ALICE WILMERS BEI
O DISPOSITIVO APOIO MATRICIAL EM SAÚDE MENTAL NO
NÚCLEO DE APOIO À SAÚDE DA FAMÍLIA: UMA CLÍNICA DA
TRANSICIONALIDADE?
Mestrado em Psicologia Social
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
São Paulo -‐ 2012
ALICE WILMERS BEI
O DISPOSITIVO APOIO MATRICIAL EM SAÚDE MENTAL NO
NÚCLEO DE APOIO À SAÚDE DA FAMÍLIA: UMA CLÍNICA DA
TRANSICIONALIDADE?
Dissertação apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de mestre em Psicologia Social, sob orientação da Prof. Dra. Maria Cristina Gonçalves Vicentin.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
São Paulo -‐ 2012
COMISSÃO JULGADORA
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_________________________________________
_________________________________________
AGRADECIMENTOS
Ao CNPq, pelo financiamento desta pesquisa.
À Cris Vicentin, por me inserir na leitura de Foucault e pela presença que me
permitiu liberdade de criação.
A todos os profissionais que participaram da produção deste estudo, especialmente aos do NASF e da Equipe de Saúde da Família “P”, que generosamente cederam-‐me espaço no seu cotidiano de trabalho e que considero
coautores desta pesquisa.
À Maria e sua família, cujas histórias brevemente acompanhei, mas que intensamente me tocaram e me inspiraram.
Aos colegas do Núcleo, tão presentes neste processo e com quem compartilhei questões.
À Felícia Knobloch e à Rosana Onocko, de boas idéias, e que me ajudaram na
reconstrução deste trabalho.
Aos “meus” pacientes, que me dão o privilégio de escuta-‐los.
À Silvana, com quem aprendo sobre a vida e que me desperta para tantas experiências de transicionalidade.
À Luciana Pires, que me acompanha, com toda sua competência, na construção da minha clínica.
À Flávia, que me conhece em cada entranha e olhar, pela sua verdadeira
capacidade de ser minha (eterna) amiga.
À Tchela, irmã a quem estou sempre conectada, de uma forma ou outra, em todos os momentos importantes de nossas vidas.
À Ciça, à Olívia e à Pati, que de perto e de longe estão aqui, nas nossas tantas conversas, risadas e dificuldades, com amor.
À Renata Buelau, pessoa bonita e sensível, que me ensinou parte do belo trabalho
da Terapia Ocupacional.
À Andréa, cuja força e bom astral me encorajam nas dificuldades da vida.
À Laura e ao Bruno, casal importante na minha história.
A todos os outros amigos que, cada um a seu modo, foram e são presentes na minha vida.
À família Rehfeld, tão querida, enriquecedora e agora parte de mim.
À minha família, que me acolhe, me reconhece e me legitima em quem sou.
À Bel, pessoa admirável, irmã, amiga e artista, minha mais importante
companheira nas brincadeiras e trapaças da vida.
Ao meu pai, pela sensibilidade que me inspira e pela cultura impressionante que me alimenta, e que tanto me alegra pela coragem de voltar a ser aluno.
À minha mãe, pela maternagem sempre profunda, que amplamente me sustenta e que me dá contorno na vida.
LISTA DE ABREVIATURAS
-‐ AB: Atenção Básica
-‐ ACS: Agente Comunitário de Saúde
-‐ AM: Apoio Matricial
-‐ ESF: Equipe de Saúde da Família
-‐ MS: Ministério da Saúde
-‐ NASF: Núcleo de Apoio à Saúde da Família
-‐ OS: organização social
-‐ PSF: Programa Saúde da Família
-‐ SMS: secretaria municipal da saúde
-‐ SUS: Sistema Único de Saúde
-‐ UBS: Unidade Básica de Saúde
-‐ USF: Unidade Básica de Saúde da Família
-‐ VD: Visita Domiciliar
RESUMO
Esta pesquisa refere-‐se ao estudo da clínica ampliada em saúde mental na Atenção Básica,
realizada através do acompanhamento do trabalho de Apoio Matricial de uma equipe de
Núcleo de Atenção à Saúde da Família (NASF) no Município de São Paulo. Teve como proposta
refletir sobre o tipo de clínica produzido entre o NASF e uma equipe de saúde da família (ESF),
tendo como foco de investigação o imaginário sobre loucura, a questão medicamentosa e a
possibilidade de criação de novos modos de subjetivação. Para tanto, valeu-‐se de um caso
clínico em construção por ambas as equipes, analisando-‐se de que forma o Apoio do NASF
facilita, ou não, o processo de produção de uma clínica ampliada, transformadora da clínica
tradicional. Neste sentido, utilizou-‐se o conceito transicionalidade, apresentado por Winnicott
para pensar as experiências criativas e de singularização, para se discutir sobre a criação de
novos modos de subjetivação na clínica produzida entre as equipes em questão. Neste estudo,
o NASF foi reconhecido como importante pela ESF, no sentido de oferecer-‐lhe ajuda e suporte
para o atendimento de casos complexos, para além da compreensão e intervenção psiquiátrica
dos transtornos mentais; foi considerado ainda apoio para o enfrentamento de uma realidade
de trabalho caótica e por si só geradora de adoecimentos. Entretanto, neste contexto, grande
parte dos profissionais demonstrou dificuldade em criar novas intervenções clínicas, que
ultrapassassem as já estabelecidas. Para favorecer o processo criativo e a vivência de
experiências de transicionalidade na e a partir da clínica, foi percebida a necessidade de haver
mais apoio aos profissionais, especialmente os do NASF, que oferecem matriciamento, mas
não o recebem.
ABSTRACT
This research concerns the study of mental health wide-‐spectrum clinic in primary care, put in
practice by monitoring the Matrix Support activities of a Center for Support to Family Health
(NASF) team in São Paulo. The aim was to reflect on the type of clinic interaction produced
between the NASF team and a family health team (ESF), focusing on the "imaginary of
madness", the medication issue and the possibility of creating new modes of Subjectivation. In
order to accomplish this the study used a case under construction by the two teams, analyzing
how NASF's support facilitates, or not, the process of producing an extended clinic,
transforming the traditional clinic. In this sense, the study used the concept of transitionality
presented by Winnicott in order to reflect on the creative experiences and those of
singularization, and to discuss the creation of new modes of Subjectivation in the clinic
generated between the teams concerned. In this study, NASF has been recognized as
important by the ESF, so it was offered help and support when dealing with complex cases,
beyond psychiatric intervention and understanding of mental disorders; support was still
considered in face of a chaotic reality, which itself generates illnesses. However, in this
context, the majority of professionals has demonstrated difficulty in creating new clinical
interventions, which might go beyond those already established. In order to better allow for
creative processes and experiences of transitionality emerged out of the clinic, the need was
recognized for more support to professionals, especially those of NASF, who offer matrix
support, but do not receive it.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO _____________________________________________________________p. 1
CAPÍTULO 1: O APOIO MATRICIAL EM SAÚDE MENTAL E O NÚCLEO DE APOIO À SAÚDE DA
FAMÍLIA COMO DISPOSITIVOS CLÍNICOS DE INTERVENÇÃO
1.1 -‐ Uma transformação na clínica: do paradigma manicomial ao psicossocial __p.6
1.2 -‐ A clínica ampliada em saúde mental: uma perspectiva conceitual ________p.12
1.3 -‐ Saúde Mental, Atenção Básica e Saúde da Família: intercessões na composição
de um campo ____________________________________________________p.22
1.4 -‐ O Apoio Matricial em Saúde Mental à luz do conceito de dispositivo______p.25
1.5 – O Apoio Matricial em Saúde Mental no Núcleo de Apoio à Saúde da Família
________________________________________________________________p.32
CAPÍTULO 2: A TRANSICIONALIDADE NA CLÍNICA
2.1 – Os conceitos de objetos e fenômenos transicionais e de espaço potencial de
Winnicott para pensar a transicionalidade na clínica _______________________p.36
2.2 – Desafios atuais da clínica ampliada em saúde mental: a biomedicalização da
vida e a remedicalização da loucura _____________________________________p.45
2.3 – O dispositivo Apoio Matricial em Saúde Mental no cotidiano: experiências de
transicionalidade?____________________________________________________p.49
CAPÍTULO 3: A ANÁLISE INSTITUCIONAL COMO FERRAMENTA METODOLÓGICA PARA A
APROXIMAÇÃO DE UM CAMPO-‐TEMA
3.1 – Sobre um modo de pesquisar: pressupostos teórico-‐metodológicos da Análise
Institucional ________________________________________________________p.61
3.2 – A construção de um caso clínico: uma possibilidade de transicionalidade
___________________________________________________________________p.67
3.3 – Notas sobre um modo de análise __________________________________p.70
CAPÍTULO 4: O DISPOSITIVO APOIO MATRICIAL EM SAÚDE MENTAL EM UM MICRO
TERRITÓRIO DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO
4.1-‐ Apresentação de um campo-‐tema: a UBS M, a ESF P e o NASF
___________________________________________________________________p.72
4.2-‐ A realidade de um contexto de trabalho: a gestão, o PSF e a saúde mental como
produtores de uma cena clínica ________________________________________p.76
4.3-‐ A relação entre o NASF e as ESF: notas sobre um entre em questão
__________________________________________________________________p.85
CAPÍTULO 5: O CASO MARIA ENTRE NÓS: UMA CLÍNICA DA TRANSICIONALIDADE?
5.1: Apresentação do caso Maria _______________________________________p.95
5.2: Especificidades do campo da saúde mental: imaginários sobre loucura e a
questão medicamentosa ______________________________________________p.97
5.3: Um modo de clinicar: transicionalidades de uma prática ________________p.111
CONSIDERAÇÕES FINAIS ____________________________________________________p.130
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ______________________________________________p.138
ANEXOS
Anexo 1 ___________________________________________________________p.147
1
INTRODUÇÃO
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Fernando Pessoa / Ricardo Reis
O desejo de produção desta dissertação nasceu das minhas inquietações vividas no
campo da saúde mental, inicialmente como aprimoranda de psicologia em uma Unidade
Básica de Saúde, e posteriormente como trabalhadora de um CAPS II adulto, onde fazia parte
da equipe de Apoio Matricial em saúde mental.
O Apoio Matricial consiste em um arranjo organizacional em saúde que, através da
oferta de apoio especializado, visa aumentar a capacidade de responsabilização e assistência
de casos heterogêneos e complexos na Atenção Básica. Trata-‐se de uma equipe volante, que
pode ser de saúde mental, aqui o nosso foco, que dá suporte aos profissionais da rede Básica
para lidarem com casos outrora encaminhados indiscriminadamente a especialistas. Um
suporte que propõe como modo de atenção o vínculo terapêutico, a transdisciplinaridade de
saberes e práticas e a corresponsabilidade (entre as equipes e entre essas e a população) pelo
processo de cuidado (Campos, 1999).
Na prática, o Apoio opera por meio de três conjuntos de intervenção: supervisão dos
casos, que acontece em reuniões de discussão dos mesmos, capacitação dos profissionais da
rede básica com relação ao campo trabalhado e assistência à população, o que se dá
prioritariamente de forma compartilhada com estes profissionais. Uma espécie de “formação
in loco”, no sentido de educação continuada, que acontece de forma mais horizontalizada, no
cotidiano de trabalho, em um processo de troca de saberes e corresponsabilização pelos casos.
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Como uma tentativa de transformação da clínica médica tradicional e de criar novos
modos de clinicar, o Apoio valoriza a autonomia e a participação da pessoa (ou família)
atendida, bem como novas compreensões e intervenções para o processo de saúde-‐doença.
Nesse sentido, caminha em direção à construção da clínica ampliada, que, de acordo com
Campos (2007), parte desses pressupostos, de um trabalho coletivo, em equipe, e da
singularização dos casos.
Se na clínica tradicional valoriza-‐se a intervenção médica, o saber do técnico em
relação ao do paciente e o enfoque na doença, na clínica ampliada a lógica é outra. Expandem-‐
se as intervenções para outros campos de domínio, o paciente é considerado na sua
integralidade, não apenas na sua doença, e torna-‐se agente do seu processo de cuidado e
protagonista da cena.
Nesse sentido, entendo o arranjo Apoio como um dispositivo de intervenção, de
acordo com a conceituação de Foucault (2009), na medida em que é capaz de transformar
aspectos da realidade e de produzir novos modos de subjetivação. Um dispositivo que pode
ser realizado por diferentes equipes de profissionais, entre elas o Núcleo de Apoio à Saúde da
Família (NASF), proposto pelo Ministério da Saúde com a portaria n.154, em 2008. Trata-‐se de
uma equipe volante de saúde que se opera segundo os princípios e ações do Apoio Matricial e
que se baseia nos pressupostos da clínica ampliada.
É o dispositivo Apoio Matricial em saúde mental, exercido por uma equipe de NASF,
que será o tema amplo desta pesquisa. E, como recorte deste tema, serão realizadas uma
reflexão e uma problematização acerca da clínica (ampliada) produzida por essa equipe, no
seu trabalho com profissionais do Programa de Saúde da Família (PSF).
A minha escolha por esse recorte deu-‐se em função da minha experiência de trabalho
com Apoio Matricial, através da qual percebi que este dispositivo estava muito próximo da
clínica, em vários aspectos. Primeiro porque, nas reuniões com os profissionais da rede, sejam
elas para discussão de caso (nas “supervisões”) ou de temas de saúde mental (nas
“capacitações”), colocavam-‐se em cena questões de uma prática clínica que implicava um
trabalho grupal-‐institucional, cujas demandas eram ali colocadas, sendo necessário escuta-‐las
e maneja-‐las de forma adequada. Segundo porque eu estava inserida em um estabelecimento
de saúde voltado para intervenções essencialmente clínico-‐terapêuticas. E, por fim, porque
estava ali como profissional de saúde mental, contribuindo para a construção de uma
determinada clínica, seja quando eu atendia um paciente, seja quando propunha intervenções
terapêuticas nas discussões de caso.
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Além disso, estava inserida em um cotidiano de intenso sofrimento, pois havia
resistência de grande parte dos profissionais da rede em querer participar do matriciamento e
a realidade territorial era de excesso de demandas da população, carências e violências
diversas. Frequentemente me sentia indo na contramão do modo de funcionar de um sistema
que pensava e intervia em saúde mental de forma bastante distinta da proposta de uma clínica
ampliada, pois se baseava no modo de encaminhamentos (indiscriminados) da lógica de
referência e contra referência e em uma visão simplificada, organicista e/ou normativa da
saúde.
Parodiando Fernando Pessoa, quando já não mais conseguia estar inteira nesse
trabalho, tendo sido tomada e esvaziada (por um contexto caótico e extremamente
desgastante) na possibilidade de pensar, refletir e transformar práticas clínicas já obsoletas,
escolhi fazer esta pesquisa, de forma a encontrar novos interlocutores e construir novos
saberes e práticas relativos ao campo atual da saúde mental no serviço público.
Para tanto, acompanhei, neste estudo, o trabalho de uma equipe de NASF com uma
equipe de saúde da família (ESF), em uma Unidade Básica de Saúde da Família do Município de
São Paulo. Conforme conheci esta experiência, deparei-‐me novamente com um campo
extremamente complexo, também marcado pelo caos e no qual a clínica também era área de
compreensão e intervenção predominante.
Interessei-‐me particularmente pela possibilidade de discussão sobre a clínica
construída por esses profissionais e, para viabilizar esta reflexão, adotei como estratégia a
participação na construção de um caso de saúde mental em acompanhamento clínico por
profissionais dessas duas equipes. Trata-‐se do caso Maria, que se refere à história de uma
moça que tentou suicídio repentinamente e cuja família solicitou ajuda à ESF que, por sua vez
solicitou apoio ao NASF.
Que clínica foi produzida no caso Maria, considerando-‐se a relação entre todos os
atores nele envolvidos? De que forma o dispositivo Apoio do NASF participou deste processo?
Nessa prática, como se fez presente, se é que o fez, a clínica ampliada?
Para essa discussão, é preciso reconhecer que há um tensionamento entre os campos
da clínica e da saúde coletiva, sendo aquela por esta compreendida, em alguns aspectos, como
um trabalho baseado em práticas de caráter individualista, amparados na herança médico-‐
organicista, no psicologismo e na tradição burguesa dos consultórios privados. Para Foucault
(2009), o campo da saúde começa a definir-‐se e ter maior importância no século XIX, num
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primeiro momento a partir da filantropia, e depois pela medicina urbana e higienização
das cidades; há uma lógica de observação, organização e normatização do cotidiano e a
clínica insere-‐se nesse contexto, valendo-‐se de tais práticas e da medicina moderna.
Associada ao discurso preventivista, que visava a produção de indivíduos saudáveis
e a eliminação e correção dos estados de doença, o campo da clínica e da prevenção é
fronteiriço, de acordo com Pacheco (2008), pois condensa diversos pares de compreensão
social, presentes tanto de forma binária e oposta, quanto de forma dialética. Trata-‐se aqui
dos polos cura-‐prevenção, individual-‐social, biológico-‐econômico-‐cultural, natural-‐
político.
Reconhecendo essas heranças clínicas e discordando dos sabres e das práticas que as
reproduzem ainda hoje, a minha reflexão sobre a clínica ampliada, a partir do caso Maria,
tentará ultrapassar tais oposições, bem como a de clínica-‐saúde coletiva. A partir do problema
desta pesquisa, que é a clínica produzida entre o NASF e a ESF no caso Maria, procuro pensar
em que medidas o dispositivo Apoio favoreceu, ou não, ensaios e práticas clínicas criativas, de
que paradigmas esses se aproximaram e se neste entre em questão produziu-‐se alguma
experiência de transicionalidade.
A transicionalidade está sendo compreendida aqui de acordo com Winnicott (1971),
que a define como um processo de singularização, que ocorre a partir das relações e tradições
presentes, mas que não se resume a elas, sendo único e particular, inusitado até então. Trata-‐
se de um campo de experimentação no mundo, do sujeito com o (seu) ambiente, no qual é
possível criar novos modos de ser.
O conceito de transicionalidade será melhor apresentado no segundo Capítulo desta
dissertação, composta por cinco capítulos. Os dois primeiros referem-‐se às construções e
aparatos teóricos deste trabalho; o terceiro também, mas com foco no método utilizado; o
quarto e o quinto referem-‐se ao campo da empiria desta pesquisa.
No primeiro, faço um resgate sobre diversos paradigmas e modos de clinicar, desde as
práticas manicomiais à clínica ampliada em saúde mental, e então aprofundo as definições
sobre Apoio Matricial em saúde mental e NASF, à luz do conceito de dispositivo para Michel
Foucault. No segundo apresento de fato a definição de transicionalidade, segundo Winnicott,
relacionando-‐a à prática clínica, com o relato de diversas experiências de matriciamento
encontradas, e trago brevemente alguns desafios atuais colocados ao campo da saúde mental
e à possibilidade de construção da clínica ampliada.
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No terceiro Capítulo, como estudo metodológico, desenvolvo os pressupostos e
ferramentas da Análise Institucional e da proposta de construção de caso clínico como
estratégias para a viabilização e compreensão desta pesquisa (de campo). Nessa perspectiva,
não se trata de um estudo de caso, mas sim de uma construção coletiva, de acordo com
Viganò (2010), em que cada ator é considerado protagonista da cena e em que se colocam em
análise os diversos atravessamentos que se fazem presentes nesse processo.
E, por fim, no quarto Capítulo faço uma apresentação do contexto em que foi
produzido o caso Maria, o que inclui aspectos do território e das equipes NASF e ESF
acompanhadas, para, então, no quinto Capítulo trazer à cena o caso propriamente dito. Para
facilitar a reflexão sobre este caso, produzido em uma realidade complexa, densa e
multifacetada, que solicita aos profissionais difíceis tarefas, o caso é analisado essencialmente
a partir de dois eixos compreensivos: especificidades do campo da saúde mental e um modo
de clinicar em questão.
Sendo as experiências de transicionalidade na cultura uma possibilidade de criação e
singularização de modos de subjetivação, a proposta é pensarmos em que medidas a clínica
entre o NASF e a ESF, construída no caso Maria, é ou não criativa e possibilita a produção de
vivências inéditas, próprias e menos assujeitadas aos profissionais e/ou à Maria, bem como à
realidade em que todos estão inseridos. Conforme se constitui como tal, estamos diante de
experiências de transicionalidade, o que nos possibilita refletir ainda como tal prática clínica
contribui ou não para o processo de transformação da biomedicalização da loucura, que se
refere à compreensão da loucura essencialmente pela ótica da neurobiologia e do imperativo
de uma vida saudável, conforme entende Rose (2010).
Neste longo processo, espero que possamos ficar inteiros, em nós mesmos, no nosso
coletivo e em outros de nós, assim como faz(em) Fernando Pessoa e Ricardo Reis, em cada
leitura e reflexão feita a seguir. Que esta pesquisa seja, então, um disparador, dentre tantos
possíveis, do movimento de transformação de práticas clínicas reprodutoras de modos de
subjetivação alienantes, massificantes e empobrecedores que existem entre nós, em favor de
alguma experiência de transicionalidade possível na nossa cultura.
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CAPÍTULO 1: O APOIO MATRICIAL EM SAÚDE MENTAL E O NÚCLEO DE APOIO À SAÚDE DA
FAMÍLIA COMO DISPOSITIVOS CLÍNICOS DE INTERVENÇÃO
1.1 – Uma transformação na clínica: do paradigma manicomial ao psicossocial
Esta espécie de loucura
Que é pouco chamar talento
E que brilha em mim, na escura
Confusão do pensamento,
Não me traz felicidade;
Porque, enfim, sempre haverá
Sol ou sombra na cidade.
Mas em mim não sei o que há.
Fernando Pessoa
Esta espécie de loucura, muito mais que um talento, é faceta fundamental da condição
humana, com a qual entramos em contato de diferentes formas, de acordo com cada época da
história, da sociedade e da nossa própria vida. Parodiando Fernando Pessoa, é confusão de
pensamento e experiência solitária de não saber (de si) diante da sabedoria essencial da
natureza, que se inclina para a luz e se recolhe na sombra espontânea e regularmente. Como
nos diz Maria, cujo atendimento acompanhei ao longo desta pesquisa, a loucura é uma
experiência de ocorrência misteriosa, não sei o que aconteceu comigo, e cuja vivência é
assustadora: Não quero falar disso, não quero que isso volte, diz ela. O que é isso?
Para muitos, isso é sintoma patológico, sinal de anormalidade, sofrimento psíquico e
símbolo de doença mental; para outros, é produção heróica, mítica, literária e instigante.
Tratam-‐se de duas compreensões distintas e até antagônicas que se referem,
respectivamente, ao campo do psíquico e ao da subversão estética, e entre as quais oscilam
(dicotomicamente) nossos saberes sobre a loucura (Starobinski, apud Pelbart, 2009).
Para Foucault, a loucura é produção histórica e projeção cultural, alienada em uma
psicologia que a compreendeu negativamente e transformou em doença o que outrora era
apenas o diferente, o desconhecido. Nas palavras do autor:
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“A loucura, no sentido mais lato, situa-‐se aí: ao nível da sedimentação nos fenômenos
da cultura onde começa a valorização negativa daquilo que originalmente fora
apreendido como Diferente, Insano, Desrazão” (2008: 91).
Foucault considera que a história da loucura origina-‐se da divisão estabelecida entre
razão e não-‐razão, numa relação de superioridade daquela em relação a esta. Na
modernidade, a loucura é capturada pelo saber e é transformada em doença mental,
estabelecendo-‐se, segundo o autor, “a linguagem da psiquiatria, que é monólogo da razão
sobre a loucura (...)” (2008: 141).
Louco e não-‐louco, razão e não-‐razão: relações binárias que marcaram a era do
alienismo e a clínica da saúde mental na modernidade, ignorando que, como lembra Foucault
(1999), mas cada um desses polos existe apenas um relação ao outro, sendo uma falácia tal
separação. Pelbart, seguindo essa pista foucaultiana sobre o diálogo, e não uma falsa divisão,
entre razão e desrazão, compreende por loucura:
“(...) uma dimensão essencial de nossa cultura: a estranheza, a ameaça, a alteridade
radical, tudo aquilo que uma civilização enxerga como seu limite, o seu contrário, o seu
outro, o seu além” (1993: 105).
Mas não foi esse o movimento hegemônico da humanidade, ao contrário, houve uma
crescente separação entre loucura e razão. Na era do Alienismo, na Idade Clássica, a loucura é
excluída da razão e aprisionada em um universo moral, sendo considerada alienação, erro
manifesto e experiência de desrazão; o tratamento consiste então em recuperar a razão que
lhe estava oculta. O louco ganha um lugar de tratamento específico, o asilo, onde seria curado
através do tratamento moral, baseado nos princípios de isolamento; disciplina; vigilância por
parte da equipe; castigo; punição e moralização (em relação ao trabalho, à família e à vida
social). Visa-‐se o resgate da razão e da moral, o retorno do inalienável e a volta para o mundo
do trabalho (Foucault, 1999).
A loucura é objetificada em um campo de verificação científica, sendo encerrada em
uma definição médica unívoca: a doença mental. Loucura não mais como apenas não-‐razao,
mas também como doença. Nasce a medicina mental e consolida-‐se o paradigma manicomial,
que para Costa-‐Rosa (2006) consiste em uma compreensão da loucura como fenômeno
individual, a partir de determinações orgânicas e da noção de doença, e cujo tratamento se dá
em um hospital fechado. Trata-‐se do asilo, que para Birman (1978) é o lugar de produção e
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descoberta da verdade da doença mental e de investimento da figura do médico de poder e
autoridade, consolidando a figura do especialista no caso da loucura.
O desenvolvimento da medicina mental e do hospital psiquiátrico é marcado pelos
pressupostos da clínica moderna, do século XIX, pautada nas ciências naturais e na proposição
de um saber positivo, neutro e autônomo, na busca de expressão da verdade absoluta
(Amarante, 2003). A clínica, desde a Idade Clássica, passa para o domínio médico, baseando-‐
se, naquela época, na medicina classificatória e em uma especialização em relação às doenças,
a partir do olhar médico, que buscava identificar sintomas; o corpo é considerado apenas
substrato para a doença e, o doente, tido como aquele que atrapalha o olhar do médico.
Nesse sentido, Foucault (2006) considera que a clínica surge como possibilidade de
afirmação de um discurso médico sobre as doenças, a partir do olhar e da linguagem médicos.
Antes de ser o encontro do doente com o médico, é lugar de produção de saberes e verdades,
num campo nosológico totalmente estruturado: o hospital. A prática de observação ao leito
dos doentes (Klinicós) é parte essencial da nova medicina, e o olhar deveria não apenas
constatar a doença, mas também descobrir suas formas de produção e evolução. A medicina,
com sua arte de curar, entra na ordem civil: a coerência científica deveria associar-‐se à
proteção e controle sociais.
A clínica moderna baseia-‐se nos pressupostos dessa clínica médica, e importa da
matemática um saber probatório, que procura certezas, a partir de regularidades. Da medicina
classificatória à medicina estatística do século XIX, busca-‐se um olhar puro, que constata,
descobre e é analítico. A observação do médico conduz, neste momento, à experiência (da
doença) e tem por função fazer falar a verdadeira palavra (que também é a da doença); um
olhar clínico que ouve uma linguagem, para classificar e descrever, no momento em que
produz um espetáculo (Foucault, 2006).
Na Modernidade, a clínica especializa-‐se no sentido da medicina anatomopatológica,
cujo olhar clínico adentra à superfície corporal. Abrem-‐se os cadáveres para se ir além do
conhecimento dos sintomas da superfície, e o olhar clínico passa a se dirigir à sequência de
eventos patológicos, na profundidade dos tecidos do corpo. Por isso Foucault (2006) fala do
olhar, da linguagem e da morte como experiências fundamentais da clínica moderna; introduz-‐
se um tempo mórbido na clínica, pois a verdade da vida está na morte, ou seja, na doença. A
medicina clínica passa agora para o campo do patológico, procurando tornar visível o invisível,
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com um olhar que não só constata, mas descobre. E a grande novidade é que o indivíduo é
menos uma pessoa doente do que um fato patológico.
