentos, uma referncia constante nos relatrios dos presidentes provinciais. Atravs da leitura desses documentos pde-se concluir que a falta de armas para equipar os guardas nacionais nunca chegou a ser resolvida. Essa escassez prejudicava no s a prestao de servio, mas tambm o treinamento dos guardas. Afora algum armamento fornecido aos corpos de commando de Nictheroy, nenhum mais tem sido dado guarda nacional da provncia.(Relatrio presidencial, 1857, p. 26) De todos os municpios fluminenses, somente Niteri, a capital da provn-cia, conseguiu arregimentar os corpos da Guarda Nacional de maneira a constiturem uma fora organizada e eficiente. Suponho que a proximidade da capital da provncia com a Corte favorecia a organizao da instituio. O papel poltico desses dois municpios exigia um cuidado especial com a formao dos corpos da Guarda Nacional e a necessidade de uma fora que sustentasse a ordem, tanto na capital do Imprio como no seu entorno.

    Em geral, os armamentos e artigos necessrios para o bom aprovei-tamento e treinamento dos corpos eram ultrapassados, danificados e distri-budos em quantidade inferior ao nmero de soldados. Em alguns casos os comandantes superiores, responsveis pelos corpos de determinados mu-nicpios, financiavam a compra de armamentos para os seus subordinados. Como reconheceu o ento vice-presidente da provncia fluminense Joo Manoel Pereira da Silva em 1856. Em differentes municpios o armamento que existe comprado custa dos officiaes e praas: sendo notvel que, em outros, [...] acha-se em to mo estado, que para fazerem uso delle, os offi-ciaes e guardas o mando concertar. (Relatrio presidencial, 1857 p. 26)

    Os gastos do governo para a manuteno das corporaes se redu-ziam ao fornecimento das armas de guerra, bandeiras, tambores, cornetas e trombetas; ao fornecimento de papel necessrio para registros, ofcios, mapas e conselhos de disciplina e, ainda, ao soldo que fosse estipulado para os trombetas, cornetas, ou tambores, quando este servio no pudesse ser gratuito. Nem mesmo o uniforme era fornecido pelo governo. Segundo a lei, este deveria ser o mais simples, e menos dispendioso que for possvel.

    Alm dos administradores pblicos e dos membros do judicirio, tambm estavam isentos do servio ordinrio, caso apresentassem requeri-mento para tal fim, os officiais de milcias que tiverem 25 annos de servio e os reformados do Exercito, e Armada e ainda os empregados nas Admi-nistraes dos Correios. Entretanto, o requerimento deveria ser aprovado pelo Conselho de Qualificao, e somente ento o cidado estaria regular-

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    mente isento. Os cidados possuidores de enfermidade que os impossibili-tassem de cumprir o servio devido seriam automaticamente dispensados pelo Conselho, sem necessidade de efetuar requerimento. Como a estrutu-rao dos corpos para a Guarda Nacional se dava com base em um critrio financeiro de 100$000 rs. anuais, que era a renda necessria para a incluso do cidado na condio de votante, uma quantia consideravelmente peque-na para os padres da poca, este valor acabava por englobar grande parte da populao, at os menos favorecidos economicamente.

    No entanto, a existncia de duas listas diferentes de recrutas criou um precedente para que o servio da reserva se tornasse um meio de fuga ao recrutamento para o servio ativo e at mesmo para o servio militar, uma vez que os alistados na Guarda Nacional eram isentos do recrutamento para o Exrcito de Linha. Os cidados integrantes da ativa eram assim compreen-didos: todos os cidados que o Conselho de Qualificao julgar que podem concorrer para o servio habitual. A lista de reserva, por sua vez, deveria ser formada por todos os cidados para quem o servio habitual for extrema-mente oneroso, e que no devam ser requisitados, seno em circunstancias extraordinrias.

    Na prtica, o servio da ativa acabava recaindo, em grande parte, sobre os cidados economicamente menos favorecidos. Tal situao se devia ao fato de integrantes de um seleto grupo, que exercia atividades de maior proeminncia ou status social, contarem com o amparo do critrio de isen-o legal. Alm disso, era comum, que os aspirantes guarda contassem com o apoio de cidados influentes para figurar em uma ou outra lista que estivesse de acordo com seus interesses pessoais. Os diversos subterfgios e meios empregados pelos indivduos mais abastados, ou com alguma influ-ncia social, para no figurar na lista do servio ativo deixaram a Guarda Nacional destinada consternao dos pobres e dos desamparados que, em muitos casos, aceitavam a qualificao na milcia para escapar do temido recrutamento nas tropas de 1 linha.

