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Acerca de partituras e gravações no ensino da interpretação musical
direcionado a violonistas eruditos iniciantes
On the use of music scores and audio recordings when teaching musical
interpretation to classical guitar students
Gilberto Stefan
UFRR - Universidade Federal de Roraima
Resumo: Este artigo trata da utilização de partituras e gravações como recursos no processo de construção da
interpretação musical em violonistas eruditos iniciantes. Com base no referencial teórico desenvolvido pelo
filósofo alemão Martin Heidegger, em seu texto A Origem da Obra de Arte (1977), aliado a uma breve revisão
de literatura sobre interpretação musical ocidental, desenvolve-se um estudo sobre o que poderia ser a
interpretação apoiada nos recursos de partitura e gravação em áudio. Tem por finalidade a reflexão de questões
relacionadas à interpretação musical no violão erudito, bem como sobre seu ensino.
Palavras-chave: interpretação musical, violão erudito, pedagogia da performance, filosofia.
Abstract: This article focuses on the use of music scores and recordings as learning resources in the process of
constructing classical guitar students` own musical interpretation. Based on the theoretical references given by
German philosopher Martin Heidegger, in his A Origem da Obra de Arte (1977), together with a brief review of
Western literature on musical interpretation, we study what interpretation can be like when supported by the
resources of music scores and audio recording. Our aim is to reflect on the issues concerning musical
interpretation for the classical guitar, as well as for the teaching thereof.
Key-words: musical interpretation, classical guitar, performance-pedagogy, philosophy.
Introdução
Músicos iniciantes comumente buscam e elencam outras pessoas como referencial
artístico durante seu processo de construção musical individual. Tais referências podem vir a
ser um professor de instrumento ou um artista. Em muitos casos, a referência maior é algum
intérprete renomado relacionado a seu instrumento, e que, não raramente, lhes chega ao
conhecimento por meio de gravações em áudio. De todo modo, nesse processo de busca de
referências, é muito comum que se deixem seduzir pela excelência do trabalho alheio e que
menosprezem e ignorem suas próprias ideias acerca da música a ser estudada, podendo ainda
ser, para agravar a situação, estimulados a prosseguir nessa conduta por professores menos
experientes no ensino da interpretação musical. Também é muito comum que passem a
adotar, em contrapartida, uma postura imitativa do discurso musical absorvido de suas fontes
de referência. Isso por um lado é um sinal claro de admiração e reconhecimento, mas por
outro, não deixa de apresentar um sinal, também claro, de imaturidade musical que, se
prolongado, impossibilitará uma integração e desenvolvimento artístico do aluno com a
música.
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Partindo desse quadro, este artigo apresenta uma investigação acerca da
interpretação musical e seu ensino, direcionado a estudantes iniciantes de violão erudito.
Sobremaneira, busca responder a algumas questões: até que ponto, para um violonista erudito
iniciante, é benéfico apoiar-se em interpretações prévias de uma obra musical a ser estudada,
quando se tem o intuito de construir uma interpretação própria da mesma? Seria interessante,
para esse aluno, construir uma interpretação baseada somente em recursos de áudio, recursos
esses que expressam, além de uma ideia cristalizada da interpretação de um determinado
artista em um determinado espaço-tempo, um ponto de vista único acerca de uma determinada
obra? E mais, até que ponto a condição acima citada influenciaria positivamente num estágio
inicial de formação filosófico-interpretativa-musical de um aluno? Por fim, enquanto músicos
eruditos, resta ainda uma última pergunta, mas não menos relevante: qual a função da
partitura em todo este processo?
É com base nestas reflexões que se propõe um pensar acerca da interpretação
musical, do papel do intérprete nesse fazer musical em pleno séc. XXI e, finalmente, da “real”
e possível contribuição que professores de violão poderiam dar à arte por meio do ensino do
instrumento aos jovens de hoje.
Acerca da construção de uma identidade artística e interpretativa
A construção da interpretação de uma obra de arte passa, impreterivelmente, pela
pergunta do que seja uma obra de arte e do que seja um artista. Sobremaneira, passa pela
pergunta do que seja arte. Martin Heidegger, em ensaio datado de 1950 e publicado sob o
título “A origem da obra de rte”, já se referia a essa questão da seguinte forma:
A origem de algo é a proveniência da sua essência. A pergunta pela origem da obra
de arte indaga a sua proveniência essencial. Segundo a compreensão normal, a obra
surge a partir e através da atividade do artista. Mas por meio e a partir de que é que o
artista é o que é? Através da obra; pois é pela obra que se conhece o artista, ou seja:
a obra é que primeiro faz aparecer o artista como um mestre da arte. O artista é a
origem da obra. A obra é a origem do artista. Nenhum é sem o outro. E, todavia,
nenhum dos dois se sustenta isoladamente. Artista e obra são, em si mesmos, e na
sua relação recíproca, graças a um terceiro, que é o primeiro, a saber, graças àquilo a
que o artista e a obra de arte vão buscar o seu nome, graças à arte (HEIDEGGER,
1977, p.11)
A partir desse postulado de Heidegger, apresenta-se uma proposição do que seja
um artista, sua relação direta com a obra de arte e a relação de ambos com a arte. Desse modo,
reavaliam-se os conceitos comumente depositados nestes três componentes, capacitando-nos,
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assim, a pensar sobre a origem da obra de arte, seus princípios fundantes e as relações
existentes entre compositor, partitura (suporte material) e intérprete, se deslocarmos para o
campo da música tais questionamentos.
