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A VIAGEM LITERÁRIA NO ÂMBITO DO CIRCUITO TURÍSTICO · THE LITERARY TRIP WITHIN THE TOURIST...

Date post: 02-Jan-2020
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International Journal of Scientific Management and Tourism (2017) 3-4: 609-630, Leitão, I. & Ambrósio, V.: “A VIAGEM LITERÁRIA NO ÂMBITO DO CIRCUITO TURÍSTICO609 A VIAGEM LITERÁRIA NO ÂMBITO DO CIRCUITO TURÍSTICO Isilda Leitão 1 Vitor Ambrósio 2 Resumo Os curricula dos cursos de Informação Turística privilegiam, em geral, os conhecimentos ao nível das línguas estrangeiras, Cultura, História, História de Arte e Geografia. A Literatura, embora mencionada como parte integrante da identidade nacional, não é contemplada enquanto Unidade Curricular autónoma. Acreditamos que um circuito turístico possa ir para além da transmissão de informação sobre os lugares. No decorrer das visitas, a leitura de trechos literários pode transportar os turistas para um mundo diferente da realidade observada. Como metodologia adoptada, escolheu-se, para servir de base ao artigo, um caso de estudo/circuito regular de dia inteiro, com partida e regresso a Lisboa, que inclui cinco paragens/visitas: Óbidos (vila medieval); Mosteiro de Alcobaça (complexo monacal da Ordem de Cister e Património da Humanidade); Nazaré (vila piscatória); Mosteiro da Batalha (complexo monacal da Ordem de São Domingos e Património da Humanidade); Fátima (santuário mariano). Em paralelo, fez-se um levantamento dos muitos autores que escreveram sobre as localidades indicadas. A seleção sequente teve por critério a escolha de escritores consagrados, que contribuíram para enriquecer o imaginário dos lugares: Luís de Camões (poesia épica); Alexandre Herculano (romantismo, narrativa histórica); Ramalho Ortigão (realismo naturalista); Fernando Pessoa (ortónimo); Miguel Torga (telurismo mítico); Raul Brandão (narrativa pictórica); Branquinho da Fonseca (modernismo presencista); José Saramago (prosa poética, realismo mágico). Contudo, não ignorámos a presença de outros escritores viajantes, que vivenciaram estes locais, tais como Antero de Figueiredo, António Correia de Oliveira ou Maria Filomena Mónica. Por último, desenha-se um circuito, onde se conjugam as descrições do património construído com as do património literário, demonstrando-se que é possível articular, de forma harmoniosa, as informações turísticas estandardizadas e os textos literários, potenciando o maravilhoso dos lugares e a literatura nacional. Palavras Chave: Literatura; Circuitos Turísticos; Turistas/Viajantes. 1 Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, Portugal, [email protected] 2 Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, Portugal, [email protected]
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International Journal of Scientific Management and Tourism (2017) 3-4: 609-630, Leitão, I. & Ambrósio, V.: “A VIAGEM LITERÁRIA NO ÂMBITO DO CIRCUITO TURÍSTICO”

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A VIAGEM LITERÁRIA NO ÂMBITO DO CIRCUITO TURÍSTICO

Isilda Leitão1

Vitor Ambrósio2

Resumo Os curricula dos cursos de Informação Turística privilegiam, em geral, os

conhecimentos ao nível das línguas estrangeiras, Cultura, História, História de Arte e Geografia. A Literatura, embora mencionada como parte integrante da identidade nacional, não é contemplada enquanto Unidade Curricular autónoma.

Acreditamos que um circuito turístico possa ir para além da transmissão de informação sobre os lugares. No decorrer das visitas, a leitura de trechos literários pode transportar os turistas para um mundo diferente da realidade observada.

Como metodologia adoptada, escolheu-se, para servir de base ao artigo, um caso de estudo/circuito regular de dia inteiro, com partida e regresso a Lisboa, que inclui cinco paragens/visitas: Óbidos (vila medieval); Mosteiro de Alcobaça (complexo monacal da Ordem de Cister e Património da Humanidade); Nazaré (vila piscatória); Mosteiro da Batalha (complexo monacal da Ordem de São Domingos e Património da Humanidade); Fátima (santuário mariano).

Em paralelo, fez-se um levantamento dos muitos autores que escreveram sobre as localidades indicadas. A seleção sequente teve por critério a escolha de escritores consagrados, que contribuíram para enriquecer o imaginário dos lugares: Luís de Camões (poesia épica); Alexandre Herculano (romantismo, narrativa histórica); Ramalho Ortigão (realismo naturalista); Fernando Pessoa (ortónimo); Miguel Torga (telurismo mítico); Raul Brandão (narrativa pictórica); Branquinho da Fonseca (modernismo presencista); José Saramago (prosa poética, realismo mágico). Contudo, não ignorámos a presença de outros escritores viajantes, que vivenciaram estes locais, tais como Antero de Figueiredo, António Correia de Oliveira ou Maria Filomena Mónica.

Por último, desenha-se um circuito, onde se conjugam as descrições do património construído com as do património literário, demonstrando-se que é possível articular, de forma harmoniosa, as informações turísticas estandardizadas e os textos literários, potenciando o maravilhoso dos lugares e a literatura nacional.

Palavras Chave: Literatura; Circuitos Turísticos; Turistas/Viajantes.

1 Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, Portugal, [email protected] 2 Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, Portugal, [email protected]

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THE LITERARY TRIP WITHIN THE TOURIST CIRCUIT Abstract:

The Tourism Information B. A. curricula emphasize mostly the knowledge of foreign languages, Culture, History, History of Art and Geography. Although Literature is mentioned as part of the national identity, it is not by itself an autonomous curricular unit.

We believe that in a guided tour it is possible to go beyond the simple transmission of information about the visited sites. While visiting the sites, the reading of literary passages can carry tourists to a world different from the observed reality.

The paper’s case study will be based on a regular full day guided tour, with departure and return to Lisbon (Portugal), and which includes the visit of five towns: Óbidos (a medieval town); Alcobaça Monastery (a religious complex of the Cistercian Order and World Heritage); Nazaré (a fishing village); Monastery of Batalha (a religious complex of the Order of St. Dominic and World Heritage); Fátima (a Marian international shrine).

Another methodological step was to look for the many writers who wrote about the selected towns. The sequent choice was made having in mind consecrated authors who had contributed to enrich the imaginary of those places: Luís de Camões (epic poetry); Alexandre Herculano (romanticism, historical narrative); Ramalho Ortigão (naturalistic realism); Fernando Pessoa (orthonym); Miguel Torga (mythical tellurism); Raul Brandão (pictorial narrative); Branquinho da Fonseca (modernism); José Saramago (poetic prose, magical realism). However we did not ignore other traveling writers who had also been in those places, such as Antero de Figueiredo, António Correia de Oliveira or Maria Filomena Mónica.

At last a guided tour is drawn up, combining the descriptions of the built heritage with those of the literary heritage, demonstrating that it is possible to bring together standardized tourist information and literary texts, enhancing the wonderful of the sites and the national Literature.

Key words: Literature; Guided Tours; Tourists/Travelers

Introdução De acordo com estudos, que se começam a evidenciar sobretudo a partir de finais do

século XX e inícios do XXI, alguns teóricos do Turismo, como Herbert (2001) têm vindo a considerar a Literatura, em geral, e a Literatura de Viagens, em particular, como uma forma de potenciar fluxos turísticos cada vez mais significativos. O Turismo Literário tem vindo a adquirir uma maior relevância a nível europeu e mundial, em locais já antes “venerados” pelos amantes da Literatura (como as casas e paisagens onde os escritores viveram e/ou referiram nos seus livros ou os cemitérios onde se encontram sepultados, e progressivamente, embora de forma não tão significativa, tenta estabelecer um maior diálogo entre a actividade turística mais estandardizada, podendo esta adquirir, assim, uma dimensão mais cultural.

É este tipo de circuito que abordaremos, ao conjugar o Turismo com a Literatura. O “modelo”, aqui proposto, poderá servir de exemplo/incentivo quer para os docentes das instituições de ensino superior com formação em turismo, quer para os profissionais de turismo em actividade.

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Circuito Turístico Alguns procedimentos e conceitos se impõem, na construção de um circuito turístico-

literário. Em primeiro lugar, o conceito de circuito turístico, sendo que este está dependente do tipo e duração da viagem que se organiza. No caso concreto deste artigo, serve de base de estudo um circuito regular para turistas que se alojam em Lisboa e que durante a sua estada no país, não mudam de alojamento. Muitos dos turistas que assim planeiam a sua viagem, depois de terem explorado a cidade, partem à descoberta da região em excursões diárias. Segundo a classificação de Lew and Mckercher (2005), o desenho da sua estada em Lisboa seria o radiating hub e os itinerários diários assumem padrões vários como o circular loop (neste, não se repetem caminhos/estradas, partindo e regressando ao mesmo ponto) ou o steam and petal (o caminho/estrada que nos leva à área a visitar é o mesmo que se toma no regresso).

