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A Notação Musical para Cistre e os Tratados de Geminiani ...

Date post: 19-Nov-2021
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Revista Vórtex | Vortex Music Journal | ISSN 2317–9937 | http://vortex.unespar.edu.br/ D.O.I.: https://doi.org/10.33871/23179937.2021.9.1.5 Musical Notation for Cistre and the Treaties of Geminiani (1760) and Silva Leite (1796). Recebido em 01/02/2021. Aprovado em 05/03/2021. Disponı́vel online: 15/05/2021. Editor: Dr. Felipe de Almeida Ribeiro; Dr. Fabio Guilherme Poletto. Creative Commons CC-BY A Notação Musical para Cistre e os Tratados de Geminiani (1760) e Silva Leite (1796) Mario André Vlaxio Lopes, Luciano Hercílio Alves Souto Universidade do Estado do Amazonas | Brasil Resumo: O artigo trata de duas formas de escrita musical - a tablatura e a notação mensural - utilizadas no ensino e na difusão da prática musical da guitarra inglesa. Partindo da perspectiva dos tratados The Art of Playing Guitar or Cittra (1760) de Francesco Geminiani e Estudo de Guitarra (1796) de Antonio da Silva Leite, realiza um estudo musicológico em fontes primárias e secundárias relacionadas ao instrumento e às notações verificadas nos respectivos tratados, discutindo suas aplicabilidades na prática musical dos intérpretes de hoje. Neste sentido, busca conhecer o papel da notação em relação à época por meio da contextualização histórica dos tratados e dos instrumentos em questão, envolvendo aspectos prático-instrumentais e didático- pedagógicos vinculados ao instrumento. As informações coletadas e apresentadas contribuem para a compreensão das ideias expressas pelos autores, elucidando aspectos relevantes do ponto de vista teórico e prático-interpretativo do instrumento. Abstract: The article approaches two forms of musical writing - tablature and mensural notation - used in teaching and in the dissemination of the musical practice of the English guitar. From the perspective of the treatises The Art of Playing Guitar or Cittra (1760) by Francesco Geminiani and Estudo de Guitarra (1796) by Antonio da Silva Leite, it conducts a musicological study on primary and secondary sources related to the instrument and the notations verified in the respective treatises, discussing their applicabilities in the musical practice of today's interpreters. In this sense, it seeks to understand the role of notation in relation to the time throughout the historical context of the treaties and instruments in question, involving practical- instrumental and didactic-pedagogical aspects linked to the instrument. The information collected and presented contributes to the understanding of the ideas expressed by the authors, elucidating relevant aspects from the theoretical and practical-interpretative point of view of the instrument. Palavras-chave: Notação musical, Tablatura, Guitarra inglesa, Francesco Geminiani, Antonio da Silva Leite. Keywords: Musical notation, Tablature, English Guitar, Francesco Geminiani, Antonio da Silva Leite.
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Page 1: A Notação Musical para Cistre e os Tratados de Geminiani ...

RevistaVortex|VortexMusicJournal|ISSN2317–9937|http://vortex.unespar.edu.br/D.O.I.:https://doi.org/10.33871/23179937.2021.9.1.5

Musical Notation for Cistre and the Treaties of Geminiani (1760) and Silva Leite (1796). Recebido em 01/02/2021. Aprovado em05/03/2021.Disponıvelonline:15/05/2021.Editor:Dr.FelipedeAlmeidaRibeiro;Dr.FabioGuilhermePoletto.CreativeCommonsCC-BY

A Notação Musical para Cistre e os Tratados de Geminiani

(1760) e Silva Leite (1796) Mario André Vlaxio Lopes, Luciano Hercílio Alves Souto

Universidade do Estado do Amazonas | Brasil

Resumo: O artigo trata de duas formas de escrita musical - a tablatura e a notação mensural - utilizadas no ensino e na difusão da prática musical da guitarra inglesa. Partindo da perspectiva dos tratados The Art of Playing Guitar or Cittra (1760) de Francesco Geminiani e Estudo de Guitarra (1796) de Antonio da Silva Leite, realiza um estudo musicológico em fontes primárias e secundárias relacionadas ao instrumento e às notações verificadas nos respectivos tratados, discutindo suas aplicabilidades na prática musical dos intérpretes de hoje. Neste sentido, busca conhecer o papel da notação em relação à época por meio da contextualização histórica dos tratados e dos instrumentos em questão, envolvendo aspectos prático-instrumentais e didático-pedagógicos vinculados ao instrumento. As informações coletadas e apresentadas contribuem para a compreensão das ideias expressas pelos autores, elucidando aspectos relevantes do ponto de vista teórico e prático-interpretativo do instrumento.

