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A Mulher Na Capoeira · mundo tem sido rápida e constante e o número de publicacóes sobre...

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A Mulher Na Capoeira Maria José Somerlate Barbosa Arizona Journal of Hispanic Cultural Studies, Volume 9, 2005, pp. 9-28 (Article) Published by University of Arizona For additional information about this article Access Provided by CAPES-Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de NÃ-vel Superior at 08/26/11 9:02PM http://muse.jhu.edu/journals/hcs/summary/v009/9.barbosa.html
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A Mulher Na Capoeira

Maria José Somerlate Barbosa

Arizona Journal of Hispanic Cultural Studies, Volume 9, 2005,pp. 9-28 (Article)

Published by University of Arizona

For additional information about this article

Access Provided by CAPES-Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de NÃ-vel Superior at 08/26/11 9:02PM GMT

http://muse.jhu.edu/journals/hcs/summary/v009/9.barbosa.html

A Mulher Ε α Capoeira

Maria José Somerfae Bar-bosa éprofessera de litera-tura e cultura brasileirasna Universidade de Iowa.Publicou os seguintes livres:Clarice Lispector: Spinningthe Webs of Passion (1996),Mutacóes Falseantes / Spa-rkling Mutations (1997)e Clarice Lispector: Des/fiando as Teias da Paixâo(2001). Organizou Passo eCompasso: Nos Ritmos doEnvelhecer (2003) e tempublicado extensivamenteem coletâneas e revistasespecializadas no Brasil enos Estados Unidos. Suapesquisa atualse concentrana cultura e na literaturaafro-brasileiras.

Ñas últimas décadas, a divulgacáo da capoeira nomundo tem sido rápida e constante e o número depublicacóes sobre o assunto tem se multiplicado

a olhos vistos. No entanto, as referencias a mulheres capo-eiristas sao esparsas e de pouco vulto e nao há uma análisesistemática da sua participaçâo ativa nos cÃ-rculos de capoeira.Num esforço para diminuir esse vacuo, este estudo traça atrajetória da mulher na capoeira, enfocando as mudançasocorridas nos últimos anos e os fatores que lhe propiciaramuma participaçâo mais significativa ñas rodas, academias eagremiacóes. Estabelece também uma visáo panorámica dasatividades e contribuicóes femininas para a divulgacáo dacapoeira, no Brasil e nos Estados Unidos, sem perder de vistaos obstáculos que a mulher ainda enfrenta.

A Presença da Mulher na Capoeira1

E difÃ-cil precisar a influencia que a mulher exerceu nodesenvolvimento da capoeira como jogo/luta/dança/ritualou traçar com exatidáo o histórico da sua participaçâo ativaporque a capoeira era de tradiçao ágrafa e de dominio quaseque exclusivamente masculino. Alguns estudos levantam ahipótese de que a coreografÃ-a dos movimentos da capoeirapossa ter se originado numa dança de iniciacáo feminina.Luiz da Cámara Cascudo foi o primeiro a estabelecer umaconexáo entre essa dança angolana e a capoeira2:

Entre os Mucope do sul de Angola, há uma dançada zebra, N'golo, que ocorre durante a Efundula, festada puberdade das raparigas, quando essas deixam de

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ser muficuenas, meninas, e passamà condiçâo de mulheres, aptas acasamento e à procriaçâo.

O rapaz vencedor no N'golotem o direito de escolher a esposaentre as novas iniciadas e sem pagaro dote esponsalicio. O N'golo é acapoeira. {Folclore 184-85)

Apesar de significante, essa associaçao entrea origem da capoeira e um ritual de iniciaçâofeminino mostra apenas que, como a N'goloestava restrita aos rapazes, as mulheres ti-nham uma participaçâo indireta.

Carlos Eugenio LÃ-bano Soares afirmaque até o século XX, "as mulheres que têmpapel fundamental na cultura escrava urbanaestavam, de acordó com todos os indicios,banidas do universo da capoeira, pelo menosindiretamente" {A capoeira 121). Mas, oproprio autor encontrou uma noticia sobrea repressáo aos capoeiristas que mencionaduas mulheres: "Isabel e Ana passam avida a brigar; e para isso desafiam quemlhes dirige qualquer palavra desagradável e,quando empenham qualquer luta, mostramser peritas na capoeiragem" (A negregada303).3 Trata-se, entretanto, ao que tudoindica, de casos isolados e de pouco vulto,principalmente quando comparados aonúmero de capoeiristas do sexo masculinoque se destacaram na época.

Alguns estudiosos e pesquisadoresda historia da capoeira no século XXcostumam mencionar o nome de sete

mulheres que ficaram famosas antes daincursáo feminina sistemática nos cÃ-rculos

de capoeira: Maria Hörnern, Julia Fogareira,Maria Cachoeira, Maria Pernambucana,Maria Pé no Mato, OdÃ-lia e Palmeirona(Bola Sete 27; Araújo, "Sou" 133). Noentanto, mesmo que algumas capoeiristastenham se tornado figuras lendárias,nao gozam do prestigio e da admiraçâo

reservados aos homens que se destacaramna capoeira na mesma época. Os esparsoscomentarios publicados sobre as atividadesdessas mulheres referem-se geralmente aseu comportamento*"masculino" e/ou a suadestreza, como alguns dos apelidos revelam(Maria Hörnern, Julia Fogareira, MariaPé no Mato). Parece importante tambémressaltar que a documentaçâo escrita éextremamente escassa para que se possatraçar um perfil e/ou avallar com precisáoo desempenho feminino no ámbito dacapoeira nas décadas anteriores a 1970. Seriaarriscado e improprio tanto simplificar acontribuicáo feminina, reduzindo-a a urnaspoucas capoeiristas, como assegurar que umnúmero significativo de mulheres tenhaparticipado ativamente das rodas ou do jogoantes dos anos 70, pois nao há suficientedocumentaçâo escrita para que se estabeleçaqualquer um dos dois argumentos.

Embora o "impacto" feminino nojogo da capoeira, anterior à década de 70,seja um aspecto de difÃ-cil comprovacáo, asmulheres sempre estiveram presentes nasrodas que se formavam nas ruas de Salvadore do Rio de Janeiro. Em City of Women,estudo em que descreve a mulher comoelemento catalisador da cultura de Salvador,Ruth Lande menciona que geralmente asrodas de capoeira se formavam em lugaresonde havia uma "baiana" vendendo acarajé,doces ou outras comidas. No Rio deJaneiro, as "quitandeiras"—especialmenteas que se localizavam no Largo da Sé—desempenharam um papel semelhanteao das "baianas" (cf. Soares, A capoeira175). As cantigas de capoeira, de dominiopúblico, confirmam a presença da mulhernas proximidades das rodas, como se podeverificar no seguinte corrido: "Dona Maria,o que vende ai? / E coco e pipoca que é doBrasil. /Coro: Dona Maria, o que vende ai?"(Citado em Bola Sete 127).

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Para impor ordem e autoridade,esquadrôes atuavam contra os gruposde capoeira e os candomblés, e a policÃ-aregistrava as prisóes dos capoeiristas edescrevia suas atividades. Nesse contextorepressive os capoeiristas contavam como apoio de outros grupos marginalizadoscomo as prostitutas e trabalhadores de rua,que se uniam para fugir da perseguiçâo dapolicÃ-a (Soares, A negregada 336). SegundoWaldeloir Regó, na Bahia, "as mulheresde saia, como eram chamadas as negrasafricanas ou descendentes" tornavam-secúmplices e aliadas dos capoeiristas, poisalém de avisar os homens da aproximacáoda policÃ-a, escondiam armas perigosas(geralmente uma navalha ou uma faca deticum) que retiravam da cabeça, do cábeloe do torso e entregavam aos capoeiristas noexato momento em que eles délas precisavampara atacar ou se defender (297).

Nas décadas posteriores ao estabeleci-mento das academias de capoeira (meadosdos anos 30), nota-se que a presença damulher nos cÃ-rculos da capoeira se manifestatambém em forma de um apoio logÃ-stico ouserviçal. Desde que a capoeira começou asair das ruas e se estabeleceu em academias,é muito comum que a aluna capoeirista sejaa secretaria e/ou coordenadora do grupoa que ela está afiliada. Por isso, FredericoAbreu considera que "se a mulher nao trouxeuma contribuicáo para a 'forma' de jogarcapoeira, trouxe a organizacáo, cuidando deassuntos burocráticos" (entrevista pessoal,Salvador, 03 de agosto de 2002).

