+ All Categories
Home > Documents > Agostinho e a Cidade - Luis Evandro

Agostinho e a Cidade - Luis Evandro

Date post: 18-Aug-2015
Category:
Upload: giovane-martins
View: 272 times
Download: 7 times
Share this document with a friend
Description:
Agostinho e a cidade.
26
Civitas Augustiniana, 1 (2012) pp. 33-58 ISSN: 164/2012 LUÍS EVANDRO HINRICHSEN 1 AGOSTINHO E A CIDADE: DE DEUS OU DOS HOMENS? SOBRE A INQUIETA DINÂMICA DA PAZ. Quia fecisti nos ad te et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in te (Confessiones, I, 1) Resumo: O peregrino pertence tanto a cidade de Deus quanto a cidade terrena. Busca incessantemente a paz, entretanto, vive as contradições e conflitos do mundo. Se a cidade de Deus é o horizonte último do cristão em sua jornada no tempo, todavia, ainda não é plenamente. A cidade terrena o envolve, desafia e provoca. O membro da comunidade cristã, itinerante, dirige suas esperanças à cidade de Deus, mas, porque pertence igualmente à cidade terrestre, é responsável pelo acontecimento da concórdia na família e na comunidade política. Na comunidade política, a paz é fruto da justiça. Qual é a novidade oferecida, especialmente, no Livro XIX da Cidade de Deus para pensarmos a paz e a justiça na cidade terrena? Nosso esforço investigativo procurará pensar as relações entre paz e justiça através da dialética pertença do peregrino que é membro das duas sociedades, da terrena e da celeste. Palavras-Chave: Cidade de Deus, cidade dos homens, peregrino, justiça, concórdia, paz. Abstract: This paper is focused on the elements of novelty about the ultimate ends of man that Augustine points out in the City of God. He establishes the conditions for reaching peace and justice in the city of man, in opposite to the roman criteria. To be pilgrim is part of human condition in both the city of God and the city of man. While constantly seeking peace, the pilgrim lives within the contradictions and conflicts of the world. The city of God is indeed the ultimate end for the Christians in their historical journey. However, this main goal is not yet accomplished, while the history of humanity is in course. The city of man challenges and provokes humans. Christians, as members of the human community, drive their hopes to the city of God. However, because they also 1 Luís Evandro Hinrichsen: Doutor em Filosofia e Professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Avenida Ipiranga, 6681 Prédio 05 Sala 206, Porto Alegre, RS, Brasil, CEP: 90619-900; [email protected].
Transcript

Civitas Augustiniana, 1 (2012) pp. 33-58 ISSN: 164/2012 LUS EVANDRO HINRICHSEN1 AGOSTINHO E A CIDADE: DE DEUS OU DOS HOMENS? SOBRE A INQUIETA DINMICA DA PAZ.Quia fecisti nos ad teet inquietum est cor nostrum,donec requiescat in te (Confessiones, I, 1) Resumo:OperegrinopertencetantoacidadedeDeusquantoacidade terrena.Buscaincessantementeapaz,entretanto,viveascontradiese conflitosdomundo.SeacidadedeDeusohorizonteltimodocristoem suajornadanotempo,todavia,aindanoplenamente.Acidadeterrenao envolve, desafia e provoca. O membro da comunidade crist, itinerante, dirige suas esperanas cidade de Deus, mas, porque pertence igualmente cidade terrestre,responsvelpeloacontecimentodaconcrdianafamliaena comunidade poltica. Na comunidade poltica, a paz fruto da justia. Qual a novidadeoferecida,especialmente,noLivroXIXdaCidadedeDeuspara pensarmosapazeajustianacidadeterrena?Nossoesforoinvestigativo procurarpensarasrelaesentre paz ejustiaatravsdadialtica pertena do peregrino que membro das duas sociedades, da terrena e da celeste. Palavras-Chave:CidadedeDeus,cidadedoshomens,peregrino,justia, concrdia, paz.Abstract:This paper is focusedon theelementsof noveltyaboutthe ultimate endsofmanthatAugustinepointsoutintheCityofGod.Heestablishesthe conditionsforreaching peaceand justicein thecityofman,inoppositetothe roman criteria. To be pilgrim is part of human condition in both thecity of God and the city of man. While constantly seeking peace, the pilgrim lives within the contradictions and conflicts of the world. Thecity of God is indeed the ultimate end for the Christians in their historical journey. However, this main goal is not yetaccomplished,whilethehistoryofhumanityisincourse.Thecityofman challengesandprovokeshumans.Christians,asmembersofthehuman community,drivetheirhopestothecityofGod.However,becausetheyalso

1 LusEvandroHinrichsen:DoutoremFilosofiaeProfessordaPontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, Faculdade de Filosofia eCincias Humanas,AvenidaIpiranga,6681Prdio05Sala206,PortoAlegre,RS, Brasil, CEP: 90619-900; [email protected] EVANDRO HINRICHSEN34 belong to the city of man, they are responsible for familiar and political harmony withinthehumancommunity.Christians,aspilgrims,cannotgiveupthisrole. They must carry out the main purpose of all being: to live in peace. Keywords: City of God, city of man, pilgrims of the two Cities, justice, harmony, peace.INTRODUO Quandoapaznosenvolveeabraa,vivenciamosalegriae contentamento.Entretanto,sealguminfortnionosatingeeprovoca aflioou,quandodasuaausncia,nosdamoscontadesuaexistncia anterior e perguntamos: o que a paz? Diante da tarefa de refletir sobre a paz, somos parceiros de Aurlio Agostinho, pois, ao perguntar sobre o tempo no Livro XI das Confisses, d-se conta do enigma do tempo: O que,pois,otempo?Seningummopergunta,seioque;masse quiserexplic-loaquemmoperguntar,nosei2.Aomeditarsobrea paz,comeapartirdoprofessorderetricanorte-africano,nos encontramos, tambm, diante de um enigma da existncia merecedor de atento e dedicado esforo do pensamento. Oqueapaz3?Serapaz,comopensavamosestoicos,a imperturbabilidadeconquistadapelasupressodaspaixes?Apaz resultardapossedosbensalmejados,pelosquaisempenhamos energiasetempo?Quebensseroesses?Ondeencontr-los?Apaz consistenasimplesinexistnciadeguerras?Naausnciadelutas,na supressodasviolnciasouperturbaessociais?L,ondereinaa tranquilidadepblica,aconteceapaz?Norepouso,nosilncioeno sossego,encontraremosapaz?Napresenteexistncia,observadaa impermannciadetudoaquiloque,conquistaremosapaz?Quemj

2 Agostinho,ConfessionumLibriTredecim,XI,XIV,17(CCL27,ed.L. VERHEIJEN,Brepols,Turnholt1981,p.203).Ediousadanesteartigo: Agostinho, Confisses. Traduo de Arnaldo Esprito Santo, Joo Beato e Maria CristinadeCastro-MaiadeSousaPimentel.INCM,Lisboa2000,p.567. Doravante: Conf. 3 Paz,dePax,Pacis(cfr.F.R.SARAIVA,NovssimoDicionrioLatino-Portugus, Garnier, Rio de Janeiro 1993, 10 ed., p. 856) significa tranquilidade, concrdia, sossego, repouso, disposio pacfica. Segundo Saraiva, pax indicaria: ogozotranquilodaliberdade(Paxesttranquillalibertas),apazdaalma conquistadapeloexercciodatemperana.Ouseja,paxsinalizariaparaduas dimenses da vida humana: a paz social e a paz da alma.AGOSTINHO E A CIDADE: DE DEUS OU DOS HOMENS? 35 viveualgummomentodepaz,podedefini-lo?Podenarr-lo?Pode descrev-lo? De que paz, afinal de contas, estamos nos ocupando?Emnossosdias,saturadosdeimagens,navegandoentrebitese pixis,excitadosporefeitosimagticos,justificadospelagradativa virtualizao da vida, confundindo informao com conhecimento, qual ,parans,osignificadodepaz?Noinciodesseterceiromilnio,ao testemunharmososupostotriunfodatcnicasobreosdilemase fragilidades da vida humana, ainda plausvel sondar o que seja a paz? Acreditamosquesim,pois,secincia,emseulaborincansveleem suaoperatividadeinsacivel,competecalcularedominar,Filosofia cabe pensar, ou seja, meditar sobre o sentido das coisas4.Vivemosumainditacriseplanetria,presentenaassimetria existenteentrepobresericos,alimentadaporpredatrioconsumodo qualsomosparticipes,reveladapelacrescentemanipulaoe mercantilizaodavidatantasvezesconsideradadescartvel.Apar dessasituao,destacamos,necessriorefletirsobreapaz,sobresua existnciaouausncia,sobresuapossibilidade,sobreanoodepaz quesustentanossasprticas.Estamosdiantedetarefaintransfervel, urgentee importante.Convocados,numapoca rica econtraditria,ao intransfervelexercciodopensamento,somosconvidadosaosilncio queacolheepermitehabitaromundo.Longedobarulhoquedistraie permanecendojuntoscoisas,acolhendoaexistncia,suas circunstnciaseurgncias,poderemos,ento,pensarapazesuas solicitaes.Estamosdiantedetarefaindelegvelqueprecisamos realizar.Emfelizoportunidade,noMuseuReinaSofiadeMadrid, permanecemos frente ao painel pintado por Pablo Picasso, hoje presente em terras de Espanha. O tempo no foi percebido enquanto tentvamos decifraragigantescapinturaquerecebeonomedeGuernica. Desejamos,tosomente,distantesdetentativadeapreciaotcnica, destacar as impresses causadas pela obra de Picasso. Em tons variantes depretoecinzacontrapostosaobranco,Guernicatestemunhaano-

