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A flora africana na botanica colonial (2).pdf

Date post: 02-Nov-2015
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  Á fric a : Revista do Centro de Estudos Africanos. USP, S. Paulo, 22-23: 25-47, 1999/2000/2001. 25 N A A A A VEGANDO VEGANDO VEGANDO VEGANDO VEGAN DO  CONTRA CONTRA CONTRA CONTRA CONTRA  A A A A A  CORREN TE CORREN TE CORREN TE CORREN TE CORREN TE: O  PAPEL APEL APEL APEL APEL  DOS DOS DOS DOS DOS ESC RA ESC RA ESC RA ESC RA ESC RA V OS VOS V OS VOS V OS E D A DA D A DA D A  FL FL FL FL FLORA O RA ORA O RA O RA  AF RICAN A AFRICANA AF RICAN A AFRICANA AFRIC AN A  NA NA NA NA NA  BOTÂNIC A BOTÂNIC A BOTÂN IC A BOTÂN IC A BOTÂN IC A  DO DO DO DO DO PERÍODO PERÍODO PERÍODO PERÍODO PERÍODO  COL CO L COL CO L COLONIAL ONIAL ONIAL ONIAL ONIAL *  J u d ith CA RN E Y ** O Brasil fornecia milho, feijão, mandioca, caju, mamão e abacaxi; A Índia, arroz, coco... A  Á fric a ... c ontrib u ía c o m na d a im p o rta n te . Orlando Ribeiro, 1962  S e a Á fric a p a re c e te r c ontribu íd o p ouco p ara outros continentes é porque ela está apenas começando a tornar-se conhecida. Roland Portères, 1970 RESUMO : O caráter revolucionário das trocas ecológicas e botânicas que sucederam a expansão marítima Européia pós 1492 é hoje largamente reconhecido. Não obstante, a literatura que estuda as trocas culturais e comerciais do período pós-Colombiano perma- nece omissa no que se refere à disseminação alhures de plantas nativas da África e aos m eios pelos qua i s isto ocorreu. Pa ra rev erter esta c orrente, com o reve la este arti go, torna- se necessário que se caracterize o papel que o comércio transatlântico de escravos teve na dispersão destas plantas, assim como a importância que os escravos africanos desempe- (* ) G osta ria de e xp res sar minha gra tidão a Qu irino de B rito pe la forma judiciosa c om qu e traduziu este artigo para o português. (* * ) Depa rtm ento de Ge ografia. Universi da dedaCal i fornia. US A. Em ail: ca [email protected].
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  • frica: Revista do Centro de Estudos Africanos. USP, S. Paulo, 22-23: 25-47, 1999/2000/2001.

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    NNNNNAAAAAVEGANDOVEGANDOVEGANDOVEGANDOVEGANDO CONTRACONTRACONTRACONTRACONTRA AAAAA CORRENTECORRENTECORRENTECORRENTECORRENTE: : : : : OOOOO PPPPPAPELAPELAPELAPELAPEL DOSDOSDOSDOSDOSESCRAESCRAESCRAESCRAESCRAVOSVOSVOSVOSVOS EEEEE DADADADADA FLFLFLFLFLORAORAORAORAORA AFRICANAAFRICANAAFRICANAAFRICANAAFRICANA NANANANANA BOTNICABOTNICABOTNICABOTNICABOTNICA DODODODODO

    PERODOPERODOPERODOPERODOPERODO COLCOLCOLCOLCOLONIALONIALONIALONIALONIAL*****

    Judith CARNEY **

    O Brasil fornecia milho, feijo, mandioca, caju,mamo e abacaxi; A ndia, arroz, coco... Africa... contribua com nada importante.

    Orlando Ribeiro, 1962

    Se a frica parece ter contribudo pouco paraoutros continentes porque ela est apenas

    comeando a tornar-se conhecida.

    Roland Portres, 1970

    RESUMO: O carter revolucionrio das trocas ecolgicas e botnicas que sucederam aexpanso martima Europia ps 1492 hoje largamente reconhecido. No obstante, aliteratura que estuda as trocas culturais e comerciais do perodo ps-Colombiano perma-nece omissa no que se refere disseminao alhures de plantas nativas da frica e aosmeios pelos quais isto ocorreu. Para reverter esta corrente, como revela este artigo, torna-se necessrio que se caracterize o papel que o comrcio transatlntico de escravos teve nadisperso destas plantas, assim como a importncia que os escravos africanos desempe-

    (*) Gostaria de expressar minha gratido a Quirino de Brito pela forma judiciosa com quetraduziu este artigo para o portugus.

    (**) Departmento de Geografia. Universidade da California. USA. Email: [email protected].

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    nharam na consolidao de gneros alimentcios bsicos da culinria das Amricas. Ao dardestaque dispora africana, enquanto um fenmeno que envolve tanto pessoas quantoplantas, coloca-se nfase nos sistemas primitivos de conhecimento africano. A expressodestes sistemas de conhecimento na coeso de comunidades inteiras de africanos refleteformas particulares de relaes de poder, preferncias alimentares, identidade cultural, edisputas sobre o processo de trabalho. Ao dar relevo s plantas africanas estabelecidasnas Amricas, este artigo procura corrigir uma distoro comum em narrativas sobre astrocas transatlnticas: a insistncia em enfatizar o papel dos europeus na disseminao deplantas a nvel intercontinental e em valorizar produtos agrcolas de origem Amerndia eAsitica em detrimento da contribuio africana. O objetivo deste trabalho promover oresgate histrico do papel da frica na botnica colonial.

    Palavras-chave: Dispora africana; Plantas africanas; Trocas ps-colombianas; Escravido;Alimentao; Identidade.

    IIIIINTRODUONTRODUONTRODUONTRODUONTRODUO

    Entre os sculos XVI e XVII os continentes Americano, Asitico, Africano eEuropeu viveram momentos de trocas botnicas e ecolgicas que poderiam serconsideradas revolucionrias. A intensidade e riqueza destas trocas, entre socieda-des tornadas desiguais em decorrncia do processo de conquista e colonizao,so apenas parcialmente discutidas na literatura que examina as trocas comerciaise culturais do perodo ps-Colombiano; esta tradio acadmica tende a enfatizaras sementes e gros de origens Amerndia, Europia e Asitica e o papel que oseuropeus tiveram em sua disseminao a nvel intercontinental. Este artigo visadiscutir esta omisso ao focalizar o papel dos escravos africanos no estabelecimen-to, nas Amricas, de produtos alimentcios e plantas medicinas de origem africana.

    De incio, poder-se-ia afirmar que os africanos tiveram um papel ativo naformao do mundo Atlntico moderno a partir das grandes descobertas. At aterceira dcada do sculo XIX os africanos cruzaram o Atlntico em nmerossuperiores aos europeus, apesar de terem sido forados a faz-lo acorrentados.Apesar de os povos africanos e seus descendentes terem desempenhado papelcentral no desenvolvimento econmico da Amricas por mais de trs sculos, asua contribuio nas trocas de produtos agrcolas e botnicos tem merecido poucaateno. Entre os novos habitantes das Amricas, os africanos trouxeram consi-go a experincia adquirida no cultivo de plantas tropicais e agricultura, e estasplantas contriburam para a sua sobrevivncia. Portanto, concepes que procu-ram traar um perfil do escravo enquanto um agente passivo do processo detransformao da terra merecem ser revistas.

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    (1) PARSONS, James J. Spread of African Pasture Grasses to the American Tropics. Journal ofRange Management, 25: 12-17, 1972.

    A dispora africana certamente envolve plantas e pessoas. Este artigo fo-caliza as plantas de origem africana que foram estabelecidas durante o regimede produo agrcola de base escravocrata. Na sua maioria, estas plantas cruza-ram o Atlntico nos carregamentos de navios negreiros como provises aliment-cias, produtos medicinais, ou para usos gerais. Aps resistirem a longas viagenstransatlnticas, estas plantas so cultivadas nas reas de plantio de subsistnciados escravos, em hortas caseiras, e em plantaes desenvolvidas nos mocambospelos negros libertos. Ao traar o perfil das plantas africanas que sobrevivem aocomrcio escravocrata transatlntico e do papel exercido pelos escravos na suaconsolidao, este artigo visa fornecer subsdios ao estudo das trocas comerciaise culturais que passam a ocorrer no perodo ps-Colombiano. Conseqentemen-te, o objetivo deste trabalho promover a recuperao histrica do papel dafrica na botnica do perodo Colonial.