AÃ-nda que haja referencias à mulhernas cantigas, que ela atue como elementocatalisador da roda, ou que seja parte de umtodo social na capacidade de organizadoraou secretaria, este tipo de participaçâo indicaapenas que a sua "presença" nos cÃ-rculos dacapoeira era constante. As referencias a sua

visibilidade nas rodas, nos grupos ou nasacademias revelam que, com raras excecóes,ela era vista quase exclusivamente comouma peca de apoio na estrutura social dojogo/luta/dança/ritual ou como participanteda resistencia cultural afro-brasileira.Tais argumentos nao sao suficientes paradeterminar ou explicar uma participaçâo"ativa" da mulher, enquanto capoeirista, ouestabelecer as razóes que redimensionaram asua posicáo e o seu lugar na capoeira.

Enquanto os homens se bénéficiantdo fato de que a capoeira tem uma longatradiçâo masculina e de mestres que servemde modelos para as geracóes de rapazes emeninos, só nas últimas décadas, as mulherescomeçaram a ganhar sistemáticamente talprojecáo e apoio. Mesmo nao se podendoprecisar com acuidade a participaçâo tangÃ-velda mulher na trajetória histórica do jogo, éinegável que a partir dos anos 70, ela tematuado de forma muito mais ativa e, desdeos anos 80, a sua presença nas rodas, nosgrupos e nas academias se faz cada vez maisnumerosa. E o que explica Rosângela CostaAraújo, Contra-Mestrejanja, co-fundadorado Instituto Nzinga de Estudos da CapoeiraAngola e Tradicóes Educativas Banto noBrasil (INCAB), dirigente da OrquestraNzinga de Berimbaus de Sao Paulo ediretora da revista Toques de Angola:

A mulher deixou de ser vista como"novidade" nos grupos, academiase rodas de capoeira. [...] Novidademesmo é o fato da sua atual represen-tacáo numérica e qualitativa; ou seja,o fato délas representarem hoje cercade 40% dos praticantes de capoeira,numa distribuicáo mundial, indicaque tanto a capoeira, no geral, quan-to os grupos, academias, mestres,contra-mestres, professores, etc., noparticular, nao podem mais insistir

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em ignorá-las, ou mesmo em reduzirseus papéis e participaçâo na práticae nas atividades destas organizacóes.("Contra-Mestre" 18)

Ao escolher o nome Nzinga para o gru-po e a orquestra, Contra-Mestre Janja e osco-fundadores, Paulinha e Poloca, prestaramuma homenagem à rainha angolana que, noséculo XVII, lutou contra os portugueses,chegando a expulsá-los temporariamenteda costa de Angola e que, durante as lutaspela independencia no século XX naquelepaÃ-s, passou a representar um sÃ-mbolo deresistencia contra o colonialismo (RosângelaCosta Araújo, entrevista pessoal, Sao Paulo,13 de julho de 2002; Paula Cristina da SilvaBarreto, entrevista pessoal, Salvador, 10 deagosto de 2002). A herança histórica e aresistencia que a Rainha Nzinga representasempre estiveram simbólicamente presentesnas práticas de origem africana no Brasil,pois como afirma Cascudo, cada naviode escravos que chegava ao Brasil trazia"invisÃ-vel e lógica a Rainha Jinga (sic)"{Made 40). Portanto, com a escolha donome Nzinga para seu grupo, os fundadoresdo Instituto e da Orquestra homenagearamas suas raÃ-zes africanas, estabeleceram umaassociaçâo entre a resistencia angolanae a sobrevivencia cultural da capoeira,direcionaram atençao para os feitos guerreirosfemininos, enfatizaram a capacidade deliderança da mulher e destacaram o lugarimportante que ela atualmente ocupa nacapoeira.

A Participaçâo da Mulherna Capoeira

Muitas vezes, o interesse inicial damulher pela capoeira se faz por uma viaobliqua, ou seja, muitas mulheres sentem-

se atraÃ-das pelo jogo porque já estudaramdança, ioga, educaçao fÃ-sica ou uma artemarcial. Grande parte das entrevistas quefiz no Brasil e nos Estados Unidos, bemcomo outras referencias encontradas em

depoimentos e entrevistas com mulheres quese destacam na capoeira, confirmam que amaioria delas associa a linguagem corporal ea concentraçao ritualÃ-stica da capoeira commovimentos da ioga, da dança ou das artesmarciais. Por exemplo, em um depoimentosobre Suellen Einarsen, Mestra Suelly (aprimeira mulher nascida nos Estados Unidosa atingir o grau de mestra), Bira Almeida(Mestre Acordeón) declara que, táo logoela entrou para a sua academia, ele percebeuque "a alta qualidade dos seus movimentosrefletiam muitos anos de técnica de dança"("Mestra" 2).4 A propria Mestra Suellyconfirma que seu treinamento em dançamoderna ajudou-a a entender melhor osmovimentos da capoeira e a aprender maisfácilmente uma nova linguagem corporal{United!).5

Mesmo que a maioria das meninas,moças e mulheres que se intéressa porcapoeira no Brasil e nos Estados Unidos tenhaestudado dança e ioga, feito educaçao fÃ-sicaou praticado alguma arte marcial antes dejogar capoeira, há instrutoras e discÃ-pulas semnenhuma experiencia anterior com qualquerdança, esporte ou arte marcial. Em algunscasos, há um movimento inverso: o interessepela capoeira leva o/a aluno/a a buscar outrosmeios afins, com a intencáo de validar asua participaçâo no jogo. E o que confirmaFátima Colombiana, Mestra Cigana (nascidano Rio de Janeiro, sagrada mestra nos anos70, e até agora a única mulher a presidir aFederaçâo Brasileira de Capoeira), que parapoder ensinar capoeira na escola secundariaacabou se matriculando numa universidadeonde estudou educaçao fÃ-sica:

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Eu quis dar aula de capoeira [quandojá era mestra]. Procurei uma escola ea diretora me disse: "Que! [...] Ondejá se viu capoeira na escola?" Fiqueitâo magoada com aquilo que entreina Faculdade de Educaçao FÃ-sicapara poder me vingar e voltar a daraula de capoeira naquela escola. Eume formei em 1982. Dito e feito. Atal escola que era de classe média alta,estava precisando de urn professor deeducaçao fÃ-sica. Eu fui dar aula là ,mas nao lecionei Educaçao FÃ-sica;só dava aula de capoeira. (Entrevistapessoal, Rio de Janeiro, 24 de maiode 2003)

A maioria das meninas, moças emulheres que estuda balé, danças modernas,ioga ou artes marciais em academias saooriundas de classes sociais económicamentemais privilegiadas. É raro que uma meninaque vive numa favela ou num bairro carenteno Brasil, ou num projeto residencial nosEstados Unidos, tenha condiçâo financeirade pagar tais cursos. Com raras excecóes, aslongas jornadas de trabalho das meninas emoças pobres—que se esforçam para garantiro seu sustento proprio ou para ajudar afamilia—nao lhes permitem a oportunidadede se matricular em academias. A grandeironÃ-a é que uma forma de resistenciacultural afro-brasileira domesticou-se dentrodos contornos espaciáis das academias,tornando-se, por isso, de acesso mais difÃ-cila muitos afro-descendentes cujos ancestraiscuidaram de preservá-la por muitos séculos,em espaços públicos e abertos, como umaforma de expressáo africana no Brasil.

Até certo ponto, a capoeira acabou selegitimando nos grandes centros urbanosbrasileiros e estrangeiros através da classemédia. O fator económico teve assim papelimportante na sua propagaçâo, pois a classemédia era o segmento da sociedade que

tinha mais tempo para as aulas, condiçoesfinanceiras de pagar mensalidades e o poderde legitimá-la como "esporte brasileiro."Refiro-me, neste caso, à divulgacáo daCapoeira Regional e dos estilos hÃ-bridosnos anos 70, pois a partir dos anos 80, osseguidores da Capoeira Angola fizeram umesforço para "reafricanizá-la." Os angoleiroscostumam rejeitar o rótulo de "esporte"e evitam associar a capoeira com as artesmarciais. Araújo, por exemplo, consideraque a Capoeira Regional "nasceu para aselites brasileiras, como sendo um esporteexótico ou uma manifestacáo folclórica"e analisa tal desenvolvimento como um

"branqueamento" da capoeira tradicional("Sou" 42).

