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A Política Sem Ilusão - Nicolau Marques

Date post: 22-Sep-2015
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A Política sem Ilusão é um texto do portugues Nicolau Marques que trata de uma breve introdução a politica na perspectiva de Michael Oekshoot (expoente do conservadorismo). Um texto de linguagem fácil e objetiva, própria para alunos dos cursos de Direito, Ciência Política e até mesmo História.
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MICHAEL OAKESHOTT: A Política sem Ilusões por Nicolau Manuel do Couto Marques * In political activity, then, men sai/ a boundless and bottomless sea; tbere is neither bar- bour for shelter nor floor for anchorage, neither starting place nor appointed destination. The enterprise is to keep afloat on an even keel; the sea is both friend and enemy; and the seamanship consists in using the resaurces of a traditional manner of behaviour in order to make a friend of every hostile occasion. l Quem tiver o primeiro contacto com Michael Oakeshott na leitura da metáfora trans- crita em epígrafe, excerto da sua lição inaugural na London School of Economics em 1951, possivelmente experimentará o que os seus ouvintes do momento sentiram: aque- le mal-estar que se combina com o alivio quando' o "aguilhão" nos toca no ponto adormecido e que há muito esperava esse "despertar do sono dogmático". Oakeshott cativa imediatamente. A primeira impressão que o seu cepticismo e ironia geram nunca é favorável a um derrotismo identificável com uma angústia ou desespero nihilista próprio de quem, esbracejando angustiado, lança impropérios contra o destino, a natureza, os deuses. Pelo contrário. A sua obra, que com deleite se percorre e que se estende em grande parte num percurso de desmontagem de um dos mitos mais marcantes da modernidade (o racionalismo e seus derivados), é perpassada de um permanente con- vite àquela reflexão e conversação que os leitores apenas se permitem sustentar com quem se revela mestre na arte de permanecer vigilante. A longa vida de Oakeshott só pode ser indício dessa demanda de sabedoria, sempre fugaz mas próxima de quem a merece. O estudo de Oakeshott, apesar de tarefa grata, não é isento de dificuldades. E com agrado que se acompanha a leitura dos seus textos, onde a profundidade e a novidade se mostram em elementos metafóricos de cativante originalidade e remates de ironia raiando com frequência o mais fino humor. Contudo, tratando-se de um autor (ainda) pouco conhecido entre nós, podemos sentir-nos sós. 2 A sua obra, composta em grande Mestre em Filosofia Política pela Universidade Católica Portuguesa - Lisboa. t Re:dona/ip ,, in Politics and Other Essays, Indianapolis, Liberty Press, 1991 (1962), p. 60. (As posteriores referências a esta obra serão indicadas pelas iniciais R. P,) 2 Pode, aliás, aplicar-se-lhe a observação que faz a Eric Voegelin. "Professor Voegelin of Louisiana, is not the sort of writer who often looks round to see if his readers are keeping up with him. He sets a smart and ignores the cries of " wait for me" which many of his followers will fmd themselves uttering. Moreover, he is always on the move: if one rests for a moment in the shadow of his wisdom one looks up to find him already out of sight." (OAKESHOTT, «The Character of European Politics. Eric Voegelin: The New Sedente of Politics. An Introduction.» In The Times Literary Supplement, Friday August 7, 1953.) 93 revlstaGEPOLIS
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  • MICHAEL OAKESHOTT:A Poltica sem Iluses

    por Nicolau Manuel do Couto Marques *

    In political activity, then, men sai/ a boundless and bottomless sea; tbere is neither bar-bour for shelter nor floor for anchorage, neither starting place nor appointed destination.The enterprise is to keep afloat on an even keel; the sea is both friend and enemy; andthe seamanship consists in using the resaurces of a traditional manner of behaviour inorder to make a friend of every hostile occasion. l

    Quem tiver o primeiro contacto com Michael Oakeshott na leitura da metfora trans-crita em epgrafe, excerto da sua lio inaugural na London School of Economics em1951, possivelmente experimentar o que os seus ouvintes do momento sentiram: aque-le mal-estar que se combina com o alivio quando' o "aguilho" nos toca no pontoadormecido e que h muito esperava esse "despertar do sono dogmtico".

    Oakeshott cativa imediatamente. A primeira impresso que o seu cepticismo e ironiageram nunca favorvel a um derrotismo identificvel com uma angstia ou desesperonihilista prprio de quem, esbracejando angustiado, lana improprios contra o destino, anatureza, os deuses. Pelo contrrio. A sua obra, que com deleite se percorre e que seestende em grande parte num percurso de desmontagem de um dos mitos mais marcantesda modernidade (o racionalismo e seus derivados), perpassada de um permanente con-vite quela reflexo e conversao que os leitores apenas se permitem sustentar com quemse revela mestre na arte de permanecer vigilante. A longa vida de Oakeshott s pode serindcio dessa demanda de sabedoria, sempre fugaz mas prxima de quem a merece.

    O estudo de Oakeshott, apesar de tarefa grata, no isento de dificuldades. E comagrado que se acompanha a leitura dos seus textos, onde a profundidade e a novidadese mostram em elementos metafricos de cativante originalidade e remates de ironiaraiando com frequncia o mais fino humor. Contudo, tratando-se de um autor (ainda)pouco conhecido entre ns, podemos sentir-nos ss. 2 A sua obra, composta em grande

    Mestre em Filosofia Poltica pela Universidade Catlica Portuguesa - Lisboa.

    t Re:dona/ip,, in Politics and Other Essays, Indianapolis, Liberty Press, 1991 (1962), p. 60.(As posteriores referncias a esta obra sero indicadas pelas iniciais R. P,)2 Pode, alis, aplicar-se-lhe a observao que faz a Eric Voegelin. "Professor Voegelin of Louisiana, is not the sortof writer who often looks round to see if his readers are keeping up with him. He sets a smart and ignores the criesof "wait for me" which many of his followers will fmd themselves uttering. Moreover, he is always on the move: ifone rests for a moment in the shadow of his wisdom one looks up to find him already out of sight." (OAKESHOTT,The Character of European Politics. Eric Voegelin: The New Sedente of Politics. An Introduction. In The TimesLiterary Supplement, Friday August 7, 1953.)

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  • parte de ensaios dispersos, no acompanhada da indicao das referncias que otornariam mais facilmente inteligvel. Por outro lado, os estudos que recentemente setm feito sobre Oakeshott, tardam em conseguir a divulgao que o seu pensamentomerece.

    Um autor filosoficamente importante quando da leitura da sua obra se colhem ele-mentos que facilitam a compreenso do horizonte em que se inscreve: seja pelas viasde correco que sugere, seja, sobretudo, pelas orientaes positivas que projecta. Emambos os casos Oakeshott impe-se como pensador incontornvel para quem estejainteressado em perceber convenientemente a modernidade e o modo como a mesmase tem orientado no domnio poltico.

    A crtica decisiva de Oakeshott ao racionalismo, e particularmente ao racionalismoque se props suportar os projectos polticos, o trao mais caracterstico da sua obra.E, pelo menos, o mais conhecido - o que, contudo, no significa que seja o nico.Muitos outros aspectos do pensamento de Oakeshott, complementares e decisivos nasua crtica aos modelos ideolgicos modernos, merecem reparo cuidado: a sua gnoseo-logia, combinao eficaz do empirismo britnico com as indicaes fenomenolgicasda filosofia alem contempornea; a sua teoria da conduta, que viabiliza um quadro decompreenso do que seja a moralidade e a civilidade, compatvel com a sua gnoseolo-gia, e, particularmente, a sua convico de que a filosofia no se apresenta feita - faz--se enquanto demanda de inteligibilidade do que legitimamente se pode constituir comoseu objecto: a experincia enquanto todo.

