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A Autonomia Existencial Nos Atos de Disposição Do Próprio Corpo

Date post: 17-Dec-2015
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A Autonomia Existencial Nos Atos de Disposição Do Próprio Corpo
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779 Pensar, Fortaleza, v. 19, n. 3, p. 779-818, set./dez. 2014 A autonomia existencial nos atos de disposição do próprio corpo The existential autonomy in the acts of disposition of the own body Maria Celina Bodin de Moraes * Thamis Dalsenter Viveiros de Castro ** The body is a big sagacity, a plurality with one sense, a war and a peace, a flock and a shepherd. F. NIETZSCHE. Resumo A autodeterminação corporal é uma espécie de autonomia existencial que se expressa na liberdade de disposição sobre o corpo ou partes dele. O legislador codicista de 2002, porém, acaba por adotar uma posição paternalista, diametralmente oposta à posição “personalista”, compatível com a Constituição. Liberdade, integridade, igualdade e solidariedade, os substratos materiais da dignidade humana, são, portanto, as fronteiras da autonomia corporal, dando fundamentos e limites às concretas disposições sobre o próprio corpo. Palavras-chave: Dignidade humana. Autonomia existencial. Modificações corporais. * Professora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ e professora associada do Departamento de Direito da PUC-Rio. Rio de Janeiro – RJ – Brasil. E-mail: mariacelina.bodin@ terra.com.br ** Doutoranda em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Possui mestrado em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio (2009), graduação em Direito pela Faculdade de Direito Evandro Lins e Silva - IBMEC (2006).
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  • 779Pensar, Fortaleza, v. 19, n. 3, p. 779-818, set./dez. 2014

    A autonomia existencial nos atos de disposio do prprio corpo

    A autonomia existencial nos atos de disposio do prprio corpo

    The existential autonomy in the acts of disposition of the own body

    Maria Celina Bodin de Moraes*

    Thamis Dalsenter Viveiros de Castro**

    The body is a big sagacity, a plurality with one sense,

    a war and a peace, a flock and a shepherd.

    F. Nietzsche.

    Resumo

    A autodeterminao corporal uma espcie de autonomia existencial que se expressa na liberdade de disposio sobre o corpo ou partes dele. O legislador codicista de 2002, porm, acaba por adotar uma posio paternalista, diametralmente oposta posio personalista, compatvel com a Constituio. Liberdade, integridade, igualdade e solidariedade, os substratos materiais da dignidade humana, so, portanto, as fronteiras da autonomia corporal, dando fundamentos e limites s concretas disposies sobre o prprio corpo.

    Palavras-chave: Dignidade humana. Autonomia existencial. Modificaes corporais.

    * Professora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ e professora associada do Departamento de Direito da PUC-Rio. Rio de Janeiro RJ Brasil. E-mail: [email protected]

    ** Doutoranda em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Possui mestrado em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio (2009), graduao em Direito pela Faculdade de Direito Evandro Lins e Silva - IBMEC (2006).

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    Abstract

    Body self-determination is an existential autonomy genre that is expressed in the freedom to dispose of the body or on parts of it. The Civil Code of 2002, however, ends up adopting a paternalistic position diametrically opposed to the position classified as personalistic and compatible with the Constitution. Freedom, integrity, equality and solidarity, the material substrates of human dignity are, therefore, the boundaries of bodily autonomy, giving reasons and limits to personal decisions about body modifications.

    Keywords: Human dignity. Personal autonomy. Body modification.

    Introduo

    De quem o corpo? Da pessoa interessada, dos familiares que a cercam, de um Deus que lhe h doado, de uma natureza que o quer inviolvel, de um poder social que de mil formas dele se apossa, de um mdico ou de um magistrado que estabelecem o seu destino? (RODOT, 2006, p. 73). Tal indagao fruto de um grande desconforto porque corpo e pessoa, apesar de sua ntima vinculao, tornaram-se termos cujos contedos, tanto concreta como juridicamente, distanciam-se cada vez mais.

    Trata-se, todavia, de uma realidade complexa, para a qual confluem fatores diversos. A passagem do sculo XIX para o sculo XX foi o palco das profundas mudanas que alteraram definitivamente as concepes sobre a pessoa. Surgiu da a figura do corpo-sujeito, ou seja, de um corpo animado, unidade indissocivel entre o fsico e o psquico, entre o esprito e a carne. Antes de tudo, um corpo que , a um s tempo, ponto de partida e de chegada de um viver singular.

    A perspectiva deu ensejo a um contexto jurdico de grandes indefinies. Considerando que o viver singular pressupe o corpo como um espao de liberdade, no Direito que os limites da autonomia corporal formam um dos maiores dilemas jurdicos contemporneos. De fato, a libertao do corpo animado um passo avanado no caminho

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    que vem sendo trilhado pelo Direito desde que a proteo da pessoa se tornou, no ltimo quartel do sculo passado, o fundamento de todo o sistema jurdico.

    De outro lado, o corpo foi investido de uma extraordinria dimenso poltico-econmica, a partir da qual as subjetividades foram disciplinadas por um biopoder, a fim de construir e manter corpos dceis e teis aos imperativos do capital. Nesse cenrio, de novos poderes, mudam tambm as verdades e as formas jurdicas. Como observou Foucault, o poder tomou posse da vida e, a partir da, o Direito deixou de ser o poder de fazer morrer e passou a ser o de fazer viver1.

    No lugar antes ocupado exclusivamente pelo Direito Penal, quando o poder esteve focado no fazer morrer, emerge o Direito Civil como instrumental jurdico ideal de controle dos modos de fazer viver. O biopoder sustentado juridicamente por uma intensa produo normativa que visa regulao de todas as etapas do desenvolvimento pessoal nas sociedades de controle.

    A permanente regulamentao dos modos de fazer viver, ou da disciplina do cuidado de si, entra em confronto com o livre desenvolvimento da personalidade, constituindo uma complexa relao entre as intervenes jurdicas protetivas e as restritivas. Das falsas dicotomias entre vida, liberdade e dignidade, surge, nesse terreno incerto, o corpo como foco de inmeras interdies jurdicas pelas quais o desenvolvimento pessoal se distancia de um projeto de realizao das escolhas de vida para se tornar um viver de submisso.

    1 A anlise foucaultiana alerta que essas transformaes resultaram na alterao do tradicional direito do soberano, que o de fazer morrer [quem desobedece] e deixar viver [quem lhe apraz], por outro regime, cujas bases esto fixadas no poder de fazer viver e deixar morrer. Basicamente, o corpo deixa de ser o foco de suplcios penais, pelo que a morte se atrelava ao espetculo do sofrimento da carne, e passa a ser o feixe de um poder, dito biopoder, centrado no cuidado do corpo e na disciplina. Num segundo momento, assume a forma de biopoltica, na qual o enfoque deixa de ser o corpo-indivduo e passa a ser o corpo-espcie. Surgem a partir da diversos novos saberes incumbidos de produzir verdades e discursos que atendam a tal interesse, permitindo a continuidade dessa biopoltica, tais como a demografia, a anlise genealgica, o estudo geracional, a medicina social etc. (FOUCAULT, 2002, p. 286 e segs.).

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    O captulo sobre os direitos da personalidade do Cdigo Civil de 2002, alm de no dispor de uma clusula geral, contm tantas medidas restritivas que mais parece cuidar de deveres do que de direitos. A propsito, considerou-se um srio limite do legislador no ter distinguido entre titularidade e exerccio, inscrevendo neste o que atributo daquela. Assim procedeu ao dizer, no art. 11, que o exerccio dos direitos de personalidade no pode sofrer limitao voluntria, quando operou radical inverso, submetendo a pessoa aos direitos, ao invs de p-los a servio dela (VILLELA, 2003, p. 57). Ignorou a multimilenar advertncia de Hermogeniano, segundo a qual todo direito constitui-se em benefcio dos homens2.

    Hiptese ainda mais extremada encontra-se no expresso teor do art. 15: Ningum pode ser constrangido, com risco de vida, a tratamento mdico ou a interveno cirrgica. A propsito, Villela (2003, p. 59) sustenta:

    O Cdigo Civil brasileiro, na contramo das tendncias autonomistas do direito moderno, afirma a legitimidade da interveno compulsria sobre o corpo e restringe o exerccio da liberdade pessoal. [...] O Cdigo faz da vida matria de dever. Um dever a que nenhum ser humano pode subtrair-se e que estaria acima de qualquer potestade criada. Ter nisso razo?

    Para alm das interpretaes que podem ser dadas aos dispositivos, no mbito dessa tenso entre liberdades e restries que se insere a anlise a ser desenvolvida.

    1 Sujeito e intersubjetividade

    Afirma-se que a autonomia s pode ser compreendida se inserida dentro de uma perspectiva relacional entre subjetividade e intersubjetividade. Sua funo no mais se dirige segurana de

    2 D. I, 5, 1: Hominum causa ius constitutum est, crtica feita tambm por Villela (2003), ivi.

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    uma vontade individual exercida indiscriminadamente3. A autonomia, atualmente, cumpre o papel de guiar as relaes sociais de tal modo que o reconhecimento recproco da condio de sujeitos torne possvel que a sociedade goze democraticamente de esferas autnomas de desenvolvimento pessoal.