Abstract: The article approaches two forms of musical writing - tablature and mensural notation - used in teaching and in the dissemination of the musical practice of the English guitar. From the perspective of the treatises The Art of Playing Guitar or Cittra (1760) by Francesco Geminiani and Estudo de Guitarra (1796) by Antonio da Silva Leite, it conducts a musicological study on primary and secondary sources related to the instrument and the notations verified in the respective treatises, discussing their applicabilities in the musical practice of today's interpreters. In this sense, it seeks to understand the role of notation in relation to the time throughout the historical context of the treaties and instruments in question, involving practical-instrumental and didactic-pedagogical aspects linked to the instrument. The information collected and presented contributes to the understanding of the ideas expressed by the authors, elucidating relevant aspects from the theoretical and practical-interpretative point of view of the instrument.

Palavras-chave: Notação musical, Tablatura, Guitarra inglesa, Francesco Geminiani, Antonio da Silva Leite.

Keywords: Musical notation, Tablature, English Guitar, Francesco Geminiani, Antonio da Silva Leite.

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prensa desenvolvida por Johannes Gutenberg durante o século XV contribuiu

significativamente para a expansão e difusão do registro impresso através de um método

organizado e rápido, possibilitando a um número maior de indivíduos o acesso a

diversos saberes e não a apenas um grupo exclusivo (SOUZA, 2012; MARIANO, 2013). No caso

da música, a difusão do conhecimento se apoia em determinadas formas de escrita que podem servir

tanto ao aprendizado formal e institucionalizado quanto de suporte à oralidade e ao aprendizado

não formal, como, por exemplo, as tablaturas para cordas dedilhadas do século XVI ao século

XVIII, que serviram a essas duas finalidades, conforme observa Nogueira (2016):

O aprendizado da notação musical foi historicamente associado às camadas privilegiadas da sociedade. Assim o descrevem os textos amplamente conhecidos das áreas de História da Música e Musicologia. Temos por certo, contudo, tratarem de um excerto da produção musical, dado que a prática popular excede, em grande número, a das elites. O levantamento histórico das fontes de documentação musical de que se serviram tratou, exclusivamente, da música escrita em notação convencional e, em larga escala, de manuscritos e publicações até fins do século XIX. A partir da institucionalização do aprendizado musical com o advento dos conservatórios, surgiu a demanda por publicações de textos didáticos que uniformizassem o conhecimento musical. De outro lado, as cordas dedilhadas e, particularmente, as guitarras ou violas, serviram à produção musical de todas as camadas da sociedade, desde suas origens árabes, até a difusão pela Europa e por suas colônias. Seu aprendizado se deu por meio não formal, seja pela tradição oral ou não letrada, seja por outras formas de letramento (possivelmente a razão de sua enorme popularidade), desconsideradas naquelas publicações didáticas, à exceção de pequenas citações ao alaúde e às vihuelas. A institucionalização mesma do ensino desses instrumentos ocorreu muito tardiamente em relação aos instrumentos de orquestra e ao piano (NOGUEIRA, 2016, p. 119).

Para Grout e Palisca (2001, p. 97, grifo do autor), “uma obra composta podia ser ensinada e

transmitida oralmente”, porém, “podia sofrer alterações neste processo de transmissão. Mas a

invenção da notação musical tornou possível escrever a música de uma forma definitiva, que podia

ser aprendida a partir do manuscrito”. Durante os diversos períodos da história da música ocidental,

a notação esteve sempre em transformação, atendendo, ainda que com limitações, as necessidades

expressivas e ou comunicativas de cada época. Sobre a análise da notação musical gregoriana

empreendida por Lorenzo Mammi (1998–1999), Nogueira (2008; 2016) observa que o autor

vincula a transformação da notação musical à mudança do pensamento filosófico sobre as artes,

contrapondo os códigos notacionais da escrita musical gregoriana e seus respectivos elementos

significativos aos valores estéticos que regiam as normas musicais de então, revelando o seu

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significado à época em que foram escritos.

Sobre a escrita gregoriana e sua transcrição moderna, Mammi (1998–1999) escreve:

Se, por exemplo, acrescentarmos a uma partitura de Palestrina as linhas de compasso, ausentes no original, as durações das notas não mudam, mas o intérprete moderno poderá medi-las com um sistema a ele mais familiar. No entanto, a linha de compasso não é apenas um instrumento neutro de medida: ela estrutura o texto musical em células métricas fixas, células que eram absolutamente estranhas ao pensamento musical renascentista. Palestrina concebia as frases musicais como linhas contínuas e indivisíveis, e não como um conjunto de células. O intérprete moderno, portanto, se não quiser violentar o texto, deverá esquecer os compassos para tentar reconstruir a fluência da curva melódica — num certo sentido, deverá trabalhar contra a transcrição, extraindo dela, mentalmente, a escrita original. (MAMMI, 1998–1999, p. 22).

