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64-203-1-PB

Date post: 12-Sep-2015
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A HISTÓRIA CULTURAL E A HISTÓRIA DA LITERATURA MEDIEVAL – ALGUMAS REFERÊNCIAS À “ESCRITURA” DO ORAL E À “ORALIDADE” DO ESCRITO Márcia Maria de Medeiros* Toda a “literatura” não é fundamentalmente teatro? Paul Zumthor RESUMO: O presente artigo tem por objetivo analisar as questões refe- rentes ao fenômeno da oralidade dentro da literatura medieval, especifica- mente tendo por aporte de análise o romance de cavalaria. A premissa inicial do trabalho nasce devido ao fato de se saber que a literatura do medievo tem em sua gênese um processo eminentemente oral, sendo mui- to mais feita para ser ouvida do que para ser lida. Diante desse contexto o texto literário em questão mantém em sua forma escrita várias nuances dessa oralidade, a qual esse artigo pretende analisar. PALAVRAS-CHAVE: literatura medieval, história oral e história cultural. ABSTRACT: This article has by objective to analize the questions that reffers at oral phenomenon at medieval literature, having by focus the romance of cavalry. This work borns because people knows that medieval literature has your genesis with a process where the literature was made to be listen and not read. So, the literary text has in your written form many things about this caracteristic that this article intends to analize. KEYWORDS: medieval literature, oral history and cultural history. Quando se fala em história cultural , existe uma referência teórico- metodológica a uma área da história a qual foi redescoberta pelos historia- dores nos anos de 1970 e desde então vem desfrutando de uma vasta renovação no mundo acadêmico. Essa área é de uma imensidão descon- certante, ela mesma plena de diferenças entre seus defensores, o que dificul- Fronteiras, Dourados, MS, v. 10, n. 17, p. 97-111, jan./jun. 2008. * Graduada em História pela Universidade de Passo Fundo. Mestra em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Doutora em Letras pela Universi- dade Estadual de Londrina. Professora titular das cadeiras de História Antiga I e II e História Medieval da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul.
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  • A HISTRIA CULTURAL E A HISTRIA DALITERATURA MEDIEVAL ALGUMAS

    REFERNCIAS ESCRITURA DO ORALE ORALIDADE DO ESCRITO

    Mrcia Maria de Medeiros*

    Toda a literatura no fundamentalmente teatro?Paul Zumthor

    RESUMO: O presente artigo tem por objetivo analisar as questes refe-rentes ao fenmeno da oralidade dentro da literatura medieval, especifica-mente tendo por aporte de anlise o romance de cavalaria. A premissainicial do trabalho nasce devido ao fato de se saber que a literatura domedievo tem em sua gnese um processo eminentemente oral, sendo mui-to mais feita para ser ouvida do que para ser lida. Diante desse contexto otexto literrio em questo mantm em sua forma escrita vrias nuancesdessa oralidade, a qual esse artigo pretende analisar.PALAVRAS-CHAVE: literatura medieval, histria oral e histria cultural.

    ABSTRACT: This article has by objective to analize the questions that reffersat oral phenomenon at medieval literature, having by focus the romance ofcavalry. This work borns because people knows that medieval literature hasyour genesis with a process where the literature was made to be listen andnot read. So, the literary text has in your written form many things aboutthis caracteristic that this article intends to analize.KEYWORDS: medieval literature, oral history and cultural history.

    Quando se fala em histria cultural, existe uma referncia terico-metodolgica a uma rea da histria a qual foi redescoberta pelos historia-dores nos anos de 1970 e desde ento vem desfrutando de uma vastarenovao no mundo acadmico. Essa rea de uma imensido descon-certante, ela mesma plena de diferenas entre seus defensores, o que dificul-

    Fronteiras, Dourados, MS, v. 10, n. 17, p. 97-111, jan./jun. 2008.

    * Graduada em Histria pela Universidade de Passo Fundo. Mestra em Histria pelaPontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. Doutora em Letras pela Universi-dade Estadual de Londrina. Professora titular das cadeiras de Histria Antiga I e II eHistria Medieval da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul.

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    ta enormemente a criao de um conceito-chave para nomenclatur-la.Sobre o assunto, Peter Burke na obra O que histria cultural diz que:

    O que histria cultural? (...) a questo ainda esperauma resposta definitiva. (...). As fronteiras do temacertamente se ampliaram, mas est ficando cada vezmais difcil dizer exatamente o que elas encerram.Uma soluo para o problema da definio de histriacultural poderia ser deslocar a ateno dos objetos paraos mtodos de estudo. Aqui tambm, no entanto, oque encontramos variedade e controvrsia. (BURKE,2005, p. 9).

    Entretanto, em meio a esse campo de vasta turbulncia, uma das for-mas de histria cultural melhor articulada a que ordena a construo dahistria da leitura, definida de forma contrastante histria da escrita etendo como precedente a histria do livro. Essas prticas de estudo procu-ram enfatizar e compreender entre outros fenmenos: o papel do leitor, asmudanas nas prticas de leitura e nos usos culturais que se originam dotexto escrito. Durante certo tempo elas correram de forma paralela crti-ca literria, mas depois dos trabalhos de Roger Chartier, houve em entrela-amento de ambas as formas de estudo1.