    Desta ltima indicao colhe-se a particularidade da noo de filosofia poltica emOakeshott: a mesma nunca um recurso terico ao servio da aco, menos ainda umailustrao particular ou campo de aplicao do que em abstracto se tenha elucidado numquadro tico ou metafsico, ainda que a tentao nesse sentido seja permanente?Efectivamente, nesta situao, uma filosofia poltica no seria nem filosofia nem polti-ca. A poltica, como qualquer outro `modo de experincia' (a realidade na sua totalidadetomada de um horizonte particular de considerao) jamais ser ponto de chegada dafilosofia - ainda que possa ser seu ponto de partida, como acontece exemplarmente naRepblica de Plato, no Leviat de Hobbes, na Filosofia do Direito de Hegel.

    Em Oakeshott , pois, fundamental a distino entre filosofia e politica. A filosofia animada por uma preocupao de compreender que se esgota em si mesma; a polti-ca, enquanto preveno da mudana, ou preservao da estabilidade, nunca se podeapoiar na filosofia. E a falta de precauo neste aspecto, a ignoratio elenchi dos dois dis-cursos, se tem provocado a runa de muita filosofia genuna, tem originado tambm pro-jectos de aco poltica de desfecho trgico.

    Certamente no se pretende que a poltica caminhe s cegas. Insiste-se, isso sim, nocarcter ilusrio das ideologias e esquemas tecnocrticos de engenharia social que scapresentam como guias para as decises da vida poltica e que implicam o esquecimen-to do sentido prtico que, sob a forma de `intimaes', germina nas polticas experi-mentadas: sugestes de aco e no direces logicamente implicadas. De facto, antes

    3 Nearly always a philosopher Ilides a secret ambition, foreign to philosophy, and often it is that of the preacher. Butwe must learn not to follow the philosophers upon these holiday excursions (OAKESHOTT, M., Experiente and ItsModas, Cambridge, Cambridge Univ. Press, 1933, p. 3.)

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  • das nossas decises e juzos, impossvel saber o que se impe fazer - de contrrio,alis, facilmente se suprimiria toda a ansiedade que os acompanha. Esta constatao,todavia, no se deve identificar com um esteticismo; , inversamente, a convico deque a contingncia inevitvel (a politica e a governao so males necessrios) e acerteza de que, no domnio da aco, qualquer intento demonstrativo a partir de axiomasinflexveis (intento que sempre nos acompanhar) pode desmobilizar o nico esforointelectualmente vlido na poltica: o esforo de entender os nossos "princpios" e"supostos bens" como escolhas que fizemos e de que somos responsveis, pois s destemodo tero valor e se furtaro a um carcter tirnico.

    A tirania advm sob a forma de qualquer modelo que violente a liberdade humana.E por isso a hiptese de que Oakeshott parte de que todos os modelos governativosque aprisionam o sujeito num esquema de meios e fins a ser colectivamente alcanados,violentam o nico suporte vlido de qualquer percurso - precisamente o indivduo. Taismodelos, enquanto se propem pegar no leme para, segundo a metfora de conotaoplatnica, conduzir a nau para terras apontadas por gajeiros iludidos pela crena de teravistado praias de necessrio progresso, combinando o poder com o delrio visionrio,alimentam trgicas iluses colectivas. 4

    Michael Joseph Oakeshott nasceu em Harpenden, Kent, Inglaterra, em 11 de De-zembro de 1901, tendo morrido em Acton, Dorset, oitenta e nove anos depois.

    Experiente and its Modos, 1933, a primeira grande obra de relevncia filosfica deOakeshott, revela um pensamento original capaz de integrar tradies filosficas nor-malmente estanques. Nesta obra a marca do senso comum do empirismo britnico estbem patente, conjugado eficazmente com o rigor analtico da filosofia alem da poca.

    A publicao de Rationalism in Politics em 1962 (em 1947 sara j este ttulo masnum formato mais reduzido) um acontecimento significativo para a filosofia polticacontempornea e destaca o seu autor entre os que se interessam pela compreenso dofenmeno poltico. Aqui Oakeshott partilha com muitos outros filsofos a convicocptica de que grande parte do que tem passado por conhecimento revela um carcterilusrio, pelo menos quando pretende `passar prtica'. Neste conjunto de ensaios,muitos deles previamente publicados no Cambridge Journal, e um pouco ao arrepio dapoca, Oakeshott mostra compreender o que muitos povos da Europa de Leste, daChina, etc. aprenderam por experincia prpria ao longo do sc. XX. De facto bem cedoOakeshott atacou o que hoje, cado que foi o muro de Berlim, e como fenmeno demoda, atacado por quase todos mas ainda incompreendido nas suas razes: a falciadas ideias polticas propostas pelo racionalismo e as ideologias que nele germinaram. Eisso no porque Oakeshott fosse dotado do dom da profecia mas porque desde os seusprimeiros escritos esteve atento s tentaes sedutoras do orgulho inerente condiohumana, bem ilustrado, alis, no projecto paradigmtico dos habitantes de Babel.

    Em 1975 publica On Human Conduct, onde sistematiza de um modo aprofundadoos pressupostos que, em grande parte, justificam a sua obra anterior: as vias da com-preenso da aco e o carcter prprio da conduta em geral e da moralidade e da civi-lidade em particular, entendidos como suporte meramente formal, no substantivo, dosprojectos humanos contingentes, individuais e colectivos.

    4 "The conjuncdon of drearning and ruling generates tyranny." (R. P., p. 434.)

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  • Muitos outros ensaios de Oakeshott foram postumamente organizados, em partepela mo conhecedora e amiga de Timothy Fuller e publicados sob os ttulos de TheVoice of Liberal Learning: M. Oakeshott on Education, Religion Politics and the Moral Life eMorality and Politics on Modern Europe.

    Segundo Fuller, a recepo inicial da obra de Oakeshott, particularmente nos EstadosUnidos da Amrica, denuncia srias reservas ante um autor que rotulado, mais oumenos pejorativamente, de `pessimista', `tradicionalista ', `burkeano' ou `conservador ' . 5Passada que uma gerao, a atitude conservadora vista como mais respeitvel e, con-sequentemente, muitos dos que o depreciaram apressam-se agora a reconhecer a suaimportncia, valorizada que a sua original combinao da afirmao da liberdade indi-vidual com um conhecimento profundo dos resultados histricos da civilizaoeuropeia

    O contributo de Oakeshott para o enriquecimento da reflexo filosfica recente podeser organizado em torno das seguintes orientaes:

    A - O homem um todo integrado numa realidade consistente e constituda pelaexperincia - um mundo que se identifica com o que entendemos. Esse mundo apre-senta-se como coerente (satisfatrio, estvel, verdadeiro) ou carecendo de coerncia(sugerindo ajustamentos que apenas em si mesmo podem ser descobertos). Estamosnecessariamente envolvidos na interpretao de um mundo de experincia interpreta-da. De modo algum podemos estabelecer uma condio permanente e fixa, e todas asconstrues intelectuais que sugerem o contrrio so enganadoras.