Como se pode observar, o desenvolvimento da música ocidental ao longo do tempo conduziu

a notação musical por diversas transformações e adaptações, muitas vezes redefinindo seus limites e

sua estrutura conforme as necessidades expressivas e os valores estético-filosóficos de cada época, até

se estabelecer da forma convencional como a conhecemos. Sobre tais transformações, Nogueira

(2016) escreve:

A notação moderna da música, cujos fundamentos remontam ao período dito renascentista, teve como herança as transformações advindas do pensamento artístico-musical, suas demandas sonoras, acústicas, expressivas, estruturais e formais. Para além de transformações dos códigos de notação, o sistema incorporou signos de representação dos mais variados fenômenos da expressão musical, chegando ao que hoje referimos como notação musical moderna. Diferente das notações mais antigas já encontradas, que se baseavam na escrita verbal grega e incluíam elementos de sua enunciação, a notação incorporada pelo aprendizado musical moderno e, em particular, por aquele institucionalizado, é específica, abrange elementos que se relacionam com seu significado de forma simbólica (representação convencional de seu objeto) e, por essa razão, possui múltiplos aspectos de aprendizado que produziram tratados teóricos da escritura e da enunciação musical. Assim, o sistema de ensino musical foi estruturado a partir de cada um desses aspectos advindos da complexidade de escrita e de representação gráfica da música e, a partir dela, surgiram novas disciplinas interdependentes do sistema de notação. Em paralelo, as cordas dedilhadas produziram um sistema de notação que, por sua representação gráfica das cordas (ou ordens de cordas) do instrumento, constituiu-se em um modelo iconográfico de notação que perdura por séculos, desde os primórdios da imprensa. Suas variantes compreendem os signos indiciários das alturas segundo sua posição no braço do instrumento e são representadas por números (tablaturas italiana e espanhola) ou por letras do alfabeto (tablatura francesa). Seguem as convenções espaciais de altura da notação convencional (agudo na parte superior) as tablaturas francesa e espanhola. Já a tablatura italiana, a de maior classificação iconográfica, reproduz as alturas conforme a representação visual do braço do instrumento: grave em cima e agudo nas linhas inferiores. (NOGUEIRA, 2016, p. 123–124).

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Conforme se pode observar, a notação em si não é um simples procedimento atemporal e

universal que possa permanecer da mesma forma ao longo dos séculos. Essa observação é

corroborada por Harnoncourt (1988, p. 34) em seu Discurso dos Sons, no qual escreve: “é um erro

fatídico crer — como acontece em grande escala — que as figuras de notação, as indicações de

caráter e tempo, e as dinâmicas têm ainda hoje o mesmo significado de antigamente”. Essa mesma

ideia é apontada por Fischer (2009, p. 14) em sua obra intitulada História da Escrita, ao pontuar

que “a escrita tem sido, é e será inúmeras coisas distintas para inúmeros povos disitintos [sic] em

incontáveis épocas diferentes”. A semelhança na grafia não assegura a mesma significação. Um

conjunto de fatores como mudanças estilísticas musicais, aliadas às ideias dos compositores e dos

executantes, altera também em maior ou menor grau o significado dos diversos códigos da escrita

musical existentes.

Considerando as notações para guitarra inglesa utilizadas pelos dois autores (Geminiani e

Silva Leite) — um de origem italiana e radicado na Inglaterra, e o outro de origem Portuguesa —,

veremos como as possibilidades de notação existentes lhes propiciou atingirem objetivos comuns

por caminhos diversos, ou seja, qual seja, a criação de material impresso para a instrução e o

desenvolvimento prático da guitarra.

1. A guitarra inglesa

Após a ausência de um instrumento de cordas dedilhadas de apelo popular durante a primeira

metade do século XVIII, a Grã-Bretanha testemunhou na segunda metade do século, o surgimento

de um novo instrumento: a guitarra inglesa1, instrumento de seis ordens (quatro duplas nas

primeiras cordas e duas simples nas seguintes). Essa breve ausência mencionada é apontada por

Tyler e Sparks (2007, p. 206, tradução nossa): “durante a primeira metade do século XVIII, a

guitarra de cinco ordens e com cordas de tripa perdeu progressivamente o status e a popularidade de

que gozava na Grã-Bretanha [...] no século XVII, quando era um dos instrumentos favoritos da

1 Não se trata propriamente de uma guitarra, mas de uma espécie de cistre. (TYLER; SPARKS, 2007, p. 206).

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corte do rei Charles II”2. Os autores afirmam ainda que essa guitarra “tinha praticamente

desaparecido por completo da consciência popular inglesa em meados do século XVIII”3.

A boa impressão que a nova guitarra causou na Grã-Bretanha do início da segunda metade do

século XVIII permitiu sua crescente popularidade tanto no círculo das famílias nobres, no apreço

por parte das jovens senhoras, quanto na utilização por artistas amadores (COGGIN, 1987, p. 206;

TYLER; SPARKS, 2007, p. 207). Esse instrumento (Figura 1) faz parte de uma ampla família de

instrumentos de cordas dedilhadas encordoados com material metálico, desenvolvidas como

alternativa aos encordoamentos de tripa animal, relativamente frágeis e, muitas vezes, de difícil

afinação. A nova guitarra ofereceu algumas vantagens, como o seu formato mais cômodo para

segurá-la, mecanismo de afinação mais fácil de manuseio, afinações mais simples, e sua desenvoltura

em apresentações ao ar livre. Essas particularidades gradualmente popularizam o instrumento que

passou a ocupar “um papel importante dentro de várias configurações musicais e fornecendo sua

própria voz distinta para vários estilos musicais”4 (POULOPOULOS, 2011, p. 50, tradução nossa).