    Outros focos de preocupao dos historiadores da leitura e do livroso as reaes dos leitores aos textos, as quais podem ser estudadas partin-do das anotaes desses leitores margem de seus livros ou ento dosgrifos que eles fazem na medida em que vo lendo. Existem tambm tra-balhos sobre os gostos literrios: esses podem levar em conta o gruposocial que l (mulheres, por exemplo) e serem enquadrados em outras cate-gorias de histria (gnero nesse caso).

    Este texto busca analisar um contexto que muito especfico no quese refere ao espao da histria da cultura ocidental: ele procura abordar aliteratura medieval como objeto, especialmente os anos que tangenciam ossculos XI ao XIII. Quando os estudiosos se debruam sobre os alfarrbiosdo tempo e tentam perscrutar o mistrio da cultura contido nas entrelinhasdesses sculos, se encontram diante de um desafio.

    Isso porque no possvel para esse momento encontrar uma identi-dade cultural capaz de situar o indivduo no tempo e no espao: o universoque se abre mostra a sua gama de caleidoscpio onde cada um parece semover entre diferentes cdigos de expresso, os quais se insistem em ana-lisar de forma separada. O ingresso nesse universo se faz somente median-

    1 Sobre o assunto ver: BURKE, Peter. O que histria cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar,2005.

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    te um pesado encargo, como expressa Segismundo Spina, na obra A cultu-ra literria medieval:

    O ingresso na cultura medieval, em especial a literria,no se faz sem pagarmos um pesado tributo; a com-preenso dos valores dessa poca exige do estudiosouma perspectiva ecumnica, pois as grandes criaes doesprito medieval na arte, na literatura, na filosofia so frutos de uma coletividade que ultrapassa frontei-ras nacionais. (SPINA, 1997, p. 12).

    Na verdade, seria mesmo pertinente perguntar se existia na idade mdiauma literatura ou quem sabe literaturas. O fato que o medievo desco-nhece inclusive o termo, pelo menos no que se refere ao conceito atual domesmo. Segundo Michel Zink no texto Literatura (s): em latim, litteraturatem o mesmo sentido que grammatica e designa, como esta palavra, ou agramtica propriamente dita ou a leitura comentada dos autores e o conhe-cimento que proporciona, mas no as obras em si. (ZINK, 2006, p. 79)2.

    Mais que em qualquer outro momento da histria da literatura, operodo em questo mimetizou as questes da arte com elementos de cunhosocial, ou dito de outra forma: ser um letrado na idade mdia (litteratus)significava possuir a aptido para ler, para escrever, e principalmente, signi-ficava possuir um determinado status social, que opunha o indivduo dota-do desses elementos ao povo iletrado (illiteratus), a gente simples.

    Mesmo nas lnguas vulgares no existe um registro determinado paraa atividade ou para as obras literrias: esses dialetos dispem apenas depalavras especficas para designar cada gnero em particular, sendo esteltimo definido de forma peculiar devido a questes de esttica do textoou de um tipo de interpretao. Para que se entenda melhor essa questo,basta aferir a Michel Zink, em texto supracitado, quando ele diz que: emfrancs, a palavra poeta s aparece no fim do sculo XIII, (...): ela designaos autores antigos (ZINK, 2006, p. 79). Dessa forma, o historiador que sedebrua sobre o mundo medieval tentando perscrutar sua histria da lite-ratura enfrenta um dilema: o termo tal como utilizado hoje pode ser em-pregado, mas ele representa um paradoxo, pois a um s tempo inadequa-do, porm insubstituvel.

    2 ZINK, Michel. Literatura(s). In: In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude. Dicion-rio temtico do Ocidente Medieval. Bauru-SP: Edusc, 2006. Ademais, vale salientar que a noode literatura algo historicamente demarcado, com um espao muito limitado no tempo:ela normalmente se refere civilizao europia, ocidental, entre os sculos XVII ou XVIII ehoje. Sobre o assunto ver: ZUMTHOR, Paul. Performance, recepo e leitura. . 2 ed. So Paulo:Cosac Naify, 2007.

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    Isso porque no mundo contemporneo a literatura ope-se a outrasdisciplinas como a histria ou a filosofia, para no falar das cincias mate-mticas ou da natureza. Nesse contexto ela somente pode supor aquilo que fictcio, ou ento, ela supe uma escritura sem os rigores do academicismocientfico, portanto sem compromisso. Tal jogo de oposio no se apli-ca ao medievo onde a arte da expresso e da escrita aplica-se igualmentea todos os contedos (ZINK, 2006, p. 80).

    Os textos de cunho didtico, ou os textos que se auferiam cientficosno tinham de, necessariamente, ficar encerrados em nveis diferenciados,nem excludos do mundo das Letras. Todos eles faziam parte de um con-texto maior, ordenado pelo ensejo da escritura, da construo da mem-ria... talvez para evitar um medo to conhecido dos homens de todos ostempos: o medo de ser esquecido.