    A substituio tambm poderia ser utilizada como um meio de se evadir dos corpos da milcia. Cidados que no conseguiam se incluir nas listas dos isentos lanavam mo de um ltimo recurso, a substituio, que poderia ser feita entre parentes prximos e afins, para quem o servio se constitusse em um fardo menor e fosse compatvel com suas obrigaes habituais. J os guardas nacionais designados para um corpo destacado de-veriam apresentar um substituto com idade entre 18 e 40 anos e este ainda precisava ser aprovado por um conselho de sade.3 Durante o prazo de um ano, em caso de desero do seu substituto, o indivduo ficava obrigado a servir na sua unidade pelo mesmo tempo em que seu substituto serviu quan-

    3 Entende-se por corpo destacado aquele que, em situao de emergncia, era designado para atuar fora de seu municpio de origem.

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    do destacado. O pedido de substituio tambm deveria ser aprovado pela autoridade competente, o que, segundo anlise das correspondncias dos presidentes das provncias enviadas ao Ministrio da Justia, no era muito difcil de acontecer. Diferentemente do que acontecia com os pedidos de substituio, que eram aceitos sem maiores problemas, os processos de re-querimento de baixa s eram deferidos com base em motivos expressamente declarados em Lei.

    A disciplina constitua outro ponto delicado da organizao e do fun-cionamento dos regimentos da Guarda Nacional. Esta questo era regida por determinaes bem detalhadas, o que talvez possa ser explicado pelo fato de ser gratuito o servio prestado pelo guarda nacional ao Estado. Os guardas poderiam ser punidos por uma srie de condutas consideradas im-prprias como, por exemplo, no atender a um chamado, desobedincia ou insubordinao, embriaguez, omisso de servio, entre outras. Durante a Guerra do Paraguai muitos casos de indisciplina e insubordinao foram registrados, at mesmo por parte dos oficiais. Na provncia do Rio de Ja-neiro, o problema maior se deu em relao ao recrutamento e ao envio dos guardas para o exrcito.

    As penas para tais infraes variavam desde a simples repreenso ou priso temporria (mximo de cinco dias) at a baixa de posto. As punies eram regulamentadas pelo Conselho de Disciplina, rgo que era formado em todos os batalhes e companhias. Entretanto, estes Conselhos eram, na maioria das vezes, bastante brandos nas punies atribudas aos guardas e esta situao acarretou protesto por parte de representantes do governo.

    Os Conselhos de Disciplina so interminveis: os Guardas Na-cionaes em quanto respondem a elles lucro no entrarem na dis-tribuio do servio, e podem quasi sempre contar com a impuni-dade. (Relatrio do Ministrio da Justia, 1832, p. 13)

    A oficialidade dos corpos era eleita atravs do voto individual e se-creto. As eleies para os cargos do oficialato da Guarda eram realizadas em cada localidade que possusse um corpo para ser comandado; os guardas nacionais se reuniam e elegiam os oficiais inferiores e cabos. Este processo eleitoral acontecia sob a presidncia de um juiz de paz e somente guardas do servio ativo podiam votar e ser votados para oficiais, oficiais inferiores e cabos. O prazo mximo para permanncia de um indivduo no posto de oficial era de quatro anos, no entanto havia a possibilidade de concorrer em uma nova eleio.

    A partir dessa clusula a fase inicial da instituio considerada, por alguns autores, como o seu perodo democrtico, influenciado essencial-mente por preceitos liberais. O princpio eletivo para os postos de oficiais mencionado como o maior avano da legislao que originou a Guarda.

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    Entretanto, a nomeao para os postos mais elevados de comando - Coman-dantes de Legies e Comandantes Provinciais - ficava a cargo do governo central, como uma salvaguarda contra a autonomia excessiva da milcia. To-davia, essa questo deve ser observada com alguma ressalva, pois mesmo com o sistema de escrutnio individual nada garantia que a troca de votos por favores pessoais deixasse de acontecer, como denunciou o ministro da justia Gustavo Adolfo Aguiar Pantoja em 1837:

    Esta organisao, como vos tem ponderado em todos os relat-rios anteriores, he minimamente viciosa, porque, estabelecendo--se como regra a eleio peridica dos Postos, tem-se consagrado o elemento da insdisciplina, [...] aquelle que huma vez foi no-meado Official, ou Commandante, ambiciona no decahir [...] mas como a conservao, e augmento de seu Posto depende da escolha de seus companheiros, acontece que, para captar-lhes a benevolncia, alguns empregam summa condescendencia, e at negligencia em detrimento do servio. (Relatrio do Ministrio da Justia, 1836, p.23).