A arte se encontra tão somente na obra de arte, sendo a sua origem o artista
criador e vice-versa. A obra de arte é produto da manifestação daquilo que se encontrava
oculto. Poesia há no momento em que, por meio do trabalho criador de um artista - quando
assume uma postura que busca ir além dos limites das convenções conceituais - instala-se na
obra de arte uma cultura que lhe é própria de significação e, por isso mesmo, desvela-se,
constituindo realidade.
Para tanto, o artista tem na imaginação e em seu domínio técnico os principais
agentes condutores de realização. No entanto, não devemos confundir o uso da técnica, com
arte. Não é por meio da análise comparativa da técnica de compositores que se consegue
avaliar o grau artístico inerente a cada um deles. Quando muito, consegue-se delimitar suas
“escolas” e suas respectivas técnicas. Nesse sentido, a arte transcende. Transcende a técnica
bem como o resultado material que se apresenta, encerrado em uma forma específica. Tão
pouco há arte em um ente funcional, pois a arte não tem função em um sentido de uso, de
serventia. Se ainda assim, fossemos obrigados a atribuir uma função à arte (o que não somos e
erroneamente o fazemos), seria a de reinventar a realidade que nos cerca, criando “novas”
realidades.
Sendo tão visceral a relação obra/criador, e tendo por senso comum em música
que quem cria é quem compõe (um compositor), cabe a pergunta: e o papel de um intérprete?
Qual seria sua relação, mediante tais fatos, para com a obra de outrem? No entanto, a resposta
a essa pergunta exige uma digressão acerca do universo da interpretação musical.
Este artigo limita-se a ponderar, pontualmente, sobre o ensino e a construção de
interpretações de obras escritas, especificamente para o violão erudito, com o auxílio de
gravações e partituras. No entanto, o que seria “violão erudito”?
Sem pretensões a entrar em uma discussão inócua e prolongada em relação a
terminologias - discussões que não pertencem ao escopo deste trabalho, e, contudo, tendo
consciência de que é necessária uma classificação que vise atender a um pensamento coletivo
sobre o conceito que envolve a última pergunta, limitamo-nos a tentar classificar o conceito
de “violão erudito” em analogia ao conceito de “música erudita”. Vale ressaltar que, pelo
senso comum, toma-se, o conceito de música erudita como análogo ao de “música clássica” e
que aqui, mais uma vez, não cabe maiores aprofundamentos sobre a diferença de significado
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entre essas nomenclaturas. Tenha-se tão somente em vista que, para Nikolaus Harnoncourt, o
conceito de música erudita é análogo ao seu conceito de “música histórica”.
Música erudita (histórica) ou “música antiga” é, para Harnoncourt (1988, p.14),
“[...] qualquer música que não tenha sido composta pelas gerações atualmente vivas”. Assim,
define-se como “música erudita” toda aquela que contém um pensamento voltado a um tipo
de manifestação musical consolidada pela História, com um caráter de perduração e que tem,
por objetivo, apresentar uma determinada estética relacionada a um pensamento
composicional/interpretativo intelectualizado, filiado ao seu tempo.
A respeito desse caráter histórico e de perpetuação que caracteriza o “clássico”,
caráter último este também inerente à arte e à obra de arte, elege-se esta definição formulada
pelo historiador da educação Gilberto Luiz Alves:
Clássicas são aquelas obras de literatura, de filosofia, de política etc, que
permaneceram no tempo e continuam sendo buscadas como fontes do
conhecimento. E continuarão desempenhando essas funções pelo fato de terem
registrado com riqueza de minúcias e muita inspiração as contradições históricas de
seu tempo[...] (ALVES, 1990, p.112).
Ainda segundo o professor Marcelo Guerchfeld, música erudita é “[...] música que
resulta não apenas de um processo criador espontâneo, mas também de um processamento
intelectual, organizado em níveis crescentes de complexidade” (1990, p. 59). Logo, a música
erudita deve ser sustentada pelo domínio de técnicas racionais de escrita e registro musical
que, consequentemente, estabeleçam ideias referentes ao pensamento criativo de um
compositor. Desse modo, tem-se na partitura o veículo material primordial pelo qual essas
ideias se fixam e perduram, mas isto, em absoluto quer dizer que essas mesmas sejam obras
de arte ou a música, propriamente dita. O caráter material da obra de arte não a justifica como
tal. Vale também lembrar que, a partir do séc. XX, o conceito de música erudita ainda se atém
a preceitos de racionalidade e registro escrito, não obstante o surgimento de novas tendências
estéticas que se opõe a esta frágil e inócua classificação, como é o caso da música aleatória
que, não necessariamente, possui um registro escrito de todo seu acontecimento sonoro, mas
que, ainda assim, é classificada e incorporada como música erudita.
A construção de identidade musical sólida, feita por um jovem intérprete, deve ser
acompanhada, ou até mesmo precedida, de uma construção do pensamento filosófico-musical
individual. Tal construção do pensamento deve ser tão sólida quanto possa ser em relação
direta à proposição da construção de uma solidez interpretativa musical, por parte desse aluno.
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Não obstante, essa construção individual deve ser veementemente estimulada pelo
professor de música. Isto quer dizer: enquanto professores de música, conscientes e
comprometidos com arte, ativerem-se somente a divulgar e instruir alunos no conhecimento
do corpo teórico-musical, em absoluto, isto significa que se esteja preparando artisticamente
um indivíduo caso não se trabalhe, concomitante a este ensino ferramental-técnico, aspectos
que gerem um ser humano mais pensante, consciente de si, de seu lugar e de suas
contribuições ao mundo, por um viés artístico/filosófico.