    Dessa dimenso intersubjetiva da liberdade, depreende-se a relevncia da solidariedade como elemento capaz de realocar o indivduo no centro do ordenamento jurdico sem, contudo, retomar os passos anteriores que conduziram ao estatuto do indivduo patrimonial (FACHIN, 2000). A solidariedade concebida sob duplo vis. O primeiro, da solidariedade objetiva, encontra razo e fundamento na coexistncia; enquanto o segundo, da solidariedade como valor, refere-se diretamente lgica da reciprocidade, ou seja, de respeito esfera jurdica alheia do mesmo modo que se respeita a prpria, em considerao ao sentido de igualdade formal e material (SARMENTO, 2001).

    Sobre a solidariedade em equilbrio com a liberdade para possibilitar a coexistncia, ressalta-se a atualidade da perspectiva rousseauniana sobre o amor prprio, o amor de si e a piti. Essa ponderao faz com que, em associao, no seja inevitvel que o amor prprio tome a posio do amor de si. a piti, literalmente pena, que deve ser interpretada como a averso (repulsa) natural que todo indivduo no patolgico traz em si ao ver outro ser sensvel em sofrimento. Esse o freio do instinto de conservao. Quer dizer, essa a chave para que no haja um estado de luta de todos contra todos, pois o outro adquire relevncia para o eu. A pena, melhor traduzida por compaixo, capaz, portanto, de conduzir a uma coexistncia saudvel, pautada pela reciprocidade e pelo reconhecimento do outro como o de um (ROUSSEAU, 1999).

    Decorre da que a as constituies solidaristas do ps-guerra inovaram na tutela das necessidades existenciais, conferindo garantias

    3 Na sntese de Perlingieri (2008), a autonomia privada era vista como autodeterminao, autorregulamentao e poder da vontade. Entretanto, esclarece o autor, por trs do fascnio dessa frmula estava o liberalismo econmico e a traduo em regras jurdicas das foras mercantis.

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    frente ao Estado e aos demais membros da sociedade, sob a rubrica das inviolveis liberdades fundamentais, tais como a liberdade de expresso, a liberdades de crena, as liberdades civis, as liberdades polticas, dentre outras4, ao mesmo tempo em que determinaram a solidariedade como cdigo imperativo das relaes patrimoniais (PERLINGIERI, 1997).

    No plano jurdico nacional, a referida tendncia foi consolidada na Constituio Federal de 1988, consoante os moldes constitucionais contemporneos de absoro dos valores. Concebida sob os anseios de uma sociedade que ento se abria para a transio democrtica, a Carta Constitucional deu incio a uma nova era humanitria, assumindo o compromisso expresso de realizao e efetivao da igualdade e liberdade, sendo esta to cara diante do regime poltico ditatorial anterior.

    Assim, a dignidade da pessoa humana foi assentada na Magna Carta com status de um dos fundamentos da Repblica, ao lado da cidadania, da soberania, do pluralismo poltico e dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Nesse contexto, a dignidade configura-se como clusula geral de tutela e promoo da personalidade, geradora de deveres positivos e negativos, a qual pressupe que a pessoa seja concebida a partir de uma reflexo multidisciplinar. Isto , a dignidade, no papel de princpio unificador do ordenamento jurdico, impe que o olhar dirigido pessoa seja capaz de englobar a integralidade do indivduo, levando-se em conta o contexto social, econmico, cultural e as necessidades fsicas e psquicas de cada sujeito.

    De acordo com essa perspectiva, a transformao da dignidade humana em superprincpio5 revelou a insuficincia de alguns dos

    4 Esto previstas, por exemplo, no amplo rol de garantias do art. 5, caput e seus incisos, da Constituio Federal de 1988.

    5 Sobre a classificao como superprincpio, Flvia Piovesan (2010a, p. 54 e segs.) aduz que a dignidade da pessoa humana, [...] est erigida como princpio matriz da Constituio, imprimindo-lhe unidade de sentido, condicionando a interpretao das suas normas e revelando-se, ao lado dos Direitos e Garantias Fundamentais, como cnone constitucional que incorpora as exigncias de justia e dos valores ticos, conferindo suporte axiolgico a todo o sistema jurdico brasileiro. [...]. no valor da dignidade da pessoa humana que a ordem jurdica encontra seu prprio sentido, sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada, na tarefa de interpretao normativa. Consagra-se, assim, a dignidade da pessoa humana como verdadeiro superprincpio a orientar o Direito Internacional e o Interno.

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    institutos clssicos do direito privado tradicional, de modo que o conceito de autonomia privada deve ser reformulado para que a fora normativa do princpio constitucional incida tambm sobre as relaes jurdicas subjetivas que se desenvolvem no mbito privado.

    Isso porque a produo jurdica dos sculos XVIII e XIX erigiu a patrimonialidade como valor em si, assegurando autonomia privada patrimonial o lugar de princpio fundamental em um sistema no qual a personalidade era tomada apenas como atributo do indivduo patrimonial. Fundada no ideal liberal burgus, a concepo tradicional de autonomia privada funcionava como instituto capaz de garantir juridicamente um sistema econmico de circulao de bens e acumulao de riquezas a salvo das ingerncias estatais.

    A autonomia operava por meio da dicotomia entre o direito pblico garantia de uma administrao que operava sob reserva de interveno e o direito privado sistema em que [...] a liberdade do sujeito consistiria justamente em reconhecer sua vontade o poder de regular situaes jurdicas especialmente patrimoniais: ela se torna liberdade econmica que postula a economia de mercado e a livre concorrncia (PERLINGIERI, 2008, p. 339). Reduzida funo de garantia da liberdade negocial, a noo de autonomia esteve, assim, alicerada na concepo jurdica da personalidade como atributo do sujeito de direito capaz de realizar livremente negcios jurdicos.

    Tomada unicamente sob o vis patrimonial, o exerccio da autonomia dava-se em razo e na medida da capacidade de movimentao econmica dos sujeitos, de modo a assegurar a base jurdica requerida pelo modelo de produo capitalista. categoria dos proprietrios era reconhecida a vontade como poder absoluto sobre as relaes patrimoniais, ao mesmo tempo em que se tornava possvel a venda da fora de trabalho daqueles que no gozavam da propriedade

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    tradicional, mas que possuam autonomia para negociar o direito sobre si6.

    Tratava-se, pois, de uma liberdade ligada no ideia de pessoa concretamente identificada, mas to somente construo abstrata capaz de definir a todos como sujeitos de direito e, por conseguinte, formalmente livres e igualmente possuidores de direitos e deveres. Esse quadro jurdico desprezou a pessoa em sua essncia, assegurando somente a dimenso externa, os atributos necessrios para o exerccio de um papel social previamente definido. Assim, a personalidade jurdica buscava qualificar o sujeito de acordo com as categorias jurdicas que legitimavam a capacidade e a vontade.

    O Direito tornou-se cego para as singularidades que tornam o sujeito nico em sua existncia, a pretexto de combater qualquer tipo de tratamento desigual. Consoante a dinmica de igualdade formal que orientou a produo jurdica burguesa, a personalidade, tomada apenas como atributo e no como valor em si mesmo, representava o ideal do projeto emancipatrio da racionalidade iluminista. Cumpre salientar, dentre as variadas vertentes do insucesso desse projeto moderno, a inapetncia da concepo jurdica da pessoa elaborada unicamente sobre as dimenses da igualdade formal e abstrata e da liberdade irrestrita. Como bem se observou, o discurso predominante na construo do direito privado moderno culminou na racionalidade que fez a dignidade da pessoa ser sobrepujada pelo patrimonialismo e pelo conceitualismo (FACHIN; PIANOVSKY, 2008).

    Nos termos colocados, o sujeito no era considerado em sua singularidade, mas, ao contrrio, era igualado na letra da lei, de tal forma que as variveis que o tornavam singular eram desconhecidas

    6 O direito sobre si mesmo ou a propriedade originria, nas palavras de Adam Smith (apud PRATA, 1982, p. 9): A propriedade que cada homem tem no seu prprio trabalho a fonte original de toda outra propriedade, e por isso mais sagrada e inviolvel. O patrimnio de um homem pobre consiste na fora e destreza das suas mos; e impedi-lo de aplicar a sua fora e destreza da maneira que ele acha mais apropriada, sem leso do seu vizinho, uma pura violao desta mais sagrada propriedade. uma intromisso na justa liberdade quer do trabalhador quer daqueles que poderia estar dispostos a empreg-lo.

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    e ignoradas pelo Direito. O exerccio autnomo da personalidade estabelecia, nesse sentido, que ser pessoa significava to somente subsumir a existncia norma, adequando-se s diretrizes estabelecidas pela ordem jurdica. E dentro do ideal jurdico burgus, marcadamente patrimonialista, o sujeito juridicamente reconhecido era aquele livre para vender, contratar, comprar e suceder, e no aquele livre para existir de acordo com a dignidade inerente a todos os homens.

    Tal esquema desaguou em uma realidade de hiperindividualismo, pois a autonomia da vontade, concebida como cdigo operativo da modernidade, tornou-se algoz da emancipao subjetiva, reificando o sujeito universal moderno nas relaes intersubjetivas. O sujeito de direito no foi capaz de reconhecer o outro em condio de reciprocidade; em vez disso, assumiu uma postura predatria que lhe era assegurada juridicamente pela abstrao formal da lei burguesa, na qual os valores tutelados passavam ao longe dos laos sociais de solidariedade e fraternidade, restringindo-se vontade como alicerce de uma ordem social composta, pretensamente, de homens livres e iguais.