    Neste sentido, o preenchimento dos cargos de oficiais no esteve livre da influncia de arranjos e manobras baseadas em relaes pessoais, mesmo com o processo eletivo. Alm disso, a nomeao para os postos de coman-do tambm era alvo da influncia exercida pelos grupos dominantes. Com base num levantamento feito a respeito da origem e posio social ocupada pelos comandantes superiores, responsveis pela organizao dos batalhes da Guarda Nacional nas diversas localidades da provncia fluminense, foi possvel constatar essa situao. Dos 18 comandantes em questo, a esma-gadora maioria era composta por grandes proprietrios de terras e escravos ou ricos negociantes. Muitos ainda faziam parte do crculo familiar ou de amizade de figuras ilustres e influentes no cotidiano da poltica provincial e, at mesmo, nacional.

    A partir deste contexto, o procedimento de alistamento nos corpos da Guarda Nacional obedecia aos interesses das influncias locais. Os indiv-duos eram recrutados observando-se aspiraes polticas e, em muitos casos, deixavam de s-lo como represlia. O fato de um cidado ser excludo das listas da Guarda representava um problema, pois, ficava automaticamente sujeito ao recrutamento para o exrcito.

    As mudanas sofridas

    Entre 1831 e 1837, o perodo do governo regencial foi marcado por medidas descentralizadoras, que visavam promover uma maior autonomia para as provncias. Dentre essas medidas, destaca-se o ato adicional de 1834, pois estabeleceu algumas modificaes que serviram para avanar esse proje-

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    to. O ponto chave dessas reformas foi a transformao dos Conselhos Gerais em Assembleias Legislativas Provinciais que concederam s estncias locais, atravs de um legislativo prprio, certa autonomia poltica.

    A Guarda Nacional foi atingida diretamente por tal deciso, uma vez que daquele momento em diante as Assembleias Provinciais poderiam mani-pular a estrutura de funcionamento da instituio de acordo com os seus inte-resses, o que deu incio a uma srie de modificaes na composio original da milcia. Alm disso, essa subordinao da milcia diretamente administrao provincial contribuiu para que a instituio funcionasse no apenas como um mecanismo de controle do governo central sobre os municpios, mas tambm como um elemento de manuteno das hierarquias locais.

    No entanto, a partir de 1837, com a substituio do grupo poltico que estava no governo, algumas alteraes poltico-administrativas foram colocadas em prtica. Essas mudanas viriam a influenciar a estrutura orga-nizacional, que era mantida pela Guarda Nacional at aquele momento. A partir de 1837 a milcia comeou a adquirir um formato que se concretizou em 1850, com a reorganizao de sua legislao. A Lei de interpretao do Ato Adicional, promulgada em 12 de maio de 1840, e a Reforma do Cdi-go de Processo em 3 de dezembro de 1841 so exemplos de medidas que buscavam uma maior centralizao de poder. A partir da, foram anuladas as atribuies concedidas s Assembleias Provinciais e restabelecidos os Con-selhos Provinciais no momento anterior.

    Essas mudanas que visavam a maior centralizao poltica do Imp-rio, pretendiam depositar o controle poltico nas mos do governo central e suas consequncias para a Guarda Nacional, foram relevantes. A partir delas a instituio deixou de ser subordinada ao juiz de paz local para se vincular diretamente ao ministro da justia. A poltica de centralizao administrativa mantinha um controle maior por parte do governo central sobre a indicao de funcionrios da justia e da polcia, incluindo: os guardas de priso, os altos magistrados, os delegados de polcia e os oficiais da Guarda Nacional.