4 Sobre o pensamento que calcula e o pensamento que medita, consideradas asdiferenasentreopensamentoquedominaemanipulaeopensamentoque meditaeindagapelosentido,verM.HEIDEGGERemSerenidade(Traduode MariaMadalenaAndradeeOlgaSantos.InstitutoPiaget,Lisboa2000,pp.20-27).LUS EVANDRO HINRICHSEN36 paz.Figuras,geometricamentecompostasebelamentedistorcidas, povoamasdiversasregiesdatela.Oquevemos?Vemosfiguras fragmentadasespalhadasnatelaformandoestranhatotalidade. Percebemos, atravs de Guernica, o horror e a irracionalidade da guerra. Parasentirmostalhorror,suficienterecordarmosdameque,na referida pintura, tal qual a Piet, chorando, carrega o filho desacordado entreseusbraos.AcidadedeGuernicafoialvodoprimeiro bombardeio massivo da histria5. A cincia aliada tcnica permitiu tal violncia,injustificveletremenda.Guernicaobra-primaporque, talvez,pelaprimeiravez,expresseaviolnciapossibilitadapelo desenvolvimentotcnico-cientficonocontrolvelpelarazo. Guernicaemociona,poispeemrelevoafragilidadehumanaeas contradiesdaeradatcnica.Guernicasignodetodasasguerras, supostamenteinteligentes,quesacrificaramvidaspreciosase insubstituveis.Guernicaretrata,paradoxalebelamente,ohorrorda no-paz.Senosdifcildefiniroudescreveroquesejaapazque aspiramos, Guernica nos permite compreender o horror da violncia, da no-pazquedesejamosevitar.Guernicaoportunidade,igualmente, para meditarmos sobre a paz que almejamos alcanar.SantoAgostinhotambmviveunumperododetransio denominadoromanidadetardia,tendotestemunhadooocasodeuma civilizaoeaalvoradadeumnovomundo.Herdeirodatradio clssicaeleitordasEscrituras,ligadoaummundoquedesapareciae abertonovidaderadicaldoEvangelho,conseguiuverparaalmdas contradiesdaqueleperodo,venceuosmedoseinseguranas intensamentepresentesnumperododeaceleradastransformaese, porqueforneceurazesaoexistirhumano,plantousementesde esperana nos coraes e mentes dos homens de todas as pocas.

5 O povoado de Guernica foi bombardeado no dia 26 de Abril de 1937 pela LegioCondordaaviaoalem,emapoioaoGeneralFrancoesuastropas, duranteaguerracivilespanhola.ApsGuernica,ousomassivodasnovas tecnologias a servio da guerra tornou-se tristemente corriqueiro. Recordemos o holocaustoacontecidonacidadedeHiroshima,em6deagostode1945,ena cidade de Nagasaki, em 9 de agosto do mesmo ano. As duas cidades do Japo, as primeirasarrasadaspelopoderioatmico-blico,tambmsosmboloda irracionalidade e horror da guerra, do uso das conquistas da cincia e da tcnica segundo fins militares.AGOSTINHO E A CIDADE: DE DEUS OU DOS HOMENS? 37 Desejamos,emnossoestudo,auxiliadosporSantoAgostinho, indicarasrazesantropolgicasdapaz,investigaroconceitodepaz propostoemDeCivitateDeiLivroXIX,identificaroscaminhosda pazpelo exame das relaes entre acidade de Deus e a cidade terrena, verificarasrelaesentreinquietao,reconciliaoepaze, finalmente, destacar possveis pistas de uma pedagogia da pazpresente na obra do hiponense.1. BREVES NOTCIAS DA VIDA E OBRA DE AURLIO AGOSTINHO AurlioAgostinhoviveuaglriaeodeclniodapresenaromana nafricadonorte,latinizadaecristianizada6.OjovemAgostinho, nascidoem13denovembrode354nessaorgulhosafricaLatina, cursou as primeiras letras em Madaura e realizou formao superior em Cartago.ApssuapassagemporRomaeMilo,entre383e387, retornasuafricanatalem388,dirigindo-sedeCartagoaTagaste, ondefundou,comseusamigosprximoseofilhoAdeodato,pequena comunidademonstica.Asdiversasconversesvividaspelofilhode Mnica,encontramnobatismo,recebidopelasmosdeAmbrsio,em Milo,noanode387,pontodeconvergncia.Contudo,obatismofoi precedidopelagradualsuperaodomaniquesmoedoceticismo mediante leitura dos textos platnicos. Atravs desses textos, Agostinho descobreosinteligveis,aimaterialidadedeDeus,anegatividade metafsicadomal.Damesmaforma,aconversopdeserjustificada atravsdeumexercciointelectualgigantesco,presentenosseus escritos filosficos eteolgicos.Importasublinharquo importantefoi operodomilans.EmMilo,edepoisCassicaco,conheceuostextos dosplatnicos,tendoaprendidocomAmbrsioainterpretaras Escrituras. Assim, entre 386 e 391, escreve dilogos caracterizados pela firmeconfiananarazoenaFilosofia,intensamenteinfluenciados peloatentoestudodoslivrosdosneoplatnicos,interpretadospor Agostinhoemchavecrist.Defato,asvivnciasdeCassicaco acompanhariamoprofessorderetricaportodaavida,estendendo-se,

6 Para mais as referncias historiogrficas sobre Tagaste e biogrficas sobre Agostinho cfr. P. BROWN, Santo Agostinho. Uma biografia. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 23 e ss. LUS EVANDRO HINRICHSEN38 de maneira mais intensa, at Tagaste, em 391. A obra Confessiones, por suaespecificidade,redigidanocontextodeHipona,eloquente testemunho do amadurecimento de Agostinho, podendo ser identificada comomarcodetransioentreosescritosdecarterfilosficoea produoliterriaposteriorcomo,porexemplo,DeTrinitateeDe Civitate Dei7. Agostinho foi amigo fiel, filho amoroso, professor competente, pai entusiasmadocomaintelignciadofilhoAdeodato,pastordedicado, um apaixonado pela vida, pela Filosofia e pelasabedoria crist. Chorou perdaspessoais,polemizouemdefesadassuasconvices,semnunca olvidaracaridade.Sobretudo,viveuoocasodapresenaromanaeda culturalatinanosolonorte-africano,suacasa,seular,suaptria terrestre.Quandodasuamorte,antesdecompletar76anos,em28de agosto de 430, Hipona tornar-se-ia o ltimo foco de resistncia romana nonortedafrica.Agostinho,nascidonaorgulhosaTagaste,animou Hipona por 35 anos com sua presena e ensinamentos pastorais8. Sitiada Hipona pelos Vndalos, entre os seus que Agostinho deseja morrer. E, apssuamorte,noscontaHamman9,estimulariaaresistnciados hiponenses por mais treze anos. Marcos Costa10 lembra-nos que a morte fsicadeAgostinhonoapagouessagrandeluz.Defato,suasobras