    OOOOORIGENSRIGENSRIGENSRIGENSRIGENS AFRICANASAFRICANASAFRICANASAFRICANASAFRICANAS, , , , , PLANTPLANTPLANTPLANTPLANTASASASASAS DODODODODO N N N N NOVOOVOOVOOVOOVO M M M M MUNDOUNDOUNDOUNDOUNDO

    Trs sculos de explorao agrcola em regies semi-ridas do deserto deSaara contriburam para a diversidade de recursos botnicos que passaram anutrir os sistemas de conhecimento agronmico de milhes de indivduos fora-dos sua fixao involuntria nas Amricas. No perodo de oito a trs mil anosatrs, os povos africanos responderam s flutuaes climticas com uma revolu-o agrcola, domesticando nove tipos de cereais, uma meia-dzia de razes,nozes, e verduras, juntamente com outras plantas destinadas a fins medicinais eutilitrios. A domesticao de plantas ocorreu nos seguintes lugares: 1) Nas savanasdo oeste africano, que se estendem do alto da Costa da Guin at o Lago Chad, eao longo dos alagados dos principais rios da regio; 2) na floresta tropical dasregies oeste e centro africano, da Nigria aos Camares, e em direo sudesterumo Bacia do Congo; e 3) nas savanas do leste africano, que vo do Sudo smontanhas da Etipia e Uganda. A listagem anexa d destaque a alguns produtoscultivados em cada um destes centros de origem de plantas africanas.

    Entre os produtos cultivados nas savanas do leste africano e, posterior-mente, disseminados pelas Amricas, atravs do comrcio transatlntico de es-cravos, incluem-se o caf, sorgo, feijo, e duas espcies de graminceas Africa-nas (Panicum maximum e Brachiaria mutica), possivelmente utilizadas comoforragens em navios negreiros1. Incluem-se entre os produtos originrios do oes-te africano, o milhete, quiabo, andu, inhames brancos e amarelos da Guin, fei-

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    (2) BERLEANT-SCHILLER, R. and PULSIPHER, L. Subsistence Cultivation in the Caribbean. NewWest Indian Guide, 60, n.os 1&2:1-40, 1986; COE, Felix G. and ANDERSON, Gregory J.Ethnobotany of the Garfuna of Eastern Nicaragua. Economic Botany, 50, n.o 1:71-107, 1996;KIPLE, K.F. and ORNELAS, K.C. The Cambridge World History of Food. 2v. Cambridge: CambridgeUniversity Press, 2000; POLLAN, Michael. Botany of desire: A plants eye view of the world.New York: Random House, 2001; VOEKS, Robert. Sacred leaves of candombl. Austin: Univer-sity of Texas, 1997. A noz-de-cola um estimulante no-alcolico com propriedades medi-cinais e que teve muita importncia, principalmente para os escravos muulmanos africa-nos. Somente em poca mais recente esta noz passa a ter valor comercial como um ingre-diente chave na fabricao de refrigerantes. Ver PENDERGRAST, Mark: For God, Country andCoca-Cola: The definitive history of the great American soft DRINK and the company Thatmakes It. New York: Basic Books, 1993.

    (3) CARNEY, Judith. African ethnobotany in the circum-Caribbean region. Journal of Ethnobiology,forthcoming.

    (4) SAVITT, Todd L. Medicine and slavery: The diseases and health care of blacks in antebellumVirginia. Urbana: University of Illinois Press, 1978; LAGUERRE, Michel. Afro-Caribbean folkmedicine. South Hadley, Mass.: Bergin & Garvey Publishers, 1987; POLLITZER, William S.The Gullah people and their African heritage. Athens: University of Georgia Press, 1999.

    jo fradinho, hibisco, melancia, tamarindo, pimenta malagueta, a ma akee, anoz-de-cola, azeite de dend, o baob, e arroz africano.

    Os recursos botnicos dos povos africanos e de seus descendentes, nasAmricas, incluam, tambm, produtos medicinais originrios da frica. Sobres-saem-se, entre as plantas introduzidas pelos africanos devido a suas proprieda-des curativas, a momordica charantia, Hibiscus sabdariffa, Cannabis sativa, Ricinuscommunis, Kalanchoe integra, Cola acuminata e C. Nitida2.

    Freqentemente abandonados aos seus prprios recursos no tratamentode suas doenas, os escravos desenvolveram uma rica farmacopia baseada emplantas e que sobrevive, at hoje, na crena popular de populaes inteiras doCaribe. Vrias plantas pertencentes a esta tradio mdica so nativas da frica.De uma lista de aproximadamente 82 plantas comumente citadas em compn-dios de plantas medicinais caribenhas, 43 delas so naturais da frica3. Outras,pertencem a um grupo de distribuio mais ampla, cujas propriedades medici-nais os escravos reconheciam e as empregavam com fins semelhantes no NovoMundo. Algumas referncias histricas tm registrado o papel desempenhadopor raizeiros, curandeiros e parteiras, assim como a dependncia destes no usode razes e plantas no tratamento de doenas4. Rauvolfia spp, uma espcie de tranqi-lizante, foi amplamente utilizada na frica e no Caribe. Euphorbia ssp. servia paraaliviar resfriados, indigesto e dores em geral. Uma outra espcie, chamada Quassia,era de grande importncia na reduo de febres, numa poca de febres tropicaisletais. Este ltimo , na verdade, o nico gnero de plantas que especificamentereconhece a contribuio que os escravos trouxeram s Amricas. Seu nome tem

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    (5) Esta planta usada, at hoje, pelos Garfunas da Amrica Central, no tratamento de pica-das de cobra. Os Garfunas so descendentes de escravos fugitivos que acabaram casando-se com os ndios Carib.

    (6) APTHEKER, Herbert. American negro slave revolts. New York: International Publishers, 1970[1943]. GENOVESE, Eugene. Roll Jordan roll: The world that slaves made. New York: RandomHouse, 1972.

    (7) CARNEY, Judith. Black rice. The African origins of rice cultivation in the Americas. Cambridge,Mass.: Harvard University Press, 2001a;

    origem em Quassi, um escravo transportado do oeste africano ao Suriname, oqual disseminara suas propriedades curativas em torno de 1730. Quando estaespcimen foi mostrada a Linnaeus em 1761, este passou a cham-la de Quassi,em tributo a Quassi, desta forma imortalizando sua contribuio5.

    Entre os recursos botnicos utilizados pelos escravos incluam-se tam-bm plantas usadas como veneno. Durante todo o perodo em que durou a es-cravido nas grandes plantaes agrcolas os proprietrios das terras temiam serenvenenados por seus escravos cativos, ainda que tal prtica no tenha tido asmesmas propores que o medo propagado pelos brancos6. A Strychnos spp., porexemplo, tida como pertencente a este grupo de plantas usadas como fonte deveneno na costa do Atlntico africano.

    A rica herana botnica e agrcola desenvolvida pelos escravos foi produ-to de diversos sistemas tnicos de conhecimento e, tambm, influenciada pelamulher africana. Por exemplo, as curandeiras e enfermeiras negras possuam ex-perincia no uso das plantas enquanto recursos teis no tratamento de doenas;e tcnicas usuais de processamento de cereais, de culinria, descritos como tra-balho feminino no oeste africano, so transferidas s fazendas escravas nas Am-ricas7. Os escravos africanos apropriaram-se desta herana cultural para preser-var sua subsistncia, sobrevivncia, rituais, resistncia, e memria nos ambientestropicais e sub-tropicais de seus confinamentos.

    A A A A A FRICAFRICAFRICAFRICAFRICA EEEEE ASASASASAS TROCASTROCASTROCASTROCASTROCAS P P P P PSSSSS-C-C-C-C-COLOLOLOLOLOMBIANASOMBIANASOMBIANASOMBIANASOMBIANAS

    O caf constitui um exemplo pouco comum de plantas de origem Africanaque os europeus estabeleceram nas Amricas. Embora o caf tenha sido domes-ticado na Etipia, sua fermentao e processamento para o consumo tal como oconhecemos hoje atribudo aos Iemenitas. Enquanto estimulante permitidopelo Islamismo, o caf e as cofeehouses proliferaram-se pelo mundo muulmano;e exatamente no contato com a cultura muulmana que os europeus defron-tam-se com este produto pela primeira vez. Aps a obteno de gros de caf, napennsula Arbica, durante o sculo XVI, os europeus perceberam o seu poten-

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    (8) DICUM, Gregory and LUTTINGER, Nina. The coffee book: Anatomy of an industry from cropto the last drop. New York: New Press, 1999.