    No entanto, a grande reforma sofrida pela instituio aconteceu em 1850. Com o intuito de uniformizar sua legislao que vinha sendo am-plamente alterada pelas diversas provncias do Imprio desde o Ato Adicio-nal a poltica centralizadora dos conservadores promoveu esta mudana visando criao de um marco regulatrio mais homogneo. A ausncia de um padro nacional da estrutura da milcia foi alvo de inmeras crticas, pois comprometia o carter de instituio nacional que se pretendia para a Guarda. Nos relatrios do Ministrio da Justia da dcada de 1840 en-contrei vrias referncias falta de uniformizao estrutural da corporao em nvel nacional. Em 1846, o ministro da justia argumentou sobre esse ponto, observando que:

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    Vario nas provincias no s as graduaes de alguns officiaes, como mesmo a respeito de sua nomeao e demisso existem de-cretadas providencias bem contrarias marcha regular do servio, e disciplina que nella conveniente conservar. [...] So claros e patentes os inconvenientes que deste estado de couzas deve se derivar, e as difficuldades com que tem o governo de lutar em muitas occasies. Relatrio do Ministrio da Justia, 1846, p.17.

    Ento, a partir da Lei n 602 de 19 de setembro de 1850, se estabe-leceu a reorganizao da milcia, que passou a ser subordinada diretamente ao governo central e, no mais, ao poder local atravs dos juzes de paz. O ano de 1850 marcou a institucionalizao da milcia na nova ordem admi-nistrativa a subordinando, ao menos legalmente, ao poder central. A prin-cipal alterao corroborada pela nova organizao da Guarda Nacional foi a extino definitiva do processo eletivo para preenchimento dos postos de oficiais. Os cargos de oficiais passaram a ser ocupados por guardas nomea-dos pelo poder central, subordinando as provncias e, consequentemente, os municpios, ao controle do governo central. A nomeao para o oficialato de maior graduao era determinada pelo presidente de provncia, a partir da indicao dos comandantes dos corpos.

    Alm disso, ficava estabelecido pelo artigo 57 que os oficiais teriam que pagar pela patente e pelo selo a quantia equivalente a um ms de soldo semelhante a dos oficiais de 1 linha. O imposto do selo e emolumento das patentes de oficiais da milcia se tornou uma fonte de renda para a Guarda Nacional. A supresso do procedimento eletivo abriu espao para a com-pra de patentes de oficiais, aumentando ainda mais a distncia social que j existia entre os ocupantes dos postos de oficiais e os praas.

    O formato que a Guarda Nacional adquiriu, de 1850 em diante, se ajustou perfeitamente ao contexto social e poltico da poca, funcionando como uma ferramenta de articulao das foras centrais e locais. Este ltimo, responsvel pelo controle da milcia nas localidades, assumia o nus em tro-ca do prestgio e do poder social que a atividade proporcionava. O governo central, por sua vez, delegava essa responsabilidade aos potentados locais em troca de apoio poltico nessas localidades onde no conseguia se estabelecer por falta de recursos financeiros, materiais e humanos. Em sntese, a Guarda Nacional Brasileira funcionou como um objeto de barganha entre os pode-res central e local. Ela conferiu uma posio importante aos chefes locais que definiam quem faria parte dos corpos da Guarda, influenciando diretamente no processo de alistamento destes.

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    A atuao durante a Guerra do Paraguai na provncia do Rio de Janeiro e na Corte

    A ao da Guarda Nacional era concentrada nos municpios e, quando necessrio, seus servios poderiam ser utilizados fora de sua localidade, se-gundo determinao legal. Este foi o caso nas revoltas regenciais, durante as quais diversos corpos da Guarda foram destacados para atuar em outros mu-nicpios com o intuito de conter tais movimentos e restabelecer a ordem nas regies sublevadas. Durante todo o perodo da Regncia, e incio do Segundo Reinado, o objetivo imposto Guarda Nacional foi de funcionar como fora policial e apaziguadora, auxiliando o exrcito na supresso s revoltas.

    Durante a Guerra do Paraguai, a lista de atribuies da Guarda ga-nhou contornos ainda maiores com o destacamento de milhares de mem-bros da milcia para os corpos do exrcito. Como foi colocado por Joaquim Nabuco: com a partida do Imperador [para Uruguaiana, no Rio Grande do Sul] o ministrio procura ativar em todo o pas o alistamento de voluntrios. O principal concurso seria o oferecimento da guarda nacional, e o governo apela para ela. (NABUCO, 1997, P.577). No incio do conflito, o governo brasileiro tomou medidas para aumentar o nmero de soldados do Exrcito Imperial, pois o contingente era diminuto para um conflito internacional de grandes propores. Entre essas iniciativas, tal como exposto na fala de Joa-quim Nabuco, estava o alistamento de homens da Guarda Nacional atravs da sua transferncia para os corpos expedicionrios enviados ao front.