Outro fator importante, tanto em relação ao ensino artístico quanto às várias áreas
de atuação de um intérprete ao violão, é apontado por Luiz Ricardo da Silva Queiroz (2010,
p.198) ao evidenciar que “Nessa diversificada realidade, qualquer processo de formação
violonística precisa almejar um perfil determinado do músico que se deseja formar, seja ele
profissional ou amador”. Assim sendo, nos limitamos a pensar sobre a interpretação de obras
escritas para o violão, inseridas num contexto de música erudita, em razão de que:
É preciso ter a consciência de que, por mais diversa que uma prática formativa possa
ser, será impossível abarcar as competências e habilidades necessárias para a
atuação nos múltiplos universos da música. Assim, em qualquer processo de
formação, escolhas serão realizadas e consequentemente, objetivos terão que ser
delimitados (QUEIROZ, 2010, p.198).
No sentido de caracterizar ainda mais a construção de um pensamento individual a
respeito do mundo e das coisas do mundo, de um pensamento referente também à construção
de uma arte individual que atenda ao sujeito enquanto ser, e que, em absoluto, o faça perder as
referências conceituais de análise do próprio mundo onde é inserido, ao ver-se obrigado a
interagir a partir de uma carga de conceitos pré-adquiridos/estabelecidos, Gilvan Fogel (2007,
p.40) nos diz que é preciso “Aprender a desaprender!”. Mas, o que talvez queira isto dizer?
Ainda mais em relação à interpretação musical?!
A história da música ocidental exemplifica como se deu a interação entre
compositores e intérpretes ao longo de seu percurso. Atualmente, estudos voltados a esta
temática têm sido discutidos e publicados com maior frequência no Brasil. A contrabaixista
Sônia Ray (2010, p.1310) nos dá um panorama da situação de colaboração mútua estabelecida
entre compositores e performers quando afirma que “As colaborações compositor-performer
no século XXI revelam experimentações intuitivas no processo secular de criação pautado na
afinidade entre músicos contemporâneos”. Isso significa que esta interação há muito existe,
mesmo que instável em sua relação de necessidade mútua. Continua:
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Na produção de música nas igrejas e nas cortes do Período Barroco esta
colaboração não era tão expoente, pois era muito comum que compositores fossem
também exímios intérpretes (a exemplo de J. S. Bach ao cravo e G. Ph.Telemann na
flauta doce) (Ray, 2010, p.1310).
Já no período Clássico, no qual a figura do compositor/intérprete passa a ser
autônoma em busca de recursos financeiros que possibilitem uma sobrevivência artística livre,
começa-se a traçar um esboço da figura de um intérprete que ganha a sua liberdade artística
expressando uma visão extremamente particular das obras que apresentava e/ou interpretava.
Todavia, ainda era preciso ganhar um público que sustentasse tal liberdade. Assim, a
interpretação musical passa agora, paulatinamente, por um caminho que gera um sem número
de “virtuoses” no instrumento, ou seja, intérpretes que precisam ganhar um público a todo
custo e que se valem do que tem em mãos para conseguir isso.
Márcia Higuchi (2008) em seu artigo “Fidelidade ao texto e a expressividade na
interpretação musical: uma visão neuropsicológica”, concentra seu estudo no conceito de
fidelidade ao texto musical e sua influência direta na expressividade da interpretação,
desenvolvendo seu pensamento a partir do período Romântico. Em seu texto, Higuchi afirma
que a expressividade estaria vinculada principalmente às emoções do intérprete no momento
exato da execução e poderia variar dependendo do seu estado de humor. A consequência
maior disto seria um alto grau de liberdade interpretativa que tinha na espontaneidade seu
bem mais precioso, bem este, veementemente rejeitado já no início do séc. XX.
A fidelidade ao texto musical é posta em xeque uma vez que, pela característica
de espontaneidade, inerente à estética Romântica, as interpretações feitas pelo compositor ou
intérprete seriam, a cada vez, diferentes do que havia sido indicado na escrita da obra.
Músicos como Chopin e Lizst defendiam a ideia de que uma obra bem interpretada era aquela
que fosse tocada de maneira diversa à sua escrita original. No entanto, ainda no mesmo artigo,
uma incursão ao estudo da importância da técnica na construção de uma interpretação musical
é apontada quando exemplifica que o estudo minucioso da escrita da obra é também fator
crucial para um bom desempenho artístico. Segundo a autora “[...] uma interpretação
espontânea não chega a levar um pianista ou estudante a desenvolver uma capacidade técnica
acima daquela que possui” (2008, s/p), concluindo que a falta da técnica limita a
espontaneidade e que o excesso de espontaneidade é igualmente problemático, pois se torna
insuficiente para atingir níveis maiores de complexidade e excelência.
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Na primeira metade do séc. XX, o pensamento estético em relação a tal postura
interpretativa já era posta em xeque. Sobre tal assertiva comenta o violonista Thiago Colombo
de Freitas:
Estes intérpretes românticos foram severamente criticados por teóricos da música.
Heinrich Schenker chegou a definir o termo “intérprete” como um adjetivo
pejorativo para designar maus executantes (DUNSBY, 1989). Para os
Schenkerianos, o executante deveria ser um intermediário entre o compositor (autor
único da obra) e o ouvinte. Ao bom instrumentista, caberia transmitir as intenções
do compositor ao ouvinte, transmitidas a ele (executante) pela partitura, sem jamais
deturpá-las, o que é um idealismo compartilhado pela segunda escola vienense. Esta
concepção de instrumentista é empregada até hoje por professores, por vezes sem a
devida reflexão, e foi corroborada também por músicos do vulto de Igor Stravinsky
e Milton Babbitt (FREITAS, 2010, p.1328).
