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RDS V (2013), 4, 837-858 A business judgement rule e a diligência do administrador criterioso e ordenado antes da reforma do Código das Sociedades Comerciais DR. GABRIEL FREIRE SILVA RAMOS Sumário: 1. Introdução. 2. A diligência do administrador criterioso e ordenado. 3. Dever de administrar. 4. Responsabilidade civil perante a sociedade. 5. A business judgement rule. 6. Controlo judicial das decisões empresariais antes de 2006. 7. A business judgement rule depois de 2006. 1. Introdução I. A responsabilidade civil dos administradores 1 de sociedades comerciais e os seus deveres tomaram papel central na reforma do Código das Sociedades Comerciais (CSC) operada através do Decreto‑Lei n.º 76‑A/2006, de 29 de Março 2 . As alterações introduzidas suscitaram bastantes críticas no panorama doutrinal nacional 3 , às quais não foi alheia a consagração da chamada business judgement rule 4 , motivando um considerável número de estudos que tomam a matéria como objecto. 1 Por razões de facilidade de exposição utilizar‑se‑á, predominantemente, a expressão administrador ou administradores como englobando todas as pessoas que gerem sociedades comerciais, independentemente do tipo societário, tal como é opção de alguma doutrina, Menezes Cordeiro, Manual de Direito das Sociedades, I vol., 3.ª ed., 2011, 839 a 840. 2 Menezes Cordeiro, Os deveres fundamentais dos Administradores das sociedades, in A Reforma do Código das Sociedades, Jornadas em Homenagem ao Professor Doutor Raúl Ventura, 2007, 21. 3 Das quais, pelo sua notoriedade e especial veemência, se devem destacar as tecidas por Menezes Cordeiro, Os deveres fundamentais…, cit., 20 a 60, e Manual…, cit., 980 a 993. 4 Opta‑se por atribuir à locução business judgement rule o género feminino, não obstante a associação ao género masculino presente nas obras de influentes autores como Menezes Cordeiro, Manual …, cit., 982, e Adelaide Menezes Leitão, Responsabilidade dos Administradores para com a Sociedade e os
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A business judgement rule e a diligência do administrador criterioso e ordenado antes da reforma do Código das Sociedades Comerciais

dR. GaBRieL FReiRe siLva RaMos

sumário: 1. Introdução. 2. A diligência do administrador criterioso e ordenado. 3. Dever de administrar. 4. Responsabilidade civil perante a sociedade. 5. A business judgement rule. 6. Controlo judicial das decisões empresariais antes de 2006. 7. A business judgement rule depois de 2006.

1. Introdução

i. a responsabilidade civil dos administradores1 de sociedades comerciais e os seus deveres tomaram papel central na reforma do código das sociedades comerciais (csc) operada através do decreto ‑Lei n.º 76 ‑a/2006, de 29 de Março2. as alterações introduzidas suscitaram bastantes críticas no panorama doutrinal nacional3, às quais não foi alheia a consagração da chamada business judgement rule4, motivando um considerável número de estudos que tomam a matéria como objecto.

1 Por razões de facilidade de exposição utilizar ‑se ‑á, predominantemente, a expressão administrador ou administradores como englobando todas as pessoas que gerem sociedades comerciais, independentemente do tipo societário, tal como é opção de alguma doutrina, Menezes cordeiro, Manual de Direito das Sociedades, i vol., 3.ª ed., 2011, 839 a 840.2 Menezes cordeiro, Os deveres fundamentais dos Administradores das sociedades, in a Reforma do código das sociedades, Jornadas em Homenagem ao Professor doutor Raúl ventura, 2007, 21.3 das quais, pelo sua notoriedade e especial veemência, se devem destacar as tecidas por Menezes cordeiro, Os deveres fundamentais…, cit., 20 a 60, e Manual…, cit., 980 a 993.4 opta ‑se por atribuir à locução business judgement rule o género feminino, não obstante a associação ao género masculino presente nas obras de influentes autores como Menezes cordeiro, Manual…, cit., 982, e adelaide Menezes Leitão, Responsabilidade dos Administradores para com a Sociedade e os

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é com consciência desse especial contexto que se propõe este relatório, na certeza de que, à partida, será difícil trazer para a discussão algum aspecto que se mostre, simultaneamente, relevante e inovador. nesse sentido, o exercício que se pretende realizar tem por referentes principais os dados legais, jurisprudenciais e doutrinais anteriores à reforma de 2006, com o objectivo de, através de uma reflexão sobre as potencialidades oferecidas por esse quadro normativo, se con‑cluir pela oportunidade da reforma e, também, contribuir para a compreensão das soluções por si introduzidas.

ii. deste modo, toma ‑se como mote a reflexão sobre a existência ou inexis‑tência, à luz do direito societário pretérito, de uma regra material que possa ser identificada com a business judgement rule. Para tal, contudo, apresenta ‑se indispen‑sável a abordagem de temas que, por se encontrarem profundamente interligados com o exercício que se propõe – passíveis, até, de determinar o resultado a que se chega – não podem deixar de tomar lugar na análise que se ensaia. Pensa ‑se, nomeadamente, em questões como a situação jurídica de administração, parti‑cularmente, os deveres que impendem sobre os administradores, e também a questão da sindicabilidade (do mérito) das decisões empresariais.

todavia, tomando aqui a realidade designada por business judgement rule lugar central, não se pode deixar de dedicar alguma atenção, precisamente, à(s) realidade(s) que se entendem, nos estados Unidos, reconduzíveis a esta regra, reunindo, assim, as condições para que se possa concluir pela sua presença no espaço jurídico ‑societário português que antecedeu a reforma de 2006.

Por fim, das conclusões feitas sobre o passado procura ‑se retirar um contri‑buto para a compreensão das soluções incorporadas no quadro normativo actual, particularmente, no n.º 2 do artigo 72.º, disposição que, apesar de já extensamente debatida na doutrina societária nacional, levanta, não só, dificuldades dogmático‑‑conceptuais muito sensíveis, como, consequentemente, demonstra alguma potencialidade de suscitar dificuldades na sua concreta aplicação.

Credores Sociais por Violação de Normas de Protecção, in estudos dedicados ao Professor doutor Luís alberto carvalho Fernandes, vol. i, 2011, 21. esta opção ancora ‑se, sobretudo, na circunstância de a realidade a que se pretende fazer alusão consubstanciar uma regra (rule), desempenhando as expressões business e judgement a função de indicar a matéria sobre a qual a regra versa. Uma vez que, neste caso, tanto a sua natureza como a língua de origem não fornecem uma indicação quanto ao seu género, parece ser preferível adoptar aquele que lhe corresponderia na língua de recepção. sendo o termo regra um substantivo feminino na Língua Portuguesa, opta ‑se pela atribuição desse género à business judgement rule. veja ‑se, mais pormenorizadamente, sobre este problema, mas tomando como referência a locução common law, Raúl Guichard alves, A representação sem poderes no Direito Civil português. A ratificação, 2009, 407 a 409, n. 183.

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advirta ‑se, porém, que a abordagem dos temas referidos obedecerá, neces‑sariamente, a uma lógica de contenção, procurando ‑se apenas proporcionar o enquadramento e tecer as considerações que se mostrem estritamente necessárias para a sua boa compreensão.

o esforço realizado circunscrever ‑se à responsabilidade dos administradores perante a sociedade.