    Roger Chartier, no texto Inscrever e apagar: cultura escrita e literatura, res-salta que as sociedades europias tinham um grande medo que lhes obceca-va, qual seja, o medo do esquecimento. Por isso elas passaram a fixar pormeio da escrita os traos essenciais do seu passado, a lembrana de seusmortos ou a glria dos vivos; mas, principalmente, passaram a registrartodos os textos que no deveriam desaparecer (CHARTIER, 2007, p. 9).

    Assim, desde os tempos do medievo, a escrita teve um papel impor-tante na sociedade: ela era responsvel por evitar a fatalidade da perda e doesquecimento. Mas nem tudo o que foi escrito se eternizou: alguns textosforam traados em suportes que permitiam escrever, apagar e depoisescrever de novo (CHARTIER, 2007, p. 10). Diante desse fenmeno comopreconizar aquilo que essencial em termos do que a idade mdia cons-truiu no que tange ao que se chama de cultura literria?

    No h como estabelecer um desempenho ideal para tudo que essetempo articulou nesse sentido: assim sendo, se vaga em meio a hipteses semque se possa decidir evidentemente por uma delas. Atrs de cada texto, seprocura a identidade do autor, ou de vrios autores, os quais se gostariam decolocar em nveis precisos. Aqui se fala sobre a construo da chamada idiade autoridade, conforme aufere Jean Batany:

    (...) a autoridade de uma fonte escrita conservada ouperdida, a autoridade moral de um grande personagemou de um narrador, os desgnios de escrita de um clrigolutando com sua folha branca, as intenes de duploregistro de um recitante s voltas com os ouvintes... masnunca sabemos quantos, nem quais, desses nveis aflo-ram verdadeiramente no texto. (BATANY, 2006, p. 383)3.

    3 BATANY, Jean. Escrito/oral. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude. Dicion-rio temtico do Ocidente Medieval. Bauru-SP: Edusc, 2006.

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    Quanto mais as pesquisas voltadas para desvendar o mistrio da cul-tura no ocidente medieval avanam, mais elas se fecham sobre os caminhosque pareciam to claramente traados. Entretanto, mesmo diante de tantasdificuldades, alguns elementos importantes devem ser considerados no quediz respeito ao fenmeno ora estudado, a saber, a cultura literria medieval.

    Antes de tudo, cabe ressaltar que o universo onde a literatura medievalse desenvolve confuso: fatores de diversas ordens interagem nesse mun-do de maneira que se torna invivel uma tentativa sumria e ntida da for-mao, elaborao e difuso da matria literria nesse perodo da histria.

    A estrutura social do medievo sofre a influncia da igreja, o mundopoltico assiste a invaso dos brbaros e a formao do Imprio Carolngio,para depois se fragmentar em mirades de feudos onde cada senhor rei.Fenmenos como as Cruzadas e a conseqente interlocuo com as cultu-ras orientais (bizantina e asitica) trouxeram substratos diferenciados queinfluenciaram o ocidente.

    As heresias tornavam o mundo medieval um cenrio de disputas teo-lgicas e palco de heterodoxias religiosas, o qual ainda contava com res-duos culturais oriundos da Antiguidade Clssica, atenuada e descaracterizadapela Igreja conforme preconiza Segismundo Spina (SPINA, 1997, 16). Nessemundo to complexo, os falares romnicos vo tentar superar o latim comoinstrumento de comunicao oral e escrita. Nesse contexto to rico e todiverso, no h como explicitar o que estilo literrio: o conceito no seaplica com clareza.

    H que se referendar tambm, a questo que norteia um dos elemen-tos formadores da literatura, no caso, a lngua. As regularidades que apare-cem nas ocorrncias da fala s podem se tornar normas de uma lngua seapoiadas em subplanos de uma identidade cultural com contornos mais oumenos precisos. Nesse sentido, Tefilo Braga, em sua obra Histria da litera-tura portuguesa I Idade Mdia, referenda:

    Para que uma literatura se forme necessrio que umaraa fixe os seus caracteres antropolgicos pela prolon-gada hereditariedade, que funde a agregao ou consen-so moral de Nacionalidade, tendo o estmulo de resis-tncia na sua Tradio e na unidade da Lngua discipli-nada pela escrita, universalizando a relao psicolgicadas emoes populares com as manifestaes concebi-das pelos gnios artsticos. (BRAGA, s/d, p. 11).4

    Sabe-se que a gramtica ensinada no tempo de Santo Agostinho esta-va mais ou menos fundamentada nos usos de uma fala cotidiana, mas

    4 Os grifos em letras maisculas acompanham o original.

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    indubitavelmente no era compatvel com ela. Esse falar cotidiano se esten-dia de um lado ao outro do Antigo Imprio Romano e se manteve presen-te mesmo com os abalos que culminaram com a queda do j referidoImprio 5.