    B - Nesse todo dado na experincia, s por abstraco, isto , por "suspenso daexperincia", possvel dissociar elementos. Cada via particular de considerao da reali-dade, "um mundo" , podendo ser teoricamente pertinente, no pode legitimamente apre-sentar-se como modelo definitivo, universal e necessrio de conduta.

    C - Primazia do prtico sobre o terico, deste modo se constituindo a moralidade,essa vernacular language: forma adverbial das formas a assumir nas aces particularese contingentes, concntrica, mas no coincidente nos seus contornos, com essa outralinguagem prtica, a civilidade, que se organiza de modo contingente e como suportede possibilidade e inteligibilidade dos projectos polticos particulares.

    No reconhecimento da primazia do prtico sobre o terico (ao nvel da moralidadecomo da civilidade) e no carcter puramente formal dessa `linguagem verncula 'podemos descortinar alguma dvida a Kant. Na via apontada para o desocultamento damesma, diremos que Oakeshott se rev nalgumas intuies que lhe chegam de Heraclito(por via heideggeriana - a palavra presente no homem e que cumpre escutar) 6 e dePlato. Todavia com uma diferena fundamental relativamente a este ltimo: no autorde Mnon e Teeteto, o dilogo (uma maiutica) uma via para a explicitao do que hde necessrio e(uriversal no indivduo; em Oakeshott o dilogo (a conversation) a clareira

    5 Cfr. R. P., Foreword, p. XV' thos anthropo damon' (D. K., Frag. 119). Leia-se: "Tambm aqui moram os deuses" ou "O carcter prprio

    do homem o seu gnio. " Nesta satisfao dada por Heraclito aos visitantes que se surpreendem ao ver o sbioaquecendo-se prosaicamente lareira, v Heidegger a sugesto da gnese antropolgica e conjunta da tica e daontologia. (Cfr. HEIDEGGER, Lettre sur t'Humanismo, Orig. Uber den Humanismus, Trad. R. Munia, Paris, Aubier,1964, p. 145.)

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  • onde se descortina o que, sendo contingente, e porque contingente, surge da escutaatenta, sbia, do sugerido na histria, na tradio, no circunstancial e constitui o nicofarol vlido da aventura sem plano prvio onde se joga a liberdade. E s deste modo sedeve entender o seu cepticismo perante o resultado da conversao que se autonomizados interlocutores e, nesse momento j sem sentido, se pretende impor como uni-formidade com foros de necessidade. Assim, o cepticismo de Oakeshott identific-vel com a afirmao da inviabilidade de impor universalmente modelos de conduta: sejaquando os mesmos se supem decalcveis de um dever ser institudo `a priori' por umarazo universal; seja quando, ainda que legitimamente constitudos porque acordados eactuantes numa experincia contingente e histrica, se guindam a imperativos de apli-cabilidade universal.

    E sobre esta indicao que, de seguida, nos deteremos com algum pormenor.

    As Iluses do Racionalismo

    There is no danger that anyone urill succeedin achieving a purely 'rational' politics. 7

    A poltica contempornea est, nos termos de Oakeshott, "profundamente infecta-da de racionalismo". S o poder negar, adverte o autor, quem infeco der outronome. A poltica comum das naes europeias ter-se- fixado num vcio do racionalis-mo de tal modo que muitas das suas deficincias, atribudas correntemente a outrascausas, se devem iluso racionalista. 8

    Em que consiste o carcter racionalista, como surgiu e como desde h quatro scu-los se apossou da actividade poltica (ao mesmo tempo que foi invadindo outrosdomnios de actividade - desde a religio, particularmente, destreza nos negcios, daculinria vida sexual) o que se pretende inquirir.

    O pressuposto bsico que permite a qualquer doutrina apresentar-se como justifi-cao gnoseolgica de uma actividade, o de que qualquer actividade supe um con-hecimento. A poltica entendida pelo autor como "actividade de cuidar das condiesgerais de um grupo humano acidental ou intencionalmente constitudo" 9 implica, porconsequncia, a posse de um conhecimento. Quando se admite que esse conhecimen-to susceptvel de traduo universal, abstracto, ento est em questo o racionalismo,identificado com tcnica.

    Na base desta assero est o exerccio indevido do homem moderno que, desaten-to da essncia da prpria actividade, cindiu em conhecimento tcnico e conhecimentoprtico o que, de facto, indecomponvel, enquanto inerente prpria aco, fazendouma clara opo pelo primeiro elemento da ciso - ao qual apenas, alis, reconheceuvalor de conhecimento.

    7 R.P.,p.113.8 Cfr. R. P., p. 33.9 "(...) activity of attending to the general arrangements of a set of people whom chance or choice have brougthtogether" (R. P., p. 44.)

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  • Na verdade, relembra Oakeshott, qualquer actividade (cincia, arte) implica conhe-cimento de dois tipos: conhecimento tcnico (formulvel em regras que podem serdeliberadamente aprendidas, relembradas, postas em prtica e susceptveis de formu-lao precisa) e conhecimento prtico (insusceptvel de formulao, irreflectido); 10 doistipos de conhecimento que no podem ser confundidos nem permutados.

    Seja porque o conhecimento tcnico d uma aparncia de certeza e o prtico se asso-cia facilmente impreciso, seja porque aquele se deixa redigir, imprimir, transmitir emlivro, o racionalista opta claramente pelo primeiro, exaurindo a proposta de que sobera-nia da razo sinnimo de soberania da tcnica. 11 De outro modo, alis, o racionalis-mo no saberia conduzir-se: o seu critrio o da certeza e apenas o conhecimento tc-nico parece suportado pela mesma, assim como sugere a convico de que se caminhouda ignorncia (estado de uma virgindade terica reconstruda pela purga da dvida) parao conhecimento certo.

    F. Bacon e R. Descartes so, indiscutivelmente, os progenitores do RacionalismoModerno. No ambiente intelectual dos alvores da modernidade Bacon prope uma artede investigao que, composta de um nmero reduzido de regras, nada mais exige queo conhecimento ds mesmas e da sua conveniente aplicao, sem a suspeita de que taldesiderato era impossvel. Descartes, por seu lado, sugere um mtodo de aplicao uni-versal que, purgada a razo do que lhe estranho, maneira do que acontece na geome-tria, propicia uma certeza em todos os domnios, deixando vazios, apenas, os espaosdo que for meramente possvel; neste projecto no h lugar para graus de conhecimento:apenas para a certeza ou a ignorncia.

    De Descartes, porm, relembra Oakeshott, os vindouros no colheram as cautelasditadas pela natureza prpria do mtodo e expostas na VI parte do Discurso do Mtodo:o seu carcter geomtrico limitado quando aplicado a coisas e no a meras possibilidades.

    A soberania da tcnica ser, pois, mais um desejo que uma realidade. O racionalismonascente afirma-se progressivamente medida que se exageram as esperanas de F. Bacone se negligencia algum cepticismo de Descartes. De tal modo que "o racionalismo mo-derno o resultado da banalizao e subverso dos princpios inicialmente propostos porhomens clarividentes e geniais" . 12 Ou, como bem assinalou Vauvenargues, "Les grandshommes, en apprenant aux faibles a rflechir, les ont mis sur la route de Perreur". 3

    O racionalismo no s vai invadindo todos os domnios tericos e de aco (religio,cincias naturais, literatura, educao, conduta) como se tornou progressivamente maisrude e vulgar: o que, por exemplo, no sc. XVII era "arte de pensar" tornou-se, recen-temente, "como usar a sua mente: um plano elaborado pelos peritos mundiais no desen-volvimento de uma mente treinada a custos reduzidos "; o que inicialmente se avanoucomo "arte de viver" tornou-se "a tcnica do sucesso". 14' O racionalismo tanto fez

    to Cfr. R. P., p. 12.11 Cfr. R. P., p. 16.12 "(...) modern Radonalism is what commonplace minds made out of the inspiration of men of discriminationand genius" (R. P., p. 22.)13 ROCHEFOUCAULD, Reflexions, Sentences etMaximes, Oeuvres choisies de Vauvenargues aves un choix de notes de Voltaire,Paris, Lib. Garnier Frres, s. d., 221.14 Cfr.R. P., p. 23.