É nesse contexto de saberes e práticas clínicos do século XIX, e aproveitando
competências médicas em desenvolvimento em outros campos, que a clínica da medicina
mental desenvolve-‐se. Foucault (2009) denomina esse processo de desenvolvimento da
medicina mental de “medicalização da loucura”, que representa a passagem da mesma à
condição de objeto de saber e intervenção médicos. Trata-‐se da busca da verdade da medicina
mental, que buscava a sua consolidação. Para Castel (1978) essa medicalização foi a forma pela
qual a psiquiatria clássica, empoderada e com uma função politica de controle social,
administrou a questão da loucura, reduzindo ativamente um fenômeno social a um problema
técnico. Segundo esse autor:
“Medicalizar um problema é mais desloca-‐lo do que resolvê-‐lo, porque é autonomizar
uma de suas dimensões, trabalha-‐la tecnicamente e, assim, recobrir sua significação
sócio-‐política global, a fim de torna-‐la uma ‘pura’ questão técnica, adscrita à
competência de um especialista ‘neutro’. (...) No plano ‘ideológico’, trata-‐se de
resolver ou articular verbalmente a contradição, numa nova síntese que garante, pelo
menos, que a fórmula adotada era a melhor possível (...). / (...) No plano das práticas
equivale a reduzi-‐las ao que é imediatamente manipulável num quadro técnico-‐
científico ocultando tudo o que não é do âmbito de um tal ‘tratamento’ técnico
(psicológico ou orgânico)” (1978: 189).
O cerne da medicalização da loucura não está na relação médico-‐paciente, mas sim na
relação medicina-‐hospitalização, baseada no paradigma manicomial e biomédico, que
contribuiu para a confirmação da figura do louco como um tipo social inferior, improdutivo e
infantilizado. Uma psiquiatria pedagógica infantilizadora, em que o louco é tido como alienado,
menor, perigoso e improdutivo, como bem descreve Pelbart:
“O louco peca então por ser desviante, excessivo e criança. Não é o Outro do homem,
mas é ele mesmo, o homem, na sua fase precoce, na sua espontaneidade primeira,
informe e disforme. É o Mesmo involuído, regredido, reduzido à sua impotência. É, no
homem, aquilo a ser superado, a fim de que ele atinja a plenitude da mesmice” (2009:
196).
De acordo com Foucault (2008), médicos, psicólogos e sociólogos fizeram do
doente um desviante na medida em que responderam aos saberes culturais de uma
sociedade que rejeitava e excluía o louco. Mas, na tentativa de transformar o
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paradigma manicomial e esse imaginário social sobre a loucura, de criar novas formas
de compreender e intervir no campo da saúde mental, iniciam-‐se, na Europa nos anos
40, processos de Reforma Psiquiátrica. Foucault (2009) considera o cerne destes
processos o questionamento das relações de poder vigentes sobre o louco, retirado da
sua condição de sujeito, em liberdade, e submetido ao poder médico e institucional.
Como parte do processo de desmedicalização da loucura, esses processos
transformaram o paradigma manicomial e novos dispositivos de saúde mental foram criados,
sendo contrapostos aos anteriores, de forma a investir-‐se no desenvolvimento de novos
saberes e práticas nesse campo.
A Psicoterapia Institucional na França; as Comunidades Terapêuticas na Inglaterra; a
Psiquiatria Preventiva nos Estados Unidos; a Psiquiatria Democrática na Itália e a
Antipsiquiatria na Inglaterra foram os principais movimentos da Reforma. Mas, para Amarante
(2010), amparado nas idéias de Rotelli, foram a Psiquiatria Democrática e a Antipsiquiatria que
questionaram, de fato, o aparato manicomial.
Na Itália, Basaglia propõe colocar a “doença mental” entre parênteses, de modo que o
louco não mais fosse reduzido a esta categoria nem tão pouco à condição de inferior e
perigoso, devendo, ao contrário, ser considerado na singularidade e na complexidade de sua
doença, o que inclui o contexto social em que está inserido. Na Inglaterra, Cooper, Esterson e
Laing procuram combater as estruturas hospitalares e defendem um diálogo sobre razão e
loucura, sendo esta tida como um fato social e político, um desequilíbrio familiar ou até
mesmo um ato de libertação, não apenas uma doença.
No Brasil, o campo da assistência psiquiátrica, que se desenvolveu apoiado no
alienismo, foi fortemente influenciado, nos anos 1970, pela Psiquiatria Democrática Italiana e
pela Antipsiquiatria, de modo que também eclodiu aqui o processo da Reforma Psiquiátrica
Brasileira. Esse é um período de emergência de movimentos sociais, com crítica das ações de
caráter individual e curativo, bem como das práticas médicas organicistas, hospitalocêntricas e
medicalizantes, propõe-‐se a universalidade do cuidado e luta-‐se por um novo conceito para o
processo de saúde-‐doença. Destaca-‐se nesse momento a eclosão do processo de Reforma
Sanitária Brasileira, que promove esses questionamentos e uma revisão da clínica (Costa,
1989a).
A Reforma Sanitária é um movimento de parte das lutas pela democratização do país,
na tentativa do fortalecimento das políticas públicas e da construção das bases de um Estado
11
do bem estar social. Contra organizações ditatoriais e a privatização dos serviços de saúde,
defende a existência de um Estado social democrático, o direto à saúde (com controle e
participação popular) e a constitucionalização do SUS. Contribuiu (e contribui) para a
ampliação da concepção de saúde para o campo das determinações sociais e para o direito à
saúde na sua integralidade, com ações de prevenção, promoção e reabilitação (Fleury, 2009).
A Saúde Coletiva1 insere-‐se nesse processo, como parte da consolidação de um campo
de luta (política) e revisão do sistema de saúde. Com origens no preventivismo e na medicina
social, amplia as concepções de saúde e doença para além da biologia e, portanto, amplia
questiona a clínica tradicional, que se apoia na noção de psicopatologia, enfatiza o sujeito na
sua singularidade com ênfase na subjetividade e na interioridade dos fenômenos humanos, e
busca um sujeito independente e de profundidade psicológica, típico das sociedades
neoliberais industrializadas (Ferreira Neto, 2011).
Sendo um campo heterogêneo e composto pelo cruzamento de diversas disciplinas,
tenta (ainda no presente, já que é atuante e permanece em construção) integrar as ciências
sociais e humanas, e a epidemiologia ao planejamento e à política (Nunes, 2007). Entretanto,
Campos (1994) considera que, com relação à clínica, o movimento sanitário contrapôs a
assistência individual à epidemiologia social.
O processo da Reforma Psiquiátrica Brasileira, inserido nesse contexto, luta pela
construção de novos saberes e práticas no campo em saúde mental. Entre alguns de seus
marcos, destacam-‐se o Movimento dos Trabalhadores da Saúde Mental no fim dos anos 70; o
surgimento dos Núcleos de Atenção Psicossocial em Santos e do Centro de Atenção
Psicossocial em São Paulo (no fim dos anos 80); as Conferências Nacionais de Saúde Mental e a
lei Paulo Delgado2.
Desenvolve-‐se e consolida-‐se um novo paradigma em saúde mental, que Costa-‐Rosa
(2006) denomina de psicossocial3, em que a loucura é compreendida como processo produzido
pela interação de fatores políticos, culturais, sociais, biológicos e psíquicos. Propõe-‐se agora
1 Em 1979 foi criada a ABRASCO (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) e formalizado o campo da Saúde Coletiva, com a organização de congressos, pesquisas e grupos de trabalho num movimento de militância política pela defesa de uma reforma no sistema de saúde, a partir das contribuições do movimento sanitário (Nunes, 2007). 2 Em 1989, inicia-‐se no Congresso Nacional o projeto de lei do deputado Paulo Delgado, que propõe a regulamentação dos direitos de pessoas com transtornos mentais, redireciona o modelo assistencial em saúde mental e prevê a desconstrução progressiva dos manicômios. Em 2001, essa lei foi revista, sendo nomeada de lei 10.216, que proíbe internações em locais que não assegurem o direito e a proteção às pessoas atendidas (Brasil, 2001 – Lei disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm).
3No Anexo 1, há um quadro comparativo sobre os modos de atenção manicomial e psicossocial.
12
uma clínica em que o paciente4 participa da cena como protagonista, bem como sua família
e/ou comunidade/rede existentes, enfatiza-‐se sua reinserção social, para além da remissão de
sintomas e não se trabalha numa ótica medicalizante, pelo contrário. Aposta na auto e
cogestão, na interdisciplinaridade, na territorialização, na singularização e na ética como
pressupostos organizadores do trabalho.
Mas como o campo da saúde mental insere-‐se hoje na saúde pública? Que paradigmas
atravessam-‐no e que modos de clinicar estão presentes? Saberes e práticas que caminham em
direção à manutenção e/ou transformação das formas manicomiais de compreensão e
intervenção da loucura? Nos próximos itens, conheceremos um pouco dessa realidade e
algumas estratégias atuais em saúde mental que pretendem consolidar o paradigma
psicossocial. Tratam-‐se da clínica ampliada, do Apoio Matricial em Saúde Mental e do Núcleo
de Apoio à Saúde da Família, sobre os quais refletiremos na sequência.
1.2-‐ A clínica ampliada em saúde mental: uma perspectiva conceitual
O termo clínica ampliada é cada vez mais utilizado e difundido, especialmente nos
serviços de saúde pública, mas a que práticas ele se refere e a que ele se propõe? Iremos agora
esclarecê-‐lo, de modo que a conhecê-‐lo e a tornar evidente o sentido de clínica considerado
neste trabalho.
Onocko Campos (2005) aponta a necessidade do Sistema Único de Saúde (SUS)
reformular sua compreensão e prática clínicas, de forma a transformar saberes já
ultrapassados nesse campo, que em vez de transformar a saúde, reafirmam as práticas
tradicionais, insuficientes. Como tentativa de criação de outra clínica na saúde pública, o
Ministério da Saúde, auxiliado por trabalhadores, gestores e militantes do campo da saúde,
4 Apesar do termo “usuário” ter sido uma conquista do processo de Reforma Psiquiátrica, sendo proposto pelo SUS em 1990 em substituição ao termo “paciente”, que carrega uma conotação de passividade (no modo de atenção em saúde baseado em uma relação de autoridade com o médico), como diz Amarante (2007), utilizo aqui “paciente”, assumindo os riscos que isso implica. Essa escolha deu-‐se porque este é o termo utilizado pelos profissionais que participaram desta pesquisa e porque o termo “usuários” pode se referir à redução da integralidade do sujeito à sua condição relacional de uso dos serviços, de acordo com Scarcelli (1998), ou ainda, a uma relação que não é de reciprocidade, mas de uso e desuso com o serviço, sem implicação e responsabilização por parte da própria população em relação a ele. Além disso, faço aqui um resgate da clínica, frente ao desgaste que ela sofreu em função do processo de transformação da saúde e do desenvolvimento da saúde coletiva, assim como propõe Campos (1994). Mas ressalto que a clínica é considerada neste estudo de acordo com os pressupostos da clínica ampliada, de modo que, nesta perspectiva, “paciente” é tido como ator protagonista da cena, considerado na sua integralidade e na sua responsabilidade pelo seu próprio processo de cuidado e pelos serviços de saúde que frequenta.
13
tem desenvolvido diversas estratégias e documentos, entre eles um que se refere à clínica
ampliada.
Em cartilha da PNH5, o Ministério da Saúde define clínica ampliada como aquela em
que há “compromisso com o sujeito doente”, compreendido de forma singular; ética;
responsabilidade pelos usuários dos serviços de saúde; intersetorialidade; reconhecimento dos
limites dos profissionais e das tecnologias utilizadas, na busca de novos conhecimentos que
possam complementar o trabalho; questionamento das discriminações sociais embutidas em
muitos diagnósticos, e desenvolvimento da capacidade de transformar doenças, de forma que
estas, apesar de às vezes limitantes, não impeçam a vivência de outras experiências. A doença
deixa de ser considerada apenas sob sua ótica negativa, e passa a ser compreendida também
como uma nova possibilidade de vida.
A IV Conferência Nacional de Saúde, ocorrida em 2010, também afirma a prática da
clínica ampliada ao definir o campo da saúde mental como:
“(...) intrinsecamente multidimensional, interdisciplinar, interprofissional e
intersetorial, e como componente fundamental da integralidade do cuidado social e da
saúde em geral. Trata-‐se de um campo que se insere no campo da saúde e ao mesmo
tempo o transcende, com interfaces importantes e necessárias reciprocamente entre
ele e os campos dos direitos humanos, assistência social, educação, justiça, trabalho e
economia solidária, habitação, cultura, lazer e esportes, etc.” (2010a: 9).
Mas de que forma é possível transcender uma compreensão organicista e unívoca da
doença e como, no cotidiano, trabalha-‐se intersetorial e interprofissionalmente? Em
companhia de outros autores, tentarei responder a essas perguntas. Como um aquecimento
necessário, sugiro como primeira atitude a quem trabalha sob a perspectiva da clínica
ampliada o questionamento dos saberes e das práticas que já estão postos e dos quais
lançamos ou não mão, para se refletir sobre a que paradigmas respondem, e a que paradigmas
queremos responder, fazendo aí os ajustes necessários.
Partirei da consideração de clínica ampliada mais como um exercício de tomar uma
concepção que merece ampliações, do que meramente amplificar aquilo que já está instituído,
conforme propõe Paulon (2004). Nesse sentido, não deve ser compreendida apenas como
simples ampliação da clínica tradicional, estendida a novos contextos institucionais, nem como
5 A PNH é a Política Nacional de Humanização, que consiste em movimento do Ministério da Saúde para humanizar o SUS, na sua gestão e assistência, no seu processo de pactuação democrática e coletiva. (sobre este tema, consultar o site do MS em que é apresentada a PNH: http://portal.saude.gov.br/saude/area.cfm?id_area=390).
14
mera expansão da concepção do processo de saúde-‐doença, tão pouco deve ser reduzida à
proposta de multidisciplinaridade. Trata-‐se da produção de novos saberes e práticas, que
rompem com aqueles tradicionais, ancorados nos paradigmas manicomial e biomédico, e/ou
com um modo de clinicar restrito aos consultórios (privados ou de ambulatórios), que
reproduzem modos de subjetivação individualizantes e alienantes. Além disso, parto da
proposta de uma clínica que promova experiências de criatividade, em vez de adaptações.
Acompanhemos alguns autores que trabalham nesta direção.
Onocko Campos (2005) sugere que a clínica como disciplina seja problematizada, de
forma a não se esgotar na sua dimensão técnica. Embora seja necessária uma ancoragem
teórica, há sempre um aspecto intersubjetivo e comunicativo que acontece nos encontros
assistenciais, para além da dimensão técnica. Clinicar não se restringe a um aparato teórico-‐
técnico, pois acontece no encontro com o paciente e com os demais atores envolvidos,
considerados nas suas características, crenças e recursos próprios.
Campos (2007) problematiza a clínica como disciplina quando sugere que não se
restrinja à dimensão médica, pois esta não é a única, mas uma, dentre outros campos em que
a clínica é possível; para além do campo da ciência, há o campo da arte, do imprevisível e da
singularidade. Nesse sentido, propõe a idéia de semblantes, ou de dobra, para as diversas
clínicas que existem, e a partir disto caracteriza três tipos de clínica que reconhece nos serviços
de saúde: a oficial (tradicional), a degradada e a do sujeito, que seria para ele a clínica
ampliada.
A oficial é limitada; trata-‐se da clínica médica, cujo objeto de estudo e intervenção é
reduzido, pois não se considera a integralidade dos sujeitos. Aqui, supervaloriza-‐se o enfoque
biológico e a responsabilidade é pela doença, não pelo doente. A abordagem terapêutica é
excessivamente voltada para a noção de cura e para isto se utilizam procedimentos técnicos
padronizados e já conhecidos, havendo dificuldade do profissional de escutar queixas diversas
e de circular por caminhos desconhecidos.
A clínica degradada é a degradação da clínica oficial, numa determinação absoluta da
clínica médica, esvaziando-‐se outras potencialidades. Desenvolve-‐se ao máximo o sistema de
queixa conduta; faltam políticas de saúde adequadas; os médicos atendem essencialmente de
forma padronizada (e, portanto, alienada) e supervaloriza-‐se a racionalidade estratégica e
instrumental. A lógica política e de poder vigentes sobrepõe-‐se à de cura e reabilitação
psicossocial do paciente, cujos interesses não são assegurados.
15
Por fim há a clínica do sujeito, que Campos define como aquela construída em equipe
e que valoriza o vínculo entre o profissional/equipe e a clientela. Não nega o avanço dos
saberes e das tecnologias, mas questiona a “arrogância pétrea da medicina”, reconhecendo os
limites de qualquer saber estruturado. Assim, amplia a compreensão de doença e sai do
campo das certezas e regularidades para adentrar o da imprevisibilidade da vida cotidiana.
Aposta na escuta, na singularidade e na variação, e trabalha a partir da construção de projetos
terapêuticos singulares6.
Trata-‐se de uma construção coletiva, da qual equipe e clientela fazem parte
ativamente, expondo-‐se as incertezas presentes nas ações propostas. Uma coletividade que
pressupõe transdisciplinaridade, sem que isto não se reduza ao lugar já comum da
transdisciplinaridade, sendo preciso combinar especialização com interdisciplinaridade, sem
diluição das responsabilidades e ou omissão de saberes específicos.
Essa é a clínica ampliada, no sentido de ser uma ampliação, revisão e transformação da
clínica médica oficial, tradicional e/ou degradada. Uma ampliação, e não uma troca, pois a
doença está presente, como processo humano, mas sendo agora compreendida como a
doença de um sujeito concreto, singular, que vive em um determinado contexto de vida.
Assim, a clínica pode considerar as inter-‐relações da vida do sujeito, e os serviços de saúde
deveriam operar com plasticidade, não em função dos saberes médicos e especializados, mas
utilizando-‐os em função das necessidades e demandas que se lhe impõem.
Para Cunha (2005), a clínica ampliada deve ser antiprotocolar; trabalhar com ofertas,
possibilidades e aberturas, não apenas com restrições e crenças definitivas. Deve ainda ser
construída a partir de processos dialógicos com o paciente, de forma a criar com ele
intervenções específicas, em vez de receitar-‐lhe condutas. Uma clínica que respeita a
singularidade e a autonomia dos sujeitos, oferecendo-‐lhes atenção de forma transversal, a
partir de práticas em que há divisão de poderes, em vez de centralização destes em figuras
privilegiadas hierarquicamente. Valoriza a equipe como sujeito coletivo de produção
interventiva, num trabalho em que se reconhecem limites, em vez de mitificar saberes.
Campos (2011) parte noção da dialética de Hegel para propor a discussão de clínica
ampliada, pois neste caso trata-‐se de transformar um processo já em andamento para a
sintetização de um novo, que carrega as marcas de todos os momentos anteriores, ao mesmo
6 O Projeto Terapêutico Singular é um dispositivo proposto a partir da lógica da singularidade do caso, para a coprodução da saúde e de sujeitos autônomos. Segundo Oliveira (2007), trata-‐se de um dispositivo elaborado especificamente para cada caso, considerando-‐se suas singularidades e necessidades.
16
tempo em que os nega. Para o autor, este processo, além de compartilhado, como vimos
acima, é transparadigmático, pois visa questionar e ultrapassar tanto o paradigma biomédico,
quando o da determinação social. Trata-‐se de um movimento de tensionar e ampliar
paradigmas específicos, redefinindo o papel de cada um deles, aproveitando as contribuições
possíveis, em vez de elimina-‐los ou de reduzir um problema a apenas um modo de
compreensão possível.
Assim, amplia-‐se a noção de diagnóstico e a prática do trabalho específico, sendo
fundamental a idéia de núcleos específicos, que trabalham em um campo comum7, que não é
reduzido a uma única determinação. Nesse sentido, as compreensões de clínica propostas pela
saúde coletiva também são ampliadas, pois não se nega a importância de haver atendimentos
individuais e especializados, apenas não se restringem as ações de um campo à exclusividade
destes. Este é um aspecto importante para a atualidade, pois é comum, principalmente após a
criação do Apoio Matricial e do NASF, profissionais da saúde recusarem-‐se ou se oporem à
realização de atendimentos específicos, em prol de uma clínica coletiva. Mas é preciso
esclarecer que o coletivo, nesta proposta, não nega a necessidade de ações especificas, apenas
não se reduz a estas.
As intervenções clínicas são mais do que o atendimento de um pronto atendimento, a
medicalização ou a atenção especializada, embora cada um desses recursos seja bem vindo se
for o caso, de modo que Campos defende uma integração entre a prática clínica e o
movimento sanitário, o que outrora foi contraposto no movimento de consolidação da
Reforma Sanitária e da Saúde Pública. Entende que a clínica não é irredutível a qualquer
composição com a epidemiologia, e tão pouco antagônica aos interesses públicos e ao projeto
de socialização dos serviços de saúde, e afirma:
“A conclusão desta crítica entre a clínica e a epidemiologia encontram obstáculos
muito maiores de ordem política do que de caráter metodológico, e que a Clínica e a
Saúde pública tratam do mesmo problema, ainda que enfatizando diferentes aspectos
da questão saúde/doença e dando origem a modelos de atenção circunstancialmente,
mas não necessariamente diferentes” (1994: 68).
7 Para Campos (2000b), há campos comuns de trabalho, que são formados por núcleos de saberes e intervenções específicos. Define o núcleo como aglutinação de conhecimentos específicos que definem a identidade de uma área profissional, e o campo como um espaço com limites imprecisos, em que diferentes conhecimentos e práticas profissionais fazem-‐se presentes para cumprir com as demandas colocadas. O autor considera que partir desses conceitos, bem como das práticas de Apoio Matricial, é possível não se cair no lugar comum que ele denomina como “pós-‐moderno da transdisciplinaridade”, em que se considera que a simples presença de uma equipe é suficiente para a heterogeneidade ou coletividade.
17
O autor propõe a ampliação entre esses dois campos, de modo que haja convivência, e
não exclusão, entre diferentes metodologias. Nem uma clínica restrita ao modelo
individualizante da tradicional, nem outra limitada, submetida ao aspecto socializante da
saúde coletiva, mas um dispositivo que possibilite um diálogo entre ambas. Em qualquer
proposta pública e de saúde, deve-‐se valorizar a subjetividade das pessoas, o que muda é o
foco e a metodologia utilizados na intervenção. As dimensões sociais estão presentes nessa
nova clínica, mas não em detrimento aos outros aspectos constituintes da vida do sujeito.
Ferreira Neto (2011)8 caracteriza a clínica ampliada como a articulação entre a clínica
tradicional e a que enfatiza o aspecto político-‐social, o que produz um palco de tensões, mas
também uma intercessão produtiva, de modo que a subjetividade seja associada à noção de
cidadania e aproveitando-‐se várias disciplinas, e não apenas uma, de acordo com as demandas
do sujeito.
Onocko Campos et.al. (2008), assim como Campos (2007), consideram que se trata de
uma clínica que não nega os avanços tecnológicos e nem desconsidera a importância de uma
boa formação técnica, mas sim que é menos prescritiva, cria novos modos de escuta e inclui
novas análises de vulnerabilidade (não só biológica, mas também subjetiva e social), e novas
formas de avaliação dos riscos presentes (como a dimensão da prevenção e da redução de
danos).
Em vez de haver padrões generalizados, trabalha-‐se a partir da singularidade de cada
caso, sem cair numa relação de tutela ou enquadramento dos pacientes. Os projetos são
criados de forma compartilhada com a população atendida e esta é responsabilizada pelo seu
próprio processo de cuidado, apostando-‐se na sua potencialidade de autonomia. Desta forma,
crê na presença de recursos dessa população e da comunidade, ainda que em situações de
pobreza.
Já no belo ensaio publicado em 1954, Doença Mental e Psicologia, Foucault propõe
que a clínica não anule o sujeito da doença em nome do saber médico, nem seja uma
consciência lúdica do processo de enlouquecimento, mas sim uma reflexão fenomenológica
sobre este:
8 Sugiro a leitura do capítulo “Clínica transversalizada em saúde mental” do livro utilizado nessa referência, pois nele o autor apresenta, além de uma breve e didática contraposição entre diversos modos de clínica, uma pesquisa em que profissionais de um centro de saúde mental de Belo Horizonte apresentam sua concepção de clínica ampliada na sua prática profissional.
18
“A consciência que o doente tem da sua doença é rigorosamente original. Nada é, sem
dúvida, mais falso do que o mito da loucura, doença que se ignora; o afastamento que
separa a consciência do médico da consciência do doente não é medido pela distância
que separa o saber da doença e a sua ignorância. O médico não está do lado da saúde
que detém todo o saber sobre a doença; e o doente não está do lado da doença que
ignora tudo sobre si mesma, até sua própria existência” (2008: 57).
Vertentes importantes dessa discussão amparam-‐se em uma perspectiva psicanalítica9,
entendendo que a responsabilização relaciona-‐se com o reconhecimento dos desejos e
impossibilidades do sujeito, o que implica a tentativa de deparar-‐se com o próprio sintoma e
de construir um processo de desalienação. Uma clínica como possibilidade de criar e inventar
novas estratégias para o viver, contribuindo para a produção de novos laços sociais e novas
significações imaginárias na comunidade; não se restringe ao social, nem ao psíquico ou
biológico, de modo que está para além da compreensão social, das interpretações
psicologizantes e da medicalização da loucura.
Podemos pensar que na clínica tradicional também estão persentes alguns desses
aspectos apresentados acima, mas na proposta de clínica ampliada há dois outros que, para
além de uma nova concepção de saúde e doença, destacam-‐se como uma novidade
importante. Um refere-‐se à dimensão política que está presente, o outro à
transdisciplinaridade, como proposta de uma nova gestão para a composição desse campo.
Trata-‐se de uma clínica de caráter clínico-‐político, construída coletivamente.
Para Onocko Campos (2005), a dimensão política presente na clínica diz respeito a um
compromisso ético dos profissionais de transformar a miserabilidade da realidade em que
trabalham (quando isto acontece). Já Mendes (2007) entende o caráter político da clínica
como o confronto com as práticas já formalizadas e naturalizadas e de criação de resistência às
estratégias de controle e submissão presentes, seja em relação aos profissionais ou à
população. Ao contrário de ser uma prática neutra, é bastante ativa, pois possibilita
transformar e/ou reproduzir formas de subjetivação num dado cenário social.
Uma clínica que é indissociavelmente política, na medida em que pretende contribuir
para a formação de novos paradigmas, enfrentando e resistindo a outros. Para tanto, é preciso
que não se encerre em um único campo disciplinar, e que amplie estratégias e ferramentas e
9 Não me refiro aqui a Foucault, cujos construtos teóricos tencionam a psicanálise. Embora Foucault, tenha reconhecido a importância de Freud na ruptura do discurso psiquiátrico vigente, devolvendo aos loucos sua voz, o autor considera que a noção de transferência superinveste a figura do médico de poder, não desconstruindo o eixo de saber-‐poder-‐verdade na relação médico-‐paciente presente na clínica psiquiátrica (Chaves, 1988).
19
fronteiras de intervenção, sendo possível ao profissional e ao paciente envolvidos arriscarem
mais, exporem-‐se e ousarem, na tentativa de criarem novos territórios existenciais (Paulon,
2004).
Com relação ao aspecto coletivo e transdisciplinar, pretende-‐se um trabalho baseado
em um sistema de cogestão, para se construir práticas de saúde que operem na direção da
democratização dos espaços coletivos. Há um sentido comum nesse coletivo, tais como
formação de compromissos, contratos e projetos pactuados, de modo que todos se
transformam nessa relação. E o profissional pode interferir na realidade externa, não sendo a
clínica um universo irreal e paralelo ao mundo, mas sim parte dele. Portanto, é um campo
transdisciplinar, associado à dimensão política há pouco apresentada.