    Aqui cabe referendo a especulaes muito simples: quando se deixoude falar latim? Quando o latim deixou de ser compreendido? Mais impor-tante ainda: que latim se falava? Sim, porque os documentos que referemao latim dos sculos VI e VII j demonstram que ele passava por umprocesso de adaptao.

    Segundo Jean Batany, em texto supracitado o que existiam ento eramdois estilos diferentes: um literrio, utilizado nos livros e pelos membros doclero; e o outro, um estilo rstico, ao qual se recorria para se fazer entenderpelos leigos, talvez inicialmente mais por necessidade prtica que por qual-quer outro tipo de cuidado ou pretenso (BATANY, 2006, p. 84).

    Acentuando essa diferena estilstica, o latim considerado literrio tor-nava-se paulatinamente ininteligvel aos leigos, ainda mais diante dos esfor-os envidados pela Reforma Carolngia, que buscou devolver ao latim asua pureza original, afastando-o ainda mais da lngua falada6.

    Entretanto, a necessidade de fazer o discurso penetrar at o fundo deum grupo social que se queria integralmente cristo modificou a ordenaodas prticas lingsticas: o Conclio de Tours, no ano de 813, ordenou aosbispos que no pregassem somente em latim, mas que traduzissem seussermes de forma que os mesmos se tornassem compreensveis aos rsticos.

    Isso no quer dizer que os chamados dialetos locais fossem, a partirdaqui, elevados a uma categoria privilegiada: ainda no se havia constitudoum texto modelar (uma gramtica) que elevasse esses falares cotidianosalm do nvel simples da fala propriamente dita: eles continuavam sendodefinidos por seu carter no cultural.

    Pode-se dizer que a sociedade medieval culmina em uma pluralidadede identidades culturais fundamentadas geograficamente, porm percebe-

    5 Sobre a queda do Imprio Romano ver: ANDERSON, Perry. Passagens da Antiguidade aoFeudalismo. So Paulo: Brasiliense, 1994; FRANCO Jr., Hilrio. A Idade Mdia: o nascimen-to do ocidente. So Paulo: Brasiliense, 1992; LE GOFF, Jacques. A civilizao do ocidentemedieval. So Paulo: EDUSC, 2005.6 D-se o nome de Reforma Carolngia ao processo ordenado durante o reinado de CarlosMagno no perodo que corresponde a chamada Alta Idade Mdia, de acordo com a divisocronolgica estabelecida por Hilrio Franco Jnior (VIII-X). Nesse momento da histriamedieval, o imperador carolngio buscou fortalecer as questes relativas difuso dacultura crist alicerando as bases daquilo que seria o cerne da cultura medieval. Sobre oassunto ver: FRANCO Jr., Hilrio. A Idade Mdia: o nascimento do ocidente.So Paulo:Brasiliense, 1992.

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    se que existe uma hierarquizao, um reagrupamento dessas mesmas iden-tidades e uma oposio que acontecem a partir do sculo XI: a disputaentre a questo dos franceses e dos provenais.

    No sculo XII, a Provena vai afirmar a sua identidade lingstica emtextos lricos cantados at na Itlia: embora esse fundo lingstico tenhamais correlao com o Limousin que com a Provena, o essencial queexiste uma lngua, uma cultura, e um canto que a propaga7.

    Segundo Jean Batany, essa questo lingstica teve vrios desdobra-mentos, inclusive polticos, como se aufere na citao abaixo transcrita:

    Ao norte, a base poltica da lngua mais visvel: desdeo sculo IX, comea a transferncia das funes pas-torais s funes rgias na comunho das lnguas vul-gares (...). A lngua comum, chamada lngua do pai(...) at o sculo XI, torna-se a lngua da me (...) noXII, para melhor se opor ao latim, lngua do Pai ce-leste. Mas, na verdade, ela j comea a ser, insidio-samente, a lngua do rei, que substituir no sculo XIVum Deus tornado muito distante como Pai.(BATANY, 2006, p. 386).

    Nesse contexto percebe-se que havia uma reivindicao incipiente dofalar e que essa reivindicao era transposta para as obras que eram pro-duzidas. Esse processo muito lento, mas marca o fenmeno de transpo-sio do latim para o nvel dos dialetos regionais, os quais tenderam apassar a categoria de lngua, pois eram identificveis e constituam o indcioda formao de uma identidade cultural regional.

    Algumas transformaes merecem ser apontadas como preponde-rantes diante desse quadro: esses falares regionais, no necessariamente soum lugar simblico da liberdade criadora em oposio a sistemas lingsticosj normatizados. Eles tambm tm suas regras e seus silogismos.