FIGURA 1 – a. Desenho de uma guitarra inglesa presente no tratado Estudo de Guitarra de Silva Leite; b) Fotografia de uma guitarra inglesa, mod. Longman e Broderip, 1785.

Fonte: LEITE (1796, p. 30); Longman e Broderip (1785 apud MIMO, 201?)

2 “during the first half of the eighteenth century, the five-course, gut-strung guitar steadily lost the status and the popularity it had enjoyed in Britain [...] during the seventeenth century, when it had been a favourite instrument at the court of King Charles II”. 3 “it had virtually disappeared altogether from the popular English consciousness by the middle of the eighteenth century”. 4 “an important role within various musical settings and providing their own, distinctive voice to several musical styles”.

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O instrumento, no final do século XVIII, na Grã-Bretanha, era popularmente conhecido

como guittar. “No entanto, o instrumento tem sido amplamente conhecido como English guittar

[guitarra inglesa] desde o início do século XIX, quando se tornou necessário distingui-lo das então

emergentes guitarras ‘Espanholas’ ou ‘Francesas’”5 (POULOPOULOS, 2011, p. 46, tradução

nossa). A popularidade da guitarra inglesa foi acompanhada por inúmeras coletâneas musicais e

diversos tratados escritos para o instrumento. Desta forma, os dois autores tomados como referência

neste artigo foram escolhidos por terem contribuído significativamente para o desenvolvimento

prático do instrumento: o primeiro, Francesco Geminiani (1687–1762), participou de sua difusão

desde seu aparecimento na Grã-Bretanha, enquanto o segundo, Antonio da Silva Leite (1759–

1833), participou na continuidade da popularização. Ambos nos legaram dois importantes tratados

dedicados à prática da guitarra inglesa. Geminiani, compositor e tratadista, era natural da Itália, mas

se radicou na Inglaterra ainda por volta da primeira metade do século XVIII6. Silva Leite,

compositor, tratadista e mestre de capela da Sé do Porto, era natural de Portugal. Embora a

temporalidade e a espacialidade entre esses autores sejam contrastantes, ambos contribuíram para a

popularização da guitarra inglesa. Geminiani lança seu tratado voltado à guitarra inglesa em 1760,

denominado de “The art of playing guitar or cittra”. Três décadas depois, em 1796, Silva Leite lança

o seu tratado nominado “Estudo da Guitarra”. Ambos se propõem a um objetivo em comum, o de

ensino e difusão da prática do instrumento. Geminiani, tendo percebido que a guitarra voltou a

gozar de interesse e popularidade na corte setecentista inglesa — principalmente pelo timbre

peculiar que o instrumento oferecia e pelo fácil manuseio de execução do mesmo —, aproveitou

para “compor algumas lições adaptadas à extensão e ao estilo desse instrumento”7 (Geminiani, 1760,

p. 1, tradução nossa), e empenhou-se, igualmente, “em aprimorá-las, adicionando mais harmonia e

modulação à maneira usual de se executá-las”8. O instrumento também foi muito popular em

Portugal no século XVIII. A entrada da guitarra inglesa em Portugal e sua acolhida pela sociedade

mercantil aconteceram na cidade do Porto, pela barra do Douro, através do comércio de vinho e

5 “Nevertheless, the instrument has been widely known as ‘English guittar’ since the beginning of the 19th century, when it became necessary to distinguish it from the then emerging ‘Spanish’ or ‘French’ guitars”. 6 Mais precisamente, em 1714 (NEVES, 2017, p. 16; PÁSCOA; SBAFFI, 2020, p. 2). 7 “to Compose some Lessons adapted to the compass and stile of that Instrument”. 8 “to improve it by adding more Harmony and Modulation to the usual manner of performing on it”.

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cortiça. Por conseguinte, os primeiros tocadores de guitarra chegaram a Portugal, onde ricos

comerciantes britânicos firmaram estadia na cidade do Porto, comprando casas e terras e criando

respeitáveis associações empresariais (BESSA, 2008; POULOPOULOS, 2011; MELO, 2014). Silva

Leite aproveitou-se dessa popularidade do instrumento e escreveu também para “o suave, e

harmonico instrumento da Guitarra, taõ applaudida neste tempo, por todos que sabem deleitar-se

com a doçura da harmonia” (LEITE, 1796, p. 3).