Segundo Leticia Vidor de Sousa Reis,a partir dos anos 70, houve um esforço parahomogeneizar, nacionalizar, globalizar acapoeira e transformá-la na "arte marcialbrasileira" (170). E nesta fase que a capoeiraRegional ganha reconhecimento e grandedivulgacáo. Se a tentativa de transformar acapoeira num esporte, teve o efeito negativode "desafricanizá-la" e desapropriá-la da suaherança negra (Reis 170), serviu tambémpara garantir-lhe uma maior divulgacáoe respeito. Se nos anos 70, a "diasporabaiana" (a expressâo é de Reis) sentiu anecessidade de mudar o jogo para poderganhar a atencáo da classe média brasileira,estabelecer-se no mercado e competir comas lutas orientais, nos anos 80 e 90 houveuni esforço consciente para "reafricanizar"a capoeira e, com isto, a Capoeira Angolaganhou mais força. E nesta época tambémque a mulher começa a participar maisativamente nos cÃ-rculos capoeiristas.

A divulgacáo da Capoeira Angolacontribuiu para que muitas meninas e moçasestudassem capoeira, principalmente noBrasil. E comum que as mulheres, em faseiniciante da aprendizagem, sintam-se mais

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à vontade com a Capoeira Angola, poisconsideram-na menos agressiva, violenta ouacrobática pelos seus movimentos rasteiros.No entanto isto nao significa que a capoeiraAngola seja "melhor" para o corpo feminino.Há de se convir que em qualquer estilode capoeira, pode haver violencia e quetal prática é prejudicial tanto para o sexomasculino quanto para o feminino. Nessecaso, os capoeiristas usam os movimentoscomo forma de dominaçâo, de exibicáofÃ-sica ou de atletismo, transformando o jogonuma competicáo, enfatizando, assim, oaspecto de luta da capoeira.

Além do crescimento da classe médiano Brasil, da sua contribuicáo para legitimara capoeira como esporte e da divulgacáoda Capoeira Angola, há também outrosfatores que influenciaram uma participaçâomais efetiva da mulher no ámbito geraldesse jogo/luta/dança/ritual. E possÃ-vel queesses fatores adicionáis tenham ajudadoa aumentar a divulgacáo da capoeira noBrasil e no exterior e que, por extensáo,tenham contribuido para incrementar onúmero de mulheres capoeiristas, a saber: 1)a maior emancipacáo das mulheres, graçasaos movimentos feministas; 2) o apoio queintelectuais dos grandes centros urbanosderam à expansáo de capoeira no Brasil;3) a modernizaçâo da familia brasileira; 4)a polÃ-tica do Estado que elevou a capoeiraà categorÃ-a de esporte nos anos 70, e que,nos anos 80, incorporou-a oficialmente aoprojeto estatal como patrimonio cultural;5) a maior infiltracáo da cultura negra namÃ-dia; 6) a penetracáo da capoeira nasescolas; 7) a expansáo de grupos folclóricose shows culturáis; 8) a propagaçâo e adivulgacáo da capoeira na intérnete e a suaglobalizacáo; 9) o estabelecimento deacademias de capoeira no exterior; 10) aatitude mais aberta e menos machista dosmestres, contra-mestres e instrutores de

capoeira; 11) a organizacáo de encontros,torneios, workshops e conferencias; 12) oimpacto positivo de capoeiristas que estáoafiliadas a universidades de prestigio no Brasile no exterior, levando a capoeira para osmeios académicos; 13) o crescente número depublicacóes sobre capoeira; e 14) a inclusâoda capoeira em programas educacionais eeventos públicos tanto no Brasil como noexterior.

Embora o feminismo nao seja dire-tamente responsável pela presença da mulherna capoeira, ele legitimou a reivindicacáo deigualdade entre os sexos, deu impulso avarios debates sobre a paridade de génerose garantiu novas propostas de vida para asmulheres. Portanto, o grande número demulheres que participam ativamente deesportes, que colocam a sua energÃ-a e o seupoder aquisitivo no mercado de trabalhoe que lutam pelos direitos da mulher tevepapel decisivo na sua infiltracáo na capoeira,pois os homens capoeiristas já nao podiamfácilmente segregar e discriminar a alafeminina.

Além da igualdade de direitos pro-pagados pelos movimentos feministas eda participaçâo da classe média, os outrosfatores citados também contribuÃ-ramsubstancialmente para aumentar o númerode mulheres interessadas na prática dacapoeira. Como afirma Reis em O Mundode Pernas para o Ar: A Capoeira no Brasil,os intelectuais de Sao Paulo tiveram umpapel singular na divulgacáo e aceitacáoda capoeira por parte da classe média. Aoabracar o jogo/luta/dança/ritual, pessoasde destaque nos grandes centros urbanosdo Brasil, especialmente em Sao Paulo eno Rio de Janeiro, colaboraram para queela fosse menos estigmatizada e para queganhasse uma maior divulgacáo nacional einternacional. Ao adotá-la, esses intelectuaisemprestaram-lhe o nome e o prestigio, o que

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contribuiu para retirá-la da sua condiçaomarginalizada, abrindo espaço também parauma participaçâo mais ativa da mulher.

A crescente aceitaçao da capoeiristapor um público gérai e/ou pelo cÃ-rculofamiliar contribuiu para elevar o númerode mulheres jogando capoeira. Com rarasexceçôes, até a década de 70 era muito difÃ-cilpara uma mulher ser capoeirista. MestraCigana discute as dificuldades encontradas,afirmando que existia um preconceitogeral contra a capoeira e que as familiasclassificavam o jogo/luta/dança/ritual comouma atividade de malandro: "Era o maior

vexame para a familia. Uma mulher quefosse treinar capoeira, seria 'mulher à -toa,'vagabunda. Uma menina de 'boa' familianao podÃ-a nem assistir, quanto mais treinar"(entrevista pessoal, Rio de Janeiro, 24 demaio de 2003). Tanto a sociedade como afamilia da capoeirista costumava rejeitar ojogo/luta/dança/ritual com medo de quea filha perdesse a feminilidade. É o quetambém explica Edna Lima, que em 1981recebeu o tÃ-tulo de mestra e hoje ensinaCapoeira ABADA em Nova Iorque. Nasceuem Brasilia e começou a praticar capoeira aosdoze anos, a principio, ocultando tal fato dafamilia por medo de que fosse desencorajadaa continuar: "Depois de uma semana deaula, percebi que nao havia meninas lá,fiquei um pouco confusa e pensei que talveza capoeira nao fosse para mulheres" (Perry6). Lima é um dos exemplos felizes em quea mente aberta da máe acabou incentivandoa garota, mesmo quando outras pessoasinsistiam que a capoeira nao era "coisa demenina" (Perry 6).

Estigmatizada pelo Código Criminaldo Imperio (1830) e pelo Código Penalda República dos Estados Unidos doBrasil (1890), a capoeira permaneceuna ilegalidade até 1932. Para fugir daperseguiçao da policÃ-a, legitimar um espaço

cultural afro-brasileiro e angariar a simpatÃ-ada classe média, Mestre Bimba fundoua primeira academia formal de capoeiradenominando-a Centro de Cultura FÃ-sica eCapoeira Regional. Retirou a capoeira dasruas e projetou-a como "a ginástica nacionalbrasileira" (Regó 291-92). Em 1937, a sua"escola" recebeu reconhecimento oficialao ser registrada na Inspetoria do EnsinoSecundario Profissional (Abreu, Bimba29; Lewis 32; Regó 268-70, 282). MestreBimba conseguiu realizar um sonho demuitos brasileiros, pois a idéia de considerara capoeira como "esporte nacional" era bemmais antiga. Por exemplo, de 1910 a 1928, oescritor Coelho Neto, dentre outros, insistiunuma "proposta pedagógica de inclusáoda capoeira nas escolas civis e militares,"utilizando o argumento de que a capoeiraera uma excelente ginástica tanto para ocorpo como para o caráter (Reis 65-66).