7 Procurandoorientarnossoestudo,sugerimosabreveseleocronolgica quesegue:ContraAcademicos(386),Debeatavita(386),Deordine(386), Soliloquia(386/387),Degrammatica(387),Deinmortalitateanimae(387),De quantitateanimae(387/388),Demoribusecclesiaecatholicaeetmoribus manichaeorum(388),DeGenesiadversusManichaeos(388-390),Demagistro (389),Dediversisquaestionibusoctogintatribus(388-396),Deverareligione (388-391),Demusica(387-391),Demendacio(394),Deliberoarbitrio (387/395),Deutilidadecredendi(391),Dedoctrinachristiana(397), Confessiones(397-401), Detrinitate(399-419), Deanima eteius origene(419-420), De civitate dei (413-426), Retractationes (426/427). 8 ConvidadopelobispoValrioparafundarummosteironacidade porturiadeHipona,oentomongeenotriointelectual,aclamadopela multido reunida na Baslica e ordenado presbtero, fato ocorrido no ano de 391. SucederiaValrio nactedra deHiponaem 396, deondeexerceriacomvigor e dedicaoseuministriopastoraleintelectual.Hipona,hojeAnaba,localiza-se na costa da Arglia.9 Cfr.A.GHAMMAN,SantoAgostinhoeseutempo.Traduodelvaro Cunha. Edies Paulinas, So Paulo 1989, p.309.10 Cfr. M. R. N. COSTA, Santo Agostinho. Um gnio intelectual a servio da f, EDIPUCRS, Porto Alegre 1999, p.195.AGOSTINHO E A CIDADE: DE DEUS OU DOS HOMENS? 39 influenciaramomundo,iluminarampensadoresechegaramatnossos dias, portando novidade, significadose incalculvel valor. Sem dvida, oscaminhosdocristianismoedaculturalocidentalencontramem Hipona,napresenadeAurlioAgostinho,inesgotvelfontede renovao e inspirao.2.TORNEI-MEUMPROBLEMAPARAMIMMESMO:QUAESTI O MI HIFACTUS SUMPercorrendo os textos de Santo Agostinho, descobrimos que, desde suaunidadecorpoemente,oserhumanosertemporal,capazde conhecer e amar, ser itinerante em busca de objeto digno de ser amado e capaz de responder aos anseios de seu corao. O que seria a paz seno abeatavita?Masnoqueconsisteabeatavita?Nodeleiteepossede bens perecveis? Ou, no gozo naquele que fonte de verdade, beleza e bondadesemocaso?Naquelequecausadeplenitudeeabundncia? Mas, como gozar desse bem sem ocaso se, na presenteexistncia, tudo efmero e passageiro?Ademais,prpriodavontadeessafaculdadeativadamente dividir-se entre isso e aquilo, exteriorizando-se. Adejando de objeto em objeto,procurandoafelicidadenascoisasfrgeis,avontadev-se envolvidapelodevir,tornando-secativadessesbensfinitosque continuamentelheescapam.Nessabusca,exteriorizadoelongedesi mesmo, o ser humano vive os conflitos de uma vontade que se duplica inutilmente. Noapstolo Paulo, encontramos a duplicidade da Lei11. J emAgostinho,descobrimosaduplicidadedavontadeque, exteriorizada,buscainadequadamente,nosbensinferioresemdios, quilo que de fato aspira: repouso num bem sem ocaso.Como resolver o problema da duplicidade da vontade? Unificando-a.Dequemodopossvelunific-la?Oamor,comodesejo(qua apetitus), busca possuir o impossvel, aquilo que perecvel. Esse amor

11 Segundo o apstolo Paulo (Rm 15, 19): Realmente no consigo entender o que fao; pois no pratico o que quero, mas fao o que detesto. (...) Com efeito, no fao o bem que eu quero, mas pratico o mal que no quero. So Paulo d-se contadaduplicidadedalei,pois,mesmoquandocumprida,lembraopecado. PaulorespondeaodilemaatravsdaGraa.JemAgostinho,oproblemados desvios da vontade encontrar resposta na sua doutrina sobre o amor. LUS EVANDRO HINRICHSEN40 nosafastadosummumbonum,torna-secupiditas,desejodepossee domnio daquilo que nos escapa a todo instante. Como possvel vencer afugaeadispersocausadapelacupiditas?Asuperaoacontecer pela caritas quando da supresso da separao entre o eu que deseja e o objeto desejado. O remdio para a disperso a busca de si mesmo. Na dinmicadacaritas,oencontrodecadaumconsigomesmoser, concomitantemente,oencontrocomDeus.Omotordessabuscaa inquietao, o quaerere Deum. Somente experimenta essa inquietao quem, de fato, livre de evases, capaz de tornar-se um problema para simesmo.Atravsdaquaestiomihifactussum,emconsequncia, retornoamimmesmoe,vencendoadisperso,nainterioridade reconquistada,d-seaprivilegiadarevelaododivinoaohomem interior.Adinmicadapaz,paraofilsofonorte-africano,supeprocesso deconversodocoraoedamente,transformadaainquietaoem perguntasobreoautnticosentidodaexistncia.Adinmicadapaz, portanto,noacontecepelaeliminaodainquietao,pelasupresso daspaixes,pelafugaterica,maspelatransformaodainquietao, daspaixesedacontemplaoemativaepermanentebuscadeDeus emmim,nacriaoenasoutraspessoas.Are-ligaooportunizada peloencontrocomDeusatravsdabuscadosimesmoprofundo, assim acreditamos, tarefa filosfica e tica de inigualvel significado.2.1. Pondus meum amor meusEmDeliberoarbitrio12,aprendemosqueavontadeessebem mdio quando adere ao bem imutvel ou verdade eterna, encaminha oserhumanovidafeliz.Nessaperspectiva,enquantobemmdio,o livre arbtrio deve aderir s virtudes. As virtudes, esses bens superiores, havero de assegurar medida s nossas vidas e permitiro o apropriado usodosbensmdioseinferiores13.Assim,usandoadequadamenteos

12 Cfr.Agostinho,DeliberoarbitrioII,XIX,52(CCL29,ed.W.M. GREEN, Brepols, Turnhout 1970, p. 271).Edio usadanesteartigo:Agostinho, Dilogo Sobre o Livre Arbtrio. Traduo e Introduo de Paula Oliveira e Silva. INCM, Lisboa 2001, pp. 239-241. 13 Seolivrearbtriodavontadeumbemmdio,transitandoentrebens temporais ou inferiores, precisa aderir aos bens superiores, s virtudes. Aderindo AGOSTINHO E A CIDADE: DE DEUS OU DOS HOMENS? 41 bensinferiorespoderemosgozardobemsupremo.EmDebeatavita14 aprendemosqueasabedoriaamedidadaalma(modusanimi). Segundo essa proposio, quando a alma encontra asabedoria, no fixa maisoolharnasaparnciasenoenganoe,repousandoemsimesma, volta-seinteiramenteverdade15.Oestadodabeatavitaimplicana superaodaindignciapelaconquistadasabedoriaessamedidada almaematenosupremamedida,regradaverdadeeidentificada com Deus.Percebemos,nasreflexesdeAgostinho,recorrentepreocupao comavontade,essafaculdadelivreemuitasvezesarbitrria.O hiponensebuscarespostasaosdesviosdavontade,estimulandoo exercciofilosficoeaprticadasvirtudes.Noentanto,nasua concepodoamor,jreferida,queencontraremosrespostaslidae convincente.Descobrimos,comofilhodeMnica,queosbensadequados almasoosbensespirituais,vinculadosaDeuseconquistadospela vivncia da caridade. Somente os bens que no passam podem assegurar aoserhumanoplenitudeerealizao.NasConfisses,lemos:Pondus meumamormeus!Ora,avontade,emsuaarbitrariedade,flutuaentre objetosperecveiseincapazesderespondersaspiraesdohomem. Somenteoamor,cujafonteDeus,doargravidadeecentralidade alma.Nessa perspectiva,orientadosporHannahArendt16,importante indagar:seoamoropesoougravidadequeimpedeaflutuaoda alma, de que amor nos fala o filho de Tagaste? De amor ordenado ou da ordinata dilectio. A ordinata dilectio, pela eficaz renncia de si mesmo, assegurando direo a nossa capacidade de amar, permite que amemos o sersupremo.Assim,amandoaDeus17,amandooamoremsua plenitude,passamosaamartodasascoisas:acriao,osbens