2. The Art of Playing the Guitar or Cittra (1760), de Francesco Geminiani e Estudo de

Guitarra (1796), de Antonio da Silva Leite

O tratado de Geminiani9 destinado à guitarra inglesa ou cistre, apresenta-se em dois

momentos: no primeiro, o autor oferece um breve prefácio contendo informações sobre a quem se

destina a obra, sobre a retomada da popularidade da guitarra durante o século XVIII

(principalmente durante a segunda metade do século XVIII) e fornece explicações práticas para o

entendimento da notação usada e seu manejo ao instrumento. No segundo, Geminiani apresenta

onze sonatas de três a cinco movimentos contrastantes como exemplos musicais em diversas

tonalidades para o bom desenvolvimento na guitarra. As peças vêm acompanhadas de uma linha de

violino e uma outra linha cifrada de baixo contínuo e, como sugere o compositor, devem ser tocadas

por um violoncelo e/ou um cravo.

O tratado de Silva Leite10 divide-se em duas grandes partes distintas e mais uma parte voltada

para a prática do instrumento com algumas peças. Na primeira parte apresenta os assuntos

distribuídos em vinte e oito tópicos. Aborda conhecimentos básicos e teóricos da música como o

nome das notas, o pentagrama, as claves, os acidentes musicais, os tempos e os compassos, as figuras

musicais e seus respectivos valores, contemplando sinais de expressão, andamentos, tonalidade e

culminando nas regras pertinentes para se fazer um bom acompanhamento apenas pelo baixo

contínuo. Na segunda parte, voltada à guitarra inglesa, os assuntos encontram-se distribuídos em

vinte e seis tópicos. Há, primeiramente, uma atenção especial ao instrumento como o da invenção e

9 Sobre a vida e obras de Gemiani, ver Neves (2017). 10 Sobre a vida e obras de Silva Leite, ver Bessa (2008).

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serventia, da construção e das qualidades necessárias a uma boa afinação, das cordas (tipo,

quantidade, ordenamento e como “ferir” as mesmas) e do procedimento de afinação. Segue com

tópicos sobre uma boa postura para segurar a guitarra e a posição dos dedos no instrumento, formas

de execução, disposição das notas (escalas diatônicas) e intervalos no instrumento que, segundo o

autor, servem “para se tocar qualquer Peça com flexibilidade, bom modo, e gosto; e finalmente com

uma viva, e tocante expressão, a que chamam Estilo; se atenderá muito aos Apojos de Capricho, que

os mais das vezes, e quase sempre se devem supor, e entender, ainda que não expressos” (LEITE,

1796, p. 35). A parte prática do tratado, ao final, conta com 40 peças de autoria do próprio Silva

Leite. Esta coleção apresenta pequenas peças musicais como Minuetos, Marchas, Contradanças,

Allegros e outros, todas compostas para duas guitarras, e na tonalidade de Dó maior. A estruturação

das peças é binária, com sinal de repetição ao fim de cada seção. Silva Leite apresenta ainda outro

dueto para guitarra, Tocata em Fá maior, de autoria de Francisco Gerardo, totalizando 41 peças.

3. Notação musical

Os dois tratados mencionados apresentam, cada um, suas particularidades em relação à

notação musical: Geminiani utiliza a tablatura espanhola (Figura 2) e Silva Leite emprega a notação

mensural ou convencional (Figura 3). Harnoncourt (1988, p. 35, grifo do autor) discute dois

princípios básicos para a utilização de ambas as notações escolhidas pelos autores: sobre a tablatura,

afirma que “é a execução que é notada, sendo a notação, ao mesmo tempo, uma indicação da

maneira de se tocar”; para a notação convencional, afirma que “é a obra, a composição em si, que é

notada, não sendo sua execução indicada por esta notação”.

FIGURA 2 – Trecho retirado da peça Giga, compassos 11–15, ilustrando a tablatura espanhola.

Fonte: GEMINIANI (1760, p. 6)

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FIGURA 3 – Trecho retirado da peça Minueto, compassos 1–8, ilustrando a notação mensural ou convencional.

Fonte: LEITE (1796, p. IV)

A notação musical é estruturada por um conjunto de códigos cuja convenção determina o

modo como se relacionam entre si, constituindo a estrutura e o sentido musical. A disposição dos

códigos na escrita musical traduz o som para signos visuais segundo uma hierarquia de valores sócio-

histórico-culturalmente determinados, sobre os quais Mammi (1998–1999, p. 21) escreve: “Sem

dúvida, a escrita, tanto musical quanto verbal, funciona sempre como uma espécie de filtro: os

aspectos do evento sonoro que ela inclui passam a ser considerados significativos, os que exclui se

tornam contingentes e irrelevantes.” Nessa perspectiva o autor utiliza uma classificação semiótica

icônica, indiciária, simbólica empregada inicialmente por Treitler (1980) para classificar diferentes

tipos de notação e, posteriormente, foi empregada por Nogueira (2008) e Souto (2010; 2015) para

tratar especificamente das tablaturas para cordas dedilhadas. Tal classificação estabelece distinções

capazes de identificar as diferenças entre as tablaturas e a notação mensural moderna a partir dos

aspectos do evento sonoro que são selecionados e daqueles que são excluídos por cada uma dessas

notações a partir de suas características prevalentemente icônicas, indiciárias ou simbólicas. Desta

forma, a tablatura utilizada por Geminiani, em virtude de suas características icônicas e indiciárias,

se refere aos gestos necessários para a obtenção do som desejado, enquanto a notação mensural

empregada por Silva Leite é composta basicamente por códigos simbólicos. Sobre tais classificações,