Em 1972, a capoeira foi "reconhecidaoficialmente como esporte, conformeportarÃ-a expedida pelo o Ministerio daEducaçao e Cultura (MEC), iniciando-seentáo um processo de institucionalizacáoe burocratizacáo que visou homogeneizare normatizar a capoeira em todo paÃ-s,estabelecendo-se torneios e simposiosnacionais" (ReÃ-s 125-27). Essa "apropriacáooficial" da capoeira reflete uma tendenciageral do Estado autoritario, "biologizantee tecnicista" dos anos 70. Nesse contexto,a capoeira ganhou o status de "esporte" efoi entáo criada a Federacáo Brasileira deCapoeira (Reis 128-30). Marilena ChauÃ-afirma que "em 1982, o Ministerio daEducaçao e Cultura (MEC) apresentou umplano trienal para a cultura e a educaçaocuja novidade encontra-se no fato de que,pela primeira vez desde 1964, a CulturaPopular foi incorporada oficialmente aoprojeto estatal" (87). A funcáo do MEC erapromover os "bens culturáis," valorizando a

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participaçâo comunitaria, incentivando asmanifestacóes regionais e convertendo "opopular em patrimonio nacional" (ChauÃ-89). Tal decisáo certamente contribuiu paravalidar todas as grandes expressóes da culturapopular brasileira como as escolas de samba,o futebol, a capoeira e as festas populares. Oreconhecimento formal do Estado garantiuuma maior aceitaçâo da capoeira por umpúblico mais ampio e contribuiu para quefosse menos estigmatizada. Nesse contexto,abriu-se mais espaço para a participaçâofeminina nas rodas, nos grupos e nasacademias de capoeira.

A penetraçao e a divulgacáo maissistemática da cultura negra na mÃ-diaajudaram também a legitimar o espaço dacapoeira no Brasil e no mundo e a projetaralgumas mulheres. Quando começou a serincluida em grupos folclóricos ou showsculturáis, a capoeira foi vista mais comoexibiçâo do que luta. Por conseguinte, passoua ser considerada menos ofensiva ou violenta eo estigma vigente ("capoeira é coisa de macho,de malandro, de desordeno") diminuiu.Deve-se muito essa divulgacáo à "diasporabaiana" que, a partir dos anos 70, consolidoua capoeira em Sao Paulo, renovou o intéressepelo jogo/luta/dança/ritual no Rio de Janeiro(onde a capoeira sofrera perseguiçao ferrenhada policÃ-a no século XIX), e foi propagada noexterior, principalmente em Nova York e naCalifornia. Essa maior divulgacáo da capoeiraabriu novos horizontes para as mulheres eviabilizou sua participaçâo mais ativa.

A organizacáo de encontros, torneios,workshops e conferencias no Brasil e noexterior tem levado a mulher a mostrar assuas habilidades e o seu talento. A rede decomunicacáo estabelecida contribuiu paradisseminar informaçôes mais rápidamentee para fomentar um maior diálogo entre oscapoeiristas tanto do sexo masculino como do

feminino. Os torneios, encontros, workshopse reunióes sao propagados mais fácilmente ede maneira mais eficiente via intérnete. Os

sites de capoeira e o uso de emails facilitame disseminam a comunicacáo, divulgam oseventos e atraem números mais elevados

de participantes para as atividades, rodas,academias, agremiacóes e grupos de capoeira.De maneira que a intérnete desempenha umpapel importante na divulgacáo da capoeirae, por extensáo, na participaçâo feminina,pois tem ajudado muitas mulheres a ver queo jogo/luta/dança/ritual já se tornou práticacomum em varias partes do mundo paraambos os sexos.

A presença de grandes mestres nosEstados Unidos e em outras partes domundo (em caráter permanente, comovisitantes periódicos, ou como convidadosespeciáis de grupos de capoeira e academias)contribuiu para atrair tanto homens comomulheres para o estudo da capoeira.Como o contingente feminino de alunosde capoeira nos Estados Unidos tem sidobastante alto, desde o inicio, a participaçâoda mulher nesses grupos causou um impactopositivo, pois os mestres, contra-mestres,professores e instrutores convidados doBrasil conviveram com um maior número

de mulheres capoeiristas, podendo assimreavaliar as regras do jogo no tocante à linguagem e à atitude misógina das cancóese das rodas. No entanto, isto nao significaque todos aqueles que ensinam ou estudamcapoeira nos Estados Unidos têm umamente aberta ou sao mais afeitos a respeitar aigualdade de sexos melhor do que no Brasil.Indica apenas que, como o movimentofeminino sempre foi mais forte nos EstadosUnidos, há nos cÃ-rculos de capoeira norte-americanos um esforço mais consciente paranao desrespeitar os direitos da mulher, emparte para evitar possÃ-veis acóes judiciais,

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possivelmente para aderir à tendencia do"politicamente correto," ou para manter asacademias funcionando de maneira eficaz.

Sabe-se que, desde o final da décadade 70, é comum que os mestres, contra-mestres, professores e instrutores de capoeira,residentes no exterior, viagem com seusalunos ao Brasil para pequeñas temporadasde estudo e treinamento. Ao conviver comas mulheres estrangeiras que participamativamente das rodas, as populaçoes locáis,principalmente dos centros urbanosmenores (como é o caso de varias cidadesdo Recôncavo Baiano), começaram aperceber que nao há estigma em ser umacapoeirista. E claro que nem sempre omodelo alienÃ-gena é visto de uma maneirapositiva, pois existe certa desconfiança comrelaçâo a mulheres estrangeiras que praticamcapoeira. O segmento mais conservador dasociedade brasileira ainda costuma descreveressas estrangeiras como "menos femininasou menos graciosas" que as brasileiras, poisconsideram que a capoeira e o futebol saoatividades "masculinas."

A medida que o horizonte da capoeirano Brasil e no mundo se ampliou e conquistouum espaço diferenciado, a mulher passou aser incluida em programas educacionais. NoBrasil, muitos professores de educaçao fÃ-sicajá adotaram a capoeira e o governo brasileirotem liberado algumas verbas para a suainclusáo no sistema educacional. Programassociais de recuperacáo do menor de grandevisibilidade como "Criança Esperança," daRede Globo de Televisáo em parceria comUNICEF, também incluem a capoeira noseu curriculo. Alguns praticantes de capoeiracontam receber de Gilberto Gil, Ministro daCultura do Governo Lula, um apoio maissistemático à implantacáo da capoeira nasescolas, já que, desde 1982, a cultura popularbrasileira tem sido considerada patrimonio

nacional. Essa divulgacáo da capoeira e a suaimplantacáo nos currÃ-culos escolares servempara legitimá-la e, conseqüentemente, atraircrianças e adolescentes de ambos os sexospara os grupos de capoeira.

No Brasil, o projeto de leÃ- 10.639para a inclusáo de estudos afro-brasileirosno primeiro e segundo graus (aprovadoem Janeiro de 2003), cumpre também afunçâo de romper com varios estigmasrelacionados à capoeira, viabilizando umamaior participaçâo feminina. No entanto,mesmo anterior a este projeto de lei, acapoeira já era ensinada em algumas escolascomo parte das aulas de educaçao fÃ-sica noBrasil. Nos Estados Unidos, o sistema derecreacáo nos parques {Parks and Recreation)de muitas cidades incorporou o jogo dacapoeira, encorajando a participaçâo decrianças e j ovens de ambos os sexos, o quecom certeza acabará por ampliar o horizonteparticipativo da mulher. (E semelhante aoque acontece com o futebol [soccer] nosEstados Unidos). Algumas universidadesnorte-americanas também incluÃ-ram a

capoeira no seu curriculo de educaçao fÃ-sicaou dança, reconhecendo o seu valor.

Deve-se ainda considerar o impactopositivo que pesquisadores afiliados auniversidades de renome, de ambos os sexos,têm dado à capoeira. O número crescentede teses de mestrado e de dissertacóesde doutorado sobre capoeira, tanto noBrasil como no exterior, bem como livrospublicados por casas editorials de prestigio,contribuem para legitimar a capoeira comoobjeto de pesquisa académica.7 Ao ensinarou publicar sobre a capoeira, os professorese pesquisadores afiliados a universidadesno Brasil e no exterior também emprestama projeçâo do seu nome para a divulgacáoda capoeira e ajudam a legitimar o espaçoda mulher nos cÃ-rculos capoeiristas. Esses

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estudiosos desempenham hoje um papelsemelhante ao que os intelectuais paulistastiveram nas décadas de 70 e 80.