    (9) VAUGHAN, J.G. and GEISSLER, C.A. The new Oxford book of food plants. Oxford: Oxford Uni-versity Press, 1999; WATSON, Andrew M. Agricultural innovation in the early Islamic world:The diffusion of crops and farming techniques, 700-1100. New York: Cambridge UniversityPress, 1983.

    cial econmico e iniciaram o desenvolvimento de vrias plantaes em Ceilo eJava; j pelo sculo XVIII e atravs do trabalho escravo - esta atividade eradesenvolvida no Caribe e em Caiena8. O caf, introduzido nas Amricas peloseuropeus, ilustra a situao em que um produto africano entra para a histricaeconmica internacional via Europa, apesar dos europeus acreditarem que a suaorigem vem do mundo muulmano.

    A literatura sobre o intercmbio comercial e cultural durante perodo ps-Colombiano inadvertidamente relega o sucesso da botnica Africana s margensda histria internacional das plantas. A frica caracterizada como um universobotnico insignificante, muito mais como receptora do que como fornecedorade plantas de valor transcontinental. Ao mesmo tempo, hoje tem-se como irrefu-tvel o impacto revolucionrio que as plantas de origem Amerndia (i.e. milho,mandioca e amendoim) tiveram no sistema alimentar africano. Mas, mesmo as-sim, muitas plantas Africanas, a exemplo do arroz, tm sido consideradas deorigem Asitica, apesar de evidncias em contrrio. Um levantamento das trocasde plantas Africanas na pr-histria aponta para uma contribuio Africana dedimenses intercontinentais e para o reconhecimento tardio destas origens.

    As plantas tropicais do Velho Mundo fazem parte da Histria Antiga detrocas botnicas entre a frica e a sia (principalmente no comrcio com a ndia).O tamarindo, [leo de castor], quiabo, melancia, sorgo, milhete [prola], feijo[hyacinth], e o andu (que pode ser dividido, como a lentilha, e transformado em[dahl]) servem de exemplos de produtos agrcolas originrios da frica e queforam disseminados pela sia entre um a trs mil anos atrs; mas, que so fre-qentemente considerados produtos Asiticos. Aps sua chegada na ndia, mi-lhares de anos atrs, o sorgo e o milhete tornaram-se produtos de intensa expe-rimentao e cruzamentos antes de seu eventual retorno frica, agora jtransformados em novas variedades hbridas. Bem antes da chegada dos euro-peus e das trocas inter-continentais, o cultivo de produtos agrcolas Africanos jhavia revolucionado os sistemas de suprimento de alimentos da ndia9.

    De forma similar, vrias plantas nativas da sia tanto alimentcias comomedicinais seguiram para a frica no milnio que antecedeu as primeiras tro-cas comerciais com o Novo Mundo. Este momento mais remoto de migrao deplantas Asiticas para a frica, ao qual nos referimos como a era monsoon de

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    (10) RUSSELL-WOOD, A.J.R. The Portuguese Empire, 1415-1808. Baltimore: Johns Hopkins Uni-versity Press, 1998.

    (11) DEAN, Warren. With broadax and firebrand. The destruction of the Brazilian atlantic forest.Berkeley: University of California Press, 1995, p. 127.

    (12) WATSON, op. Cit.; ALPERN, Stanley B. The European introduction of crops into West Africain precolonial times. History in Africa, 19: 13-43, 1992; VAUGHAN and GEISSLER, op. cit.;KIPLE and ORNELAS: World history of food; ZOHARY, Daniel and HPF, Maria. The domesticationof plants in the old world: The origin and spread of cultivated plants in West Asia, Europeand the Nile valley. Oxford: Oxford University Press, 2000; POLLAN: Botany of desire. En-quanto a cannabis sativa tem sua origem na sia antiga, a sua evoluo seguiu duas trajet-rias distintas: a primeira, partindo da China antiga em direo ao norte da Europa, a qualenvolve o uso desta planta na produo de cordas, sobretudo pela resistncia e extensode suas fibras; tal uso viera, posteriormente, a ser associado ao termo hemp. A segundatrajetria agora seguindo um movimento que vai da sia Central ndia e, mais alm,rumo frica a cannabis usada em funo de suas propriedades medicinais. Acredita-se que ela tenha desembarcado nas Amricas enquanto erva medicinal transportada emnavios negreiros. POLLAN: Botany of desire, p. 157.

    (13) Ver, por exemplo, HARLAN, Jack; DE WET, J. and Stemler A. Origins of African plantdomestication. The Hague: Mouton, 1976; ZOHARY and HOPF: Plants in the Old World;MACNEISH, Richard. The origins of agriculture and settled life. Norman: University of OklahomaPress, 1992, p. 298-318; National Research Council (NRC). Lost crops of Africa. Washington,D.C.: National Academy Press, 1996.

    trocas mercantis, trouxe para o continente africano [taro, cocoyams], gergelim,canabis sativa, limo e banana pacova10. A adoo de forma generalizada de pro-dutos agrcolas Asiticos no continente africano, durante o perodo de expansomartima da Europa, leva-nos a crer que algumas das plantas Asiticas, transpor-tadas por traficantes de escravos europeus, muito provavelmente tenham sidopreviamente domesticadas pelos povos Africanos. O nome que os brasileiros, nosculo XIX, deram soja Asitica (amendoim Angola), apenas mais um exem-plo que aponta para a rota destas plantas via frica11.

    As origens de outras plantas valiosas dos trpicos do Velho Mundo conti-nuam incertas. Por exemplo, um tipo de anil foi cultivado na ndia; um outro, nafrica; e com relao aos dois tipos de algodo do Velho Mundo, no se sabeexatamente se so originrios da ndia ou da frica12. Tambm, provvel, assimcomo ocorrera com o arroz, que tanto o anil quanto o algodo foram cultivadosindependentemente. Todavia, a ateno que se tem dedicado aos resultadosda domesticao de plantas na frica um fenmeno bem recente13. A ampladistribuio de plantas Africanas pelos trpicos do Velho Mundo aliada ao ra-cismo que facilitava o trfico de escravos Africanos, contribuiu, durante scu-los, percepo de que muitas das plantas e hortalias Africanas eram origin-rias do Oriente.

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    (14) THORNTON, John. Africa and Africans in the making of the Atlantic World, 1400-1680. NewYork: Cambridge University Press, 1992, p. 155.

    (15) LINEBAUGH, Peter and REDICKER, Marcus. The many-headed hydra: sailors, slaves,commoners, and the hidden history of the revolutionary Atlantic. Boston: Beacon, p. 169,2000. A respeito da importncia do comrcio de inhame para os navios negreiros da Guinea-Bissau, ver tambm Walter Hawthorne, Nourishing a Stateless Society during the AtlanticSlave Trade: The Rise of Balanta Paddy-Rice Production in Guinea-Bissau, Journal of AfricanHistory, 42:1-24, esp. 78, 2000.

    (16) Gwendolyn Midlo Hall. Africans in colonial Louisiana: The development of Afro-Creole culture inthe eighteenth century. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 1992, p. 163; HAIR,P.E.H., JONES, A.; LAW, R. (eds.). Barbot on Guinea. The writings of Jean Barbot on WestAfrica, 1678-1712. London: The Hakluyt Society, 1992.

    DDDDDOSOSOSOSOS NANANANANAVIOSVIOSVIOSVIOSVIOS NEGREIROSNEGREIROSNEGREIROSNEGREIROSNEGREIROS SSSSS PLANTPLANTPLANTPLANTPLANTAESAESAESAESAES DEDEDEDEDE SUBSISTNCIASUBSISTNCIASUBSISTNCIASUBSISTNCIASUBSISTNCIA

    A maior parte das plantas que conseguiram chegar nas Amricas foramtransportadas como fontes de alimentos em navios negreiros. Compradas nafrica como mercadoria barata para consumo dos escravos, seu estabelecimentoem plantaes do Atlntico Ocidental deve ser atribudo ao esforo deliberadodestes passageiros desafortunados.