    No caso do latim, ele se viu forado a enfrentar transformaes lexicaise sintticas, sendo nesse processo favorecido por muitos elementos comoo avano considervel das cincias e das tcnicas nos sculos XIII-XIV. Eles vai se tornar uma lngua rgida quando os renascentistas tentarem devol-ver a sua raiz ao purismo primitivo que nem eles conheciam.7 Limousin uma provncia que fica no centro da Frana. J a Provena uma regio quefica prxima a costa do Mediterrneo: na verdade a questo relativa ao processo lingsticoque ordena essa rixa aquilo que passar para a histria da literatura universal como acontingncia da langue d oc e da langue d oil. A primeira, falada ao sul, conhecida comooccitnica, e seu nome vem da palavra c, que significa sim. Ela faz o contraste com asegunda, nortista, cuja deriva oil, vem do latim hoc ille, tendo o mesmo significado. importante referendar esse processo porque a literatura da Europa continental, principal-mente da regio mediterrnica ser fortemente influenciada pelo modelo constitudo porpela literatura em lngua d oc i e em lngua d oil.

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    Na Renascena o contexto da expresso lingstica ver impor-se umamscara de cultura que teria sido importada diretamente do mundo antigo.Segundo Jean Batany, esse disfarce mais eficaz do que a fisionomia realque ele encobre: o fato de que as culturas medievais no sabiam efetiva-mente se fazer representar (BATANY, 2006, p. 387).

    A grande questo a ser ressaltada que o estabelecimento do textoescrito e a onda de sons percebidos como fala no coincidem, em seuconfronto, nem com a criao da gramtica nem com a retrica. At por-que os primeiros esto em um loco onde a expresso mxima constitudapela liberdade de criao. J os segundos preconizam a utilizao de nor-mas e regras. Entretanto, a problemtica que envolve oral e escrito aindamais que a que envolve lngua e fala suscita discusses entre os pesqui-sadores.

    Onde est a fala atrs do texto escrito? Essa pergunta pesou profun-damente na redescoberta da literatura medieval e por muito tempo impsum norte especial aos textos do medievo, questionando sobre suas origense seu carter: seriam eles textos de carter popular ou erudito? De ondeteriam advindo?

    Esse fenmeno quase impediu o estudo dos textos por eles mesmos,em um movimento que negou as razes orais dessa literatura (impossveisde provar) e ops-lhe uma escrita de cunho erudito, a qual teria tido porfontes modelares os textos latinos. Esse excesso de ordenao em direoao escrito levou, a partir de 1950, a construo de uma posio oposta queretornava a crena nas tradies orais, fundadoras da literatura medieval.

    Na opinio de Jean Batany, esse debate mal conduzido, acabou sendomais bem expresso quando:

    (...) comeamos a formular melhor: a obsesso pelasorigens encobria o problema da performance (ato deexpresso pelo qual o pblico recebe o texto), e os pa-ralelos entre oral e popular, escrito e erudito mer-gulhavam a pesquisa em um nevoeiro de preconceitosideolgicos. Comea a se ver melhor que toda a moda-lidade de fala tende, na essncia, a objetivar-se em umainscrio grfica, em sentido lato, mas sem perder suanatureza vocal (...) (BATANY, 2006, p. 388-389).8

    8 Os grifos acompanham o original. H que se salientar que a performance tende ao canto.Ela tambm se presta ao teatro por vrias razes: o gestual, a possibilidade de recitao oude leitura dialogada. A tcnica de quem recita tambm pode ser performtica: mudar o tomde voz, por exemplo, ou praticar uma imitao. Os atos de quem realiza uma performanceobjetivam aproxim-lo de seu pblico ou fazer com que o pblico preste ateno suaao.

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    Essa perspectiva de ordenao deu um novo sentido ao fenmenodo estudo da literatura do medievo: isso porque, percebeu-se que nessemundo onde o texto literrio era feito para ser ouvido e no lido, as regrasde aplicao que o recitador (fosse ele alfabetizado ou no) aplicava, pro-curavam fazer o enunciado para uma espcie de leitura. Michel Zink seguea mesma linha de raciocnio, pois preconiza que a obra medieval pelo me-nos at o sculo XIV, s tem existncia plena quando sustentada pela vozde um artista, quando atualizada pelo canto, recitao ou leitura em voz alta(ZINK, 2006, p. 80).

    Paul Zumthor, na obra Performance, recepo e leitura agrega a essa discus-so mais um elemento. Segundo ele, foi justamente a propsito da IdadeMdia que se colocou para o pesquisador Paul Zumthor, a questo davocalidade. Os medievalistas das dcadas de 1960 e 1970 gostavam depolemizar a respeito da medida em que as tradies orais teriam influenciadoa poesia medieval. Sobre o assunto, refere Zumthor que:

    Era um ponto vlido de informao, mas que em nadaalcanava o essencial, isto , o efeito exercido pela orali-dade sobre o prprio sentido e o alcance social dostextos que nos so transmitidos pelos manuscritos.Era preciso ento se concentrar na natureza, no sentidoprprio e nos efeitos da voz humana, independente-mente dos condicionamentos culturais particulares...para voltar em seguida a eles e re-historicizar, re-espacializar, se assim posso dizer, as modalidades di-versas de sua manifestao. (ZUMTHOR, 2007, p. 12).