No tour, em estudo, estamos perante um circular loop, tal como se pode observar na fig. 1. Neste full-day, com partida e regresso a Lisboa, visitam-se cinco localidades: Óbidos (vila medieval); Mosteiro de Alcobaça (complexo monacal da Ordem de Cister e património da humanidade); Nazaré (vila piscatória); Mosteiro da Batalha (complexo monacal da Ordem de São Domingos e património da humanidade); Fátima (santuário mariano).

Nestes locais, em sítios precisos, ou durante o percurso (no autocarro), far-se-ão as leituras dos textos.

Circuito Literário

Outro dos conceitos prende-se com o de turismo literário. Segundo Herbert (2001), as pessoas visitam os lugares literários por diferentes motivos. O primeiro diz respeito ao que se relaciona com a vida dos escritores. O segundo tem a ver com os lugares, reais ou imaginados, referidos nas suas ficções, que lhes dão um especial significado. O terceiro prende-se com a vontade de experienciar uma emoção mais profunda do que a transmitida pelo escritor ou pela história. Estas são consideradas as qualidades excepcionais de um lugar literário. Contudo, além destes motivos, há outras qualidades que podem ser usadas para promover o seu interesse. Os lugares literários podem tornar-se pontos de paragem dentro de um itinerário turístico mais genérico, que compreenda a visita a catedrais, igrejas, casa de campo, jardins, etc. Uma vez mais, o enquadramento é importante e o envolvimento cénico, as paisagens e um conjunto de facilidades, desde a gastronomia às lembranças, fazem todas parte dessa experiência.

De acordo com o mesmo autor, a diversificação de turistas literários (e não apenas aqueles que possuem um determinado estatuto e/ou competências) tem vindo a ser conjugada

Fig. 1 – Full-day circular loop: Óbidos, Alcobaça, Nazaré, Batalha, Fátima

Fonte: adaptado de Google Maps (2017)

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com a multiplicação de lugares literários. Estes já não estão apenas confinados aos autores consagrados pela literatura clássica, mas a eles têm-se juntado os mais recentes e/ou populares escritores, bem como os lugares com eles identificados, como é o caso de Sir Conan Doyle, que localiza a sua personagem Sherlock Holmes no nº 221B de Baker Street, onde uma placa na parede dá conta que esta personagem aí teria vivido no período compreendido entre 1881 a 1904, embora essa parte da rua já não existisse no tempo do escritor.

O Circuito Turístico-Literário: Óbidos, Alcobaça, Nazaré, Batalha, Fátima

Óbidos

Dada a sua localização geográfica, Óbidos foi um lugar habitado desde o Calcolítico, tendo sido ocupado, entre outros, por Celtas, Romanos e Muçulmanos. Após a conquista de Santarém e Lisboa (ambas em 1147), o primeiro rei de Portugal, D. Afonso Henriques, conquista esta praça-forte em 1148. Doada (em 1201) por D. Afonso II a D. Urraca, sua mulher, este local virá a ter a preferência das rainhas e a ser conhecido como “A Vila das Rainhas”, quando foi oferecida pelo rei D. Dinis, em 1282, como prenda de casamento a D. Isabel de Aragão (esta virá a ser conhecida no espaço peninsular e, posteriormente, no ultramarino como a Rainha Santa). A partir desta data, Óbidos começa a fazer parte do dote de todas as rainhas portuguesas (Casa das Rainhas). Nesta localidade, Santa Isabel funda (1309) um convento de dominicanas, onde viveu, e um hospital para leprosos. Em 1498, a Rainha D. Leonor, mulher de D. João II, funda nesta vila uma Misericórdia (cuja igreja ainda podemos visitar) e recolhe-se, nesta localidade, após a morte do príncipe herdeiro (Castro, 1996).

Actualmente, dadas as suas características medievais, a Vila tem sido escolhida para eventos turísticos, como: “Óbidos, Vila Medieval” (com eventos relacionados com a Idade Média); o “Festival do Chocolate de Óbidos” (com eventos mais gastronómicos, que conjugam, entre outros produtos, o chocolate com a famosa “ginginha de Óbidos”); “Óbidos, Vila Natal” (com eventos relacionados com a época natalícia); e, mais recentemente, o festival FOLIO - o “Festival Literário Internacional de Óbidos”. Neste Festival, expõem-se livros, artes plásticas e fotografia; há espectáculos de rua e teatrais (na 1ª edição, em 2015, foi adaptada para teatro o romance A Viagem do Elefante, de José Saramago); organizam-se palestras com escritores nacionais e internacionais; é projectado cinema; oferece-se, ainda, concertos de música contemporânea e clássica. A gastronomia não é esquecida, fabricando-se, entre outros produtos, um pão em forma de livro.

Entre os numerosos locais para visita, destacam-se: antes da entrada da Porta da Vila, o Aqueduto (edificado no século XVI, com 3km de extensão) e o Cruzeiro da Memória (edificado para comemorar a Vitória de D. Afonso Henriques aos Mouros e restaurado no século XVI); a Porta da Vila (com o nicho de Nossa Senhora da Piedade, revestido de azulejos do século XVIII); a Igreja Matriz de Santa Maria (onde se podem observar o túmulo renascentista de D. João de Noronha, os azulejos do século XVII e as pinturas seiscentistas de Josefa d`Óbidos; o Castelo (antigo Paço Real, com as suas famosas janelas e portas manuelinas, convertido, em parte, em Pousada) e a sua Cerca (antigo terreiro de armas).

Na obra Viagem a Portugal, realizada em 1979 pelo Nobel Português da Literatura (1998) José Saramago (1922-2010), o autor pretende, tal como vem a expressar no Prefácio da tradução inglesa (2002), que este livro não seja um mero guia de viagem, mas uma espécie de testamento que permita ao leitor viajar pela história e cultura portuguesa. Através da sua

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visão e de uma escrita escrupulosamente burilada, o escritor dá-nos um imenso panorama não só da História, da Literatura, das Artes, da Arquitectura, da Geografia, de Portugal Continental, mas acrescenta ainda à sua narrativa muitas das marcas identitárias e do viver quotidiano das regiões e das gentes e lugares que vai visitando.

Romancista, poeta e dramaturgo, Saramago adianta nesse Prefácio que a viagem durou cerca de seis meses. O escritor foi um grande viajante, como podemos observar quando estudamos a sua biografia ou lemos os Cadernos de Lanzarote.

A propósito de Óbidos, afirma Saramago:

“Das Caldas da Rainha a Óbidos chega-se num suspiro. O viajante faz como toda a gente: entra pela Porta da Vila e fica-se a olhar, surpreendido para o efeito inesperado daquele varandim interior, com o oratório rodeado de painéis de azulejos azuis e brancos, e a abóbada pintada ao gosto setecentista. Quem não vá avisado ou entre de cabeça baixa […] ou com a ideia fixa nas belezas que o esperam dentro das muralhas, arrisca-se a ficar reprovado no exame de atenção, especialmente se vai de automóvel” (Saramago, 1995: 268).

Sobre Óbidos, recorramos, também, a Raul Proença (1884-1941) escritor, jornalista, membro do grupo que fundou a revista Seara Nova e responsável pelo primeiro Guia de Portugal, na década de vinte, do séc. XX, composto por vários volumes, correspondentes às diferentes províncias do país. Este constituiu uma espécie de resposta portuguesa a guias estrangeiros, como os Baedeker, que tinham assinalável sucesso na Europa dos finais do século XIX e princípios do século XX. Proença assume que o Guia não pretende ser "um bonzo doméstico" para "o fútil destino de ornamentar as estantes e os móveis das saletas"; pretende-se, antes, "um companheiro de viagem (...), pronto a ser consultado a cada momento", daí ter convidado para colaborar na sua elaboração os melhores escritores, especialistas em história de arte, geografia física e humana, arqueologia, etnografia ou antropologia. A obra recorre igualmente à opinião de escritores do passado, como Ramalho Ortigão (1836-1915). Sobre esta Vila, o escritor afirma:

“As velhas casas, muito caiadas e garridas , com seus cunhais pintados a azul, vermelhão ou verde cobre, perfilam-se sobre as ruas tortuosas, umas baixas, outras altas, umas à frente, outras mais recuadas, parecendo jogar às escondidas com os transeuntes […] as muralhas ameadas, cuja cor naturalmente sugeriu o célebre dito de D. João V – Eis aqui um vilão com uma cinta de oiro […] Dão acesso à Vila quatro portas […] guarnecidas de pitorescos oratórios abertos para o interior das muralhas […] O que fica junto à Porta do Vale […] foi mandado construir […] pelo magistrado da Índia Bernardo de Palma, em cumprimento de uma promessa de sua filha, morta aos 22 anos, de paixão por um rapaz de Óbidos” (Ortigão, citado em Guia de Portugal-Vol. II, 1991: 588-589).