    Relatos histricos da era de servido transatlntica revelam a importnciade produtos alimentcios Africanos para o abastecimento de navios negreiros.Depoimentos de capites e cirurgies a bordo destas embarcaes revelam quevrios tipos de gneros alimentcios Africanos formavam a base alimentar dosnavios negreiros em sua rota compulsria com destino s Amricas. Observandoos cereais que supriam os navios negreiros com destino a Cartagena, Colmbia,no incio do sculo XVII, Alonso de Sandoval ressaltou a importncia do milheteafricano e do milho amerndio como gneros alimentcios cultivados pelos Afri-canos e destinados a venda ao longo da Costa da Guin14. O inhame africano considerada tambm um produto essencial, comercializado atravs da rota co-mercial do Atlntico, conforme consta em relato de viagem do navio negreiroWanstead, datado de 1719; neste relato consta que inhame e gua constituem adieta regular dos escravos15.

    O clculo de John Barbot, datado de 1678-1679, d uma dimenso corretada magnitude do comrcio de gneros alimentcios Africanos e da concomitantedemanda pelos excessos de produo ocorrida durante um perodo de trs scu-los de comrcio escravocrata atravs do Atlntico: Um navio que transporta 500escravos deve guarnecer um nmero superior a 100 mil inhames, ou uns duzen-tos inhames por pessoa16. Em 1750, ao longo da costa Africana, o capito JohnNewton comprara aproximadamente 8 toneladas de arroz para alimentar 200escravos; John Matthews, por outro lado, calculara que um total de 700 a 1.000

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    (17) BARRY, Boubacar. Senegambia and the Atlantic slave trade. Cambridge: Cambridge UniversityPress, 1998, p. 117-18.

    (18) DONNAN, Elizabeth. Documents illustrative of the history of the slave trade to America. 4v.Washington, D.C.: Carnegie, 1930-1935, vol. 1: 393-4, 440; vol. 2: 192, 247-269, 279-288,303-4; vol. 3: 61, 158, 293, 373-378; vol. 4: 530; HALL, Robert L. Savoring Africa in the NewWorld. In: VIOLA, Hernan and MARGOLIS, Carolyn (eds.). Seeds of Change. Washington,D.C.: Smithsonian, 1991, p. 161-9. Ver Alpern, introduo Europia, 23, acerca de umanau Holandesa que, em 1659, alimentava com tamarindo um carregamento de escravos.

    (19) WALVIN, James. Black Ivory: A history of British slavery. Washington, D.C.: Howard Univer-sity Press, 1994, p. 50.

    (20) Com relao a fontes bibliogrficas que tratam da compra de arroz pelos portugueses,que remonta aos anos de 1470, ver CARNEY, Judith. African rice in the Columbian exchange.Journal of African History, 42 (2001b) no. 3:377-396.

    (21) Este arroz era seguramente o glaberrima, pois o arroz asitico no havia ainda chegado nooeste da frica. GODINHO, Vitorino Magalhes. Os descobrimentos e a economia mundial. 2 v.Lisboa: Editora Arcdia, , v. 2:391-392, 1965.

    (22) RIBEIRO, Orlando. Aspectos e problemas da expanso portuguesa. Lisboa: Estudos de CinciasPolticas e Sociais, Junta de Investigaes do Ultramar, 1962, p. 141.

    (23) BLAKE, J.W. West Africa: Quest for God and Gold, 1545-1578. London: Curzon Press, p. 91-2, 103, 1977; BROOKS, George. Landlords and strangers. Ecology, society and trade in WesternAfrica, 1000-1630. Boulder: Westview Press, 1993; RIBEIRO: Aspectos e problemas, p. 146-7;

    toneladas de arroz seriam suficientes para alimentar os 3.000-3.500 escravosque ele havia comprado ao longo da costa de Serra Leoa17. Entre outros gnerosAfricanos utilizados como alimento pelos traficantes de escravos europeus in-cluem-se o milhete, tamarindo, pimenta malagueta, e azeite de dend18. A de-manda por uma dieta baseada em gneros alimentcios Africanos era reforadaainda mais pela crena corrente, segundo a qual os escravos que se alimentavamde produtos de consumo usual aumentariam suas possibilidades de sobrevivn-cia na grande jornada pelos mares do Atlntico19.

    Mesmo antes de os portugueses contornarem o extremo sul do continen-te africano, em 1497, as caravelas j compravam arroz das sociedades da fricaOcidental20. De fato, a distribuio do arroz africano (oryza glaberrima), de ori-gem oeste africana, alcanara terras portuguesas antes que suas caravelas hou-vessem ancorado na sia21. No incio do sculo XVI, os escravos j cultivavameste produto nas ilhas de Cabo Verde, aproximadamente 800 quilmetros a oes-te do Senegal, utilizando-se do pilo para o seu beneficiamento22. Por volta de1513-1515, o arroz aparece na lista de produtos dos navios que partiam de CaboVerde; em 1530, trs dcadas aps Cabral ter atracado em portos brasileiros, asembarcaes portuguesas cruzavam as guas do Atlntico transportando arroz einhame rumo nova colnia lusitana23. Por volta de 1587 o arroz j havia ascen-

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    SCHWARTZ. Stuart B. Sugar plantations in the formation of Brazilian society. Bahia, 1550-1835. New York: Cambridge University Press, 1998, p. 84. Os gros de arroz destinados aosemeio no passavam por qualquer processamento, de forma que sua casca, farelo, eendoderma permanecem intactos para a germinao.

    (24) RIBEIRO, Aspectos e Problemas, p. 153. HALL, Frederick H., HARRISON, William F. and WELKER,Dorothy W. (trans. and eds.). Dialogues of the great things of Brazil [attributed to AmbrsioFernandes Brando (ca. 1618)]. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1987.

    (25) COLLINSON, Peter. Of the introduction of rice and tar in our colonies. Gentlemans Magazi-ne, (1766), June, 278-80.

    (26) Detalhes dos sistemas de produo do oeste da frica e Carolina do Sul so discutidos emCARNEY, Judith. Black rice. The African origins of rice cultivation in the Americas. Cambridge,Mass.: Harvard University Press, 2001a.

    dido ao panteo de produtos Amerndios mandioca e milho que integravama dieta brasileira; no incio do sculo XVII, este j ocupava o segundo lugar dalista, sendo superado apenas pela mandioca24.

    Pode-se observar fenmeno semelhante ao que ocorre acima quando ana-lisa-se o caso da Carolina do Sul, nos Estados Unidos. No bastaram duas dca-das de assentamento dos escravos no estado da Carolina do Sul para que estesdessem incio ao cultivo de arroz de procedncia Africana. Um dos primeirosdesembarques de arroz na Colnia est documentado como a entrega de grosatravs de uma nau negreira atracada em solo americano nos anos de 1690:uma embarcao portuguesa aportou, conduzindo escravos do Leste e com con-sidervel quantidade de arroz como proviso25. Suspeita-se que muito provavel-mente tratava-se de arroz africano. A ltima dcada do Sculo XVII, na Carolinado Sul, testemunha uma dramtica transformao deste produto: de gnero ali-mentcio destinado subsistncia de escravos, o arroz torna-se um produto agr-cola proeminente nas grandes plantaes, cultivado pela populao escrava comoatividade lucrativa para os proprietrios das grandes fazendas.

    Enquanto um produto agrcola do trfico transatlntico de escravos e dastrocas ps-colombianas, o arroz efetivamente ilustra a perda cultural e a apro-priao de conhecimento que to freqentemente caracterizaram a botnicacolonial. Populaes escravizadas do oeste africano, com uma longa experinciano cultivo do arroz, acaba por transferir um sistema inteiro de conhecimento da produo em diversos micro-ambientes ao consumo; e de mtodos de contro-le de gua a formas de processamento e cozimento s Amricas26.

    No obstante, enquanto a experincia dos povos Africanos sobre o cultivode arroz em alagados fornecia o conhecimento indispensvel emergncia daCarolina do Sul como a mais lucrativa economia agrcola de base escrava, naAmrica do Norte do Sculo XVIII, o arroz Asitico (Oryza sativa) acelerou tal

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    (27) NRC: Lost Crops.

    (28) CARNEY: Black rice.