A essa altura nota-se, então, que uma interpretação artística de alta qualidade era
determinada pela junção entre a notação musical de um compositor (partitura) e o grau de
fidelidade com que o intérprete se submetia a ela. Tanto mais fidedigno o intérprete em
relação ao que escrito estava, tanto melhor a interpretação e resultado artístico. Acontece que,
por mais que um intérprete se coloque na postura ética que assuma uma total ausência de sua
personalidade criadora na inter(ação)pretação de uma obra artística escrita por outrem,
variáveis acontecem e sempre aconteceram por um simples motivo: não há meio de interpretar
fidedignamente aquilo que fidedignamente não se consegue escrever. A escrita musical é
altamente imprecisa, altamente infiel! Assim, escrever de maneira totalmente fiel um
pensamento musical e, ainda mais, se propor a interpretá-lo fielmente, ainda não nos é
possível, mesmo que sejamos nós mesmos o autor da obra. Nas palavras do musicólogo e
instrumentista Robert Donington (1965, p.27): “Ninguém, nem mesmo o compositor toca a
mesma passagem duas vezes iguais”.
Um exemplo claro, dessa “contradição” entre o que se compõe/registra e o grau de
fidelidade que se alcança ao tocar uma música autoral, é possível de ser ouvido na execução
de Carlo Domeniconi de sua Koyunbaba suíte, um vídeo gravado ao vivo e disponibilizado no
site youtube, na internet. Essa obra, bem verdade, concebida para ser tocada com certa
margem de espaço para uma livre improvisação, é alterada por Domeniconi em passagens
inteiras com relação ao original publicado e, o mais significante, passagens nas quais o autor
executa “fielmente” o texto são, ainda assim, diferentes do seu original no que diz respeito a
dinâmicas e andamentos, por exemplo. Dessa forma, muitos expectadores comentam não
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admirarem tanto sua performance quanto seu trabalho como compositor, nomeando outros
músicos como detentores de uma leitura e execução superiores ao do próprio autor.
Aqui registram-se, então, duas constatações: por mais que tenhamos nós mesmos
feito uma música, não necessariamente detemos a melhor interpretação dessa, segundo
critérios de fidelidade, e sim, é possível que outros intérpretes com seu background musical
incorporado ao texto, possam interferir positivamente em uma obra, enriquecendo-a,
“compondo-a” e, por vezes, sendo julgados melhores intérpretes que os próprios
compositores.
Vislumbra-se então que essa ideia de “alta fidelidade” vai contra a própria ideia
do que é ser um humano, da própria condição humana. E esse não é, em absoluto, um
conceito do período romântico. Nada mais passível de erros e/ou instabilidades do que o
humano. No processo de interpretarmos/executarmos o que escrevemos, já nesse momento e
por conta da inerente instabilidade humana, não somos capazes de conseguir a total
fidelidade, tão almejada por tantos, ao próprio texto escrito ou de outrem.
Ademais, fiquemos com uma sutil, mas importante lembrança apontada pelo
violonista uruguaio Eduardo Fernández, no que se refere à construção de uma interpretação ao
violão. Em realidade, a um de seus primeiros passos concretos, relacionado à digitação que
expressa suas resoluções pessoais:
Es necesario en la búsqueda de la digitación ser extremamente riguroso y tener la
paciencia de buscar todas las variantes imaginables[...] digitar es ya interpretar, no
es simplemente la manera más fácil de tocar las notas, sino buscar la manera menos
complicada de realizar la idea musical que tengamos del pasaje a estudiar (2.000, p.
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Em relação à imprecisão da grafia musical contemporânea, mais precisamente ao
que se refere às denominadas técnicas extendidas, escreve Eliane Tokeshi:
Outro aspecto com o qual o instrumentista se depara é o fato de o sistema de notação
musical desses recursos, que ainda não estão padronizados, e a criação de novas
formas de notação darem margem a várias possibilidades de execução de um mesmo
recurso técnico. O instrumentista, assim, é obrigado a optar por uma entre duas ou
mais possibilidades em seu caminho de construção de uma interpretação da obra
(TOKESHI, 2005, p.322).
Tal assertiva sustenta-se, quando se tenta acompanhar, por exemplo, a partitura
de uma peça eletrônica como a Kontakte, de Karlheinz Stockhausen. Nessa música, vários
elementos que se submetem à estruturação da obra sequer existem como forma padronizada
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de grafia. Por exemplo, a parte de tape. Os sinais gráficos lá esboçados não passam de uma
tentativa do autor de se aproximar a uma grafia que almeja maior codificação das interações
sonoras existentes. Segue abaixo um trecho extraído da peça:
Ex.1- Kontakte – K.Stockhausen
Essa imprecisão e pluralidade de sinais gráficos - e seus signos relacionados à
grafia contemporânea - são frutos de um movimento recorrente na história e têm, atualmente,
imposto dificuldades a intérpretes gerando uma menor aproximação destes com a música de
hoje e desta ao público em geral. Bem verdade, isto se dá, às vezes, por conta de compositores
que adotam uma postura de “proteção” de suas obras inventando códigos complexos de
escrita, que podem variar, inclusive, seus significados até mesmo em obras diversas do
mesmo autor. Isso tudo no intuito de afastar de suas músicas os “maus intérpretes”, aqueles
com uma menor bagagem cultural musical. Bem verdade também, é que essa pluralidade de
signos passa a ser encarada quase que como um fetiche na década de 60, onde a premissa
seria: “a cada nova composição, uma nova grafia”. Tal postura reflete e acompanha uma
efervescência do cenário composicional impulsionado por experimentações - iniciadas na
década de 50 - que recorrem em grande parte, ao uso de computadores.