No interior das suas muralhas, José Saramago, dá uma opinião oposta à que a maioria dos visitantes expressa, mas que é uma das características desta Vila feminina:

“Óbidos, para gosto do viajante, deveria ser menos florida. As flores, que como qualquer pessoa gosta de cheirar, são aqui em excesso, um escusado arrebique: o valor cromático do branco das paredes é diminuído pelas maciças jardinagens, renques de verdura que caem do alto dos muros,

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canteirinhos donde sobem trepadeiras de vária cor e feitio, vasos às janelas altas. O viajante não duvida de que a maioria dos visitantes goste, e não diz que tenham eles mau gosto: limita-se a dar opinião, uma vez que a viagem é sua [...] Mas Óbidos merece todos os louvores. É bem possível que a vila tenha um viver um pouco artificial. Sendo lugar obrigatório de passagem e permanência de visitantes, toda ela se compôs para tirar, não um retrato, mas muitos, com a preocupação de em todos ficar favorecida.” (Saramago, 1995: 268-269).

Um pouco mais adiante, a Igreja de Santa Maria é descrita da seguinte forma:

“Colocada a um lado do harmonioso largo, a Igreja de Santa Maria é, toda ela, uma preciosidade. É-o imediatamente na proporção geral da frontaria, no delicado portal renascentista, na robusta e sóbria torre sineira. E torna a sê-lo lá dentro nas magníficas decorações do tecto, festa dos olhos que não se cansam de percorrer volutas, medalhões e mais elementos, onde não faltam figuras enigmáticas e pouco canónicas; é-o no túmulo do alcaide-mor de Óbidos e de sua mulher, obra atribuída ao fertilíssimo Nicolau de Chanterenne e que é sem dúvida do mais belo que o renascimento coimbrão produziu; é-o igualmente pelas pinturas de Josefa de Ayala [...] e até não embacia o brilho de Santa Maria de Óbidos o retábulo arcaizante de João da Costa, artista que nesta vila trabalhou” (Saramago, 1995: 269).

Apesar de não fazerem parte do circuito turístico em estudo, por contingência de tempo, deixamos algumas das sugestões de Saramago, quando este volta a Óbidos para passar uma noite, após ter andado por alguns locais perto da vila (Peniche, Ferrel, etc). O escritor visita, na manhã seguinte, o “Museu de Óbidos”, considerando que:

“na arrumação [...] andou mão sabedora” dado que “que se desenvolve em altura, de reduzida superfície em cada piso”, mas onde “o visitante pode entregar-se a descansadas contemplações, e se tiver a sorte de ser único durante todo o tempo que lá estiver [...] sairá em estado de comprazimento perfeito, o que nem todos os dias se alcança” (Saramago, 1995: 273).

Visita ainda a Igreja da Misericórdia que tem uma “opulenta” Virgem de faiança sobre o portal e no interior “bons azulejos”, concluindo:

“Para o viajante, Óbidos não é apenas uma terra com pessoas, ruas excessivamente floridas, boas pinturas e boas esculturas. É também um sítio de paisagem, uma dobra de terra e pedra” (Saramago, 1995: 274).

Alcobaça

A Real Abadia de Santa Maria de Alcobaça, mandada edificar pelo primeiro rei de Portugal, D. Afonso Henriques, no século XII, foi uma das casas da Ordem de Cister mais importantes da Península Ibérica. A Carta de Couto, concedida em 1153 a Bernardo de Claraval constituía um território com cerca de 44.000 hectares, que compreendiam uma área perto de povoados (entre eles Porto de Mós e Nazaré) e castelos (como o de Óbidos). Inicialmente é construído um primeiro mosteiro, mais precário, a abadia velha, cujos vestígios desapareceram, começando o actual a ser edificado a partir de 1178, sendo a Igreja da abadia nova consagrada em 1252.

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Do séc. XIII aos inícios do séc. XIX, os monges, cumprindo a sua regra, desenvolveram a agricultura (demonstrando possuir conhecimentos mais avançados dos que estariam em prática no país), utilizando instrumentos fabricados por si, ou seja, potenciando unidades metalúrgicas. Estabeleceram, ainda, cartas de povoamento que estipulavam quantas famílias se podiam fixar em cada zona, tendo sempre em conta a fertilidade dos terrenos; quanto mais produtivos, tanto maior a densidade de população.

A extinção das ordens religiosas, em 1834, ditou a expulsão dos monges e o abandono do mosteiro, mas a qualidade de alguns produtos agrícolas permaneceram até hoje, destacando-se, entre outros, as maçãs, as pêras e os pêssegos. Desta riqueza hortícola dará conta Ramalho, que afirmará humoristicamente:

“À similhança de Chartres, egualmente célebre pela sua torre e pelo seu pastel, Alcobaça accumula a importancia histórica do seu convento com a dos seus pomares, de sorte que todo o viajante que ali passa se retira com uma nota na carteira e com um pecego no estomago” (Ortigão, 1875: 95).

Na sua Viagem a Portugal, quando chega a Alcobaça, Saramago:

“coloca [...] a antiga questão de saber se [...] é por se chamarem Alcoa e Baça os rios daqui que Alcobaça teve o nome, ou não tendo ainda sido baptizados os rios se resolveu partir em dois o nome da terra [...] Dizem entendidos que Alcobaça vem de Helcobatie, nome de uma povoação romana que próximo existiu [... ou] chamar-se-iam então os rios Helco e Batie?, deram eles o nome a Helcobatie? Ou Helcobatie generosamente se dividiu em dois, para não ficarem os seus rios anónimos?” (Saramago, 1995: 242).

Em 1875, Ramalho Ortigão refere o seguinte, a propósito da abadia:

“O mosteiro de Alcobaça foi fundado por D. Affonso Henriques o qual, segundo os chronistas cistercienses, vindo de Coimbra para a conquista de Santarem, prometteu, ao chegar à serra de Albardas, doar a S. Bernardo e aos seus monges, se lograsse a tomada de Santarem aos mouros, todas as terras que avistava d`aquelles montes, aguas vertentes ao mar. Foi lançada pelo proprio a primeira pedra da capella-môr do mosteiro, cujo primeiro abbade foi Ranolph, mandado de França por S. Bernardo [...] O que actualmente existe do antigo mosteiro foi feito muito posteriormente […] Como obra de architectura, o mosteiro de Alcobaça tem principalmente de notável a sua enorme vastidão, podendo conter cerca de mil monges. Tem uma bella porta manuelina, cinco claustros, um d`eles levantado por D. Diniz e pela Rainha Santa Isabel, outro pelo cardeal D. Henrique, outro por D. Affonso VI e os demais à custa da ordem. Os dormitórios são sete [...] A livraria do mosteiro, cuja casa ainda hoje se conserva, foi por muito tempo a mais rica do paíz, contendo preciosos manuscriptos e sendo o deposito de todos os papeis da corôa enquanto não se fundou a Torre do Tombo” (Ortigão, 1875: 94-95).

Já Saramago, a propósito da fachada e do interior da Abadia afirma:

“O que de notável a fachada do mosteiro tem, é a perfeita integração dos seus diferentes estilos, tanto mais que o barroco com que culmina não faz qualquer esforço para se aproximar do gótico do portal. É verdade que este é

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diminuído na sua possibilidade de competição com os restantes elementos da fachada pelo facto de ter arquivoltas lisas, sem decoração, e estar ladeado por pilastras barrocas. O conjunto, portanto, apresenta uma organização e uma movimentação barroca que as duas janelas manuelinas que enquadram a rosácea não modificam. As torres sineiras são o triunfo do estilo repetido até à exaustão em todo o país [...] Mas dentro da igreja o viajante esquece a fachada. Aqui é o reino de Cister, a fria atmosfera criada pela dura funcionalidade da ordem, o rigor da arquitectura repetindo o rigor da regra. A nave é profunda (não há maior em Portugal) e parece estreitíssima a tão grande altura se ergueram as abóbadas. Mas as naves mais laterais ainda acentuam mais esta característica [...] O conjunto é imponente, esmagador [...]” (Saramago, 1995: 242-243).