2. A diligência do administrador criterioso e ordenado

i. a descrição da situação jurídica de administração é feita, sobretudo, por referência aos deveres que impendem sobre os administradores. Uma das razões que pode explicar esta circunstância é o modo disperso como as várias posições jurídico ‑passivas que os administradores podem assumir perante a sociedade se encontram vertidas no csc. assim, encontra ‑se um grande número de deveres previstos ao longo deste diploma a propósito de matérias específicas5 que, siste‑maticamente, não se apresentam dispostas num bloco unitário. outra razão será o modo, um tanto camuflado, como algumas das suas posições jurídico ‑activas se revelam na lei6.

no entanto, e em conformidade com esta última afirmação, a posição jurídica dos administradores não se apresenta como mero estado de sujeição a deveres, correspondendo antes a um complexo unitário de direitos, obrigações e demais posições jurídico -activas e passivas7 inerente à qualidade de administrador, que se consubstanciam, no ensinamento de Menezes Cordeiro, num estatuto jurídico complexo e compreensivo. o administrador, para além de estar sujeito a um conjunto de deveres perante a sociedade, também é titular de posições que, ainda que parcelarmente, têm uma natureza activa. a análise de algumas dessas posições passivas e activas, pela forma como se inter ‑relacionam, devem ser tratadas de forma integrada.

ii. após as alterações introduzidas pelo decreto ‑Lei n.º 76 ‑a/2006 não existe controvérsia quanto à existência de deveres de conteúdo específico por um lado, e de conteúdo geral, por outro. os deveres específicos prescrevem ao administrador

5 Para mostrar esta dispersão, sem pretensões de exaustividade, vejam ‑se os deveres de não execeder, na sua actuação, o objecto social, previsto no artigo 6.º/4, os deveres relativos à protecção do capital social, previstos nos artigos 31.º, 32.º, 33.º e 35.º, de apresentação de relatório de gestão e contas, artigo 65.º, promover a realização das obrigações de entrada, previsto nos artigos 203.º e ss., e 285.º, o dever de prestar caução ou contratar seguro de responsabilidade civil, artigo 396.º, etc.6 este facto dever ‑se ‑á, sobretudo, à natureza funcional da maioria destas posições, v.g. o dever de gestão, aspecto que será objecto de análise mais adiante.7 engrácia antunes, Direito das Sociedades, 3.ª ed., 2012, 318.

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a adopção de uma conduta com um certo grau de concretização8 enquanto os deveres gerais são comandos que ordenam a assunção de um determinado tipo de conduta, de carácter mais indeterminado, genérico, a concretizar e concretizável apenas perante o caso concreto9.

a nova redacção do artigo 64.º parece não permitir, neste aspecto10, uma grande margem de reflexão. da leitura do seu corpo, e da sua nova epígrafe (“Deve-res fundamentais”) resulta claro que se pretende fazer recair sobre os administradores um dever, e, por sua vez, que esse dever tem um carácter geral11. contrapondo a actual redacção do artigo 64.º com a redacção original do csc, que sob a epígrafe “Dever de diligência”, dispunha que “os gerentes, administradores ou directores de uma sociedade devem actuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta os interesses dos sócios e dos trabalhadores”, pode ‑se constatar que a consagração, nesta versão, de um dever, apresenta ‑se menos clara. aliás, e avançando no tema, não estava livre de polémica a existência de um qualquer dever de carácter geral que vinculasse os administradores em virtude dessa qualidade.

iii. Mostra ‑se assim necessária uma investigação que procure saber em que medida o status jurídico do administrador compreendia deveres de carácter geral, sendo particularmente relevante apurar se, ao lado dos deveres específicos, haveria algum dever geral típico da situação de administração (dever de gestão) e se o critério da diligência do administrador criterioso e ordenado constante do artigo 64.º consubstanciava, na realidade, um dever. opta ‑se por dirigir atenção, em primeiro lugar, ao segundo ponto, invertendo, no plano expositivo, a precedência lógica dos problemas12.

Raúl ventura e Brito correia, ainda em relação ao artigo 17.º do decreto‑‑Lei n.º 49 381, de 15 de novembro13, sustentam o artigo 64.º e a diligência do

8 exemplos destes deveres foram mencionados supra, nota 5.9 Mariana Figueiredo, A “Business Judgement Rule” e a sua Harmonização com o Direito Português, 2011, 9.10 e apenas neste aspecto, pois o que à nova redacção do artigo 64.º pode ser apontado é, com certeza, a sua propensão para inspirar a reflexão.11 subsistindo, todavia, dúvidas quanto à natureza dessa generalidade. Refere ‑se, especialmente, a relação entre deveres gerais e deveres específicos, designadamente, se estes são concretizações daqueles e se aqueles também valem para as hipóteses para as quais estão previsto deveres específicos. esta problemática é explorada, sobretudo, no âmbito das relações entre dever de lealdade [artigo 64.º/1, b)] e dever de não concorrência (artigo 254.º).12 a inversão, ou, melhor dizendo, a precedência, ficará demonstrada, segundo se deseja, com as conclusões que se pretende alcançar mais à frente.13 diploma que regulava a matéria antes da aprovação do csc (decreto ‑Lei n.º 262/86, de 2 de setembro) e em cujo artigo 17.º o artigo 64.º colheu inspiração, acolhendo de resto, a sua redacção, acrescentando a referência aos fins a que a diligência se encontra funcionalizada. sob este ponto, Menezes cordeiro, Os deveres fundamentais…, cit., 20 a 23.

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administrador criterioso e ordenado representa um dever que pretende conformar a conduta dos administradores. consideram que a diligência é um pressuposto do juízo de ilicitude14.

antunes varela, por seu lado, assimila exclusivamente o critério da diligência a medida da culpa dos administradores15, posição que, segundo cremos, apenas aparece secundada na doutrina por Filipe vaz Pinto e Marcos Keel Pereira16.

Menezes cordeiro, que, aliás, critica expressamente a posição tomada por antunes varela17, considera que a diligência do administrador criterioso e orde‑nado – ou, expressivamente, a bitola da diligência – contém elementos referentes à ilicitude da actuação dos administradores, sendo, no entanto, uma norma incompleta, que só poderá fundar um juízo de ilicitude quando conjugada com outras normas18.

João soares da silva, considera que “será difícil deixar de reconhecer que o artigo 64.º (…) [contém] também uma fonte autónoma de determinação da conduta devida, susceptível de ser autonomamente violado, e, por isso, fonte autónoma também de responsabilidade civil”19.

elisabete Ramos, nos seus dois estudos sobre a matéria anteriores à reforma de 200620, não toma posição expressa sobre a matéria. no entanto, da sua leitura fica claro que, na sua perspectiva, a diligência é um critério de aferição da ilicitude da conduta dos administradores.

14 Idem, 94 a 101.15 antunes varela, Anotação ao Acórdão de 31 de Março de 1993 do Tribunal Arbitral, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 126 (1993 ‑1994), 315.16 Filipe vaz Pinto/Marcos Keel Pereira, A Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades Comerciais, Working Paper 5/10, Faculdade de direito da Universidade nova de Lisboa, 2001, 13 a 16. é interessante reparar que consideram sedutora a ideia de que o artigo 64.º contém, em si, um dever de diligência (a que chamam tese de ilicitude), uma vez que Menezes cordeiro, por seu lado, faz o mesmo juízo mas tomando como referente a tese (oposta) de antunes varela. Menezes cordeiro, Manual…, cit., 861, nota 2581.17 Menezes cordeiro, Manual…, cit., 861, nota 2581.18 Menezes cordeiro, Da Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades Anónimas, 1997, 40, n. 21 e 496 e 497.19 João soares da silva, Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades: Os Deveres Gerais e os Princípios da Coporate Governance, Revista da ordem dos advogados, 1997, 614 a 616.20 elisabete Ramos, Responsabilidade Civil dos Administradores e Directores de Sociedades Anónimas perante os Credores Sociais, 2002, e Aspecto Substantivos da Responsabilidade Civil dos Órgãos dos Titulares dos Órgãos de Administração perante a Sociedade, in Boletim da Faculdade de direito, vol. LXXiii, coimbra.

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Horta osório, por sua vez, fundamentava a existência de deveres gerais dos administradores (ou genéricos, como refere) no artigo 64.º, sustentando que o dever de diligência compreendia vários deveres laterais e secundários que obrigariam o administrador perante a sociedade21.