Outra questão relacionada à imprecisão da escrita é que, por vezes, nem mesmo o
compositor tem plena certeza de como quer ou como deveria soar determinada música, pois,
com o traço de especialização inerente à contemporaneidade, compositores não dão conta de
compreender tão a fundo as idiossincrasias de tantos instrumentos. Assim, buscam atender a
demanda de obras comissionadas, dentro de suas limitações de entendimento sobre a total
funcionalidade mecânica e sonora dos mesmos. Isso reflete, às vezes, uma imprecisão de
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escrita, resultado da tentativa de decodificar novas sonoridades. Logo, gera-se a construção de
uma grafia que se dá por tentativa e erro de aproximação. Por isso, é cada vez mais crescente
a volta das colaborações entre intérpretes e compositores, principalmente no que se refere à
construção dessas obras comissionadas, uma vez que são os intérpretes quem, a priori,
dominam os instrumentos em sua totalidade e podem, com isso, auxiliar o trabalho do
compositor, inclusive na tentativa de criar uma grafia mais precisa.
É preciso se ter claro que inovar é um exercício deveras difícil, mesmo para um
compositor hábil. Trabalhar na reforma ou expansão de um sistema musical é um caminho
que pode ser solitário, árduo e quase sempre totalmente desconhecido, e se para o compositor
que está gerando a obra é difícil a precisão, imagine-se a situação de um intérprete que se vê
com um texto nessas condições.
Contudo, entende-se que o fator crucial responsável por essa imprecisão da grafia
musical, que ainda se estende aos dias de hoje, é apontado por Celso Mojola quando se refere
à dissolução do sistema tonal a favor de uma maior pluralidade de correntes estéticas e
gêneros musicais:
É certo que entre 1600 e 1950 muitas modificações ocorreram mas nunca no sentido
de destruição desse sistema e sim no seu aperfeiçoamento. Esse período é também o
que corresponde ao do sistema tonal como sistema único de composição – sua
superação começa a surgir no início do séc. XX mas é só por volta de 1950 que isso
se torna um fato unanimemente aceito (1990, p.32).
Várias tentativas de uniformização da escrita contemporânea no séc. XX foram
empreendidas, todavia, sem sucesso. E não é de se espantar. Na ânsia de colocar um mínimo
de organização e funcionalidade na escrita atual, pesquisadores parecem ter se esquecido do
trivial: é o tempo, e só o tempo que uniformiza processos de tamanha magnitude. Foram
precisos séculos de desenvolvimento tonal para que as normas de sua escrita fossem
sedimentadas e divulgadas por todo o mundo e, mesmo essas, só se tornaram possíveis de se
estabelecer justamente por serem representativas de um sistema único, este mesmo,
representante de um sistema maior único, a sociedade moderna. Parece então, um grande
equívoco, quando se tenta uniformizar aquilo que é representativo da ruptura dessa mesma
uniformalização, em outras palavras: uniformizar uma grafia contemporânea, que pela sua
pluralidade reflete veementemente a pluralidade do pensamento contemporâneo - o qual busca
libertar-se de cartesianismos - seria um desserviço.
Ademais, sendo este texto a favor de uma aproximação estreita do indivíduo
executante com a arte, quer seja a sua própria, quer aquela construída a partir da apropriação e
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intervenção na partitura escrita por outrem, fica a pergunta: o que seria mais estimulante para
um intérprete do que adentrar vários universos tão particulares, universos que, talvez, pela
primeira vez na história, justificados pela enorme pluralidade de estilos musicais, pertençam
de fato a cada compositor, diferente do que conhecemos durante mais de trezentos anos, por
“prática comum”? Por que padronizar a escrita representativa desses universos que, cada vez
mais, se enriquecem exatamente por essa relação visceral dos artistas no momento em que o
compositor precisa chegar ao ponto de inventar um código gráfico que satisfaça seus anseios
estéticos mais íntimos ao tentar expor no papel suas ideias?
Provavelmente, esse pensamento exposto acima possa ser rejeitado com a mesma
força que se acredita ser válido, sobretudo se estiver ligado a questões de ordem relacionadas
a um senso prático da profissão, muito mais do que a intentos artísticos. De todo modo, é a
História que mais cedo ou mais tarde uniformiza a escrita. Não há como escapar. Então, neste
específico caso, que tentemos escapar dela enquanto pudermos, e torcendo para que seja
incorporado à estética e interpretação da música dos séc. XX e XXI esse traço fundamental da
condição da arte no século XX, a pluralidade e busca de expansão de horizontes individuais
artísticos que se refletem, incluso, em suas estruturas de escrita!
A música enquanto arte é aberta e a interpretação musical, enquanto algo inerente
à instabilidade, não está sujeita a qualquer tipo de interpretação genuinamente fidedigna.
Mesmo com o advento do serialismo integral e da música eletrônica, que propuseram cada
qual à sua maneira a busca de um total controle sobre a música, os compositores se viram em
situação que demandava revisão conceitual em relação ao papel do intérprete na música
contemporânea. Tal revisão se deu por justamente perceberem que, por maior que fosse a
busca e o controle da interpretação, por mais que uma máquina seja, ainda que por outro viés,
algo que possa ser classificado como altamente representativo do que é um ser humano -
afinal, só o homem produz a máquina, nenhum outro ser vivo é capaz de fazê-lo, como bem
nos lembra o compositor Fernando Iazzeta (2009) - um aspecto importante no processo de
construção de uma obra artística se via praticamente nulo, tal seja: o seu lado humano,
representado e relacionado, inexoravelmente à instabilidade. Instabilidade essa pela qual a
música é o que é: um produto (ou reflexo) do intelecto, uma abstração, não pertencente à
natureza senão à natureza humana.