Para Barros & Passos (2000), a transdisciplinaridade é uma subversão dos eixos de
sustentação epistemológica tradicionais, definidos (rigidamente) na lógica da unidade do
especialismo. Sugerem o termo “clínica transdisciplinar”, que pressupõe uma relação de
intercessão entre os diversos atores em questão, e não meramente troca de conteúdos; há
reconhecimento, e não apagamento, de diferenças para produção de novas subjetividades,
como nos dizem esses autores:
“A clínica transdisciplinar se formaria como um sistema aberto onde o analista não
apenas criaria intercessores, elementos de passagem de um território a outro, mas
onde ele próprio seria um intercessor” (2000: 8).
Deleuze (apud Barros & Passos, 2000), propõe o conceito de intercessor, como algo
cheio de força, capaz de desestabilizar e produzir crise, de modo a se criarem novos
movimentos. Nesta perspectiva, não há uma conjunção entre partes, e sim relação de
interferência e atravessamento entre elas; processo de diferenciação, e não de identidade. A
clínica é então entendida como um campo de intervenções e rupturas, repleto de potências, e
não mera reunião de técnicas.
A meu ver, podemos transpor essas idéias para a compreensão da clínica ampliada,
pois nesta, a transdisciplinaridade está colocada em questão, e pode ser compreendida
também nesse sentido de criação, a partir de diferenças e encontros que provocam rupturas
com aquilo que já está dado, possibilitando ampliações. Há um misto de hibridações:
transdisciplinaridade, possibilidade de criar diversos settings de intervenção e desestabiliza-‐se
a dicotomia sujeito/objeto.
20
Na transdisciplinaridade, não se trata de abandonar o movimento criador de cada
disciplina, mas de fabricar intercessores, fazer agenciar, interferir. Movimentar fronteiras,
torna-‐las instáveis e questionar seus limites universalizados. Em uma clínica transdisciplinar,
como na clínica ampliada, o que interessa é a produção de (novos) modos de subjetivação,
bem como as circunstâncias em que foram produzidos e os efeitos criados. No lugar do
indivíduo, individuações; no de sujeito, subjetivações (Barros & Passos, 2000).
Baremblitt (1997a) fala de uma clínica que deve ser ampliada em todas as direções,
não para fabricar estereótipos que universalizem seus limites, mas sim para criar
agenciamentos inventivos e libertários, capazes de apostar na atualização do virtual, no
melhor de cada diferença, em vez de partir, de antemão, de certas condições de chegada. Se a
clínica tradicional parte em direção à busca de um diagnóstico conhecido, na ampliada
escutam-‐se as demandas colocadas para a construção conjunta de um caminho desconhecido,
em que o diagnóstico (não mais reduzido ao paradigma biomédico) é ponto de partida para a
criação de novos modos de subjetivação.
A ampliação surge na tentativa de modificar o que já existe, num processo de
reconstrução e recriação constantes. Amplia-‐se o objeto de intervenção, não mais reduzido à
doença, à determinação social, à subjetividade, ou ao inconsciente; a capacidade e forma de
escutar, não mais limitada ao sistema de queixa-‐conduta; a compreensão que se tem sobre o
paciente, tornando-‐o protagonista da cena, e ampliam-‐se os settings, não mais restringidos a
settings específicos (embora os utilize quando necessário), estendendo-‐os para a noção de
território (Campos, 2011).
Dado o fracasso da clínica tradicional, amparada em protocolos ou settings e
rigidamente estabelecidos, Lancetti (2006) propõe ainda uma clínica peripatética, que
acontece no território, em movimento, fora do consultório, baseada num processo terapêutico
que seja simultaneamente singular e coletivo, e que “ponha as pessoas de pé”, opondo-‐se à
clínica original, que se dava nos leitos dos doentes. A clínica ampliada que propomos aqui vai
ao encontro dessas novas possibilidades de intervenção, e também pode ser peripatética, na
medida em que isto se fizer necessário. É nesse sentido Lancetti prefere o termo “transclínica”
em relação ao clínica ampliada:
“Transclínica porque diferenciada de clínica ampliada, dado que não se trata de levar
os mesmos pressupostos, tão criticados nos processos de transformação institucional,
para novas áreas” (2006: 17).
21
Concordamos com a compreensão acima, e por isso não tomamos a ampliação como
mera extensão de um campo, mas como transformação do mesmo, como vimos nas propostas
acima. Ampliam-‐se as práticas interventivas e a compreensão de política, esta não mais
reduzida à defesa de uma categoria profissional ou a interesses de um governo, mas sim uma
atitude de todos os atores envolvidos, que se propõem a lutar por modos de vida que
respondam às suas demandas e necessidades.
Como diz Ferreira Leite, podemos considerar as diversas clínicas:
“(...) como diferentes dispositivos que se apresentam como conjuntos de componentes
diferentes, com posições e funções diversas e respondendo, historicamente, a
demandas e urgências também diversas” (2011: 177).
Um novo dispositivo em questão, que pretende responder às exigências sociais de se
pensar as intervenções em saúde de modo mais integrado, com uma concepção de homem
que considere seus múltiplos aspectos constituintes, e na realidade dos serviços de saúde em
que o sistema de referência-‐contra referência, troca de receitas e encaminhamentos
indiscriminados não se faz mais suficiente.
A clínica como “lugar” de transformação de todos os atores envolvidos, inclusive dela
mesma. Esse lugar do imprevisto, do intempestivo, de possibilidade de ruptura com aquilo que
está dado e de convite à criação. Não é matemática; não há dissecação de cadáveres;
investigação de tecidos, ou apenas o debruçar-‐se sobre os leitos dos doentes; tampouco
medicaliza a existência, numa obstinação pela cura dos sintomas ditos patológicos. Mas um
espaço de encontros e desencontros, de convite às diferenças e de construção de novas
formas de subjetivação, através de novos agenciamentos, metamorfoses e experiências de
liberdade para todos que se colocam ali (Baremblitt, 1997b).
Foucault (1995) valoriza a possibilidade de resistência do homem, no sentido de
enfretamento dos sistemas de saber e poder vigentes, para a produção de novas formas de
subjetivação. É esse processo de resistência e criação que entende por liberdade humana, que
implica autonomia e descontinuidade, no sentido de rompimento com aquilo que já está ali e é
alienante (Veyne, 2008).
A clínica ampliada resiste aos saberes tradicionais sobre a loucura, em prol de um
diálogo construtivo entre todos eles, na construção de compreensões mais plurais sobre esse
fenômeno. Não mais separação entre razão e desrazão, entre saúde e doença, mas sim o
reconhecimento da relação essencial entre esses polos.
22
Contra hábitos clínicos já consagrados e instituídos, estamos diante de uma nova
proposta, que, nas palavras de Pelbart:
“Ao lutar contra a produção maciça da impotência subjetiva, num contexto de
desterritorialização generalizada, trata-‐se de inventar as linhas de fuga aptas a
relançarem o movimento na direção de outras possibilidades de subjetivação” (2009:
13).
O Ministério da Saúde, bem como profissionais militantes da área que estão inseridos
na rede e/ou no planejamento de políticas públicas, ao reconhecerem a complexidade do
campo da saúde mental na saúde pública e a necessidade de se criarem novas compreensões
nesse campo, apostam na clínica ampliada em saúde mental como alternativa para o processo
de transformação da assistência médica tradicional e insuficiente, bem como do conceito,
ainda vigente, de doença mental. Conheçamos agora alguns aspectos da complexidade desse
campo e, em seguida, de que estratégias o Ministério, gestores e pensadores tem lançado mão
para a efetivação de um trabalho de clínica ampliada.
1.3 – Saúde Mental, Atenção Básica e o Programa de Saúde da Família: interseções na
composição de um campo
Se pretendemos refletir sobre a clínica ampliada em saúde mental, é preciso
conhecermos minimamente a realidade e a complexidade deste campo, na sua interseção com
a Atenção Básica e a Saúde da Família.
O Programa de Saúde da Família (PSF) 10 surgiu no Brasil em 1994, como uma nova
estratégia na Atenção Primária11, na tentativa de reverter o modelo biomédico, centrado na
doença e no tratamento, e de propor uma nova forma de organização, gestão e assistência em
saúde. Propõe um trabalho coletivo e em equipe, focalizado na família e na lógica de trabalho
no território, e que valoriza o vínculo entre equipe e população. Além disso, investe na
10 O PSF hoje é chamado de Estratégia Saúde da Família, para enfatizar que, muito mais do que um Programa, é uma estratégia adotada pelo Ministério da Saúde na AB. Entretanto, aqui utilizarei o termo PSF porque é assim que o nomeiam os profissionais que participaram desta pesquisa, e também porque ainda é uma nomenclatura presente em documentos do MS. 11 O termo Atenção Básica pode ser substituído por Atenção Primária; ambos se referem à porta de entrada no sistema de saúde e ao primeiro nível de atenção neste campo, responsável pelos cuidados básicos da população. Há um tencionamento entre diversos autores na denominação desse campo, mas não o apresentarei aqui, para não me estender. Neste trabalho, adotarei o termo Atenção Básica, pois é o mesmo utilizado pelo Ministério da Saúde e pelos profissionais que participaram desta pesquisa. Para quem se interessar, sugiro a leitura do Capítulo 5 do livro “Manual de práticas de Atenção Básica. Saúde ampliada e compartilhada” (Campos & Guerrero -‐ orgs. – 2008. São Paulo: Hucitec).
23
promoção da saúde, na defesa da vida, na educação e na participação da comunidade
(Amarante, 2007).
Consolidou-‐se como estratégia prioritária para a reorganização da Atenção Básica (AB),
que é a porta de entrada preferencial para o sistema de saúde, e que é assim definida pelo o
Ministério da Saúde:
“Atenção Básica caracteriza-‐se por um conjunto de ações de saúde, no âmbito
individual e coletivo, que abrangem a promoção e a proteção da saúde, a prevenção
de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação e a manutenção da saúde. (...)
Utiliza tecnologias de elevada complexidade e baixa densidade, que devem resolver os
problemas de saúde de maior frequência e relevância em seu território. É o contato
preferencial dos usuários com os sistemas de saúde. (...) A Atenção Básica considera o
sujeito em sua singularidade, na complexidade, na integralidade e na inserção
sociocultural e busca a promoção de sua saúde, a prevenção e tratamento de doenças
e a redução de danos ou de sofrimentos que possam comprometer suas possibilidades
de viver de modo saudável” (2006: 13).
Como está inserido na AB, o PSF também deve estar em consonância com os princípios
e diretrizes do SUS, como universalidade do acesso à saúde, que é direto de todos e dever do
Estado; igualdade na assistência, considerando-‐se as singularidades de cada pessoa atendida;
integralidade da assistência, que inclui os diferentes níveis de complexidade do sistema;
descentralização; hierarquização, sendo a AB a porta de entrada do sistema, e participação
popular (Paim, 2009).
O PSF é proposto em Unidades Básicas de Saúde (UBS), que passam então a receber a
denominação de Unidades Saúde da Família (USF), e é formado por equipes básicas, chamadas
de equipes de saúde da família (ESF). Estas são compostas por um médico generalista, um
enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e por agentes comunitários de saúde (ACS), que
variam de quatro a seis. Estes são moradores da própria comunidade12, e auxiliam na
construção de vínculo e diálogo entre ela e os serviços de saúde.
Cada ESF é responsável, teoricamente, por cerca de 800 famílias (aproximadamente
3.500 pessoas), e assume a condução dos casos13, sempre os considerando na sua inserção
12 Atualmente, segundo os profissionais do NASF que participaram desta pesquisa, o ACS não precisa mais ser morador da micro área que atende, mas apenas da área de abrangência da UBS. 13 Campos (1999) propôs o conceito de equipe de referência para repensar o papel das ESF. A equipe de referência é a própria ESF, mas com a tarefa explícita de ser responsável pela condução de casos. Na linha de estudos do autor que se propõe a repensar e a reorganizar os serviços de saúde, esse novo conceito visa ampliar a responsabilidade pelo caso, que se dará ao longo do tempo, de forma longitudinal, e fortalecer a lógica de trabalho em equipe
24
familiar e territorial. Através de cuidados primários, pretende evitar encaminhamentos
desnecessários para serviços especializados, de forma a não estimular a superlotação destes
serviços e a “carreira de doente” das pessoas que adoecem (Amarante, 2007).
Sendo a porta de entrada no sistema, e com um trabalho realizado na lógica do
território, a partir da estratégia do PSF, a AB recebe uma demanda importante ligada à saúde
mental. De acordo com Maragno et al. (apud Onocko Campos & Gama, 2008), em uma USF na
periferia da cidade de São Paulo, a prevalência de transtorno mental comum é de 24,95 % da
população. O transtorno mental comum refere-‐se a quadros de irritabilidade; fatiga; insônia;
ansiedade; queixas somáticas; esquecimento e dificuldade de concentração, mas que não se
enquadram em nenhum dos diagnósticos definidos pelo DSM IV ou CID X.
Segundo o Ministério da Saúde, grande parte das pessoas com transtornos mentais leves é
atendida na rede de AB e, na realidade do PSF, 56% das equipes referem realizar alguma ação
de saúde mental:
“Existe um componente de sofrimento subjetivo associado a toda e qualquer doença
(...). Poderíamos dizer que todo problema de saúde é também – e sempre – mental, e
que toda saúde mental é também – e sempre – produção de saúde. Nesse sentido,
será sempre importante e necessária a articulação da saúde mental com a atenção
básica” (2003: 3).
Embora os campos da AB e da saúde mental sejam intrínsecos um ao outro, a relação
entre eles não acontece de forma fluida, pelo contrário, enfrenta uma série de dificuldades.
Onocko Campos & Gama (2008) consideram que isso se dá em função da falta de diretrizes do
Ministério da Saúde, da falta de investimento dos gestores e das precárias condições de
trabalho dos profissionais. Além disso, grande parte das ESF não está preparada para lidar com
esses transtornos, e muitas vezes reforça, ao invés de transformar, a lógica dos
encaminhamentos indiscriminados para os especialistas de saúde mental, além de serem
comuns práticas ancoradas numa compreensão clássica do processo saúde-‐doença e que
corroboram para a medicalização do sofrimento humano.
Campos (apud Braga Campos & Nascimento, 1988) observou em uma pesquisa que as
instituições públicas de saúde não valorizam os aspectos emocionais da população atendida. É
na área materno-‐infantil que os aspectos da saúde mental têm maior relevância, por um
interdisciplinar. O autor sugere ainda que, para além das equipes de referência, haja um profissional de referência em cada uma dessas equipes, sendo ele responsável pela condução do projeto terapêutico individual elaborado.
25
interesse do Estado em investir em prevenção de problemas originários no início da vida e
estímulo de um desenvolvimento saudável, de modo a garantir, na medida do possível,
indivíduos produtivos. A falta de atenção em saúde mental deriva também do fato de que o
médico sabe auscultar, mas nem sempre escutar, pois sua formação é mais voltada para os
aspectos físicos da pessoa, entendida apenas como um ser formado por diferentes órgãos.
A inserção e exploração da saúde mental na AB ainda é recente e complexa, mas o
Ministério da Saúde, desde 2001, tem elaborado estratégias para o enfrentamento desse
problema, como a proposta do Apoio Matricial em Saúde Mental e a criação, em 2008, dos
Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) (Onocko Campos & Gama, 2008).
Na IV Conferência Nacional de Saúde Mental, por exemplo, propôs-‐se a existência de
políticas públicas intersetoriais, que visem à cultura, lazer, esporte, educação e geração de
renda. Para isso, é preciso aproveitar e fortalecer os recursos públicos e comunitários
existentes, bem como criar outros novos. Para tanto, é preciso que haja integração entre os
recursos e os serviços de saúde mental presentes no território. A conferência enfatiza a
importância de se garantir o cuidado em saúde mental na AB, através de parcerias
intersetoriais; de ações de Apoio Matricial, em parceria com o CAPS; do NASF e da inserção de
ações de saúde mental em todas as atividades do PSF (BRASIL, 2010 a).
O Apoio Matricial em saúde mental surge como uma proposta de articulação entre o
campo da saúde mental, a Atenção Básica e o PSF. Vejamos agora no que consiste o Apoio e
em que medidas ele pode ser considerado uma prática de produção da clínica ampliada.
1.4 – O Apoio Matricial em Saúde Mental à luz do conceito de dispositivo
O conceito de Apoio Matricial foi proposto por Gastão Wagner de Souza Campos, em
Campinas, a partir de 2001, para denominar uma prática de trabalho que faz parte de um
processo de reforma das organizações, da forma de gestão e do trabalho em saúde. Essa
prática já acontecia em outros municípios, como em São Paulo, mas ainda não tinha tal
denominação. Em Campinas, foi experimentada no PSF e depois se estendeu para a saúde
mental. A partir de 2003, foi incorporada pelo Ministério da Saúde como estratégia de
transformação da saúde e da saúde mental na AB (Campos & Domitti, 2007).
O Apoio Matricial é, simultaneamente, um arranjo organizacional e uma metodologia
para gestão do trabalho que pretende contribuir para a transformação do sistema tradicional
26
ambulatorial de atenção em saúde, baseado num sistema burocratizado de referência e contra
referência, e não no vínculo. Propõe a integração e o diálogo entre diferentes profissionais e
especialidades e pretende deslocar a atuação na saúde pautada em procedimentos para a
pautada na lógica da produção de cuidados. Trata-‐se de uma intervenção que visa a
construção de novos saberes e práticas em saúde, muito mais alinhados com a proposta de
clínica ampliada do que com a da clínica tradicional.
O termo “apoio” sugere uma forma de trabalho baseada em relações horizontais e
dialógicas. O termo “matriz” traz dois sentidos: um refere-‐se à origem etimológica da palavra,
que, em latim, significa lugar em que se geram e criam coisas, e o outro se refere à noção da
matemática de conjuntos, em que os números podes se relacionar entre si de diversas formas
(na horizontal, na vertical e na transversal). O Apoio Matricial propõe, assim, que os
profissionais estabeleçam relações mais horizontalizadas, tanto entre eles quanto com a
população, e que possam contar com uma equipe de apoio especialista para tirarem dúvidas,
trocarem conhecimentos e construírem, na lógica da corresponsabilização, projetos e
intervenções inovadoras (Campos & Domitti, 2007).
Um arranjo que pretende transformar a lógica de trabalho tradicional para construir
outra, em que a saúde é compreendida de forma mais integralizada, e não sob a égide da
super especialização, em que as intervenções clínicas são construídas e realizadas
coletivamente, e com uma compreensão de paciente na sua posição de autor participante do
seu próprio processo de cuidado. Nesse sentido, podemos nesse arranjo como um dispositivo.
Para Foucault (2009), dispositivo é um conceito importante para se compreender
aspectos da organização social e processos de produção de modos de subjetivação, pois se
refere a saberes e práticas que, articulados, transformam e produzem formas de ser, sentir e
falar em determinados campos da vida. Define-‐o como uma formação heterogênea, composta
por elementos discursivos e não discursivos, que responde a uma certa urgência, num dado
momento histórico, para preencher uma função estratégica dominante, e que, através de
rupturas, cria algo novo, que ainda não estava dado. Nas palavras do autor:
“Através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente
heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas,
decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos,
proposições filosóficas, morais, filantrópicas. E suma, o dito e o não dito são os
elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses
elementos” (2009: 244).
27
O Apoio Matricial é uma reunião de discursos e de práticas, heterogêneos, alguns
explícitos e outros encobertos, relativos ao campo da saúde, sobre como se pensam os
processos de saúde e doença; como se deve intervir clinicamente; que tipo de relação
pretende-‐se estabelecer com o paciente e qual a melhor forma de organizar a assistência.
Deleuze (1990) compara o dispositivo a uma espécie de novelo, no sentido de ser um
conjunto emaranhado, heterogêneo, composto por linhas que seguem direções diferentes,
que tanto se aproximam quanto se afastam umas das outras, e que compõem um processo em
permanente desequilíbrio. Nesse “novelo”, há objetos visíveis; regimes de enunciação; forças
em exercício e sujeitos que ocupam diferentes posições, agindo como vetores ou tensores de
um campo. Não possui contornos definitivos, mas sim cadeias de forças variáveis que se
relacionam entre si, e que podem tanto se sedimentar, consolidando aspectos, quanto fissurar,
rachar outros tantos, provocando transformações.
O dispositivo pode ser visualizado como um conjunto permanentemente aberto, no
qual opera a ordem do caos, em que essas diferentes forças interagem incessantemente, em
todas as direções possíveis, produzindo formas de ser; ver; falar; existir e intervir no mundo.
São forças que operam em devir14, na construção de singularidades e atualidades. A
atualidade, de acordo com Deleuze (1990) é o próprio devir, o processo de vir a ser; se a
história é o arquivo de uma existência, o atual é aquilo em que esta existência vai se tornando.
Deleuze (1990) entende que as linhas de força de um dispositivo dividem-‐se entre
linhas de sedimentação ou estratificação e linhas de criatividade ou atualização. Desta forma,
os dispositivos constroem modos de subjetivação que capturam e estratificam, mas que
também atualizam, transformam. Um movimento de existir em que há tanto processos de
abertura, quanto de fechamento.
Ao considerar o Apoio Matricial um dispositivo15, estamos diante de uma formação
simultaneamente discursiva e não-‐discursiva, composta por um emaranhado de forças que
tanto caminham em direção à atualização e criação de nova formas de pensar e trabalhar na
saúde, quanto, ao tentar consolidar outros, aponta para um processo de captura e
estratificação de modos de subjetivação instituídos.
14 O conceito de devir refere-‐se a um constante movimento de vir a ser; relaciona-‐se, para Barros & Passos (apud Oliveira, 2011), à passagem de forças que já estavam presentes, mas que desmontam modos de subjetivação, construindo outros. 15 Embora os documentos oficiais denominem o Apoio de arranjo, adoto aqui o termo dispositivo, no sentido do conceito apresentado, de forma a enfatizar seu caráter transformador de saberes e práticas no campo da saúde.
28
E como o Apoio implica o trabalho conjunto de profissionais, os que matriciam e os
que são matriciados, há tanto aqueles que querem ampliar suas concepções e intervenções na
clínica, quanto aqueles que continuam trabalhando sob a lógica tradicional de
encaminhamentos e especialismos.
O Ministério da Saúde (2003), num esforço de pensar a integração entre a saúde
mental e a AB nessa nova lógica, propõe que o Apoio opere práticas que evitem a
psiquiatrização e a medicalização da loucura, difundindo a lógica não manicomial proposta
pela Reforma Psiquiátrica Brasileira; estimulem a construção de espaços de reabilitação
psicossocial na comunidade; promovam a articulação intersetorial; priorizem abordagens
coletivas e que valorizem o vínculo com a família, tida como possível parceira no processo de
cuidado. Para tanto, reforça as seguintes ações desse dispositivo:
“As equipes de saúde mental de apoio à atenção básica incorporam ações de
supervisão, atendimento em conjunto e atendimento específico, além de participar das
iniciativas de capacitação. Além disso, as seguintes ações devem ser compartilhadas
(...)” (Brasil, 2003: 5). (grifo meu)
Na prática, as equipes de Apoiam atuam juntamente às ESF, através de ações que
consistem em três conjuntos contínuos de intervenção e que se inter-‐relacionam: supervisão
dos profissionais da AB, capacitação dos mesmos e assistência à população. Essas ações são
realizadas através de reuniões para discussão de caso com as ESF (de preferência num horário
preestabelecido e com frequência regular); atendimentos compartilhados com essas equipes
e/ou atendimentos especializados (individuais e grupais); atividades educativas e pedagógicas
de capacitação aos profissionais e construção da rede de atenção em saúde.
Vale aqui esclarecer que as equipes de Apoio podem ser de diferentes especialidades,
a de saúde mental é uma delas e é o foco desta pesquisa. Neste caso, deve ser composta por,
no mínimo, dois profissionais, geralmente um psicólogo e um psiquiatra, que podem ser tanto
profissionais do CAPS, quanto especialistas ligados a outros serviços de saúde que se
proponham a realizar matriciamento. Também podem estar presentes profissionais de outras
categorias, como assistente social, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional, etc. (Campos &
Domitti, 2007).
Lancetti (2006) critica o nome Matricial, pois considera que este se refere a um
mecanismo fixo de funcionamento, sendo que o trabalho das equipes de Apoio é um
movimento constante. Mas apesar dessa particularidade nominal, entendo que, por se tratar
aqui do trabalho de equipes volantes que trabalham com as ESF no território, há um caráter
29
peripatético em questão, no sentido de haver circulação pelo território e diversos recursos de
intervenção, em vez de um único modo de clinicar.
O Município de Campinas, em 2004, elaborou um “texto base” sobre o Apoio Matricial,
em que afirma compartilhar dos pressupostos do Ministério da Saúde, e no qual acrescenta
que a proposta de matriciamento só é possível com uma reformulação do modelo assistencial
vigente nos ambulatórios de especialidades. Para ser possível o encontro entre profissionais do
Apoio e da AB, é preciso garantir horários de capacitação em serviço entre eles, lembrando
que cabe aos matriciadores oferece-‐los. Nesses horários, pode haver discussão de caso;
consultas conjuntas; organizações de seminários e palestras, ou participação nas reuniões de
equipe. Além disso, o Apoio deve estabelecer com as ESF pactuações para classificação de
risco e construir uma organização de fluxo de encaminhamento dos pacientes.
Todas essas ações contemplam um aspecto de “formação” profissional, não no sentido
formal burocrático, mas no de educação continuada, por parte dos matriciadores em relação
aos profissionais da AB, pois a proposta do Apoio é contribuir para a construção de um novo
modo de se pensar e fazer saúde, distinto dos anteriores. Nas reuniões para discussão de caso,
nos momentos de capacitação ou nos próprios atendimentos compartilhados, o Apoio tem a
oportunidade de problematizar questões que os profissionais das ESF colocam, além de criar,
junto com eles, novos projetos terapêuticos. Inegavelmente, esse dispositivo tem uma
dimensão clínica presente, seja nas reuniões de discussão de caso (os documentos oficiais e os
artigos apresentados referem-‐se a este momento de discussão como “supervisão”16), seja nos
atendimentos clínicos propriamente ditos.
Campos & Domitti (2007) consideram que deve ser primordialmente a partir do espaço
de discussão de caso que se problematizam questões dos profissionais e demandas dos
pacientes e que se constroem, dialogicamente, projetos terapêuticos singulares, definindo-‐se
intervenções futuras. Para Oliveira:
“Quando se inicia um processo de apoio matricial, a intencionalidade primeira é
ampliar a capacidade de análise das equipes de referência para lidar com seus casos e
ampliar sua capacidade resolutiva. Todavia, discutir casos complexos envolve um
enfrentamento ativo das dificuldades não só técnicas da equipe de referência, mas
também as dificuldades operacionais dos serviços e da rede. Um dos primeiros efeitos 16 Aqui não utilizarei o nome supervisão para tal processo de trabalho, pois se trata de uma relação menos hierarquizada entre os profissionais e em que ambas as partes envolvidas responsabilizam-‐se mutuamente pela construção e seguimento do caso.
30
de uma experiência de apoio matricial bem-‐sucedida é a ampliação da capacidade de
manejo dos casos pela equipe de referência. Isso gera novas necessidades de
adequação da organização da gestão em diferentes níveis” (2011: 42).
Assim, o Apoio Matricial é um dispositivo que se insere na lógica de produção em
saúde que produz modos de subjetivação distintos daqueles centrados no corporativismo e na
alienação tanto do trabalhador em relação ao seu próprio trabalho quanto do paciente em
relação ao seu próprio processo de cuidado. Oferece aos profissionais possibilidades de trocas
de saberes, de intervenções e de repensar sobre seus conhecimentos e práticas em saúde.
Pode produzir, assim, novas formas de subjetivação, seja em relação aos profissionais, seja em
relação aos pacientes (Oliveira, 2011).
Neste sentido, Oliveira (2011) propõe que haja um processo de “devir apoiador”, como
forma modificar o que já está dado e assim criar algo novo, a partir das potencialidades que
estavam ali, latentes. Nos caminhos seguidos constroem-‐se novos territórios existenciais. Em
outras palavras, podemos dizer que o dispositivo Apoio deve operar em devir, provocando um
processo constante de construção de novos modos de subjetivação.