O interior da abadia serve de segundo panteão régio da dinastia afonsina (o primeiro será a Igreja de Santa Cruz de Coimbra), tal como refere Ramalho Ortigão:

“Em Alcobaça estão os túmulos de D. Affonso II com sua mulher, D. Urraca, de D. Affonso III com a rainha D. Brites [Beatriz], de D. Pedro Affonso, irmão de D. Affonso Henriques, cavalleiro soldado, embaixador em França, amigo de S. Bernardo, que conheceu em Claraval, e finalmente monge de Alcobaça, onde tomou o habito e morreu com um cheiro a santo.” (Ortigão, 1875: 95).

Saramago falará da “Sala dos Túmulos” afirmando que:

“lhe é plasticamente [...] gratificante; veja-se para não dar outros exemplos, o túmulo de D. Beatriz de Gusmão, do século XIII. Arca de pequenas dimensões, para o tamanho natural de uma mulher, apresenta em redor, esculpidas duramente, figuras de maior expressão dramática, mesmo sendo de algum modo estereotipada essa mesma expressão” (Saramago, 1995: 244).

De destacar, na Igreja da Abadia, as arcas tumulares de D. Pedro I e de D. Inês de Castro, mandadas esculpir no século XIV, para albergar duas personagens que imortalizaram um amor impossível, cuja história percorreu não só Portugal do século XIV à actualidade (com manifestações literárias em prosa, poesia, drama, e artísticas como a pintura, a escultura e o cinema), mas também a Europa medieval, do Renascimento (William Shakespeare inspirar-se-á nesta estória para escrever Romeu e Julieta), das Luzes, do Romantismo e da época contemporânea3.

Esta impossibilidade de amor resulta do facto de Inês de Castro, de origem galega, ser aia da legítima mulher de D. Pedro I, logo, quer ela quer os filhos que havia tido de D. Pedro eram ilegítimos. D. Afonso IV (pai de D. Pedro) e alguns dos seus conselheiros viram nesta ligação uma ameaça para a perda da independência de Portugal. Desta forma, D. Afonso IV manda assassinar Inês (na Quinta das Lágrimas, em Coimbra), sobrepondo as questões de Estado às questões afectivas/amorosas, algo que Nicolau Maquiavel virá a enunciar, um século depois, na sua obra “O Príncipe”.

D. Pedro I, o Cruel, perseguirá e assassinará os verdugos de Inês, ordenando igualmente que se trasladasse o corpo de Inês de Castro do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha,

3 Veja-se, a este propósito, Sousa (1987).

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em Coimbra, onde se encontrava sepultada, para o túmulo do Mosteiro de Alcobaça, onde o funeral chegará, sempre com “círios acesos” durante o trajecto, tal como o cronista Fernão Lopes descreverá na Crónica de D. Pedro I. Segundo a lenda, Inês será coroada Rainha na Igreja, numa cerimónia real e religiosa que contará com a vassalagem de clero, nobreza e povo, ali presentes. A cerimónia e todo o drama que a antecedeu será narrada pelo poeta Luís Vaz de Camões (1524?-1579?), que imortalizará aquela “Que despois de ser morta foi Rainha” no Canto III (estrofes 118 a 136) de Os Lusíadas.

Ramalho Ortigão pronunciar-se-á sobre estes túmulos e sobre o drama vivido pelos seus ocupantes da seguinte forma:

“O mais bello porém de todos os mausoléus que existem no mosteiro é o de Pedro I e de Ignez de Castro, de ao pé do qual todo o romeiro pensativo manda uma lembrança terna aos seus remotos amores” (Ortigão, 1875: 95).

Miguel Torga (1907-1995), nos Poemas Ibéricos, aludindo ao possível problema da perda da independência de Portugal, à coroação e à lenda que dá conta de que, no dia do Juízo Final, D. Pedro I e D. Inês se levantariam e se olhariam olhos nos olhos (daí os túmulos estarem virados um para o outro – pés com pés), dedicar-lhes-á o seguinte poema:

“Antes do fim do mundo despertar, / Sem D. Pedro sentir, / e dizer às donzelas que o luar / É o aceno do amado que há-de vir…/ [...] E mostrar-lhes que o amor contrariado/ Triunfa até da própria sepultura:/ o amante mais terno e apaixonado, / Ergue a noiva caída à sua altura. /[...] E pedir-lhes, depois, fidelidade humana / Ao mito do poeta, à linda Inês…/ À eterna Julieta castelhana / Do Romeu português” (Torga, 2000: 709).

José Saramago dará notícia destes eternos amantes da seguinte forma:

“Estes são os túmulos de Pedro e Inês, os imortais amantes que esperam o fim do mundo para se levantarem e continuarem o amor no ponto em que os «brutos matadores» o cortaram [...] São os túmulos de um rei português e de uma dama de corte, galega de nascimento, que tiveram amores e filhos: por razões políticas foi ela morta, provavelmente não por outras. São duas preciosidades de escultura e estatuária, infelizmente ofendidas por mutilações e depredações propositadas, que a magnificência do conjunto quase faz esquecer [...] Estes e outros túmulos, que hoje são apenas obras de arte [...] deviam, sempre que tal fosse possível sem ofender o espaço circundante, ser colocados a nível inferior, com degraus e deambulatório suficientemente amplo, para que de todos os ângulos pudessem oferecer-se aos olhos” (Saramago, 1995: 243).

Ainda na igreja e sobre um outro ícone, normalmente visitado, o retábulo do fundador da ordem, o escritor expressa-se da seguinte forma:

“Dramático é o estado em que se encontra o retábulo da Morte de S. Bernardo, esboroado e partido o barro. Mas é, mesmo assim, uma obra-prima. As figuras são lançadas com uma presença que talvez só esta particular matéria possa dar [...]” (Saramago, 1995: 244).

Já a Cozinha e o Refeitório dos monges alcobacenses, merecem-lhe os seguintes comentários:

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“Foi o viajante à cozinha e ao refeitório [...] São dois espaços grandiosos que vão a talhe com o conjunto conventual. O viajante distraiu-se com o cantar da água que sempre corre na cozinha, abriu de pasmo a boca e os olhos debaixo da gigantesca chaminé, e quando entrou no refeitório não conseguiu evitar que a imaginação lhe mostrasse os frades todos ali sentados, esperando com disciplina a pitança, e depois o pratejar das louças dos grossos jarros brancos, a mastigação estimulada pelo apetite, apetite avivado pelos trabalhos da horta, e enfim, ditas as últimas orações, a saída para o digestivo passeio no claustro [...]” (Saramago, 1995: 244).

Saramago acaba a sua visita a Alcobaça, referindo-se não só ao seu entorno, mas igualmente às transformações que este lugar conheceu:

“O viajante no adro, olha o largo em frente, os prédios, o morro do castelo. Esta vila nasceu e cresceu à sombra da abadia. Tem hoje os seus meios de vida próprios. Mas a sombra mantém-se, alastrada [...]” (Saramago, 1995: 245).

Nazaré

A Nazaré, lugar religioso, mítico e simbólico, despertou o interesse de alguns intelectuais dos séculos XIX e XX (Leitão, 2012). Os escritores e artistas debruçaram-se sobre temáticas como os perigos resultantes da faina marítima dos pescadores ou aspectos relacionados com o veraneio dos citadinos (tal como Ramalho Ortigão descreverá em As Praias de Portugal, Guia do Banhista e do Viajante, 1876).

Os trajes típicos da zona, folclorizados posteriormente no período da Ditadura Salazarista (1926-74), e o viver quotidiano das suas gentes foram igualmente descritos, pintados, fotografados, filmados, por ilustres viajantes. Actualmente, a Nazaré é mundialmente famosa pela prática de surf, graças ao também mundialmente famoso surfista Macnamara.

Raúl Brandão (1867-1930), um dos percursores do Simbolismo e do Existencialismo português descreve, como de um quadro se tratasse, em Os Pescadores (obra publicada em 1923), a sua aproximação à Nazaré:

“Do Valado à Nazaré são seis quilómetros, quase sempre através do [...] pinheiral de El-Rei [D. Dinis]. É um majestoso templo que não acaba e onde a solidão se torna palpável entre os troncos cerrados e sob copas espessas. Por fim o caminho desce, passando a Pedreneira, e avista-se lá em baixo a branca Nazaré e o mar apertado num vasto semicírculo de montes verde, que mergulham no azul os alicerces. Ao norte o panorama acaba de repente num paredão temeroso, que entra direito pelas águas e entaipa o céu. É um morro avermelhado e riscado, com vegetação pegajosa de urzes e de cardos e um penedo destacado na ponta – o bico do Guilhim. Lá em cima as paredes brancas duma aldeia árabe entre sebes de catos hostis – o Sítio.” (Brandão, 2010: 149-150).