Ao longo do séc. XX, mais e mais terminologias tentaram dar conta dessa
temática passando então a subdividir os intérpretes em duas categorias básicas: executantes
intermediários e executantes intérpretes. Assim teoriza Mellers e aponta Freitas:
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Wilfrid Mellers (in: RINK, 2006, p. 221) difere o “executante intermediário do
executante intérprete (1800)”. Para ele, os intermediários são aqueles que servem
como meio para expressar as intenções do compositor, enquanto os intérpretes
fazem da partitura um ponto de partida para seu próprio trabalho
criativo/interpretativo (FREITAS, 2010, p.1328).
Tem-se então um panorama das posturas interpretativas pelas quais compositores
e intérpretes se pautaram, desde o período Barroco. É, inclusive, nesse período que a palavra
“intérprete” propriamente dita, passa a ser usada para distinguir músicos que se destacavam
de seus pares em seus conjuntos (por ex. concertino x ripieno). Paulatinamente, ocorre uma
desagregação de funções. Intérpretes acostumados a intervir na composição musical, por meio
de improvisações e intervenções ornamentais - comum ao barroco de estilo francês, por
exemplo - afastam-se dessa prática voltando-se cada vez mais a estudos de ordem técnica,
preocupando-se mais com o caráter mecânico/técnico da obra do que com sua própria
intervenção na parte composicional. Tanto que, em concertos dos períodos clássico e
romântico, havia um espaço destinado exclusivamente a essa intervenção composicional - a
assim chamada “cadência” - destinada à livre “improvisação” na peça.
Mas por que tão longa incursão na história da interpretação musical, neste artigo?
Julgou-se pertinente traçar um quadro geral que trouxesse à luz tais discussões e
que apontasse divergências no pensamento a respeito da construção interpretativa de uma
obra musical. Em se tratando de estudantes iniciantes, uma visão mais geral sobre o assunto se
faz mister para que, aliada às discussões filosóficas apontadas no início deste capítulo, com
Heidegger e Fogel, se pudesse tentar dar um suporte teórico que apontasse um pensamento
voltado para uma interpretação artística mais genuína e autêntica e em estreita relação de
verdade (desvelamento) com o indivíduo executante.
Voltemos a Fogel. O autor diz que “devemos aprender a desaprender”! Quer isto
dizer: devemos aprender a nos destituirmos de um uso abusivo dos conceitos que nos
permeiam, conceitos estes adquiridos pelo hábito cultural, hábito este que, se não ponderado,
gera uma atitude que nos uni-formiza. E o que em arte poderia ser mais nocivo do que uma
uniformização do pensamento estético/artístico?
Vários livros apontam o séc. XX como sendo o século mais plural e aberto ao
pensamento humano em relação a correntes estético-musicais. Tal posição pode induzir ao
pensamento de que todos os períodos anteriores não produziram variedades estilísticas, o que
não é verdade. Por conseguinte, pode induzir também ao pensamento de que uma menor
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pluralidade de interpretações sobre um mesmo repertório poderia existir. Curioso é o fato que
aponta Harnouncourt ao se referir ao trabalho de Telemann, trabalho esse que desemboca em
uma espécie de “estética musical universal alemã”, a partir do que ficou conhecido como “Les
gôuts réunis” (os gostos reunidos), ou seja, a fusão dos gêneros italiano e francês de produção
musical, catalisados pelo modus operandi do fazer musical alemão. Essa discussão acerca de
Telemann revela algumas coisas: que havia vários gêneros musicais correntes em seu tempo;
que havia várias maneiras de se interpretar uma mesma música histórica e, por conseguinte,
uma mesma obra musical; e que a interpretação desta variava dependendo do país em que se
habitava.
Pode-se vislumbrar que, no período Barroco, já ocorria uma pluralidade de
interpretações sobre um mesmo repertório e que houve, sim, uma tentativa de fundir estilos
musicais em uma mesma estética. Desse modo, o séc. XX, por mais plural que tenha sido,
buscou além da fusão de gêneros musicais, que tem precedente histórico, uma uniformização
musical na interpretação desses gêneros. Essa tentativa de uniformização estética na execução
de gêneros musicais fundidos não deve ser confundida com a fusão entre gêneros musicais.
De forma simplificada: fundir gêneros musicais, em absoluto, quer dizer uniformizar a
interpretação de performers!
A busca de uma interpretação uniformizada, por si só já é uma incongruência na
relação da arte com o próprio homem e deste para com o mundo. Assim, por esse aspecto, a
interpretação de uma obra musical que parte de um princípio uniformizante não atende, à
priori, à relação em que o artista, a arte e a produção artística deveriam basear-se, tal seja: a
de estreita relação do indivíduo para com a obra. Uma busca assim, uniformizante, de tal
modus operandi, produz então uma interpretação homogeneizada, rasa, no que diz respeito a
uma carga de reflexo da própria condição humana do intérprete e, bem verdade, em sua
essência, medíocre (num sentido de pobreza artística). Assim temos que:
Fazer-se só, realizar solidão e assim desaprender o vulgar e o habitual, é atender à
exigência, ao imperativo vital de fazer o próprio caminho, ou seja, cumprir-se a
exigência de andar e ver, isto é, ser, só poder ser e desde e como caminho, viagem,
experiência. Só isso é método (FOGEL, 2007, p.41).
Acerca de uma construção de interpretação apoiada em áudio
Discutiu-se, ainda que de forma sintética e pela natureza mesma de um artigo, os
caminhos que a interpretação musical ocidental percorreu, a importância e sítio da partitura no
processo de construção de uma interpretação musical, bem como foram apresentados
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subsídios teóricos a respeito dos conceitos de arte, obra de arte e artista, aqui relacionados ao
pensamento do filósofo alemão Martin Heidegger. Mas ainda é preciso desenvolver um
pensamento a respeito da construção de uma interpretação feita por violonistas iniciantes
apoiada em gravações.