    No entanto, alm de ocupar o importante papel de fora reserva do exrcito, a atuao interna da Guarda como fora policial, algo que j fazia parte do cotidiano da instituio, foi extremamente relevante para a manu-teno da ordem nas diversas provncias do Imprio. Com relao Corte e provncia do Rio de Janeiro, regio analisada por este artigo, as corres-pondncias enviadas pelos presidentes aos ministros da guerra e da justia e os relatrios anuais, que tratam do perodo da guerra, registram a constante utilizao dos homens da Guarda Nacional para a guarnio de fortes (neste caso, substituindo as tropas de 1 Linha), cadeias, policiamento e contro-le da ordem durante as eleies. Alm disso, a corporao desempenhou um papel fundamental auxiliando o governo provincial no recrutamento de guardas e voluntrios para o exrcito e, ainda, na organizao das tropas.

    O corpo de polcia da provncia ofereceu-se para marchar com o exrcito para o Sul j em janeiro de 1865, poucos dias aps a publicao do Decreto criando os corpos de Voluntrios da Ptria. Esta atitude foi, posteriormente, seguida pelo corpo de polcia da Corte. Inicialmente, como registrado pelo ento presidente da provncia, essa notcia [...] ia dando lu-gar a terror e pnico [...] (Relatrio presidencial, 1865, p. 4) entre a popu-lao, assustada como os inconveniente que a falta de policiamento poderia

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    causar. O clima de insegurana, no entanto, logo cessou, pois o presidente mandou destacar praas da Guarda Nacional para o [...] servio das cadas e diligencias [...] (Relatrio presidencial, 1865, p. 4). A partir da, grande parte do servio de polcia na Corte e na capital da provncia ficou a cargo dos corpos destacados da Guarda que foram redirecionados de seus munic-pios de origem para fazer o policiamento dessas cidades.

    O oferecimento do Corpo de Policia fluminense (que estava dividido por diversos municpios da provncia), s foi aceito mediante sua substitui-o por corpos da Guarda, condio que ficou clara em carta enviada pelo ento presidente Bernardo de Souza Franco ao ministro da justia:

    Sua sahida dos Destrictos no pode porem ser feita de outra forma seno substituindo os destacamentos da Guarda Policial por outros da Guarda Nacional, para o que indispensvel que o Governo Imperial autorize o destacamento de duzentas praas da Guarda Nacional, incluindo alguns poucos officiaes que so to somente necessrios nos destacamentos de maior fora e importncia.Requisito pois de V. Ex a authorisao precisa para destacar esta fora, e a expedio das ordens necessrias para que seja paga pe-las collectorias respectivas. (AN, Srie Justia, DA, IJ1-467)

    Em geral, o destacamento de corpos gerava uma srie de problemas, pois os guardas designados deviam deixar de cumprir suas atividades ren-tveis para prestar servios fora de suas localidades. Embora remunerados, esses no eram bem vistos, porque os soldos eram muito baixos, insuficien-tes para o sustento dos cidados e, geralmente, pagos com atraso. O go-verno fornecia, aos guardas nacionais destacados, armamento, fardamento e equipamento militar, desde que esses no pudessem ser adquiridos pelos cidados. Esses problemas, oriundos da forma como eram organizados os corpos, adicionados ao risco de morte que os cidados corriam, muitas vezes dificultavam e at mesmo chegavam a impedir a formao e o envio desses contingentes.

    O prazo mximo para uma fora ficar em situao de destacamento era estipulado conforme as possibilidades legais. Os destacamentos orde-nados pelo governo central eram os mais longos, podendo durar at um ano inteiro. Os governos das provncias podiam ordenar at seis meses. Os longos prazos dos destacamentos fomentavam as deseres entre os guardas destacados, uma vez que tal situao gerava inmeros prejuzos ao cidado que ficava, como j mencionado anteriormente, impossibilitado de cumprir suas principais atividades. No caso da guerra com o Paraguai, os destaca-mentos se tornaram bastante longos e precisaram de autorizao do Minis-trio da Justia, pois as praas eram remuneradas.