    (29) CARREIRA, Antnio. A Companhia Geral do Gro Par e Maranho. 4v. So Paulo: EditoraNacional, 1988, vol. 1; CARNEY, J. and MARIN, R. Acevedo. Aportes dos escravos na hist-ria do cultivo do arroz africano nas Amricas. Estudos Sociedade e Agricultura 12: 113-133,1999.

    transformao. O arroz Asitico produz uma safra superior ao tipo glaberrima,que agora sabemos tem um desempenho melhor de que o sativa somente quan-do cultivado em solos com deficincia de nutrientes, como aqueles da regio deSahel, na frica Ocidental, onde este tipo foi inicialmente desenvolvido27. Ele ,tambm, menos susceptvel quebra resultante de beneficiamento mecnico, oque indubitavelmente confere-lhe vantagem adaptativa quando comparado aoglaberrima; principalmente, quando consideramos que tal processo de mecaniza-o passa a substituir o pilo, a partir de meados do sculo XVIII28.

    O sucesso do arroz enquanto um produto agrcola do sistema de plantationda Carolina do Sul favoreceu a intensificao de seu cultivo nas regies de alagadosao sul da Flrida, durante aquele sculo. Nos anos 1750 este sistema de cultivo margem dos rios foi reproduzido no Brasil. Na expectativa de diminuir a dependn-cia de importaes de arroz da Carolina do Sul, representantes da Coroa Portu-guesa deram incio economia do cultivo deste produto em terras brasileiras.

    As plantaes de arroz, no Brasil, desenvolveram-se nos estados do Amape Par, no leste amaznico; e, principalmente, no estado do Maranho, no nor-deste, de localizao geogrfica mais prxima a Lisboa e s correntes martimasque facilitavam o transporte transocenico. Baseando-se no modelo da Carolinado Sul, o sistema de produo envolvia o plantio das mesmas variedades degros Asiticos e o uso de engenhos mecnicas movidos a gua para o preparoeficiente das safras destinadas exportao. Uma empresa comercial (Compa-nhia Geral do Gro Par e Maranho) foi criada para importar escravos direta-mente da Guin-Bissau, uma rea de grande produo de arroz no contexto dasregies do oeste africano onde este cereal era tradicionalmente cultivado. Emapenas duas dcadas, um nmero superior a vinte mil Africanos com experinciano cultivo de arroz foram trazidos como escravos para desenvolverem as planta-es de arroz e de algodo da regio29.

    Na frica Ocidental, a cultura do arroz desenvolveu-se com o cultivo dotipo O. glaberrima. Embora o arroz africano no configure-se entre os produtossubseqentemente exportados para os mercados europeus, toda a estrutura eco-nmica bsica de produo dependia dos sistemas de conhecimento do produtoque os escravos foram acumulando ao longo de sua histria. Quarenta por cento

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    (30) Cifras baseadas em ELTIS, David Eltis, BEHRENDT, Stephen D. et al. (eds.). The Trans-Atlanticslave trade: A database on CD-ROM. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.

    (31) Para a histria do arroz em Portugal, ver SILVA, Manuel Vianna e. Elementos para a histriado arroz em Portugal. Coimbra: Grmio da lavoura da beira Litoral, 1955. Na Carolina Sul,CARNEY: Black rice, op. cit.; sobre a sua introduo nos Aores, PEREIRA, Jos Almeida.Cultura do arroz no Brasil. Teresina, Piau: EMBRAPA, 2002.

    dos migrantes compulsrios que foram enviados ao estado da Carolina do Sulprocediam de regies indgenas de cultivo de arroz na frica Ocidental; Trinta ecinco por cento destinaram-se ao nordeste Brasileiro30. Tanto no Brasil como nosEstados Unidos, os escravos iniciaram o cultivo de arroz como um produto desubsistncia de sua preferncia . A partir deste impulso inicial os escravos voaos poucos estabelecendo o cultivo de arroz pelo Atlntico Negro.

    O sucesso do arroz enquanto o primeiro cereal a ser comercializado emescala mundial levou os cerealistas, assim como os seus descendentes, a apropria-rem-se da histria deste produto como uma narrativa de seus antepassados. NaCarolina do Sul, por exemplo, relatos e memrias desta histria de sucesso drelevo genialidade de produtores pioneiros ao descobrirem produto to adequa-do. Todavia, os produtores agrcolas da colnia eram originrios de reas inglesase francesas (huguenotes) recentes e sem qualquer tradio no cultivo de arroz. Aocontrrio de seus escravos oeste africanos, estes no possuem experincia prviaem mtodos complexos de controle de gua que permitiam o cultivo de arroz emregies alagadas. No caso do Brasil, a histria do arroz focaliza o incio do pero-do colonial, num momento em que o cultivo de arroz destina-se subsistncia. Ahistoriografia brasileira atribui a introduo deste cereal, no pas, aos coloniza-dores provenientes dos Aores e de Portugal. Porm, o arroz jamais fora planta-do nestas ilhas do arquiplago Atlntico. Embora os portugueses, ainda que deforma efmera, tenha lidado com o cultivo de arroz durante o domnio Muulma-no na Idade Mdia, a sua produo j h muito havia desaparecido poca emque o seu cultivo passara a ser prtica comum no Brasil do Sculo XVI31.

    Enquanto a memria dos produtores nos Estados Unidos procura imorta-lizar a sua genialidade em desenvolver um produto sobre o qual no dispunhamde conhecimento prvio, uma memria social distinta da histria do arroz sobre-vive no meio dos descendentes de escravos fugitivos no Nordeste da Amrica doSul. Em reas geograficamente isoladas dos mocambos de Suriname e Caiena,assim como em comunidades constitudas a partir de escravos libertos das plan-taes de arroz e algodo do Amap, Par e Maranho, testemunhos orais des-crevem uma histria diferente. Em que pese as variaes de detalhes, vrias len-das comemoram o arroz como um produto trazido da frica por intermdio deseus ancestrais. Uma destas lendas narra, por exemplo, a astcia e o herosmo de

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    (32) CARNEY, pesquisa de campo, July 2002.

    (33) LITTLEFIELD, Daniel C. Rice and slaves. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 1981.

    (34) KARASCH, M. Slave Women on the Brazilian Frontier in the Nineteenth Century. In: GAS-PAR, David B. and HINE, Doreen C. (eds.). More than Chattel. Bloomington: University ofIndiana Press, 1996, p. 86.

    uma escrava negra que, ao deixar a frica, traz consigo gros de arroz dissimula-dos nos seus cabelos. Assim o arroz chega s Amricas, conta-nos esta lenda.Curiosamente, consta que as comunidades negras dos quilombos teriam recebi-do gros de arroz de escravas negras, as quais teriam escondido-os em seuscabelos quando fugiam das grandes plantaes. Em suma, a lenda fundante, aque acabamos de nos referir, atribui aos escravos Africanos a introduo do arrozao mesmo tempo em que destaca a sua disperso a partir da frica; esta tradi-o, igualmente, ressalta o papel da mulher no transporte de gros atravs darota comercial transatlntica32. Assim, os descendentes de comunidades negrasafricanas acabam recrudescendo uma memria social do arroz como produtoalimentcio trazido da frica por seus antepassados.

    Poder-se-ia argumentar, ento, que muitas das sementes das trocas inter-continentais eram plantadas durante a estao das chuvas, sob regimes pluviaisadequados e que no se deve subestimar a importncia das mesmas quando seavalia a tecnologia e conhecimento necessrios ao seu manuseio e controle. En-tretanto, o arroz suscita algumas indagaes a respeito desta perspectiva. NoBrasil do sculo XVI, assim como na Carolina do Sul do sculo XVII, os escravoscultivavam arroz tanto nas regies beneficiadas estritamente pelas chuvas quan-to nos alagados s margens dos rios. Se o cultivo de sementes sob condiespluviomtricas adequadas pode culminar em boa colheita, como foi o caso daexperincia dos colonos Ingleses na colnia de Virgnia, Estados Unidos, nosanos de 1640, a produo de arroz em reas alagadas requer conhecimento so-fisticado no controle de inundaes e drenagem. Nem os ingleses, os franceseshuguenotes ou os portugueses praticavam este tipo de agricultura antes do seuaparecimento nas Amricas, durante o perodo colonial33.