    Considerando que o sujeito racional solitrio est morto (CITTADINO, 2004), vo sendo enterrados aos poucos alguns dos mais importantes postulados que se consagraram como expresses jurdicas do racionalismo moderno, quais sejam: o individualismo, o patrimonialismo e a abstrao (FACHIN, 2000). Assim, as transformaes jurdicas ocorridas no curso do sculo XX impuseram a releitura da clssica autonomia para vincul-la definitivamente noo de proteo integral da dignidade da pessoa humana.

    2 A dignidade humana em concreto

    As variadas dificuldades encontradas para estabelecer os contornos atuais dos direitos da personalidade, em especial do direito ao prprio corpo, no ordenamento jurdico brasileiro decorrem, principalmente, da substancial alterao sofrida pelo conceito de autonomia privada. Consolidada pela produo jurdica liberal germnica dos sculos XVIII

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    e XIX, a autonomia, elaborada segundo a noo de liberdade individual absoluta de cunho patrimonialista, no encontra espao no Direito Civil contemporneo. Dentre os muitos motivos de sua atual inadequao, destaca-se a influncia da dignidade da pessoa humana como novo paradigma jurdico, a orientar, como notrio, tambm as relaes no mbito privado (PERLINGIERI, 1997).

    Embora seja relativamente recente seu reconhecimento como princpio jurdico, a noo de dignidade humana como valor inerente de cada indivduo tem origem no ristianismo (BODIN DE MORAES, 2010), de acordo com o postulado de que todos os seres humanos foram criados imagem e semelhana de Deus. Contudo, foram os processos de racionalizao e dessacralizao ocorridos durante os sculos XVII e XVIII que possibilitaram a construo kantiana de dignidade fundamentada na autonomia tica do ser humano. (SARLET, 2005). Tratou-se, ento, de uma autonomia limitada no s pela proibio externa de coisificao da pessoa, mas tambm pela determinao de que o prprio homem no pode tratar a si mesmo como objeto.

    A dignidade humana estaria, assim, imune s aes de terceiros, bem como de seu titular, de modo que o reconhecimento recproco da condio de sujeito possa impor um agir considerado racionalmente como regra universal. Os postulados kantianos consolidaram-se com a transformao da dignidade em valor jurdico fundamental e em novo paradigma de tutela da pessoa humana, em virtude das graves crises econmicas que mitigaram a poltica liberal de no intervencionismo estatal e, principalmente, em razo dos esforos internacionais empreendidos para superao das consequncias nefastas das guerras mundiais do sculo XX.

    A era hitlerista, lembrada precipuamente pelas atrocidades, torturas e experimentos com seres humanos cometidos durante o regime nazista, que resultaram no extermnio de milhes de pessoas, estabeleceu-se como o nadir das violaes aos direitos humanos. Ao cenrio mundial do ps-guerra foram impostas, atravs da mobilizao da comunidade internacional, as tarefas de construo de institutos de

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    proteo dos direitos humanos e de criao de sistemas referenciais de proteo da pessoa, buscando neutralizar as razes daquele terrvel legado (PIOVESAN, 2000b). Como se sabe, o prprio conceito contemporneo de direitos humanos um fenmeno do ps-guerra. Seu desenvolvimento atribudo s violaes ocorridas na poca e crena de que parte delas poderia ter sido prevenida se um efetivo sistema de proteo internacional j existisse, o que motivou a mobilizao em torno da incipiente Sociedade das Naes e de sua transformao na atual Organizao das Naes Unidas.

    Surgiram, assim, vrios instrumentos de proteo, tanto multilaterais como regionais, que acabaram por assentar o carter universal da dignidade7. Uma das mais emblemticas declaraes de direitos humanos, a Declarao Universal da ONU de 1948, consigna em seu artigo 1 que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razo e conscincia, devem agir uns para com os outros em esprito e fraternidade. E desde ento, a ideia de dignidade, inerente ao ser humano, est presente em grande parte dos diplomas, tratados e convenes8, assim como em quase todos os textos constitucionais dos Estados democrticos.

    7 Canotilho (1997) observa que em face das experincias histricas de violao da natureza prpria de pessoa, como ocorre nos regimes totalitrios, que a dignidade da pessoa humana ganha sentido republicano, ou seja, impe que o sujeito seja reconhecido como limite e fundamento da Repblica. Alm disso, o princpio da dignidade permite assentar a ideia de pluralismo, atravs de uma configurao constitucional inclusiva, da qual se extrai a harmonia entre o indivduo e a coletividade atravs do respeito diversidade multicultural.

    8 Com o mesmo intuito protetivo, houve inmeras tentativas de regulao tica e jurdica acerca dos limites do progresso cientfico da biomedicina e da biotecnologia que se desdobraram em diversos diplomas contemporneos sob essa influncia. Por exemplo, as Diretrizes ticas Internacionais para Pesquisas Biomdicas Envolvendo Seres Humanos, do Conselho para Organizaes Internacionais de Cincias Mdicas, de 1982; e a Conveno para a Proteo dos Direitos Humanos e da Dignidade do Ser Humano com respeito s Aplicaes da Biologia e da Medicina: Conveno sobre Direitos Humanos e Biomedicina do Conselho da Europa, de 1997. Merecem destaque, ainda, a Declarao Ibero-Latino-Americana sobre tica e Gentica (Declarao de Manzanillo de 1996, revisada em 1998); a Declarao Universal da UNESCO sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, de 1997; as Resolues n. 196/96 e 303/00 do Conselho Nacional de Sade, alm da Lei de Biossegurana, n. 11.105 de 2005 e suas diretrizes que englobam desde a questo dos transgnicos at a regulamentao das tcnicas de reproduo assistida.

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    Tais elaboraes foram incorporadas teoria jurdica atravs das diretrizes adotadas pela Teoria Constitucional, que, aps a Segunda Guerra Mundial, inaugurou a construo principiolgica como um dos braos fortes de um modelo de Estado Democrtico de Direito9 alicerado nos direitos fundamentais. Assim, dentro do novo contexto de estima aos princpios, a dignidade da pessoa humana, antes restrita a indagaes de natureza tico-filosfica, passa a ocupar o papel central no debate jurdico contemporneo, que se concretiza sempre que o Estado o assume como compromisso fundamental (QUEIROZ, 2006).

    Consequentemente, grandes esforos foram empenhados para conferir um contedo concreto dignidade, assim como para delimitar seus limites e sua aplicabilidade. Sobre a fixao conceitual, contudo, o nico consenso alcanado se faz acerca de sua natureza aberta. Isso porque a dignidade se estabelece, alm de por todos os campos do Direito, por todos os mbitos da vida. Ela informa a ordem jurdica como um todo e, assim, qualquer tentativa positiva de conceituao da dignidade no alcana a pretenso de exaurir as suas possibilidades.

    H casos em que a dignidade explicitamente desrespeitada, como o registro histrico dos regimes totalitrios permite afirmar, sendo o crime de tortura, de escravido e semelhantes seus mais notrios e frequentes exemplos. Essa relativa facilidade para categorizar condutas que ferem a noo de ser humano, como a medida de todas as coisas, no abarca, contudo, todas as hipteses de observncia do princpio.

    Assim, verificar e avaliar a violao em situaes tnues ou porque efetivamente veladas ou porque demandam um juzo por demais subjetivo torna-se possvel a partir da revelao de seus contornos

    9 Sobre o modelo adotado, afirma-se: o Estado Democrtico de Direito, tem a caracterstica de ultrapassar no s a formulao do Estado Liberal de Direito, como tambm a do Estado Social de Direito vinculado ao Welfare State neocapitalista impondo ordem jurdica e atividade estatal um contedo utpico de transformao da realidade. O Estado Democrtico de Direito, ao lado do ncleo liberal agregado questo social, tem como questo fundamental a incorporao efetiva da questo da igualdade como um contedo prprio a ser buscado garantir atravs do asseguramento mnimo de condies mnimas de vida ao cidado e comunidade (STRECK, 2004, p. 37).

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    e nuances, se observadas e consideradas no plano concreto, e no a partir da abstrao conceitual da norma jurdica. Portanto, a definio de dignidade encontra obstculos de diversas naturezas e nos mais variados campos do conhecimento, e algumas das maiores dificuldades decorrem principalmente da polissemia e da porosidade do conceito.

    Na tarefa de tentar extrair algum contedo material da dignidade, buscou-se analisar o conceito de Kant (2001, p.), relativo moral, cuja essncia podia ser decomposta em nos seguintes postulados:

    o sujeito moral reconhece a existncia dos outros como sujeitos iguais a ele, merecedores do mesmo respeito integridade psicofsica de que ele titular; dotado da vontade livre e parte do grupo social, em relao ao qual tem a garantia de no vir a ser marginalizado.

    A partir da, pareceu possvel fornecer um esquema terico segundo o qual o substrato material da dignidade se desdobra nos princpios jurdicos correspondentes, isto , na igualdade, na integridade psicofsica, na liberdade e na solidariedade (BODIN DE MORAES, 2010c).