    O destacamento de guardas nacionais para fazerem a segurana p-blica na Capital do Imprio no foi uma novidade trazida pela situao de

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    emergncia gerada pelo conflito com o Paraguai. Constitua-se numa ati-vidade quase rotineira a vinda de guardas dos diversos municpios flumi-nenses, mas principalmente de Niteri, para a formao de um batalho provisrio destacado na Corte. Mormente em ocasies de comoo social guardas nacionais oriundos do interior da provncia estiveram de prontido na capital do Imprio.

    A partir da anlise dos relatrios dos presidentes da provncia, foi possvel concluir que ao atuar no lugar dos corpos de polcia durante a guer-ra, os guardas continuaram lidando com situaes corriqueiras que j faziam parte do seu cotidiano como um caso de tumulto durante as eleies muni-cipais em So Joo do Prncipe em 1868 (AN, Srie Justia, DA, IJ1-475), por exemplo. Ou, a desordem causada por um grupo de pessoas em Porto das Caixas que no concordaram com algumas modificaes feitas por um funcionrio da estrada de ferro de Cantagalo a respeito da disposio dos vages. Essa agitao foi resolvida com o destacamento de alguns homens da Guarda Nacional para a estao ferroviria daquela vila. (Relatrio pre-sidencial, 1868, p.5)

    Os episdios de desordem mais inusitados estavam relacionados ao contexto gerado pela guerra, como o caso de prisioneiros paraguaios que ao servio do aquartelamento prximo dos Aprendizes Artilheiros e os da Praia de Fora, que tentaro tirar do poder de um Guarda nacional, um deles que fora preso por embriaguez. (AN, Srie Justia, DA, IJ1-473). Este acontecimento que teve lugar na capital da provncia em maro de 1868, foi logo contido sem maiores consequncias.

    O emprego dos regimentos da Guarda como uma alternativa para a manuteno da ordem no foi exclusividade dos corpos de polcia, tambm as tropas de 1 Linha foram substitudas pela fora civil. No que diz respeito s fortalezas, os guardas nacionais ficaram responsveis pela guarnio des-sas bases militares at o final do conflito. Em 1869, o presidente da provn-cia exps essa situao em seu relatrio anual:

    A guarda nacional da provincia contina a ser sobrecarregada, sem que o governo possa infelizmente attenuar os sacrificios a que tem estado ella sujeita desde o comeo da guerra contra o Paraguay.Alem dos destacamentos acima referidos, contribui ella mensal-mente com 225 praas para o servio das fortalezas que era feito por soldados de 1 linha. (Relatrio Provincial, 1869, p. 8)

    Como foi dito no incio deste artigo, durante a Guerra do Paraguai, alm de realizar ainda mais intensamente as funes policiais, a Guarda Nacional tambm realizou o papel de fora auxiliar do exrcito. Sob essa perspectiva, a instituio na maioria das provncias do imprio, em diversos momentos, deixou de ser um agente mantenedor da ordem para ser um

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    elemento de resistncia. No Rio de Janeiro houve bastante oposio por parte dos guardas e tambm dos seus oficiais, que muitas vezes dificultavam o envio dos seus comandados para o front. Como exemplo de tal situao, podemos citar o caso relatado pelo ento presidente desta provncia Esperi-dio Eloy de Barros Pimentel ao ministro da guerra sobre a constante recusa da Guarda Nacional de se prestar ao servio da guerra. E ainda, a dificuldade que havia de manter esses homens aquartelados at o momento do embar-que para o teatro de operaes. Segundo o presidente:

    [...] attento o espirito que geralmente manifesta a Guarda Nacional de recusar-se ao servio da guerra, expedi um thelegramma pela estao da Ponta Negra ao Tenente Coronel Castro ordenando-lhe que procedesse quanto antes a discriminao dos guardas que de-vio compor o contingente [...]. Esta ordem foi immediatamente cumprida; sendo recolhidos a um xadrez os guardas comprehendi-dos na citada disposio. (AN, Srie Justia, DA, IG1-145)

    A partir do momento em que a milcia precisou ser retirada das lo-calidades onde atuava para fazer parte de um confronto internacional, a co-nexo de interesses particulares e estatais a partir da Guarda Nacional foi modificada repentinamente. A necessidade crescente de homens para lutar na Guerra obrigou o governo imperial a lanar mo do recrutamento de guardas nacionais em grande escala. So inmeros os relatos das autoridades mostrando a dificuldade existente no alistamento dos homens dessa institui-o. Muitas vezes essa adversidade era apoiada pelos prprios comandantes da Guarda, ou por outras autoridades locais responsveis pelo envio dos contingentes da milcia para reforo do exrcito.