    O cuidado que os recitadores tinham em dizer a histria da formamais verdadeira, pressupunha a necessidade de estabelecer uma realidadefixa e eterna, que corresponderia imortalidade do texto, mesmo se esteltimo se modificasse cada vez que fosse narrado: no universo do medievo,o escriba apenas administra essa tendncia, pois nesse mundo onde todifcil escrever, a escrita um caso limite. Sobre o assunto informaSegismundo Spina que:

    As dificuldades materiais da produo literria (os pro-cessos tcnicos da escritura muito complicados, a rari-dade do pergaminho, etc.) tornaram impraticvel a for-mao de movimentos literrios, o que explica o fatode ser a literatura da poca eminentemente oral. (SPINA,1997, p. 16).

    At os alvores do sculo XII, a literaturas em lngua verncula queestavam nascendo, conheciam apenas os gneros cantados tais como a can-o de gesta e a poesia lrica. Sobre o assunto Michel Zink revela que:

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    A primeira conserva artificialmente as marcas da orali-dade, mesmo quando escrita (sem o qu, o que sabe-ramos dela?): a encenao do recitante, interpelao dopblico, efeitos de eco e repeties ligados composi-o estrfica. A segunda, que exige do poeta que sejatambm compositor, s vezes denuncia seu modo oralde transmisso, ao nomear o menestrel a cuja memriaconfiou a cano ou desejar que ela encontre um cantordigno de si. (ZINK, 2006, p. 81).

    Com certeza o escriba no deixou de escrever na Idade Mdia, e bemmais do que a idia de que esse perodo foi a idade das trevas permiteperceber: mas justamente porque faltam documentos que impossveldar aos textos escritos que foram salvos uma importncia maior do queeles realmente tm e auferir que eles so a origem dessa literatura.

    E ademais, em uma sociedade onde a maioria das pessoas era analfa-beta, os textos escritos continuariam representando uma parcela nfima emquantidade numrica, se comparados aos textos falados. Mesmo os ro-mances (de cavalaria), primeiro gnero medieval a ser destinado leitura,eram lidos em voz alta. A ao dos menestris deixava um largo espao mmica e interpretao dramatizada9.

    Da essa grande importncia da voz para o texto literrio produzidono medievo: na verdade, a voz, com suas qualidades prprias, seu timbre,faz parte integrante desse universo literrio. Na idade mdia, no basta serum bom msico, a voz tem que acompanhar o trovador que canta a suabalada, criando um mimetismo que junta o texto, a msica e a fala.

    O homem contemporneo, to acostumado autoridade do escrito,no penetra facilmente nesse universo de sonoridade, o qual costuma sefechar quando confrontado com proposies que dizem respeito snormatizaes atuais sobre a literatura. Pois agora, o escrito tem uma auto-ridade especial: a oposio entre letrado/iletrado decisiva. Essa heranafoi legada pelos senhores da Renascena.

    A partir da, os textos antigos passaram a ser os nicos modelos auto-rizados: tudo se consolidava no mundo escrito. Todos os autores preten-dem extrair sua matria de fontes escritas, de preferncia de um livro, me-lhor ainda se ele for latino. O final da idade mdia concede outro espao aotexto to diligentemente conservado, copiado e reutilizado pelos monges:esse espao tambm se abre ao livro enquanto objeto.

    Mas mesmo com esses esforos, essa cultura nunca esteve totalmente

    9 Sem dvida que esse ato abre margem de importncia para as questes referentes aodesenvolvimento do teatro, por exemplo.

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    encerrada nas bibliotecas, sobretudo entre os sculos XIII e XIV. Nesseperodo, a atividade universitria no comportava exames escritos estandonorteada inteiramente em cursos e exerccios orais, os quais se baseavamem testemunhos e dossis10. O mundo da literatura medieval continua sen-do mais falado que escrito: nas escolas o professor lia e o aluno ouvia. Nasigrejas, os sermes conservados em latim eram copiados e guardados, masno sem antes terem sido pronunciados. E a contradio permanece, de-monstrando a preeminncia do oral e do escrito.

    Outro aspecto ainda fomenta o carter ambguo das literaturas medie-vais: elas so herdeiras da cultura clssica, greco-latina, a qual toma porparmetro. Entretanto, no raras vezes, promovem uma ruptura com essaherana produzindo elementos de uma originalidade sem precedentes. Essefenmeno ocorre pela influncia cultural que chega ao ocidente mediterrnicooriundas do mundo germnico, do mundo que se situava ao norte do antigoimprio romano ocidental11. Sobre o assunto, afirma Michel Zink que:

    As lnguas clticas e germnicas, que existiam indepen-dentemente do latim, tiveram manifestaes literriasprecoces (sculo VII-VIII), cujo vestgio escrito estsubordinado implantao da cultura latina nas re-gies onde elas so faladas. (ZINK, 2006, p. 83).

    A idade mdia ser o momento da histria em que as lnguas vernculasemergem e se cristalizam, interpondo-se aos textos latinos e tornando omundo uma imensa torre de Babel. Curioso que essa interposio acon-tece em primeiro lugar como uma concorrncia a esse latim e depois comouma espcie de decorrncia dele.