Relativamente a posições tomadas em estudos ulteriores à reforma mas que tomam por referência a redacção anterior do artigo 64.º, coutinho de abreu atribui ‑lhe uma dupla função, considerando que, de uma banda, a diligência indica deveres objectivos de conduta em forma de cláusula geral, de cuja concretização resultam deveres (mais) específicos, pelo que se reportaria à ilicitude, e de outra circunscreve o critério da culpa, concluindo que, dessa forma, deve ser encarada como fundamento autónomo de ilicitude22. carneiro da Frada também sustenta que a diligência, no direito anterior, permitia uma formulação autónoma, uma vez que tinha um conteúdo normativo próprio, podendo assim ser violada independentemente da con‑jugação com outros deveres. no entanto, refere que o artigo 64.º era (e, segundo o seu pensamento, parece continuar a ser) uma norma incompleta, mas esta incompletude é diferente da referida por Menezes cordeiro, uma vez que decorre do facto de não ter acoplada qualquer sanção23. Por fim, embora não o refira directamente, pode ‑se inferir do seu comentário ao entendimento de carneiro da Frada24 sobre a versão reformada do artigo 64.º, que adelaide Menezes Leitão, à luz do anterior direito, considerava que o preceito prescindia de ser conjugado com outros deveres25.

21 Horta osório, Da Tomada do Controlo de Sociedades (Takeovers) por Leveraged Buy -Out e sua Harmonização com o Direito Português, 2001, 238 ‑239, apud coutinho de abreu, Responsabilidade Civil dos Administradores da Sociedades, 2.ª ed., 2010, 16 a 17, nota 26, e Mariana Figueiredo, A “Business Judgement Rule”…, cit., 2011, 9.22 coutinho de abreu, Responsabilidade Civil dos Administradores da Sociedades, 2.ª ed., 2010, 14 e 16.23 carneiro da Frada, A business judgement rule no quadro dos deveres gerais dos administradores, in a Reforma do código das sociedades, Jornadas em Homenagem ao Professor doutor Raúl ventura, 2007, 64. este reparo parece decorrer da posição sistemática que o artigo 64.º ocupava e ocupa no csc por oposição à posição do § 93, i do aktiengesetz (aktG) e do entendimento desta disposição na doutrina alemã. o critério da diligência constava do artigo 92.º/1 do projecto que antecedeu a aprovação do csc, tendo, todavia, acabado por ser colocado no artigo 64.º, disposição deslocada do capítulo dedicado à responsabilidade dos administradores e inserida num capítulo intitulado “administração”, do qual é o único artigo. este facto contribui para a sua rápida assimilação a regra de conduta que pretendia conformar a actuação dos administradores, ao invés de ser uma norma de responsabilidade civil. na alemanha, embora esse seja, na actualidade, o entendimento dominante, a localização sistemática do critério da diligência não favorece este entendimento de forma tão evidente como no ordenamento jurídico português. sobre a evolução histórica do preceito e para uma análise comparativa do artigo 64.º, Menezes cordeiro, Manual…, cit., 857 e ss, e elisabete Ramos, Responsabilidade Civil…, cit., 70 e 71, n. 178.24 carneiro da Frada, A Business Judgement Rule…, cit., 64 a 66.25 adelaide Menezes Leitão, Responsabilidade…, cit., 36.

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na jurisprudência que antecede a reforma, a única afirmação clara da exis‑tência de um dever de diligência passível de violação autónoma que se encontrou consta da sentença da 3.ª vara cível de Lisboa, de 27 ‑10 ‑200326.

iv. a diligência é a atitude subjectiva que uma pessoa apresenta em relação a determinado referente27. aplicada à administração de sociedades, a diligência é a atitude do administrador em relação aos interesses que figuravam na parte final do artigo 64.º e que agora figuram no seu n.º 228. no entanto, apesar de ser descrita com uma atitude, a diligência apenas há de relevar quando conhecer manifestação exterior, isto é, seja sensível por outras pessoas, seja através de uma acção ou de omissão29. deste modo, é necessário que a pessoa pratique um facto e, assim, para que o administrador actue diligentemente este terá, antes de mais, de actuar. circunscrevendo ‑se o dever de diligência à actuação do administra‑dor enquanto tal, esta necessita, desde logo, de outras normas para delimitar o seu âmbito de aplicação. a diligência mostra ‑se, assim, carecida de um referente externo onde se possa corporizar. esse referente é constituído pelas normas que permitem identificar a administração em sentido objectivo30, ou seja, pelas normas que representam (poderes) deveres de actuação do administrador, por oposição às normas (das quais é exemplo o artigo 64.º) que pretendem enquadrar essa actuação. Ponto crítico será, então, o de saber quais são esses deveres, bem como qual o seu conteúdo e extensão31.

tendo em conta o exposto, a posição que se adopta parece estar muito próxima da de Menezes cordeiro32. no entanto, como se espera resultar dos desenvolvi‑mentos subsequentes, surgirão diferenças relevantes susceptíveis de determinar a obtenção de resultados diferentes. neste sentido, também se crê que a diligência que resulta do anterior artigo 64.º (mas também da versão reformada) não é sus‑ceptível de violação sem que seja articulada com outro preceito. não se nega que o artigo 64.º tenha um conteúdo normativo próprio, tal como refere carneiro da

26 Publicada em Pedro caetano nunes, Corporate Governance, 2006, 9 a 44. esta decisão será objecto de comentário mais à frente.27 Raúl ventura/Brito correia, Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades Anónimas e dos Gerentes de Sociedades por Quotas, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 192, 94 a 112 (94). saliente ‑se que tal não contende com o facto de essa diligência ser apreciada de acordo com um critério objectivo, tal como sucede no caso dos administradores.28 esta referência genérica justifica ‑se pela controvérsia do tema, que não se pretende abordar aqui.29 note ‑se que não será necessário uma manifestação física. as manifestações que se referem podem ser exclusivamente intelectuais. têm é de conhecer uma manifestação que permita a sua apreciação.30 Menezes cordeiro, Manual…, cit., 839 a 840.31 este ponto é abordado já a seguir.32 Idem, Da Responsabilidade…, cit., 40, n. 21, e 496 a 497.

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Frada33. todavia, é a própria natureza desse conteúdo, ou melhor, dos conceitos que o integram, que anseia pela intervenção de outras normas: como foi referido, a diligência não é algo que se possa exercitar em abstracto. não se é diligente sem mais, ou, ilustrativamente, “ninguém atua diligentemente, tout court: há que saber de que conduta se trata” para que se possa fazer o juízo de diligência34.

os elementos de ilicitude constantes do artigo 64.º não são, em si, incom‑pletos, pois, por um lado, impõe um dever (“os gerentes, administradores ou directores de uma sociedade devem”), e, por outro, descrevem o dever (“actuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado”). a incompletude resulta do próprio conteúdo do dever, que pela sua natureza é insusceptível de, autonomamente, ter existência. não é, neste sentido, uma incompletude estrutural, mas sim uma incompletude conceptual. diga ‑se, até, que o mesmo parece também poder ser dito sobre o novo quadro normativo que resultou da reforma de 2006.

Porém, reconhece ‑se que esta orientação assenta num particular sentido dado ao conceito de diligência que, por isso, apresenta ‑se vulnerável às contingências próprias da polissemia. Refira ‑se, simulando um exercício contra ‑argumentativo, que pode ser apontado o facto de a expressão diligência ser utilizada, até com sentido jurídico próprio, para representar um concreto comportamento, autónomo e que não carece de ser complementado35. este não é, pelo menos à luz da versão original do artigo 64.º, o sentido que melhor se articula com todo o sistema.

assim, toma ‑se o dever de diligência como uma norma parcelar, cuja incom‑pletude se traduz na necessidade de ser completada por outras norma que, como se viu, permitam que a atitude diligente se corporize. essas normas serão, numa primeira análise, aquelas que prescrevem ao administrador um comportamento específico36. Há, contudo, que averiguar se não existem, por sua vez, deveres de actuação de carácter genérico susceptível de, reflexamente, fazer recair o dever de diligência sobre toda a actuação dos administradores, o que nos conduz ao nosso próximo ponto.