A Dinámica de Generös

na CapoeiraAs vezes, a violencia é uma das formas

que os homens usam para amedrontaras mulheres e afugentá-las das rodas edas academias. Mestra Suelly confirmatal argumento ao discutir os tipos dedominacáo fÃ-sica e psicológica encontradasna capoeira e ao considerar que "a violenciaas vezes é intencional, pois busca afastar asmulheres do jogo" {United!). E tambémo que explica Mestra Cigana ao relatar asua experiencia numa academia do Riode Janeiro, com um rapaz "de um metro enoventa mais ou menos" que se recusou aaceitá-la na roda e na academia:

"Quando eu sai no aú, ele me deuuma chapa lateral no diafragmaque me jogou a tres metros. Eu caÃ-lá sem ar, mas depois voltei para aroda. A partir daÃ-, eu pus na minhacabeça que devia evitar violencia,mas que precisava me treinar comoatleta para nao apanhar." (Entrevistapessoal, Rio de Janeiro, 24 de maiode 2003).

Há ainda um outro tipo de preconceito.Trata-se de uma discriminacáo velada e sutile, por isso, até mais perigosa. Refiro-meas atitudes de condescendencia e de falsaproteçâo existentes nas rodas e nos cÃ-rculosde capoeira em que se excluÃ- a mulher,usando-se um cavalheirismo exagerado.Mestra Suelly interpreta essas duas faces domachismo existente nas rodas como uma

deseonsideracáo e um desrespeito ao talentoe à experiencia da jogadora:

Sinto-me pouco confortável comjogos agressivos e fÃ-sicamente inten-sos e confrontadores [...] Tambémme distancio do deboche de algunsjogos, quando assumem o caráterde condescendencia e arrogancia.Acredito que esses jogos sao táoagressivos como os que admitem umsoco no rosto. E muito frustrantepara a capoeirista ser confrontadapor aqueles que nao respeitam oulevam a mulher a serio na capoeira,algumas vezes assumindo atitudescondescendentes, tais como tratara parceira com cavalheirismo desa-propriado. Ou, no outro extremo,mas na mesma categorÃ-a, aquelesque querem impor o seu peso, des-considerando a performance técnicada mulher para mostrar que podem,de qualquer maneira, dominar a suaoponente. {United T)Se a violencia dentro das rodas de ca-

poeira costuma afastar algumas mulheres, aviolencia urbana acabou contribuindo paraque a mulher estudasse capoeira. Mesmoque nenhuma das pessoas que entrevisteiou que responderam ao meu questionáriotenha associado a aprendizagem de capoeiradiretamente à autodefesa, muitas délasconfessaram-me que se sentem mais segurase capazes de se defender em caso de ataque.Admitiram que, face à violencia dos grandescentros urbanos e ao medo recorrente

de estupro, viam mais esta vantagem noaprendizado da capoeira.

A grande maioria das mulheres queentrevistei ou as que responderam ao meuquestionário descreve as suas relaçoescom seus mestres em termos afetivos erespeitosos, enfatizando que, durante otreinamento, nao sofreram discriminaçoesnem tiveram privilegios por serem mulheres.Um grande número de pessoas entrevistadasafirmou que os grandes mestres dispensam

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um tratamento igualitario aos alunos. Naopude comprovar se tal deferencia é um faroreal ou se os entrevistados consideram queseria difamatorio estabelecer uma diferençaentre a teorÃ-a ("todos sao iguais na capoeira")e a prática ("há uma preferencia pelos alunosdo sexo masculino que se destacam e quepoderáo continuar o trabalho do mestre"),especialmente em se tratando de figuraslendárias ou quase lendárias na capoeira.Esta incerteza também se manifestou

porque as pessoas me confessaram que casosamorosos entre os mestres e as discÃ-pulassao fréquentes e que eles, as vezes, utilizama sua posiçâo de autoridade para se envolverrománticamente com as alunas ou paraexercer controle sobre elas. Em alguns casos,as alunas se deixam fascinar pela figura doprofessor/pai e os relacionamentos amorososentre mestres e alunas servem para incentÃ-va-las a se desenvolver dentro da capoeira. Emoutros casos, bloqueiam-lhes o crescimento,pois muitas acabam desistindo de continuaraprendendo o jogo de capoeira quando arelaçâo perde a intensidade ou se acaba.

Há também que se considerar que,mesmo sendo pessoas de um grandeconhecimento da filosofÃ-a da capoeirae de sensibilidade apurada, a formaçâopessoal dos grandes mestres foi forjadanos parámetros da sociedade patriarcalbrasileira que discriminava a capacidadefÃ-sica e intelectual da mulher. É bastantecomum que os mestres encorajem mais osdiscÃ-pulos do sexo masculino a continuara aprendizagem da capoeira. E o queexplica Anne Pollack (Luar do Sertâo),fundadora do "Grupo Capoeira Mandingado Sertâo":

Mesmo os mestres que dizem, 'todosos meus alunos säo metade hörnerne metade mulher,' dâo mais atençâoaos homens. Aqueles a quem eles

devotam mais tempo e energÃ-aacabam sendo os jovens rapazes que[...] podem continuar a sua tradiçao.(Entrevista pessoal, Tucson, 29 dejunho de 2000)

Apesar dos avanços da mulher noscÃ-rculos de capoeira, em muitos casos,ela aÃ-nda é vista como um pequeñocomplemento da funçâo masculina. Essaatitude de superioridade que o homemcostuma assumir e o papel secundarioreservado para a mulher estäo resumidos nasmetáforas do pandeiro (instrumento musicalde importancia na capoeira) e no significadodas palmas (funçâo complementar naCapoeira Regional e nos estilos hÃ-bridos)da seguinte cançâo tradicional, de dominiopúblico, muito cantada nas rodas decapoeira:

Minha máe 'tá me chamando,Oh! que vida de mulher!Quem toca pandeiro é homem,Quem bate palmas é mulher. (Citado porLeticia Vidor de Souza Reis, entrevistapessoal, Sao Paulo, 12 de julho de 2002)

E também o que verifiquei nas minhasobservacóes de rodas e workshops de capoeirae nas análises das conversas, entrevistas edepoimentos que coletei. Por exemplo,um contra-mestre de Capoeira Angola nosEstados Unidos ficou irritado quando eulhe disse à queima-roupa que notara queele dispensara mais atençâo aos rapazesdo que as moças durante o seu workshop.Presumivelmente, para mostrar a suairritaçâo ou para retaliar, respondeu queas mulheres na roda de capoeira ainda säo"adornos ou representacóes simbólicas" e que"nao sao levadas táo a serio quanto os homens"(conversa que tive com Eric Johnson, Contra-Mestre Pererê, em Iowa City, 15 de outubro

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de 2001). Tal revelaçao me surpreendeu,pois metade dos alunos que participavamdo seu workshop naquela ocasiáo erammulheres. No entanto, observei tambémque as alunas pareciam nao se aborrecer comas "regras" do jogo. A figura do pai/mestre,ou contra-mestre, professor, ou instrutor,representa a autoridade do conhecimentoda historia, filosofÃ-a, malicia e treinamentofÃ-sico da capoeira. E possÃ-vel que elas sintamque questionar esta autoridade significa porem xeque o poder e o conhecimento dolÃ-der, o que poderia levá-los a se indisporcontra elas. (Deve-se notar, no entanto,que a obediencia ao mestre ou instrutoré uma das caracterÃ-sticas dos grupos decapoeira e nao se aplica apenas as mulheres.Reflete o sistema das sociedades patriarcaisem que, mesmo que a ala masculina tenhamais regalias ou receba um tratamentodiferenciado do patriarca, ele é obedecidopor todos inquestionavelmente).

Baseando-me tanto na reacáo docontra-mestre à minha pergunta, como emoutros depoimentos, entrevistas e conversasque tive durante os tres anos desta pesquisa,concluÃ- que muitos homens costumam ver amulher capoeirista em dois nÃ-veis. No nivelsuperficial, abrem espaço para a mulher,incorporando-a nas rodas e nas academias.Num nivel mais profundo, um númerode mestres, contra-mestres, professores einstrutores ainda vêem a capoeira como algode dominio masculino e, portanto, buscamencontrar outros rapazes e meninos quepossam dar continuidade ao seu trabalho.De certa forma, os menos esclarecidos aindaacreditam que a funçâo simbólica e real damulher na capoeira é a de "bater palmas,"ou seja, ficar do lado de fora da roda,incentivando os jogadores ou servindo deelemento catalisador.