    Desta forma, a dignidade transforma-se em uma espcie de superprincpio10 a impor proteo plena da pessoa, em todos os seus aspectos, aplicada sempre em concreto. A sua real emancipao no mais ocorre atravs da garantia de uma liberdade formal de declarar vontade, mas atravs do que se convencionou chamar de livre desenvolvimento da personalidade (SARLET, 2006). Sob esse novo paradigma, de se destacar que no mais se considera a liberdade em abstrato: toda autonomia construda a partir da sociedade em

    10 Salienta-se que Canotilho (1997, p. 1118) estabelece uma tipologia dos princpios, a saber: os fundamentais, que so historicamente objetivados e progressivamente incorporados na experincia jurdica, cuja recepo se faa expressa ou implicitamente no texto constitucional; h os princpios polticos constitucionalmente conformadores, dos quais se pode inferir as valoraes polticas fundamentais do legislador constituinte; h tambm os princpios constitucionais impositivos, que determinam ao Estado os objetivos que deva perseguir; e finalmente h os princpios-garantia, que tem por objetivo estabelecer de forma direta uma garantia aos cidados.

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    que se vive11, no mbito da qual a pessoa elabora a sua identidade, na inelutvel convivncia com o outro (BODIN DE MORAES, 2010).

    3 Da autonomia patrimonial autonomia existencial

    O Cdigo Civil de 1916, como no poderia deixar de ser, reproduziu o ideal do liberalismo burgus, privilegiando em suas disposies a proteo das relaes jurdicas patrimoniais, com particular destaque para as questes relativas propriedade privada e aos atos de autonomia privada, restando a pessoa humana em posio externa ao objeto de tutela do direito privado, como ento devia ser. Tratava-se, portanto, do mesmo sujeito patrimonial, assistido nos limites de sua capacidade para ter e deixado em paz pelo legislador em sua potencialidade para ser.

    Tal antropologia jurdica, ou ideologia, que pode tambm ser definida em termos de um individualismo possessivo12 (MACPHERSON, 1975) foi substituda em tempos recentes por uma nova antropologia, consequente recepo dos valores constitucionais contemporneos pela cultura jurdica civilista, antropologia que incide sobre o princpio da igualdade de modo especialmente transformador: de fato, a dignidade humana no depende das circunstncias externas, a partir de papis sociais ocupados pelos indivduos, mas um valor inerente ao ser humano como tal. (MENGONI, 1985, p. 123).

    A opo constituinte de alar a dignidade humana ao posto de fundamento da Repblica, consoante art. 1, III, da Constituio de 1998, promoveu a inflexo axiolgica que estabeleceu a prevalncia das situaes existenciais sobre as patrimoniais. No que tange s situaes pessoais, portanto, como aquelas que se referem vida privada do sujeito (liberdade de crena, de associao, de profisso, de pensamento, dentre outras), considera-se haver uma proteo constitucional reforada, porque, sob o prisma da Constituio, esses

    11 A autonomia seria, assim, o espao de indeterminao que permite a inventividade, a criatividade das personae que actuam na cena jurdico poltica (CANOTILHO, 1995, p. 51).

    12 A noo de individualismo possessivo foi definida como a noo de que o homem homem apenas na medida em que o prprio proprietrio; sua humanidade depende de sua liberdade de estabelecer relaes contratuais com os outros com base em seu prprio interesse.

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    direitos so indispensveis para a vida humana digna. Significa dizer que as aes humanas que envolvem escolhas de carter existencial so protegidas de modo mais intenso pela ordem constitucional.

    Ser lcito afirmar, assim, que a pessoa foi definida a partir do texto constitucional democrtico como o vrtice da pirmide normativa, da qual decorre que todo e qualquer campo do Direito, pblico ou privado, patrimonial ou extrapatrimonial, dever ser funcionalizado para que seja atingida a finalidade de proteo e promoo da pessoa humana, considerada sob a perspectiva da coexistncia, e no s da existncia (FACHIN; PIANOVSKY, 2008).

    Conclui-se da que o direito privado no poderia continuar imune s mutaes que definiram as novas funes do Direito. E as adequaes foram se apresentando, paulatinamente, principalmente a partir da repersonalizao ou despatrimonializao, uma tendncia que coloca o personalismo como superao do individualismo que orientou a produo jurdica liberal, em equilbrio com o patrimonialismo, rompendo com a posio de supremacia antes ocupada por este.

    Cumpre ressaltar que despatrimonializar no significa esvaziar a carga valorativa da tutela dos interesses patrimoniais, mas sim funcionaliz-la de modo que sejam asseguradas as condies materiais para o desenvolvimento da personalidade. O perfeito equilbrio dessa nova equao depende de uma troca essencial de papis: a patrimonialidade deixa de ser um valor em si mesmo, passando a ser um instrumento para a realizao dos interesses pessoais e sociais, de tal maneira que o personalismo assume o lugar de valor fundamental de todo o ordenamento jurdico (PERLINGIERI, 1997)13.

    13 De acordo com a perspectiva anunciada, merece destaque o voto do Ministro Eros Grau quando defendeu a constitucionalidade da lei capixaba que institua a meia-entrada para doadores de sangue, em eventos desportivos, e de cultura e lazer que ocorressem em locais pblicos, da administrao direta e indireta. Assim se pronunciou o Ministro: V-se, para logo, que se no pode reduzir a livre iniciativa, qual consagrada no artigo 1, IV do texto constitucional, meramente feio que assume como liberdade econmica ou liberdade de iniciativa econmica [...] o contedo da livre iniciativa bem mais amplo [...] ela a expresso da liberdade titulada no apenas pela empresa, mas tambm pelo trabalho [...] a atuao Estatal no campo da atividade econmica pode se dar por induo no sentido de [...] levar os seus destinatrios a uma opo econmica de interesse coletivo e social que transcende os limites do querer individual [...] (ADI 3512. Rel. Min. Eros Grau. Julg. 15.02.2006).

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    Diante da nova hierarquia de valores, operou-se, portanto, uma transformao radical na dogmtica do direito civil, estabelecendo uma dicotomia essencial entre as relaes jurdicas existenciais e as relaes jurdicas patrimoniais (TEPEDINO, 2003-2004). Essa nova divisio representa, por sua vez, o antdoto para a antiga diviso entre o pblico e o privado: a necessidade de disciplinas diferenciadas em relao tutela das liberdades, segundo seu campo de incidncia, que sejam capazes de promover a existncia ao mesmo tempo em que garantem a coexistncia.

    Diante disso, a autonomia privada no se identifica com a iniciativa econmica nem com a autonomia contratual em sentido estrito: o contrato, como negcio patrimonial, no exaure a rea de relevncia da liberdade dos particulares (mas melhor a esse ponto dizer: a liberdade da pessoa). Ao contrrio, no somente ela se exprime tambm em matrias nas quais diretamente so envolvidas situaes subjetivas existenciais, mas, sobretudo, a abordagem do ordenamento no pode ser abstrata quando a autonomia (o poder de estipular regras) investe profundamente o valor da pessoa (PERLINGIERI, 1997).

    A autonomia patrimonial compreendida, dessa forma, como ato de iniciativa de ao menos uma das partes interessadas na negociao. Realizao no apenas de direitos subjetivos, mas tambm de deveres de solidariedade e, s vezes, de obrigaes legais de contratao (PERLINGIERI, 2008, p. 347), e permeada pelo carter hoje fundamental da interveno estatal, assentado, pois, nos ditames constitucionais de uma ordem jurdica solidarista.

    A autonomia privada existencial, por sua vez, seria o instrumento da liberdade que incide precisamente mas no exclusivamente nas situaes jurdicas subjetivas situadas na esfera extrapatrimonial. Do ponto de vista da garantia constitucional, portanto, o contedo da liberdade individual, no que se refere s decises pessoais, um espao, uma possibilidade de escolha que pode se expressar de modos variados: liberdade tanto a possibilidade de realizar tudo o que no proibido como a exigncia de no interveno na vida privada do

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    indivduo, ou ainda a possibilidade de autodeterminao ou obedincia a si mesmo (isto , ao prprio regulamento). A possibilidade de escolha precisa ser assegurada, seu contedo que deve ser escolhido pelo indivduo. como se tratasse de um espao vazio que a lei precisa garantir para que possa vir a ser preenchido individualmente (BODIN DE MORAES, 2010a).

    Mas para que seja possvel afirmar tutelas diferenciadas de acordo com a natureza da relao jurdica, preciso estabelecer quais critrios podem ser utilizados para distinguir a patrimonialidade da existencialidade. Tais fronteiras, porm, no so de fcil definio. Todavia, foi efetivada a opo, neste trabalho, por elencar os aspectos principais que, mesmo sem satisfazer complexidade da questo em si, servem aos propsitos caracterizadores da autodeterminao corporal.

    Ao contrrio do que a terminologia pode sugerir, no h linhas que inscrevam definitivamente situaes jurdicas subjetivas somente no campo existencial ou no patrimonial, fazendo jus somente s nomenclaturas adotadas. Essa dificuldade em encerrar a natureza das situaes jurdicas subjetivas, longe de determinar a insuficincia de um esquema diferenciado de proteo, aponta para o rompimento da concepo prioritariamente patrimonialista das relaes privadas. Em outras palavras, preciso buscar na natureza das situaes subjetivas qual dimenso preponderante, de maneira que a configurao de funes existenciais justifique uma incidncia normativa capaz de limitar a autonomia com objetivo de tornar concreta a dignidade.

    O problema maior do Direito na atualidade tem sido exatamente estabelecer um compromisso aceitvel entre os valores fundamentais comuns, capazes de fornecer os enquadramentos ticos nos quais as leis se inspirem, e espaos de liberdade, os mais amplos possveis, de modo a permitir a cada um a escolha de seus atos e o direcionamento de sua vida particular, de sua trajetria individual.