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  • declinar o papel da Providncia (um Deus benfico e infalvel substitudo por uma tcni-ca infalvel e benfica), como permitiu uma gerao zelosa dos seus mritos e cpticarelativamente s geraes precedentes, uma gerao nunca em paz consigo mesmaporque nunca em paz com o seu passado.

    O racionalismo, um dos maiores mitos modernos, surge e impe-se imediatamenteno domnio terico. Porm, e ao contrrio do que acontecia em Descartes, no terrenoda conduta (tica, poltica, religio) que mais se sentem os seus efeitos.

    A qualificao de "racional" atribuda a qualquer acto quotidiano, por mais simplesque seja, guindou-se a um estatuto de desejabilidade dificilmente igualvel, do mesmomodo que a "irracionalidade " se imps como carcter odioso - pese embora a ambigu-idade que o conceito de racionalidade foi adquirindo ao longo dos dois ltimos scu-los, conforme as diferentes noes do mundo se vo diferentemente reflectindo nessemagno espelho proposto pela modernidade que a razo. Deste modo a elucidao dosconceitos de razo e de conduta racional impe-se num duplo andamento: abordagemhistrica e considerao filosfica.

    A partir do sc. XVIII, com insistncia crescente, tm sido propostas as mais diver-sas actividades, recomendveis enquanto "racionais " : "educao racional", "agriculturaracional", "produo racional", "vesturio racional", "religio racional" . Por exemplo, a"clarividncia" que subitamente desmascarou o uso do chapu como irracional con-gnita dos mais recentes movimentos que se insurgem contra a ingesto de carne, deexcitantes, de fumo, para referir apenas alguns dos campos de batalha para onde asrecentes cruzadas tm conduzido as suas guerras.

    A "racionalidade" trazida conduta marca duas orientaes: racional o comporta-mento que prossegue um fim premeditado e independente; racional esse mesmo com-portamento enquanto se deixa conduzir exclusivamente por esse mesmo fim. Claro quepodero surgir resultados adventcios ao comportamento deste modo delineado; masos mesmos so fortuitos, estranhos, pelo que exteriores prpria racionalidade da aco.Exclui, por conseguinte, o capricho, isto a no determinao precisa do fim; o impul-so; a autoridade dos hbitos e usos tradicionais no examinados.

    A racionalidade na conduta supe tambm a seleco de meios instrumentais capazesde permitir a obteno do fim proposto. Tal noo de conduta supe tambm imedi-atamente - e absurdamente - uma primeira conduta (a que determinaria os fins e osmeios) anterior conduta dita racional (a que usando os meios busca os fins). 15

    Este projecto de racionalidade pressupe que os homens tm o poder de raciocinarsobre as coisas, de contemplar proposies, de as colocar em ordem e torn-las coe-rentes. Supe, do mesmo modo, a existncia de um poder autnomo que segundo estemodelo inicie a aco; um poder natural e portanto universal e necessrio - a razo -apenas menos diligente quando ofuscado no seu brilho pelas perturbaes da educao,do meio, mas, de direito, capaz de alcanar a verdade:1

    Supe-se ainda neste projecto de racionalidade que a mente humana separvel dos seuscontedos e actividade, sendo, portanto, concebida como um aparelho neutro, um instrumen-to que, usado convenientemente, se determina segundo um modelo de eficcia e preciso.

    15 Cfr. ARISTTELES, tica a Nicnaca, 1, 1, 1094a - 1095b.16 Cfr. R. P., p. 105,

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  • Para alm disto, admite-se que a mente ter mais sucesso na relao com a expe-rincia quando menos prejudicada com disposies j adquiridas. Uma mente livre,aberta, vazia (rasa), um instrumento que atrai a verdade, repele a superstio e , porsi s, a gnese do juzo racional e da aco racional. 17 Deste modo o primeiro treino deum entendimento cheio de predisposies ser um processo de purificao, um proces-so de restabelecimento da sua situao virginal. E porque a infncia um perododurante o qual, na falta de uma mente treinada, admitimos uma mistura de crenas, dis-posies, conhecimentos vagos sem rigor proposicional, a primeira tarefa de umentendimento adulto ser desembaraar-se de tais preconceitos. O que, rigorosamente,significa ser inteligente. Agir racionalmente , em ltima anlise, agir comandado pelainteligncia. Mas, adverte ironicamente o autor, quem for meramente inteligente ao lidarcom uma caldeira de presso muito provavelmente provocar uma exploso. 18

    Este elenco de pressupostos parece um registo menos srio dos propsitos e con-vices racionalistas. Porm, alerta-nos Oakeshott, a viso correspondente da razo eda actividade teve o seu lugar na histria e ainda actuante. E bem evidente em certosprogramas pedaggicos e de instruo profissional. E partilhado, por exemplo, portodos os mentores do treino mental em substituio da educao. "A esta perspectivapertence o princpio de Ia carrirre ouverte aux talents', a noo de que para a FunoPblica no se devem exigir qualificaes para alm das competncias pessoais, e a su-gesto de que se deve ensinar a lngua inglesa mas sem que isso implique perturbar amente das crianas com a literatura inglesa". 19

    A concepo de aco racional aqui antevista supe a possibilidade e estabelece anecessidade de compartimentar a prpria conduta: 1 colocando uma proposio, deter-minando um propsito a ser alcanado; 2 estabelecendo os meios a ser utilizados paraconseguir esse fim e no outro; 3 agindo. A aco assim dissecada e percebida comosoluo de questes menores progredindo num encadeamento de complexificao efi-caz - a anlise e a sntese dos gemetras na perspectiva cartesiana.

    Acontece, todavia, que deste modo se perde a prpria aco. Estamos aqui perante umateoria da aco que, porque errnea, nada colhe do que agir. E se deste modo se pre-tenderia determinar racionalmente a conduta, ento tal teoria no apenas indesejvelcomo impossvel. Na verdade, mesmo que quisessem, os homens no se poderiam com-portar seguindo este modelo. Esta mente, assim colhida, no existe, uma fico.20 Amente que podemos conhecer, ao contrrio do que os pressupostos racionalista sugerem, o resultado de conhecimento e actividade, inteiramente composta de pensamentos.Purgue-se a mente de todos estes contedos e o que se extingue a prpria mente.

    17 Cfr. R. P., p. 106.18 Cfr. R. P., p. 114.19 "To this view belongs the principie of 'Ia carrire ouverte aux talents' the notion that the members of the CivilService should 'have no qualifications other than their personal abilities', and the suggestion that we should teachchildren how to use English language but without encumbering their minds with English literature." (R. P., p. 107).Este reparo, escrito h quatro dcadas, no poderia ser mais actual, desmascaradas que esto recentes propostaspedaggicas proponentes do alivio dos "opressivos e desnecessrios" contedos das cincias, da histria, dafilosofia.20 Cfr. R. P., p. 109.