Mammi (1998–1999) explica:

As harmonizações de música popular, nas quais os acordes são representados por letras e/ou números, são simbólicas. Por outro lado, as grades que reproduzem esquematicamente o braço do violão ou do alaúde, nos manuais modernos como nas antigas tablaturas, carregam marcas que sugerem a posição dos dedos para cada som a ser obtido, e são, portanto, índices imperativos. A notação em pauta, por outro lado, possui um estatuto ambíguo. Ainda que se destine à execução, ela não é indiciária, porque a maioria de seus signos se refere diretamente a sons, e apenas indiretamente aos gestos necessários para produzi-los. É simbólica, em parte, porque nela a relação entre signo e significado é arbitrária por muitos aspectos. A duração proporcional dos sons, por

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exemplo, é indicada pela forma das notas, que são totalmente convencionais. Os signos dinâmicos também são símbolos, na medida em que utilizam letras ou outras cifras para significar variações de volume ou de ataque. O parâmetro das alturas, ao contrário, não é representado por um vocabulário de signos específicos, mas pela posição dos signos (notas) no espaço. A altura é indicada pela posição da nota, não por sua forma, e uma sequência de notas ao longo da pauta forma um desenho que consideramos intuitivamente como a reprodução de uma linha musical. Entre as notas tomadas singularmente e a linha que elas formam no conjunto há uma diferença substancial: aquelas são símbolos dos sons, essa é um ícone da forma melódica. Os contornos que a escrita traça, no entanto, não existem senão a partir dela, porque os sons, em si, não produzem linhas. A rigor, a passagem de um som a outro não é um movimento, mas uma transformação. A notação, portanto, não se limita a reproduzir movimentos no espaço sonoro: ela cria a intuição desses espaços e desses movimentos. O caráter icônico da escrita musical moderna se baseia em duas analogias preliminares: o correr do tempo é representado no papel por um movimento da esquerda para a direita; a oposição grave /agudo é realizada graficamente pela oposição baixo/alto. Essas correspondências são arbitrárias e, portanto, simbólicas. Todavia, não são signos, mas apenas convenções que permitem a criação de um campo de representação. (MAMMI, 1998–1999, p. 24–25).

No caso da escrita de Geminiani, voltada aos gestos necessários à obtenção do som, portanto à

execução instrumental, apresenta uma textura homofônica e, às vezes, polifônica, dispondo de

elementos significativos que se resumem a números, linhas e barras verticais. O primeiro elemento,

indicado por números, correspondem aos pontos ou casas, distribuídos no braço (espelho, escala)

do instrumento onde são posicionados os dedos para obter determinado som. O zero (0) significa

que a corda em questão é tocada solta, sem a intervenção de algum dedo sobre a escala; o 1, 2, 3... 12

significa uma posição estabelecida para posicionamento de algum dedo. O segundo elemento,

indicado por linhas, são uma representação das cordas do instrumento e onde são colocados os

pontos (números). São dispostas no sentido horizontal; a direção cima/baixo é entendido como

agudo/grave; a primeira corda na escrita é a de cima, a mais aguda do instrumento. O terceiro

elemento, indicado por barras, é uma representação das barras de compasso, dispostas no sentido

vertical sobre as cordas (linhas horizontais).

Geminiani utiliza ainda quatro elementos significativos de execução. O primeiro elemento,

números dispostos sobre os pontos (números) indicando uma digitação adequada para se tocar. O

segundo elemento, linhas oblíquas dispostas sobre vários pontos (números) indicando que um

acorde deve ser executado em um gesto rápido de arpejo. O terceiro elemento, traço curvado

disposto sobre dois ou mais números (pontos), indicando uma articulação. Executa-se uma única

vez a corda onde está o primeiro dedo posicionado e os demais dedos, na passagem de uns para

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outros, produzirão o restante dos sons. O último elemento, o ritmo, curiosamente, não vem

diretamente na notação para guitarra, devendo o executante observar o tempo e o valor das notas da

linha do violino, que também se faz presente nas composições juntamente com a linha do

violoncelo. A Figura 4 traz uma exemplificação desses elementos.

FIGURA 4 – Trecho retirado da peça Allegro moderato, compassos 1–9, Violino, Guitarra e Violoncelo, ilustração da escrita de Geminiani.