    A ampliao do alistamento contribuiu para acirrar as relaes entre o poder estatal e as lideranas locais. Estes ltimos se sentiram prejudicados, uma vez que a mo-de-obra antes empregada na manuteno de suas lavou-ras e engenhos estava ameaada de ser redirecionada para o teatro da guerra. Alm disso, a ao violenta dos recrutadores muitas vezes tornava invivel a proteo antes oferecida por parte dos chefes locais aos cidados selecio-nados para ingressar nas foras armadas, afetando o prestgio e o status em que se baseava a autoridade desses condestveis.

    Concluindo...

    No obstante a falta de empenho dos guardas e oficiais, de uma ma-neira geral, em seguir para a guerra, a manuteno da ordem provincial foi efetivada pela Guarda Nacional de maneira a suprir a falta do elemento policial. Atravs da anlise dos relatrios e correspondncias dos presiden-tes de provncia, essa posio assumida pela milcia na provncia do Rio de Janeiro pde ser confirmada. A participao direta de batalhes da Guarda

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    Nacional, no servio que deveria ser desempenhado pela polcia, descrita por um grande nmero de presidentes. Valendo-se do recurso garantido pela lei, as autoridades policiais constantemente requisitavam os milicianos para ajudarem em suas atividades dirias, que muitas vezes chegaram a ser desempenhadas exclusivamente com o auxlio de membros da Guarda, pois faltava fora policial para a sua realizao.

    Alem do servio de guerra, para o qual a guarda nacional tem contribudo [...] sobre ella pesa tambem o servio ordinrio de destacamento, quer para suprir a insufficiencia da fora effectiva do corpo policial provisorio, quer para guarnecer a capital e as fortalezas da barra do Rio de Janeiro [...]. (AN, Srie Justia, DA, IG1-145)

    O perodo da Guerra do Paraguai foi, sem dvida, o momento em que os batalhes da milcia ficaram mais sobrecarregados pela execuo de praticamente todo o servio que deveria ser feito pela polcia. Com a par-tida de grande parte dos corpos policiais para o teatro de guerra, o efetivo que j era diminuto, se tornou ainda mais escasso. Essa situao obrigou os guardas nacionais a exercer funes de vigia nas cadeias e tambm a efetuar diligncias. Chama ateno o relato de um tenente-coronel do comando superior do municpio de So Joo da Barra, cujo contedo ilustra bem essa situao. Neste documento o oficial comunica ao presidente da provncia que entre os dias 16 e 31 de outubro de 1869, todo o servio de polcia havia sido feito pelo destacamento da Guarda Nacional daquele municpio, o que segundo o tenente-coronel foi feito sem a menor novidade (APERJ, Fundo: Presidente de Provncia, Caixa 79, Mao 3). Neste sentido, a insti-tuio esteve, durante uma situao de emergncia, gerada por um conflito externo, mais uma vez realizando seu papel, qual seja de aparelho utilizado pela elite poltica para a manuteno da ordem.

    Referncias

    - Fontes Manuscritas

    Arquivo Nacional

    Fundo/Coleo: Srie Guerra/Gabinete do Ministro

    Cdigo do Fundo: DA

    Seo de Guarda: CODES

    Arquivo Nacional

    Fundo/Coleo: Srie Justia/Gabinete do Ministro

  • OPSIS, Catalo, v. 12, n. 2, p. 48-71 - jul./dez. 201270

    Aline Cordeiro Goldoni

    Cdigo do Fundo: AI

    Seo de Guarda: CODES

    Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro

    Fundo: Presidente de Provncia

    Cdigo do Fundo: PP

    Fontes Impressas

    Anais do Parlamento Brasileiro Cmara dos deputados (Diversas ses-ses).

    Coleo de Leis do Imprio do Brasil, 1822-1850. Rio de Janeiro, Typ. Nacional, 1887.

    Coleo de Decises do Imprio do Brasil, 1831-1850. Rio de Janeiro, Typ. Nacional, 1887.

    Relatrios da Repartio de Negcios da Justia apresentados Assem-blia Geral Legislativa entre 1831-1870. Rio de Janeiro, Typ. Nacional.

    Bibliografia

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    Artigo recebido em 30/04/2012, aceito para publicao em 18/11/2012 e publicado em 20/12/2012.


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