Através das palavras de Brandão podemos imaginar, nos anos vinte, a faina marítima de homens, mulheres, animais, na praia da Nazaré:

“Desço à praia – ao fio de areia aconchado, cheio de mulheres que carregam peixe ou que o despejam ainda vivo nas grandes chalavaras, por entre barcos

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agrupados. Três juntas de bois correm sem cessar de batel para batel que abica, entrando na água e puxando-os para cima. Mais longe as netas arrastam sacos de carapau e de sardinhas, e no mar [...] balouçam-se [...] à tona de água, as grandes bóias de armações à valenciana, que os pescadores levantam de manhã e ao pôr do sol. Esparsos mais barcos, com lindos nomes: [...] Luz do Sol, Senhora da Memória, Mar da Vida. Até lá ao fundo pelo areal todo o dia e toda a noite se arrastam artes. [...] Está tudo preparado para a matança. Homens de vigia no mar em pequenos barcos, quando pressentem o cardume, dão sinal a outros postados no Sítio para que acudam os cercos [...] Vejo-os conduzindo as redes do arraial ou das cabanas para o barco; remendando-as ou secando-as, estendidas no chão ou sobre as recoveiras” (Brandão, 2010: 150).

O narrador também nos descreve os trajes típicos e modo como se comportam, homens e mulheres nazarenos (a estas foi-lhes dedicado um monumento, perto da praia, dada a importância do seu trabalho árduo):

“Vejo-os [...] fortes, denegridos, vestidos de escuro, camisola de lã e calça segura pela faixa preta enrolada seis vezes à volta da cinta, e na cabeça o barrete de carapinha com uma borla feita de duas ou três meadas de lã [...] Ingénuos e supersticiosos [...] Fixo as mulheres [...] São a vida desta terra. Surpreendo-as na labuta de todos os dias: carregando peixe, salpicando-o de sal e estendendo na areia sobre a palha o cação, o polvo, o carapau, para a seca [...] Baixas quase todas, de ancas largas e peitos sólidos [...] Língua de um poder expressivo inigualável [...] Vestem todas da mesma maneira, todas de preto. Lenço de pontas caídas; por cima o cabeção da capa de lã, que lhes chega um pouco abaixo dos quadris e as resguarda do frio e da salmoura; e sobre a capa um chapéu de feltro grosso com as abas reviradas e uma borla de seda ao lado [...] São elas que toda a noite, quando se pesca toda a noite, separam o peixe, o amanham, o secam no tendal e o levam para o armazém de salga. E de manhã põem-no a caminho das Caldas (20 km) ou Alcobaça (12 km) com o peso de duas ou três arrobas à cabeça. Infatigáveis [...] E o tempo ainda lhes sobra para cuidar dos filhos e trazer a casa limpa e esteirada [...] toda a gente afirma que a mulher da Nazaré é a alma desta terra [Portugal]” (Brandão, 2010: 157-159).

Raúl Brandão fala-nos igualmente do Sítio da Nazaré, do facto desta parte da vila estar na altura deserta (hoje em dia muito visitada pelos turistas, pela fantástica vista panorâmica), dando conta da paisagem do lugar:

“Antes de me ir embora vou lá acima ao Sítio. É uma aldeia branca e deserta, com o templo, a capela e o penedo onde se deu o milagre. Do alto deste grande morro descobre-se [...] um largo panorama – o mar infinito, a ampla baía formada pelos montes, a branca Nazaré ao pé da areia, a toalha do riozinho que se espraia e detém ao chegar à costa, e do lado da terra os eternos pinheirais, donde emerge o cone mais agudo de S. Bento, com a ermida e a guarida do vigia.” (Brandão, 2010: 160).

Branquinho da Fonseca (1905 - 1974), um dos fundadores da revista Presença (1927) e do modernismo presencista, criador de poesias, contos e romances, na sua novela Mar Santo (1952), dedicada à faina piscatória da Nazaré (local onde viveu), descreve-nos a vida e os costumes dos nazarenos, os seus barcos e aparelhos de pesca típicos, dando conta das

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dificuldades de entrar nesse mar, força da natureza que serve, não de entretenimento, mas de recurso e forma de vida, onde para o enfrentar talvez só “Nossa Senhora” lhes poderá valer:

“Estava um dia alegre de sol, mas as grandes ondas que rebentavam na praia enchiam o ar de uma humidade salgadiça. Não se sentia ali o vento; porém, fora da enseada, andava o mar coberto de carneiros brancos. O promontório alto [...] abrigava da nortada, formando a cala bem protegida desse lado [...] E as vagas nasciam ao longe, à ponta do farol [...] vinham enfolando e crescendo em linhas paralelas, até que envergavam altas, desabando com fragor e lambendo a areia, desfeitas em espuma de neve [...] Na borda da praia, junto à água, estava um barco a preparar-se para entrar ao mar. Os homens da companha, vestidos de escocês aos quadrados de muitas cores, passavam a longa rede de mão em mão, metendo-a para dentro do barco [...] O paredão, ao longo da praia, tinha-se coberto de gente que vinha ver. Há quatro meses que nenhum barco se atrevia a sair [...] Os que já tinham saltado para dentro do barco, «armavam» os remos nas enxamas, sentados na tábua rija. Dois, ainda de fora, costas contra a ré, esperavam da babugem duma onda, o palmo de água que ajudasse a puxar. Do fundo chato, bojo largo, a proa levantada em grande bico, era uma embarcação pesada e difícil de manobrar. Até que veio uma onda mais estendida e arrancou [...] Os últimos homens saltaram para dentro [...] E o barco foi avançando devagar, batido pelas ondas que lhe levantavam a proa com pancadas brutas [...] Ao longo da praia, a muralha estava negra de peixeiras e de pescadores [...] Se aquele entrasse, também os outros poderiam tentar… As mulheres embuçadas nas capas negras, rezavam, em voz surda, a lengalenga. Os homens tinham emudecido, de olhos fitos no barco [...] De repente o barco deu uma volta virando a proa à terra, e na crista de uma vaga veio encalhar na praia [...] A companha já virava outra vez o barco para o mar [...] Mas o barco voltava outra vez para terra [...] O Ti Bártolo murmurou [...] O mar engana Cristo…” (Fonseca, 1971: 41- 46).

Visto que os escritores mais ligados ao laicismo do século XX aludem, de uma forma geral, ao milagre de Nossa Senhora da Nazaré e à história do Santuário, mas sem os explicitarem, eis o que Ramalho Ortigão nos diz acerca dos mesmos, em 1876:

“A imagem da Senhora da Nazaré, cuja capela foi edificada, em 1370, pelo rei D. Fernando, foi tida durante muito tempo como uma das mais milagrosas da cristandade. É de madeira pintada, tem palmo e meio de altura e dizem que foi trazida da Nazaré para Mérida, onde esteve algum tempo, e de Mérida para o lugar onde actualmente se acha. A primeira foi construída por D. Fuas Roupinho [...] no tempo de D. Afonso Henriques, A imagem estava a esse tempo colocada entre duas rochas no sítio chamado a Memória. [...] Sabem certamente a história do milagre que originou a gratidão de D. Fuas [...] Ele andava caçando no dia 14 de Setembro de 1182. A manhã estava enevoada [...] Os cães levantam um veado que parte à desfilada perseguido pela matilha e seguido por D. Fuas. De repente o solo desaparece debaixo das mãos do cavalo de D. Fuas, que havia chegado à orla do grande rochedo cortado a pique na altura de 200 braças sobre o mar. D. Fuas grita pela imagem da Senhora que ele tinha visto na Memória. O cavalo empina-se e estaca, tendo o cuidado de marcar a rocha com o vestígio da ferradura. D. Fuas apeia-se e vem dar graças à virgem por havê-lo livrado de se

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despenhar no esbarradouro. O veado pela sua parte desapareceu, facto que se deduziu que ele não era nem mais nem menos que o vivo demónio disfarçado em caça. Desde que se erigiu a capela edificada por D. Fuas, os milagres tornaram-se consecutivos e extraordinários.” (Ortigão, 1943: 220-221)

Embora a Geografia do local não tenha sofrido grandes alterações nas últimas décadas, já o mesmo não se pode afirmar sobre os comportamentos dos turistas, ou sobre as práticas laborais/populares que se vão transformando com o desenvolvimento da sociedade. Saramago dá conta de ambos:

“Olhar e passar, passar e olhar. [...] devia ficar para ver os pescadores irem ao mar e do mar voltarem, oxalá que todos; devia saber a cor e o bater das ondas; devia puxar os barcos [...] Assim, é apenas um viajante que passa [...] com um Sol tão luminoso que deslumbra, muitas pessoas passeando na marginal [...] e uma procissão de automóveis besourando [...] Resolve por isso ir ao Sítio, ver lá do alto o casario [...] a suave curva da praia, o mar sempre trazendo espuma, a terra sempre desfazendo os fios dela. Também aqui não faltam pessoas a olhar. Havia de ter a sua graça juntar o que cada uma delas vê, comparar tantos mares, tantas Nazarés, e concluir depois que ainda não foram olhos suficientes. (Saramago, 1995: 241-242).