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  • Nunca a actividade se organizar de proposies previamente estabelecidas. pos-svel estabelecer conhecimentos tcnicos, mas os mesmos nunca prescindem da activi-dade que os originou. E isto vale para qualquer conduta, da vida quotidiana investi-gao cientfica, da arte actividade poltica.

    Fazer algo tanto depende do saber fazer como da exibio desse fazer. E emboraparte do fazer (conhecimento tcnico) possa ser reduzido a frmulas proposicionais(enunciados de fins, regras, princpios) estas no so nem o incio da aco nem regu-ladoras da mesma. Antes de ser traduzido em proposies, o saber de qualquer profis-sional conhecimento de como decidir certas questes.

    Assim, um erro qualificar de racional uma conduta pelo facto de o seu fim ter sido,supostamente, determinado antes. No h possibilidade de determinar o fim de umaactividade antes da mesma. Mas, se fosse possvel, o incio da actividade permaneceriano saber como agir na busca desse fim e no no simples facto de se ter formulado umfim a atingir. 21 No existe a mente instrumental - um resduo de crena na magia - e,se existisse, seria impotente para iniciar qualquer actividade concreta. O projecto deencontrar um modo de conduta racional a partir de tal critrio , pois, um mal-enten-dido.

    Na Europa Moderna surgiram condies concretas favorveis a este mal-entendido.Primeiro: a convico, louvvel em si mesma, de que a honestidade intelectual, o desin-teresse (associado autonomia), a ausncia de preconceito, so virtudes intelectuais.Segundo: o desejo apaixonado pela certeza - como ddiva, no como resultado de inda-gao. Terceiro: ignorncia crescente sobre como lidar com situaes novas que sedeparam a homens sem preparao e sem meios adequados, particularmente nodomnio poltico. 22 Porque a poltica propcia a atrair este ideal racional, quando noseu domnio no se sabe como proceder, tende-se a sugerir a necessidade deste tipo deconhecimento e a aplaudir o valor e a necessidade de uma mente livre e aberta suposta-mente capaz de saber antes da actividade. 23

    Na elucidao deste mal-entendido, Oakeshott prope que se considere o exemploda criao dos bloomers (vesturio feminino para ciclistas na poca vitoriana) como pre-tenso empreendimento de uma racionalidade teste tipo.

    Os designers pensaram que estavam a criar um equipamento eficaz para um fimdeterminado (propalar uma bicicleta) e aplaudiram a sua actividade enquanto racionaldevido ao modo como se conduziram no empreendimento. Mas poder-se- perguntar:se o fim desejado era o pedalar, porque no propuseram shorts em vez de bloomers?Na verdade ao proporem bloomers pensaram responder questo "Qual o equipa-mento mais adequado actividade de pedalar uma bicicleta de certo design?" quando,afinal, respondiam a uma outra: "Que vesturio combina as qualidades de ser bemadaptado actividade de pedalar uma bicicleta, de ser confortvel e adequado para umainglesa em 1880?" 24

    21 Cfr. R. P., p. 111.22 Cfr. R. P., p. 112.23 Cfr, R. P., p. 113.24 Cfr, R. P., p. 115.

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  • O corolrio destas consideraes o de que a actividade precede quer as questes acolocar quer o modo como responder-lhes. E a iluso do contrrio surgir da cons-tatao de que a actividade subdivida (abstractamente) em aces que apresentamuma falsa independncia, convico que se acentua quando se observa a actividade deoutrem. Cada ofcio, excepto o nosso, parece inteiramente composto de gestos precisose de esquemas.25 A iluso consiste rigorosamente em identificar uma totalidade deaces com um aspecto de uma aco simples, quando o mesmo abstrado da activi-dade a que pertence. A participao de algum numa actividade concreta (cozinha, cin-cia) parece tomar a forma de aplicao de uma regra ou a prossecuo de um objecti-vo, mas percebe-se que a regra ou propsito derivaram da actividade, e no o contrrioe que a actividade, enquanto todo, nunca poderia ser reduzida prossecuo de um fimou aplicao de uma regra determinada e anterior actividade. Percebe-se tambmque impossvel projectar um propsito da actividade antes da prpria actividade. Peloque, quer os problemas quer o desenvolvimento da investigao que conduz soluoj esto sugeridos (intimados) na actividade, e so descobertos por um processo deabstraco. Uma aco particular nunca se inicia na sua particularidade mas sempre num"idioma" ou "tradio de actividade", isto , num conhecimento de como comportar-se apropriadamente em determinadas circunstncias. Nunca um homem que no sejacientista colocar um problema cientfico.

    Oakeshott sugere, ento, que se reconsidere o conceito de racionalidade de modo aque, positivamente, se possa afirmar algo sobre a conduta racional.

    Se entramos num idioma ou tradio de actividade pela prtica dessa actividade, seas regras e princpios so meros esquemas da prpria actividade no existindo antes oudepois dela, se o prosseguimento da actividade no consiste na aplicao desses princ-pios e se mesmo que consistisse o conhecimento de como aplic-los no seria dadopelos mesmos, ento ser racional uma qualidade intrnseca da prpria actividade: maisque inteligncia, racionalidade significar f no conhecimento que temos de como con-duzir a actividade especfica com que estamos comprometidos. A conduta de um cien-tista pode propriamente dizer-se racional relativamente sua confiana nas tradies dainvestigao cientfica.

    Assim, ter uma conduta racional agir de tal modo que a coerncia do idioma deactividade a que a conduta pertence preservado, e at progride. 26 E as consequnciasso bvias. Nenhuma conduta, aco ou srie de aces, pode ser racional ou irracionalfora da relao com o idioma de actividade a que pertence; a racionalidade no resideno facto de se ter alcanado um resultado desejado e previamente delineado; uma activi-dade como todo (cincia, cozinha, investigao histrica, poltica, poesia) no podedizer-se racional ou irracional a menos que concebamos todos os idiomas de actividadenum nico universo de actividade. 27

    A actividade humana sempre a actividade de um modelo que lhe inerente e noimposto de fora. Ocasionalmente, elementos desse modelo surgem com uma expressorelativamente firme. So os costumes, as tradies, as instituies, as leis, etc. Contudo

    25 Cfr. R. P., p. 119,26 Cfr. R. P., pp. 121-122,27 Cfr. R. P. p. 122.

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  • no comeamos por decidir que determinado comportamento correcto ou desejvel,exprimindo posteriormente a nossa aprovao do mesmo numa instituio. E este vciode interpretao da racionalidade da conduta que nos leva a supor que as instituies(em particular as instituies polticas) podem ser transpostas de um lugar para outrocomo se fossem peas de maquinaria em vez de idiomas de conduta. 28

    H, por conseguinte, possibilidade de falar da racionalidade na aco, mas nuncaidentificando tal carcter com instrumentalidade. Nenhuma aco , por si mesma e emsi mesma, racional: a sua racionalidade sempre devedora de algo anterior e o que atorna racional o seu lugar numa "corrente de simpatia", uma corrente de actividademoral.29

    Racionalismo e Poltica

    Tendo o racionalismo invadido todos os domnios de actividade, os seus grandes tri-unfos foram sobretudo na politica (exceptuando, talvez, a religio onde os prejuzos domito racionalista tero sido mais evidentes). 30

    O racionalismo gerou inmeras doutrinas prometendo abolir os privilgios, acabarcom as guerras, realizar a justia social, criar a fraternidade universal. Em qualquer destesdomnios a aco conveniente reduz-se a uma soluo de problemas, sem a sujeio aohbito e sem os fumos da tradio.