Como um contraponto, pode-seargumentar também que, considerando-se o

número elevado de mulheres praticantes decapoeira, aatitude dos mestres, contra-mestrese instrutores nao parece ser extremamentemachista, pois há mais camaradagem ecompanheirismo nas rodas de capoeira doque em muitos outros setores da sociedade.Se ainda há alguns mestres, contra-mestres,professores e instrutores de capoeira queinsistem em separar as mulheres dos homensou em tratá-las de maneira diferenciada, deum modo geral, há respeito e consideracáoe, em muitos casos, as mulheres recebemdos encarregados das academias, dasagremiaçôes e dos grupos de capoeira umtratamento condigno ou até especial.

Mesmo que, em certos cÃ-rculos nacapoeira, haja um duplo sistema de valores,de muitas formas simplesmente ecoa oque acontece na sociedade com um todo.A experiencia da mulher na capoeira e asdiscriminaçoes que sofre nao divergem muitodo que acontece em outras agremiaçôes, naescola ou no trabalho. Isto nao significa queseja louvável ignorar as atitudes machistas oua moral dupla existente em alguns cÃ-rculosde capoeira. Qualquer tipo de discriminacáoé deplorável e um exame da dinámica degéneros, em termos comparativos, nao servepara desculpar o comportamento misógino;serve apenas para explicar que a dinámicade géneros na capoeira nao é atÃ-pica nemanómala.

Deve-se ainda considerar o impactopositivo que as mulheres do alto escaláoda capoeira (por exemplo, mestras econtra-mestras como Edna Lima, Suelly,Fátima Colombiana, Márcia "Cigarra,"Marisa Cordeiro, Janja e Paulinha) têm tidona dinámica de géneros na capoeira. Essasmulheres oferecem um apoio inusitado à ala feminina nas rodas, nas agremiaçôes enas academias. O suporte que elas dáo ascapoeiristas (cerca de 50% dos seus alunos saodo sexo feminino) é também um fator muito

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decisivo para um maior respeito à presençada mulher na capoeira e para estabelecer ummaior equilibrio entre as relaçoes de género.

Se a barreira social que discriminava acapoeira como uma atividade exclusivamentemasculina já foi desmoronada, pelo menosem parte, há ainda outros fatores queconstituem um empecilho para que amulher nao compita com o homem emtermos de igualdade numérica nos escalóesmais avançados da capoeira. Algumasmulheres se sentem desencorajadas acontinuar porque acham que os homenstêm mais força e dominio fÃ-sico do corpodo que elas e que, portanto, competent emcondiçôes de desigualdade. Sabe-se que, emqualquer ambiente de estudo, quando ascondiçôes sao menos favoráveis, o normalé que o/a aluno/a acabe abandonandoou adiando o curso que estava fazendo.Enquanto nas aulas iniciantes de capoeira,o número é quase igual de participantes dosexo masculino e feminino, ainda existeuma predominancia de homens em gruposmais avançados de capoeira. Por isso,comparativamente, sao poucas as mulheresque conseguem chegar a altos nÃ-veis nacapoeira. No entanto, o modelo estabelecidopor aquelas que já atingiram altos nÃ-veisde aprendizagem ajuda outras mulheresa perceber que elas também podem tergrande destreza e rapidez, leva-as a verque é possÃ-vel neutralizar a força fÃ-sica e aviolencia masculinas nas rodas de capoeiracom sagacidade, artimanha e treinamento e,principalmente, com a malicia do jogo.

Ainda que a mulher tenha questionadoa mitificacáo em torno do papel do homemna capoeira e mapeado novos terrenos, asentrevistas que conduzi, os depoimentos quecoletei e a literatura publicada sobre a mulherna capoeira revelam que as capoeiristas aindasentem necessidade de se auto-afirmar. Háuma urgencia em provar para si mesmas e,

especialmente para os companheiros do sexomasculino, que sao competentes, que sabemtocar berimbau, que conhecem os cantos eque dominam os movimentos e a maliciado jogo, principalmente quando a grandemaioria dos jugadores na roda sao homens.Rosa MarÃ-a Araújo Simóes considera queisto se deve ao fato de que, apesar da grandepenetracáo da mulher na capoeira, há umadefasagem cultural e temporal: "Temporalporque a mulher entrou na capoeira muitomais tarde e cultural porque até hoje amulher é considerada mais frágil" (99).

A inferioridade numérica e a defasagemtemporal e cultural da mulher na capoeiraindicam que há muito a conquistar, portanto,nao é surpreendente que elas ainda estejamdefinindo seu espaço dentro do universoda capoeira. Até mesmo mulheres que jáalcançaram altos nÃ-veis de treinamento(como a Graduada Pimentinha, ganhadorado tÃ-tulo de Melhor Mulher Capoeiristaem 1999 nos Jogos Mundiais de CapoeiraABADA no Rio de Janeiro) admitemque "as mulheres muitas vezes se deixamintimidar porque pensam que os homenssao mais fortes e associam isto com jogarmelhor" (Delgado 2). Grosso modo, seja nacapoeira ou em outros setores, mesmo que amulher ainda exiba certa timidez ou medonos cÃ-rculos marcadamente masculinos,já avançou com passos largos nessas duasúltimas décadas.

Se, por um lado, a capoeirista com-partilha uma historia de opressáo patriarcalcom outras mulheres, por outro, podechegar a ter maiores afinidades como oshomens do grupo a que pertence devidoao estilo de capoeira a que se afiliou. Nessecaso, a mulher tende a se aproximar dosseus colegas de academia ou do seu grupode prática. E um caso semelhante ao queaconteceu com o movimento feminista oucom qualquer grupo marginalizado que

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exige direitos igualitarios. Por exemplo,ainda que todas as mulheres de descendenciaafricana tenham algo em comum comoutras mulheres na luta pela reivindicaçâode direitos, uma mulher negra de umacarnada carente da sociedade, por causa doseu passado histórico ou da sua experienciasociocultural, pode ter mais afinidades comum homem de descendencia africana dasua comunidade do que com uma mulherbranca de alta classe média. Portanto, amulher que joga a Capoeira Angola, aRegional ou a ABADA pode se sentir maispróxima de um homem do seu grupo doque de outra mulher que pratique um estilodiferente. No entanto, agora que a fase deestabelecimento dentro da capoeira já seconcretizou, nota-se que começa a haveruma maior mobilizaçâo das mulheres paracriarem as suas próprias agremiaçôes. Temhavido um esforço, dentro de cada estilode capoeira, para estabelecer um espaço,marcar a presença da mulher na capoeira eglobalizar a sua atuacáo como capoeirista.

Se, num ámbito mais ampio, póde-se pensar na mulher-capoeirista como umgrupo que juntou forças para impor a suapresença nas rodas e agremiaçôes e exigiro respeito que lhes é devido; num ámbitomais restrito, uma vez estabelecida a suacapacidade e habilidade de brilhar nosdominios da capoeira, sentiu a necessidadede pluralizar a sua presença e participaçâo,buscando tanto uma expressâo pessoalcomo uma afirmacáo do estilo de capoeiraa que se afiliou. Uma vez estabelecida a suaidentidade como capoeirista, as mulherescomeçaram a formar coalizóes. Veja, porexemplo, o caso dos encontros internacionaisrealizados pela Federaçâo Internacional deCapoeira Angola (FICA) e, dentro dessaFederaçâo, as mulheres estabeleceram suaidentidade feminina ao instituir a FICAInternational Women's Conference. Por

isso, dentro das academias e das agremiaçôesde capoeira, a identificaçâo mais ampia dasmulheres se faz principalmente em termosdo estilo de capoeira que se joga. Dentro decada estilo, haverá, num segundo momento,maior ou menor identificaçâo em termosde raça, classe ou idade, como acontece emgrande parte das associacóes, esportes, ouaté mesmo nas escolas.