Batalha

O Mosteiro de Santa Maria da Vitória4, normalmente designado como Mosteiro da Batalha, foi mandado edificar por D. João I, como voto de agradecimento à Virgem pela vitória do exército português, sobre o castelhano, na batalha que se travou no dia 14 de Agosto de 1385, véspera do dia da Assunção de Nossa Senhora. Segundo o cronista Fernão Lopes (Crónica de D. João I), o exército castelhano seria composto de mais de trinta mil homens, enquanto o português contaria com cerca de seis mil e quinhentos (Proença, 2015). Só a estratégia defensiva, criada pelo Condestável do reino, D. Nuno Álvares Pereira5 (actualmente, S. Nuno de Santa Maria), com a ajuda dos ingleses, permitiu uma vitória total aos portugueses, ameaçados com a perda da sua independência pelo rei Juan I de Castela. Fernando Pessoa (1888-1935), dada a importância desta figura histórica, dedica-lhe o poema “Nun` Álvares Pereira”, na Mensagem (1934). Ouçamo-lo, de preferência, junto da sua estátua equestre, que se encontra no exterior do Mosteiro:

“Que auréola te cerca? / É a espada que volteando, / Faz que o ar alto perca / Seu azul negro e brando. /[...] Mas que espada é que, erguida / Faz esse halo no céu? / É Excalibur, a ungida, / Que o Rei Artur te deu. / [...] `Sperança consumada, / S. Portugal em ser, / Ergue a luz da tua espada / Para a estrada se ver!” (Pessoa: 1979: 45).

4 Em 8 de Maio de 2016, o Parlamento português aprovou por unanimidade o reconhecimento do estatuto de panteão nacional ao Mosteiro de Santa Maria da Vitória e ao Mosteiro dos Jerónimos. 5 D. Nuno Álvares Pereira destaca-se já como combatente, nas guerras que o rei D. Fernando I trava com Castela, e posteriormente, no reinado D. João I, não só na decisiva Batalha de Aljubarrota, mas também na de Valverde e na de Atoleiros. Nesta ensaia-se, pela primeira vez, a famosa “táctica de guerra” do “quadrado”, “nova para Portugueses e Castelhanos. Embora os Ingleses adoptassem um sistema semelhante, em muitos dos seus pormenores, o quadrado português é fruto do génio guerreiro de D. Nuno” (Queirós, 1958: 64).

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Já Miguel Torga, nos Poemas Ibéricos, dedica-lhe um poema, onde nos dá conta da sua inicial faceta guerreira e da sua posterior abdicação às lides guerreiras, para se converter num frade carmelita, dedicado à causa divina:

“Pátria – é um palmo de terra defendida. A lança decidida / Risca no chão / O tamanho do nosso coração / E todo o inimigo que vier / Tem de retroceder / Com a sombra da morte no pendão. [...]/ Eu assim fiz, / surdo às razões da força e da fraqueza. / (A liberdade não discute os meios / De se manter.) / Mais difícil era a empresa/ Que a seguir comecei: / Já sem cota de malha combater / Por outro reino e por outro Rei!” (Torga, 2000: 710).

No seguimento das vitórias sobre Castela e do voto do rei português, foi construído um grande templo de oração, com um mosteiro dominicano anexo, em estilo gótico. A obra iniciou-se em 1388, tendo como principais mestres o arquitecto português Afonso Domingues (1388-1402), a que se seguiram o estrangeiro mestre Huguet (1402-1438), o português Martim Vasques (1438-1448) e o mestre Fernão de Évora (1448-1477). Posteriormente, seguir-se-ão Mateus Fernandes, mestres Guilherme, João Rodrigues (vidreiro) e João de Arruda (estes últimos até cerca de 1490), tendo todos trabalhado no estaleiro antes de assumirem funções mais relevantes (Pereira, 2014).

De destacar, no monumento, a Capela do Fundador (obra de Afonso Domingues), panteão régio de D. João I, D. Filipa de Lencastre e dos seus filhos (D. Pedro, D. Henrique e o «Infante Santo», D. Fernando) e o panteão do rei D. Duarte, seu filho primogénito, conhecido como Capelas Imperfeitas, dado que não foram terminadas. As obras arrastaram-se pelos séculos XV e XVI. A partir de 1834, com a extinção das ordens religiosas e da apropriação dos bens do clero pelo Portugal liberal, o mosteiro virá a perder muito da sua simbologia religiosa.

Como afirma Paulo Pereira: “[…] mestre Afonso Domingues não finalizou a obra, deixando, no entanto, configurado o plano e fundações do templo, com excepção [...] das partes mais elevadas, das abóbadas e de boa parte do claustro. No interior é possível perceber a intervenção do português nas abóbadas das capelas, dotadas de grandes chaves de decoração com temas naturalistas. Os capitéis devidos à empreitada de Domingues possuem decoração vegetalista e antropomórfica (cabeças e anjos) [...] foi ao mestre estrangeiro [Huguet] que coube finalizar a famosa sala do capítulo, de planta quadrada e coberta por uma abóbada de estrela de um só voo. Esta abóboda é, efectivamente, uma obra de notável técnica construtiva gótica [...].” (Pereira, 2014: 361-362).

Citamos o especialista Paulo Pereira, porque a questão de saber quem construiu a abóbada da Sala do Capítulo tem gerado controvérsias. Apesar de alguns dos recentes estudos apontarem como responsável da construção da difícil estrutura Huguet, a lenda que a precede há cinco séculos atribui, inversamente às recentes explicações eruditas, a sua feitura ao arquitecto Afonso Domingues. A lenda conta que, dada a idade avançada e a cegueira do mestre português, vai ser Huguet a assumir os trabalhos da Batalha, de acordo com as ordens de Domingues, com excepção desta abóbada, e construirá uma de acordo com os seus planos. A abóbada, no entanto, terá sido mal construída e desabaria. O rei D. João I entrega então novamente a obra ao mestre português, que a termina no prazo de quatro meses. No dia da sua inauguração, o mestre decide ficar no centro da Sala, debaixo dela, durante três dias e três noites, sem se alimentar, para se certificar que não caía. Dada a idade avançada, após

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comprovar a segurança da mesma, morreu, pronunciando, diz-se, as seguintes palavras: “A abóbada não caiu, a abóbada não cairá”. Esta expressão, ainda hoje é utilizada, quando se pretende dizer que algo está sólido e bem feito.

O historiador e escritor português Alexandre Herculano (1810-1877), nas suas Lendas e Narrativas (1851), imortaliza na Literatura aquilo que Domingues eternizará, de acordo com a sua narrativa, na Arquitectura. Uma das lendas, “A Abóbada” (dividida em cinco partes), é dedicada ao projecto arquitectónico da Batalha, sobretudo no que diz respeito à construção da Sala do Capítulo. Contudo, Herculano não deixa de evocar o feito bélico de 1385 e os seus intervenientes, ou a lendária e patriótica padeira da “gótica vila de Aljubarrota”, a “tia Brites”, que terá matado sete castelhanos que lhe iam assaltar o forno do pão.

Na primeira parte, “O Cego”, Herculano dá conta que o rei D. João I vinha de Lisboa, no:

“dia 6 de Janeiro do ano da Redenção de 1401 […] para assistir ao auto de adoração dos reis, que com grande pompa se havia de celebrar nessa tarde dentro da igreja e diante do rico presepe que os frades dominicanos tinha alevantado junto do arco da Capela do Fundador, então apenas começada [...] e de que de caminho veria a Casa do Capítulo, a que [...] mestre Ouguet mandou tirar os simples que sustentavam a abóbada” (Herculano, 1981: 167-168 e 171-172).

Apresenta o “arquitecto” Afonso Domingues como um “velho de venerável aspecto” (Herculano, 1981: 170), mas magoado pelo ostracismo a que tinha sido votado pelo rei, a quem servira não só ali, mas também como combatente na Batalha de Aljubarrota. Este ostracismo dever-se-ia aos conselheiros que haviam instigado o rei, no sentido de o mandar abandonar a obra (Herculano, 1981).

Na segunda parte, intitulada “Mestre Ouguet”, “um irlandês, homem mediano em quase tudo”, (Herculano, 1981: 183), é interpelado pelo rei D. João I, “eleito por uma revolução e confirmado por cinquenta vitórias”, como “o mais popular, o mais amado e o mais acatado de todos os reis da Europa” (Herculano, 1981: 181). Este pergunta a Mestre Huguet, antes de visitar a Sala do Capítulo, se havia consultado Afonso Domingues sobre a mudança feita no projecto inicial, ao que o outro responde que não. O rei e os “cavaleiros do séquito real”, após a visita à Sala, abandonam a mesma.