Fonte: GEMINIANI (1760, p. 2)

A notação descrita acima, utilizada por Geminiani, corresponde à tablatura em estilo

espanhol (NOGUEIRA, 2008; 2016; SOUTO, 2020). Existem ainda pelo menos mais três tipos:

francesa, italiana e alemã, empregadas por outros instrumentos de cordas dedilhadas, como guitarras

e alaúdes da época, todas apresentando elementos significativos como números, linhas, letras

capitais entre outros códigos. Como observado por Nogueira (2016), a tablatura francesa é

semelhante à tablatura espanhola, diferenciando-se apenas na utilização de letras capitais do

alfabeto, em vez de números como indicação das casas no braço do instrumento. A tablatura italiana

é semelhante às anteriores, diferenciando-se apenas no sentido de leitura das cordas — a direção

cima/baixo é entendida como grave/agudo; a primeira corda na escrita é a de baixo, a mais aguda do

instrumento. A tablatura alemã é diferente das demais por não apresentar linhas horizontais

indicando as cordas, mas sim códigos (letras e números) que indicam ao mesmo tempo a corda e a

casa que o músico deve pressionar para obter uma nota específica. Em todas essas tablaturas, à

exceção da tablatura empregada por Geminiani, o ritmo ou duração das notas é representado por

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códigos convencionais da notação vocal. O ritmo pode vir escrito de forma integral, ou abreviado

quando o valor de duração de uma nota for igual a anterior. A Figura 5 traz uma exemplificação

desses modelos de tablaturas.

FIGURA 5 – a. Branle de Village, Jean-Baptiste Besard, comp. 11–12, tablatura francesa; b. Canários, Gaspar Sanz, comp. 1–2, tablatura italiana; c. Nach willen dein, Hans Gerle, comp. 1–2, tablatura alemã.

Fonte: BESARD (1617, p. 28); SANZ (1697, p. 8); GERLE (1532, p. 80)

Além do tratado de Geminiani, alguns outros trabalhos didáticos anteriores foram publicados

na Grã-Bretanha com a notação em tablatura, como por exemplo: The cittarn schoole (1597), de

Antony Halborne; New citharen lessons (1609), de Thomas Robinson; e A booke of new lessons for

the cithern and gittern (1652), de John Playford. Essas obras são indícios do vínculo de Geminiani

com a tradição das cordas dedilhadas da época, uma vez que o uso da notação convencional vinha

sendo empregado como escrita padrão para guitarra inglesa. A tablatura teve grande importância na

difusão dos instrumentos de cordas dedilhadas, mas “também determinou quase que o total

desaparecimento dos mesmos no final do séc. XVIII na Europa” (SOUTO, 2010, p. 25). Ainda,

segundo o autor, “tal escrita era totalmente específica e exigiria do compositor grande

conhecimento do instrumento para o qual viesse a compor. Por esta razão, as tablaturas foram sendo

gradativamente substituídas pela notação musical convencional”.

A notação convencional utilizada por Silva Leite passou por diversos processos de

transformação desde o século IX e surgiu como emprego de escrita para a música vocal utilizando, a

priori, sinais conhecidos como neumas (BENT et al., 2001, p. 22). Ainda segundo os autores, “Tal

notação neumática é claramente de grande importância histórica, pois está no início do

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desenvolvimento que levou às formas de notação em uso hoje”11 (tradução nossa). Atualmente, uma

das características dessa notação convencional é a valorização da altura da nota e sua duração.

Apresenta ainda a estrutura da música, a obra em si, não considerando a execução, característica da

tablatura. Embora mais antiga do que a tablatura, somente por volta da segunda metade do século

XVIII é que a notação convencional passou a ser adotada como escrita para instrumentos de cordas

dedilhadas. Nesta, os elementos significativos de ritmo e compasso continuam presentes, porém

existem ainda outros elementos, todos eles dispostos sobre e/ou em volta de um conjunto de linhas,

a pauta (pentagrama).

A escrita de Silva Leite, voltada para a obra, apresenta uma estrutura polifônica e homofônica,

dispondo de elementos significativos como linhas, barras, números, claves e outros elementos

(figura 6). O primeiro elemento, indicado por cinco linhas dispostas no sentido horizontal, em que

se escrevem as notas musicais, tanto na linha quanto nos espaços intermediários; e quando

necessário, são adicionadas linhas suplementares superiores ou inferiores. O segundo elemento,

indicado por barras, é o mesmo da tablatura à época. O terceiro elemento, indicado por números,

refere-se à fórmula de compasso que indica a espécie e a quantidade de figuras que cabem no

compasso. O quarto elemento, as claves, são sinais colocados no início da pauta referenciando uma

determinada nota, por exemplo: a clave de Sol indica o lugar da nota Sol na segunda linha, sendo as

demais notas partindo dessa referência. Existem ainda outros elementos que indicam digitação,

articulação, andamento, dinâmica, expressão e outros.

FIGURA 6 – Peça Pastorella, primeira guitarra, ilustração da escrita de Silva Leite.

Fonte: LEITE (1796, p. XVI)

11 “such neumatic notation is clearly of great historical importance, for it stands at the beginning of the development that led to the notational forms in use today”.