33 veja ‑se, curiosamente, as considerações que o autor faz a propósito do dever de cuidado que brotou da reforma de 2006, parecendo descrever um dever de configuração muito semelhante a que propomos para o dever de diligência, concluindo, contudo, por se afastar deste entendimento ao referir que existem casos em que o dever de cuidado “não exprime um mero modo -de -realizar”. carneiro da Frada, A Business Judgement Rule…, cit., 67.34 Menezes cordeiro, Manual…, cit., 861.35 Pense ‑se nas diligências realizadas no âmbito do Processo Penal.36 elisabete Ramos, Responsabilidade Civil…, cit, 2002, 67.

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3. Dever de administrar

i. Já se fez referência aos deveres específicos dos administradores e ao dever geral de diligência, bem como, incidentalmente, ao dever de actuação em função de certos interesses. estas realidades, todavia, não chegam para proporcionar uma imagem do estatuto jurídico ‑passivo dos administradores, pelo que é necessário perceber se, e em que medida, os administradores estão adstritos a deveres de actuação para lá dos casos abrangidos por deveres específicos. é neste seguimento que surge o dever de gestão ou dever de administrar37.

ii. ainda a propósito do artigo 17.º do decreto ‑Lei n.º 49 381, Raúl ventura e Brito correia propugnavam a existência de um dever de gestão, de fonte legal, que encontrava apoio nos preceitos que atribuíam aos administradores a compe‑tência para a administração e representação da sociedade38.

Já em função do csc, ilídio duarte Rodrigues39 e elisabete Ramos40 também referem a existência de um dever de administrar que adstringe os administra‑dores, colocando a tónica, do mesmo modo, na dimensão passiva dessa posição jurídica. Por sua vez, Pedro Maia parece reconhecer a existência de um poder de administrar, parecendo encarar esta posição, sobretudo, como um poder41.

em textos ulteriores à entrada em vigor do decreto ‑Lei n.º 76 ‑a/2006, mas cujas conclusões parecem valer mesmo ao abrigo do quadro normativo anterior, Menezes cordeiro42 e engrácia antunes43 afirmam a existência de um poder de gestão, salientando o facto de que se trata, primacialmente, de uma posição jurídico ‑activa. adelaide Menezes Leitão considera importante sublinhar que a administração da sociedade constitui uma posição jurídico ‑activa do adminis‑trador44. Paulo olavo cunha também parece perspectivar a gestão como um elemento do estatuto jurídico activo do administrador45.

37 com prejuízo da precisão terminológica, utiliza ‑se ao longo do texto uma e outra expressão, não sem que, porém, se deixe de fazer referência ao conteúdo de cada uma.38 Raúl ventura/Brito correia, ob. cit., 112.39 ilídio duarte Rodrigues, A Administração das Sociedades por Quotas e Anónimas – Organização e Estatuto dos Administradores, 1990, 172 a 180 e 208 a 218, apud Mariana Figueiredo, ob. cit., 2011, 11, e Pedro caetano nunes, Corporate Governance, 18.40 elisabete Ramos, Responsabilidade Civil…, cit, 2002, 65.41 Pedro Maia, Função e Funcionamento do Conselho de Administração da Sociedade Anónima, 2002, 269 a 270, n. 324. este facto pode, porventura, encontrar justificação na circunstância de o problema ser abordado a propósito dos poderes dos administradores não delegados.42 Menezes cordeiro, Manual…, cit., 845 e 848.43 engrácia antunes, ob. cit., 322.44 adelaide Menezes Leitão, Responsabilidade…, cit., 34.45 Paulo olavo cunha, Direito das Sociedades Comerciais, 5.ª ed., 2012, pp.704 e 705.

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iii. Para nós, o dever de administrar aparece como o elemento mais elementar da situação jurídica de administração, estando numa relação muito íntima com toda a justificação do fenómeno da personificação colectiva.

consideramos que a assunção do status jurídico de administrador de uma determinada sociedade decorre, em primeiro lugar, da relação que se estabelece entre administrador e sociedade, que é uma relação obrigacional. Muito embora a lei modele e condicione o conteúdo desta relação, o que liga o administrador à sociedade é um contrato, e é no contrato que se encontra a causa legal do ingresso naquele estatuto jurídico. a lei, por um lado, limita ‑se a reconhecer os aspectos que considera que seriam previstos caso o conteúdo do contrato estivesse disponível, conferindo ‑lhes força imperativa em razão das necessidades de homogeneidade e previsibilidade que se verificam no âmbito do fenómeno da personificação colectiva. Por outro, impõe verdadeiras limitações à liberdade negocial, vedando certas soluções e impondo outras.

Por seu lado, o que identifica e confere tipicidade a essa relação é o dever de administrar, obrigação que aglutina todo o complexo de deveres de actuação que, por lei, estatutos e deliberações sociais, ou contrato, vinculam o administrador46. nesta relação obrigacional, o elemento distintivo é a prestação que o adminis‑trador deve executar, existindo, assim, uma verdadeira obrigação de administrar. neste sentido, o dever de administrar encontra, antes de mais, apoio na relação contratual existente entre administrador e sociedade, subsistindo mesmo quando faltem as normas que o pressupõem e indo além destas47.

o conteúdo deste dever é muito vasto e heterógeneo, coincidindo, tenden‑cialmente, com a administração em sentido objectivo. o dever de administrar, que pode ser descrito como o dever de “promover a realização do objecto social”48, compreende, assim, o dever de gestão (ou de administrar em sentido estrito), que compreende os deveres que se relacionam com a condução da actividade social

46 em sentido semelhante, quanto à natureza caracterizadora do dever de administrar, veja ‑se o que é dito por carneiro da Frada, A Business Judgement Rule…, cit., 63 e 64, que afirma que “o dever de prestar que confere individualidade, tipicidade e unidade à situação do administrador é, singelamente, o dever de administrar”. coutinho de abreu, ob. cit., 35 e 36, n. 69, parece até ir mais longe, colocando o dever de administrar numa espécie de posição cúpula debaixo do qual estariam os deveres específicos e o dever geral de cuidado, equiparando, para este efeito, estas duas classes de deveres. no que concerne ao dever de diligência, não se vê qualquer diferença no anterior direito que obste à mesma consideração à sua luz.47 em sentido contrário, parecendo apoiar o dever de gestão exclusivamente nas normas que atribuem ao administrador competências des gestão e que lhe impõem deveres, Raúl ventura/Brito correia, ob. cit., 112, e Pedro caetano nunes, ob. cit., 32 a 35. este último parece também justificar o dever de gestão no dever de diligência do artigo 64.º, em especial p. 32.48 elisabete Ramos, Responsabilidade Civil…, cit., 58.

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e tomada de decisões, seja através da prática de actos jurídicos ou materiais, e o dever de representação, que se traduz na faculdade/dever de vincular a sociedade perante terceiros. os numerosos e variados deveres específicos previsto ao longo do csc são concretizações deste dever de administrar e desempenham uma função conformadora, limitando de forma drástica o conteúdo do dever em cada tipo societário e contribuindo, assim, para lhe conceder um carácter ainda mais típico.