Um dispositivo cujas ações se dão através de um processo de trabalho grupal, como
vimos ao longo deste item. É então permeado por questões institucionais, grupais e pessoais
de cada um presente, de modo que ali se colocarão o imaginário grupal relativo à problemática
discutida; ao próprio funcionamento do grupo; às questões individuais de cada um e ao
contexto da USF em que estão inseridos.
Pichon-‐Rivière define um grupo17 como:
“(...) o conjunto restrito de pessoas, ligadas entre si por constantes de tempo e espaço,
e articuladas por sua mútua representação interna, que se propõe, de forma explicita
ou implícita, uma tarefa que constitui sua finalidade” (2005: 242).
E o grupo, de acordo com Pichon-‐Rivière (2005), para poder realizar tarefas comuns,
precisa de vínculo entre seus membros; de heterogeneidade na sua composição, mas
homogeneidade nas tarefas; de afiliação; de cooperação interna; de comunicação e de
possibilidade de aprendizagem. O grupo, aqui, será considerado como um coletivo, e não a
partir da dicotomia indivíduo-‐grupo ou grupo-‐sociedade, o que seria uma redução. Trata-‐se de
17 Nesta definição o autor está se referindo ao conceito de grupo operativo; aqui tomamos emprestado alguns aspectos deste conceito, que vão ao encontro da proposta de trabalho do Apoio, na medida em ambos propõem-‐se a realizar tarefas, a partir de um grupo de trabalho.
31
uma unidade de produção de multiplicidades, heterogeneidades e fragmentações (Guatarri,
apud Barros, 1997).
A proposta do Apoio é justamente, a partir de um grupo de trabalho, permitir
questionamentos e reflexões de saberes e práticas que estão sendo construídos na AB. Trata-‐
se de um trabalho coletivo e transdisciplinar, em um campo comum, o que se configura como
um cenário de embates, convivência, confluência e convergência entre diferentes emoções. Há
experimentação de novos settings de intervenção, sendo o território elemento fundamental;
há ruptura com a institucionalização e detenção de saberes especializados; aposta-‐se na
população como parceira e nos pacientes como potencialmente capazes de autonomia e
parte-‐se de uma compreensão sobre o processo saúde-‐doença que não se restringe a um
único paradigma e nem fragmenta o homem.
A clínica tradicional mostrou-‐se, no contexto da AB, um sistema obsoleto e que não
deu mais conta da demanda, pois cresceram as listas de espera para os especialistas; muitas
pessoas foram diagnosticadas equivocadamente e encerradas num estereótipo
psiquiatrizante, por exemplo; profissionais ficaram sobrecarregados e esgotados e a população
ficou sem atendimento adequado. Daí a urgência que se impôs ao dispositivo do Apoio de
transformar esse modo anterior de clinicar.
Mas, na qualidade de um dispositivo, há forças que resistem a essas mudanças, ora
sendo possível aos profissionais fazer certas problematizações e intervenções antes não
pensadas, ora não, devido à resistência das forças de manutenção do status quo. Vale dizer
que as forças de transformação de um dispositivo podem vir de várias direções, num
movimento desordenado, às vezes por parte daqueles que são matriciados, mas também,
outras tantas, por parte dos próprios matriciadores.
Não há abertura sem fechamento; não há criação sem tradição, ou atualização sem
sedimentação. É nesse sentido que Foucault (2010) escreve que é preciso acreditar na ironia
do dispositivo, pois nele está presente tanto um jogo complexo de forças e de estratégias de
poder, quanto uma possibilidade (potente) de libertação.
Analogamente, o Ministério da Saúde, gestores e militantes do campo da saúde e da
saúde mental apostam no dispositivo Apoio como potencial desconstrutor da clínica
tradicional e degradada, e construtor da clínica ampliada. Atualmente, com a implantação dos
Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), as ações de Apoio têm sido exercidas
principalmente por estas novas equipes, e o CAPS acaba, muitas vezes, deixando de ser o
32
principal articulador da saúde mental no território, como propôs o Ministério da Saúde em
2004, cartilha sobre o CAPS.
Não por coincidência, então, nesta pesquisa estudei o processo de construção da
clínica ampliada em saúde mental a partir do dispositivo Apoio realizado por uma equipe de
NASF. Conheçamos agora como se dá a relação entre o NASF e o Apoio Matricial.
1.5 – O Apoio Matricial em Saúde Mental no Núcleo de Apoio à Saúde da Família
Oliveira define o Apoio Matricial, já o relacionando ao NASF, como:
“(...) arranjo organizacional ou modalidade de prática do apoio na qual um conjunto de
saberes, de práticas e/ou de competências concentrados em certos setores, grupos ou
indivíduos de uma organização, considerados necessários para resolução de demandas
ou problemas expressos por outras parcelas da organização, é ofertado a estas últimas
por meio de processos que incorporem uma metodologia de apoio. Toma como objeto
uma necessidade ou um problema vivenciado. Nesse sentido é que entendemos que o
seu enfoque é mais clínico, mas sempre considerando que há dimensões de gestão em
jogo. Existem várias experiências de apoio matricial em curso no SUS, desde a década
de 1990. Nos últimos anos essa modalidade ganhou visibilidade a partir da instituição
dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família – NASF, instituídos pelo Ministério da Saúde
(MS) em 2008, a partir da portaria GM n.154” (2011: 46) (grifo meu).
Grifei o aspecto clínico na citação acima pois é esta dimensão do trabalho do Apoio,
realizado por uma equipe de NASF, que aqui será tomada em análise.
Em 2008, o Ministério da Saúde publicou a portaria n. 154 para criar os Núcleos de
Apoio à Saúde da Família (NASF), com o objetivo de ampliar as ações e a resolutividade da AB,
no PSF. A portaria define que as equipes de NASF devem ser compostas por profissionais de
diferentes áreas, que irão atuar em parceria com as ESF. Não são a porta de entrada do
sistema; atuam a partir das demandas das ESF, oferecendo-‐lhes retaguarda, acompanhamento
longitudinal, e corresponsabilidade pelos casos clínicos. Devem contribuir para a revisão das
práticas de encaminhamentos indiscriminados e baseados no sistema de referência e contra
referência, de modo a fortalecer o vínculo entre o paciente e o serviço de saúde básico.
33
Também buscam a integralidade do cuidado físico e mental dos pacientes18, o que qualifica e
complementa o trabalho das ESF.
De acordo com a portaria, uma equipe de NASF deve ter, no mínimo, três profissionais
de nível superior (o que varia em função do tamanho da ESF que apoiam), que podem ser:
médico acupunturista; assistente social; profissional de educação física; farmacêutico;
fisioterapeuta; fonoaudiólogo; médico ginecologista; médico homeopata; nutricionista;
médico pediatra; médico psiquiatra; psicólogo e terapeuta ocupacional. Ao contar com um
profissional de saúde mental, também se responsabiliza por este campo de atuação.
A portaria n. 154 explicita que é responsabilidade de todos os profissionais do NASF
identificar, em conjunto com a ESF e a comunidade, o público prioritário para cada uma das
ações desenvolvidas; acolher os pacientes; humanizar a atenção; estimular a intersetorialidade
e elaborar projetos terapêuticos individuais, através de discussões de casos, que são
periódicas. Nestas discussões, busca-‐se a apropriação coletiva dos casos, que passam a ser,
agora, de corresponsabilidade da ESF e do NASF, na lógica da interdisciplinaridade.
As ações do NASF acontecem na lógica territorial, na lógica da clínica ampliada e da
integralidade de cuidados, e consistem em supervisão (por meio das reuniões de discussão de
caso), atividades de capacitação, e intervenções com a família e a comunidade. Assim, o
trabalho do NASF é semelhante ao do Apoio Matricial; partem da mesma lógica de inserção na
AB; compartilham os mesmos princípios e ações, e ambos possuem uma dimensão clínica de
atuação. A diferença é que tem nomenclaturas distintas e o Apoio não chegou a ter uma
portaria específica.
O Ministério da Saúde entende que o NASF organiza-‐se e desenvolve-‐se por meio do
Apoio Matricial, da clínica ampliada, do Projeto Terapêutico Singular e do Projeto de Saúde no
Território; define que o Apoio é uma ferramenta de trabalho do NASF, fundamental para a
prática de aprendizado coletivo no trabalho (Brasil, 2009).
Neste documento, o Ministério define que o NASF atua nas seguintes áreas estratégias
da AB: saúde da criança e do adolescente; saúde mental; saúde do idoso, o que implica
reabilitação, quando for este o caso; alimentação; nutrição; serviço social; saúde da mulher;
assistência farmacêutica; atividade física e práticas corporais e outras práticas que sejam
complementares a essas todas.
18 A portaria utiliza o termo “usuários”.
34
Com relação ao campo da saúde mental, com a portaria n. 154 houve um investimento
por parte do governo neste campo na AB, de modo que, no ano de 2009, o NASF capacitou
200 profissionais da AB em saúde mental, (Brasil, 2010b). A portaria estabelece que, com
relação à saúde mental, o NASF deve trabalhar a partir dos seguintes princípios e ações:
• Atenção aos pacientes e familiares em situação de risco psicossocial ou doença
mental, na lógica do PSF;
• Ações de combate ao sofrimento subjetivo associado a toda e qualquer doença que
dificulte a adesão a práticas preventivas e a tratamentos;
• Ações de enfrentamento a agravos decorrentes ao uso de álcool e drogas, bem como o
desenvolvimento de propostas preventivas nesta área;
• Potencialização da rede de cuidados (que inclui a rede de AB; o CAPS; outros setores e
os recursos da própria comunidade);
• Desenvolver práticas que promovam a equidade, a integralidade e a construção da
cidadania;
• Realizar atividades clínicas pertinentes à sua responsabilidade profissional;
• Oferecer apoio às ESF na abordagem e condução de casos de transtornos mentais
severos e persistentes (uso abusivo de álcool e outras drogas; pacientes egressos de
internações psiquiátricas; pacientes atendidos no CAPS; casos de tentativa de suicídio
e situações de violência intrafamiliar);
• Discutir com as ESF casos em que se identificam questões de natureza subjetiva e,
assim, realiza-‐se uma ampliação da clínica nesta direção;
• Estimular a reabilitação psicossocial na comunidade;
• Priorizar abordagens coletivas de intervenção;
• Difundir a cultura de atenção não-‐manicomial, de forma a desconstruir preconceitos e
processos de estigmatização da loucura;
• Evitar práticas que levem à psiquiatrização e à medicalização de situações comuns à
vida cotidiana.
Este é o campo colocado ao NASF, na sua função de dispositivo Apoio Matricial em
saúde mental. Que clínica é construída entre o NASF, na qualidade de dispositivo Apoio, e as
ESF? A nossa reflexão será sobre esse novo elemento que surge, que não se resume nem ao
Apoio do NASF, nem às ESF, mas ao encontro dessas duas equipes, para a construção de um
terceiro modo de clinicar.
35
Para a reflexão sobre este problema de pesquisa, teremos em mente algumas
questões: que, e de quais, elementos dis-‐põe19 essa estratégia de Apoio? Que linhas de
sedimentação e de atualização são nele produzidas? E, finalmente, a que urgências responde?
Que modos de subjetivação, relativos a saberes e práticas no campo da saúde mental,
produzem-‐se ali?
Como nos lembra Foucault (2009), sendo o dispositivo formado tanto por forças de
transformação, quanto forças de consolidação, o Apoio tanto promove linhas de fuga, quanto
de sedimentação, de forma que atentaremos para como acontecem cada um dessas linhas no
trabalho clínico de uma equipe de NASF naquilo que se refere ao dispositivo do Apoio Matricial
em Saúde Mental.
Para aprofundar a discussão sobre os processos transformadores e criadores de um
dispositivo, recorro ao conceito de transicionalidade, que será apresentado no Capítulo
seguinte.
19 Para Fernandez (1997), o dispositivo DIS-‐PÕE, no sentido de ser uma montagem que provoca; coloca em ato potências e possibilidades de ser; cria conexões e desconexões entre elementos heterogêneos; produz linhas de subjetivação e permite alojar o inesperado.
36
CAPÍTULO 2: A TRANSICIONALIDADE NA CLÍNICA
2.1 – Os conceitos de objetos e fenômenos transicionais e de espaço potencial de Winnicott
para pensar a transicionalidade na clínica
Seria, porém, muito ruim para mim me associar à idéia de escrever algo
sobre o ser humano num livro sobre corpos vistos a partir do ângulo
médico, que se ocupa de saúde como ausência de doenças.
Winnicott (2005: 209).
A psicanálise, inicialmente com Freud, criou um novo dispositivo clínico, que se
opunha ao da clínica psiquiátrica clássica. Freud traz uma nova compreensão sobre as doenças
mentais; expande as doenças para o campo psíquico; retoma a atividade do sujeito no
processo de adoecimento e possibilita ao que é da ordem do invisível vir à cena, através do
reconhecimento do inconsciente. Considera que os sintomas tem um sentido existencial, não
sendo possível simplesmente elimina-‐los da vida do sujeito, de modo que, no método
freudiano, o paciente é convocado a participar ativamente do seu tratamento; o trabalho
proposto não é pontual e não se determina de antemão o tempo de duração, que é variável. A
loucura é convocada, e não extirpada da cena clínica.
Para Freud:
“(...) a psicanálise não hesita em atribuir aos processos emocionais a primazia da vida
mental, e revela nas pessoas normais uma inesperada quantidade de perturbações
afetivas e do ofuscamento do intelecto numa frequência que não é inferior à verificada
em pessoas doentes”. (2006a: 177).
Winnicott (1965), na época da Antipsiquiatria e no cenário do pós-‐guerra na Inglaterra,
também traz novas concepções sobre a loucura, para além do conceito de doença mental.
Acredita que se deve abrir espaço, na formulação de uma teoria, para que uma certa dose de
experiência de loucura seja universal, não como patologia, tão pouco como colapso total, mas
como faceta da condição humana. E acrescenta a importância do ambiente nos processos de
37
adoecimento psíquico, para além da hereditariedade e dos fatores constitucionais, tão
valorizados pela psiquiátrica clássica:
“Podemos examinar a sociedade em termos das doenças (...); ou, então, podemos
examinar a maneira pela qual existem indivíduos em famílias e unidades sociais que
são psiquiatricamente sadios, mas que foram deformados e se tornaram ineficientes
exatamente pela sua própria unidade social, em determinada situação” (1975: 190).
Saúde, para Winnicott (1994), não é ausência de doenças, mas se relaciona ao fato do
indivíduo sentir-‐se real, desenvolvendo um senso de self, de ser. Não é apenas estado
confusional, mas um padrão organizado de defesas e resistências, que são a forma emocional
possível, naquele momento, do indivíduo continuar vivendo. Como nos lembra Phillips (2006),
saúde, para o autor, está sempre associada a uma certa dose de espontaneidade e intuição.
Nesse sentido, relaciona-‐a à integração e à criatividade, e não aos processos de negação/cisão
na mente, e estende-‐se à realidade social e cultural.
Para Winnicott, “(...) a saúde tem relação com o viver, com a saúde interior e, de modo
diverso, com a capacidade de se ter experiência cultural” (2005: 20). O autor localiza na cultura
a esfera onde experimentamos a maior parte da vida; região que, para ele, não se resume nem
à realidade interna e nem à externa, mas se caracteriza por ser intermediária entre ambas
(Abram, 1996). Nessa região intermediária é possível a criatividade, essencial para o
desenvolvimento do self e para o surgimento de novos modos de ser e fazer (em outros
termos, novos modos de subjetivação), elementos essenciais para a saúde.
Winnicott, debruçado na sua experiência de pediatra e nessa compreensão da loucura
amparada na psicanálise e para além da sintomatologia médica clássica, retomou a questão do
entre na condição humana, através dos conceitos de objeto transicional, espaço potencial e
fenômenos transicionais. Esses são centrais no seu pensamento e relacionam-‐se à área
intermediária da experiência, que não se refere nem à realidade interna, nem à externa, mas a
um “lugar” entre elas, considerado privilegiado para os processos de criação e construção do
novo, numa vivência paradoxal de união e separação.
Recorramos agora ao pensamento desse autor, que com o conceito de
transicionalidade nos dará elementos para refletirmos sobre o que se passa no dispositivo
Apoio entre NASF e ESF, quando estas equipes trabalham juntas. Dito de outra forma, entre
estas é possível haver experiências de transicionalidade no dispositivo Apoio, a partir do
38
encontro entre NASF, ESF, e população? Se sim, em que aspectos e que modos de
compreender a loucura e de clinicar em saúde mental podem ser criados dessa relação?
Winnicott apresentou pela primeira vez a teoria sobre objetos e fenômenos
transicionais em 1951, em uma reunião científica da Sociedade Britânica de Psicanálise, e
posteriormente esses conceitos tornaram-‐se centrais na sua prática clínica e em seus escritos
(Barone, 2004). Para ele, o objeto transicional é a primeira possessão “não-‐eu” do bebê, sendo
que não faz parte do seu corpo, mas ainda não é totalmente reconhecido (pelo bebê) como
parte da realidade externa. Segundo o próprio autor, trata-‐se de um objeto que se localiza na
área intermediária da experiência:
“Introduzi os termos ‘objetos transicionais’ e ‘fenômenos transicionais’ para designar a
área intermediária da experiência, entre o polegar e o ursinho, entre o erotismo oral e
a verdadeira relação de objeto, entre a atividade criativa primária e a projeção do que
já foi introjetado” (1975: 14).
Os objetos transicionais constituem símbolos que representam a mãe20 para o bebê,
quase como uma extensão dela para ele, de modo que é possível instalar-‐se entre ambos um
processo de separação, o que possibilita ao bebê um interesse gradativo pelo mundo externo.
Esses objetos não estão nem sob controle mágico do bebê, e nem fora de seu controle, sendo,
neste sentido, uma possessão dele, algo que vai experimentando como continuidade de sua
mãe e também de si mesmo.
Nesse processo, ocorre o que Winnicott denomina de fenômeno de ilusão, em que o
bebê acredita criar algo que, na realidade, já estava ali, mas que, paradoxalmente, também
fora criado por ele, na medida em que se torna seu. A ilusão permite a construção de uma
nova realidade, mas, para ocorrer, depende da adaptação da mãe ou do objeto em questão às
necessidades do bebê, dando a este ilusão de que criou algo de sua própria necessidade. E de
fato criou, mas no paradoxo de que o fez a partir daquilo que já existia.
Trata-‐se de um movimento criativo de encontrar o objeto para cria-‐lo, como explica o
autor: “Objetividade é um termo relativo, porque aquilo que é objetivamente percebido é, por
definição, até certo ponto, subjetivamente concebido” (1975: 96).
Como justaposição de duas experiências, os objetos transicionais têm tanto
características do bebê quanto dos próprios objetos, sendo uma espécie de concretização de
20 A mãe, aqui, pode ser compreendida como aquela pessoa que exerce as funções maternas nos cuidados iniciais da vida do bebê.
39
algo que pertence à terceira área da experiência. Semelhantemente, os fenômenos
transicionais referem-‐se às experiências que acontecem a partir do fenômeno da ilusão e que
possibilitam a criação de novos elementos, que permitem a ponte e a comunicação entre as
realidades externa e interna. Representam a transição de um modo de ser para outro, em que
bebê, ao poder transitar pelo seu mundo e o pelo ambiente externo, vai percebendo-‐os,
gradativamente, como distintos e também relacionados. Mas, se inicialmente esse processo se
dá com o bebê, ele é permanente ao longo da vida, como uma área possível de
experimentação, na medida em que permite a interação entre diferentes realidades.
Winnicott (1975) entende que tal interação acontece no espaço potencial, que é a
região da terceira área da experiência, e onde se dá o processo de união e separação entre a
mãe e o bebê, que existe desde a fase de repúdio ao objeto como não-‐eu, até sua posse e
posterior emersão como objeto. É lugar de criação de objetos transicionais, de modo que não
é nem dentro e nem fora, mas um entre mundo interno e externo. Nesse sentido, acontece
entre o símbolo e o que está sendo simbolizado, unindo o símbolo ao objeto, e também os
separando, como se dá em um processo de simbolização própria (Ogden, 1993).
Analogamente aos fenômenos transicionais, um dispositivo, como parte da cultura,
implica transformações na realidade, e se relaciona à capacidade de criação ali presente; para
transformar, é preciso criar. NASF e ESF: duas equipes, com realidades próprias, mas que
trabalham juntas, em uma realidade comum. O quanto estas equipes aproximam-‐se uma da
outra, num movimento de união, e simultaneamente distanciam-‐se, rumo à separação entre
elas, a fim de criarem novos modos de pensar e fazer a clínica? Para que esses profissionais
construam uma clínica ampliada, é preciso que paciente e equipe encontrem-‐se e misturem-‐se
minimamente, de forma a produzirem novos elementos, a partir dos que já existiam e dos que
surgem da relação formada. Aliás, isto é condição para a transdisciplinaridade, que é intrínseca
à clínica ampliada.
Por ser algo que se passa em uma região intermediária, Green (2000) lembra-‐nos de
que aquilo que está sendo criado traduz-‐se em um terceiro elemento, cujo processo de
constituição deriva da relação entre as diferentes partes envolvidas e daquilo que está por vir.
Isto implica presença e reconhecimento da dimensão histórica que une essas duas partes: o
terceiro elemento não surge do vazio, mas sim da tradição das realidades presentes.
Winnicott considera que o processo de criação não se dá a despeito de uma história,
mas a partir dela: “(...) em nenhum campo cultural é possível ser original, exceto na base da
tradição” (1975: 138). Assim, o trabalho que se realiza entre NASF e ESF parte da tradição de
40
cada uma dessas equipes, dos seus saberes e práticas vigentes, e congrega aspectos de ambas,
para que, então, seja possível a partir dessa relação a criação de novos modos de clinicar.
Compreensão que vai ao encontro da proposta de Campos (2011) sobre a clínica
ampliada como transparadigmática, na medida em que não nega os paradigmas anteriores,
mas os amplia conforme a complexidade do fenômeno abordado. O “trans” só é possível a
partir de atravessamentos múltiplos, de um contato íntimo entre diferentes atores, e não de
barreiras prévias, tais como limites rígidos das especialidades ou de um contato vertical com o
paciente.
Estou aqui discorrendo não simplesmente sobre o terceiro elemento que surge do
entre mãe e bebê, mas sobre o próprio processo de constituição do sujeito e de
desenvolvimento e transformação da subjetividade, que nos acompanha ao longo da vida.
Tanto que o objeto transicional deixa de existir quando bebê (ou criança) e realidade já estão
diferenciados; ocorreu aí o fenômeno da desilusão21, em que a criança se reconhece como
sendo distinta do objeto que outrora usou; reconhece uma realidade que existe para além dela
mesma, ganhando autonomia22 e podendo agora fazer um outro tipo de exploração do
mundo, e de si.
Quando os objetos transicionais não são mais necessários, é possível à criança lançar-‐
se de outra forma no campo cultural, pois agora há o reconhecimento de um si mesmo23 e de
uma realidade que é percebida e compartilhada por ao menos duas pessoas em comum. É por
isso que Winnicott relaciona espaço potencial e experiência cultural, reconhecendo que é
nesta que se dão as experiências de transicionalidade. Nas palavras do autor:
“Experimentamos a vida na área dos fenômenos transicionais, no excitante
entrelaçamento da subjetividade e da observação objetiva, e numa área intermediária
entre a realidade interna do indivíduo e a realidade compartilhada do mundo externo
aos indivíduos” (1975: 93).
Ao localizar a experiência cultural no espaço potencial é que Winnicott nos possibilita
pensar a transicionalidade em outros momentos da vida, para além da fase do bebê; trata-‐se
21 O fenômeno da desilusão ocorre quando o objeto transicional não se faz mais necessário, pois já houve a constituição de um terceiro elemento, de modo que indivíduo e realidade não precisem mais desse tipo de relação de (ligação) intermediária. O objeto, então, antes usado como possessão, agora é destruído, e novas experiências e relações podem ser vividas. 22 A conquista de autonomia, para Winnicott (1975), é sempre relativa. A oscilação entre estados de dependência e independência acompanha-‐nos ao longo da vida, a diferença é que, com o processo de desenvolvimento, a dependência deixa de ser absoluta. 23 Embora o bebê ainda não tenha consciência de si mesmo, tal processo inicia-‐se neste momento inicial de vivências de ilusão e fenômenos transicionais, continuando ao longo da vida.
41
da terceira área do viver, que é ocupada pelo brincar e pelas experiências culturais, e que não
se refere, portanto, apenas ao processo inicial do desenvolvimento, mas às possibilidades de
encontro ao longo da vida, num compartilhar de vivências na e através da cultura.
A cultura é mais uma área intermediária em que são possíveis relações de trânsito com
o outro. É onde acontecem produções diversas, a arte, o trabalho, enfim, os diversos fazeres
humanos que são disponibilizados para o mundo, como parte de processos criativos, num
movimento de singularização e de saúde. Portanto, a cultura como lugar possível para a
vivência de experiências de transicionalidade (Winnicott, 1975).
Assim como na cultura, Winnicott reconhece no brincar24 a possibilidade de interação
e troca entre diferentes realidades, de criação e singularização. Para o autor, através do
brincar, crianças e adultos não apenas dão vazão ao mundo interno, mas, principalmente,
criam ludicamente, numa espécie de atividade de faz de conta que concretiza a interface entre
diferentes mundos, possibilidades de ser, transformando-‐se e transformando a realidade
compartilhada:
“Tentei chamar a atenção para a importância, tanto na teoria quanto na prática, de
uma terceira área, a da brincadeira, que se expande no viver criativo e em toda a vida
cultural do homem. Essa terceira área foi contrastada com a realidade psíquica interna,
ou pessoal, e com o mundo real em que o indivíduo vive, que pode ser objetivamente
percebido. Localizei essa importante área da experiência no espaço potencial existente
entre o indivíduo e o ambiente, aquilo que, de início, tanto une quanto separa o bebê
e a mãe” (1975: 142).
Mas, para que uma experiência cultura tenha a qualidade de transicional, é preciso
que haja algumas condições. Winnicott (1975) nos diz que, para haver um espaço potencial e,
portanto, fenômenos transicionais, é preciso confiança; no caso do bebê, confiança em relação
à sua mãe, e no caso de um sujeito já constituído, que compartilha experiências culturais, a
confiança se dá em relação ao ambiente mais extenso. Além de confiança, há um aspecto da
temporalidade que deve ser presente: a continuidade; rupturas interferem no curso do
processo criativo em questão e podem inibir ou até mesmo impedi-‐lo. A ludicidade também
pode ser elemento do processo criativo, na medida em que o brincar associa-‐se a ele.
24 Winnicott dedicou-‐se bastante ao estudo sobre o brincar, e valorizou esta experiência tanto na vida quanto na clínica. Para ele, trata-‐se uma atividade fundamental ao ser humano, no desenvolvimento de si, da ilusão, da criatividade e da possibilidade de ascensão à experiência cultural (ver “O brincar e a realidade”, 1975).
42
Além disso, é fundamental aceitar os paradoxos que são intrínsecos aos fenômenos
transicionais: cria-‐se algo que já estava ali, e separa-‐se daquilo a que se une. Nas palavras do
autor:
“Onde há confiança e fidedignidade há também um espaço potencial, espaço que pode
tornar-‐se uma área infinita de separação, e o bebê, a criança, o adolescente e o adulto
podem preenchê-‐la criativamente como brincar, que, com o tempo, se transforma na
fruição da herança cultural” (1975: 150).
Um espaço de confiança, de continuidade, de brincadeira, de paradoxos, e também de
sonhos. É preciso sonhar um pouco a realidade, num movimento de ilusão, para que, do
espaço que se cria entre aquilo vemos e não vemos, que conhecemos e desconhecemos, surja
uma novidade. As experiências de transicionalidade constituem-‐se como uma esfera possível
da vida, em que é possível “descontornar” para produzirem-‐se novos contornos.
No caso do trabalho do NASF com os profissionais das ESF, para que se constitua entre
eles um espaço em que sejam possíveis experiências de transicionalidade, com novos saberes
e práticas que não sejam apenas do NASF ou das ESF, mas sim de ambos na relação com o
paciente, fazem-‐se necessárias essas condições.