svirtudes,emconsequncia,faradequadousodosbensinferiores, considerando, na vida presente e futura, o gozo no sumo bem. 14 Cfr.Agostinho,DebeatavitaIV,32(CCL29,ed.W.M.GREEN, Brepols,Turnhout1970,p.83).Ediousadanesteartigo:Agostinho,Dilogo SobreaFelicidade.Traduo,IntroduoeNotasdeMrioSantiagode Carvalho. Edies 70, Lisboa 1998, p. 81-83. Doravante: BV. 15 Cfr. Idem, BV IV, 33.16 Cfr.H.ARENDT,OconceitodeamoremSantoAgostinho.Traduode Alberto Pereira Dinis, Instituto Piaget, Lisboa 1997, pp. 39-44.17 Cfr. H. ARENDT, O conceito de amor..., cit., p. 117.LUS EVANDRO HINRICHSEN42 temporais,ansmesmossegundoaordemdesseamor.Hannah, explicitando essa compreenso, declara: EmSantoAgostinho,assimcomomaistardeemDunsScotus,a soluodoconflitointernodavontadesurgeporuma transformaodaprpriavontadeemamor.Avontadevistaem seuaspectooperatrioefuncionalcomoumagentedeunio,de ligaopodetambmserdefinidacomoamor(voluntas:amor seudilectio).Noamor,hnovamentetrscoisas:aquelequeama, aquiloqueamadoeoamor.Oamorumacertavidaqueliga duas coisas, aquele que ama e aquilo que amado18.A ordinata dilectio, em consequncia, capaz de, transformando a vontadeemamor,impedirsuasflutuaes,assegurandogravidadeou estabilidade existnciahumana. Dessa forma, aqueleque ama a Deus privativamentepassaaamaremliberdadetodososseressegundoa ordemdesseamor.Aordinatadilectiodiferedacupiditas,poisno movimento que busca a posse do objeto desejado. Naordinata dilectio, aquele que ama procura, em tudo e em todos, oportunidade para amar a Deus. Amando a tudo e a todos segundo a ordem do amor que procede de Deus, sublinhamos, amar em liberdade e permitir que cada criatura realize plenamente o sentido do seu existir. Sobretudo, em cada homem emparticular,amar aorigemdetodosos existentes, a raizdoprprio amor19. Nesse sentido, grandioso e sublime amar algo ou algum, pois amaralgooualgumimplicadizer:queroquetusejasAmo:volout sis.Nasoluoagostinianaaoproblemadosdesviosdeumavontade arbitrria,encontramoselogioaoamorereconciliao.Areflexo sobreapaznafamliaenasociedadeexige,igualmente,atenopara comosimesmoprofundo.OamorcidadedeDeusoucidade terrestreestradicadoemdoisamores,duasinclinaes,duas possibilidades existenciaispresentesno corao do homem:caritas,ou amornaliberdadedeDeus,ecupiditas,ouamorposse,exageradoem ambioeconsiderao desimesmo.Apazque tantoalmejamos ou a

18 Idem,Avidadoesprito.TraduodeCsarAugustodeAlmeida, Antnio Abranches, Helena Martins. Civilizao Brasileira, Rio de Janeiro 2009, p.366. 19 Cfr. Idem, O conceito de amor..., cit., p.117.AGOSTINHO E A CIDADE: DE DEUS OU DOS HOMENS? 43 no-pazqueprocuramosevitar,portanto,encontrasuaorigemno coraodecadaserhumano,segundoograudeamoraDeusou exageradoamorasimesmo.Entretanto,antesdefalarmosdasduas cidades,escutemosAurlioAgostinho,leitorecantordosSalmos,que proclama O meu peso o meu amor; sou levado por ele para onde quer que seja levado. Somos acendidos pelo teu dom e somos levados para o alto;comeamosaarderevamos.Ascendemosasascensesno coraoecantamosocnticodassubidas.Com oteufogo,como fogodatuabondade,comeamosaarderevamos,porquevamos para o alto, para a paz de Jerusalm, porque exultei com aquilo que me disseram: iremos para a casa do Senhor. A nos colocar a tua boavontade,paraquenadamaisdesejemosdoquepermanecerl para sempre20. 3. A DIALTICA DA PAZ: DOIS AMORES FUNDARAM DUAS CIDADES DeclaraAgostinho:Doisamoresfundaram,portanto,duas cidades, a saber: o amor prprio, levado ao desprezo de Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si prprio, a celeste21. Enquanto a primeira, concupiscente, ufana-se em si mesma, a segunda, nutrida na piedade,rendeglriasealegra-seemDeus.Numa,obemindividual buscadoaqualquerpreo;noutra,obemsocialametadosseus participantes.Numa,ossbiosdestemundoseconsideramvirtuosos; noutra,avirtudesomenteseralcanadaemDeus.Entretanto, paradoxalmente, as duas cidades convivem no contraditrio corao do homem.AredaodaCidadedeDeus,magnumopusetarduum,iniciada em313,somenteseriaconcludaem42622,consumindo13anosde

20 Agostinho, Conf. XIII, IX, 10. 21 Idem, De civitate dei XIV, XXVIII (CCL 48, ed. B. DOMBART/A. KALB, Brepols, Turhout 1955, p. 451).Edio usada neste artigo: Agostinho, A Cidade deDeus,vol.III. Traduo, Prefcio, NotaBiogrficae TranscriesdeJ. Dias Pereira. FCG, Lisboa 1995, p. 1319. Doravante: Civ. dei.22 SobreoprojetoredacionaldaCidadedeDeus,lemosemPeterBrown (2005, p.377):AgostinhoviveravinteanoscomobispoprovincialemHipona. Agorasuareputaoestavaemjogodiantedeumaplateiamuitoexigentee diversa. O resultado que a Cidade de Deus o livro mais formal dentre os que LUS EVANDRO HINRICHSEN44 intensa reflexo e labor23 do bispo de Hipona. A paz, tema central dessa imensa obra, por no consistir na simples ausncia da guerra, empenhou ofilsofonorte-africanonaampliaodeseusignificado,nabuscade adequada definio. A percepo da histria humana dividida entre dois projetos,oprimeiro,odacidadeterrestre,fundadasobreaforaea violncia,eooutro,odacidadeceleste,baseadonapazetendoem Cristo,oprncipedapaz,seucondutoreartfice,encontra, indubitavelmente, no tema da paz seu fio condutor.Dedicaremos especial ateno ao Livro XIX da Cidade de Deus, no qualofilsofonorte-africano analisa atentamente o conceitode justia

eleescreveu.Foiplanejadodeantemo,emescalamacia:cincolivros versariamsobreosqueadoravamosdeusesembuscadafelicidadenaterra; cinco,sobreosqueadoravamembuscadafelicidadeeterna;osoutrosdoze desenvolveriam o grande tema de Agostinho: quatro discorreriam sobre a origem dasDuasCidades,umadeDeuseoutradomundo;quatrosobreo desdobramentodocursodessascidadesnopassado,equatrosobreseudestino final. 23 Em410,acidadedeRoma,esplndidacapitaldomundoantigo,havia sucumbido aos brbaros liderados por Alarico. Entretanto, afirmar que a redao daCidadedeDeusencontrasuaorigemnatentativadeAgostinhoexplicaro saquedeRomaalgotemerrio.SegundoPeterBrown(2005,p.385),A CidadedeDeusnopodeserexplicadaemtermosdesuaorigemimediata. particularmentesuperficialconsider-laumlivrosobreosaquedeRoma. Agostinho poderia simplesmente escrever um livro sobrea Cidade de Deus sem talacontecimento.Oqueosaquefezfoidar-lheumpblicoquestionadore especficoemCartago,dondeosaquedeRomaassegurouqueumlivroque poderiatersidoumaobrapuradeexegeseparaoutrosestudiososcristos() viesseatornar-seumconfrontodeliberadocontraopaganismo.Apsa conquista de Roma por Alarico acorriam frica do norte, sobretudo a Cartago, romanosdaaristocracia,muitosdelescristosrecentementeconvertidosenem sempre convictos de sua opo pelo Evangelho. Ao mesmo tempo, o culto a um passado pago idealizado era bastante difundido. Ao escrever a Cidade de Deus, odoutordafricaLatinavale-sedesuaerudioclssica,doseuprofundo conhecimentodatradiolatina,oquepermitiudebateredesconstruiros argumentos dos saudosistas dessepassado pago idealizado. Passado quenunca houvera,defato,existido.Atravsdeatentoexerccioexegtico,Santo Agostinhodesconstriinterpretaesequivocadasdostextosclssicos,em defesadafcriste,aomesmotempo,natentativadeproporinterpretaoo maisprximapossveldaverdadedosacontecimentos.SeaCidadedeDeus podeserconsideradainterpretaodahistrialuzdaf,noobstante,, tambm,atentotratadodeexegesequenodescuidaoudesprezaosdesafios propostos razo pelas ambiguidades da histria. AGOSTINHO E A CIDADE: DE DEUS OU DOS HOMENS? 45 e, em consequncia, trabalha, tambm, cuidadosa e amplamente, o tema da paz.3.1 A paz a suprema aspirao dos seres Noqueconsisteosoberanobem?Nogozodetodososprazeres possveisnapresentevidaounafelicidadeencontradaquandodavida eterna? Por que devemos cultuar os deuses? Para obter mrito e alegria navidapresenteoualcanarfelicidadenavidaquevir?Osoberano bemresultadodaprticadasvirtudes,alcanadopelarealizaoda temperana, da fortaleza, da prudncia e da justia em nossas vidas? Eis algumasquestesqueAgostinhodiscutecomVarroeoutros representantesdaculturaclssicanosprimeiroscaptulosdoLivro XIX.Ali,enunciaasdificuldadesdavidaemsociedade,denunciaos falsosmotivospelosquaisasguerrassojustificadas,avaliaa contribuio e limites dos pensadores antigos. ParaAgostinho,complementandoopensamentodeVarro,as virtudesnaturaissoimportantesconsecuodapaz;entretanto, precisamosviv-lasemDeusenaesperana,poisagraacapaz, inclusive, de transformar os males em bens24.SegundoobispodeHipona,apazbemtonobrequemesmo entre as coisas terrenas e mortais nada existe mais grato ao ouvido, nem maisdesejvelaodesejo,nemsuperioremexcelncia25.Apaza supremaaspiraodosseres.Mesmonaguerra,apazoobjetivo perseguidoporaquelesque,afanando-seemdemonstrarseuvalor guerreiro,comandamecombatem,buscandoasubmissodosseus adversrios26. Entretanto, o filho de Mnica nos alerta:

24 Agostinho,Civ.dei,XIX,X:Quando,portanto,ns,homensmortais, encontramosnascoisasperecveisaquelapaz,talqualelacpodeexistir,a virtude,sevivermoscomretido,utiliza-seconvenientementedosseus benefcios;mas,quando ano encontramos, aindaassim a virtudesabeutilizar-sebemmesmodosmalesqueohomemtemdepadecer.Masentoquea virtude ser verdadeira, quando, com todos os bens de que ela faz bom uso e com tudo o que ela faz no bom uso dos bens e males, ela prpria se referir quelefim onde teremos uma paz tal e to grande que melhor e maior no poder haver. 25 Idem, Civ. dei XIX, XI. 26 Agostinho, Civ. dei, XIX, XII, 1.LUS EVANDRO HINRICHSEN46 ()todoohomemprocuraapaz,mesmofazendoaguerra,mas ningumprocuraaguerraaofazerapaz.Mesmoaquelesque pretendemperturbarapazemqueestonoodeiamapaz,mas antes desejam mud-la a seu gosto27. Apazqueacontecenavidaterrena,defato,sempreprovisria, continuamentevioladapelaprecariedadedenossasituaoexistencial, consideradososdesviosdavontade,ascontradiesdocorao humano. Nem casa, nem famlia, nem cidade encontram a autntica paz. A paz continuamente agredida e desafiada, seja pela rdua e dinmica tarefadareconciliaoexperimentadaporcadaserhumano,sejapelo abusodosgovernantes.Paraalmdaconvivnciaharmoniosa,oque verificamosnasociedadedoshomensadesordem,metaforicamente descrita atravs do episdio bblico da torre de Babel28. Por isso, a paz da cidade terrena mais anseio do que acontecimento, e mesmo para os congregadospela f, apazseapresentacomoprimciasdavida futura, antecipada na esperana, pois impossvel sua existncia em plenitude em meio provisoriedade das coisas mortais.Noobstante,claraaexistnciadeumplanodivinorefletidona natureza,estabelecendoqueapazsejaoobjetivodetodasascoisas, pois,emborasubmetidasaodevir,nadasesubtraisleisdosupremo Criador e Ordenador, que governa a paz do universo29. Essa tendncia pazpresentetantonosseresconscientes,comonosseresmais nfimos.Existe,portanto,nanatureza,primeiraeprincipalmenteno homem,umainclinaopaz.Dessamaneira,oconceitodepaz transpeasimplescompreensodaausnciadeguerra,precisandoser compreendidocomoaausnciadeperturbaoemtodososnveisdo seredesuasrelaes.Apaz,assim,ocaminhodacriaoeda histria.Sepercorrermos,enfim,osdiversosnveisdacriao, compreenderemosqueapazaspiraodetodososseres,dos inferioresaossuperiores,enquantopretendemexistirerealizarsuas naturezas30.Transitandoemescalaascendentepelasdiversas

27 Idem, Civ. dei, XIX, XII, 1.28 Idem, Civ. dei XIX, VII.29 Idem, Civ. dei XIX, XII, 3.30 Agostinho, Civ. dei, XIX, XII.AGOSTINHO E A CIDADE: DE DEUS OU DOS HOMENS? 47 manifestaesdapazpoderemos,ento,entend-lacomamplitudee, atravs dessa estratgia, poderemos defini-la.3.2 Pax omnium rerum, tranquillitas ordinisPassemosaexaminar,considerandoasreflexesprecedentes,a compreenso agostiniana de paz: A paz do corpo a composio ordenada das suas partes; a paz da almairracionalatranquilidadeordenadadosseusapetites;apaz da alma racional o consenso ordenado da cognio e da aco; a pazdocorpoedaalmaavidaeasadeordenadasdoser animado.ApazdohomemmortalcomDeusaobedincia ordenadanafsobaleieterna;apazdoshomensaconcrdia ordenada; a paz da casa a ordenada concrdia dos seus habitantes no mando e na obedincia; a paz da cidade a concrdia ordenada dos cidados no mando e na obedincia. A paz da cidade celeste comunidadeabsolutamenteordenadaeabsolutamenteharmoniosa nogozodeDeusenogozomtuoemDeus.Apazdetodasas coisas, a tranquilidade da ordem31.Atentamente,examinemosoqueseja apazemcadaumdoscasos nomeados pelo hiponense: a) A paz do corpo pode ser observada em qualquer ente, mesmo nas coisasinanimadas.Aharmoniaentresuaspartesumbem,porqueo existir um bem. O ser um bem, o no-ser a carncia de bem. Logo, ofatodeexistirumbem,aordenao existnciaobemdosere, portanto, a paz do ser. Se possvel que exista uma natureza privada de mal,entretanto,impossvelqueexistaumasemalgumbem,poiso simples existir jumbem.Estamosdiantedofundamentometafsico da paz.b)Apazdaalmairracionalconsistenorepousodeseus movimentos sensitivos. d)Apazdaalmaracionalresultadaharmoniaentreintelectoe vontade, revelando-se no agir. e)Apazdocorpoedaalmamanifestapelavidaordenadada alma e pela sade do corpo.

31 Idem, Civ. dei, XIX, XIII.LUS EVANDRO HINRICHSEN48 f) A paz entre o homem e Deus acontece atravs da vida na f e sob a lei divina.g) A paz dos homens entre si a vida ordenada nesse mundo.h)Apaznolarconsequnciadaharmoniaentreomandareo obedecer. i)Apazdacidadeaordenadaconcrdiaentregovernantese governados.Aordenadaconcrdiaoeloprofundoquedeveunir governantes e governados, permitindo que as relaes entre autoridade e sditosseestabeleam.Acidadeconstitudapeloshomenstambm procura a paz e uma autntica paz terrena no deve ser desconsiderada. Entretanto, essa paznopode serdefinida comoasimplesausnciade tumultos,oupelosilnciooriginadodomedoimpostopelotirano.A paz da concrdia nasce das convices profundas que unem governantes esditos,oscongregandoeencaminhandorealizaodobemda cidade terrena. A paz da concrdia, enquanto autntica paz, baseada na boavontadeexistenteentreoshomens,deveserincansavelmente perseguida.j) A paz na cidade de Deus acontecer quando da unio do homem com Deus para gozar de Deus e, ao mesmo tempo, em Deus. A pazda cidade dos homens plida sombra comparada paz da cidade celeste. Na cidade de Deus, a paz provisria, construda comtantos esforos na cidadeterrena,tornar-se-plenitude.Ento,oscongregadosporDeus fruiro dela e Nele eternamente.Aordenadssimaeconcordssimauniodoshomensentresi amandoeternamenteaDeus,serrealidadenaJerusalmceleste. Contudo,napresenteperegrinao,serantegozadaprovisoriamentee em esperana, tal qual epifania de felicidade sem ocaso32.Apsdedicarmosatenosdiversasdefiniescontidasna compreensoagostinianadepaz33,cumpreexaminaroenunciado