Mas, como se veio dizendo, a posição do administrador é constituída por deveres mas também por posições activas. seria uma tradução pobre e imprecisa se as posições activas do administrador fossem identificadas apenas com aquelas prestações que visam assegurar o equilíbrio sinalagmático da relação, v.g. o direito à remuneração49 ou o direito a pensão de reforma50, bem assim apresentar o dever de administração como uma simples obrigação de prestar. na realidade, este dever apresenta uma estrutura bastante mais complexa, não se podendo reconduzir a uma simples posição de adstrição. como até decorre da leitura de alguns dos preceitos que são apontados como deveres específicos dos adminis‑tradores, podemos constatar que o dever de administrar é concretizado através da atribuição de um poder ao administrador. Ponto central é a compreensão de que esse poder é atribuído para que o dever de administrar possa ser convenien‑temente exe cutado, surgindo assim o poder como um modo de protecção de um determinado interesse que se pretende preservar. os poderes dos administrado‑res estão, assim funcionalizados a um determinado fim, podendo ser descritos como poderes ‑deveres51. é, assim, bem possível identificar nestes poderes uma justificação que é alheia ao administrador, podendo ser encontrada, antes, na esfera da sociedade ou do interesse colectivo dos sócios, segundo se entenda, ou mesmo no interesse de determinados sócios, v.g. minoritários, stakeholders, credores sociais, etc. Por essa razão, não repugna a qualificação desta posição como dever ou obrigação, antes, até, parece ser mais reveladora da realidade que pretende descrever, sempre sob o reparo, porém, que não pode ser reconduzida a um mera posição passiva52.

aliás, o entendimento que se faça da natureza jurídica predominantemente activa ou passiva dos poderes ‑deveres dos administradores está profundamente ligado à perspectiva que se adopte sobre o fenómeno da personificação colectiva,

49 artigos 192.º/5, 255.º/1, 399.º, 429.º e 440.º do csc.50 artigo 402.º do csc.51 neste sentido, Menezes cordeiro, Manual…, cit., 845 a 849, e adelaide Menezes Leitão, Responsabilidade…, cit., 34, em especial, notas 48 e 51.52 colocamo ‑nos, assim, mais próximo da posição apresentada por carneiro da Frada, A Business Judgement Rule…, cit., 66 a 68, do que da de Menezes cordeiro, Manual…, cit., 845 a 849.

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revelando ‑se uma tendência natural, ainda que não necessária, para o acentuar da posição passiva quando se propenda para uma orientação de tipo contratualista, ou da posição activa, quando se propenda para uma concepção de tipo institu‑cionalista.

iv. concluindo, da ponderação do exposto sobre o artigo 64.º e a existên‑cia de um dever geral de diligência e a afirmação de um dever de administrar, pode ‑se finalmente proporcionar um quadro geral da posição jurídico ‑passiva dos administradores perante a sociedade. os administradores têm, em primeiro lugar, o dever de administrar a sociedade. esse dever, que resulta, na sua formulação geral, da relação contratual que se estabelece entre sociedade e administrador, é, numerosas vezes e a propósito de variados aspectos, objecto de especificação na lei. concebendo o dever geral de diligência como uma norma incompleta, no sentido em que foi apontado, poderíamos ser levados a crer que a diligência só poderia conhecer aplicação onde houvesse especificação legal da conduta devida pelo administrador, porque só aí se poderia encontrar normas que a complementassem. no entanto, consideramos que esse papel não tem de ser desempenhando, exclusivamente, aos deveres legais específicos. visando a diligência a actuação do administrador, pensamos que a realidade que deve complementar o dever de diligência é, em primeira linha, o dever de administrar. consequentemente, o dever de diligência, mantendo a sua natureza parcelar, é aplicável a toda a actuação dos administradores enquanto tal53.

4. Responsabilidade civil dos administradores perante a sociedade

i. a repercussão negativa da gestão na esfera do administrador é, essen‑cialmente, uma matéria de deveres dos administradores e de responsabilidade civil. no entanto, mercê de uma regra desenvolvida pela doutrina e jurisprudência ita‑liana, a questão tem sido abordada de uma perspectiva que, pelo menos em algumas

53 não se acompanha, deste modo, a crítica feita por Filipe vaz Pinto/Marcos Keel Pereira, ob. cit., 15, a Menezes cordeiro, quando concluem que, bem vistas as coisas, a posição defendida pelo autor acaba por se mostrar desprovida de consistência prática, ficando ‑se reduzido à seguinte alternativa: ou se conseguia identificar na conduta do administrador uma violação de uma dever específico, caso em que os autores referidos consideram não ser necessário o recurso ao artigo 64 (apenas o seria para a determinação da culpa), ou, se não se conseguisse vislumbrar a violação de qualquer dever específico, de nada valeria o artigo 64.º e a sua referência a elementos da ilicitude, na medida em que este não gozam de autonomia para justificar a aplicação autónoma. como pretendemos ter transmitido, esta crítica pode ser facilmente ultrapassada se se admitir que o dever de administrar desempenha esse papel integrador.

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das suas formulações, é mais correctamente enquadrada no âmbito da extensão do poder jurisdicional sobre as decisões dos administradores, o princípio da insindicabi-lidade do mérito das decisões dos administradores. Resumidamente, segundo este prin‑cípio existe uma regra, não positivada mas que podia ser extraída através de uma interpretação global do sistema normativo, que ditava que o mérito das decisões dos administradores não podia ser objecto de valoração por parte de um juiz54.

em Portugal, a questão da existência de uma regra equivalente foi levantada por Pedro caetano nunes55, e afirmada por soares da silva56. no entanto, o problema da exposição dos administradores ao resultado da sua gestão antes da reforma de 2006 já havia sido colocado por Raúl ventura e Brito correia, que, no entanto, enquadravam expressamente o problema no âmbito da determinação da extensão dos deveres dos administradores. como veremos, é precisamente a colocação do problema em planos tão diversos que motiva a controvérsia que rodeia a business judgement rule.

ii. o artigo 72.º/1 rege a responsabilidade civil dos administradores perante a sociedade. a sua redacção manteve ‑se inalterada após a reforma do csc, e dispõe que “os gerentes ou administradores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por actos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa”. assim, é apontada como uma responsa‑bilidade obrigacional57, funcional58 e subjectiva59, cuja verificação encontra ‑se na dependência dos pressupostos tradicionalmente exigidos para uma responsabili‑dade por factos ilícitos60 – a prática de um facto ilícito e culposo61 que seja causa jurídica de um prejuízo para a sociedade.

da sua leitura, e para o objecto deste estudo, é importante destacar que a responsabilidade perante a sociedade funda ‑se sempre na violação de deveres

54 sobre a questão, elisabete Ramos, Responsabilidade Civil…, cit., 56 a 88.55 Pedro caetano nunes, ob. cit., 9 a 44.56 soares da silva, ob. cit., 626.57 Menezes cordeiro, Da Responsabilidade…, cit., 493. esta afirmação, apesar de colher apoio quase unânime na doutrina nacional, é posta em causa através do advento da teoria das normas de protecção, neste pensamento, o artigo 64.º do csc mostra ‑se como verdadeira norma de protecção da sociedade, pelo que a natureza da responsabilidade em causa seria delitual, desempenhando o artigo 72.º/1 o papel previsão delitual secundária que, aliás, pode até revelar ‑se desnecessária face ao artigo 483.º/1 do cc. adelaide Menezes Leitão, ob. cit., 19 a 53, em especial 32 a 37.58 elisabete Ramos, Aspectos Substantivos…, cit., 223 a 226.59 Idem, 226.60 coutinho de abreu, Responsabilidade Civil dos Administradores da Sociedades, 2.ª ed., 2010, 7 a 9.61 sem prejuízo de, em alguns casos, ser difícil cindir ilicitude e culpa. Pensa ‑se, sobretudo, na hipótese que, aliás, ocupa lugar central neste trabalho, da violação de um dever de conduta ou, se se preferir, de uma obrigação de meios. a isto voltaremos mais à frente.