    At a segunda metade do sculo XVIII a cultura do arroz era dependenteda forma como os Africanos processavam este cereal, ou seja, descascando-o nopilo. As descries mais remotas sobre beneficiamento de arroz, tanto na Caro-lina do Sul quanto no Brasil, fazem referncia ao uso do pilo, instrumento tradi-cional atravs do qual todos os cereais eram processados na frica. De fato, opilo era um smbolo bastante significativo do trabalho extenuante da mulherescrava no processamento de alimentos 34. Mas, esta ferramenta de trabalho re-presenta mais do que a rdua tarefa de pilar o arroz, horas a fio, e fisicamente

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    movimentar um peso de 3 a 5 quilos pelos braos; esta forma de beneficiamentode arroz pressupe certa habilidade de quem a pratica: a habilidade de removeras cascas do cereal sem, contudo, triturar os gros. Os estudos que procuramatribuir aos europeus a introduo do arroz na economia mundial no do contade explicar como o pilo, um instrumento que no foi utilizado no beneficiamentodeste produto na Europa, torna-se o nico mtodo de processamento a partir doincio mesmo de seu cultivo nas Amricas35. A cultura do arroz no incio do pero-do colonial dependia de uma tecnologia de beneficiamento, que era a maneiracomo todos os cereais j vinham, de longo tempo, sendo processados na frica.De todas as ilhas do arquiplago Atlntico colonizadas pelos portugueses, o pi-lo foi encontrado somente em Cabo Verde, a oeste de Senegal, e regio nativade produo de arroz pelos povos Africanos36.

    Conseqentemente, a cultura do arroz nas Amricas envolve muito maisque a transferncia de sementes atravs do Atlntico. Esta cultura depende dapresena dos povos da frica Ocidental. Estes, por sua vez, munidos de expe-rincia e conhecimento, adaptam o arroz aos novos contextos geogrficos. Aoprocurarem estabelecer um produto essencial sua subsistncia, os escravosacabaram transferindo uma cultura inteira do arroz, que vai do cultivo s diferen-tes formas de cozimento, passando pelas tcnicas de beneficiamento. At osdias de hoje, o arroz mantm a sua importncia na culinria das populaesnegras nas Amricas.

    SSSSSEMENTESEMENTESEMENTESEMENTESEMENTES DEDEDEDEDE APROPRIAOAPROPRIAOAPROPRIAOAPROPRIAOAPROPRIAO, , , , , SEMENTESSEMENTESSEMENTESSEMENTESSEMENTES DEDEDEDEDE PODERPODERPODERPODERPODER

    Faz sculos os estudiosos do arroz tm ignorado o fato de que as origensdo cultivo deste cereal nas Amricas provm da frica Ocidental e no da sia ouEuropa. Como conseqncia disso, creditou-se ao portugus a introduo doarroz na frica Ocidental, por intermdio de suas viagens de retorno do conti-nente Asitico. De forma semelhante, os europeus e euro-americanos so consi-derados os responsveis pelo estabelecimento e disseminao deste produtopelas Amricas. Estas perspectivas, por muito tempo tidas como inquestionveis,no foram objeto de reviso crtica at o sculo XX, mesmo que o arroz africanoconstasse dos primeiros registros histricos sobre a explorao da Costa da Guin;e apesar de est documentada a dependncia dos escravos em relao ao cereale outros gneros alimentcios bsicos durante o comrcio de escravos pelo Atlnti-

    (35) CARNEY, Judith. Rice milling, gender and slave labour in colonial South Carolina. Past andPresent, 153: 108-134, 1996.

    (36) RIBEIRO: Aspectos e problemas, p. 141.

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    co. Apenas mais recentemente, estudiosos do Ocidente tm questionado a visosegundo a qual os Africanos to somente contriburam com a sua mo-de-obrano processo de disseminao do cultivo de arroz nas Amricas 37.

    As teses de que os portugueses teriam introduzido o arroz da sia fricaOcidental, antes de sua chegada s Amricas com a colonizao Europia, foramaos poucos perdendo sentido. somente no final do sculo XIX, com o incio docolonialismo, que os botnicos franceses comeam a investigar as caractersticasdo arroz vermelho encontrado no cultivo agrcola da frica Ocidental. Suas pecu-liaridades levaram a uma reavaliao das variedades botnicas coletadas da re-gio produtora de arroz do oeste africano, durante meados do sculo XIX. Estaanlise revelou que tais espcies possuam as mesmas caractersticas botnicasdo arroz cultivado no Sahel, regio de ocupao francesa, confirmando a suspei-ta de que tratava-se de arroz distinto daquele produzido na sia. Em meados dosculo XX, o arroz africano j era reconhecido universalmente como uma espcieindependente, domesticada nos terrenos alagados s margens do Rio Nger, emMali38.

    Conclui-se, ento, que os europeus e os europeus-americanos acabaramexpropriando a histria da cultura do arroz em seu prprio benefcio;. conse-qentemente, ao alijar as populaes Africanos de uma contribuio importantepara as Amricas, estes intensificaram um projeto colonial construdo em rela-es de poder desiguais, que privilegiam aspectos mercantis de transferncia desementes em detrimento da base cultural e de conhecimento responsveis peloestabelecimento de uma planta.

    O discurso obscurantista das indstrias e dos intelectuais do ocidenteacerca do problema contemporneo da bio-pirataria revela que a nfase conti-nua na semente e nos processos de obteno de patentes, aos invs de questesticas relativas desapropriao de uma herana botnica desenvolvida original-mente por outras culturas.

    No obstante, o reconhecimento do arroz tipo glaberrima, como uma es-pcie distinta, no produziu os efeitos desejados para desarticular um discursocolonialista e racista. Ao compararem a herana Africana com a Asitica, estas

    (37) Os principais responsveis por esta mudana de perspectiva so: PORTRES, Roland. Primarycradles of agriculture in the African continent. In: FAGE, J. D. and OLIVER, R. A. (eds.).Papers in African prehistory. Cambridge: Cambridge University Press, 1970, p. 43-58; CLOWSE,Converse C. Economic beginnings in colonial South Carolina 1670-1730. Columbia: Universityof South Carolina, 1971; WOOD, Peter. Black majority. New York: Knopf, 1974; LITTLEFIELD:Rice and slaves.

    (38) PORTRES, op. cit.

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    perspectivas, minimizaram as contribuies dos povos Africanos, conseqente-mente valorizando modelos de evoluo cultural que colocam a frica num nvelinferior. O agrnomo Francs Pierre Viguier contemplou tais pontos de vista nosanos 1930 quando este referia-se incapacidade da frica de cultivar arroz irri-gado, como um exemplo de suas limitaes produtivas. Cultivo de arroz irriga-do e cultivo de arroz por submerso; esta a diferena entre as civilizaesAsitica e Africana, escreve Viguier, privilegiando a irrigao por meio de canais,ao invs de processos irrigatrios baseados no fluxo das guas dos manguezais.Ainda que exemplos de irrigaes baseadas no fluxo das guas dos manguezaisproliferassem pela Costa da Guin, no acreditava-se que este sistema era origi-nrio da frica; ao contrrio, a sua presena era atribuda aos portugueses. Asobservaes de Viguier foram feitas no interior do semi-rido Sahel, e ao longodos mangues. Este, assim como outros agrnomos que o sucederam, no foramcapazes de compreender o princpio de manipulao adequada do solo nas re-gies de mangues. Ao se evitar o uso de canais de drenagem nos terrenos culti-vados, as guas dos mangues irrigavam o arroz plantado s margens dos rios; aomesmo tempo, as sobras de palhas, aps a colheita, serviam de alimento para ogado, a principal fonte regional de suprimento de protena39.

    No obstante, a tradio de pesquisa francesa que consolidara o arrozafricano como um tipo independente levanta a hiptese de que o glaberrimapossivelmente deve ter chegado s Amricas. Esta hiptese confirmada maistarde, quando um botnico Francs descobriu o cultivo de arroz em Caiena, naGuiana Francesa, durante os anos 1930, num povoamento originalmente estabe-lecido por escravos fugitivos. Este produto encontrado, novamente, durante osanos 1950, nas proximidades de uma ex-fazenda de acar, em El Salvador40.

    Enquanto o sculo XIX faz do arroz uma narrativa a respeito da engenhosi-dade das populaes brancas e o sculo XX, em parte, a desconstri, as aes dealguns proprietrios de escravos do sculo XVIII sugerem uma compreenso dife-rente do fenmeno. Num sculo que testemunhou a escravizao de Africanos emnmeros sem precedentes, predominava um conhecimento mais generalizado acerca

    (39) VIGUIER, Pierre. La riziculture indigne au Soudan Franais. Paris: Larouse, 1939, p. 2.