O desejo expresso por alunos sobre querer tocar violão de modo quase idêntico ao
dos intérpretes que admira, tem sido recorrente, tanto no meio universitário quanto fora dele.
Essa postura é preocupante porque indica ausência de criticidade no aluno e exige dos
professores uma decisão de despertar-lhe o senso crítico a respeito do seu fazer musical, desde
o início de suas atividades com música. O professor preocupado com essa questão não deveria
incentivar seus alunos à audição recorrente de intérpretes de violão erudito, principalmente,
antes do seu maior amadurecimento interpretativo. Ao contrário, nessa fase, deveria sim
estimular a audição da música erudita em geral como fomentadora de uma cultura abrangente
acerca do gênero musical que se pretende estudar.
A consciência do quanto a escrita musical pode ser precária deve conduzir o aluno
a “inventar” uma interpretação baseada na partitura e em referenciais teóricos disponíveis na
literatura, aliando isso, às próprias convicções empíricas que atestam o seu dizer enquanto ser
humano, sendo essa atitude preferível à mera reprodução de uma partitura ou de outras
interpretações de uma obra específica estudada.
Ao contrário de assemelhar-se esse a um problema, entende-se que este seria o
caminho de levar o aluno a perceber, por meio de muito diálogo e muita leitura, que o
encontro do meio termo entre o conhecimento do corpo teórico acadêmico e as convicções
artísticas inerentes a cada indivíduo, poderia conduzi-lo, certamente, a um caminho mais
amplo e estimulante.
Nem sempre as interpretações que os alunos criam a partir de suas convicções
empíricas estão de acordo com o meio acadêmico e isso se torna um problema para alunos
que buscam esse meio. Também aqueles que não buscam tal caminho, por vezes apresentam
uma interpretação bastante incomum em relação aos conhecimentos da academia. Todavia,
isso não constitui problema, ao contrário, é uma atitude deveras salutar. É por essa razão, de
conduzir o conhecimento do aluno, que se faz necessário o papel do professor.
Acredita-se, desse modo, que a audição recorrente de gravações de violão pode ser
prejudicial ao desenvolvimento pessoal de uma interpretação em estágio primário de
desenvolvimento, e que a prática dessa audição não deveria acontecer antes de o trabalho do
professor estar “completo”. Trabalho esse, que deve ser realizado em conjunto com seu aluno,
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baseado no texto musical e no estímulo constante, por parte do professor, visando um
desenvolvimento artístico, que busque a auto-suficiência, e um compromisso com a relação
íntima entre futuro artista/intérprete e obra.
O fator extremamente positivo desta proposta de interpretação consiste no
resultado de que, com o tempo, o aluno não mais deseja tocar como esse ou aquele violonista,
pois aquele que descobre a si, se saudável é, em absoluto tem vontade de ser outro. Passa
então a colocar o outro em uma perspectiva mais válida para o crescimento individual
artístico, a de parâmetro e nunca de fim. Passa a querer e ser um músico e não querer ser igual
a um determinado músico!
Acerca do corpo teórico musical, é preciso lembrar que a música erudita construiu
sua história interpretativa em cima de registros musicais escritos. Tais registros servem ainda
hoje como fonte para estudos a respeito da interpretação musical e são amplamente
divulgados por meio de livros, anais de congressos, revistas científicas etc. Então, nada mais
coerente ao intérprete iniciante do que fazer exatamente o que seus ídolos, em sua maioria,
fazem ou fizeram: estudam boa parte da teoria musical existente acerca das obras que elencam
para apresentação e não se omitem de aplicar, concomitante a esta teoria, suas convicções
artísticas pessoais.
Mas a essa altura do texto, pode-se perguntar: e em relação a outros gêneros
musicais tocados ao violão, como fica a questão do áudio como recurso na construção de uma
interpretação? Deve-se atentar uma vez mais que o estudo aqui proposto delimita um
pensamento acerca da música escrita para o violão erudito. O repertório desse condiz,
obviamente, com uma tradição de música erudita, música essa registrada por meio escrito
(partitura) e com vasta produção literária sobre os mais diversos assuntos inerentes às suas
ferramentas teóricas. Portanto, a música erudita ou histórica não tem no registro de gravações
sua fonte mais importante de pesquisa, até por ser essa extremamente recente.
Ademais, boa parte dos professores de violão erudito concentra-se no repertório
tradicional, ou influenciado por este, nos primeiros anos de ensino. Do repertório do séc. XX,
quando muito utilizado logo de início, geralmente vemos exemplos adotados das obras de
Brouwer, Villa-Lobos e Smith-Brindle. Há que se complementar que no quadro da música
contemporânea para violão erudito temos, em certos casos, obras de extrema complexidade
nas quais o auxílio do recurso de gravações é válido para ajudar a construir interpretações de
obras como as de Helmut Lachenmann ou Pierre Boulez, por exemplo. Esses autores, porém,
estão realmente longe de serem contemplados nos primeiros anos de ensino do instrumento.
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Todavia, ainda em se tratando de gravações como referenciais no ensino, é
importante abrir espaço para dois últimos apontamentos O primeiro deles diz respeito à
autogravação e postura de aprendizado por parte de um aluno. Tais apontamentos são
reflexões amplamente discutidas no livro “Técnica, Mecanismo, Aprendizaje” (2.000), do
violonista uruguaio Eduardo Fernández, um livro referencial por fazer a crítica e ter o mérito
de conseguir ir além das propostas pedagógicas do violonista Abel Carlevaro.