    Eis o grande mito da poltica racionalista: assimilao da poltica engenharia. Pautadopela busca da perfeio e da uniformidade, o terico da poltica racionalista prope-seresolver todos os problemas pela aplicao de um modelo mecnico que parte de umarasura da tradio. A maneira de Voltaire, a nova legislao surgir lmpida com a extinodos fumos do fogo que consumiu a antiga lei. Por consequncia, o racionalismo cptico e optimista.

    Mas a preocupao de Oakeshott no apenas refutar o racionalismo. O que seimpe descobrir as circunstncias em que surgiu na poltica e o efeito que teve nessedomnio.

    J um sculo antes de Bacon e Descartes, Nicolau Maquiavel fornecera ao prnciperecm-surgido, falho de experincia poltica, o que o poltico racionalista entendeu seroferta dos dois filsofos primeiro referidos. O "novo prncipe" colhe o que todo o po-ltico racionalista quer: um manual para o legislador sem tradio, um livro que mini-mize a falha que no ter educao poltica. Mais uma vez so os seguidores que incor-rem em erro quando no prevenidos das cautelas dos mestres. Na verdade jamaisMaquiavel identifica poltica com administrao pblica susceptvel de aprendizagemlivresca: ele conhecia os limites do seu livro e sabia que presena da sua pessoa eranecessria, porque no perdeu a noo de que a politica, acima de tudo, exige diploma-cia e no aprendizagem tcnica. 31

    28 Cfr. R. P., p. 122.29 Cfr. R. P., p, 129.30 Cfr. R. P., p. 8.31 Cfr. R. P., p. 30.

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  • Cedo, portanto, a poltica racionalista a poltica do livro. De tal modo que quemno governa apoiado num livro, depressa trata de o redigir. E os cientistas, apesar dasua actividade supor um conhecimento que no meramente terico - tambm prti-co, como o de qualquer outra actividade - so requisitados e levados a pronunciar-seno domnio politico. Contudo, o qumico, o fsico, o economista, o socilogo, o psic-logo, tm apenas conhecimentos tcnicos a oferecer politica.

    O avano da modernidade e a chegada de novas classes ao exerccio do poder impli-cou que se lhes prestasse um servio semelhante ao que Maquiavel proporcionara aoprncipe: foi necessrio fornecer-lhes um manual, uma doutrina politica, que substitusseum hbito ou costume poltico. Foi esse, alis, o servio prestado pelos tericos Locke,Bentham, Godwin e, sobretudo, Marx e Engels na qualidade de "autores do mais estu-pendo dos racionalismos polticos" - o que no poderia deixar de acontecer, j se pro-puseram instruit a classe politicamente menos educada relativamente a qualquer outraque teve a iluso de exercer o poder politico. 32

    Na gnese e triunfo do racionalismo, nomeadamente no domnio poltico, h tantoum mal-entendido no que diz respeito essncia do conhecimento inerente a cadaactividade, como se viu, como um equvoco no que se refere prpria substncia daactividade poltica.

    O que se tome como conveniente definio de poltica e de actividade poltica, condi-cionar a opo pelo modelo de conhecimento a que se h-de recorrer.

    Se se entender poltica como "a actividade de cuidar da situao de um grupo humanoacidental ou intencionalmente constitudo", isto , se se admitir que a poltica no seno a actividade de atender s disposies gerais de um povo que, a respeito do seureconhecimento do modo de cuidar dessas mesmas disposies, compe uma comu-nidade singular,33 ento melhor se percebero os limites do racionalismo e da suafilosofia no domnio da actividade poltica, e mais facilmente se colher como vlida asugesto de que uma experincia da totalidade, um dilogo com o presente e o passa-do, uma escuta das sugestes , a explorao de uma simpatia, uma conversao com otodo (no um argumento), suportam melhor o conhecimento politico e a educaopolitica.

    Para esclarecer este ponto de vista, Oakeshott avalia, para depois rejeitar, o que cor-rentemente se avana como definio de actividade poltica. Esta, supe-se, ou umaactividade emprica ou a prossecuo de uma ideologia. No primeiro caso, agir politi-camente (attending to the general arrangements of a society) seria acordar cada manh e agirde acordo com os desejos pontuais - do prprio ou de algum a quem se deseje agradar(comportamento prprio de um angariador de votos, por exemplo). Seria uma polticacomo a do Primeiro Lord de Liverpool de quem se dizia que no tinha qualquerpoltica.34 Parece evidente que um conhecimento adequado a uma poltica entendida

    32 "European poltico without these writers would still have been deeply involved in Rationalism, but beyond ques-don they are the authors of the most stupendous of our political rationalisms (...)" (R. P., p. 31.)33 Cfr. R. R, p. 56.34 "( ,) the secret of his policy was that he had none, and of whom a Frenchman remarked that if he had beenpresent at the creation of the world he would have said,'Mon Dieu, conservons le chaos'." (R. P, p. 47.)

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  • deste primeiro modo seria perfeitamente disperso, logo inexistente: o absoluto capri-cho no delinevel. Alm do mais uma actividade deste gnero tambm seria ininte-ligvel. Qualquer actividade pontual carece sempre, portanto, de um referenteideolgico. 35

    A "actividade de cuidar das disposies gerais de uma sociedade" ser, ou dever ser,ento, a satisfao de uma ideologia? Neste sentido a actividade politica entender-se-iacomo o cuidado de pautar os general arrangements por uma ideia (liberdade, igualdade,mxima produtividade, felicidade, pureza racial) ou, situao mais comum, por um con-junto de ideias (princpios da Revoluo Francesa, liberalismo, democracia, marxismo,Carta do Atl.ntico). 36 Esta ideia, ou conjunto de ideias, seria supostamente premedita-da, resultado de premeditao intelectual, j que nada deveria actividade concreta, isto, seria independente dela e poderia, desse modo, conduzi-la melhor. Mas esta suposio falsa. A actividade poltica no a prossecuo de uma ideologia, do mesmo modoque o conhecimento (educao) inerente mesma actividade no conhecimento (ilus-trao) de um corpo de ideias pretensamente autnomo. Na verdade, e como resulta daanlise dos pressupostos da concepo racionalista da conduta, a actividade prvia aqualquer ideologia. Esta, a rigor, no seno um sistema de ideias abstrado do modoparticular como um povo cuidou dos general arrangements da sua sociedade. "Numapalavra, a aco poltica antecede a ideologia politica." 37

    Oakeshott sugere que se compreender melhor a conveniente relao entre activi-dade politica e ideologia estabelecendo uma analogia com a actividade e a hiptese cien-tficas. Na verdade, se a hiptese fosse uma ideia auto-gerada que nada devesse activi-dade cientfica, ento o empirismo governado por hipteses poderia ser consideradocomo contendo em si um modo de actividade. Mas no assim. Ressalta evidnciaque apenas um cientista pode formular uma hiptese cientfica. "(...) uma hiptese no uma criao autnoma susceptvel de orientar a investigao cientfica, mas sim umasuposio dependente que surge como abstraco de uma actividade cientficaprvia."38 Assim como um livro de cozinha pressupe algum que saiba cozinhar, e domesmo modo que a hiptese cientfica surge como um conhecimento de como con-duzir a investigao, e separada desse conhecimento incapaz de mover o empirismocom proveito, tambm uma ideologia politica deve ser entendida como conhecimento(abstracto e generalizado) de um modo concreto de atender s disposies de sociedadee no como um princpio de actividade politica, premeditado e independente. "O quefazemos e, sobretudo, o que desejamos fazer, tem a sua origem no modo como habi-tualmente acabamos por organizar as nossas actividades." 39

    Tome-se o exemplo da Declarao de 1789 sobre os Direitos do Homem. Trata-se cla-ramente de uma ideologia poltica. Este documento enuncia um sistema de direitos e

    35 Cfr. R. P., p. 48.36 Cfr. Idem, p. 50.37 "In short, political activity comes first and a political ideology follows after," (R. P., p. 51.)38 "(.,.) an hypothesis is not an independent invention capable of guiding scientific inquiry, but a dependent sup-position which arises as an abstraction from within already existing scientific activity. " (R. P., p. 52.)39 "What we do, and moreover what we want to do, is the creature of how we are accostumed to conduct ouraffairs." (R. P., p. 53.)