    A autonomia privada existencial, especificamente a autonomia corporal, constitui um elemento novo e central para a configurao jurdica das biopolticas e da disciplina, de modo que o papel outrora

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    ocupado pela vigilncia constante passa a ter expressa representao no campo da regulao civil da vida em seu aspecto originariamente mais privado, qual seja, o corpo e, ainda mais, os genes.

    Isso porque a configurao atual da privacidade relaciona-se com a esfera privada de diversas formas, ecoando na intimidade, na individualidade e na liberdade, representando muito mais do que o clssico direito a estar s, expresso jurdica tipicamente liberal, com vistas individualizao do indivduo em sociedade. A privacidade, atualmente, diz respeito s escolhas de vida feitas pela pessoa e, nesse sentido, torna-se alvo dos quadros jurdicos estabelecidos por outros, donos do poder. Com isso, a autonomia do indivduo para definir as bases do caminho a ser trilhado em sua vida deixa de ser fruto da construo voluntria do sujeito.

    4 A autodeterminao corporal entre restries e liberdades

    A autonomia corporal, entendida como a capacidade de autodeterminao da pessoa em relao ao prprio corpo, est inserida na seara da existencialidade ou extrapatrimonialidade, ou seja, espcie do gnero autonomia existencial antes descrito. Contudo, ela compe o terreno de atuao concreta da liberdade, que se exprime, originariamente, na esfera de seu titular, no sendo parte necessria de uma relao entre sujeitos, mas sim do sujeito sobre si mesmo.

    At ento, somente o Cdigo Penal abordava o corpo como bem jurdico singular, posto a salvo somente de determinadas prticas criminosas lesivas integridade fsica. A teoria civilista oitocentista conhecia apenas o sujeito abstrato, cujo corpo era ignorado em sua singularidade. Todavia, tal realidade foi profundamente alterada pelo movimento de repersonalizao do Direito Civil, que tem na pessoa o ncleo central de todas as preocupaes do Direito (FACHIN; PIANOVSKI, 2008), em decorrncia da consagrao da dignidade humana como paradigma jurdico, a orientar tambm as relaes no mbito privado.

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    Assim, o corpo passa a figurar no direito privado de forma completamente distinta: de um lado, um corpo que no poder ser maculado por terceiros, sob pena de reparao dos danos sofridos; de outro, passa a ser protegido, inclusive, das investidas lesivas de seu titular. Isso significa que a integridade psicofsica passa a ser objeto de tutela civil, e no apenas penal, de modo que, se a autoleso no pode sofrer a penalizao dever, por seu turno, ser condicionada aos imperativos protetivos da personalidade na esfera cvel.

    Esse alargamento da tutela sobre o corpo foi consagrado pelos direitos da personalidade, inexistentes no Cdigo Civil de 1916, mas presentes no Cdigo Civil de 2002 como um rol no taxativo de hipteses tutelveis14. Dentre elas, encontra-se a disciplina da disposio sobre o prprio corpo, positivada no artigo 13, nos seguintes termos:

    Art. 13. Salvo por exigncia mdica, defeso o ato de disposio do prprio corpo, quando importar diminuio permanente da integridade fsica, ou contrariar os bons costumes.

    Pargrafo nico. O ato previsto neste artigo ser admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial15.

    Tal postura estatal acaba por deslocar o Direito de uma posio personalista para outra, diametralmente oposta, classificada como paternalista. Nas palavras de Dworkin (2002, p. 156), o paternalismo uma interferncia na liberdade de ao do indivduo, justificada por razes que se referem exclusivamente ao bem-estar, ao benefcio, felicidade, s necessidades, aos interesses ou valores da pessoa coagida. Contudo, o paternalismo gnero do qual decorrem diversas

    14 Mal vale a pena lembrar a previso do Cdigo de 2002 acerca da tutela dos direitos da personalidade, seno para critic-la. Como reconheceu o autor do projeto da parte geral: [...] se abriu um captulo para os direitos da personalidade, estabelecendo-se no uma disciplina completa, mas os seus princpios fundamentais (ALVES, 1999, p. 1).

    15 Enunciado n. 276 do CJF: O artigo 13 do Cdigo Civil, ao permitir a disposio do prprio corpo por exigncia mdica, autoriza as cirurgias de transgenitalizao, em conformidade com os procedimentos estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina, e a consequente alterao do prenome e do sexo no Registro Civil.

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    espcies, como o paternalismo mdico, o paternalismo poltico, o paternalismo benevolente, como expresso da relao entre pais e filhos, e o paternalismo jurdico.

    De modo geral, as diversas modalidades podem ser categorizadas de acordo com o fim a que se destinam: algumas delas querem afastar o sujeito despido de autonomia, temporria ou definitivamente, do mal que possa infringi-lo, enquanto outras tm como objetivo promover o bem que o sujeito no possui os mecanismos para reconhecer como seu melhor interesse (PALMER, 2002).

    A primeira modalidade, tambm classificada como paternalismo fraco, incide nas hipteses em que o mal resulta da falta de escolha ou na falta de conhecimento sobre o potencial lesivo da conduta intentada. exemplo dessa interveno paternalista a ao que visa afastar a ameaa de que uma conduta involuntria resulte em situaes no benficas ao sujeito, como impedir que o viciado em alucingenos se jogue pela janela. Do mesmo modo, o agir paternalista comporta a movimentao que decorre da ignorncia sobre o mal em potencial, como impedir algum de ingerir substncia que ignora ser txica ou venenosa. Abrange ainda a hiptese em que se julga necessrio agir na dvida sobre a voluntariedade ou no da situao, como tirar uma pessoa da frente de um nibus mesmo sem saber se ela deseja levar a vida a termo (PALMER, 2002).

    A segunda modalidade, chamada de paternalismo forte, admite a interveno sobre a conduta quando o mal resulta de uma ao voluntria e informada. Essa espcie de paternalismo est usualmente presente nas hipteses de fraqueza da vontade, quando o sujeito sabe que determinada ao provocar o mal, mas mesmo assim escolhe pratic-la. Ainda que essa escolha seja motivada por razes incontrolveis, o agente possui pleno conhecimento acerca dos males que ela pode acarretar.

    O paternalismo forte tradicionalmente identificado nas polticas pblicas como campanhas de combate ao fumo, leis que probem o fumo em lugares fechados, leis que determinam ndices de consumo

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    alcolico compatveis com a direo de veculos automotivos, leis que restringem o porte de armas, leis que impem a vacinao obrigatria e polticas pblicas que determinam o controle intenso de doenas. Em tais situaes, tem-se uma interveno estatal legitimada, por um lado, pela proteo da esfera jurdica de terceiros, ou seja, o Estado atua proibindo o fumo em lugares fechados para proteger o no fumante dos riscos do fumo passivo, probe a direo da pessoa alcoolizada para no trazer riscos de acidentes na via pblica, o porte de armas pode ser restrito face aos perigos que elas representam para a vida de outras pessoas, a vacinao obrigatria de suma importncia para que doenas contagiosas no acarretem epidemias ou pandemias.

    Por outro lado, esse tipo de atuao estatal visa conscientizao da populao em relao aos efeitos lesivos de tais prticas. Mas essa consequncia buscada de modo residual, vale dizer, o fumante que no pode fumar em recintos fechados acaba fumando menos a criana vacinada no contamina outras crianas e se torna imune doena, o motorista que no pode dirigir alcoolizado no coloca a vida de outras pessoas nem a sua em risco. De modo geral, portanto, so condutas que causam riscos ao indivduo e sociedade.

    Frequentemente, as hipteses que ensejam o paternalismo forte so chamadas de atos acrticos, ou seja, prticas paradoxais em relao racionalidade. So movimentos voluntrios que o sujeito opta por executar mesmo consciente dos males que podem ocorrer, a exemplo do fumante que, mesmo sabendo dos prejuzos causados pelo tabagismo, continua a fumar. Do mesmo modo, os excessos no hbito de beber e comer acarretam consequncias nefastas que so consideradas pelos sujeitos, mas no afastadas, de modo que se tornam menores diante do prazer que tais prticas podem proporcionar. Embora o sujeito realmente acredite que queira se livrar daquele hbito, porque sabe que faz mal efetiva ou potencialmente sua sade, ele, na realidade, no quer renunciar ao prazer que o fumo, por exemplo, lhe traz.

    Escolhe ento, racionalmente, o que faz mal ao corpo, mas provavelmente bem alma. Sente o que diz o poeta:

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    Fumar a forma disfarada de suspirar. A curto prazo, na realidade, todos praticamos tais atos. Quantas vezes fazemos o que sabemos que no devemos fazer? Nos enchemos de chocolates, comidas engorduradas, pileques? Mas a curto prazo nenhum problema surge. Com o fumante inveterado, o alcolatra, o obeso mrbido isso ocorre numerosas vezes por dia, ao longo de muitos anos, e a cada vez ele pode pensar que deveria fazer diversamente. Como no se dispe, diz-se dependente do cigarro, da bebida ou da comida para viver. (BODIN DE MORAES, 2010a, p.).

    No raro, a dependncia recebe o crdito pela prtica de atos acrticos. A vontade se torna fraca diante de fatores que fogem racionalidade. Assim, justifica-se que o tabagista continue a fumar, porque o cigarro contm substncias que geram dependncia. De maneira idntica, a obesidade mrbida explicada em razo de desequilbrios qumicos que geram a compulso e interditam a vontade.