Os paradoxos que surgirem, por exemplo, que no caso referem-‐se ora às semelhanças
e ora às diferenças em relação a diferentes modos de compreensões sobre a loucura e práticas
clínicas, não devem extirpados, mas sim tolerados. Para tanto, é preciso haver ali uma relação
de confiança, de continuidade no tempo e de reconhecimento das próprias tradições. As ESF
tem que confiar no NASF, e vice versa, e os encontros entre essas duas equipes precisa
acontecer com frequência e segmento, e não esporadicamente. Além disso, é fundamental um
ambiente que possa tolerar a confusão e a falta de forma que são aspectos necessários para a
criação de um novo objeto ou modo de ser, pois ainda não há um novo elemento formado,
mas sim embriões dele.
Como diz Winnicott acerca do processo criativo:
“O buscar só pode vir a partir do funcionamento amorfo e desconexo ou, talvez, do
brincar rudimentar, como se numa zona neutra. É apenas aqui, nesse estado não
integrado da personalidade, que o criativo, tal como o descrevemos, pode emergir”
(1975: 92).
Esse estado amorfo e desconexo é o mesmo que está em questão em um dispositivo
quando aí se estabelece um processo de transformação e criação: diferentes forças se cruzam,
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formando novas direções, ainda indefinidas, até que algumas se sedimentem em um modo de
subjetivação específico. Como noz diz Deleuze (1990), sendo o dispositivo uma construção que
lembra um novelo emaranhado, e em que está em questão uma formação heterogênea, de
acordo com Foucault (2009), o caos e a desordem são alguns de ser aspectos constitutivos e
benvindos.
Ao romper com algo dado e criar algo que urge num dado contexto social, o dispositivo
implica processos criaetivos, podendo fazer operar transicionalidades no contexto em que se
insere e nas pessoas que os compõem. É fundamental que o NASF e as ESF sejam capazes de
tolerar a desorganização necessária ao processo de criação presente no dispositivo Apoio
Matricial em saúde mental quando trabalham juntos. Mas como esses profissionais agem com
relação à indefinição de um projeto terapêutico até que este possa ser construído: toleram tal
indefinição ou, rapidamente, na dificuldade de suportar esse momento indeterminado, fazem
intervenções pouco planejadas?
Para o NASF, no seu papel de “formação” (no sentido de educação continuada) possa
favorecer esse tipo de vivência ao longo da construção de um trabalho com as ESF, é preciso
que a própria instituição de saúde em que estão inseridos ofereça-‐lhes suporte, pois não é
tarefa fácil caminhar por zonas de confusão de pensamento, embates e indefinições. Kaes
aponta a importância de haver um entre comum aos profissionais que trabalham juntos em
uma instituição de saúde, de forma que este entre constituía-‐se como um espaço em que se
deem experiências de transicionalidades, num contexto de trabalho grupal:
“Trata-‐se de criar um dispositivo de trabalho e de um jogo que restabeleça, numa área
transicional comum, a coexistência das conjunções e das disjunções, da continuidade e
das rupturas, dos ajustamentos reguladores e das irrupções criadoras, de um espaço
suficientemente subjetivizado e relativamente operatório” (1989: 58).
A instituição oferece uma estrutura que protege seus indivíduos contra angústias e
mudanças catastróficas, num processo de realização de desejos e também de organização de
defesas. Para Kaes, há uma íntima relação entre instituições, grupos e formações sociais e
culturais:
“A instituição liga, une e gerencia formações e processos heterogêneos quer sejam
sociais, políticos, culturais, econômicos, psíquicos. Lógicas diferentes nela funcionam
em espaços que comunicam e interferem. É por isso que, na lógica social da
instituição, podem se insinuar e predominar questões e soluções ligadas ao nível e à
44
lógica psíquicos. E esta ainda é lugar de uma dupla relação: a do sujeito com a
instituição e de um conjunto de sujeitos ligados pela e na instituição” (1989: 30).
Sendo assim, não é possível pensarmos em transicionalidades em um dispositivo se
não forem consideradas as relações do contexto grupal-‐institucional que o atravessam e o
compõem. O NASF e as ESF, na medida em que se propõe a trabalhar juntos para discutir casos
e planejar intervenções clínicas em saúde, podem se constituir como um grupo, mas para que
este grupo seja criativo, é preciso um ambiente que o sustente neste sentido.
Como um dispositivo em questão, o Apoio existe na realidade de um dado contexto
social e institucional, que tem histórias, tradições, forças de mudança e também de
manutenção de diversos modos de ser ali, e concretiza-‐se a partir da relação entre NASF, ESF e
população, podendo, desta relação, suscitar experiências de transicionalidade para cada um
dos atores ali envolvidos.
Embora esteja aqui me valendo de dois campos distintos e até antagônicos em alguns
aspectos, que são a psicanálise e a micropolítica (de Deleuze e Foucault), parece ser possível
relaciona-‐los na medida em que tanto o dispositivo quanto as experiências de
transicionalidade são compreendidos também a partir de uma tradição; em ambos os casos,
tratam-‐se de formações históricas que, por meio de processos de ligação e separação entre
diversas realidades, ou, em outros termos, de linhas de força diversas, permitem novas formas
de subjetivação, singulares e inéditas. E, da tradição à criação, passa-‐se pela desordem e
desorganização, para promover mudanças e estados fluidos, não apenas estados definidos ou
definitivos, rigidamente estabelecidos.
Entendo que é preciso haver criatividade e transicionalidade entre os diversos atores
que compõem o dispositivo Apoio para que novas clínicas sejam ali produzidas, na tentativa de
construção de novos modos de subjetivação, mais potentes e singulares, e menos adaptados,
assujeitados. Na medida em que adere a essas propostas, o dispositivo Apoio responde às
propostas da clínica ampliada, mas enfrenta alguns desafios presentes no campo da saúde que
atravessam, resistentemente, o dispositivo Apoio na sua tentativa de construção da clínica
ampliada, como veremos a seguir.
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2.2 – Desafios atuais da clínica ampliada em saúde mental: a biomedicalização da vida e a
remedicalização da loucura
Desde os anos 80, com os avanços biotecnológicos e da psicofarmacologia, a
abordagem biológica dos transtornos mentais está se tornando hegemônica, amparada em
uma psiquiatria de base biológica, que traz como pressuposto central o cérebro como órgão da
mente. Com o advento dos medicamentos psicotrópicos, impôs-‐se a necessidade prática de
haver critérios diagnósticos melhor definidos, sistematizados e explicitados, a fim de aumentar
a confiabilidade do diagnóstico psiquiátrico.
Em busca dessa confiabilidade diagnóstica e de uma delimitação mais precisa da
fronteira entre saúde e doença mental, elaborou-‐se, nos Estados Unidos, cenário principal dos
avanços biotecnológicos e psicofármacos, um instrumento de classificação de diagnósticos de
transtornos mentais: o DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders). Para
Aguiar (2004), o DSM III (a terceira revisão do DSM, feita em 1980) propôs a existência de
transtornos universais e a construção de uma linguagem comum entre clínicos e
pesquisadores, o que representou uma virada na psiquiatria.
Mas a proposta da clínica ampliada, amparada no modelo psicossocial, não possibilita
a delimitação de categorias diagnósticas específicas e não se enquadra nesse “idioma
mundial”; ao contrário, baseia-‐se na singularização do processo de adoecimento e considera a
loucura um fenômeno humano e circunscrito em um contexto sociocultural. Portanto, no
século XXI, com o rápido desenvolvimento e a supervalorização das neurociências, a lógica
biológica que pauta o DSM foi reforçada e tensionou de muitos modos o modelo psicossocial
em implantação.
Nikolas Rose (2010) observa que, atualmente, há uma reciclagem e um
enquadramento do campo da saúde mental em termos neurobiológicos nos moldes do
movimento da higiene mental. Hoje, bem estar é sinônimo de cérebro saudável, e ter uma vida
saudável é um valor social, considerado melhor do que ter uma vida menos saudável. Há o
imperativo da vida saudável, em que se controlam as possibilidades de doença e se luta contra
as “anormalidades” no padrão de saúde estabelecido socialmente; praticamente nem se
considera a possibilidade de haver diferentes tipos de vida. Um imperativo que faz parte de
um novo paradigma, o das neurociências, no qual a base da saúde está no cérebro.
Esse paradigma é notado na excessiva preocupação que há hoje com a saúde, num
movimento de se fazer viver quase que a qualquer preço. Pode-‐se dizer que o processo de
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medicalização estendeu-‐se da doença para a saúde, produzindo-‐se uma nova
biomedicalização, a biomedicalização da vida. Bio porque, de acordo com Rabinow (apud
Aguiar, 2004) transforma os modos de viver pelos discursos e práticas da biologia, e
medicalização porque a medicina, através de novas tecnologias e novos medicamentos, passa
a interferir tanto nos modos da doença quanto nos da saúde. Como entende Aguiar:
“Não se vive apenas a medicalização da doença ou do desvio. A própria saúde deixa de
ser vista como um estado orgânico natural, para ser fabricada artificialmente pelas
novas tecnologias médicas e seus modos correlatos de autoprodução dos corpos. A
biomedicalização é uma medicalização da saúde” (2004: 137).
Essa biomedicalização25 da vida também se infiltra nos discursos da psiquiatria, que
passa a interferir nos modos de vida de indivíduos que não estão doentes, modificando sua
subjetividade através de ajuda farmacológica para lidar com sofrimentos psíquicos. Uma
tristeza comum, por exemplo, é vista como sinal de depressão e é compreendida como falta de
serotonina no cérebro, o que faz requerer uso de antidepressivos específicos (Aguiar, 2004).
No campo da saúde mental há vitória do modelo cognitivo, em que o saber sobre as
coisas é mais importante que o seu manejo, e a crença na indústria farmacêutica é quase
absoluta (penetrou, inclusive, no cenário universitário). Hoje, tudo é química, e se psiquiatriza
o mal-‐estar cotidiano e aspectos da nossa condição existencial (Desviat, 2008). Os transtornos
mentais são compreendidos através de uma linguagem neurobioquímica e o homem é
considerado uma máquina, que deve ter um bom funcionamento dos processos bioquímicos
(Yasui, 2010).
Para Pelbart, “nós ainda vivemos sob o signo da identidade entre loucura e doença
mental” (2009: 197). Está em questão um movimento que reproduz, ainda que de forma
distinta, muitos dos aspectos presentes na psiquiatria clássica e que tanto se criticou, o que
corrobora para a construção de dispositivos que fortalecem as relações de poder assimétricas
entre terapeuta e paciente. Nas palavras de Frayze-‐Pereira:
“Assim, a psiquiatrização ou psicopatologização das experiências representa a
realização de um projeto que de outro modo já existia na era do internamento
clássico: o projeto de dominação e intimidação social e política. Só que agora a
violência com que se efetua não é imediatamente visível” (1982: 99).
25 O conceito de biomedicalização da vida apoia-‐se no de biopoder, proposto por Foucault, e que se refere a uma estratégia de poder da biopolítica (que é como esse autor nomeia uma política de organização sobre a vida), como um direito de intervir para fazer viver. Trata-‐se da produção de cálculos explícitos para transformação da vida (Pelbart, 2003).
47
Uma violência mais discreta, quase invisível, na tentativa de se garantir a prevenção
dos desvios, numa atitude de formação e educação constantes para um indivíduo saudável. O
que representa um retrocesso às conquistas da Reforma Psiquiátrica no que se refere às novas
concepções de saúde e doença e às novas clínicas propostas. Um retrocesso já iniciado nos
anos 80, paralelamente aos processos da Reforma, com o início do desenvolvimento da
bioquímica e da genética molecular, que impulsionou a crença de que o psiquiatra viriam a
conhecer plenamente a química da loucura (Frayze-‐Pereira, 1982).
E a clínica tende novamente a ser normativa e patológica, como era na modernidade,
com uma excessiva preocupação pela vida e numa obsessão por ausência, correção ou
controle da doença. Se retomarmos aqui as contribuições de Foucault (2009) e Castel (1978)
sobre a medicalização da loucura, pode-‐se dizer que no século XX, com o DSM III, e no XXI,
com o avanço significativo da bioquímica, da genética molecular e das neurociências, a loucura
foi remedicalizada. Parece que ainda estamos no regime da biopolítica, talvez mais do que
nunca, já que há, cada vez mais, o controle sobre a vida num movimento de biomedicalização
da vida, cujo lema poderia ser por uma vida saudável, e não mais por uma sociedade sem
manicômios.
No regime da biopolítica, a vida está no centro dos cálculos, e a política não conhece
outro valor que não o da vida. O viver torna-‐se viver bem. Agamben (2007) considera que,
dessa forma, a vida é incluída muito mais num processo de exclusão do que de inclusão, pois
se exclui o que não é saudável. Será que viver bem e ter uma vida saudável não representam
muito mais uma adaptação do que um estado de saúde?
Cabe aqui relembrar a contribuição de Canguilhem (1996) sobre saúde e doença. Para
ele, saúde e doença não são polos opostos, mas sim diferentes aspectos de um mesmo
organismo, de um mesmo homem. Propõe uma concepção de saúde que ultrapasse os ideais
normativos da biologia; saúde não tem a ver com adaptar-‐se às normas (sociais e biológicas), e
sim com flexibilidade e possibilidade de mudança; um corpo rigidamente adaptado pode estar
doente. Quando se propõe um ideal de saúde, o que se faz é estabelecer uma visão normativa
de saúde.
Nessa mesma direção, Winnicott diz:
“(...) a fuga em direção à sanidade não é sinônimo de saúde. A saúde é tolerante com a
doença; na verdade, a saúde tem muito a ganhar quando se mantém em contato com
a doença em todos os seus aspectos (...)” (2005: 15).
48
Nesse contexto, a clínica ampliada em saúde mental enfrenta novos desafios, de forma
que o processo de Reforma Psiquiátrica deve ser contínuo e permanente, na luta contra
saberes e práticas instituídos e reducionistas em saúde mental. Pelbart (2009) coloca-‐nos
como desafio extrapolarmos o conhecimento da loucura para além do polo do saber clínico e
para além do da valorização estética, ultrapassando a distinção maior que há na base desta
dicotomia, que é entre loucura a desrazão. Em vez de opor ou sintetizar a relação entre esses
polos, que possamos construir uma relação plural entre ambos, sem sucumbir a loucura à
desrazão ou ao objeto de saber clínico e psiquiátrico, tão pouco a reduzindo ao prazer da
observação, da escrita e da leitura.
Winnicott reconhece que a sociedade tende a negar o aspecto da loucura, reduzindo-‐a
ao conceito de doença mental, e aponta alguns riscos que a dicotomia loucura-‐sanidade traz:
“O medo da loucura leva a uma fuga para um extremo de sanidade que constitui um
passo falso em civilização; significa uma fuga para o lógico, para o consciente e para o
facilmente planejado, e uma perda de contato com a integridade individual e com as
profundezas ocultas da personalidade de cada pessoa” (1994: 416).
Talvez o medo que temos da loucura nos conduza a essas diferentes fugas para a
sanidade que as sociedades ocidentais vêm fazendo desde a Idade Clássica até a
contemporaneidade. O dispositivo da clínica ampliada em saúde mental não precisa ser mais
uma dessas tentativas, aliás, destas procura escapar. Mas, justamente por isto, vai na
contramão do império da biomedicalização da vida e da remedicalização da loucura. Fazê-‐la
existir é então um desafio: o de lutar por uma nova desinstitucionalização, não mais a do
manicômio, mas a da biomedicalização da vida e da remedicalização da loucura.
Desafio que o Apoio Matricial enfrenta ao pretender, como um dispositivo em questão,
contribuir para a consolidação de práticas coerentes com a clínica ampliada, quiçá na
expectativa de produzir experiências de transicionalidade, seja em relação aos pacientes, seja
em relação aos profissionais em questão.
A seguir, conheceremos algumas experiências de Apoio Matricial, de forma a
refletirmos sobre algumas transformações possíveis a partir deste dispositivo e assim nos
aquecermos para a posterior discussão do caso Maria26.
26 Caso, já citado na Introdução, que se refere ao caso acompanhado nesta pesquisa, em atendimento compartilhado pelo NASF e uma ESF.
49
2.3 – O dispositivo Apoio Matricial em saúde mental no cotidiano: experiências de
transicionalidade?
Para desenvolver essa reflexão, parti do dispositivo em conceito para então torna-‐lo um
“dispositivo em ação27”, como nos diz Rodrigues:
“(...) ‘encarar algo como um dispositivo’ é desprender-‐se do instituído conforto das
representações macro-‐reativas para embarcar na deliciosa aventura micro do
incessante engendramento processual do real. Nele, forças desteritorializadas,
multiplicidades virtualmente aptas a quaisquer conexões, assumirão a forma provisória
resultante do confronto entre estratégias num campo de batalha” (1997: 195).
Deleuze (1990) entende que conhecer um dispositivo é desemaranhar suas linhas de força
e produção, o que não significa desfazê-‐las, mas sim traçar um mapa de terrenos
desconhecidos (cartografa-‐los), acompanhando suas linhas de composição, no movimento
caótico que se apresenta. Numa tentativa de cartografar terrenos do dispositivo Apoio
Matricial em saúde mental, conheceremos algumas experiências de Apoio que foram
publicadas na literatura, a fim de nos familiarizarmos com aspectos da realidade desse
trabalho, de forma a estarmos aquecidos para a discussão sobre o caso Maria.
Quando o dispositivo Apoio em saúde mental do NASF entra “em ação”, constroem-‐se
transicionalidades na clínica produzida entre os profissionais aí envolvidos? E, em caso
afirmativo, como e de que natureza? Essas perguntas orientaram a leitura desse material e
suscitaram algumas reflexões sobre o trabalho do Apoio, como veremos no texto que segue
abaixo.
Através da busca de artigos em revistas científicas28, capítulos em livros e em sites do
Ministério da Saúde, cruzando algumas palavras-‐chave (Apoio Matricial; Apoio Matricial em
Saúde Mental, AB, PSF e NASF), foram encontradas pesquisas que relatam experiências de
Apoio Matricial em Saúde Mental em diferentes Estados do país. A maioria dessas publicações
é do Município de Campinas, o que pode ser explicado pelo fato deste conceito, com tal
denominação, ter sido desenvolvido lá.
27 Neste artigo, a autora discorre sobre a passagem do “dispositivo-‐conceito” para o “dispositivo em ação”, que é quando o dispositivo opera, como tal, na realidade. 28 As revistas em questão são Arquivos de Ciências da Saúde; Boletim do Instituto de Saúde; Cadernos de Saúde e Pública e Saúde e Sociedade. Os artigos publicados nessas revistas foram localizados pelo Scielo.
50
Com relação ao NASF, há poucas publicações a seu respeito, talvez por se tratar de um
dispositivo mais recente. Além disso, vimos que o NASF também opera o dispositivo Apoio, de
modo que uma pesquisa sobre este foi, em parte, suficiente.
As primeiras publicações de textos governamentais datam dos anos de 2003 e 2004; já
as de trabalhos científicos sobre o tema tornam-‐se mais significativas a partir de 2006, embora
houvesse outras experimentações em andamento, pouco divulgadas. Há estudos também
realizados em outras cidades, mas a publicação sobre o Apoio ainda é escassa, dado que se
trata de uma prática profissional recente historicamente. Isto se acentua no Município de São
Paulo, em função da tardia municipalização da saúde e da persistência dos modelos
ambulatoriais e medicalizantes29.
Conheçamos a seguir algumas práticas de Apoio, a partir de relatos encontrados nessa
pesquisa bibliográfica, realizada entre o primeiro semestre de 2010 e agosto de 2011, para
refletirmos sobre potencialidades e dificuldades desse dispositivo em questão e, nesse
sentido, sobre possíveis experiências de transicionalidade que ele pôde, se é que pôde,
promover. Foram priorizados os aspectos referentes às interferências que o trabalho do Apoio
produziu na AB: que aspectos consolidou e que outros transformou no campo da clínica da
saúde mental na AB.
No Município de Campinas, profissionais que receberam ajuda do Apoio apontaram
que houve engajamento deste nas discussões de caso, o que permitiu que a saúde mental
fosse trabalhada de forma menos compartimentalizada. Também consideraram que o trabalho
do Apoio contribuiu para um processo de ampliação da clínica e de corresponsabilização pelos
casos, auxiliando no rompimento da lógica da “superespecialização” na AB e dos
encaminhamentos excessivos para técnicos de saúde mental (Figueiredo, 2006).
Entretanto, a autora observou que ainda havia duas lógicas antagônicas em
andamento. Se, por um lado, reconheceram ser importante a ampliação da clínica e do olhar
para além dos aspectos biológicos no processo de saúde/doença, por outro, consideraram que
algumas questões da subjetividade cabem apenas à área “psi”. Transpondo tal percepção para
o conceito de dispositivo, a presença de modos distintos e até opostos de saberes e práticas
29 Na administração Maluf – Pitta foi implantado um novo programa de saúde, o Plano de Atendimento à Saúde (PAS), de modo que grande parte dos serviços de saúde foi entregue à administração de cooperativas, que seguiam uma política de saúde particular. Assim, os projetos de saúde mental desenvolvidos até então (CECCO, Hospitais Dia e CAPS) foram deixados de lado, sendo retomados apenas no governo de Marta Suplicy, em 2000 (L’abbate e Luzio, 2006).
51
não apontam uma “falha” no processo de trabalho, mas, ao contrário, indicam a presença de
um movimento de transformações.
Ainda nessa pesquisa, todos os participantes afirmaram a necessidade de qualificação
dos profissionais para trabalhar com o Apoio Matricial, sendo especialmente importante uma
qualificação em saúde mental. Os profissionais da rede Básica referiram não ter tido formação
específica para lidar com este campo e, portanto, não se sentiam preparados para nele atuar.
Além disso, todos os participantes desse estudo citaram a falta de cuidado em relação aos
Apoiadores, que pareciam realizar uma prática que foi vivida como uma imposição da gestão,
sem devido apoio do gestor na implantação desse novo serviço.
Domitti (2006), também em pesquisa em Campinas com profissionais que receberam e
que ofereceram Apoio Matricial em Saúde Mental, apontou que grande parte desses percebeu
mudanças na sua prática de trabalho após a oferta do Apoio. Este possibilitou troca de
conhecimentos; maior envolvimento e corresponsabilização pelos casos de saúde mental; mais
segurança e capacidade na condução dos casos e crescente envolvimento dos ACS na
construção de projetos terapêuticos.
Houve maior apropriação do campo saúde, e a lógica de trabalho baseada no
compartilhamento de ações de diferentes núcleos de conhecimentos desenvolveu-‐se,
reafirmando-‐se a clínica ampliada. Os participantes também enfatizaram a necessidade do
envolvimento dos gestores locais e dos apoiadores institucionais para a consolidação dessa
prática. Para a pesquisadora, houve sensibilização para novas práticas de trabalho e acesso a
conhecimentos que extrapolam um próprio núcleo profissional, por todas as partes envolvidas.
Gomes (2006), em outra pesquisa também em Campinas, mostrou que os profissionais
da AB, após o início do matriciamento, repensaram a lógica do processo-‐saúde doença, e que o
atendimento compartilhado possibilitou-‐lhes suporte teórico-‐prático e desmistificação do
conceito de doença mental. Mas identificou um aspecto importante que se faz presente no
matriciamento: pela falta de recursos humanos, às vezes a equipe de Apoio utilizava
estratégias que não cabiam ao seu papel, descaracterizando suas propostas. Neste sentido, a
autora propôs que o momento da reunião entre as duas equipes seja para discussão e
compartilhamento de casos, não de encaminhamento dos mesmos30, como forma de garantir
a manutenção dos princípios do Apoio.
30 No Capítulo 4, veremos como é comum os profissionais da AB demandarem encaminhamento dos casos num espaço que, teoricamente, é para discussão dos mesmos e elaboração de novos projetos terapêuticos. Teremos um
52
Ainda nesse Município, Nascimento (2007) analisou categorias identificadas nas falas
dos profissionais que vivenciavam as práticas do Apoio, e observou que o matriciamento foi
visto como um arranjo organizacional importante para atenção aos pacientes31, capacitação e
suporte aos profissionais da rede Básica, além de evitar internações psiquiátricas arbitrárias.
Novamente, parece que o encontro entre profissionais da AB e do Apoio foi bem vindo, e
contribuiu para que práticas de origem manicomiais fossem revistas e transformadas. Nesse
sentido, o dispositivo Apoio cumpriu sua função de ferramenta viva e atuante do processo de
Reforma Psiquiátrica.
Como parte da experiência de outros Municípios, Barban & Oliveira (2007) relataram
um trabalho de três anos de uma equipe de Apoio Matricial em Saúde Mental, formada por
um psiquiatra e uma psicóloga, na cidade de São José do Rio Preto, SP, no PSF local. Tal
inserção da saúde mental deu-‐se sem definição prévia ou qualquer política pública, mas sim a
partir da disponibilidade desses dois profissionais em querer criar algo novo, inspirados nas
experiências de São Paulo e do Rio de Janeiro. Também se repetiu aqui a distância dos
gestores em relação à proposição e operacionalização do trabalho de matriciamento na rede.
Com relação às demandas das ESF, essas variavam entre o desejo de ter o
atendimento do especialista em saúde mental e a necessidade de se aprimorarem e se
capacitarem nesse campo. Os autores entenderam ser importante ao profissional do Apoio ter
perfil para este trabalho, devendo estar preparado para lidar com grupos heterogêneos;
estimular a intersetorialidade; para compartilhar saberes e práticas; considerar a
complexidade desse campo e criar ações de prevenção e promoção no mesmo.
Perceberam, na prática, uma diminuição do estresse das equipes da AB que foram
matriciadas; maior responsabilidade pelos profissionais das UBS pelos casos de saúde mental,
o que pode evitar a superlotação dos serviços secundários; maior estímulo ao trabalho em
equipe e aumento de práticas de responsabilidade social, em contraposição àquelas
assistencialistas. Consideraram ainda que se abriu um novo campo de atuação da AB para o
profissional da saúde mental.
O Apoio ofereceu à AB um ambiente confiável, que possibilitasse uma maior
aproximação ao campo da saúde mental, apesar das dificuldades que este impôs. Para que se
criem novos modos de clinicar, é preciso, com base na experiência tradicional, no sentido de
exemplo vivo do entrecruzar das diferentes forças de um dispositivo: aquelas que operam para transforma-‐lo, e as que operam para resistir às transformações. 31 O termo adotado neste e nas outras pesquisas lidas é “usuários”.
53
tradição, acreditar que esta já não mais é suficiente, e apostar que há outros modos de
trabalhar, ainda desconhecidos, mas em processo de construção, que respondem às novas
urgências sociais.
Em Natal, Dimenstein, et. al. (2009) estudaram a fase inicial da implantação do Apoio
Matricial e seus desdobramentos. Constataram que na AB a maior demanda da população em
saúde mental é pela troca de receitas; que o modo de acolhimento à população priorizava o
cuidado medicamentoso e especializado e que os técnicos, no geral, renovavam receitas sem
maiores questionamentos. A proposta do Apoio ainda não estava clara para muitos
profissionais, mas a avaliaram como positiva, pois poderia favorecer a articulação entre a AB e
a rede especializada em saúde mental, além de oferecer-‐lhes capacitações, já que sua maior
dificuldade era falta de conhecimentos específicos nesse campo.
A tradição, aqui, é da clínica tradicional ou degradada. Mas, quando os profissionais
desse estudo acima reconheceram a necessidade de se aproximarem do campo da saúde
mental, não mais neste modelo vigente até então, legitimaram a força transformadora do
dispositivo Apoio, o que pode ser o início da “transicionalização” de suas experiências clínicas.
Em Sobral, segundo Fortes & Tófoli (2005/2007) o Apoio em Saúde Mental possibilitou
às ESF, com o tempo, dar conta do manejo de casos menos complexos na AB, e também serviu
como instrumento importante para que pacientes com alta do CAPS fossem acolhidos e
acompanhados nas UBS. O relato desse trabalho traz um aspecto importante do Apoio como
dispositivo: a integração entre a saúde mental e a AB também se faz através da maior
interação entre os diferentes serviços de saúde. Assim, esse dispositivo precisa acontecer
ligado aos outros serviços de saúde, que não apenas as UBS.