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  • deveres, um esquema de fins. Porm o que parece pronto a ser posto em prtica pelaprimeira vez, e produto de uma reflexo que previamente meditou tais princpios, noser nem aplicado pela primeira vez, nem resultado de reflexo prvia actividade polti-ca. Porque, esclarece Oakeshott, a Declarao explicita, abstracta e resumidamente, osdireitos civis comuns dos cidados ingleses; a Declarao no o presente de uma pre-meditao independente ou da generosidade divina, mas o produto de sculos de quo-tidiano "attending to the general arrangements of an historic-society." 40

    Assim, precisa o autor, o Second Treatise of Civil Government de Locke, lido naAmrica e em Frana ao longo do sc. XVIII, no um prefcio: ele , isso sim, umpost scriptum, uma breve sntese de como os ingleses levaram a cabo as disposies dasua sociedade - uma brilhante sntese dos hbitos ingleses. Mas o hbito racionalistatomou por ordenao abstracta, conhecimento tcnico, (necessrio e, portanto, univer-salizvel) o que surgiu inerente a uma tradio de "attending to the general arrange-ments of a concrete society". E nisto reside o carcter deformador da aco polticamovido pelas ideologias.

    A histria dos Estados Unidos da Amrica do Norte, no seu comeo, tambm umasugestiva ilustrao do que pode ser uma poltica racionalista.

    Os primeiros americanos aparentemente comeavam do nada e apenas a si prpriosdeviam tudo o que alcanavam. Uma civilizao de pioneiros uma civilizao de autoconvencidos self-made men, racionalistas por circunstncia e no por reflexo, semnecessidade de persuaso de que o conhecimento comea com tbua rasa, sem neces-sidade de fazer qualquer purga (como Descartes) mas apenas recolhendo de Deus comodom o suporte de um absoluto comeo. 41

    Muito antes da Revoluo Americana, racionalista o carcter poltico prevalecentedos colonos americanos. Na verdade, insiste Oakeshott, a inspirao de Jefferson e deoutros fundadores da independncia americana foi a ideologia que Locke destilou datradio poltica inglesa. Acreditaram eles, mais at que os racionalistas polticos doVelho Continente, que a organizao de uma sociedade e a conduo dos seus negciosse baseavam em princpios abstractos e no sobre uma tradio que teria que ser desen-terrada de entre pergaminhos e registos bafientos. 42

    Tais princpios, supunham, no eram um produto de civilizao; eram naturais, escritosno todo da natureza humana e, como tal, a serem descobertos na natureza pela razo; ta-refa facilitada pois o fundamental desses mesmos princpios estava discernido e transcritoem vasta literatura. Como sugerira Descartes ("... maior perfeio na obra de um s")os artfices da independncia americana admitiram que o seu povo era o primeiro a quemo cu favorecera com a oportunidade da libertao e da escolha das formas de governosob que desejariam viver, j que todas as outras constituies eram derivao de violnciae de circunstncias acidentais. A Declarao de Independncia dos E. U. A. um caractersti-co produto do saeculum rationalisticum. Torna-se um produto sagrado da poltica racio-nalista e, juntamente com declaraes da Revoluo Francesa, inspirao e padro demuitas outras aventuras na reconstruo racionalista da sociedade. 43

    4o Cfr. R. P., p. 53.41 Cfr. R. P., p. 32.42 Cfr. R. P., p, 23.43 Cfr. R. P., p. 33.

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  • Tais aventuras admitem a possibilidade de um comeo absoluto, supem um povo semreconhecidas tradies de comportamento ou cujas disposies no sugerem necessidadede mudana. Mas tal suspeita incompatvel com a prpria actividade poltica. Um povonessas circunstncias, assegura Oakeshott, seria incapaz de sobreviver politicamente.

    A Poltica - O Desenvolvimento de uma Simpatia

    Dever-se- concluir que a actividade poltica no surge de desejos momentneos (oque contraria uma politica emprica), nem de princpios gerais (o que nega um suporteideolgico-racionalista da mesma actividade); surge de tradies de comportamentoprvios. A falta de preveno neste domnio mina imediatamente a ideologia marxista,por exemplo. No s porque, como qualquer outra ideologia, uma abstraco, massobretudo porque se torna inapropriada quando transposta de uma realidade polticapara outra e, desse modo, incorrendo no que, rigorosamente, se deve chamar irra-cionalidade.44

    A forma a assumir pela actividade politica s pode ser a de correco de disposiesexistentes, desenvolvendo, explorando e perseguindo o que est nelas `intimado'. E asdisposies que constituem uma sociedade capaz de actividade poltica (sejam eleshbitos ou instituies, leis ou decises diplomticas) so simultaneamente coerentes eincoerentes. Constituem um modelo e simultaneamente `intimam uma simpatia' (queno aparece completamente) sendo a actividade poltica a explorao dessa simpatia 45E s deste modo a racionalidade convm poltica. A racionalidade, como se sugeriuanteriormente, o certificado que damos a qualquer actividade que pode manter umlugar na corrente de simpatia, a coerncia da actividade, que compe um modo deviver.4G No se trata de uma coerncia resultante do trabalho de uma faculdade a quechamaramos `razo ', mas de uma conscincia concreta totalmente composta de activi-dades na busca da harmonia e implicada em cada nvel de harmonia alcanado.

    Ser, deste modo, reflexo poltica adequada a exposio conveniente de uma sim-patia, presente mas ainda no seguida, e a convincente demonstrao de que determi-nada ocasio o momento apropriado para o reconhecer. Abundam exemplos: a liber-dade-humana (colhida pelos europeus como direito natural do homem) no um sonhoou um ideal premeditado - algo que, como hiptese cientfica, est intimado numamaneira concreta de comportar-se;4 a emancipao da mulher no decorreu de argu-mentos extrados de um direito natural, da justia, de conceitos gerais invocados sobrea personalidade feminina (argumentos geralmente irrelevantes) mas sim da constataode que havia incoerncia nas disposies da sociedade a exigirem soluo mais convin-cente. De facto a nica soluo vlida para as concesses feitas mulher no domniotcnico foi que em muitos outros aspectos importantes elas j as tinham obtido.48