    Por outra parte, so inmeros os atos ditos irracionais que no derivam de influncias externas que causem dependncia, como o fato de as Testemunhas de Jeov se recusarem a receber uma transfuso de sangue que sabem ser imprescindvel manuteno de suas vidas16, ou ainda as situaes em que o paciente depende da amputao de um

    16 As Testemunhas de Jeov recusam a transfuso de sangue com base numa interpretao das passagens bblicas em que a hemoterapia seria proibida pelas Leis Divinas, sendo que a utilizao dos hemoderivados j consentida. Contudo, no raro os Tribunais se pronunciam sobre o conflito entre o direito vida e o direito liberdade de crena. Parece interessante a hiptese concreta apreciada pelo Tribunal de Justia de Minas Gerais, destacando-se trechos dos argumentos referidos no Acrdo sobre a capacidade de autodeterminao do doente: inegvel que o objeto da irresignao recursal envolve valores constitucionais que necessitam de avaliao prudente, sob pena de institucionalizar-se uma relao ditatorial entre o Estado e o cidado que titulariza uma srie de prerrogativas consideradas fundamentais pela Constituio da Repblica. Com efeito, a vida humana um bem jurdico que no pode ser desprezado e tratado como direito fundamental, mesmo porque precede o exerccio de quaisquer outros direitos, haja vista a tutela recebida no mbito penal. No h como deixar de reconhecer, em princpio, que associado a este bem, dele deflui a dignidade da pessoa humana, um dos valores que orientam a Repblica (art. 1, III). Dentro deste contexto, preciso considerar que a recusa do agravante em submeter-se transfuso de sangue providncia legtima desde que no esteja inconsciente e possua condies de externar juzo de valor sobre os procedimentos necessrios conservao de sua vida. (MINAS GERAIS. TJMG. Ag. n 1.0701.07.191519-6/001. Rel. Des. Alberto Vilas Boas, publ.: 04.09.2007).

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    de seus membros para ter a vida salva, mas mesmo assim recusa-se a fazer a operao. As Testemunhas de Jeov no se recusam a viver, e certamente possuem padres de vida que fogem no moral, mas aos costumes da maioria da populao. Trata-se, na verdade, de uma simples consequncia da liberdade de conscincia, de modo que o sujeito se recusa ao cumprimento daquilo que se reputa tradicionalmente como razovel ou lcito, mas que incompatvel com as suas mais ntimas convices. Nesse caso especfico, ocorre situao em que a pessoa se sente moralmente obrigada a no cumprir com as expectativas coletivas por fora de suas convices de crena religiosa17. Tradicionalmente, esse tipo de liberdade de conscincia recebe o nome de objeo de conscincia, tema caro aos estudiosos do Direito Penal, como elemento de excluso da culpabilidade. O paternalismo aqui reduzido face garantia de direitos fundamentais, como a liberdade de crena, considerada um dos embasamentos constitucionais desse tipo de autonomia sobre o corpo.

    O exemplo da objeo de conscincia no caso apresentado relevante tambm por outras duas razes: a primeira a interveno do Estado na autonomia individual quando so postos em questo os limites relativos a terceiros, e a segunda sobre a integridade psicofsica como conceito uno e indivisvel. De acordo com as restries da autonomia por razes de conscincia, assinala-se que, independentemente da liberdade de escolha e das suas ntimas convices, o sujeito no pode fazer do exerccio de sua autonomia um risco esfera jurdica de terceiros. Assim, no exemplo apresentado sobre a recusa de tratamento mdico de Testemunha de Jeov, convm assinalar que a objeo de conscincia18 da me no capaz de conferir o corpo do filho como

    17 Nesse sentido: a particularidade da escusa de conscincia reside na irresistibilidade, para o agente individual, dos imperativos morais que segue, o que pode provocar situaes de conflitos verdadeiramente existenciais, no lhe deixando margem de ao lcita, seno ao custo de significativo comprometimento de sua personalidade (HERING JR., 2006, p. 118).

    18 De acordo com a lio de R. Soriano (1991, p 45): La objecin de conciencia es as una forma de la libertad ideolgica de la persona, que consiste en la excepcin justificada del cumplimento de un deber jurdico colisionante con los dictados de la conciencia individual.

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    campo de sua autonomia, de modo que o tratamento mdico dever ser implementado, sob pena de abuso de ptrio poder.

    Do mesmo modo, reconhece-se o direito de objeo de conscincia de qualquer pessoa a negar a prtica do aborto por motivos morais, que em sua maioria refletem convices religiosas de respeito vida desde sua forma embrionria, impedindo a atuao do profissional. Todavia, o limite de conscincia relativo esfera de proteo jurdica alheia a do titular da objeo determina que em situaes de emergncia, quando h risco de vida para a gestante, ou seja, no caso do aborto necessrio, a recusa prtica do aborto acarreta em crime de omisso de socorro.

    Com efeito, nesses casos, o paternalismo perde espao para as convices pessoais no s por se tratarem de hipteses de exerccio da liberdade assegurados constitucionalmente, mas tambm porque representam situaes de conflitos verdadeiramente existenciais. Nessas situaes, a observncia do dever jurdico de preservao da integridade fsica (como pressuposto necessrio continuidade da vida) significaria uma violao da ordem psquica, concluindo-se que esses espaos de liberdade, quando violados, so punidos com os aspectos subjetivos da prpria personalidade.

    Tem-se, portanto, um importante aspecto a ser considerado. A integridade compe-se de duas categorias indissociveis do ser: o corpo e a mente. Nesse sentido, a superao do dualismo cartesiano, consagrado como um dos signos da modernidade, resultou na compreenso de corpo indissocivel da dimenso psquica, de modo que, tambm no campo jurdico, a integridade deve ser tratada de acordo com a perspectiva da integridade psicofsica.

    Assim, as interdies feitas sobre a matria corporal geram consequncias inafastveis na constituio mental da pessoa. Dessa forma, a autonomia corporal refere-se diretamente integridade de maneira global, considerando a inseparabilidade das respectivas esferas. As restries impostas autodeterminao no tocante ao corpo devem

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    atentar para o fato de que, no mbito do resguardo da dimenso fsica, esto sempre includas objees que se referem ao plano psquico.

    Cabe ressaltar que, do final do sculo passado at os dias atuais, o corpo passou por outra profunda alterao: a chamada fragmentao. O corpo foi decomposto em partes diversas, que assumiram, na cincia contempornea, sentido prprio. Conservou-se a unicidade na essncia, mas fragmentou-se a forma e a matria em segmentos praticamente estanques que podem ser considerados de maneira individual, sem prejuzo para o todo corporal.

    No campo da medicina, as intervenes estticas reduzem formas e medidas, alteram a constituio primria do nariz, da boca, dos olhos, dos seios, transmutando a natureza e apagando as marcas indesejadas, muitas vezes de forma irreversvel. Trata-se de novas configuraes corporais, fabricadas e manipuladas em consultrios e centros cirrgicos, para atingir os novos padres de desenvolvimento e realizao pessoais. Com fins teraputicos, os progressos da medicina, que no sculo passado prolongaram a vida atravs das mquinas que substituam artificialmente as funes vitais, hoje suprimiram as falhas dos rgos inservveis com toda sorte de transplantes, at mesmo de rosto. Esses avanos ocorrem em uma era na qual a singularidade dos corpos atestada atravs do reconhecimento das potencialidades genticas de cada indivduo (KECK; RABINOW, 2008).

    Muito mais do que a busca por um novo nariz, seio ou boca, trata-se, na realidade, de uma alterao do eu, tanto de um corpo que se relaciona com o meio externo uma forma de enquadramento social, portanto quanto de um corpo que expresso da singularidade uma forma de experincia corporal eminentemente subjetiva. , em suma, a tentativa de incorporar padres exteriores nos quais se depositam as expectativas de transformaes internas. Assim, muitas alteraes na constituio fsica do sujeito podem ser consideradas atuaes que diminuem a integridade fsica, justificadas, no entanto, pelas exigncias que vm de sua dimenso psquica.

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    5 Modificao corporal: hipteses e critrios

    As modificaes corporais, na verdade, compreendem uma srie de atuaes sobre o corpo, de matrizes diversas e no somente artsticas, aqui tomadas como produtos culturais, que se referem

    a um leque imenso de prticas que inclui: tatuagem, piercings, branding, cutting, implantes subcutneos ou ICTs etc. Tambm so formas de modificao corporal o bodybuilding, atividades de fitness e de wellness [...] bem como todo tipo de prteses internas e externas para potencializar ou substituir o funcionamento dos rgos e o uso cada vez menos distante da nanotecnologia, que promete novos desenvolvimentos no interior do corpo. (ORTEGA, 2008, p. 57).

    Veja-se, por exemplo, o que fizeram de Erik Sprague e Dennis Avner, respectivamente, o homem-lagarto e o homem-tigre. As alteraes na estrutura corporal original de Erik Sprague, um norte-americano de meia idade, decorreram de mais de setecentas horas de tatuagens, implantes de chifres de teflon inseridos sob a pele das sobrancelhas, a lngua partida e dentes lixados que o fizeram celebridade no papel de artista performtico, desde 1999, quando abandonou seu doutorado em Filosofia19. Dennis Avner, por sua vez, norte-americano descendente de ndios huron e lakota, poucos anos mais velho, resolveu seguir de forma literal os aconselhamentos de um chefe huron para seguir o caminho do tigre. Considerando que seu nome indgena Stalking Cat (felino caador), Dennis tornou-se adepto da prtica body modification, buscando, atravs de inmeras tatuagens que reproduzem a estampa da pele dos tigres, implante de fios que se assemelham aos bigodes felinos e aplicao de silicone nos lbios superiores, construir sua imagem semelhana efetiva de um tigre, tendo alcanado resultados notveis20.