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Além do tratado de Silva Leite, alguns outros trabalhos didáticos e coleções de peças musicais

anteriores ao seu foram publicados na Grã-Bretanha com a escrita em notação convencional, como

por exemplo: Instructions for the guitar (1758), de Robert Bremner; A pocket book for the guitar

(1775), de Longman, Lukey e Broderip; e Art of playing the guittar (1781), de Edward Light. Essas

obras são indicativos de que Silva Leite seguiu a escrita padrão adotada para os instrumentos de

cordas dedilhadas, como a guitarra inglesa, ainda na segunda metade do século XVIII.

Comparando os tratados de ambos os autores ante à exposição das notações, importa

mencionar que a guitarra inglesa esteve auxiliada por materiais relevantes para o seu

desenvolvimento no meio sócio-cultural de sua época. Tanto a tablatura quanto a notação

convencional possuem elementos característicos que atendem a determinadas necessidades

específicas. Devemos levar em consideração que “as regras dos tratados antigos só começam a

tornar-se interessantes para a prática a partir do momento em que as compreendemos — ou, pelo

menos, quando elas fazem algum sentido para nós” (HARNONCOURT, 1988, p. 39).

4. Considerações finais

Após a apreciação comparativa dos procedimentos de escrita musical e das metodologias de

ensino instrumental utilizadas pelos tratadistas Francesco Geminiani e Antonio da Silva Leite,

verificou-se que a notação para guitarra inglesa seguiu por dois caminhos, porém, ambos levando ao

mesmo propósito: a instrução e o ensino da execução do instrumento. A tablatura, que apresenta

uma estrutura de execução dos gestos necessários para tocar o instrumento, mostra-se a mais direta

para o fazer musical na medida em que se refere diretamente aos gestos necessários à produção do

som no instrumento, constituindo por este motivo um importante dispositivo de acesso à

linguagem instrumental da época. Na medida em que traduz exatamente os movimentos prescritos

pelo compositor no que se refere ao comportamento tanto da mão direita quanto da mão esquerda

no braço e nas cordas do instrumento, expressa diretamente o pensamento do compositor em

relação ao trato com o instrumento. Desta forma, a estrutura musical se revela como fenômeno

sonoro resultante da realização dos gestos ao instrumento, prescritos pela tablatura. A notação

convencional, por sua vez, apresenta aspectos relacionados com a estrutura musical, tais como

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tonalidade, polifonia, textura, conteúdo e forma, exigindo que o executante detenha algum

conhecimento prévio da leitura desse tipo de escrita, bem como sobre onde e como posicionar os

dedos no diapasão, correspondentes às notas escritas na partitura para o respectivo instrumento,

conteúdos esses contemplados por Silva Leite em seu tratado. Portanto, ambos os tratados se

tornam complementares na medida em que abordam conteúdos específicos, porém, diferenciados

pelo tipo de notação empregada, condicionando tais conteúdos às necessidades de leitura musical

desses dois sistemas de notação musical, (tablatura e partitura). É certo que o iniciante, quando

deparado com esses tipos de escrita, esteja sob supervisão ou tutela de um professor. Nos dias atuais

é comum o uso de edições em que as duas notações venham juntas, complementando-se uma à

outra.

Desta forma, concluímos que os tratados datados da segunda metade do século XVIII

apresentam condições reais para o músico moderno que tenha interesse em aprender a tocar a

guitarra inglesa, e seu repertório, tanto no instrumento original quanto em outros instrumentos de

cordas dedilhadas, seja do passado ou do presente, recuperando uma prática instrumental e um

repertório muitas vezes esquecido pela historiografia das cordas dedilhadas e pelo público atual.

Portanto, os tratados examinados constituem uma importante fonte de informações sobre a prática

musical e o repertório da guitarra inglesa, sobretudo na Inglaterra e em Portugal na segunda metade

do século XVIII e primeira metade do século XIX.

REFERÊNCIAS

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SOBRE OS AUTORES

Mario André Vlaxio Lopes é mestrando no Programa de Pós-graduação em Letras e Artes da Universidade do Estado do

Amazonas (PPGLA/UEA), e bacharel em Música (2012) pela Escola Superior de Artes e Turismo (ESAT/UEA). Foi

professor substituto (2018) no Curso de Música da Faculdade de Artes da Universidade Federal do Amazonas

(FAARTES/UFAM). É bolsista da FAPEAM. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4741-9795. E-mail:

[email protected].

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Luciano Hercílio Alves Souto é pós-doutor em Música, doutor em Performance (2015), mestre em Práticas

Interpretativas (2010) e bacharel em violão (2006) pelo Instituto de Artes UNESP - SP. Leciona nos Cursos de

Graduação em Música e Pós-graduação em Letras e Artes da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) onde

participa do Laboratório de Musicologia e História Cultural e da Orquestra Barroca do Amazonas, como

instrumentista (guitarra barroca e viola de arame). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5218-4479. E-mail:

[email protected].


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