A proliferacáo de academias e gruposde capoeira por todo o Brasil e pelo mundoafora, em pequeños e grandes centrosurbanos, é um sinal da sua aceitaçâo ou, pelomenos, demonstra que a capoeira ocupa umnovo espaço social onde os problemas quea mulher ainda enfrenta estáo muito mais

ligados à questâo de género do que de raça.Isto nâo significa que o preconceito racial noBrasil tenha sido eliminado. Significa apenasque quando ele existe, atinge capoeiristasde ambos os sexos. Considerando-se ahistoria da capoeira (acossada pela policÃ-a,estigmatizada como uma "luta de escravos"e considerada uma prática cultural inferior),a discriminaçâo racial obviamente atingeas mulheres também. Portanto, num planomais ampio, fora das academias, pode-sefalar em múltipla discriminaçâo: umamulher negra ou mestiça pode ser relegadaa um plano inferior por ser mulher, negra ecapoeirista. No entanto, nenhuma daquelascom quem conversei ou que participou daminha pesquisa levantou o problema deraça "dentro do seu grupo de capoeira."Rosângela Costa Araújo, por exemplo,aborda a questâo racial no seu estudo sobrecapoeira de forma abrangente ("Sou" 96-98,135-53). Atualmente a capoeira goza deprestigio nos meios populares, nâo é maisperseguida pela policÃ-a e é muito menosmarginalizada pela sociedade em geral.Portanto, o racismo que existia de "formageneralizada" contra a capoeira é parte doseu passado histórico e nâo era direcionado

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apenas as mulheres, como se pode ver naspublicaçôes que analisam o assunto (cf.Almeida, Araújo, Bola Sete, Lewis, Regó,Reis, Soares, Tigges e Talmon-Chvaicer).

A Consolidaçao da PresençaAtiva da Mulher na Capoeira

Para se atingir nÃ-veis elevados deaprendizagem na capoeira há a exigenciade tempo e dedicaçâo. É semelhante ao queacontece com a prática de qualquer esporteou outras atividades afins. Muitas mulhereslevantaram esta polémica, ponderando quea maternidade e outros papéis e afazeres navida pessoal e profissional nâo lhe permitemuma dedicaçâo exclusiva à capoeira. Nestecaso, existe um paralelo também entre aposiçâo da mulher na capoeira e a que elaocupa no mercado de trabalho em geral.Apesar das dificuldades, há um númerocrescente de mulheres que conseguemconciliar outras funçôes e se dedicar à práticae/ou ao ensino da capoeira.

É importante notar também quetestemunhos e depoimentos de mulherescapoeiristas indicam que a gravidez, amenstruaçao e outras condiçôes do corpofeminino nâo constituent grandes obstáculosao jogo de capoeira. Muirás das mulheresentrevistadas revelaram que nâo vêema biologÃ-a como um empecilho e que écomum que as capoeiristas continuem ajogar durante a gravidez, principalmentenos jogos menos acrobáticos. Anne Pollack,por exemplo, acredita que o fato de terpraticado capoeira até os últimos meses degravidez ajudou-a a ter um parto mais fácil ea recuperar a forma fÃ-sica mais rápidamenteapós o nascimento da sua filha (entrevistapessoal, Tucson, 29 de junho de 2000).Mestra Suelly indica que "gosraria de vermais feminilidade na maneira como as

mulheres jogam capoeira; nao para mudar ojogo, mas para deixá-lo refletir as mudançase movimentos do corpo feminino," poisacredita que, em vez de "imitar os homens,"as mulheres deveriam integrar "a energÃ-a eo toque feminino à roda" {United'3). Esta éuma das discussóes que costuma surgir nosencontros, conferencias e workshops em quea presença da mulher é bastante forte.

Muitas mulheres de renome na áreaacadémica têm contribuido para alargaro espaço da mulher naqueles cÃ-rculos,ajudando a legitimar o estudo de capoeiradentro e fora da roda e servindo de modelo.Outras mulheres vêem nelas um espelhode como é possÃ-vel acumular uma funçâoprofissional de prestigio, ser uma boacapoeirista e desempenhar os seus papéisnormáis de mulher e cidadá, como é o casodas mulheres citadas neste estudo. No Brasil,acompanhei de perto o trabalho de PaulaCristina da Silva Barreto, professora naUniversidade Federal da Bahia, de RosângelaCosta Araújo, historiadora e funcionarÃ-a daUniversidade de Sao Paulo que defendeuuma tese de mestrado sobre capoeira naUSP, e de Leticia Vidor de Sousa Reis,anrropóloga, também formada pela USP eque publicou sua dissertacáo de doutoradosobre a capoeira. Nos Estados Unidos,chamaram-me atençâo duas professorasuniversitarias que também têm interessena capoeira: Anne Pollack, pesquisadora naárea de cáncer da University of Arizona efundadora do "Grupo Capoeira Mandingado Sertâo" e Barbara Browning, professorae diretora do departamento de PerformanceStudies na New York University.8

As mulheres do meio académico,como muitas outras por todo o mundo,servem de modelo positivo para as novasgeracóes e contribuem para que se dissipeo estigma de paria social e de inferioridade

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cultural que se conferia ao capoeirista. É ocaso, por exemplo, de uma contra-mestrae de duas mestras brasileiras, radicadasnos Estados Unidos, que têm contribuidode uma maneira substancial para mudaro perfil conservador da capoeira. EmChicago, destaca-se Contra-Mestra MarisaCordeiro, nascida em Minas Gérais eex-dançarina do grupo "Oba, Oba," deOswald Sargentelli. É diretora do grupo"Gingarte Capoeira" desde 1991 e ensinacapoeira como atividade extracurricularestudantil na University of Chicago e naUniversity of Illinois em Chicago. Em SaoFrancisco, Mestra Márcia Treidler "Cigarra"dá o exemplo de excelencia na capoeira ede cidadania. Ela começou a sua carreiraem 1987 trabalhando com crianças de ruado Rio de Janeiro. Em 1991, mudou-separa os Estados Unidos onde fundou oABADA Capoeira Sao Francisco e, em1997, criou o Brazilian Cultural Center, oprimeiro centro daquela cidade dedicadoas artes culturáis brasileiras. É organizadorade eventos culturáis e diretora artÃ-stica daABADÕ -Capoeira Internacional (ABADA,"Mestranda" 1).

Mestra Edna Lima tornou-se a mulhercapoeirista mais conhecida e renomada deNova York (comemorou seu 30° aniversariona capoeira em 2004), acumulando umasérie de premios nacionais e internacionais.Seu prestigio atrai alunos de ambos os sexospara as aulas de capoeira, karaté e dançasafricanas que ela ensina em Nova York enos Departamentos de Dança e Cienciado Esporte em Long Island University eno Hunter College {ABADA, "Edna" 1).O número elevado de mulheres nas suasaulas (mais de 50% dos seus alunos sao dosexo feminino) parece confirmar a suspeitade que muitas mulheres se sentem maisconfortáveis com uma instrutora. Muitas

alunas sentem-se mais à vontade para pedirajuda e/ou fazer perguntas; vêem na mestra,contra-mestra ou professora um modelo aseguir e estabelecem coalizóes femininas.

Além das aulas «adicionáis decapoeira, em 2004, Lima lançou um métodode malhaçâo, o "Capoeira Workout," quetem sido alvo tanto de elogios quanto decrÃ-ticas. Se, por um lado, o "Workout" éuma forma de disseminar e popularizaros movimentos da capoeira, por outro,também é visto como uma descaracterizacáoda capoeira, pois "dispensa a roda," baseia-senos principios de "uma sessáo tradicionalde ginástica" e seu aquecimento é feito"ao som de samba-reggae," em vez dosom de atabaques e berimbaus (Bergamo58; Chatham E50; Esteves 123-24). Dequalquer maneira, o "Workout" tem elevadoa popularidade de Lima, ajudado a projetara imagem da mulher capoeirista, propagadoos movimentos da capoeira e atraÃ-do maismulheres para as rodas e academias.