    19 V. o site oficial em: Acesso em: 20 jul. 2014.

    20 Dennis Avner suicidou-se em novembro de 2012. V. Acesso em: 20 jul. 2014.

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    A autonomia existencial nos atos de disposio do prprio corpo

    Do mesmo modo, a artista francesa Orlan, da linha chamada body art, corrente artstica que explora os limites do corpo atravs de performances variadas, criou o manifesto por uma arte mais carnal e fez de suas transformaes corporais o espetculo A reencarnao da Santa Orlan, numa srie em que ela se submeteu a nove cirurgias plsticas, transmitidas via satlite para diversos lugares, entre eles, as principais galerias de arte da Europa. Em visita ao Brasil, em agosto de 2008, afirmou que seu corpo havia se tornado um espao de reflexo, e as cirurgias eram utilizadas para fazer um autorretrato21. Segundo ela,

    [...] no estou nem a com as imagens que produzi de mim mesma, porque no fui eu que escolhi o ponto de partida. No escolhi meu nome, nem a cor da minha pele. Ns somos cidados do mundo, receptores de estmulos que vm dos lugares mais diferentes, da televiso, da internet. No quero fazer cirurgia todos os dias, prefiro beber champanhe com os meus amigos. Mas seria divertido se pudesse mudar o meu rosto diariamente22.

    Stelios Arcadiou, 62 anos, conhecido como o artista performtico stelarc, famoso por fazer usos diferenciados de seu corpo com projetos futuristas, como implantar uma terceira orelha em seu antebrao criada em laboratrio por cientistas da Universidade Nottingham Trent, busca demonstrar aquilo que considera seu lema: o corpo obsoleto.23

    Ainda considerada por muitos como fico cientfica, a tecnologia de informao e comunicao (ICT) tem sido utilizada no corpo humano h bastante tempo. Mais recentemente, implantes humanos de baixa tecnologia tm sido cada vez mais usados em contextos no teraputicos.

    21 Noticiado em: Acesso em: 20 set. 2014.

    22 Tais informaes esto disponveis em: Acesso em: 20 jul. 2014.

    23 Acesso em: 30 jul. 2014. Site oficial do artista: Acesso em: 25 nov. 2014.

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    As aplicaes incluem entradas em boates VIP, pagamentos automticos e controle seguro de acesso.

    Implantes humanos mdicos como marca-passos e implantes cocleares so de uso comum, formando ligaes ntimas entre tecnologia e corpo. Tais dispositivos restauradores esto cada vez mais avanados, alguns com interao diretamente com o crebro e outros quase superando a sua contrapartida natural. Justamente por causa dessa possibilidade, a pessoa passa a ser avaliada em uma nova condio: a condio ps-humana24. Por ps-humano entende-se a possibilidade de integrar ou modificar o organismo tambm mediante a utilizao de instrumentos no humanos ou a substituio de partes do corpo com prteses binicas, com o objetivo de reintegrar funes perdidas (DE CICCO, 2013, p. 4).

    A utilizao das novas tecnologias no deve, claro, ser indiscriminada e deve sobretudo perseguir finalidades merecedoras de tutela. Nos casos de uso teraputico ou regenerador, no chega a haver controvrsia porque tais mecanismos so avaliados positivamente quando destinados a tutelar o direito fundamental da sade. Todavia, as implicaes jurdicas, ticas e sociais da adoo dessas tecnologias no aprimoramento humano so questes em aberto. A deciso de substituir partes sadias do prprio corpo com componentes binicos para obter vantagens, especialmente no campo desportivo, continua cercada de incertezas. Assim, apesar de os interessados apelaram por mais segurana jurdica, numerosas lacunas j surgiram entre a realidade comercial dos implantes de aprimoramento e a regulamentao jurdica que falta para regul-los. No de se estranhar que o aumento da comercializao e do potencial de crescimento desses produtos venha gerando debates veementes, mas a melhor sugesto, dado o grau de

    24 Sobre esse ponto, v. Rodot (2008, p. 821 e segs.). Ver tambm a tese de doutoramento de D. F. SILVA, Do humano ao ps-humano: pessoa e autonomia privada no contexto do aperfeioamento binico, apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito do Departamento de Direito da PUC-Rio, Rio de Janeiro, maio de 2009. Do mesmo autor, v. Dai diritti umani ai diritti delle persone: riflessioni sulla post-umanit. civilistica.com. Revista eletrnica de direito civil, ano 1, n. 1, 2012.

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    A autonomia existencial nos atos de disposio do prprio corpo

    risco, especialmente nos implantes cerebrais, adotar o princpio da precauo25.

    H, tambm, numerosas prticas realizadas sobre o corpo sem qualquer pretenso artstica, como o caso das suspenses. So atos que jamais devem ser realizados pela pessoa sozinha, devido ao alto risco de ferimentos, choque e outras possibilidades mortais que evidenciam a disposio da integridade fsica por prazeres que, tambm gerados no plano corporal, esto ligados diretamente realizao subjetiva. Nesses atos, diversos ganchos de metal so inseridos sob a pele e ligados a um conjunto de roldanas utilizadas para erguer o corpo a 30 ou 60 cm do cho, de modo que a pessoa possa permanecer com seu corpo suspenso enquanto for capaz suportar o prprio peso, a depender de sua vontade a durao do ato26.

    De modo geral, tais exemplos constituem prticas corporais em que a aparncia se torna ao mesmo tempo a essncia e, dessa forma, o corpo se revela como um fecundo cenrio para a construo de identidades e subjetividades na atualidade, como elemento central para a experincia do eu. Os casos de modificao corporal no partem necessariamente de psicopatologias como as mutilaes corporais, mas podem significar um movimento de resistncia individual aos disciplinamentos que insistem em identificar os padres aceitveis como o corpo natural (ORTEGA, 2008). O corpo assume a autorreflexidade, tornando definitivamente obsoleta no s a clssica separao entre mente e corpo, como tambm a dicotomia entre exterioridade e interioridade, de modo a se inscrever nos espaos relacionais que fazem com que o sujeito se constitua com e a partir do outro.

    Nessas situaes de modificao corporal voluntria, trata-se de uma disposio corporal calcada na aptido para congregar da melhor

    25 o que prope ERGEN, Y. J. ICT Implants, Nanotechnology, and Some Reasons for Caution. Disponvel em: Acesso em: 10 out. 2014.

    26 Sobre a suspenso corporal, os dados e as imagens mais completos esto na BME Encyclopedia Disponvel em: Acesso em: 10 out. 2014.

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    maneira possvel as esferas fsica e psquica, ainda que essa tarefa implique reduo concreta da primeira para satisfazer aos anseios da segunda, semelhana do que ocorre na objeo de conscincia. Conclui-se da que o paternalismo como atuao que promove o bem-estar, seja incentivando o bem ou evitando o mal, incapaz de explicar razoavelmente quais as situaes em que a interveno sobre a autonomia individual legtima, bem como de tornar claro quais so as pessoas que devem ter suprimido tal direito. Isso porque o paternalismo forte promove intervenes sobre a autonomia sem levar em conta a avaliao subjetiva e objetiva que cada sujeito capaz de fazer sobre suas prprias condutas e as consequncias que dever suportar.

    Na realidade, ordenamentos de tipo paternalista so compatveis somente com sociedades infantilizadas, tidas como irresponsveis e inconsequentes, nas quais em regra tudo deve ser proibido ou regulado, podendo-se fazer apenas o que expressamente permitido princpio prprio dos sistemas totalitrios e, portanto, incompatvel com sistemas democrticos. Ao paternalismo, contido na mxima segundo a qual as pessoas devem ser protegidas de si prprias, deve ser oposta a presuno que vigora nas sociedades democrticas: a liberdade de escolha acerca do prprio destino no pode ser exceo ou, mais simplesmente, a lmpida observao de Bobbio (1999, p.458): O fundamento da forma democrtica de governo contraposta s vrias formas autocrticas de governo que dominaram grande parte da histria do mundo o reconhecimento da pessoa.

    Sob esse prisma, as modificaes corporais poderiam ser definidas a priori como contrrias aos mandamentos jurdicos, da mesma maneira que a objeo de conscincia no seria apta a afastar a integridade fsica em nome das razes existenciais implicadas. Certamente, o primeiro grupo de prticas promove uma releitura sobre os limites que nos constituem aparentemente humanos, sendo as razes determinantes para a realizao da modificao corporal to questionveis quanto as consequncias de tais atos. De maneira semelhante, uma viso externa compartilhada pelas Testemunhas de Jeov facilmente tomada pela perplexidade de escolhas que fogem ao natural desejo de perseverar

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    na existncia que comumente levam afirmao de que a vida o bem mais valioso e inviolvel, sobre o qual nem mesmo a prpria pessoa pode ponderar.

    A esse respeito, h aspectos importantes que devem ser problematizados, como a amplitude da tutela jurdica dos valores que orientam o agir individual. No h como sustentar que todo e qualquer valor deve ser considerado digno de proteo pelo Direito, mesmo e principalmente dentro de uma sociedade alicerada em um modelo de democracia pluralista. Assim, a legitimidade jurdica das convices ntimas estar atrelada ao reconhecimento que a Constituio capaz de dar sobre esse contedo valorativo. Trata-se, com efeito, de um campo de fortes controvrsias, sobre o qual cumpre abordar apenas o necessrio para estabelecer os limites intransponveis traados no texto constitucional.