    (40) VAILLANT, A. Milieu cultural et classification des variets de riz des Guyanes franais ethollandaise. Revue Internationale de Botanique Applique et dAgriculture Tropicale, 33:520-29,1948; PORTRES, Roland. Presence ancienne dune variet cultive dOryza Glaberrima enGuyane franaise. Journal dAgriculture Tropicale et de Botanique Applique, 11, no. 12, p. 680,1955; PORTRES, R. Historique sur les premiers chantillons dOryza Glaberrima St. recueillisen Afrique. Journal dAgriculture Tropicale et de Botanique Applique, 11, nos. 10-11: 535-537,1955; PORTRES, R. Riz subspontans et riz sauvages en El Salvador (Amrique Centrale).Journal dAgriculture Tropicale et de Botanique Applique, 7, nos. 9/10: 441-46, 1960.

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    do cultivo de arroz na frica Ocidental e sobre a regio enquanto fonte produtorade vrios tipos do produto. Proprietrios de escravos de viso, como foi o caso deThomas Jefferson, por exemplo, utilizou-se de suas conexes mercantis para ad-quirir sementes para a produo de arroz de cultivo dependente das chuvas. Jeffersonqueria reorientar a nfase produtiva das grandes fazendas da Carolina do Sul edo estado Georgia, substituindo o cultivo nos alagados pelo cultivo baseado naschuvas, porque o [sistema] que eles possuem atualmente, o qual demanda quetodo o interior fique submerso nas guas durante uma estao do ano, mataanualmente um grande nmero de pessoas em decorrncia de doenas fatais41.Preocupado com os efeitos letais da malria nas populaes brancas Jeffersonpassou a inquirir, junto aos capites das embarcaes que operavam ao longo daCosta da Guin, sobre algum tipo de arroz que pudesse ser cultivado em solos maiselevados e com o auxlio das chuvas, aos invs do cultivo em reas pantanosas.

    Um pedido feito por Jefferson a um traficante de escravos da Guin resul-tara no despacho de um navio carregado de sementes. Ele remetera parte destassementes para Sociedade Agrcola de Charleston, assim como para um conheci-do seu na Georgia, e utilizara as sementes restantes para plant-las em Monticello.Jefferson escrevera que o arroz crescera em abundncia, no perodo de dois atrs anos em que ele o plantara, mas que no dispunha de instrumentos paradescasc-lo42. Algumas pistas sugerem que as sementes que chegaram a Jeffersoneram arroz africano: a falta de provas convincentes de que o gnero sativa eraamplamente cultivado na Guin durante esta poca; o lugar destacado da reaenquanto um centro produtor de variedades de arroz tpico de terrenos maiselevados; e, por ltimo, a dificuldade que este encontrara em relao ao seubeneficiamento. O problema notrio da quebra de gros de glaberrima, quandoo beneficiamento deste produto era feito atravs de processos mecanizados,contribuiu para colocar um fim nos esforos de Jefferson em substituir as semen-tes para a produo comercial.

    Todavia, os esforos do presidente Jefferson para recriar o cultivo de ar-roz prprio de terrenos secos, possivelmente tenham levado os escravos a cultiv-lo e mant-lo em suas plantaes. Em 1802 John Drayton, natural das Carolinas,escrevia que alm dos tipos branco e dourado (variedades Asiticas do gnerosativa produzidas para exportao), os escravos cultivam outras variedades dearroz em suas plantaes. H algumas outras, no estado, ainda que de pequenaimportncia ou conseqncia; e plantadas quase que exclusivamente pelos ne-

    (41) HESS, Karen. The Carolina rice kitchen: The African connection. Columbia: University ofSouth Carolina Press, 1992, p. 19.

    (42) BETTS, E. M. Thomas Jeffersons garden book, 1766-1824. Philadelphia: American PhilosophicalSociety, 1944, p. 381. Quote from December 1, 1808.

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    gros. So conhecidas pelas denominaes de arroz da Guin, [bearded rice] umarroz de gros midos, que leva a semelhana de cevada, e um gnero de arroz deterrenos elevados [original em itlico]43. A escolha do topnimo Guin para deno-minar este tipo de arroz indicativo de um entendimento amplo de que o mes-mo veio da frica e que, provavelmente, chama-se glaberrima.

    Assim, a disseminao de plantas e sementes Africanas atravs do Atlnti-co no pode ser compreendida de forma desvinculada do trfico de escravos, oqual deixa uma marca indelvel no sistema de trocas ps-colombianas. precisa-mente esta conscincia histrica que est presente nas lendas dos quilombossobre a cultura do arroz. As embarcaes negreiras que cruzaram a rota do co-mrcio ps-Colombiano, transportando provises e contingentes humanos Afri-canos, apenas serviram de meios para a chegada de sementes nas regies costei-ras do Atlntico ocidental. O estabelecimento destas sementes foi possvel atravsdo esforo das populaes escravas em cultivar plantas que constituam parte desua herana cultural; herana esta simbolizada, como vimos h pouco, na ima-gem da mulher escrava que dissimula gros de arroz pelos seus cabelos. estahistria que nos leva a concluir que as trocas comerciais na rota do Atlnticoforam tambm marcadas pela influncia dos escravos Africanos.

    RRRRREMANDOEMANDOEMANDOEMANDOEMANDO CONTRACONTRACONTRACONTRACONTRA AAAAA MARMARMARMARMAR: : : : : OSOSOSOSOS JARDINSJARDINSJARDINSJARDINSJARDINS BOTNICOSBOTNICOSBOTNICOSBOTNICOSBOTNICOS DOSDOSDOSDOSDOS EXEXEXEXEXCLCLCLCLCLUDOSUDOSUDOSUDOSUDOS

    Enquanto os produtos agrcolas Africanos desembarcam nas Amricas porintermdio de navios negreiros, o seu estabelecimento aqui somente ir ocorreratravs dos esforos de escravos e de seus quilombos no sentido de cultiv-los.Os povos africanos e seus descendentes, atravs de trabalho e muita dedicao,conseguem influenciar os sistemas agrcolas e os recursos botnicos das Amri-cas44. Desta maneira, muitas plantas, originalmente cultivadas em regies africa-nas de origem agrcola, promoviam formas de identidade cultural atravs de seuconsumo como alimentos, remdios, e, tambm, por meio de oferendas e prti-cas litrgicas de carter sincrtico-religioso.

    A narrativa histrica sobre a produo de gneros alimentcios na fricarevela que tais produtos eram plantados em reas destinadas subsistncia, nashortas caseiras dos escravos e em lotes cultivados pelos quilombos45.

    (43) DRAYTON, John. A view of South Carolina. Columbia: University of South Carolina Press,1972 [1802], p. 125.

    (44) CARNEY, Judith Carney VOEKS, and Robert. Landscape legacies of the African diaspora inBrazil. Progress in Human Geography, forthcoming.

    (45) CARNEY: Black Rice.

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    Neste sentido, as reas de subsistncia dos escravos servem como umaexperincia paralela de cultivo em relao s sementes comercializadas pelasinstituies cientficas e jardins botnicos europeus e euro-americanos, dos quaisparticipava, entre outros, o presidente Jefferson46. Dois exemplos de produtosnativos da frica e que foram estabelecidos atravs das preferncias alimentaresdos escravos pois estes no eram consumidos pelas populaes brancas so:[the ackee apple (Blighia sapida), utilizada na culinria Jamaicana; e o baob, cujosfrutos so ainda consumidos em St. Croix, na Jamaica47. Com a notvel exceodo arroz, as populaes brancas das Amricas no deram muita importncia splantas domsticas cultivadas pelos escravos a menos que elas apresentassempotencial de mercado observao que o historiador Joyce Chaplin faz em rela-o ao sul dos Estados Unidos.

    Eles desenvolveram experincias com produtos verdadeiramentetropicais, e procedentes de reas pouco conhecidas, somente se estes pro-dutos j haviam sido bem sucecidos nas regies europeizadas das ndiasOcidentais... Em vez de importar as safras Africanas, os produtores as des-cobriam, com mais frequncia, nos pomares de seus escravos. No que tan-ge a estes produtos, os negros foram de fato os verdadeiros aventureiros,pois dependiam de uma rede de intercmbio transatlntico muito diferen-te daquela que emanava da Sociedade Real. Durante o comrcio de escra-vos do Atlntico, os negros foram gradativamente transferindo as plantasAfricanas (i.e. gergelim, sorgo, quiabo)... para as terras onde estes erammantidos em cativeiro. Os brancos descobriram a utilidade de produtoscultivados pelos negros somente aps perceberem a existncia de merca-do externo para os mesmos 48.