A possibilidade de experiências de transicionalidade através do dispositivo Apoio
implica o atravessamento de muitas realidades, que se referem às diferentes equipes da UBS,
aos diferentes serviços da rede, ao contexto social e à população em questão.
Por fim, no Município de São Paulo, a experiência do Apoio Matricial em Saúde Mental
iniciou-‐se em 1998, na zona Norte, quando um grupo de profissionais desse campo foi
convidado para criar um programa de saúde mental no PSF. Lancetti (2000), integrante desse
grupo, descreveu que propuseram, ao invés dos dispositivos ambulatoriais conhecidos, um
trabalho de capacitação em saúde mental para os profissionais da AB. Consistia em uma
equipe volante, que desenvolveu capacitações em saúde mental (a primeira delas para ACS) e
discutia “casos de saúde mental” com os profissionais da rede Básica, construindo com eles
54
projetos terapêuticos e intervenções que visavam, em vez da retirada do doente da família, o
fortalecimento da mesma.
Um dispositivo de trabalho que, na tentativa de transformação da clínica tradicional
em saúde mental, inseriu-‐se no processo de Reforma Psiquiátrica e contribuiu, naquele
território, para a ampliação de modos de clinicar, em direção a uma “clínica peripatética”,
como propõe Lancetti (2006). Não recebia o nome de Apoio Matricial, que fora desenvolvido
posteriormente, mas se nota que operava por meio de pressupostos semelhantes a este.
Vieira Filho et. al. (2008) publicaram um artigo em que também apresentaram uma
experiência de Apoio Matricial em Saúde Mental na cidade de São Paulo, oferecido por um
CAPS a uma USF. Observaram que o CAPS não era um serviço muito conhecido na população
territorial, nem na USF. Ambos os serviços traziam concepções de um trabalho em saúde
mental pautado na lógica manicomial e que tendia a associar loucura a doença mental e a
desvio social. Os serviços de saúde mental mais conhecidos ainda eram os hospitais
psiquiátricos e os ambulatórios de psiquiatria.
As ESF apresentaram dificuldade de lidar com os aspectos psicológico-‐relacionais da
população e o CAPS enfrentou resistências para que elas pudessem integrar aspectos da saúde
mental à saúde da família, bem como se deslocarem para o território. Eram os ACS quem
traziam a noção mais viva de território, com uma linguagem cultural mais próxima à da
comunidade, e permitindo maior acesso da população à USF. No trabalho com estes
profissionais, o Apoio contribuiu para que, ao relatarem suas experiências de visitas
domiciliares, os ACS pudessem refletir sobre esta prática. Além disso, o contato destes com o
CAPS ficou mais próximo, favorecendo a comunicação entre os dois serviços em questão e
entre o CAPS e a população.
Bastos & Soares (2008), em estudo qualitativo da atuação de equipes de Apoio
Matricial em Saúde Mental em três USF da região SE do Município de São Paulo, apontaram
que as principais demandas em saúde mental na rede Básica eram: depressão; transtornos de
humor; conflitos familiares; violência doméstica; ansiedade e alcoolismo. Observaram que
houve desvio da função do papel do matriciador e tendência à prática disciplinar, especialista,
para lidar com esses casos. Os profissionais apresentaram dependência da figura do psiquiatra;
prática baseada no modelo médico/clínico, com persistência da farmacologia e não possuíam
clareza em relação à proposta do Apoio.
55
Novamente se nota aqui que o trabalho do Apoio afeta também os seus próprios
profissionais. O trabalho do Apoio não implica uniteralidade das relações, mas sim
mutualidades destas no contato entre todos que a compõem. De acordo com a proposta de
uma clínica ampliada, não há transmissão de saberes, mas construção conjunta de novos
deles. E, considerando as propostas de Winnicott sobre experiências de transicionalidade, para
que se instaure um processo criativo é fundamental haver essa qualidade de implicação
relacional.
Braga Campos & Nascimento (2007) consideraram que o Apoio ajudou na regulação de
fluxos de encaminhamento; ampliação da percepção e das condutas das ESF nos
acompanhamentos clínicos; substituição de ofertas organizadas previamente para o usuário
em prol da criação de novas; problematização de noções psiquiatrizantes e psicologizantes dos
fluxos e práticas institucionais; socialização de saberes e nos processos de educação
continuada.
Entretanto, reconheceram dificuldades percebidas no trabalho do Apoio: insuficiência
de recursos humanos; alta rotatividade de profissionais; não estabelecimento de reuniões
periódicas entre AM e ESF, em horários fixos, pela incompatibilidade de horários; presença de
posturas medicalizantes e corporativas que dificultaram a integração entre os profissionais e
perceberam necessidade de uma escuta mais qualificada dos pacientes.
Oliveira (2011) avaliou que a prática do Apoio Matricial em saúde mental no Município
de Vitória também trouxe avanços semelhantes aos citados acima: tirou o foco da psiquiatria,
possibilitando emergir o problema da autonomia na prescrição de psicotrópicos e surgindo
como recurso importante para o enfrentamento da medicalização da saúde; os usuários
passaram a ser mais compreendidos como inseridos em um contexto familiar; houve
empoderamento dos ACS nas ações da ESF; enfrentou-‐se o problema da fragmentação do
cuidado; os profissionais da ESF foram sensibilizados para trabalharem alguns temas, e foi um
dispositivo importante na medida em que também se ofereceu como espaço de conversa para
os profissionais sobre seu processo de trabalho.
Com relação ao dispositivo Apoio no NASF, há um documento publicado pelo o
Conselho Federal de Psicologia, em 2009, sobre o trabalho do psicólogo no NASF, com o relato
de várias experiências de psicólogos com o Apoio Matricial em Saúde Mental. Nesse
documento também se observa que o Apoio, no trabalho com as ESF, enfrentou algumas
dificuldades estruturais, como a alta rotatividade dos profissionais; cobrança por produção;
alta demanda populacional, e desafio de trabalho num campo desprotegido (Lucena, 2009).
56
Além disso, alguns profissionais da rede Básica mostraram-‐se resistentes a se
responsabilizarem pelos casos até então considerados exclusivamente da saúde mental, o que
Mourão (2009) explicou pelo fato de muitos já se sentirem com sobrecarga de trabalho, sendo
que o trabalho do Apoio foi tido como uma tarefa a mais. Mas mesmo assim, com o trabalho
do Apoio foi possível reconhecer, por exemplo, quando havia necessidade de atendimento
psicológico e quando era possível esgotar, no próprio território, alternativas de cuidado, antes
de o paciente ser encaminhado para o especialista (Lucena, 2009).
Todos esses estudos citados mostraram, como característica geral, que o Apoio
Matricial em Saúde Mental contribuiu positivamente para a transformação das práticas
tradicionais ambulatoriais de Saúde Mental na AB, baseadas em pressupostos fragmentadores
do processo saúde-‐doença. Mas ainda faltava clareza por parte de profissionais da rede Básica
e da própria saúde mental com relação a esse trabalho e ainda havia práticas de intervenção
baseadas no modelo médico/medicamentoso. Trata-‐se de um dispositivo que nos coloca
diante de um processo de construção de novos saberes e práticas clínicos, num movimento de
transformação dos tradicionais, e sedimentação dos que se apoiam na proposta de clínica
ampliada.
O dispositivo Apoio favoreceu a desmitificação e a desestigmatização da saúde mental
na AB, contribuindo para a integração entre esses campos. Mas permaneceram algumas
dificuldades: presença da lógica da clínica “não-‐ampliada”; carência de profissionais na rede;
falta de medicamentos e de transporte para descolamento de uma UBS a outra; questão ética
implicada, já que, nas ações do Apoio, as informações colhidas são divididas e expostas entre
muitos profissionais e, por fim, muitos Apoiadores não se sentiam capacitados para o seu
próprio trabalho.
Fica evidente que a nova metodologia analisada é recente e está em processo de
construção e consolidação, mas com potencial para provocar mudanças na organização e
estrutura dos serviços de saúde. Como em uma experiência de transicionalidade, há diferentes
modos de saber e de agir presentes, até que um terceiro ali surja, instaurando novos saberes e
práticas. Não temos como saber se de fato houve transicionalidades, mas há um dispositivo em
ação, o que já possibilita, minimamente, o intercâmbio entre distintas realidades e o início de
ações que visem a transformação de um dado modo de clinicar. Mas, por ora, é possível dizer
que, para haver experiências de transicionalidade é preciso um ambiente confiável, e não um
ambiente em que há falta de apoio dos gestores e diversas carências de recursos para o
trabalho.
57
Nas práticas apresentadas acima, houve concordância com relação às atividades que o
Apoio deve propor, segundo pressupostos do Ministério da Saúde (Brasil, 2003), mas se
reconheceu a distância entre os gestores que implantam novas políticas públicas e os
profissionais da ponta, que o realizam, o que dificulta a inserção do Apoio na rede, de modo
que não basta criar uma nova proposta de trabalho, é preciso reestruturar o serviço, como
sugere o material de Campinas (2004) e preparar os profissionais para ela.
Se estamos diante de uma realidade em que não se confia e que não oferece respaldo,
sustentação, a possibilidade de construção de experiências de transicionalidade fica
comprometida. E para além dessa presença ausente dos gestores, nos trabalhos apresentados
ao longo deste item fica evidente que há queixas relativas ao próprio funcionamento da AB, o
que torna esta realidade árdua e que atravessa as práticas do Apoio. O trabalho do Apoio
Matricial não deve, assim, ser pensado de forma desconectada da realidade da AB. Embora
esteja postulado em documentos oficiais, ainda faltam intervenções na própria estrutura da
AB que possibilitem melhor efetividade do Apoio.
Vale lembrar ainda que, já que estamos diante de um dispositivo em ação, diversos
atores estão presentes, e a lógica anterior de trabalho com saúde mental (mais assistencialista;
ambulatorial; pautada na divisão de saberes e tarefas; etc.) existe tanto entre os profissionais,
quanto entre a população, como apontaram Dimenstein et. al. (2009). O trabalho do Apoio
deve então incluir a população, a quem a clínica destina-‐se. O surgimento de
transicionalidades depende do envolvimento de todos os participantes dessa relação em
questão, o que, no caso do Apoio, acontece na tríade ESF, matriciadores e clientela.
Mas, apesar das dificuldades relatadas, a maioria dessas pesquisas mostrou que
grande parte dos profissionais do Apoio e da AB disponibilizaram-‐se para trabalhar juntos,
num movimento de aproximação, o que é condição para possíveis experiências de
transicionalidade. E, deste contato mútuo, profissionais da AB modificaram-‐se ao repensarem
o processo de saúde e doença , assim como profissionais do Apoio também se transformaram
quando precisaram se adaptar à realidade do campo em que estavam inseridos, tendo que
adaptar a prática do Apoio às necessidades deste contexto.
Como um dispositivo, o Apoio é composto tanto por forças de sedimentação, quanto
por de transformação, de modo que práticas distintas e antagônicas coexistiram. Não há
processo de mudança sem a presença de dois polos, entre, no mínimo, duas formas de ser, e
entre os quais é possível criar algo novo. Polos que se aproximam da saúde mental como parte
58
da AB, e polos que rejeitam este aspecto. Quase todos os estudos apresentados até aqui
apontaram para esta característica do Apoio.
A partir dessas experiências, podemos falar do Apoio como um dispositivo que precisa
sempre ser revisto continuamente, de modo a não perder sua potência transformadora. Ao
transitar nas diferenças, o Apoio pode contribuir para o processo de construção de
transicionalidade na clínica, no que se refere à construção de uma clínica ampliada que, em
última análise, implica a construção de novos modos de subjetivação.
Mas, como toda prática que se institucionaliza, corre o risco de ser capturado pela
lógica dominante das organizações de saúde (Onocko Campos, apud Figueiredo, 2006). Assim,
quero enfatizar alguns aspectos que merecem atenção para que esse dispositivo não perca sua
potência de promover transicionalidades.
Um primeiro aspecto refere-‐se aos nomes “supervisão” e “capacitação” que algumas
ações do Apoio recebem. Ambos são citados pelos documentos oficiais apresentados aqui
(Brasil, 2003; Campinas, 2004) e utilizados em todos os trabalhos lidos para a elaboração deste
item. Chama a atenção a escolha desses nomes quando o que se propõe é um trabalho
baseado na horizontalização dos saberes, no sentido de encontros dialógicos e de construções
conjuntas de intervenções. Embora o Apoio desenvolva ações de educação continuada, suas
ações não se resumem a elas e, quando o fazem, não é através do formato de transmissão de
saberes.
O que se nota com as experiências apresentadas até aqui é que a ação que
corresponde à supervisão agiu muito mais como um apoio necessário para os profissionais da
rede se aproximarem do campo da saúde mental, do que como um espaço em que há relação
de superioridade entre os saberes em questão.
Nesse sentido, é importante ficarmos atentos às propostas que o Apoio propõe e às
que ele concretiza, já que o uso de termos e idéias contraditórias entre si, sejam nos
documentos oficias ou em estudos apresentados, pode revelar a presença de tensionamentos
presentes no campo da saúde, que devem vir à tona, ao invés de serem tamponados, se o que
pretendemos é produzir transformações.
Além disso, outro aspecto a ser considerado é o da vontade política, no caso dos
gestores, quando se propõem certas diretrizes de trabalho, mas não se oferece respaldo para
elas se efetivarem. Em quase todas as pesquisas acima, os profissionais queixaram-‐se da
distância dos gestores no processo de implantação do Apoio. Além disso, o como os
59
profissionais podem ou se sentir atores de um processo de mudança quando eles não fazem
parte da elaboração de uma portaria do MS que incide diretamente sobre eles?
Com relação à portaria específica do NASF, há um ponto importante a ser considerado.
Ela aponta para uma tentativa de construção de clínica ampliada; não mais um trabalho
pautado na lógica dos especialistas, na fragmentação dos serviços, nos encaminhamentos
indiscriminados e em uma clínica burocratizada, que não prioriza o vínculo e a
responsabilização de todos os envolvidos, e sim o contrário. Mas essa proposta também foi
sentida como uma imposição do governo, sem que houvesse qualquer preparo dos
profissionais que executariam esse novo modo, com veremos no Capítulo 3.
Além disso, o NASF é imbuído de tamanha proposta no campo da clínica, quase como
se tivesse que dar conta de todos os casos da rede, que ela pode ficar esvaziado no seu
potencial. Como a realidade da AB é das mais diversas demandas, parece se esperar do NASF
uma boa capacidade de circulação por todas elas, quase como na expetativa de que esta
equipe possa matriciar todos os tipos de caso.
Mas embora a amplitude desse campo esteja colocada, esperar que um profissional
seja capaz de lidar com todas as demandas que ali se colocam é uma falácia, e, com vermos no
Capítulo 4, gera excesso de sofrimento nos trabalhadores, alta rotatividade entre eles, perda
das possibilidades transformadoras tanto do PSF quanto do NASF e a população continua
sendo atendida de forma ineficiente.
A portaria n.154 tanto dá abertura tanto para novas práticas, distintas das anteriores,
quanto para uma confusão generalizada, com desânimo por parte dos trabalhadores e
assujeitamento dos mesmos, o que não combina com a própria portaria, que propõe uma
clínica cujos participantes sejam atores e responsáveis pelo processo.
Não basta, assim, acreditarmos que os novos dispositivos de clínica ampliada são, em
si mesmos, positivos, no sentido de representarem um devir em relação aos métodos
tradicionais e ultrapassados de intervenção. É preciso atentar para os seus diferentes aspectos,
pois aí sim poderemos conhecer em quais deles constroem-‐se, se fato, vivências de
transicionalidade, e não simulacros destas.
Um novo dispositivo, novas transformações, novas cristalizações, novas linhas de
captura. Os dispositivos, como construções heterogêneas e forças em movimento, não param
de se transformar, seja em mais do mesmo, ou em outros de si. O que o NASF, por meio do
60
dispositivo Apoio, atualiza e transforma na dimensão clínica que o compõe? Que
transicionalidades pode ajudar a promover no campo da saúde mental?
Farei uma reflexão crítica dessas questões nos Capítulos 3 e 4, a partir da análise do
caso Maria.
61
CAPÍTULO 3: A ANÁLISE INSTITUCIONAL COMO FERRAMENTA METODOLÓGICA PARA A
APROXIMAÇÃO DE UM CAMPO-‐TEMA
3.1 -‐ Sobre um modo de pesquisar: pressupostos teórico-‐metodológicos da Análise
Institucional
A clínica ampliada da saúde mental na AB, a partir do dispositivo Apoio Matricial em
Saúde Mental exercida por uma equipe de NASF com uma ESF: este é o campo estudado nesta
pesquisa. Bastante extenso, como se nota pela sua simples nomeação. Mas, como vimos nos
Capítulos 1 e 2, essa extensão é proporcional à complexidade do mesmo, que se compõe na
intercessão dos campos (intrínsecos e heterogêneos) da clínica, da saúde mental e da AB.
Para refletir sobre o problema levantado, a partir do conceito de dispositivo e de
transicionalidade em relação à prática de clínica ampliada em saúde mental há muitas
possibilidades de aproximação. Escolhi como recorte propiciador para tal reflexão
acompanhar, durante a pesquisa, o trabalho de uma equipe de NASF com uma ESF32, a partir
de um caso clínico de saúde mental, que chamei este caso de caso Maria33, em atendimento
compartilhado por ambas as equipes.
O campo está aqui sendo compreendido de acordo com Peter Spink (2003), como uma
construção social que se caracteriza por um processo contínuo de interação entre diversos
atores, que se transformam nessa relação, que é atravessado por dialogicidade e é formado
por pessoas (presentes e ausentes) da cultura.
O autor estende essa compreensão para a prática da pesquisa e amplia-‐a, neste
contexto, para a idéia de “campo-‐tema”, em que o campo não é um lugar específico,
delineado e isolado, ou um lugar para fazermos experimentações, mas sim um complexo de
rede de sentidos, um espaço criado com o qual nos debatemos e negociamos. É um
argumento, dentre outros muitos, no qual estamos inseridos, composto pelo entrecruzar de
diferentes tempos, lugares, conversas, idéias e materialidades. Para Spink:
32 No Anexo 2 está apresentado um quadro com todas as atividades que realizei ao longo da pesquisa, estando ali elas datadas e brevemente descritas. 33 A minha escolha pelo nome Maria passou pela abrangência e popularidade que este nome tem, de modo que entendo que o caso aqui em questão refere-‐se à Maria atendida pelos profissionais que acompanhei, mas também a tantas outras que pode representar. Ressalto que foram tomados todos os cuidados éticos relativos ao comitê de ética para a participação da Maria nesta pesquisa.
62
“Campo é o campo do tema, o campo-‐tema; não é o lugar onde o tema pode ser visto
– como se fosse um animal no zoológico – mas são as redes de causalidade
intersubjetiva que se interconectam em vozes, lugares e momentos diferentes, que
não são necessariamente conhecidos uns dos outros” (2003: 18).
Nesse sentido, o pesquisador faz parte do campo-‐tema a partir do momento em que
escolhe trabalhar com ele, e o método que utilizará refere-‐se à maneira como estará e se
aproximará do mesmo. Diálogo constante, não para a descoberta de verdades, mas para a
produção de novos processos sociais e coletivos, pelo confronto, cruzamento e ampliação de
saberes.
Como forma de estar no “campo-‐tema” estudado aqui, utilizei um modo de trabalho,
aproximação e compreensão do mesmo amparado na Análise Institucional Francesa,
dialogando com alguns elementos da psicanálise34.
Lourau (1993) define a Análise Institucional como um novo campo de saber, que apela
a diferentes métodos e conceitos já existentes para a construção de um “novo campo de
coerência”. Em sua origem, estão múltiplos referenciais das ciências humanas (sociologia,
psicossociologia, psicanálise, filosofia – especialmente a dialética de Hegel para explicar a
dinâmica institucional – e marxismo), na medida em que acompanha a realidade social em
questão na sua complexidade, não sendo possível reduzir um fenômeno que é múltiplo a uma
única leitura compreensiva.
A Análise Institucional não pode, então, ser definida como uma teoria completa,
acabada, pois se caracteriza como um movimento que tem uma proposta teórico-‐
metodológica que está em permanente construção. Aborda os problemas como fenômenos de
ordem macrossocial e tem como pretensão desenvolver, a partir do próprio campo da
experiência social, construtos teóricos e intervenções que possam contribuir para a resolução
de conflitos, com vistas às transformações sociais.
Transformações que visam o desenvolvimento e o fortalecimento da democratização
das instituições, num movimento de resistência aos regimes totalitários, na busca de maior
34 As relações entre a psicanálise e Análise Institucional são várias e não cabe no escopo deste trabalho tal discussão, mas a psicanálise surge nesta pesquisa através da minha formação e prática clínicas, da minha forma de escuta clínico-‐grupal-‐institucional, e é utilizada explicitamente pela presença de alguns pressupostos teóricos de Winnicott, como uma, dentro inúmeras formas, de compreender a produção cultural criativa em um campo da experiência humana. Com relação às diferenças entre a psicanalise e a Análise Institucional, ver “RODRIGUES, H. C. 2002. Psicanálise e Análise Institucional. IN: BARROS, R.D.B. et. al. 2002. Grupos e instituições em análise. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos”.
63
autonomia e desalienação dos sujeitos. Assim, é sempre um ato politico que fundamenta um
trabalho em Análise Institucional (Hammouti, 2002).
Trata-‐se de “um novo espírito científico”, como diz Lourau (2004), em que se procura
escapar da centralização radical do discurso da enunciação científica, dando voz a outros
discursos presentes no processo de produção do conhecimento.
Nota-‐se que há sempre uma proposta interventiva na Análise Institucional, tanto que
surge, como um modo de trabalho desse movimento, a pesquisa-‐intervenção. Neste caso, de
acordo com Paulon (2005), o ato de pesquisar é necessariamente interventivo, não havendo
separação entre o momento da pesquisa e o da produção de conhecimento. Trata-‐se de uma
prática em que se consideram as dimensões micropolíticas presentes e se afirma o ato político
subjacente à intervenção proposta. Transforma-‐se para conhecer, e todo conhecer é um fazer.
Uma proposta de fazer científico que se opõe às teorias positivistas e ao modelo de
pesquisa objetivista que lhes corresponde. Aqui não há separação entre sujeito e objeto, tão
pouco um pesquisador que irá explicar a realidade que descobriu, mas sim uma relação de
reciprocidade entre pesquisador e campo de estudo, em que ambos se transformam
simultaneamente, criando novas formas de ser e novos dispositivos (Nour-‐Din, 2002).
Proposta, então, que vai ao encontro da compreensão de “campo-‐tema” sugerida por Spink
(2003).
A pesquisa em Análise Institucional parte dessas considerações, e vale-‐se de alguns
pressupostos dessa corrente teórico-‐metodológica, como os de instituição, instituído,
instituinte, analisador e análise de implicação, que foram utilizados neste trabalho.
Lourau (2004) considera que o conceito de instituição é polissêmico, entendido
diferentemente pelos campos do Direito, do Estado e da sociologia, mas não se reduz a
nenhuma dessas compreensões, ao contrário; o autor preocupa-‐se em forja-‐lo a partir da
ampliação dos outros conceitos vigentes até então. Considera que as instituições são
construções humanas, na história e no tempo, que compõem a trama social em que vivem os
sujeitos, unindo-‐os, atravessando-‐os e transformando-‐os, através de suas práxis. São um
conjunto de normas sociais, regras e manifestações visíveis à superfície, mas também as
formas como as pessoas participam ou não dessas normas, o que inclui as facetas ocultas a
olho nu, que o autor chama de não dito, e que podem ser produto da repressão social, daquilo
que é censurado no cotidiano, mas está presente.
64
Sem serem algo essencialmente observável, as instituições constituem-‐se numa
dinâmica contraditória, própria de uma lógica dialética35, e não identitária, em que há um
processo constante de embate entre forças de manutenção do status quo e de transformação
do mesmo. É o que Lourau (1993) chama, respectivamente, de aspectos instituído e instituinte,
que se assemelham às forças de cristalização e singularização de um dispositivo, como vimos
no Capítulo 1. A institucionalização é o produto contraditório da interação entre essas forças, o
devir que aí se estabelece.
Mas como conhecer uma instituição, suas forças instituídas e instituintes? Para tanto,
Lourau (2004) parte do conceito de analisador, que se refere a construtos que revelam algo
não percebido; são acontecimentos que fazem falar a instituição. São acontecimentos que
produzem análise, decompondo o que está instituído e provocando rupturas nos modos
naturalizados da vida institucional. Nesse sentido, convocam abertura e potência de
pensamento e intervenções alternativas na realidade, ao invés de reproduzirem saberes e
práticas instituídos (Barros; Leitão & Rodrigues, 2002).
Para Baremblitt (1992), os analisadores são aspectos materiais ou discursivos,
conscientes ou inconscientes, que denunciam e evidenciam características do campo em
questão. Está posta aí uma tarefa de investigação permanente, lacunar e circunscrita, em que
o não saber e a negatividade operam em conjunto.
Lourau (2004) propõe, assim, que a prática de análise consista na busca de
analisadores, que permitirão análise, não através da interpretação ou decomposição de um
corpo, mas trazendo à luz elementos que compõe a instituição no seu conjunto. Essa busca é
possível porque se considera a mutualidade da relação entre pesquisador e campo, como
vimos com Spink (2003), de modo que entre ambos não há separação, e sim implicação.
Lourau (2004) propõe entre os anos 60 e 70, por influência do conceito de
contratransferência institucional, o conceito de implicação, opondo-‐se radicalmente às
propostas de neutralidade e objetividade de pesquisadores sociais. Para ele, “a implicação é
um nó de relações”, não havendo separação entre os papéis de técnico e participante que
cabem ao pesquisador. O pesquisador, em vez de distanciar-‐se do campo de estudo, deve
familiarizar-‐se ao máximo com ele, numa relação de contiguidade. Há uma participação
35 Sobre o movimento dialético, conferir Lourau (1993), na sua explicação dos três momentos da dialética de Hegel: universalidade, particularidade e singularidade, que correspondem, respectivamente, aos momentos do instituído, instituinte e institucionalização.
65
objetiva que acontece, e o pesquisador é um elemento do campo e neste está implicado, antes
de implicar-‐se com ele.
E tal implicação deve ser material de análise, por meio de uma análise de implicação
realizada pelo pesquisador. Esta se refere ao seu trabalho de autoanálise do seu estudo, como
uma postura ética que subjaz à sua pesquisa. Ela deve ser feita individual e coletivamente, e
pressupõe que o pesquisador considere as contradições das relações em que está imerso. Para
Lourau, a análise de implicação “(...) não consiste em analisar os outros, mas em analisar a si
mesmo a todo momento (...)” (1993: 36), e “(...) tem como projeto político (...) transformar a
si e a seu lugar social, a partir de estratégias de coletivização das experiências de análise”
(1993: 85).
Se a Análise Institucional pretende transformar aspectos da realidade, a análise de
implicação deve poder circular pelo campo do qual surgiu, já que é fruto da relação entre este
e o pesquisador nele inserido. É o que Lourau (1993) sugere com a proposta de restituição.
Para ele, este é um momento de encontro entre o pesquisador e as pessoas que participaram
da sua pesquisa, em que o pesquisador dispara conversas a partir de suas vivências e
percepções no campo, numa proposta de reflexão e análise coletiva da situação presente,
estimulando e instaurando a construção de novos movimentos de saber e fazer.
A restituição não é uma simples devolutiva, mas um momento de trabalho coletivo, do
qual todos participam ativamente, numa relação de troca entre o pesquisador e as pessoas
pertencentes ao campo da pesquisa, em que se enunciam percepções, em vez de se fazer
constatações que podem ser de caráter recriminatório.
Como estratégia de registro e reflexão do estudo, Lourau (2004) sugere que o
pesquisador construa um diário de campo, em que possa anotar o seu cotidiano de trabalho,
bem como suas inquietações vividas nesse processo. Trata-‐se de uma forma de escrita mais
livre, em que o pesquisador tem mais liberdade e autonomia, e pode expressar-‐se
afetivamente. Além disso, conforme o diário é produzido, o campo do estudo é escrito e
pensado.