    44 Cfr. R, P., p, 54.45 Cfr. R. P., p. 56.46 Cfr, R. P., p. 130.47 Cfr. R. P., p. 54.48 Cfr. R. P., p, 57.

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  • Devemos admitir ento, avana o autor, que qualquer empreendimento a prosse-cuo no de um sonho, no de um princpio geral, mas de uma `intimao' e que osnossos enganos sero menos frequentes e menos desastrosos se escaparmos iluso deque a poltica algo mais do que a prossecuo de sugestes. E uma conversao, noum argumento. Uma tradio de comportamento um modo de fazer as coisas; umacorrente de simpatia - que pode temporariamente ser interrompida pela incurso deuma influncia exterior, perturbada, arrastada, esgotada, resvalando desse modo parauma profunda incoerncia em que emerge a crise. E para a solucionar, seria bom procu-rar algum guia slido, imutvel, independente, a que se pudesse recorrer. Mas no existetal guia. A metfora utilizada pelo autor, e que de novo evocamos, esclarecedora."Assim, na actividade poltica os homens navegam num mar ilimitado e sem fundo; noh nem um porto para abrigar nem uma enseada para ancorar, nem um ponto de par-tida, nem um destino determinado. Trata-se de permanecer flutuando numa quilha lisa;o mar amigo e inimigo ao mesmo tempo, e a habilidade nutica consiste em saberempregar os recursos de um comportamento tradicional de modo a transformar cadaocorrncia hostil num amigo."49

    Esta imagem seria deprimente se associada a um nihilismo - que, na verdade, parecesugerir. Mas o nihilismo no faz jus inteno de Oakeshott: o seu propsito no ode criar a emoo ou explorar um estilo literrio que se nutre do absurdo da vida, damorte de Deus, da indiferena do universo, mas o de propor que em vez de um deses-pero romntico, prefervel sentir fascnio pela criatividade humana que, agindo politi-camente sem a garantia de princpios racionais vlidos, tem sabido criar e manter ummundo habitvel.

    Segue-se que a actividade poltica no requer o conhecimento de princpios gerais(formais, abstractos, universais) antes reclama um conhecimento to profundo quantopossvel de uma tradio de comportamento - uma vernacular language of colloguial in-tercourse. Conhecimento relativamente ao qual todos os outros sero adicionais j quedeles, sem o primeiro, qualquer uso seria impossvel. 50 O conhecimento que se impe sobretudo a aprendizagem na `participao numa conversao ' : a iniciao numa he-rana em que temos um interesse vital, a explorao das suas intimations. E nisto con-siste, rigorosamente, o que o autor entende por "educao poltica " : a insero numatradio de comportamento; a iniciao nessa linguagem verncula que moralidade ecivilidade. Tarefa espinhosa j que, de imediato, difcil determinar o que seja umatradio de comportamento e, mediatamente, porque num horizonte de tradio nadaest acabado; nada h que no seja fluido, inconstante, de captao difcil. Mas nem porisso carecendo de identidade ou deixando de denunciar continuidade ou firmeza, comofacilmente percebido pelo carcter da atitude conservadora - atitude com que, pro-priamente, a governao (ruling) se deve identificar. Se tudo temporrio, nada arbi-trrio se referido ao todo e no ao imediato de menor relevncia. Assim, a educaopoltica deve comear como a linguagem: no bero, no na escola - pelo envolvimentocom uma tradio, pela observao e imitao do comportamento dos mais velhos. 51

    49 R. P., p. 60.50 Cfr. R. P., p. 61.51 Cfr. R. P., p. 62.

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  • Enquanto estudo acadmico a poltica deve consistir num estudo histrico: no deveser um estudo de ideias polticas, mas do modo de pensar poltico; no um relato doque aconteceu, mas uma averiguao do que as pessoas pensaram que aconteceu. Sdeste modo, aprendendo a fazer uma experincia de totalidade, se evitaro mal enten-didos como os que fazem supor que as instituies e procedimentos surgem como peasde maquinaria a que se recorre para responder a um projecto previamente delineado(como se a associao civil fosse uma enterprise association isto , tivesse um carcterinstrumental) e no como modos de comportamento que perdem significado quandoretirados do seu contexto. Mal entendidos semelhantes aos de Mill para quem "GovernoRepresentativo" era uma forma de poltica apropriada para qualquer sociedade queatingisse um nvel a que chamamos civilizao. Numa palavra: os mal entendidos quenos levarn a olhar as nossas disposies e instituies como significando mais quepegadas de pensadores e governantes que sabiam para que caminho orientar os seusps, sem saberem rigorosamente nada sobre o seu destino final. 52

    Finalmente, o conhecimento poltico ser um estudo filosfico da poltica. O seuobjecto no ser a distino entre um bom e um mau projecto poltico, entre um bome um mau caminho de indagao de "simpatias intimadas " numa tradio poltica. Ser,isso sim, uma actividade explanatria e, se usada convenientemente, podemos esperarser menos enganados por proposies ambguas e argumentos irrelevantes; menosestaremos expostos ao que ofuscar o ignorante e o desprevenido: a iluso de que umasntese de uma tradio um guia suficiente, a iluso, por fim, de que em poltica halgures um porto seguro, um destino a ser alcanado. 53

    Concluindo, poder-se- dizer que Oakeshott no absolutamente original. certoque a crtica ao racionalismo e aos sistemas metafsicos consequentes, ensaiada desdeo incio da poca Contempornea. Quase sempre com alarido; bastas vezes com ind-cios de srio ressentimento ou mesmo justificada dor. No em Oakeshott, porm: nelea denncia da validade prtica do racionalismo e a desmistificao das propostas abstrac-tas, ideolgicas e totalitrias a geradas a voz de uma serena conscincia que com ante-cedncia previu os naufrgios das naus que se entusiasmaram com miragens de `praiasde necessrio progresso'.

    Conceder-se- com alguma facilidade que a sua crtica poltica racionalista, data-da. Mas, neste tempo que alguns nomeiam de `fim das ideologias', a sua sensata ironiatem a tonalidade de um regresso a casa, nico local em que a prodigalidade (peloaconchego da tradio, do patrimonial) tem o acolhimento possvel. E, por isso, emOakeshott, tanto podemos sentir o eco heracliteano que revela a certeza possvel (a deque os deuses habitam onde quer que se encontre o homem), como intuir a sensatez daprosaica serva da Trcia quando censura a Tales a excessiva preocupao com os astrosdistantes e o pouco cuidado com o solo onde efectivamente se deve caminhar.

    Michael Oakeshott tem sido uma presena discreta no panorama filosfico con-temporneo. Mas esse relativo apagamento no justificado por qualquer menor valorda sua reflexo. Pelo contrrio. As suas reservas relativamente aos entusiasmos que flo-resceram nos tempos modernos, e particularmente neste sculo, o seu posicionamento

    52 Cfr. R. P., p. 64.53 Cfr. R. P, p. 66.

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  • ao arrepio de uma poca que sups ter descoberto, sob os auspcios do pensamentopositivo, as orientaes realizadoras do processo definitivo da histria, devem, porm,merecer um especial cuidado. Sobretudo agora quando de novo se sente alguma deso-rientao. E nestas circunstncias que as vozes que bradam no deserto melhor se es-cutam: no por terem subido de tom mas pelo facto de os nossos ouvidos deixarem deestar to impedidos pelo rudo circundante.

    Deste modo, o retorno e a ateno aos textos de Oakeshott justificam-se plenamente.A sua ironia e o seu peculiar cepticismo condmino de uma prudentia que invectiva aarrogncia, as certezas, os modelos rgidos de organizao da vida (individual e colecti-va) e que impedem a mesma no que tem de essencial (o desafio, o risco traado no ter-reno da liberdade), de novo funcionam como alerta socrtico, como aguilho incmo-do mas necessrio.

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