32 DeacordocomSantoAgostinho(cfr.Civ.deiXIX,XX)podemos afirmarquecumpreesperanacompletarasvirtudescardeais.Aesperana acrescentada fortaleza pela qual suportamos as adversidades, temperana com aqualcontrolamosaspaixes,prudncia,regradocorretodiscernimento, justia,fundamentodaconvivnciaemsociedade,permitegozar antecipadamente do sumo bem prometido: a vida eterna em Deus.33 AdescriodapazpropostaporAgostinho,oraexaminada,comporta novesignificadosqueencontramplenosentidoatravsdadcimadefinio:a paz a tranquilidade da ordem.AGOSTINHO E A CIDADE: DE DEUS OU DOS HOMENS? 49 basilarpropostopelodoutordagraa,sentenaqueabrigaesustenta todas as demais: a paz de todas as coisas a tranquilidade da ordem.provvelqueessasejaumadasmaiscompletaseabrangentes definies do que seja a paz, expressando cristalinamente o pensamento dohiponense.Estamosdiantededoisconceitosauto-referidosde maneirasutileinteressante.Arefernciadaordempaz,nessa perspectiva,iterativa,pois,senohpazsemordem,contudo,a ordemdapaznoseconfundecomqualquerordem.Aordemdapaz noresultadeordemimpostapelafora,poisnela,naordemdapaz, transparece a tranquilidade, pelo fato de as partes estarem ordenadas tal como o plano divino deseja.Adecomposiodotextonosrevelouumcrescendo,uma hierarquia,quedasformasinferioresnosconduzsformassuperiores de paz, ou seja, da paz do corpo paz de todas as coisas34. Retornando sentenaqueencerraacitaestudadaapazdetodasascoisasa tranquilidadedaordem,convenientededicarmosalgumtempo compreensodoconceitodeordempropostopelodoutordafrica Latina.

34 Num escrito aindaindito, intituladoEducar para a paz,L. A.DEBONI afirma:emtodasasformasdepaz,percebe-sequeelasignificaumcerto equilbrio, a observncia de uma determinada ordem entre suas partes. H, pois, uma ordem que leva a este equilbrio, que se deixa definir como paz. Em cada um dos casos examinados, esse equilbrio poderia ser caracterizado da forma que segue.Paracorroboraraestaafirmao,DeBonirecolheumconjuntode significados para o termo paz, obtidos em W. GEERLINGS,De civitate dei XIX alsBuchderFriedenslehre,inC.HORN(org.),AugustinusDecivitatedei, Akademie Verlag, Berlim 1997, pp. 228-231: 1. Complexo temperatura: paz das partes do corpo; 2. Calmarequies: pazdaalmairracional; 3. Harmonia consensio: paz da alma racional; 4. Vida e sade vita et salus: paz do homem; 5.Obedinciaobedientia:pazentreohomemeDeus;6.Concrdia concordia:pazentreoshomens;7.Concrdiaconcordia:paznolar;8. Concrdia concordia: paz na cidade terrena; 9. Unio societas: paz da cidade celeste;10.Tranquilidadetranquillitas:pazdetodasascoisas.Oscinco primeiroscasosexaminamapazindividual,sendoograuinferiordepaz condio para a existncia do grau superior. Nos trs casos seguintes, tratada a pazdosindivduosentresi,nafamliaenacidade.Entretanto,apazdacidade celestevaialm,jnoconcrdia,masunio.Nosoitoprimeiroscasos,o adjetivoempregadoordenado.Nopenltimo,encontramososuperlativo ordenadssimo.Noltimograu,oadjetivosetransformaemsubstantivo,sendo usada simplesmente a palavra ordem.LUS EVANDRO HINRICHSEN50 3.3 A beleza da ordem csmica como caminho pazAsrelaesentrepazeordemserocompreendidascommaior adequaopelaconsideraodocarteresttico-cosmolgicodo conceito de ordem, reiteradamente proposto por Santo Agostinho. Nessa perspectiva, oDilogo sobre a Ordem singular exemplo do otimismo metafsico agostiniano relativo criao. No universo criado, tudo est dispostocomunidadeeordem,portandobelezaebondade,presentes emtodasasregiesenveisdacriao.Mesmoospequenosinsetos estoformadospormembrosequilibradamentedispostose relacionados,capazesderevelarproporoeharmonia35.Emtodasas regies do universo, percebemos ordem, que encontra sua causa ltima narazoprovidentequeatudogoverna.Acriao,rtmicaebela, testemunhodogovernoprovidentedaordem,poisemtodaparteh regularidade,reinaamedida36.Ogovernoprovidentedaordem,na criao,portanto,seoferececomoparadigmaaoserhumanoque, guardando-aemsuaexistncia,porelaconduzidoaDeus37, experienciando, assim, a felicidade.A busca de medida em nossas vidas, segundo o padro da ordem na criao,atendendoaomovimentodebuscadafelicidade,implica contnuoaprendizado.Nocosmocriado,tudoestbemdisposto,at aquiloquenosparecedisforme.Seolharmosalgunsmembrosdos animaisisoladamente,semaconexocomoorganismointeiro,nos parecerorepulsivos.Noentanto,porseremnecessrios,aordemda naturezanoossuprimiu,colocando-osdiscretamentenoscorpose destacando os membros mais nobres38. Pela distino, ento, a natureza atingeoequilbrio,considerandoaunidadedoorganismoanimal, composto de membros aparentemente repugnantes, e de membros belos,

35 Cfr.Agostinho,DeordineI,I,2(CCL29,ed.W.M.GREEN,1970,pp. 89-90).Ediousadanesteartigo:Agostinho,DilogoSobreaOrdem. Traduo, Introduo e Notas de Paula Oliveira e Silva. INCM, Lisboa 2000, pp. 87-89. Doravante: DO. 36 Idem,DOI,VIII,26:Ondenohumasombradeestabilidade?Onde no h uma imitao daquela beleza to verdadeira? Onde no h medida?.37 Idem, DO I, IX, 27: Ordem aquilo que, se a conservarmos na vida, nos conduziraDeus;enochegaremosaDeusanoserqueaconservemosna vida.38 Cfr. Agostinho, DO II, IV, 12. AGOSTINHO E A CIDADE: DE DEUS OU DOS HOMENS? 51 necessariamenterelacionados.Dessaforma,abelezadeumorganismo somentepoderserintencionadaquandodacaptaodesuaunidade. Os poetas, da mesmamaneira, utilizando barbarismos e solecimos39no exerccio da liberdade literria, atingem o belo atravs da distino40. O ser humano, portanto, precisa continuamente aprender a ver e a entender osignificadodacriao,dasobrasdearte,desimesmo,dos inteligveis,daordemdivinaquetudodispe,peladistino,belae convenientemente. Assim, pela via da beleza, poder entender e realizar a paz na sua existncia.3.4 O peregrino e a construo da paz na cidade terrena ComSantoAgostinhorefletimossobrecondioperegrinadoser humano.Descobrimosqueapazsomenteservividaemplenitudena vidafutura.SeaautnticajustiarespostadeDeusssplicas humanas, tambm a paz dom de Deus aos anseios dos mortais. Se ela se encontra para alm de nossas foras, isso noimplica em desistncia ou fuga do mundo. Muito pelo contrrio.NapocadeAgostinho,msticasdecarteresotricoouat mesmofilosficopropunhamafugadomundocomosoluoaos malesdohomem,desmerecendoavidaemsociedade.Atranquilidade dapazpensadaporAgostinho,sublinhemos,distancia-sedessas tentativasdeevaso,pois,enquantoperegrinandonomundo,onde muitas coisas boas e belas causam deleite, assumimos compromisso de testemunharerealizarobem.PeterBrownnosajudanacompreenso da dialtica relao entre as duas cidades, permitindo entender melhor o ser humano, ser inquieto e itinerante, pois ()operegrinustambmumresidentetemporrio.Temde aceitarumadependnciantimadavidaqueocerca:temde reconhecer que essa foi criada por homens como ele para chegar a