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legais ou contratuais, de carácter geral ou específico. dessa forma, tendo já sido referidos quais os deveres que impendem sobre os administradores, a questão que se mostra pertinente colocar agora – sobretudo, após a afirmação da existência de deveres gerais – é a de saber qual o seu conteúdo.

iii. embora se possa encontrar, no csc e em legislação avulsa, um grande número de deveres específicos, a realidade é que a administração é principalmente uma actividade livre de imposições legais. esta circunstância compreende ‑se muito bem: a actividade da sociedade é tendencialmente irrestrita, estando apenas delimitada pelo menções estatutárias ao objecto social que, aliás, têm vindo a ser entendidas amplamente. deste modo, o campo de actuação potencial de uma sociedade apresenta ‑se muito vasto. cabendo ao administrador a administração da sociedade, a sua actuação será, à partida, tão vasta quanto a da sociedade. não seria assim possível, nem desejável, que a actividade dos administradores se encontrasse absolutamente vinculada a imposições legais. é, aliás, nesta circunstância, aliada ao facto de se estar a falar da administração de um património alheio, que se justifica a consagração de um dever geral de diligência especialmente intenso. do mesmo modo, para lá de também ser impossível, a absoluta regulação estatutária da gestão também não se mostra desejável.

estruturalmente, a circunstância de actuar dentro desta margem de discri‑cionariedade deve ser configurada como um poder funcional (valendo as consi‑derações feitas anteriormente), que encontra fundamento na lei62, mas que, onde esta não exista, sempre encontrará fundamento na relação obrigacional entre administrador e sociedade.

assim, os administradores gozam de um amplo espaço de actuação discri‑cionária, isto é, um espaço onde o sentido da sua actuação não encontra direcção específica, nem na lei, nem nos estatutos. no entanto, nem por isso se poderá dizer que se encontram totalmente desprovidos de indicações. assim, por um lado, têm sempre o referente final do interesse social63, por outro, sempre sabem que toda a sua actuação deve ser conformada, no mínimo, pelo padrão que o administrador consciente e ordenado apresentaria.

o exacto conteúdo do dever geral de administrar diligentemente deve ser sempre entendido à luz da discricionariedade inerente à actividade de administrar sociedades, bem como das razões justificativas que a fundamentam.

62 elisabete Ramos, Responsabilidade Civil…, cit., 56 a 88, refere os artigos 405.º e 406.º.63 Por não integrar o objecto deste estudo não se fez referência ao peso que os interesses referidos adquirem na economia do preceito. no entanto, e passando um tanto por cima da discussão doutrinal, sempre se dirá que a versão original do artigo 64.º compreendia um dever lealdade que obrigava os administradores a prosseguir o interesses social, como quer que este fosse entendido.

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iv. do que se veio expondo sobre os deveres gerais dos administradores pode ‑se constatar que em nenhuma das hipóteses referidas o dever que vincula o administrador é construído de forma a que só possa ser cumprido caso a admi‑nistração proporcione um determinado resultado. o dever geral de actuação diligente apresenta ‑se como uma norma de conduta. Para o seu cumprimento basta que o administrador, na sua actuação, tenha desenvolvido os esforços que o administrador criterioso e ordenado teria desenvolvido se colocado naquela situação, não dependendo, assim, de verificação de qualquer resultado, indepen‑dentemente da sua natureza.

desta forma, recordando que a responsabilidade do administrador depende sempre da prática de um facto ilícito, que neste âmbito corresponde à violação de um dever, podemos concluir que o mero resultado negativo da administração não é susceptível de sustentar uma pretensão indemnizatória da sociedade.

aliás, de outra forma não poderia ser. ao ingressar nessa qualidade, os sócios expõem ‑se, deliberadamente, ao risco inerente à sua participação social, que varia consoante o tipo societário. no entanto, com maior ou menor grau, a disponi‑bilidade potencial de exposição a esse risco é um elemento que caratacteriza a sua posição de sócio64. Por sua vez, os administradores, ao ingressarem na relação de administração, não pretendem ficar expostos a esse risco65. Um sistema que responsabilizasse os administradores sempre que da sua actuação resultassem pre‑juízos para a sociedade importaria uma repartição do risco social com a administração que, por um lado, subverteria toda lógica por detrás da personificação colectiva, e, por outro, não se enquadraria na nossa tradição de imputação de danos.

de outra perspectiva, o administrador, quando contrata com a sociedade e ascende a esse estatuto jurídico, não se obriga a alcançar determinado resultado66, apenas se vincula ao desenvolvimento de um certo esforço – a diligência de um administrador criterioso e ordenado67 – pelo que, no seguimento da distinção

64 diz ‑se disponibilidade potencial porque, como se sabe, através de vários mecanismos, v.g. destaque do direito aos dividendos, o sócio pode externalizar essa exposição, sem que, contudo, por um lado, deixe de estar exposto, ainda que indirectamente, e, por outro, perca a qualidade de sócio.65 o que não invalidade que o pretendam e possam fazer, v.g., adquirindo acções da sociedade. todavia, o ingresso na situação jurídica de administração não é, tipicamente, motivado pela vontade de exposição a esse risco.66 embora também se deva questionar se tal não será possível. é verdade que parte das remunerações dos administrador já se encontram, muitas vezes, dependentes dos resultados da gestão. no entanto, nessas hipóteses, não se constitui uma obrigação de os alcançar.67 da mesma forma, também se pode questionar se não será possível um administrador obrigar‑se a um esforço mais intenso.

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feita por alguma doutrina68, o dever geral de administrar diligentemente seria uma obrigação de meios69.

os prejuízos que da actuação do administrador decorram para a a sociedade só poderão ser imputados àquele na medida em que este não tenha actuado com a diligência devida.

5. A business judgement rule

i. a business judgement rule é uma regra do direito societário norte ‑americano com origem jurisprudencial70. apesar de ter cerca de duzentos anos71, a dou‑trina e a jurisprudência ainda não conseguiram alcançar um consenso quanto à natureza, formulação e conteúdo72, não se ambicionando, por esse motivo,

68 antunes varela, Das Obrigações em Geral, vol. i, 7.ª ed., 86 e 87, n. 2, e almeida costa, Direito das Obrigações, 12.ª ed., 2009, 1039 e 1040.69 neste sentido, sobre o direito actual, mas também aplicável ao direito pretérito, carneiro da Frada, A Business Judgement Rule…, cit., 86. Para nós, a distinção entre obrigação de meios e de resultado deve ter um valor tendencialmente descritivo ou didáctico. Utilizando ‑a agora, pensa ‑se que no domínio das obrigações de meios e, em especial, do dever de administrar diligentemente, a interpenetração entre culpa e ilicitude, é especialmente evidente, aproximando ‑se do sistena da “faute”. Menezes cordeiro, Manual…, cit., 981. Para uma descrição do panorama doutrinal e jurisprudêncial sobre a matéria, assim como as implicações de regime, Brandão Proença, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, 1.ª ed., 2011, 224 a 230. a administração de sociedades afasta ‑se, em certa medida, daquele que é o campo típico deste tipo de obrigações, v.g. a actuação de um médico ou de um advogado, ou seja, onde existe um corpo de regras identificáveis como leges artis susceptível de indiciar, com muita certeza, a ilicitude da conduta do agente quando não respeitadas. apesar de também se poder apontar a existência de um corpo de regras dessa natureza à actividade de administração, certo é que, por um lado, a gestão não se presta à enunciação deste tipo de regras, pois o seu campo é tendencialmente expansivo, e por outro, entende ‑se que essas regras, no âmbito da administração, não são suficientemente indiciadoras da ilicitude da conduta do administrador. são estes aspectos que, a nosso ver, justificam, nos estados‑‑Unidos, na alemanha e em Portugal, a consagração de regras que são comummente designadas por business judgement rule.70 stephen Bainbridge, The Business Judgment Rule as Abstention Doctrine, in vanderbilt Law Review, 57, 2004, consultado em http://ssrn.com/abstract=429260, abstract, e Pereira de almeida, Business Judgement Rule, in i congresso das sociedades em Revista, 2010, 359.71 Ricardo costa, Responsabilidade dos Administradores e Business Judgment Rule, in Reforma do código das sociedades, instituto de direito das empresas e do trabalho, colóquios, n.º 3, 2007, 52.72 veja ‑se estes três textos, apresentando, entre eles, diferenças substancias, stephen Bainbridge, ob. cit., e david Rosenberg, Galactic Stupidity and the Business Judgement Rule, the Berkeley electronic Press (bepress), 2006, consultado em http://law.bepress.com/expresso/eps/1067, e Fred W. triem, Judicial Scizophrenia In Corporate Law: Confusing The Standard Of Care With The Business Judgement Rule. veja ‑se, também, as diferentes formulações que são associadas à regra no

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descrever aqui todas as formas como a regra é por lá concebida, pretendendo ‑se antes fazer apenas uma enunciação de alguns elementos que se entendem indis‑pensáveis à regra. Resumidamente, no direito societário dos estados Unidos73, os administradores estão sujeitos a um duty of care e a um duty of loyalty. o duty of care, de forma analítica, traduz ‑se em quatro imposições: duty to inquiry, duty to monitor, o dever de utilizar um reasonable decisionmakinking process e o de tomar uma reasonable decision74, muito próximo do dever de administrar diligentemente que referimos em cima e claramente inspirador do dever de cuidado que foi consagrado na reforma do csc.

a interacção da business judgement rule com o duty of care é complexa e situa‑se, segundo acreditamos, no plano do controlo judicial. assim, em primeiro lugar, e um aspecto que tem passado ao lado de muita doutrina e é absolutamente fundamental, é o facto de o administrador ter de actuar de boa fé75, isto é, acre‑ditando, racionalmente (e não razoavelmente), que a decisão tomada é a melhor para a sociedade.

depois, a regra só se aplica quando estão em causa decisões empresariais. isto significa que é necessário que o administrador tenha uma intenção de actuar, ainda que a opção seja a omissão, ficando de parte a mera omissão irreflectida.

em terceiro lugar, é necessário que a decisão tenha sido desinteressada, ou seja, livre de conflito de interesses.