O uso do recurso de gravação, bastante facilitado pelo preço acessível de
gravadores portáteis, tem sido bem difundido no meio estudantil como bom “controlador” e
“mensurador” da performance. Bem, esta prática é uma faca de dois gumes. Se por um lado,
termos um referencial externo do som que produzimos é bastante razoável de se aceitar como
medidor de resultados do instantâneo de uma performance, por outro lado, pode ser bastante
prejudicial a iniciantes por, comumente, retirar desses a responsabilidade da auto avaliação no
exato momento da execução. Esse distanciamento de controle entre o momento em que se
toca para outro em que, só então, se avalia o resultado sonoro, não é nada produtivo.
Quer-se com isto dizer o seguinte: o melhor referencial de um músico é ele
mesmo, é dele e tão somente dele a responsabilidade sobre a qualidade de sua execução, que
somente em um primeiro estágio do trabalho é dividida com o professor. Tal execução deve
ser cuidada pelo aluno através de sua audição. Seus reais controladores devem ser seu ouvido
interno (que projeta na mente o som desejado a ser tocado) e externo (que controla e grada
todas as nuances sonoras), ao invés de um gravador ou um professor. Sobretudo, seu
referencial maior deve deixar de ser, o quanto antes, um artista ou professor que admira. Tão
cedo quanto possível, o aluno deve tomar consciência de que, para ser tão grande quanto as
pessoas que admira, deve ser o primeiro responsável por si e por sua música.
Deve também compreender que grandes ídolos são, na verdade, exceções em meio
a um enorme quantitativo de pessoas que tocam instrumentos musicais e que, objetivar ser
igual a uma exceção pode gerar uma ansiedade e angústia desnecessárias e improdutivas à sua
ascensão musical pessoal e à construção de sua identidade musical. É preciso que compreenda
que atingir o nível de excelência de uma exceção é algo bastante raro e é esta mesma raridade
que caracteriza, como condição primeira, a possibilidade de classificarmos algo como
excepcional. Buscar tornar-se músico, por meio de trabalhar diariamente a superação de suas
próprias limitações em direção ao seu grau máximo de excelência pessoal na interpretação
musical, aliado à busca de ser um músico honesto consigo - não digamos permissivo com suas
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limitações, mas consciente, sereno e apaziguado com elas - deveria ser a principal meta a
alcançar, de todo estudante.
A autogravação é importante somente em um estágio no qual os controladores
inerentes ao músico já estejam plenamente desenvolvidos. Somente aí, quando temos maior
controle sobre nossa execução no ato dela mesma é que há sentido para um segundo
referencial, que pode levar em conta outros elementos que fazem parte da sonoridade de um
instrumento musical como, por exemplo, a acústica do ambiente.
O último ponto a ser tratado é fruto de reflexões desenvolvidas por Fernando
Iazzetta em seu livro, “Música e mediação tecnológica” (2009), a respeito de outro gênero
importante na música contemporânea: o jazz.
Ainda que, considerando problemática a relação do intérprete atual com o registro
em áudio, no que concerne à construção de uma interpretação própria e menos uniformizada -
que vai ao encontro de um pensamento mais contemporâneo acerca da interpretação musical -
não podemos desconsiderar que, para o jazz, o recurso de áudio foi fundamental para o
estabelecimento do gênero. Em uma música com base na tradição oral e improvisatória, o
áudio teve e tem, até hoje, papel crucial na consolidação de uma cultura jazzística. Com
parâmetros interpretativos herdados, mas diferentes dos da música erudita, para o intérprete
de jazz, a fonte histórica que delimita com maior precisão sua cultura está sim embasada nas
gravações. Em adendo ao que foi aqui citado, Iazzetta (2009, p.44) complementa que “ao
invés de buscar o estudo exaustivo sobre as notas escritas sobre o pentagrama, essa cultura
formou-se pela escuta reiterada do próprio repertório que produzia”.
Para uma interpretação histórica mais “acadêmica” do jazz, basear-se então na
audição de gravações é fundamental, já para um intérprete iniciante de violão erudito,
fundamental é basear-se na partitura de sua obra. Vale lembrar que, se traçarmos um paralelo
com a música histórica - como na Idade Média onde a oralidade era muito presente,
compositores e intérpretes em busca de um alto grau de desenvolvimento artístico sempre se
valeram do que havia de mais moderno ao seu alcance para a realização artística de suas
obras.
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Considerações finais
Foram discutidos alguns aspectos filosóficos que envolvem a música e o campo
da interpretação musical, bem como se discorreu a respeito do uso do recurso de gravações
em áudio e partitura, direcionado a violonistas iniciantes. Conclui-se que o uso desses
recursos no ensino da interpretação musical, direcionado a violonistas eruditos, deve ser feito
de maneira criteriosa pelo professor. O pedagogo deve sempre incentivar a audição de
gravações referenciais somente após o trabalho desenvolvido em parceria com seu aluno ter
sido concluído com base na partitura. No entanto, tal referencial não deve ser encarado, em
absoluto, como definitivo ou até mesmo único como medida do que é verdadeiro em uma
interpretação. Ao contrário, deve ser considerado mais uma referência de medida para o
aluno, e não um fim a ser alcançado por ele. Sua referência maior deve ser ele mesmo.
Por fim, postula-se que o trabalho de construção de um aluno deve basear-se no
suporte teórico dado pelo ensino das técnicas e teorias que constituem o escopo da academia,
aliado sempre a um estímulo constante, visando ao desenvolvimento artístico, e, sobretudo
humano do indivíduo. Para tanto, nada melhor do que nos valermos do estudo de obras de
arte que reflitam um alto grau de comprometimento com o desvelamento da verdade,
compromisso inerente ao verdadeiro artista/intérprete em relação à arte, ao fazer artístico e
por fim, à sua própria noção de verdade.
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