39 Cfr. Idem, DO II, IV, 13. 40 Doadequadousodosrecursoslingusticosresultaobelonapoesia.O poetaeoretricoutilizamparoxismosnassuasconstrues:simplicidadee elevao,burlaerespeitosregrassintticasemorfolgicas,pronncia deturpadaearticulaocuidadosadaspalavras.Dessemodo,pormeiode distines,fazemapareceroefeitobeloalmejado.Decertamaneira,imitama ordempresentenanaturezautilizandooprincpiodadistino,cujoresultado equilbrio e harmonia.LUS EVANDRO HINRICHSEN52 umbemqueelesecomprazemrepartircomosoutros,para melhorarumasituao,paraevitarummalmaior;etemdese sentir sinceramentegrato pelas condies favorveis que esse bem proporciona. Na verdade, Agostinho passara a esperar que o cristo tivesse conscincia da persistncia dos laos que sempre o ligariam ao mundo. O pensamento de sua meia-idade fora marcado por uma apreciaocrescentedovalordesseslaos.Assim,ACidadede Deus, longe de ser um livro sobre a fuga do mundo, um texto cujo temarecorrenteaquiloquenosdizrespeitonestavidamortal comum; um livro sobre o ser extramundano no mundo41.NacidadeperegrinasaudamosaJerusalmceleste,contudo,sem olvidarnossoscompromissoscomacriao,comasoutraspessoas, comaconstruodapazentreoshomens.Nacidadeperegrina,os filhosdaJerusalmceleste,noexercciodaprofecia,prefiguramo futuroescatolgico,acrescentandocorcanoinacabadadacriao, comonotasquetornambelasumamelodia,soandoaseutempo,no ritmoindicadopelatranquilidadedapaz.Assim,aquelequeantevna vidapresenteacidadeceleste,testemunha,atravsdegestosdepaze cuidado, a promessa da plenitude futura.4 ALGUMAS PISTAS PARA UMA PEDAGOGIA DA PAZApstermoscaminhadocomSantoAgostinho,perseguindoas razes antropolgicas da paz, tendo examinado a noo de paz proposta noLivroXIXdaCidadedeDeus,julgamosinteressantedestacar algumas descobertas. o que, brevemente, procuraremos realizar.Apaz,segundoohiponense,supeareconciliao:decadaum consigomesmo,entreosmembrosdafamlia,entreoshomensna sociedade.Apacificao interiorcondio pacificaodafamliae dasociedade.claroqueastrsdimensesdaexistnciahumanase reivindicam,masacuradainterioridadeprofundanodeveser descuidada. Na exortao feita por Agostinho em De vera religione Noli foras ire;inteipsumredi;ininteriorehominehabitatveritas42

41 P. BROWN, Santo Agostinho, cit, p. 401.42 Agostinho, De vera religione XXXIX, 72 (No queiras dispersar-te fora; entradentrodetimesmo,porquenohomeminteriorresideaverdade:nossa AGOSTINHO E A CIDADE: DE DEUS OU DOS HOMENS? 53 encontraremos antdoto fragmentao cognitiva e existencial de nossa poca,poisainquiriointeriorresultaemautoconhecimento, pacificao, centralidade vida43.Apazencontradanaharmonia,sejanoritmodocosmocriado, sejaemnossavidapessoal,escolar,familiarousocial.Aurlio Agostinhofoidedicadoprofessor,tendopropostoumprograma pedaggico no Dilogo sobre a Ordem. No programa proposto, acredita que, educando a razo e a sensibilidade profunda (vontade e afetos), nos habilitaremosvidafeliz,esseoutronomedapaz.Classificaas diversasdisciplinassegundoseusobjetivoseabrangncia.Assim,no grupodasartesdalinguagem,encontramosagramtica,dialticae retrica.Amsica,geometria,astronomiaearitmticapertencemao campodasmatemticas.Noentanto,amsicaeapoesia,ditasbelas artes, na sua gratuidade, ligam as artes da linguagem (aplicadas) s artes

traduo).(CCL32,ed.K.-D.DAUR,1962, p.234).Aedioportuguesadesta obraencontra-seempreparaoporPaulaOliveiraeSilvaeManuelRamos, Universidade do Porto.43 Nessadireo,importafrisar,prxis,emsentidoautntico,diferedo ativismo. A primeira, a prxis, resultado de vida interior que, tendo encontrado seucentroemDeus,jamaiscansadebusc-lopeloestudo,pelocultivodosi mesmoprofundo,pelaprocuradareconciliao.Joativismo,enquanto disperso,movimentodesarticuladoaoexterior,nopermiteoretornoasi mesmo. A privao da reflexo e a compulso em agir por agir, caractersticas do ativismo,diferemdaautnticaprxis(poisessaencontraseualimentona meditao,noestudo),dabuscadaverdadeemtodasascoisas,narenovada procuradeDeus.Contemporaneamente,tildistinguirinformaode conhecimento,pois,consumidosporsignosvirtuais,transitamosnasuperfcie dascoisas,olvidandoavidaeexistindoinautenticamente.Somenteatravsda buscadoconhecimento,essemovimentopeloqualcriticamosasinformaes, articulando-as entre si, examinando-as, poderemos superar a superficialidade e a inautenticidade.Essapassagemdasociedadedasinformaessociedadedo conhecimento,dopensamentoanalticoaopensamentointegrativo,pela recuperaodosimesmoprofundo,pensamos,vitalconstruodapaz.A banalizaodaviolncia,atravsdesuavirtualizao,revelaumsegundo aspecto da disperso exterior e descuido para com o si mesmo. As relaes face a faceeocontatocomomundoencontramcrescentebarreiranasmediaes tecnolgicas, pois j no nos relacionamos diretamente, mas virtualmente; j no habitamos o mundo, mas sua representao. De consequncia, anestesiados em nossaintelignciaesensibilidade,trivializamosaviolncia.Asuperaoda banalizao da violncia, fundamental consecuo da paz, ser alcanada pelo cultivodasensibilidadetica,pelocuidadodomundoe,tambm,pela redescoberta da interioridade. LUS EVANDRO HINRICHSEN54 matemticas(tericas),preparandoaalmaaoexercciocontemplativo. A geometria, astronomia e aritmtica permitem que a razo descubra os nmeros e figuras inteligveis, habilitando-a ao exerccio da Filosofia. A Filosofia,artedialticaporexcelncia,tendoencaminhadoarazo contemplaodoPrimeiroPrincpio,capacita-adevisoabrangentee julgar criterioso. Interessante o lugar e papel da msica, situada entre as artes da linguagem e as matemticas, possibilitantoque a razo transite dos belos sons aos nmeros inteligveis que esses denotam44.As artes liberais, como por degraus, educam a razo, olho daalma, viso integrativa de todo o real, despertando no ser humano o sentido da beleza e verdade presentes em todas as regies da criao, na alma e, plenamente, em Deus. Nessa direo, o estudo da Filosofia contribui ao embelezamento da vida e nos compromete construo da paz45.Dizamos que o amor capaz de ordenar a vontade, impedindo suas flutuaesimprimindoritmovidahumana.Estamosfalandoda caritas,abertura-esvaziamentodesimesmocriao,aosoutrosea Deus.SomenteoamorqueencontrasuasrazesemDeus,segundo Agostinho,capazdepromoveravidaeapaz.Nessaperspectiva,o exercciodaautoridadedescobrirseuautnticosignificadoquando realizadocaritativamente.Noexercciodeseusgovernos,opaide famlia46,aautoridadepblica47eoepscopo48devemconsideraro

44 No pensamento pedaggico do De ordine, Agostinho prope um conjunto dedisciplinasque,secultivadas,seriamcapazesdeinfundirunidadevida humana. Sublinhemos que essas disciplinas esto dispostas e preocupadas com a vidaintegraldohomem:sentidos,intelignciaeafetividade.Encontramos,na propostapedaggicadoprofessorderetricanorte-africano,preocupaoe cuidadoorientadosdimensointelectualedimensoafetivadaexistncia. Destaquemos,nessadireo,opapelreservadosbelas-artes,notadamente msica,poisessaachavecomaqualabrimosaportaqueuneosensvelao inteligvel: a beleza. Beleza doadora de sentido s nossas vidas, antecipando, na esperana, a plenitude a ser desfrutada no final dos tempos. 45 A harmonia interior, considerada como ordenao da alma segundo o que deve ser amado, paz que solicita testemunho.46 Agostinho,Civ.deiXIX,XIV:Mas,nacasadojustoquevivedafe queaindaperegrinaafastadodessacidadeceleste,osquemandamestoao serviodaquelessobreosquaisparecequemandam.quenomandampela paixodedominar,maspelo deverdedelescuidarem,nempelo orgulho,dese sobrepor, mas pela bondade de cuidarem de todos.47 AodebatercomVarrosobreoestilodevidaadequadorealizaoda virtudeeconsecuo dabeata vita, discriminartrs estados devida:o ativo, o AGOSTINHO E A CIDADE: DE DEUS OU DOS HOMENS? 55 alertadeAgostinho,poissuatarefaministrio,ouseja,servio amorosamenteprestado.Doexercciocaritativodaautoridadenascea confiana,capazdereunirpessoasdiferentesnumprojetocomum,na busca do bem e na realizao da paz49. tarefaderealizaodobemnacidadeterrestre,destaquemos, estoconvocadostodososhomensdeboavontade,sobretudo,os reunidospelafnacidadeperegrina,aosquais,segundoasEscrituras, cumpre amar a Deus e ao prximo como a si mesmo50. Por isso, na vida da casa ou navida da cidade, astarefas a serem executadasconstituem renovado exerccio de amor ao prximo, em obedincia ao mandamento divino. A paz procurada na cidade terrestre, portanto, enquanto dever do cristocomeanoscoraes,efetiva-senavidafamiliareganha amplitude na vida em sociedade.Lembramos, com o doutor da graa, que a paz supe a promoo da integridadedacriao.presente,nopensamentoagostiniano, concepoecolgicadegrandevalor.Defato,ocosmocriado epifaniadodivinoe,dotadoderitmoseoferececomomodelovida humana.Somospartedessecosmocriado.Promoverapaz,por