Hess & Weigand (2006) propõe que o diário seja uma ferramenta da pesquisa capaz de
articular teoria e prática, numa relação de congruência e inseparabilidade entre ambas. É uma
possibilidade de registrar memórias; afetações; hipóteses; reflexões; percepções e análises
66
relativas ao cotidiano de um campo-‐tema, num modo de trabalho que esses autores
denominam de escrita implicada36.
Implicada desde o início com o campo da clínica ampliada em saúde mental na AB,
escolhi começar o meu contato com os profissionais que participaram da produção deste
trabalho exercitando com eles um processo de análise de implicação, contando-‐lhes do
percurso desta minha implicação. Iniciei este processo em março de 2011, com alguns
gestores do NASF e do PSF e, em seguida, fiz o mesmo com os profissionais da rede, que então
concordaram com em participar desta pesquisa. Desde então, dei início à construção do meu
diário, do qual fiz uso até o final deste estudo.
A pesquisa de campo propriamente dita ocorreu de março a dezembro de 2011, e
neste processo estive presente sempre como pesquisadora-‐participante, ao acompanhar
diferentes práticas de trabalho da equipe de NASF em questão, colocando-‐me ora mais como
observadora, ora mais como questionadora ou comentadora. Meu diário de campo estava
comigo em todos os momentos, de modo que eu pudesse nele registrar impressões, falas e
conversas que considerava relevantes para este estudo.
Conforme participava de atividades do NASF com as ESF e produzia o diário, deparei-‐
me com a necessidade de estar também de outro modo naquele contexto, com maior
liberdade de escuta e menor preocupação com o registro, de modo que passei, então, a gravar
algumas reuniões das quais participei, sempre com autorização da equipe e conforme
proposto e aprovado no Comitê de Ética.
Por fim, durante toda a pesquisa de campo, realizei momentos de restituição com os
profissionais em questão, nos quais conversamos sobre minhas observações e reflexões a
partir da vivência com eles, e vice versa. Como estratégia para essas conversas, li com o grupo
textos que produzi para essa dissertação ao longo do meu percurso. Para a construção desses
textos, foi imprescindível a leitura e releitura dos meus registros, ora lançando-‐me no campo,
ora distanciando-‐me dele, como sugerem Hess & Weigand (2006), de modo a fazer um
movimento de ir e vir, necessário para os diferentes momentos da compreensão e análise de
uma realidade37.
Pretendi utilizar um método de trabalho que parte de processos de problematização,
como é o da Análise Institucional, podendo me desprender daquilo que já era conhecido em
36 A proposta de escrita implicada baseia-‐se na noção de implicação proposta por Lourau, agora transposta para um trabalho de produção textual. 37 Ver no Anexo 2 o quadro das atividades realizadas.
67
mim e me transformar durante esses dois anos de trabalho, além de contribuir, espero, para
(micro) transformações na realidade em que estava inserida. Diferentemente do método
cartesiano, aqui me vali de uma ética de auto invenção, como sugere Ferreira Neto (2004), em
que o pesquisador cria e se (re)cria ao longo do seu estudo. De acordo com esse autor,
amparado em propostas de Foucault, o pesquisador que assim se coloca forja e encontra os
instrumentos na medida em que faz sua pesquisa; não há um campo pronto, mas uma relação
a ser construída entre campo e pesquisador, o que provoca transformações entre todos que a
compõem.
É nesse sentido que resolvi estudar a clínica produzia entre o NASF e as ESF a partir do
caso Maria. E, deste modo, espero que transformações tenham ocorrido entre todos nós.
Conheçamos agora como fiz este recorte e de que modo estou compreendendo a noção de
“caso clínico”.
3.2 – A construção de um caso clínico: uma possibilidade de transicionalidade
A escolha do caso Maria não se refere a um estudo de caso, mas à proposta de
conhecer e refletir sobre um modo de clinicar a partir da construção de um caso clínico. Nesta
perspectiva, o caso não é o sujeito em si, mas uma construção, a partir das relações que se
estabelecem entre os atores envolvidos e paciente, mesclados dos elementos dos discursos de
cada um deles. Para Viganò (2010), trata-‐se de uma produção coletiva e democrática, da qual
cada ator é considerado protagonista da cena, de modo que traz contribuições para compô-‐la.
A palavra caso deriva de casu, em latim, e de ptosis, no grego, que significam queda ou
ato de cair. Nesse sentido, Dunker, apoiado em Gadamer, define caso como:
“(...) campo delimitado pela experiência de mal estar, de sofrimento ou de sintomas,
no sentido de uma história de encontros e ocorrências que se apresentam pela
concorrência de acasos e ações controladas” (2011: 539).
Se a noção de caso tem sentidos específicos nos campos do direito, da linguística e da
medicina, aqui nos aproximaremos da compreensão psicanalítica de caso clínico. De acordo
com Dunker (2011), a medicina privilegia a história da doença, do conjunto de sintomas e o
68
tratamento, e a psicanálise38 interessa-‐se pelas corroborações indiretas que se revelam, ou
pelo que irrompe, o que vai em direção à concepção de analisadores na Análise Institucional.
A partir desse pressuposto, cabe a proposta de construção do caso clínico, que está
para além de um estudo de caso, que pode ser uma simples compilação de relatos sobre
acontecimentos discursivos, que se encaixam em critérios a serem estabelecidos para a
compreensão do paciente. Diferentemente, contempla a construção conjunta de uma história,
rica de detalhes e conteúdos e que, quando decantada, leva-‐nos então ao caso39. Segundo
Figueiredo, trata-‐se de um método clínico que nos possibilita pensar a clínica em diferentes
contextos e que não se resume à interpretação, sendo mais amplo do que este processo:
“Construção é diferente de interpretação, por exemplo. A construção é um arranjo
dos elementos do discurso visando a uma conduta; a interpretação é pontual visando a
um sentido. Eis uma primeira diferença. A finalidade da construção deve ser
justamente a de partilhar determinados elementos de cada caso em um trabalho
conjunto, o que seria impossível na via da interpretação” (2004: 78).
A construção do caso, para Moura & Nikos (2000/2001), permite uma abertura de
sentidos, de modo que o pesquisador tem uma nova postura, não de fechamento e
estabelecimento de condições de chegada pré-‐estabelecidas, mas sim de possibilidade de
descontinuidade e criação de novos elementos, o que vai ao encontro do referencial teórico-‐
metodológico aqui adotado. Tal processo não se restringe ao relato do caso, em que se
analisam dados, conteúdos e o discurso, mas se amplia para a construção de uma história
metapsicológica (para além de uma compreensão psicológica), em que novas escutas são
possíveis.
Proposta que também coincide com a clínica ampliada, na medida em que consiste em
um trabalho coletivo e que parte das contribuições de diferentes atores, o que pode ir ao
encontro de um modo transdisciplinar de trabalho.
Dunker entende que a construção do caso serve mais para acirrar a discussão do
problema do que para resolvê-‐lo, de modo que estejamos mais atentos a essa discussão e nos
deixemos afetar pelas corroborações indiretas que o caso nos suscita; “como no sonho o mais
38 Para uma compreensão mais cuidadosa sobre casos clínicos e suas entradas em diversas psicanálises, sugiro a leitura de Dunker (2011). Aqui foi feita apenas uma breve apresentação a fim de que tivéssemos elementos mínimos para adentrarmos na discussão sobre a construção de um caso clínico, tema que será colocado em debate no caso Maria. 39 Figueiredo (2004) diferencia história de caso. A história refere-‐se ao que se conta sobre o paciente, e o caso é o produto que se extrai dessa história e das intervenções clínicas oferecidas e realizadas.
69
importante não é nem o ponto de partida nem o ponto de chegada, mas o percurso e o
trabalho realizado entre um e outro” (2011: 570).
Viganò (2010) considera que em uma proposta de construção do caso inverte-‐se a
posição clínica tradicional em que o paciente fica numa posição de ouvinte, passivo, para
ocupar a posição de docente em relação aos clínicos, no sentido de que tem algo a lhes ensinar
(sobre si, a clínica e o seu trabalho), embora não de forma direta e consciente. Implica ainda
um debate sobre a clínica inserido no contexto sócio-‐político e cultural contemporâneo, o que
inclui a realidade mercadológica e de consumo em que vivemos.
É nesse sentido que entendo o caso Maria: uma produção coletiva (grupal-‐
institucional), na tentativa de uma construção entre mim, na qualidade de pesquisadora, os
profissionais da ESF, do NASF e a própria Maria. Tentativa porque veremos como, na realidade
deste caso foi difícil, em muitos momentos, experimentar o estado quase onírico que
possibilita libertar-‐se de um caminho prévio de chegada, sem se perder em meio a ele, para se
mergulhar no percurso de uma construção, que é caótico e também surpreendente.
A construção do caso, sob a perspectiva acima, pressupõe novas afetações, de modo
que aquilo que está dado não sofra apenas a pressão das forças instituídas, mas também as
das instituintes, podendo se transformar em novos saberes e práticas clínicos. Em última
análise, espera-‐se que esse modo de construção contribua para o início do surgimento de
experiências de transicionalidade, na medida em que permita borrar contornos já
estabelecidos para que possa se produzir um novo caso, singular e inusitado até então, agora
com novos contornos.
O que se produziu entre o NASF, a ESF, a Maria e esta pesquisa, no que se refere à
clínica ampliada em saúde mental? Que clínica é produzida nesses entres que estão em jogo?
Nesse processo, há experiências de transicionalidade em questão?
Essas perguntas orientaram minha reflexão sobre o caso Maria, lembrando que tal
processo inclui minha análise de implicação e um modo de análise baseado na busca de
sentidos e analisadores, como será explicitado no próximo item.
70
3.3 – Notas sobre um modo de análise
A análise do campo-‐tema desta pesquisa deu-‐se a partir da busca de analisadores e de
sentidos recorrentes e raros presentes nos discursos dos profissionais e na composição do
caso Maria. Tal busca aconteceu por meio das minhas observações; de um processo de análise
de implicação; da escuta, leitura e análise de discurso das gravações, que transcrevi
pessoalmente, e também do diário de campo. Neste processo, inspirei-‐me nos pensamentos
dos autores que utilizei ao longo deste trabalho e nas sugestões dos colegas que participaram
da construção deste texto.
A perspectiva de análise do discurso aqui adotada refere-‐se à proposta da psicologia
social que parte de uma ótica interacional sobre os fenômenos, e não apenas da ontogênese
(aquilo que é de natureza individual) ou da sociogênese (o que é de natureza social). Sob tal
perspectiva, trabalha-‐se com foco nas construções sociais, versões discursivas e negociações
identitárias compartilhadas, que produzem e são produzidas através de sentidos (Gimenes &
Spink, 1994).
Sentidos, aqui, são considerados de acordo com a proposta de Medrado & Spink:
“O sentido é uma construção social, um empreendimento coletivo, mais precisamente
interativo, por meio do qual as pessoas – na dinâmica das relações sociais
historicamente datadas e culturalmente localizadas – constroem os termos a partir dos
quais compreendem e lidam com as situações e fenômenos a sua volta” (1999: 41).
Trata-‐se de produções (inter) dialógicas, que congregam diferentes formas de tempo
(histórico e vivido), que se dão a partir de repertórios interpretativos disponíveis e que são,
simultaneamente, universais e particulares, singulares.
A produção de sentidos implica posicionamentos em relação ao mundo, em uma
postura criativa dos sujeitos de produzirem algo, ao mesmo tempo em que se produzem, no
interstício entre o familiar e o não familiar, o que provoca, assim, tanto seguimentos quanto
rupturas em um terreno comum. As práticas discursivas pertencem ao campo da
intersubjetividade e são a empiria essencial para a compreensão de sentidos, sendo preciso
delas partir quando se pretende acessar um processo de conhecimento40 e produção de
sentidos (Gimenes & Spink, 1994).
40 Para Gimenes & Spink, conhecer é dar sentido ao mundo, e “implica, sobretudo, no posicionamento perante os dados, as teoria, e os outros -‐ nossos interlocutores diretos ou genéricos. Enfatizando o posicionamento, a produção de sentido é um processo de negociação continuada de identidades sociais” (1994: 150).
71
Anunciaram-‐se nesta pesquisa, a partir e por meio do caso Maria, sentidos relativos há
principalmente dois grandes eixos, naquilo que se refere à clínica produzida entre NASF e ESF:
• Especificidades do campo da saúde mental, que se refere a como entendem o
processo de enlouquecimento e sanidade e à presença de práticas de medicação e
(re)medicalização neste campo;
• Um modo de clinicar, que diz respeito à prática clínica pensada e praticada pelos
profissionais do campo em estudo.
É importante ressaltar que, embora tenha sido feita aqui uma divisão didática entre
esses eixos, eles não existem separadamente, e sim em relação um com o outro; entretanto,
foram assim distinguidos como forma de organização do texto. Cada um deles é atravessado
pelas características da realidade em que foi produzido o caso Maria e pela relação que há
entre os profissionais do NASF e da ESF que dele participaram.
Tais características serão apresentadas no capítulo seguinte para então, no Capítulo 5,
finalmente conhecermos o caso Maria. Grande parte desses capítulos é composta por trechos
de falas e conversas dos profissionais que participaram deste trabalho, bem como da
população que compôs o caso que foi acompanhado. Esses trechos foram retirados do meu
diário de campo e das transcrições das gravações, e serão apresentados sob formato textual,
com os esclarecimentos necessários, como parte do desenvolvimento de um pensamento
analítico-‐reflexivo.
Feitos esses esclarecimentos metodológicos, podemos conhecer aspectos da realidade
do trabalho do NASF com as ESF e o caso Maria, a partir de cada um desses eixos temáticos, na
tentativa de aprofundarmos nossa discussão referente à clínica em saúde mental produzida
entre NASF e ESF, a partir do dispositivo Apoio Matricial em Saúde Mental do NASF. Quem
sabe, então, este trabalho possa, na qualidade de um caso em construção, disparar entre nós
condições para futuras experiências de transicionalidade.
72
CAPÍTULO 4: O DISPOSITIVO APOIO MATRICIAL EM SAÚDE MENTAL EM UM MICRO
TERRITÓRIO DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO41
4.1-‐ Apresentação de um campo-‐tema: a UBS M, a ESF P e o NASF
Esta pesquisa foi realizada em uma UBS mista42 localizada em uma região de periferia
do Município de São Paulo, que atende 17.200 pessoas (em torno de 4.800 famílias) através do
PSF, e 50 mil na lógica da UBS tradicional. Chamarei esta UBS de M.
A UBS M conta com os seguintes serviços de saúde mental presentes na rede: um CAPS
II adulto; um CAPS álcool e drogas; um CAPS infantil; um CECCO; uma residência terapêutica
masculina; um pronto socorro com enfermaria psiquiátrica; uma equipe de NASF que lhe dá
Apoio e UBS tradicionais que contam com psicólogo e psiquiatra, mas que não trabalham de
forma integrada à rede, de acordo com profissionais do NASF e da UBS M.
Esta UBS é composta por cinco ESF, sendo que, destas, apenas duas estão completas.
As outras três estão ou sem médico, ou sem enfermeiro. Ao longo da minha pesquisa isto
variou e, em menos de um ano, acompanhei diferentes momentos numa mesma equipe, o que
já aponta para a realidade de alta rotatividade dos profissionais do PSF.
A equipe de NASF da UBS M é formada por sete profissionais, que possuem cargas
horárias distintas: um psiquiatra; uma psicóloga; uma fonoaudióloga; uma assistente social;
uma médica pediatra; duas terapeutas ocupacionais e uma médica homeopata, que foi
contratada aproximadamente sete meses após o início deste trabalho. Essa equipe é
responsável por Apoiar duas USF, sendo que uma delas tem sete ESF e a outra, que é a UBS M,
tem cinco.
Foi o trabalho desta equipe de NASF, no que se refere ao dispositivo Apoio que opera
na UBS M para a construção da clínica, que foi acompanhado e analisado nesta pesquisa.
41 Conforme explicitado no Capítulo 3, todas as falas apresentadas neste capítulo foram registradas nos momentos de trabalho do NASF com as ESF, nas reuniões de discussão de caso entre o NASF e as ESF, bem como nas próprias reuniões de equipe do NASF. Ao longo do texto, quando for relevante, serão indicadas as categorias profissionais dos atores apresentados, bem como o momento cronológico das reuniões e do caso ao longo do próprio texto. Todas as falas dos profissionais são apresentadas em itálico e grande parte é sequencial, compondo um diálogo; quando não for este o caso, haverá a seguinte sinalização indicativa: (...). Outros aspectos relevantes ao discurso ou à reunião em questão serão assinalados em nota.
42 Uma UBS mista é aquela que conta com o PSF e também com o modo tradicional de assistência em saúde (ambulatorial, sem o PSF).
73
Alguns dos profissionais dessa equipe já haviam trabalhado na região compondo
equipes volantes de saúde mental que ofereciam Apoio Matricial às ESF de algumas UBS dessa
mesma região da UBS M, o que inclui esta unidade. Mas, com a portaria n.154 e a mudança
(discutida mais a frente) na gestão do território, tais equipes volantes foram extintas e
constituíram-‐se equipes de NASF na região.
Esse NASF organiza-‐se para dar Apoio às ESF através de duplas de referência, de modo
que cada ESF conta com uma dupla de referência do NASF, sendo que esta pode acionar outro
colega de sua equipe sempre que houver necessidade. Cada uma dessas duplas reúne-‐se
mensalmente com uma ESF para discutir casos que estas elegem e para os quais precisam de
ajuda. Essas reuniões duram em média duas horas e nela são discutidos, geralmente, de 5 a 10
casos. Dentre estes, alguns são discutidos com o NASF pela primeira vez (estes são chamados
de casos novos), e outros são apenas retomados (são os casos antigos).
Nessas reuniões são pensadas e planejadas as intervenções futuras do NASF: que casos
atenderá, como e com que profissionais, bem como que grupos podem criar. É o momento de
construção dos projetos terapêuticos, bem como é quando aparecem as demandas da ESF e
como se dá a sua organização como equipe (evidencia-‐se para que casos precisam de ajuda e
como ela está constituída como um grupo – ou não – de trabalho).
Os casos trazidos para a reunião variam, de forma esquemática, entre os seguintes:
• Adolescentes que ficam exageradamente na rua e com comportamentos de roubo e
uso de drogas;
• Uso de álcool e drogas (alta demanda para CAPS AD);
• Pessoas com deficiência física ou transtorno mental que ficam em casa, abandonadas;
• Tentativa de suicídio;
• Mulheres com sintomas depressivos;
• Adultos, principalmente mulheres, que não saem de casa;
• Violência doméstica e sexual;
• Psicose (crônica ou casos com sintomas psicóticos – alucinações e delírios,
principalmente em jovens adultos);
• Dificuldade de aprendizagem (na prática, são muito mais dificuldade das próprias
escolas em lidarem com os alunos do que dificuldade de aprendizagem de fato. As
demandas das escolas referem-‐se, principalmente, a questões de comportamento dos
alunos frente a dificuldade das escolas em lidarem com eles e com suas famílias, que
muitas vezes não são parceiras).
74
Discussão de caso e atendimento clínico (na lógica territorial e de clínica ampliada) são
as principais ações dessa equipe de NASF. Esta tem ainda uma reunião de equipe semanal,
com todos os seus membros, da qual também participam sua coordenadora e uma auxiliar
técnico-‐administrativa (ATA). Nos outros dias, os profissionais circulam pelas unidades, sem dia
fixo para cada uma delas, e sim em função da demanda de atendimento destas.
Este NASF tem dois projetos principais que oferece às duas unidades para as quais dá
Apoio: a Terapia Comunitária, que acontece na comunidade e é aberta à população, e a oficina
de brincadeira43, que acontece na rua e também é aberta a toda a comunidade.
Por uma questão de organização e de tempo disponível para a realização desta
pesquisa, escolhi acompanhar mais de perto uma das ESF da UBS M no trabalho com essa
equipe de NASF; irei chama-‐la de ESF P. Restringi então minha presença no campo às reuniões
para discussão mensal entre essas equipes e a algumas reuniões semanais do NASF.
O caso Maria foi atendido pela ESF P com sua respectiva dupla de referência do NASF.
A ESF P é formada por um médico, uma enfermeira, duas auxiliares de enfermagem e
seis agentes comunitários de saúde (ACS). Está completa em relação à quantidade de
profissionais, mas nos últimos três meses desta pesquisa o médico ficou afastado por conta de
uma cirurgia. Atende aproximadamente quatro mil habitantes (o Ministério da Saúde44 sugere
de três a quatro mil habitantes) e os profissionais consideram que lidam com uma alta
demanda, frente à real capacidade de atendimento que tem.
A dupla de referência do NASF que oferece Apoio à ESF P é formada por uma psicóloga
(com carga horária de 40h semanais) e uma terapeuta ocupacional (com carga horária de 30h
semanais). Esta terapeuta ocupacional foi contratada em julho de 2011, após saída da outra
que ocupava este cargo e que pediu demissão por conta de um novo emprego.
A escolha da ESF P deu-‐se após um período de participação nas reuniões para
discussão de caso entre as ESF com as duplas do NASF (conheci quatro, das cinco ESF da UBS
M), sendo aquela a que se mostrou mais coesa como grupo de trabalho e mais disposta, a
partir das minhas observações e de relatos de profissionais do NASF, a estabelecer parcerias
com o NASF e com a própria UBS M.
43 O nome dado pela equipe a esta oficina foi preservado, por questões éticas, em função da não identificação da equipe em questão. 44 Informação disponível no Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde. Disponível em http://dab.saude.gov.br/atencaobasica.php. Acessado em: 20/12/2011.
75
Reúne-‐se mensalmente com o NASF para discutir casos, num momento em que já está
agrupada, que é o horário da sua reunião de equipe semanal. Além das atividades cotidianas
de consultas diversas na UBS, também coordena um grupo de artesanato, na comunidade e
aberto à população, e está engajada num projeto de educação ambiental.
É uma equipe que se considera bastante unida, que está no território há muitos anos e
cujos profissionais são bastante engajados com a proposta do PSF. Além disso, na ESF P, outros
profissionais, que não apenas os ACS, dispõem-‐se a fazer visitas e atendimentos
compartilhados com o NASF, o que nem sempre acontece nas outras ESF.
Além dos atendimentos compartilhados, a ESF P solicita o NASF para refletir sobre
algumas questões ligadas à prática clínica, o que me interessou particularmente, já que
entendo que o NASF tem uma contribuição a fazer neste sentido. Os profissionais dessa equipe
fizeram ao NASF perguntas reflexivas e questionamentos que não eram pontuais sobre um
caso em si, mas, ao contrário, eram questões sobre o manejo na clínica45, solicitando ao NASF
Apoio, neste sentido.
Trago aqui algumas das perguntas feitas pelo médico da ESF P ao NASF, que me
sugeriram a reflexão acima, durante uma reunião em que se discutiu o caso de uma paciente
que, em consulta com ele, queixou-‐se de nervosismo. Tratava-‐se de uma mulher que sofria
violência doméstica por parte do marido, muito ciumento, de quem a equipe suspeitou de
também sentir ciúmes do médico, que então perguntou ao NASF:
Qual o limite entre o vínculo e a sexualidade? Porque a gente toca o paciente (quando
o examina), no corpo. Às vezes você quer ser carinhoso e o paciente interpreta mal.
(...)
O que você faz quando o paciente vem sempre e ele não tem nada?
(...)
Mas por que ele bate tanto na esposa? E por que ela não se separa?
Essas perguntas falam sobre o processo de aproximação e construção de vínculo entre
profissional e paciente, que é algo que também se passa entre NASF e ESF para que possam
trabalhar juntos. A ESF P não conseguia entender o que leva uma mulher a continuar em um
45 Chamo aqui de manejo clínico a forma como o profissional clínico atende o paciente, lida com ele, escuta-‐o e intervém. Trata-‐se de um termo utilizado por Winnicott para se referir à provisão ambiental e aos cuidados maternos (holding) oferecidos ao bebê, mas que o autor também utiliza, de acordo com Abram (2000), para se referir ao cuidado oferecido para alguns pacientes na relação analítica.
76
casamento em que ela apanha do marido, e lançou ao NASF esse questionamento, o que
mostra tanto uma disposição para conhecer universo da paciente, tentando se colocar no seu
lugar, quanto uma crença de que o NASF pode ajudar e contribuir para a reflexão sobre
manejo clínico (como lidar com o paciente, como escuta-‐lo e como se posicionar com ele).
Um pedido de trabalhar em parceria e de aposta no NASF muito mais no seu papel de
Apoiador, do que de técnicos da assistência, o que se me mostrou um terreno fértil para
refletir sobre a construção da clínica ampliada da saúde mental na AB. Vejamos a seguir em
que contexto esses profissionais estão inseridos e alguns aspectos da realidade em que
construíram o caso Maria.
4.2-‐ A realidade de um contexto de trabalho: a gestão, o PSF e a saúde mental como
produtores de uma cena clínica
Se pretendemos pensar sobre a clínica construída na relação entre NASF e ESF para e
com a Maria, precisamos considerar o cenário em que todos esses atores estão. Por isso, neste
item conheceremos alguns aspectos desta realidade, naquilo que se refere ao campo-‐tema
aqui em questão, a partir da compreensão que os profissionais dessas equipes têm sobre a
região em que trabalham. Partiremos de um rápido panorama sobre a forma de gestão da
saúde no território em que foi feita a pesquisa e sobre a situação atual do PSF e da saúde
mental nessa região para, então, no item 4.3, adentrarmos na relação entre essas equipes.
Muita coisa aconteceu, não só a entrada do NASF; a estrutura mudou muito.
(...)
É uma mudança mais macro, mas que interfere na UBS.
É o que nos dizem dois profissionais do NASF em uma reunião de equipe46, ao se
referirem à realidade da saúde no território em que trabalham, com relação à forma da gestão
ali adotada.
Atualmente, no município de SP, os serviços públicos de saúde são, em sua maioria,
administrados através de um modelo de parceria entre o Estado e a Sociedade, seja na área da
46 As falas do NASF reproduzidas a seguir foram feitas ao longo de três reuniões de equipe do NASF, em meio a conversas sobre a realidade da saúde no Município de SP, a forma de gestão atual dos serviços na cidade e como isso interfere no território em que trabalham, e sobre a realidade do PSF. Algumas falas apresentadas em um mesmo trecho do texto não ocorreram em uma mesma reunião, mas se referiam a um mesmo tema, com sentidos semelhantes, sendo aqui então reunidas.
77
saúde, da cultura, esporte, educação, etc., como parte do Programa Nacional de Publicização.
Nesse modelo, entidades parceiras, que são organizações sem fins lucrativos, passam a
administrar, com recursos e diretrizes do Estado, serviços públicos. Essas parceiras são
chamadas de Organizações Sociais (OS) (BRASIL, 1998).
Mas nem todas as parceiras tem o estatuto de OS, algumas ainda são Organizações
não Governamentais (ONG). E este é o caso da região em que se realizou esta pesquisa, em
que a parceria se dá entre uma ONG47 e a Secretaria Municipal de Saúde do Município de São
Paulo. A coordenadora do NASF entende que, quando se trata de uma ONG, a autonomia é
menor do que no caso de uma OS, de modo que há hoje, nessa organização, um movimento
para torna-‐la OS.
Antes dessa ONG, outras parcerias já haviam administrado alguns serviços no
território, o que indica que este já passou por diferentes modos de gestão. Atualmente, na
UBS M, trabalham tanto funcionários públicos, quanto funcionários contratados por essa
ONG48, o que gera conflitos entre os profissionais. E há um movimento de transformar todos
os profissionais da UBS em funcionários da ONG, o que tem gerado um clima de instabilidade
no serviço, pois isso implicará a saída de alguns trabalhadores, e entrada de outros, novos, e
também porque não se sabe quando esta mudança se efetivará de fato.