    Portanto, possvel dizer que entre as tantas tenses que ordenam omundo medieval12 existe a que referenda o domnio cultural, a um s tem-po bem marcado e fragmentado, coerente e diverso: pode-se dizer queesse domnio o do espao do latim enquanto lngua erudita (latim doImprio Romano e da igreja), mas que mantm uma srie de relaes di-versas com vrias lnguas vernculas: esse movimento repercutir sobre aexpresso literria nessas lnguas e sobre o desenvolvimento da mesma. Na

    10 Sobre o assunto ver: LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Mdia. So Paulo: JosOlympio, 2003.11 A referncia aqui se faz em relao tradio cultural do norte da Europa, como a celta,por exemplo. As razes culturais oriundas da Esccia, Inglaterra, Pas de Gales, Irlanda,Noruega, Finlndia, Dinamarca, entre outros pases, so estranhas a latinidade e conduzema criao de um estrato literrio novo e diferenciado no mote at ento conhecido.12 Sobre o assunto ver: LE GOFF, Jacques. A civilizao do Ocidente Medieval. So Paulo:EDUSC, 2005.

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    realidade, nesse espao cultural em constante movimento, as influncias sedo de forma sincrnica quando se trata de uma lngua verncula em dire-o a outra e no mais segundo um modelo diacrnico de uma filiaopartindo do latim e do modelo universalista e antigo que ele representa.

    A latinidade sofre alguns severos arranhes, mas permanece viva emonopolizando o essencial da atividade cultural e intelectual. Sobre esseassunto, Michel Zink diz que:

    O ensino nas escolas e universidades, a maior parte oua quase totalidade do que se escreve no mbito da teo-logia, da filosofia, das artes liberais, das artes tcnicas,da medicina, do direito e, durante muito tempo, dahistria: tudo est em latim. O que verdade no cam-po da cincia, tambm o , embora as circunstncias eas propores sejam diferentes, no campo literrio. Ahistria das literaturas medievais a histria combina-da da literatura latina e das literaturas em lnguas vulga-res. (ZINK, 2006, p. 82).

    Os povos germnicos que adentraram o imprio romano foram con-vertidos ao cristianismo, e de certa forma, eram admiradores e imitadoresdo imprio que estava em seus estertores finais quando de seu ingressonessas fronteiras13. Por isso, quase no ameaavam a latinidade. Entretanto,a igreja, nica detentora de um arcabouo administrativo que permitiu aesse mundo fragmentado pensar em possibilidades de rearticulao no sen-tido universalista, passou a ser tambm a dona das chaves do saber.

    Nesse processo, ela podia apagar a memria desses textos latinos, osquais, os prprios doutores da igreja, como Santo Agostinho e So Jernimo,tinham justificado como sendo de excelncia para o estudo. Entre os scu-los VI e VII, houve a tentativa de obliterao desses clssicos. Mas oRenascimento Carolngio salvaguardar essas obras do esquecimento.

    Depois do sculo VIII, inmeras cpias de Ovdio, Homero, Virglio,entre outros, sero feitas nos mosteiros patrocinados por Carlos Magno. Aao dos copistas ser uma importante atividade na idade mdia. Manterviva a literatura clssica de origem greco-latina: eis o primeiro estofo dacultura literria do medievo. E h que se salientar, essa sobrevivncia noera somente um trabalho de conservao.

    Segundo Segismundo Spina, esse perodo dominado, (...) por umaliteratura de tipo monstico, que, at certo ponto, pode ser reduzida a nar-rativas hagiogrficas e a poemas litrgicos, cuja forma fundamental

    13 Sobre o assunto ver: FRANCO JNIOR, Hilrio. A Idade Mdia: nascimento do ociden-te. So Paulo: Brasiliense, 1999.

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    representada pelos hinos (SPINA, 1997, p. 16)14. Essa produo escritaera um privilgio dos mosteiros, centros irradiadores do conhecimentonesse perodo.

    Na opinio de Michel Zink, essa literatura reflete todo o contexto doqual ela se origina: o mundo latino que de certa forma lhe ordena e omundo estranho a essa mesma latinidade, de onde nascem novas condi-es inerentes emergncia das lnguas vulgares e da cultura que lhes prpria (ZINK, 2006, p. 82). Latina ou verncula, essa literatura nascentetoma por modelo os clssicos da retrica antiga.

    Assim sendo, fazer reviver um texto medieval faz obrigatoriamente oestudioso se colocar em um contexto onde o texto era mais ouvido quelido, onde esse texto podia ser narrado ou recriado meio que de improvisoe ao mesmo tempo, apreciado e registrado ou na memria ou no papel. Odever e o prazer de escutar estavam na base do prazer de escrever: quasesempre a obra era ditada, s vezes aps ter sido rascunhada sobre tabuinhasde cera, as quais logo eram apagadas, constituindo-se em simples auxiliaresda memria.