contemplativoeomisto.Ora,todosostrsestados,sevividosemDeus,so benficos e promovem a paz. Especificamente, sobre os convocados ao exerccio das funes civis, escreve Agostinho, emCiv. dei XIX, XIX: () no convm quesedesejeumaaltafuno,semaqualopovonopodesergovernado, mesmoqueelasejamantidaeexercidacomoconvm.Oamorverdade, portanto,quebuscaosantolazereaurgnciadacaridadeaceitaadevida ocupao.Seningumnosimpuserestefardo,convmquenosapliquemos contemplao da verdade. Se no-lo impuserem, convm que o aceitemos como o exige o dever de caridade. Mas mesmo ento no convm renunciar inteiramente s alegrias da verdade, no acontea que, privados desta suavidade, aquele dever nos oprima.48 Sobreatarefadosepscopos,aointerpretaroapstoloPaulo,declara Agostinho em Civ. dei XIX, XIX: por isso que o Apstolo diz:Quem deseja o Episcopado deseja uma boa obra (I Tim., III, 1). Quis assim explicar o que o episcopado: que este nome designa um cargo e no uma honraria.49 Essacomumunidadesercapazde,promovendoosdistintosdonsde diferentespessoasdafamliahumana,congregaroshomensdeboavontadena tarefa da construo da paz.50 Agostinho,Civ.deiXIX,XIV:Deus,nossoMestre,ensinou-nosdois mandamentos principais: o amor a Deus e o amor ao prximo. Neles encontrou o homem trs objetos para amar Deus, ele mesmo e o prximo (...). Assim, tanto quanto est na sua mo, ele estar com todo o homem na paz, que a concrdia bem ordenada dos homens. LUS EVANDRO HINRICHSEN56 conseguinte,respeitar,promovereacolheraordemcriaturaldaqual somos parte51.Da cidade terrestre, com suas injustias e contradies, dirigimos o olhar de nosso corao ao futuro, Jerusalmceleste. Mas, vivemos no mundoenos comprometemoscomapazpossvel deser,aqui eagora, realizada. A busca de Deus, por conseguinte, no se confunde com fuga do mundo. A busca de Deus nos leva ao engajamento, ao testemunho e, atmesmo,aoanncioproftico.Entrementes,lembremoscom Agostinho: preciso nutrir nossa prxis atravs de autntica procura da sabedoria, realizando-a revestidos de humildade. Recordemos, tambm, que as mediaes institucionais e visveis, capazes de congregar os fiis nacidadeperegrina(comunidadeeclesial),nodevemserconfundidas com a cidade celeste, meta ainda no alcanada52.Construirapaz,enfim,promoveravidaemtodasassuas dimensesemanifestaes.Atranquilidadedapaztranquilidade descobertanainquietude,realizadanoengajamento,operadapela transformaocotidianadecadaumdens,peregrinoseitinerantes, transeuntes no mundo, mas por ele responsveis. CONCLUSESAurlioAgostinhoviveuintensamente75 anos.No testemunho de seustextosencontramospessoaapaixonadapelaFilosofia,pelo exerccioespeculativo,pelaSagradaEscritura,mas,sobretudo,algum que amou profunda e intensamente. Amou as pessoas que o dom da vida lhe permitiu conhecer: seus familiares, alunos, amigos e, na maturidade desuavida,apopulaodeHipona.Porisso,foicapazdeescrever tantoesobretantascoisas.Sejafilosofando,disputandoouexortando,

51 Agostinho,Civ.dei,XIX,XIII:()oqueabusardessesbensno receberaqueles[osbensdouniversocriado],eperderestes[osbensdavida eternaedaimortalidade].urgentedisporadequadamentedosbensdoados pelo cosmo criado, pois contribuem paz na terra, sendo sinal dos bensfuturos. Quem deles usar bem, os conservar na vida presente e receber, igualmente, os bens futuros.52 Nessadireo,pensamos,aIgrejaconvocadaacolaborarcomopoder civil,observadasasexignciasdacaridade.Contudo,aIgrejavisvel,talqual cidadeperegrina,nodeveconfundir-secomoEstado,sabendo-sesinalda cidade celeste, da qual provisria mediao.AGOSTINHO E A CIDADE: DE DEUS OU DOS HOMENS? 57 semprebuscouaverdadenotextoenavida,humilde,mas perseverantemente. Nosescritosdofilsofonorte-africano,apaztemarecorrentee importante.Sobretudo,porqueodoutordafricaLatina,comons, viveu num perodo de desafiadoras e perigosas transformaes. Perodo deverasviolento,quevarreriatodaculturalatinaecristdonorteda frica.Masinteressantedestacarque,passadosquase1600anosde suamorte,aindanoslembramosdaquelafrica.Recordamosporque umbispodeumapequenacidade,praticamenteesquecidasmargens domediterrneoafricano,propsideiasimportantes,plenasde significado,capazesdenosauxiliarnoenfrentamentodosdesafiosde nossos tempos. Semdvida,alimentadopelanovidadedoEvangelho,Agostinho alcanounovosignificadopaz.OLivroXIXdaCidadedeDeus, privilegiadamente,atestaessaconquista.Mas,quandoolemospor primeira vez, confundidos, perguntamos: do que trata esse texto, da paz ou da justia? Em vez de falar sobre a paz, o hiponense discorre sobre a justia.H,noentanto,importanteestratgianessaabordagem. definiociceronianadepovo,coletividadehumanagovernadapela justia53,Agostinhocontrapeoconceitodeveraiustitia.Masolivro vai alm: no se vive na cidade para praticar a justia, mas nela pratica-se a justia para chegar paz. A justia um pressuposto, um meio, j a pazumfim.Sendoumavirtude,a justia indispensvelpaz,pois suaausnciaimpedeaconvivnciapacficaentreoshomens54. Entrementes,narealizaodajustianoseesgotaodesejode felicidadeexperimentadopelohomem.Ajustiaexisteenecessria para que exista a paz. No entanto, a paz o fim de todos os fins. Porque a paz o fim dos fins? Porque a paz encontra suas origens na ordem do amorqueprocededeDeus55.Ajustia,concebidaeadministrada geometricamente, atributiva ou distributiva, formal. A paz, fundada no amor,eticamenteestabelecida,capazdetransformareinaugurar novostempos.Apaz,compreendidacomoveraiustitia,doque pensar, convoca tarefa do pensamento.

53 Cfr. Agostinho, Civ. dei XIX, XXIV.54 Cfr. Idem, Civ. dei XIX, XXI e XXIV.55Cfr. Agostinho, Civ. dei XIX, XXVII.LUS EVANDRO HINRICHSEN58 Se felizes so os promotores da paz (Mt 5, 21), urgente facultar as razes de nossa proftica esperana sobre a realizao da paz, j, aqui e agora. Considerando tal tarefa, esperamos que o estudo sobre a inquieta dinmicadapazsegundoadialticaparticipaodoperegrinona cidade terrena e na cidade celeste , no qual fomos guiados pelo doutor da frica Latina, possa ter confirmado ou despertado renovado interesse sobre o tema da paz em textos agostinianos. Na expectativa, finalmente, dequeatentativadeexplicitaodeassuntotoimportantetenha logradoxito,fazendojusaSantoAgostinho,aosprofessores, acadmicoseinteressadosqueacompanharamnossareflexo,resta agradecer e desejar excelente exerccio filosfico.


Recommended