Por fim, há que identificar no duty of care as imposições que têm carácter formal e verificar se estas foram respeitadas.

estando reunidas estas condições o juiz, quando confrontado com a questão, apenas deverá averiguar se a decisão se mostra racional. Mostrando ‑se, então o controlo pelo respeito do duty of care fica por aí. se não se mostrar racional, então juiz já deverá apreciar todos os aspectos do duty of care, designadamente, se o

direito norte ‑americano apresentadas pelos autores nacionais que se dedicaram ao tema, inter alia, Ricardo costa, ob. cit., 53 a 60, e Pedro Pais de vasconcelos, Business judgement rule, deveres de cuidado e de lealdade, ilicitude e culpa e o artigo 64.º do Código das Sociedades Comercias, in direito das sociedades em Revista, ano 1, vol. 2, 2009, 41 a 51.73 Refira ‑se que o direito que aqui se vai referir é o que resulta dos Principles of Corporate Governance, obra publicada pelo Amercian Law Instititute (aLi), devendo por isso ser entendida à luz do peso particular que este conjunto de normas adquire naquele ordenamento. tenha‑se ainda em mente que o direito do estado do delaware também inspira as considerações que se seguem.74 Pedro caetano nunes, ob. cit., 22, e soares da silva, ob. cit., 623.75 embora em algumas referências à regra, se pretenda negar esta necessidade, quase sempre se acaba por admitir, ainda que camufladamente, este requisito. diga‑se que, para nós, a boa fé que neste caso é relevante equivale à actuação no interesse da sociedade, pelo que, no direito português integraria o dever de lealdade.

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dever de tomar reasonable decisions foi respeitado, ou seja, fará um controlo, mais apertado, da decisão.

Por outro lado, à business judgement rule também é assimilado outro efeito, o de distribuir o ónus da prova. Quando alguém pretenda pôr em causa o cum‑primento do duty of care do administrador terá de provar que aqueles requisitos não estão cumpridos para que o juiz possa apreciar a conformidade da conduta com todo o standard próprio do duty of care, não apenas os seus aspectos formais.

assim concebida, a business judgement rule é uma presunção de licitude da actuação dos administradores.

6. Controlo judicial das decisões empresariais antes da reforma de 2006 i. em face do que foi exposto sobre a situação jurídica de administração e da

business judgement rule, cabe agora averiguar em que termos as decisões dos admi‑nistradores podiam ser alvo de controlo judicial, procurando saber se, e em que termos, existia alguma regra que possa ser a identificada com a business judgement rule. o ponto de partida escolhido é uma decisão jurisprudencial que, aparente‑mente, afirma a existência da regra no ordenamento jussocietário nacional, a já referida sentença da 3.ª vara cível de Lisboa, de 27 ‑10 ‑200376

ii. esta decisão foi proferida no contexto de uma acção de responsabilidade civil contra os administradores de uma sociedade proposta por um dos sócios em favor desta. o autor fundamentava a sua pretensão no facto de os administrado‑res terem paralisado a actividade social, declinando novas propostas contratuais. os Réus contra ‑alegaram, sustentando que a continuidade da actividade social através da aceitação de novos contratos seria uma “atitude temerária, em tudo con-trária ao dever de gestão (…) diligente e criteriosa”, tendo tomado a única opção que consideravam “prudente, racional e conforme o interesse da sociedade”, que seria a acei‑tação exclusiva da renovação de contratos de pequeno significado. Refira ‑se que ficou provado que a situação económico ‑financeira da sociedade no momento da decisão era precária, e que a aceitação de novas obrigações que, previsivelmente, não poderiam ser cumpridas, contribuiria para a o incremento dos prejuízos pois haveria que pagar as indemnizações.

após, uma incursão pelo direito português, americano, alemão e italiano, o tri‑bunal como já foi referido a cima, concluiu pela existência de um dever de gestão no direito societário português, expressando também a sua posição quanto à existência de uma regra de onde se retire a “(in)sindicabilidade do mérito das decisões empresariais”.

76 Publicada em Pedro caetano nunes, ob. cit., 9 a 44.

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afirma que o dever de gestão compreende, entre outros, o dever de obtenção de informação no iter decisional e o dever de não tomar decisões irracionais, mas não o dever de tomar decisões adequadas. continua dizendo que a “mera aceitação de uma margem de discricionariedade constitui um mecanismo insuficiente de limitação da sindicabilidade do mérito das decisões empresariais”. este entendimento permitiria que só a irracionalidade das decisões fosse analisada, o que serve de esteira, no entender do tribunal, para a recepção da business judgement rule no ordenamento jurídico português, sendo “inerente” ao dever de gestão e pressuposto dos artigos 405.º, 406.º e 64.º do csc.

iii. as considerações feitas pelo tribunal prestam ‑se a algum comentário. acompanha ‑se o tribunal quando afirma que o dever de gestão (que pre‑

ferimos designar dever de administração diligente) compreende o dever de intervenção e de obtenção de informação. de facto, uma das manifestações da administração diligente poderá ser encontrada em cada um dos deveres, são con‑cretizações, ainda gerais, do dever (mais geral) de diligência. contudo, quanto ao dever de adequação e de não tomar decisões racionais há que precisar o sentido da afirmação. o administrador está obrigado a administrar segundo o padrão de um administrador especialmente diligente. no entanto, também está obrigado a um dever de lealdade, que se consubstancia no dever de administrar sempre no (melhor) interesse da sociedade77. o interesse da sociedade só será alcançado se as suas decisões forem adequadas. nesse sentido, sempre que o administrador repre‑sente como possibilidade um leque de decisões adequadas, este deverá escolher a que, segundo o seu juízo (que deve ser diligente), for a mais adequada. de outra perspectiva, se escolher uma actuação que não seja adequada, sabendo que existe pelo menos uma que é, então não cumprirá quaisquer dos deveres e incorrerá em responsabilidade. neste sentido, há um dever de tomar decisões adequadas. se, no entanto, tomar uma decisão, convicto de que é adequada, quando não é, não existe qualquer problema de lealdade, mas sim apenas de diligência. neste caso, se a desadequação não pudesse ser percepcionada pelo administrador diligente crite‑rioso, então não haverá violação de qualquer dever. assim, o dever de adequação depende sempre do estado subjectivo do administrador, isto é, se este toma uma decisão desadequada (ou que não é a mais adequada, na sua perspectiva), sabendo que existe uma que se adequa ao fim (ou se adequa melhor ao fim).

a margem de discricionariedade da administração não é um mecanismo que tenha por objectivo primeiro reger a matéria de responsabilidade. esta é, antes de mais, decorrente da relação obrigacional que se estabelece, sendo o seu exacto

77 esta aparente simplicidade pode ser colocada em causa pelo entendimento que se faça da referência aos interesses que o csc fazia no seu artigo 64.º.