Na terceira parte, “O Auto”, damos conta da celebração, na Igreja de Santa Maria da Vitória, do auto de adoração dos reis magos, interrompido por um:

“ruído semelhante ao de cem bombardas […] medonho estampido da banda do claustro [...] A abóbada do Capítulo acabado havia vinte e quatro horas, tinha desabado em terra” (Herculano, 1981: 200-201).

Na quarta parte, “Um Rei Cavaleiro”, D. João I chama Afonso Domingues e pede-lhe que continue a obra, ao que Afonso cede, visto que este é o “sonho querido de quinze anos de vida entregues a cogitações”. Solicita ao rei que lhe restituam os seus “oficiais e obreiros portugueses”, afastados por Huguet, visto que “português” é ele e “portuguesa a sua obra” (Herculano, 1981: 201-11). Por voto feito a D. João I, compromete-se ainda a terminar a abóbada da Sala dos Capítulo em quatro meses.

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Na quinta parte, “O Voto Fatal”, sabemos que:

“Eram 7 de Maio da era de 1439 [...] a obra estava acabada, mas [...] o arquitecto não quisera tirar os simples senão na presença de el-rei. [...] Antes de partir de Lisboa, D. João I mandara sair dos cárceres em que jaziam bom número de criminosos e cativos castelhanos, que, com grande pasmo dos povos [...] tomaram o caminho da Batalha [...] el-rei pensou que, assim como a abóbada do Capítulo desabara, da primeira vez [...] assim agora podia derrocar-se em cima dos obreiros [...] Solicito pela vida de seus vassalos [...] não quis senão que se arriscassem senão vidas condenadas [...] D. João I [...] antes do meio-dia apeou-se à porta do mosteiro. [...] As portas da Casa do Capítulo estavam abertas [...] sentiu-se um sussurro entre o povo, que girava livremente [...] chegavam a gente que devia tirar os simples [...] Misericórdia! – bradou toda aquela multidão, ao passar por el-rei [...] Convosco a tenho [...] disse el-rei comovido. – Se tirardes os simples [...] e a abóbada não cair sobre vós, soltos e livres sereis. [...] Neste momento chegaram à porta do Capítulo, trazendo sobre uma paviola uma grande pedra quadrada [... o arquitecto disse] Assentai-[a] bem debaixo do fecho da abóbada [...] Senhor rei, é chegado o momento de vos declarar o meu segundo voto [...] jurei que, assentado sobre a dura pedra, debaixo do fecho da abóboda, estaria sem comer nem beber durante três dias, desde o instante em que se tirassem os simples. De cumprir meu voto ninguém poderá mover-me. [...] Esta é a minha firme resolução. [...] Três dias se passaram assim. Mestre Afonso, assentado sobre a pedra fria [...] a abóbada estava firme [...] As últimas palavras do mestre foram estas: «A abóbada não caiu, a abóbada não cairá!» [...] O arquitecto, gasto de velhice, não pôde resistir ao jejum absoluto a que se condenara.” (Herculano, 1981: 211-224).

Embora na lenda o arquitecto português, ainda em vida, tenha sugerido que fosse David Huguet (cavaleiro que teria acompanhado D. Filipa de Lencastre, mulher de D. João I, a Portugal) o seu continuador na obra, dando continuidade ao seu projecto, a serem verdadeiras as recentes investigações, não podemos deixar de recordar as proféticas palavras postas na boca de Afonso Domingues pelo romântico Herculano, quando lhe teria sido retirada a obra:

“Este edifício era meu: porque o gerei; porque o alimentei com a substância da minha alma: porque necessitava de me converter todo nestas pedras, pouco a pouco, e de deixar, morrendo, o meu nome a sussurrar perpetuamente por essa colunas e por baixo dessas arcarias. E roubaram-me o filho da minha imaginação [...] mas o nome do mestre Ouguet enredar-se-á no meu ou, talvez, sumirá este no brilho da sua fama mentida…” (Herculano, 1981: 176).

Sobre esta lenda e esta Sala, afirma Saramago, habituado que está, na sua Viagem, a estabelecer vínculos entre a Literatura e os lugares que visita:

“Ao entrar na Sala do Capítulo, tem na lembrança aquelas páginas de Alexandre Herculano, que o impressionaram na infância: o velho Afonso Domingues, sentado sob a pedra de fecho da abóbada, os serventes retirando as escoras e o cimbre, em ânsias não fosse desmoronar-se a construção, e, da banda de fora, espreitando pela porta ou pelas janelas laterais, a multidão de obreiros, com algum fidalgo à mistura, em ansiedade igual; «cai, não, cai»

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[...] e enfim, passando o tempo e sustentando-se o grande céu de pedra, o dito de Afonso Domingues: «A abóbada não caiu, a abóbada não cairá». [...] É um espaço magnífico este, lugar de outra batalha, aquela que transforma pedras inertes em jogos de força finalmente equilibradas. O viajante vai colocar-se debaixo do fecho da abóbada, no lugar onde esteve Afonso Domingues. [...] É a nossa prova de confiança. Estão ali dois soldados vivos a guardar um soldado morto. É um arquitecto morto que guarda os soldados e o viajante.” (Saramago, 1995: 239-240).

Na última frase, Saramago refere a Lápide que evoca os soldados portugueses caídos na 1ª Guerra Mundial (1914-1918). Da Sala do Capítulo, o escritor passa, primeiro ao claustro real e ao claustro de D. Afonso V (obra de Fernão de Évora), de seguida, às Capelas Imperfeitas (panteão de D. Duarte), e, por fim, deslumbra-se, de novo, com o exterior do monumento:

“[... no claustro real] a riqueza plástica é muito mais assegurada pelos factores decorativos do que pelos factores estruturais [...] É a exuberância manuelina que acrescenta à gravidade gótica o valor cenográfico [… o claustro de D.Afonso V] é o que “mais fundamente impressiona e comove o viajante [...] o panteão de D. Duarte, absurdamente, mas sem remédio, chamado Capelas Imperfeitas. É fortuna nossa que o panteão não tenha sido concluído. Teríamos uma abóbada por cima das cabeças, teríamos uma visão sem surpresa [...]. Assim, há uma promessa que permanecerá como tal [...] No espaço livre, entre as capelas, voam explosivamente vivas as andorinhas, gritando como se estivessem furiosas e é apenas a exaltação do Sol.” [… no exterior] Contempla o pórtico com as suas arquivoltas povoadas de figuras de anjos, profetas, reis, santos, mártires, cada um ocupando o seu lugar na hierarquia; o tímpano que mostra Cristo e os evangelistas; as estátuas dos apóstolos sobre mísulas figurativas que são obras-primas. O viajante recua, abraça o conjunto como pode e [...] retira-se contente” (Saramago, 1995: 238-241).

Fátima

Segundo o Santuário de Fátima (s.d.) e Ambrósio (2000), a 13 Maio de 1917, a Virgem anuncia-se, transbordando a luz de Deus, a três crianças/videntes; Lúcia (10 anos), Francisco (9 anos) e Jacinta (7 anos).

A Senhora do Rosário convoca insistentemente os videntes à oração, o que enraizará a sua intimidade com Deus. Numa pedagogia humilde da fé orante, o crente é convidado a acolher os mistérios do dom maior do Cristo no seu coração e a deixar-se interpelar pelo seu amor.

Na última aparição, a 13 de Outubro desse mesmo ano, estando presentes cerca de 70.000 pessoas, a Senhora pediu que lhe construíssem, nesse local (Cova da Iria), uma capela em Sua honra e que não ofendessem mais a Deus Nosso Senhor, por já estar muito ofendido. Depois da aparição, todos testemunharam o milagre do sol (já prometido às crianças, nas aparições de Julho e Setembro): o sol, com a aparência de um disco de prata, podia olhar-se sem sofrimento e girava sobre si mesmo como uma roda de fogo.

Desde 1917, o número de peregrinos, a acorrer à Cova da Iria, aumentou de ano para ano. Em cerca de cem anos, o lugar ermo, onde não existia uma única casa, transformou-se

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numa cidade (com cerca de dez mil habitantes) cuja função principal é a de acolher o fluxo dos peregrinos/turistas religiosos nacionais e internacionais que já ultrapassa os quatro milhões.

Embora em qualquer dia do ano, o crente possa participar em actividades religiosas no santuário, as cerimónias de 12/13 de Maio e 12/13 de Outubro são as mais marcantes e as que mais originaram a inspiração de alguns escritores.