    A primeira delas se refere capacidade que o sujeito possui para tornar vlida a sua vontade, ou seja, cuida-se da aptido jurdica para exercer em nome prprio os atos de autonomia relativos ao corpo. J a segunda noo est presente na impossibilidade de, ainda que o sujeito seja capaz para realizar os atos da vida civil, investir o corpo de uma dimenso mercantilizada ou, em outras palavras, ainda que o querer seja juridicamente vlido, no poder o sujeito trat-lo como coisa, como algo que tem preo.

    A capacidade est intimamente ligada ao discernimento, ou seja, possibilidade de entender e querer. Com efeito, o discernimento concebido em escalas, de modo que aquele que o possui por completo ser capaz, enquanto aquele que tem o discernimento reduzido ser relativamente incapaz e aquele completamente despido de discernimento ser absolutamente incapaz. Desse modo, aqueles que sofrem de debilidade mental grave no possuem discernimento para definir os rumos da prpria vida, tampouco podem assumir a responsabilidade das suas decises.

    Nesses casos, cumpre ao Direito a tarefa de proteger o ser humano da prpria incapacidade, uma vez que lhe falta a aptido para

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    assimilar e avaliar as informaes necessrias. O discernimento, ou a capacidade de compreenso e anlise, provm de uma caracterstica da condio humana, se no a mais importante, a que melhor define a nossa espcie: a racionalidade. Como seres racionais, a no ser por circunstncias excepcionais tais como as mencionadas , somos capazes de raciocinar, refletir, decidir, enfim, de fazer nossas escolhas. Quando temos discernimento, temos autonomia para decidir o que queremos.

    A capacidade est ligada a outra noo de igual importncia: a responsabilidade. A pessoa capaz de discernir ser responsvel pelas suas escolhas, devendo suportar e assumir as consequncias negativas que porventura venham a ocorrer. Dessa forma, os sujeitos privados de capacidade no sero responsabilizados diretamente pelos danos oriundos de seus atos, os quais devero ser imputados figura do curador. Importa salientar que todo agente capaz de discernir ser responsvel pelos seus atos e, desse modo, sua manifestao de vontade ser legtima e salvaguardada pelo Direito, nos limites de sua esfera de atuao.

    A capacidade tratada pelo Cdigo Civil de vis puramente subjetivo. Nesse sentido, as limitaes autodeterminao corporal devem observar tambm a aptido da pessoa para definir as diretrizes relativas ao corpo como uma das esferas mais ntimas da subjetividade. Assim, as vedaes que tm como base uma imaturidade genrica para gerir tais espaos de liberdade inscrevem-se sob a rubrica de mecanismos paternalistas implementados de forma abstrata e universal pelo legislador ordinrio, como acontece no caso do Cdigo Civil.

    Todavia, h situaes em que a vontade do sujeito capaz no s insuficiente para constituir o exerccio da autodeterminao corporal como deve ser afastada, sob todas as hipteses, dos regimes das liberdades individuais juridicamente tuteladas. o caso, por exemplo, da mercantilizao do corpo ou de partes dele, seja com o objetivo flagrante de obter lucro com a prtica comercial, seja com a utilizao do corpo para garantia do prprio sustento. Em tais casos, as formas

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    de intervencionismo estatal no so tomadas pelas caractersticas negativas tradicionalmente imputadas ao paternalismo jurdico; elas devem ser reverenciadas como mecanismos de garantia para a efetivao da autonomia existencial.

    Observe-se que, nessas situaes, a capacidade do sujeito aspecto irrelevante, pois o limite legtimo autodeterminao se d no s pela natureza res extra commercium do corpo humano, mas principalmente pelos imperativos de solidariedade que garantem sua dimenso social a salvo das prticas predatrias de mercado27.

    A solidariedade constitui uma importante fronteira autodeterminao corporal, ainda mais quando a projeo social do corpo se d nas sociedades contemporneas, com mecanismos de poder que se relacionam atravs de uma lgica empresarial, prpria das sociedades de controle. A solidariedade objetiva decorre da necessidade imprescindvel da coexistncia, e a solidariedade como valor deriva da conscincia racional dos interesses em comum. Alm destes sentidos, a solidariedade tambm tem significado de virtude tico-teologal e de necessidade pragmtica para que possa ser obtido um resultado prtico favorvel a quem atue de forma solidria. Em resumo, a solidariedade assume vrios contornos, quer como um fato social, quer como virtude tica, ou como resultado de uma escolha pessoal que pode ser movida pela boa-f, ou por motivos pragmticos, mas, do ponto de vista jurdico, a solidariedade est inscrita em princpio constitucional moldado para que todos alcancem o objetivo de igual dignidade social.

    Portanto, as mutaes das tcnicas disciplinares e das biopolticas no capitalismo ps-industrial revelam que cabe ao Direito instituir os obstculos essenciais para que a sociabilidade no se converta em tendncia de expropriao ou apropriao do corpo a caminho de uma

    27 Para Rodot (2006, p. 54), rechaar o paternalismo do legislador, afirmando que ele no deveria substituir-se vontade de quem decide vender um rim para buscar melhores condies de vida para si ou para outros, significa encarcerar ainda mais ferozmente cada um nas dificuldades da prpria existncia, sem esperana de resgate alm daquela que o obriga a perder, junto com partes do corpo, o respeito a si mesmo, em uma situao de total abandono social.

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    forma de canibalismo como cdigo operativo das relaes intersubjetivas (RODOT, 2006).

    Concluso

    Note-se que as experincias corporais solidrias assumiram, portanto, uma intensa funo agregadora do espao social. As relaes sociais, nessa lgica, so reforadas pelos programas e campanhas governamentais da maioria de pases ocidentais como grandes e importantes instrumentos de laos comunitrios essenciais s diretrizes de sade pblica. Os doadores annimos de sangue e de medula ssea retratam fielmente os laos comunitrios que podem ser estabelecidos pela lgica da reciprocidade, do mesmo modo que a doao de rgos28 post mortem revela uma compreenso do corpo essencialmente voltada para uma transmisso existencial, como um legado biolgico fraterno, para fins altrusticos ou cientficos29.

    Mas o exerccio da autonomia corporal no encontra espao em um Estado que d contedo excessivo ao que bom e que reconhece apenas retoricamente a capacidade crtica e liberdade de escolha de seus partcipes. Por isso preciso refutar a lgica de um Estado paternalista que pretende tomar decises por seus filhos sempre incapazes de reconhecer o que o melhor em busca de um Estado

    28 A Associao Brasileira de Transplantes de rgos (ABTO) relata um constante, embora ainda insuficiente, aumento no nmero de doadores de rgos, especialmente a partir de 2013, como se verifica no relatrio disponvel em: Acesso em: 10.11.2014.

    29 igualmente crescente o nmero de pessoas que doam integralmente os cadveres para fins cientficos em pesquisas realizadas por universidades brasileiras, superando a reverncia religiosa que tradicionalmente reveste os rituais de culto aos corpos mortos. A Espanha tornou-se o quarto pas do mundo em nmero de doadores de corpo para pesquisa aps a morte, As razes, contudo, parecem no ser estritamente solidrias. A comunidade espanhola vem aderindo a essa prtica para evitar as despesas funerrias. Disponvel em: Acesso em: 15 nov. 2014.

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    que reconhea a liberdade e autonomia de seus representados, tendo como objetivo inafastvel a realizao dos mais diversos projetos de vida que certamente surgiro.

    Liberdade e solidariedade representam os dois lados constitutivos da autonomia corporal. Ambos, contudo, fundamentam e ao mesmo tempo limitam a concreta disposio sobre o corpo. Trata-se de princpios que orientam a autonomia no sentido de inscrev-la para alm da dimenso unicamente individual, sem esvazi-la a partir de uma perspectiva puramente coletivista. A abordagem focada nas questes da liberdade, problematizadas sob o enfoque do paternalismo e da capacidade, complementada pelas diretrizes solidrias constitucionalmente estabelecidas na proibio de comrcio do corpo ou de partes dele, a despeito de manifestao de vontade legtima do sujeito.

    A interpretao do artigo 13 impe que a indisponibilidade mencionada pelo artigo 11 do Cdigo Civil seja compreendida luz do direito privacidade, consagrado pelo artigo 21 do mesmo diploma legal, de modo que, em relao s intervenes jurdicas restritivas da autonomia corporal, a liberdade seja sempre pressuposto inafastvel. Dessa maneira, a imposio generalizante de que os direitos da personalidade so indisponveis, no importando para tanto circunstncias subjetivas ou objetivas, relativizada para que o desenvolvimento da personalidade seja um espao de viver livre e criativo, ou seja, um campo em que as escolhas de vida feitas pela pessoa so protegidas pela privacidade.

    O direito ao prprio corpo, expresso da dignidade humana como clusula geral de tutela e promoo da pessoa, no define por si as fronteiras intransponveis da autonomia corporal. A adequada interpretao do mencionado art. 13 implica a ponderao dos interesses contrapostos que so revelados no caso concreto, sendo certo que a verdadeira harmonia entre eles somente alcanada atravs do princpio da dignidade humana, este sim o nico limite que jamais pode ser superado na legalidade constitucional.

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    Maria Celina Bodin de Moraes, Thamis Dalsenter Viveiros de Castro

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    Recebido em:16/12/14Aprovado em: 23/12/14


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