    Sobre o assunto diz Roger Chartier na obra Inscrever e apagar: culturaescrita e literatura que:

    A memria descrita com freqncia como uma cole-o de tabuletas (...) e isso at em Hamlet, que deveapagar das tables of [his] memory todos os arquivos in-teis para conservar somente as palavras do fantasma:Remember me e, reciprocamente, as tabuletas so osuporte privilegiado, mas nem sempre necessrio, dainveno e da composio poticas, que convocam osmateriais para as idias e os fragmentos de textos clas-sificados na memria.A memria desempenha um papel essencial na trans-misso dos poemas. O poeta um cantor cuja voz esuspiros habitam os cnticos. A maneira comum e pre-visvel de sua publicao , ento, uma recitao ou umadeclamao, apoiada na memorizao do texto.(CHARTIER, 2007, p. 33)15.

    Em um mundo como o contemporneo, o canto visto e entendidocomo uma espcie de deformao da fala. Porm, no mundo medievalele era a plena realizao da fala, efetuando as mais ricas possibilidades

    14 Hagiografia um tipo de texto tradicional da idade mdia, o qual narra vida dos santos.A mais conhecida hagiografia do perodo medieval, sem dvida alguma a Legenda urea,de autoria do dominicano Jacopo de Varazze e traduzida no Brasil por Hilrio FrancoJnior.15 Os grifos acompanham o original.

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    tanto de expresso fnica quanto de linguagem propriamente ditas. Essasensibilidade do medievo em relao ao canto demonstra que havia a pos-sibilidade de uma maior riqueza de interpretao e de reao afetiva frenteao texto literrio. Sobre o assunto, referenda Jean Batany:

    Se os romancistas franceses do sculo XIII divertem-seintroduzindo na narrativa canes que no fazem a aoavanar, no apenas para apresentar algum amigojogral, e sim para que o pblico, leitores ou ouvintes,alegre-se no momento em que o romance, passandopara um registro claramente musical, atinge a plenitudefnica e ideolgica qual as obras lricas, em sua perfor-mance solitria, alcanavam talvez muito rpido paraserem eficazes, mas que funciona plenamente quandoa cano foi preparada por uma narrativa. (BATANY,2006, p. 392).

    Esses procedimentos foram desaparecendo medida que se multipli-caram os textos em prosa, a partir do sculo XIII. Mas isso no quer dizerque a prosa medieval franqueasse a oposio entre escrito e oral, na verdadeessa prosa era feita para ser enunciada de maneira retrica. Ou dito de outraforma: longe de contradizer a vocalizao, a transcrio grfica auxiliava-ade diversas maneiras (BATANY, 2006, p. 392).

    A partir do momento em que se toma conscincia dessa vocalidadeda literatura medieval, se pode voltar aos problemas das tradies e dasorigens que ordenaram essa esfera cultural do medievo, considerando-seum elemento que, na verdade se enquadra dentro do aspecto da circularidadecultural que Carlo Ginzburg referenda em O queijo e os vermes16: a difusosocial dos textos eruditos em direo cultura popular (oral) e a extensodos hbitos de oralidade em direo cultura erudita (escrita).

    Pode-se dizer, nesse contexto e parafraseando Paul Zumthor que o oraltorna-se escrito, e o escrito quer tornar-se uma imagem do oral: mas dequalquer forma se mantm a autoridade da voz nesse contexto (ZUMTHOR,1993). Uma autoridade que referenda, no medievo uma garantia, um regis-tro. No sentido contemporneo, uma autoridade que impe ao ouvinte umasrie de exigncias justificadas pela presena de um contato pessoal, enquantoque a escrita coloca as suas ordenaes de forma absoluta e despersonalizada.Por isso, ao invs de tentar classificar os textos da idade mdia em duascategorias, quais sejam, falada e escrita, preciso compreender essa nuancede duplicidade para entender o que eles querem dizer.

    16 Sobre o assunto ver: GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. So Paulo: Companhia dasLetras, 1988.

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    REFERNCIAS

    ANDERSON, Perry. Passagens da Antiguidade ao Feudalismo. So Paulo: Brasiliense,1994.

    BATANY, Jean. Escrito/oral. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude.Dicionrio temtico do Ocidente Medieval. Bauru-SP: Edusc, 2006.BRAGA, Tefilo. Histria da literatura portuguesa I Idade Mdia. Europa-Amrica:Mem-Martins, s/d.

    BURKE, Peter. O que histria cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

    CHARTIER, Roger. Inscrever e apagar cultura, escrita e literatura. So Paulo: UNESP,2007.

    FRANCO Jr., Hilrio. A Idade Mdia: o nascimento do ocidente. So Paulo: Brasiliense,1992.

    GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. So Paulo: Companhia das Letras, 1988.

    LE GOFF, Jacques. A civilizao do ocidente medieval. So Paulo: EDUSC, 2005.

    LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Mdia. So Paulo: Jos Olympio, 2003.

    SPINA, Segismundo. A cultura literria medieval. So Paulo: Ateli Editorial, 1997.ZINK, Michel. Literatura(s). In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude. Dicio-nrio temtico do Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc, 2006.

    ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. So Paulo: Companhia das Letras, 1993.ZUMTHOR, Paul. Performance, recepo e leitura. 2. ed. So Paulo: Cosac Naify, 2007.


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