Antero de Figueiredo (1866-1953) escritor que inicia a sua carreira literária no período do Decadentismo- Simbolismo do final do século XIX, dedica algumas das suas narrativas a mitos como o de Pedro e Inês ou D. Sebastião, Rei de Portugal, 1554-1578. Em Fátima (1936) descreve “A Procissão dos Lumes”:

“A agitação é crescente; crescente o número das velas acesas, em grupos dispersos que, cantando, buscam juntar-se uns aos outros e aproximar-se da capelinha das Aparições, diante da qual ardem agradecimentos e preces, em enormes castiçais de ferro, e se agrupam centenas de devotos humildes, de joelhos, mãos erguidas, olhos súplices e bocas que piedosamente ciciam seus rosários em toada bem dita [...] Cada vez mais aumenta o movediço arraial das luzes devotas [...] Agora, a Cova é uma ondulada campina de flores luminosas – primavera de lumes onde [...] brotam, acolá e além, os cantos ardentes das saudações à Virgem Santíssima [...] Ave, Ave, Ave, Maria! [...] Organizado tudo, eis o grosso exército de peões devotos a deslocar-se lentamente. Todas estas gentes vão desfilando atrás das suas bandeiras, dos seus estandartes, dos seus pendões, das suas arvoradas caixas luzernas com os nomes das províncias ou lugares a que os romeiros pertencem. Os clarões das velas lampejam milhares de rostos de pessoas de todas as classes sociais e de todas as idades: fidalgos, plebeus, ricos, pobres, velhos novos e crianças. Apresentam-se com os seus trajos de cidade, de aldeia, de serra, do campo ou do mar [...] Uns vão dobrados, preocupados, olhos por terra; os que vieram, de longe, rogar à Virgem Santíssima pela saúde de entes queridos que lá nas suas aldeias jazem doentes: é a devoção – Esperança. Outros são rostos alegres, da alegria piedosa que chora, dos que vieram, em pessoa, agradecer a Nossa Senhora finezas dispensadas: é a devoção – Gratidão. Outros, ainda, cheios de Fé, derramam a sua piedade pelos demais, pedindo ao Céu que os atenda: é a devoção – Caridade [...] E o numeroso, luminoso, sonoroso e compacto exército de humildes cristãos lá vai passando, rumorosamente. Não acaba! É enorme: milhares de pessoas cantam [...] Ave, Ave, Ave Maria!” (Figueiredo, citado em Gouveia, 1965: 218-219).

O escritor monárquico, saudosista e integralista, António Correia de Oliveira (1879-1960), transformado num dos poetas oficiosos do Estado Novo (1926-1974), cujos textos escolhidos figuraram nos livros oficiais/nacionais do ensino primário e secundário (que reflectiam as divisas de Salazar, “Deus, Pátria e Família”), dá-nos conta, num desses manuais, do adeus a Nossa Senhora, em Fátima, outro dos momentos marcantes das festividades aniversariantes. Ouçamos a pequena quadra:

“Mar de gente, lenços brancos / Tal como a espuma do mar, / Mãos em onda, cada onda / Um lenço branco a acenar…” (Oliveira, citado em Gouveia, 1965: 219).

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No entanto, nem todos se deixam tocar pelo ambiente de fé (seja o das construções ou o do fervor dos crentes), optando por descrever o local com uma visão mais pragmática do que dogmática.

No exterior do santuário, Saramago, como muitos visitantes de Fátima, fica chocado com o excesso de comércio, nomeadamente, com a falta de estética e de arte que está associada à maioria dos objectos para venda:

“E vai protestando um pouco de indignação, um pouco de mágoa, um pouco de enfado diante do estendal de comércio das inúmeras lojinhas que, aos milhões, vendem medalhas, rosários, crucifixos, miniaturas do santuário, reproduções mínimas e máximas da Virgem” (Saramago, 1995: 233).

Maria Filomena Mónica (1943-), autora de vários livros de carácter histórico e sociológico, em Turista À Força (1996), na sua crónica “Fátima fora de horas”, também refere aspectos comerciais, focando algumas das estratégias de marketing de qualquer grande santuário:

“Hoje, o que impressiona é a forma espectacular como o turismo religioso está montado. Os hotéis, os centros comerciais, os parques de estacionamento são capazes de albergar milhares de peregrinos. De um local ermo, Fátima tornou-se num dos maiores centros de atracção turística do país, só comparável ao Algarve. Apesar dos anátemas contra o mundo moderno, a Igreja aprendeu a usar as suas técnicas, dos museus de cera à televisão, dos altifalantes à iluminação. Dos relatos televisivos às imagens fluorescentes. O dinheiro, visivelmente, abunda. Muito se deve à contribuição dos fiéis, mas, ao longo dos anos, o poder público também ajudou.” (Mónica, 1996: 110-111).

Se o exterior não entusiasmou o nosso incansável viajante Saramago, o espaço intramuros do Santuário também não o empolga. Assim, descreve a sua experiência de forma pouco abonatória:

“Hoje, a imensa esplanada é um deserto. Só lá ao fundo, ao pé da Capela das Aparições, se juntaram algumas pessoas, e há pequenos grupos que se aproximam ou afastam distraidamente […] O viajante tem opiniões, e a primeira é de que a estética, aqui, serviu muito mal a fé […] Os construtores da mais humilde igrejita românica sabiam que estavam a levantar a casa de Deus; hoje satisfaz-se uma encomenda e um caderno de encargos […] só a fé poderá salvar Fátima, não a beleza que não tem. O viajante, que é impenitente racionalista, mas que nesta viagem já muitas vezes se emocionou por causa de crenças que não partilha, gostava de poder comover-se também aqui. Retira-se sem culpas.” (Saramago, 1995: 233).

Reflexões finais

Neste artigo, pretendemos conjugar a informação turística estandardizada, que normalmente é proporcionada aos turistas que visitam determinado lugar, visando apenas o seu património cultural e/ou religioso, com a viagem literária, através da leitura, in situ ou nos trajectos em autocarro, de textos de escritores portugueses. Desta forma, tentámos juntar ao circuito turístico tradicional, a componente literária tornando-o, assim, num circuito turístico-literário, passível de ser apreciado quer por viajantes e turistas literários, quer pelos turistas

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que, no âmbito de um circuito turístico regular, poderão beneficiar, igualmente, desta componente cultural que é a Literatura.

No corpus seleccionado, a nível literário, escolhemos escritores viajantes, que expressaram em obra narrativa e poética, os seus olhares/sentimentos sobre os espaços e lugares aquando das suas deambulações pelo território português, proporcionando-nos informações sobre, entre outros, História de Arte, Geografia, Etnografia, Antropologia.

Evocando lendas, nomes de artistas e escritores do passado, Camões, Herculano, Pessoa ou Torga transportaram-nos para um Portugal mítico-lendário. Outros, conduziram-nos para o Portugal turístico, que desponta já no final do século XIX, ainda durante o período da monarquia, cujo labor foi continuado durante a Iª República (1910-1926), como foi o caso desse ilustre membro da Geração de 1870, Ramalho Ortigão, escritor de obras, simultaneamente literárias, críticas, e também propagandísticas.

No período da Iª República, momento em que se pretendia consolidar a democracia, os escritores portugueses, como Raúl Brandão ou Branquinho da Fonseca, sempre fascinados com a proximidade deste mar que é um oceano, descrevem-nos uma Nazaré pré-turística, chamando a atenção, para o viver dos nazarenos. Este quotidiano, habitado de mágoas e temores, mas também de trajes e cores, vai ser artificialmente transformado, no período da Ditadura, criando-se a imagem de uma Nazaré para “turista ver”. Imagem essa que Saramago percepciona, mas que não o ilude, lembrando-nos o escritor o que de mais fundo nela habita. Na realidade, toda a sua Viagem se vai desenrolar através da observação de Portugal, que irá da casca mais superficial ao núcleo (da cebola, como diriam os surrealistas portugueses) mais profundo que o constitui.

Já escritores como Antero de Figueiredo ou António Correia de Oliveira preferiram transmitir por palavras as preces e devoção do povo simples, sem se interrogarem sobre a sua participação no fortalecimento do imaginário de Fátima como destino religioso. Papel que outros desempenharam, como Filomena Mónica ou Saramago, ao refutarem a crença, mas não a evidência do destino turístico.

Se já acreditávamos que um circuito turístico pudesse ser mais do que da transmissão de informação sobre os lugares e espaços, com a investigação que permitiu a escrita deste artigo, passámos a estar cientes de assim ser. No decorrer das visitas, ou nos percursos em autocarro, a leitura de textos literários pode ser uma mais-valia para o discurso dos profissionais de turismo, possibilitando interpretações e visões que transportarão os turistas para além da realidade observada.

O nosso circuito, a nossa viagem termina aqui, mas aqui recordamos igualmente a palavra do poeta: “[…] Em qualquer aventura / O que importa é partir, não é voltar” (Torga: 2000: 651).

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