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conteúdo encontrado no quadro dos deveres gerais e específicos dos administra‑dores, servindo de pilar na construção dos tipos societários, aparecendo mesmo, por vezes, elevado a mecanismo de protecção da sociedade e dos sócios78.

o critério da racionalidade ou irracionalidade da decisão, para lá de não colher qualquer apoio na lei, era (e é) afastado pela consagração do padrão objectivo da diligência do administrador criterioso e ordenado. embora, como vimos, o direito societário norte ‑americano adopte os conceitos de razoabilidade e de racionalidade como mecanismos de controlo objectivo ou externo, no direito português esse mecanismo era (e é) oferecido pela diligência do artigo 64.º, pelo que não vemos como, sem um intervenção legislativa, se poderia fazer substituir racionalidade por diligência.

no que toca à distribuição do ónus da prova, sufraga ‑se a posição do tribunal, quando afirma que será apenas necessário que a autora produza prova indiciária da violação do dever de conduta. tal é, também, a posição tomada por carneiro da Frada79 e ana Perestrelo de oliveira80 tomando por referência o resultado da reforma. contudo, as conclusões parecem aplicáveis ao quadro que a antecedeu.

apesar da defesa da insindicabilidade do mérito das decisões empresariais81, o tribunal termina fazendo, precisamente, uma apreciação do mérito da decisão dos administradores que, aliás, nem se ateve à sua racionalidade, permitindo ‑se indagar sobre a sua adequação e concluindo por esta, não considerando respon‑sáveis os administradores.

iv. da decisão e dos comentários que a seu propósito foram sendo tecidos crê ‑se ser claro que a business judgement rule, antes da reforma de 2006, não tinha consagração no panorama jurídico ‑societário português. aliás, nem teria por que ter. a business judgement rule é uma regra que distorce os mecanismos gerais de controlo da actividade dos administradores. essa distorção só deve ocorrer quando se mostre necessária e indispensável. ora, tal como é afirmado pela própria cMvM na proposta que inspirou a reforma “não se verifica em Portugal esse excesso de litigância” contra os administradores82. o quadro de deveres dos administradores

78 Uma administração independente, no sentido de livre de pressões por parte de determinados sócios, inclusivamente daqueles que a elegeram, garante que a sociedade e os sócios minoritários não sejam prejudicados pela desconsideração dos seus interesses em favor dos de determinados sócios.79 carneiro da Frada, A Business Judgement Rule…, cit., 86.80 ana Perestrelo de oliveira, A Responsabilidade Civil dos Administradores nas Sociedades em Relação de Grupo, 2007, 149 e 150.81 Que se aproxima da business judgement rule como uma abstetion doctrine, tal como é apresentada por stephen Bainbridge, ob. cit., 6 e ss.82 cMvM, Proposta de Alteração ao Código das Sociedades Comerciais, 2006, 18. no mesmo sentido, Menezes cordeiro, Manual…, cit., 839 a 840

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e as regras de responsabilidade civil do csc, como também é reconhecido no mesmo documento, ainda não haviam esgotado o seu potencial.

sobre o controlo do mérito da conduta do administrador diga ‑se que é sempre apreciado pelo juiz, tanto antes, como depois da reforma de 2006, bem assim com ou sem business judgement rule. Uma acção de responsabilização de um administrador sempre haveria de compreender um juízo do mérito da gestão. esse exercício é inevitável sempre que há um espaço de discricionariedade funciona‑lizado a determinado fim. no caso dos administradores, em acrescento, havia um dever de conduta, o que justificava e aumentava a área de apreciação do juiz. deste modo, o juiz teria sempre de indagar se a actuação do administrador, em face do que era dele exigido, podia ter sido aquela actuação, sabendo que sobre o administrador impendem deveres de carácter substancial e não, apenas, formal. Havendo business judgement rule e procedendo a tese da racionalidade, o juízo de mérito também teria de ter lugar, uma vez que para verificar se uma administração é irracional é necessário averiguar quais é que seriam racionais83.

v. assim, não existia qualquer regra material que pudesse ser identificada com a business judgement rule antes da reforma do csc. no entanto, como se viu, tal não queria dizer que os administradores fossem responsáveis pelos resultados negativos da sua administração, designadamente, quando, no plano judicial, se verificasse que a sua actuação causara prejuízos à sociedade. os prejuízos que resultam da administração fazem parte do risco inerente a actividade societária, e este corre por conta da sociedade, num primeiro plano, e dos sócios, reflexamente.

os resultados negativos da gestão só podem ser imputados aos administradores quando estes violaram alguns dos seus deveres, assumindo particular importância o dever geral de administrar diligentemente.

o mérito das decisões empresariais é, assim, objecto de controlo judicial. no entanto, este controlo restringe ‑se ao necessário para verificar a violação de um dever dos administradores.

7. A business judgement rule depois da reforma de 2006

i. apesar da reforma do csc ter alterado as normas relativas aos deveres dos administradores, pensamos que no plano material não introduziu grandes mudanças. a distinção entre dever de lealdade e dever de diligência/cuidado já era feita anteriormente. a diligência, embora surja camuflada pela forma como se encontra redigido o artigo 64.º, pode ser considerada como desempenhando

83 veja ‑se o que diz david Rosenberg, ob. cit., 13 a 31.

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um papel central na conduta devida pelo administrador, sendo o dever de cui‑dado e respectivos subtipos elementos que se encontram a meio caminho entre a generalidade e a concretização. a diligência também desempenha um papel na determinação da culpa.

ii. o artigo 72.º/2, norma que tem sido afirmada representar a recepção da business judgement rule no direito das sociedades português, surge apontada por alguma doutrina como constituindo uma causa de exclusão da culpa84, da ilicitude85, ou de ambas86, como presunção de ilicitude87, e até, como operando ao nível da causalidade88.

Pensamos que o papel deste preceito depende largamente da amplitude com que se entenda a referência a racionalidade empresarial. Por um lado, pode ser neutro em face do artigo 64.º, caso a racionalidade seja interpretada de forma tão restrita que se identifique com o dever de cuidado. Por outro, se for entendido amplamente, então poderá mesmo estar em causa uma restrição do dever de conduta que o artigo 64.º dita aos administradores, uma vez que o seu controlo judicial esbarrará na necessidade de irracionalidade.

segundo se crê, o artigo 72.º/2 não pode ser elevado a regra de conduta, o que importaria uma duplicação de referentes dificilmente explicável. a regra assume uma dimensão eminentemente processual, visando não sujeitar a con‑duta do administrador a um escrutínio judicial moroso, demorado, e que muitas vezes não logra ser revelador da realidade que se pretende demonstrar. assim, se o administrador decidir e estiver em condições de apresentar provas de que actuou em termos informados e livre de interesse pessoal (interpretando ‑se este elemento como fazendo referência ao respeito pelo dever de lealdade), o juiz fará uma apreciação superficial dos elementos. essa apreciação superficial é permitida porque o conceito de controlo – a racionalidade – é muito lasso, ao invés do que sucede com a diligência.

84 calvão da silva, Responsabilidade Civil dos Administradores Não Executivos, da Comissão de Auditoria e d Conselho Geral e de Supervisão, in a Reforma do código das sociedades, Jornadas em Homenagem ao Professor doutor Raúl ventura, 2007, 147.85 Gabriela Figueiredo dias, Estruturas de Fiscalização de Sociedades e Responsabilidade Civil, in nos 20 anos do código das sociedades comerciais – Homenagem aos Profs. doutores a. Ferrer correia, orlando de carvalho e vasco Lobo Xavier, vol. i, 2008, 823 ‑833 e carneiro da Frada, A Business Judgement Rule…, cit., 64 a 66.86 Menezes cordeiro, Manual…, cit., 985.87 Pedro Pais de vasconcelos, Business judgement rule, deveres de cuidado e de lealdade, ilicitude e culpa e o artigo 64.º do Código das Sociedades Comercias, in direito das sociedades em Revista, ano 1, vol. 2, 2009, 54 e ss.88 adelaide Menezes Leitão, Responsabilidade…, cit., 36.


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