A divulgacáo da capoeira e, conseqüen-temente, a abertura de um maior espaçopara as mulheres, faz-se também atravésde publicaçôes ocasionáis sobre feitosfemininos em revistas de grande circulaçâocomo Praticando Capoeira, Coleçâo GrandesMestres, Ginga Capoeira: Letras e Movimentose Revista Cordâo de Ouro. Eventos comoo Auläo Aberto I e II, ambos realizadosem Sao Paulo no Ibirapuera e no Valedo Anhangabaú, em 25 de maio e 15 desetembro de 2002, atraÃ-ram milhares depessoas, dentre elas centenas de mulheres quemarcaram presença nesses acontecimentoshistóricos. Os encontros internacionais

realizados pela Federaçâo Internacionalde Capoeira Angola (FICA InternationalWomen's Conference) e pela "AnnualCapoeira Angola Women's Conference," ospremios "Nzinga para a Mulher Brasileira"

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e a "Maratona Cultural Afro-Brasileira" e

varios torneios e encontros realizados peloGrupo Capoeira ABADA, em varias partesdo mundo, cumprem o papel de divulgara capoeira e solidificar o espaço da mulhernesse meio.

Uma análise das mudanças ocorridasnas letras das cancóes de capoeira tambémé um indicio das transformacóes positivasque começam a tomar corpo desde que apresença feminina se tornou mais marcantenas rodas. As cantigas têm a funçâo deconectar a energÃ-a da roda, redimensionandoos movimentos e representando a maliciado jogo. Muitas mulheres acabam fazendomudanças em algumas letras e questionandoou se recusando a cantar certas cancóestradicionais que denigrem a imagem damulher. Há varias das cantigas mais novas queforam compostas por mulheres e apresentamuma voz feminina. Tais cancóes questionama ideologÃ-a do descaso, desmascaram odiscurso patriarcal e estabelecem modelosfemininos, como é o caso da ladainha "ForçaGuerreira" de Ively Viccari. As letras dascancóes servem de termómetro cultural dacapoeira no Brasil e no mundo pois, atravésdélas, é possÃ-vel medir as mudanças ocorridasa nivel da dinámica de géneros e avahar astransformacóes que a mulher trouxe para asrodas e academias de capoeira.

Conclusóes

A medida que o debate e a discussáosobre o papel e o lugar da mulher nacapoeira começam a ganhar destaque, oespaço real déla também se amplia. Onúmero de mulheres capoeiristas cresce e oreconhecimento da sua participaçâo no jogoganha destaque. Como só mesmo a partir dosanos 80 o contingente feminino na capoeiraaumentou substancialmente, ainda é cedopara se prever com exatidâo quais mudanças

seráo implementadas ou se outro estilo decapoeira surgirá. O fato das mulheres semobilizarem para desenvolver conferenciase workshops constituÃ- um dado importantena historia da capoeira e um sinal de queelas ganham espaço social e reconhecimentohistórico. O fato também de grandes centrosde capoeira no Brasil, nos Estados Unidos eem outros paÃ-ses reservarem lugar de mestrese contra-mestres para algumas mulheres é umindicador de que a mediaçâo de género estáse estabelecendo.

Considerando-se as mudanças sociaisocorridas desde os anos 70 e todos os fatoresque influenciaran! na abertura de um lugarpara a presença feminina bem definida nacapoeira, é possÃ-vel concluir que a mulhercontemporánea já mapeou um espaço realnos cÃ-rculos da capoeira. Como todo bomcapoeirista, ela incorpora a duplicidade dopapel de sedutora e seduzida: sua energÃ-aaliciadora atrai o parceiro/adversário paraa jogada, ao mesmo tempo que ela se lançana viagem, fascinada pelo magnetismo dojogo. Sintagmas como "embarcar" no jogo/barco, referencias a sereias (representantesdo principio da seduçao e uma metáforada malicia do proprio jogo) bem comoexpressóes populares ("ver o jogo") e aassociacáo estabelecida entre navio/corpo nomar/roda de capoeira sao muito fréquentesnas cantigas de capoeira, como se podeobservar no seguinte corrido:

Se voce quiser me verJogue seu navio no mar, marinheiro.Marinheiro, quando em velaAs sereias cantam no mar, marinheiro.Saia do mar, marinheiro,Saia do mar, estrangeiro. (Citado em BolaSete 130)

Se tomarmos o mar como representacáoda capoeira, podemos concluir que, apesarde todo preconceito contra a mulher, ela já

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jogou o seu navio no mar e se inseriu naambigüidade do jogo/luta de capoeira, poisé ao mesmo tempo a sereia que canta paraatrair o parceiro/adversário e a marinheiraque embarcou no jogo com sua coragem,sua malicia, sua ginga e sua astucia. Atravésdos movimentos do seu corpo e dos seuscantos, com sagacidade, a mulher podetraçar novas linhas do contexto culturalda capoeira, estabelecendo um processo demediaçâo e recodificando a interaçâo dosjugadores.9 Tanto no Brasil como em outrospaÃ-ses, as rodas de capoeira têm se tornado umespaço de mediaçâo social em que sexo, idade eraça nao sâo empecimos para a integraçao dosparticipantes. É o que ensinam os primeirosversos da ladainha "Os Eres Cummins,"cantada pelos Mestres Joáo Pequeño e MiguelMachado, em que repetem a filosofÃ-a e osensinamentos de Mestre Pastinha: "A capoeiraé para homem, menino e mulher / So nâoaprende quem nâo quer" (s.p.).

Como discutido, a mulher nâo é maisuma novidade nas rodas de capoeira; a suadefasagem temporal e cultural está diminuindoe a sua timidez nos cÃ-rculos masculinos começaa se esvair de forma bastante rápida. Nao podeser vista apenas como um elemento de apoioao homem capoeirista, considerada um meroelemento catalisador das rodas ou analisadacomo uma simples peca na engrenagem dasatividades das organizaçôes e academias.Mesmo que novos parámetros para o jogo ououtros estilos de capoeira nao se desenvolvam,nao há mais dúvidas de que a mulherdemarcou seu tempo e espaço nos cÃ-rculos dacapoeira e tem contribuido substancialmentepara estabelecer um equilibrio de energÃ-a nasrodas. O tempo se incumbirá de demarcar asmudanças ocorridas. Quaisquer que sejamas transformacóes futuras, é inegável quea mulher ocupa um lugar diferenciado ediferenciador na capoeira.

Notas1 Agradeço ao National Endowment for

the Humanities pela bolsa de pesquisa queme concedeu em junho e julho de 2001 paracoletar e analisar cantigas de capoeira, materialque me impulsionou a pesquisar o papel dasmulheres na capoeira. Meus agradecimentosespeciáis a Frederico José de Abreu, RosângelaCosta Araújo, Paula Cristina da Silva Barreto,Fátima Colombiana, Anne Pollack e LeticiaVidor de Sousa Reis pela ajuda, pelas conver-sas, pelo material e pelos contatos. A todas asoutras pessoas que me concederam entrevistas,que responderam ao meu questionário, ou queconversaram comigo sobre capoeira entre 2000e 2003, aqui registro os meus mais profundos esinceros agradecimentos.

2 Há ligeiras referencias a essa dança de ini-ciacáo nos estudos de Downey 218; Esteves 46;Soares, A negregada 34-35; eTigges 31.

3 Essa noticia foi publicada no Rio de Janeiro, noJornal do CommérrÃ-o, em 29 de Janeiro de 1878.

4 Efetuei esta traducáo e todas as outras dostextos citados que foram originalmente publi-cados ou gravados em inglés.

5 Sobre a transicáo da dança para capoeira,veja também Carvalho 16-19.

6 Embora ChauÃ- nao analise a capoeira,os argumentos que usa para discutir as outrasmanifestaçôes da cultura popular (as escolas desamba, o futebol e a festa do Cirio de Belém)podem ser aplicados à capoeira.

7VeJa, por exemplo, algumas das publicaçôescitadas neste estudo (Araújo, Barbosa, Brow-ning, Downey, Lewis, Reis, Salvadori, Simóes,Soares, Talmon-Chvaicer e Tigges).

8 Esta lista é uma apenas uma amostra. Refle-te alguns destaques, selecionados por publicaçôesde livros ou e/ou por trabalhos de divulgacáoda capoeira, principalmente em universidadesbrasileiras e americanas de destaque. Como aminha pesquisa se debruça principalmente sobrea capoeira no Brasil e nos Estados Unidos, naoapresento um estudo detalhado do trabalho deoutras mulheres em outros continentes.

9 Veja também Barbosa, "Capoeira."

Maria José Somerlate Barbosa 27

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