    Nesta perspectiva, as populaes negras seguiram as prticas de seus an-cestrais Africanos, os quais, mesmo antes do trfico de escravos pelo Atlntico,j tinham desenvolvido trs centros originais de domesticao de plantas e adap-tado vrios gneros Asiticos ao seu sistema alimentar. Seu conhecimento agro-nmico continua a contribuir para a sobrevivncia na Amrica tropical e subtro-pical, mesmo quando estas populaes eram submetidas escravido dos grandesengenhos. Em suas prprias plantaes, os escravos asseguravam a sobrevivn-

    (46) RASHFORD, John. The Search for Africas baobab tree in Jamaica. Jamaica Journal 20, n. 2:2-11, 1987; RASHFORD, John. Those that do not smile will kill me: The ethnobotany of theackee in Jamaica. Economic Botany, 55, n. 2: 190-211, 1987.

    (47) RASHFORD: The Search for Africas...; RASHFORD: Those that do not smile...

    (48) CHAPLIN, Joyce. An anxious pursuit. Agricultural innovation and modernity in the lowerSouth, 1730-1815. Chapel Hill: University of North Carolina, 1993, p. 156.

  • CARNEY, Judith. Navegando contra a corrente: o papel dos escravos e da flora africana...

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    cia de plantas Africanas teis subsistncia, cura de doenas, rituais e resistn-cia. O universo paralelo da troca de produtos de origem agrcola iniciado pelosnegros foi possvel graas ao seu direito ao cultivo de pequenas plantaes do-msticas, troca de plantas com outros escravos e, possivelmente, aos contatosmantidos com marinheiros africanos e cozinheiros a bordo de navios negreirosincumbidos do transporte de sementes. Ao mesmo tempo em que a memria deuma contribuio africana celebrada nas lendas dos quilombos da Amrica doSul, torna-se imperativo que todos os habitantes das Amricas reconheam olegado cultural destes povos, apesar de seu sofrimento inefvel49.

    ABSTRACT: The revolutionary plant and ecological exchanges that accompanied Europeanmaritime expansion after 1492 is now widely appreciated. So, too, is the significance ofplants new to Europeans for changing food preferences, cuisines, economies, and commerceover a much broader area of the world. The role of Amerindian maize and manioc in WestAfrica has received ample attention, as has Asian rice in the region. But the literature onthe Columbian Exchange remains remarkably silent on the diffusion of indigenous Africanplants elsewhere and the means by which they dispersed. To do so, as this paper reveals,requires addressing the Atlantic slave trade in their dissemination as well as the role ofenslaved Africans in establishing preferred dietary staples in the Americas.

    This paper examines the plants of African origin that became central to subsistence andeconomy in the era of plantation slavery. Three centers of agricultural domestication insub-Saharan Africa contributed to the diversity of plant resources that sustained millionssubsequently swept into transatlantic enslavement. The establishment of these crops inthe Americas occurred through the botanical gardens of the dispossessed: plantationsubsistence fields, dooryard gardens, and in agricultural plots of maroon communities. Indrawing attention to the African diaspora as one of plants as well as people, emphasis isplaced on indigenous African knowledge systems. The expression of these knowledgesystems in landscapes of bondage reflected prevalent power relations, food preferences,cultural identity, and struggles over the work process. In profiling the African plants estab-lished in the Americas, this paper seeks to correct a distortion in narratives of the ColumbianExchange, which remain centered on European agency, crops of Amerindian and Asianorigin and Africa as a backwater of global plant transfers. The objective is to promotehistorical recovery of the African role in colonial botany.

    (49) Acerca do papel dos africanos que trabalhavam a bordo dos navios negreiros, consulteBOLSTER, W. Jeffrey. Black Jacks: African American seamen in the age of sail. Cambridge:Cambridge University Press, 1997; LINEBAUGH and REDICKER:The many-headed hydra.

  • frica: Revista do Centro de Estudos Africanos. USP, S. Paulo, 22-23: 25-47, 1999/2000/2001.

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    Keywords: African Diaspora; African plants; Post-Colombian exchanges; Slavery; Feeding;Identity

    AAAAANEXNEXNEXNEXNEXOOOOO

    TTTTTRSRSRSRSRS CENTROSCENTROSCENTROSCENTROSCENTROS AFRICANOSAFRICANOSAFRICANOSAFRICANOSAFRICANOS DEDEDEDEDE DOMESTICAODOMESTICAODOMESTICAODOMESTICAODOMESTICAO DEDEDEDEDE PLANTPLANTPLANTPLANTPLANTASASASASAS(1)(1)(1)(1)(1) **********:::::

    As Savanas da frica Ocidental

    Adansonia digitata Baob

    Brachiaria deflexa Guin Millet

    Ceratotheca sesamoides Folhas e sementes

    Citrullus lanatus Melancia

    Corchorus olitorius Potherd

    Digitaria exilis Fonio

    Digitaria iburua Fonio preto

    Hibiscus cannabinus Kenaf

    Hibiscus sabdariffa Roselle

    Lagenaria siceraria Cabaa

    Oryza glaberrima Arroz africano

    Parkia biglobosa Feijo de locust

    Pennisetum glaucum Milhete [Pearl millet]

    Polygala butyracea Gergelim: semente preto

    Sesamum alatum Gergelim: folhas

    Sesamum radiatum Gergelim: folhas

    Solanum aethiopicum Tomate africano

    Solanum incanum Tomate amargo

    Solanum macrocarpon Nightshade

    Vitellaria paradoxa Karit ou manteiga de shea

    ** Nomes em ingls quando o portugus desconhecido

  • CARNEY, Judith. Navegando contra a corrente: o papel dos escravos e da flora africana...

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    O Centro-Oeste Africano Tropical

    Aframomum melegueta Pimenta malagueta

    Blighia sapida Maa de akee

    Cajanus cajan Andu

    Coffea canephora Caf (robusta)

    Cola acuminata Noz-de-cola

    Cola nitida Noz-de-cola

    Cucumeropsis edulis Semente da frica

    Digitaria decumbens Capim Pangola

    Dioscorea bulbifera Inhame batata [Air potato yam]

    Dioscorea cayenensis Inhame amarelo da Guin

    Dioscorea dumetorum Inhame amargo

    Dioscorea praehensilis Inhame arbusto

    Dioscorea rotundata Inhame branco da Guin

    Elaeis guineensis Azeite de dend

    Gossypium herbaceum Algodo

    Hibiscus esculentus Quiabo, gumbo

    Kerstingiella geocarpa Kerstings groundnut

    Lablab niger Feijo hyacinth

    Piper guineense Semente piper

    Pennisetum purpureum Capim de elefante

    Plectranthus esculentus Batata de Kaffir

    Solenostemon rotundifolius Piasa

    Sphenostylis stenocarpa Ervilha de inhame

    Sesamum indicum Gergelim

    Tamarindus indica Tamarindo

    Telfairia occidentalis Cabaa

    Vigna unguiculata Feijo fradinho, macassar

    Vigna subterranea Bambara groundnut

  • frica: Revista do Centro de Estudos Africanos. USP, S. Paulo, 22-23: 25-47, 1999/2000/2001.

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    O Leste Africano

    Avena abyssinica Aveia etope

    Catha edulis Chat

    Coffea arabica Caf (arabica)

    Eleusine coracana Finger millet

    Ensete ventricosa Ensete

    Eragrostis tef Tef

    Guizotia abyssinica Noog

    Lablab purpureus Feijo de hyacinth

    Panicum maximum Capim da Guin

    Pennisetum clandestinum Capim de Kikuyu

    Ricinus communis Feijo de castor/mamona

    Sorghum bicolor Sorgo

    (1) Adaptado de: Jack Harlan. Crops and man (Madison, 1975), 71-72; RichardMacNeish, The origins of agriculture and settled life (Norman, 1992), 298-318; J.G.Vaughan and C.A. Geissler The New Oxford book of food plants (Oxford, 1999), 10,26, 38, 128, 174.


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