A gestão pelo regime de parceria com o Estado é considerada desanimadora para os
profissionais do NASF, que entendem que esse modelo é um retrocesso no SUS e provoca uma
precarização atual do trabalho, refletindo negativamente na realidade de saúde da região e
nas condições de trabalho dos profissionais:
Aqui no território estamos em muitas mudanças;
Como está em toda cidade: privatização do serviço social, da cultura;
Daqui a pouco vai ser da educação.
47 Apesar de ser ONG, os profissionais que participaram deste trabalho referem-‐se a ela como OS ou como parceira (que são termos já comuns no campo da saúde de São Paulo), de modo que adotarei aqui essas mesmas denominações para me referir à ONG em questão. 48 A forma de gestão por parcerias implica contratação distinta da que é feita diretamente pelo governo Estadual ou Municipal. No primeiro caso, o regime de contratação é CLT, enquanto no segundo, é por concursos públicos; tal distinção reflete-‐se em diferentes cargas horárias de trabalho e diferentes faixas salariais. Mas como ainda há no território aqui em questão tanto o regime de parceria quanto o estatal, na UBS M há tantos funcionários públicos quanto funcionários da ONG, o que implica diferenciação nos contratos (mudança no salário e na carga horária). Os profissionais do NASF são todos contratados diretamente pela ONG, enquanto no PSF há tanto funcionários públicos quanto da ONG, num regime de contratação mista, com dupla carga horária: uma referente ao cargo público, outra ao regime CLT.
78
Ao invés de ser um investimento na saúde, entendem a entrada das parceiras como
uma privatização dos serviços, em que o Estado perde a chance de garantir as diretrizes da
saúde, para se tornar um mero órgão fiscalizador, como nos diz a coordenadora do NASF:
A outra interferência é a meta do PSF. A prefeitura contratou um serviço para dizer o
quanto a UBS está dando de prejuízo. Quem não atingir a meta, tal... Então, estamos
sob intervenção.
Uma realidade de trabalho com cobranças e pouca liberdade, em que não se confia
nos gestores e em que se faz presente, através das parcerias, a lógica do mercado, como dizem
profissionais do NASF:
Não tem parceria com as parceiras;
A prefeitura não quer parceria;
Ela quer passar o caso.
(...)
São negociações políticas de gabinete.
(...)
Com a OS, a regra foi: disputa de mercado, o que determina radicalmente o que a
gestão de cada parceiro vai exigir dos seus trabalhadores, porque senão está fora da
disputa de mercado. Hoje não se pode brigar com a secretaria, senão você está fora
do jogo.
Sentem-‐se desamparados pelos gestores e sem diretrizes confiáveis de trabalho:
Acho que fica essa coisa de que todos querem rédeas, parece que em todo lugar está
um caos.
(...)
Quem está na gestão não coloca um norte.
(...)
A falta de rumo é esta: todo mundo manda.
Um modo de gestão com o qual não concordam e que, segundo eles, não se baseia no
vínculo com os profissionais, mas sim numa relação de autoridade e falta de compromisso:
79
Isso é um modo de gestão. Não se comprometem, não vão, não avisam... E não foi
assim que a gente aprendeu a fazer, e não é assim que a gente quer fazer. Isso deixa
frouxo, deixa dúvida no compromisso, e você fica na mão;
Eu não acho que (esse modo de gestão) não é pra valer, mas é um modo de gestão
diferente mesmo;
Um modo de gestão maluco!
Com esse modo de gestão, não se sentem autores das mudanças no campo da saúde,
e sim algo como peças de um tabuleiro de xadrez, conduzidas de forma assujeitada e sem
autonomia. Se antes havia militância entre os trabalhadores, hoje reconhecem haver entre
eles uma postura pouco implicada:
Hoje é um emprego;
E tanto faz estar aqui ou em outro lugar, ou em outro parceiro, é tudo parceiro.
(...)
Aonde está o desejo dessa massa de trabalhadores? Isso vale como uma questão para
os gestores aí.
Como então produzir uma clínica que se baseie no vínculo, na autonomia e na
liberdade se os próprios trabalhadores sentem-‐se sem essas condições, sem apoio institucional
e muitas vezes numa relação que não é de vínculo com o território? A atmosfera entre os
profissionais do NASF é de perda de motivação e desgaste no trabalho, o que os impede de
continuar lutando, como diz uma assistente social do NASF que trabalha na região há cerca de
dez anos:
A gente cansou de questionar.
Nesse contexto, o NASF relembra o passado:
Há momentos em que às vezes você se fortalece, e outros em que você desanima. Mas
no tempo lá atrás, como a gente não podia contar com o governo, então contávamos
mais com os trabalhadores. E a rede ia se formando. Hoje, como nada é sério, com
quem eu posso contar? Tiram combinados e chega na reunião do fórum dos
trabalhadores e não cumprem; fazem propostas novas que não são combinadas.
O passado aqui referido é o da época em que havia na região as equipes volantes de
saúde mental, das quais alguns dos profissionais atuais do NASF faziam parte. Estes entendem
que naquela época a realidade era melhor: havia outro tipo de investimento e
80
comprometimento tanto por parte do governo e dos gestores, como por parte dos
trabalhadores. O passado surge, então, como uma lembrança viva e potente frente a um
presente acinzentado, onde está difícil enxergar luz, como se nota nas seguintes falas de
profissionais do NASF:
Hoje, eu acho que a gente tem que resgatar um pouco o que era antes. Mas para isso,
tem que ter interesse lá de cima, da OS. Mas eles (da OS) não demonstram interesse,
parece que não é para manter contato com a prefeitura.
(...)
Talvez o que a gente tinha de mais precioso se perdeu: a cogestão.
(...)
Se a gente tinha uma tarefa grande, mas com apoio, parece que hoje a tarefa é muito
maior do que já foi. A impressão que dá é que, em todos os lugares que a gente vai
tem uma tarefa grande. É difícil encontrar os parceiros para poder caminhar para o
mesmo rumo. Fica uma tarefa desgastante, cansativa.
(...)
A sensação é de que é infindável. Você faz, faz, faz, e nada parece que se alterou...
Com relação à dinâmica do PSF, a vivência dos profissionais também é de sofrimento e
desesperança frente à realidade atual, em que há descaracterização do PSF; falta de
profissionais; fragmentação das ESF; sobrecarga de trabalho e adoecimento dos próprios
profissionais. É o que se nota na fala de uma profissional técnico-‐administrativa (ATA), que
atualmente acompanha a equipe do NASF, mas que está no PSF desde 2003:
É muito diferente o antes do agora. Antes era realmente uma equipe. Hoje em dia,
cada um faz por si. Não tem aquela vontade de ser equipe. Até o próprio ACS; muitas
vezes ele leva o caso para o NASF sem passar pelo médico da ESF antes. Às vezes nem
o ACS conhece o caso. Hoje eu vejo que toda a desculpa para o PSF é a produção.
Toda desculpa deles é essa, mas sempre teve meta. Antes eram feitos muitos grupos,
tinha compromisso com o grupo. Hoje em dia, eles fazem grupo porque tem que ter
grupo; antes era um compromisso. Hoje em dia você não vê mais compromisso por
nada. As pessoas fazem por fazer. Hoje em dia, quando vem saber que tem uma
gestante na área, a criança já está nascendo. Antes se conhecia a área, hoje não se
81
conhece mais. Nem o ACS pertence mais à área. Ele mora na área de abrangência do
posto, mas não na área que ele vai trabalhar49.
Há uma descrença nas propostas da AB e do PSF, que estão desvirtuados de seus
princípios no contexto em questão. É o que também nos diz a enfermeira50 de uma ESF, em
diferentes momentos de uma mesma conversa:
Infelizmente, acolhimento em UBS tornou-se triagem ou emergência. E acolhimento é
saber escutar o que o paciente tem. E ninguém escuta (...).
(...)
Isto aqui é uma UBS que uma hora vai explodir, porque não dá conta. A UBS é muito,
muito grande (...). A gente tenta fazer o que dá. Mas enquanto não tentarem ampliar,
com outras UBS, isso vai ser sempre assim: entra médico, sai médico.
(...)
A gente só está fazendo o patológico (hipertensão, diabetes), e o resto? A gente não
consegue fazer as coisas. A gente finge que faz.
É interessante como reconhecem que o papel da AB não é apenas o de cuidar da
doença, do patológico, mas também de outros aspectos da vida. Marcam, assim, uma
diferença da AB em relação ao modelo médico tradicional, voltado essencialmente para a
doença, e que é característico dos hospitais. Entretanto, consideram que, na prática, não
conseguem trabalhar de acordo com os princípios e ideais da AB, descaracterizando-‐a.
Para os profissionais do NASF, o PSF não tem mais visão de integralidade:
É tudo tão compartimentado no território;
E as equipes do PSF não estão constituídas;
Não são equipes.
(...)
Não tem equipe.
49 Esta profissional diz que, atualmente, não é mais necessário que o ACS contratado more na região da micro área pela qual ele será responsável no trabalho, mas apenas na área de abrangência da UBS. O NASF entende isto com um retrocesso em relação às propostas do PSF. 50 As falas dessa enfermeira foram feitas em uma reunião de discussão de caso com o NASF, quando se discutiu a saída da médica desta ESF, que havia acabado de pedir demissão por, segundo ela, não aguentar mais trabalhar ali.
82
Não tem compromisso junto, não tem compromisso com o território.
(...)
O ACS não é mais o líder do território. Agora é só um emprego. Não tem mais aquela
disponibilidade.
E a rotatividade de profissionais, especialmente médicos, é grande nas ESF, o que gera
sofrimento na equipe e dificulta a construção de vínculo com a população. Acompanhei a saída
da médica de uma das ESF e, neste momento, as falas dos profissionais desta equipe eram as
seguintes:
É angustiante (quando sai alguém da equipe).
(...)
Quando a gente se apega (ao profissional)... aí vai... Estou sentindo a perda.
(...)
Aqui é uma bomba, ninguém quer ficar aqui.
É quase como se sentissem que trabalham numa realidade de guerra, e apontam que a
população também contribui para isso na medida em que sente a falta de médicos e cobra isso
dos outros profissionais, como dizem, respectivamente, a enfermeira e um ACS desta ESF:
Estou muito estressada. A desorganização aqui está muito grande. Estou me sentindo
muito cansada. Eu ponho a questão da angústia porque sei que vai ficar pior ainda
(com a saída da médica) (...) E os pacientes naquela ansiedade ‘de novo, ninguém para
aqui, mas a médica era tão boa’. Já estão vindo novas pressões, a população
pressiona. Foi um período muito longo sem médico, daí, quando veio, veio uma
médica com uma identificação muito boa, com a gente e com os pacientes. Mas...
Os pacientes querem uma resposta de quando virá outro. (médico)
Frente à falta de médicos na UBS M, contrataram-‐se dois médicos plantonistas que
dariam apoio assistencial para todas as ESF; uma tentativa de alívio para a situação de carência
em que se encontravam, mas que vai na contramão das propostas do PSF. Tanto que, cerca de
um mês depois dessa contratação, um ACS da ESF P diz ao NASF, em reunião para discussão de
caso:
(Esses médicos plantonistas) Já chegaram e já saíram;
Aí já tem que tratar a equipe. (ACS -‐ o grupo ri)
83
A risada, neste caso, pode indicar uma forma lúdica de olharem para sua própria
condição de trabalho, que é de adoecimento frente a este contexto. Como bem diz Winnicott
(1975), o brincar facilita o trânsito entre uma realidade e outra, possibilitando o intercâmbio
criativo entre os aspectos subjetivos e objetivos em questão. Localizando-‐se nesta região
intermediária da experiência, a brincadeira pode ser uma forma de movimentar-‐se
transformando a realidade criativamente.
Nesse PSF, frente a um contexto adoecedor, é preciso “tratamento”. Em meio a tantas
carências, cobranças e pressões entre todos ali, parece ser difícil conseguir sonhar, como se
espera em um processo de construção de caso, e a clínica produzida é atravessada por essa
realidade bruta, no sentido de dura, pesada, pouco sonhável e sonhada.
Há ainda particularidades relativas ao funcionamento da própria ESF, como a
hierarquia entre os profissionais. Um profissional do NASF considera, por exemplo, que tem
mais peso a palavra de um enfermeiro do que a de um ACS, o que compromete a potência do
agente como profissional da saúde. Isso se confirma quando a enfermeira da ESF P diz em uma
reunião de discussão com o NASF:
Eu vou sentar com ele (médico da ESF P) para ver que casos ele quer passar, para
passar na próxima reunião (para o NASF). Alguns casos passam com ele, depois
passam comigo, para depois passarem para vocês. Alguns não, passam com ele e ele
já traz para a reunião.
Por que os ACS também não “passam casos”, já que são eles quem mais tem contato
com a população? Considerando-‐se que o dispositivo Apoio do NASF insere-‐se em um
processo de transformação na forma de gestão e assistência em saúde, depara-‐se tanto com a
presença de movimentos em direção a um trabalho coletivo, mais democrático, quanto com a
de outros, cuja forma de trabalho é de natureza mais hierarquizada e centralizadora nos
técnicos.
O trabalho do ACS é bastante delicado, por ser alguém que mora na comunidade e
trabalha na UBS, e por ainda ter seu lugar e papel de ação na equipe de saúde em construção.
É o que nos dizem alguns ACS da ESF P em reunião de discussão de caso com o NASF:
Eu me sobrecarrego sendo a minha própria ACS. (...) Quem é que cuida da gente?
(...)
(...) se eu não estou bem, eu não consigo trabalhar, então como eu vou entrar na casa
do outro? Meu subconsciente maltrata o paciente.
84
(...)
Ela (uma paciente cadastrada) fala que os problemas dela não são para falar comigo,
são para falar com o médico, então ela confunde a amizade com o profissional,
porque eu moro na frente dela. Uma vez eu falei pra ela: não me confunda com sua
vizinha, e como sua ACS, porque ACS eu sou das 8h às 17h.
Em lugar que é duplo, delimitar claramente essas fronteiras é mais difícil, o que torna
ainda mais necessário um Apoio para os ACS nas equipes, no sentido de pensar sua prática de
trabalho e até mesmo de oferecer momentos de cuidado para eles. Até mesmo porque, como
diz uma profissional do NASF em uma reunião de equipe:
(aqui) as situações não são cuidadas, e você vai sentir depois...
Há demanda de cuidado não só por parte dos ACS, mas também por parte de outros
profissionais. No campo específico da saúde mental, os profissionais, especialmente os do
NASF, também sentem essas dificuldades vividas no PSF, acentuando-‐se as queixas em relação
ao presente e a nostalgia pelo passado. Contam que dois dispositivos potentes de cuidado e de
construção da rede de profissionais, o grupo de saúde mental e o Fórum dos Trabalhadores de
Saúde Mental, respectivamente, não existem mais. O grupo, que era um espaço aberto,
constituído de rodas de conversa entre pacientes e trabalhadores de UBS tradicionais e da
saúde mental, acabou em função da mudança de profissionais. E o Fórum foi transformado
num momento de encontro para se falar da saúde como um todo, sendo hoje um espaço
esvaziado, que poucos frequentam e que delibera poucas ações.
A lembrança viva daquela época surge como modelo de uma prática que deu certo,
sendo tanto inspiração para o trabalho em clínica ampliada, quanto também fonte de
nostalgia, como esperança de repetição de uma realidade que não existe mais. O que, de certo
modo, é impeditivo para a construção de uma nova história, em que outras produções
enriquecedoras são possíveis. A equipe do NASF parece alimentar a lembrança de um
“passado que deu certo”, seja pela alegria de uma experiência boa, seja como forma de
proteção para não se mergulhar em um presente assustador, transformando-‐o.
Nessa realidade caótica, a coordenadora do NASF coloca um desafio:
Eu fico pensando que esse é um jeito de fazer (gestão), e como conseguimos fazer essa
coisa mais agregadora estando juntos de forma que a gente não se coloque em
oposição ao gestor (da ONG), mas junto dele. Esse, para mim, é um desafio, apesar de
achar que a gente faz, faz, e quando vê, não adiantou nada ter feito. Se não adiantou
85
nada mesmo, então temos que tomar uma decisão (...). Eu desejaria muito mais, mas
tenho que brecar, porque a velocidade é outra, não é a que eu estava desejando.
Então, onde eu estou? O que dá pra fazer? Quais as brechas e as potências?
E os profissionais do NASF pensam em algumas estratégias frente à falta de poderes
públicos potentes:
O território aqui também se organiza paralelamente diante da falta de políticas
públicas. Diante do poder instituído, estamos sufocados, então tem um poder
paralelo.
A população surge, neste momento, como uma parceira possível. Lembram também
da sua própria potência como equipe:
Em muitos momentos, vejo que temos muita potência.
E é possível reconhecerem e aproveitarem tal potência:
(...) investindo em espaços que dão liga, sentido.
(precisamos) sair para lugares mais potentes, não dá para ficar isolado. Tem que
fazer link com o externo.
O movimento em direção à ligação com a realidade interna do serviço nem sempre é
favorável e produtiva, de modo que recorrem à realidade “externa” a este. Mas, para a
construção de uma clínica ampliada, singular àquele território e àqueles profissionais, é
importante que profissionais estejam próximos da população e também de outras equipes,
minimamente afinados, numa relação de vínculo, confiança, parceria e autonomia.
O NASF e da ESF P são duas equipes distintas que trabalham juntas, o que reúne tanto
as características e dificuldades próprias a cada uma delas, quanto às que se estabelecem
entre elas, a partir realidade territorial e institucional angustiante que acabamos de
brevemente conhecer. Conheçamos agora alguns aspectos referentes à relação entre NASF e
ESF P, a partir do que nos falam os profissionais dessas equipes.
4.3-‐ A relação entre o NASF e as ESF: notas sobre um entre em questão
O NASF chegou ao território da UBS M em um momento em que já havia um campo
construído pelas ESF, que estavam lá há alguns anos, e depois das equipes volantes de saúde
mental também terem feito um longo trabalho longo por lá. E não houve uma preparação
86
anterior dos profissionais de ambas as equipes para que elas passassem a trabalhar juntas,
como apontam e se queixam alguns membros do NASF, em uma reunião de equipe:
A nossa entrada não foi trabalhada.
(...)
(...) foi agressivo (entrar lá desta forma).
(...)
Queriam (a Secretaria de Saúde) que o NASF fizesse tudo.
(...)
Foi super difícil o primeiro ano do NASF.
O primeiro, o segundo... (rs). Mas a gente foi aprendendo a lidar com as coisas.
(...)
(...) a nossa coordenadora foi falando para a gente baixar a nossa expectativa;
E a gente foi baixando tanto, que aí a gente também começa a investir menos.
Com a portaria n.154, instituiu-‐se que deveria haver NASF no PSF, o que aconteceu,
mas não houve preparação do território e dos profissionais para tal implementação, como se
nota na experiência aqui relatada e em tantas outras que vimos no Capítulo 2. Há uma falta de
articulação entre as políticas públicas e a rede de saúde, entre os gestores e os profissionais,
além de efeitos nocivos de alguns aspectos da portaria, que dão abertura para que se entenda
que o NASF tenha que “dar conta de tudo”.
Sendo assim, o NASF desconhece-‐se como parte da UBS M, como nos diz um de seus
profissionais:
Somos o puxadinho da saúde da família.
Com este lugar lateral, e com uma descrença na realidade do PSF, sentem que não
conseguem realizar o trabalho que é de sua alçada:
A gente tinha entendido que o nosso trabalho era com o PSF...
É, mas não tem equipe, então...
(...)
87
O NASF não dá conta de transformar um modelo que já está capenga, o NASF não
nasceu para isso.
Nasceu para fazer um trabalho compartilhado com o PSF, com a rede e com a
população, mas, na prática:
Muitas vezes, temos que trabalhar sozinhos.
Aqui se repete o clima de descrença e desamparo que paira em relação ao contexto de
trabalho na UBS M, o que compromete a produção de uma clínica baseada na coletividade,
como é a clínica ampliada. Construir um caso, nessa realidade, é um grande desafio, que já se
nota na fala recorrente entre os profissionais das ESF de passar os casos para o NASF.
Ele (o médico da ESF P) deixou anotado aqui para passar o caso dessa paciente, diz ao
NASF a enfermeira desta equipe em uma reunião para discussão de caso.
Discussão e construção ou “passagem” de caso? O caso passa do médico à enfermeira,
desta à equipe, e desta ao NASF. E o NASF discorda e se queixa desse movimento, como
denuncia, em uma brincadeira, mas a psicóloga do NASF em outra reunião para discussão de
caso com a ESF P:
Já que estamos na área desta ACS, vamos passar um pouco mais de casos da área
dela?
Em muitos momentos, não há uma discussão do grupo, mas sim de alguns
profissionais agrupados num mesmo espaço; nem sempre todos participam da discussão,
como se só participassem diretamente da discussão quando o caso discutido é “o deles”, ou
seja, de um paciente ou família cujo atendimento é de sua responsabilidade. Aparece aí uma
dificuldade de “sonhar” no momento dessa reunião, no sentido de poder se desprender de um
dado paciente para conhecer outros, entendendo que um caso, quando em construção, é mais
do que um paciente; engloba muitos outros aspectos que envolvem todos ali, além de poder
ajudar na construção do projeto terapêutico de outros casos.
Além disso, fica evidente que há um desejo de que o caso passe para outra equipe,
frente ao contexto de urgências e demandas que os tomam e os deixam esgotados, impedidos
de se responsabilizarem por tantos casos. Quando a ESF leva casos para passar para o NASF, a
demanda parece ser, muitas vezes, da sua própria ESF, e não necessariamente da população,
embora essas demandas muitas vezes coincidam.
88
Nesse clima de urgências, frente ao pedido de ajuda para o caso, quase sempre a
reposta do NASF é o oferecimento de uma visita domiciliar compartilhada com alguém da ESF,
mas nem sempre essas visitas são planejadas, e sim apenas marcadas, como se isto, por si só,
já fosse suficiente. Em outros momentos, o NASF faz questionamentos e problematizações,
próprios às forças transformadoras do dispositivo Apoio, seja pedindo que os profissionais
tragam mais informações sobre o caso, ou desconstruindo idéias que já se tem sobre ele.
Profissionais do NASF apontam, em uma reunião de equipe, que os casos são trazidos
para a discussão com (...) muito poucas informações do paciente, e as ESF esperam deles uma
resposta rápida, o que gera desencontros e desgastes:
A gente também não aguenta esse jeito de trabalhar, com resposta rápida;
Eu vou sobrevivendo no dia a dia, fazendo muitas pequenas construções. Mostrando
que tentamos fazer um trabalho sério, com quem trabalha de forma séria.
Assim, parte da potência transformadora do dispositivo Apoio fica diminuída, e o NASF
deixa de fazer problematizações quando estas seriam bem vindas; não problematizam, por
exemplo, as seguintes falas estereotipadas feitas por ACS em reuniões para discussão de caso:
Eu falei pra ela (uma paciente): vai no posto, vai colher o papa.
(...)
Essa família é desestruturada.
(...)
Toda a família é problemática.
(...)
Essa família não tem jeito.
(...)
Quem tem que ter depressão é quem tem filho com problema.
(...)
Arruma um tanque pra lavar roupa que passa (a depressão).
(...)
Quem ameaça se matar, uma hora consegue.
89
Será que impera na UBS o paradigma do bem estar biopsicossocial, em que há
medicalização da vida e estatização do corpo biológico? Da necessidade da mulher fazer o
Papanicolau ao imperativo de fazê-‐lo? Por que ir ao posto colher o papa? E o que é uma
família estruturada, seria uma família normal? O que entendem por normalidade? Quando tais
crenças não são questionadas, corre-‐se o risco de produzir e reproduzir uma clínica nada
ampliada, mas, ao contrário, medicalizante e normativa.
O NASF reconhece o seu papel de dispositivo Apoio, no sentido de problematizar
práticas clínicas, como nos diz um de seus profissionais em uma reunião de equipe:
O trabalho não é discutir um caso em si, mas ajudar a pensar o caso com o jeito que a
equipe lida com ele.
Mas é como se, numa realidade em que se sentem sem lugar, em que há muitas
urgências, cobranças, pressões e falta de apoio, a capacidade de pensar e de sonhar de todos
ali ficasse esvaziada. Uma realidade que impõe pressa para a discussão dos casos (já que a
demanda da população e, portanto, das ESF é imensa), que gera desgaste na relação entre
NASF e ESF, e que implica a perda de energia para a construção de casos, com seus projetos
problematizando-‐os e planejando cuidadosamente as intervenções, em projetos terapêuticos
singulares. Oferecer rapidamente uma VD pode ser, assim, tanto uma forma rápida de
responder, quanto um modo de evitar contato com as ESF, como confirma um profissional do
NASF em uma reunião de equipe:
Eu acho que eu cansei das ESF. Não tem retorno nenhum. A comunidade era o
objetivo, mas chegar lá era pela ESF. A gente viu que não é (na prática). A ESF não
quer saber do território. Então a gente vai direto para a comunidade.
Embora a VD seja uma ferramenta importante para o trabalho do PSF, ela não é a
única estratégia disponível, tampouco a melhor; depende da singularidade do caso. Mas a
comunidade surge aqui com um apoio para o NASF, justificando a ida constante a ela através
de VD, já que o NASF sofre por falta de Apoio, como nos dizem dois de seus profissionais em
uma reunião de equipe:
O que dificulta é que não tem apoio para o NASF.
(...)
Os casos são muito cabeludos. Eu falei ‘acho que não vou aguentar mais’. Porque você
não tem respaldo e a rede também não é constituída.
90
Diferentemente, a ESF P sente-‐se apoiada pelo NASF, e a prática de passar o caso é
entendida como sendo um pedido de ajuda. Em uma reunião de discussão de caso entre essas
duas equipes, perguntei, na qualidade de pesquisadora, à ESF P o que esperam do NASF
quando dizem passar o caso, e a enfermeira respondeu:
Uma ajuda, ajudar a gente a pensar o que fazer, né? (...) Quando o NASF vai comigo,
em me sinto... Eu sinto um apoio. Porque assim, eu tenho o meu olhar, cada um tem o
seu olhar, e aqui é verdade, a gente desanima, porque você propõe isso, não faz;
marca médico, não vai, e a gente vai se sentindo impotente...
(...)
(...) eu sinto uma sintonia, que não é diferente do jeito da gente pensar e de ver o ser
ali, a pessoa, a família. Medicação eu também acho que é só nos extremos. A gente
tem que trabalhar o contexto, tem que trabalhar a família ali, não adianta... A gente
tem uma visão diferenciada, não é o remédio, não é só o remédio. Eu me sinto
apoiada nesse... Quando eu vou na visita e eu marco a visita, eu penso sempre nessa
ótica, de que eu vou conversar, mas sozinha não vou resolver. Porque o contexto
dessas famílias é complicado, e a gente não vai muda-lo;
É muito a longo prazo (psicóloga).
Há uma realidade muito difícil a ser enfrentada, com barreiras a serem vencidas
cotidianamente e que gera impotência nos trabalhadores. Mas, no exemplo acima, a ESF P
reconhece no NASF uma força importante no apoio para o enfrentamento dessa realidade e,
além disso, para a construção de uma clínica ampliada, que está para além da questão
medicamentosa, e que é coletiva, com o “detalhe” fundamental de que os profissionais que
Apoiam exercem aí função de amparo.
Vale lembrar aqui que, para Winnicott (1975), amparo é fundamental para que se
caminhe por regiões amorfas e desconexas, e para que haja crescimento, desenvolvimento e
criatividade. Nesse sentido, o NASF cumpre com parte de seu papel de dispositivo Apoio,
facilitando não só a transformação de uma clínica tradicional, mas contribuindo para a
realização do trabalho de outros profissionais.
Mas o NASF, diferentemente, vive o contrário, como afirmam dois de seus
profissionais em uma reunião de equipe:
(Parceria é possível com) algumas pessoas, não o programa e nem as equipes.
(...)
91
São momentos de fazer junto. É um ir e vir o tempo todo. Às vezes estão juntas, às
vezes o trabalho conjunto cai no esquecimento. Parece que no início se comprometem
(com os projetos), mas ninguém faz nada para acontecer.
E assim os encontros caem na obrigação, e tornam-‐se desencontros, o que têm
consequências:
Isso é muito complicado, e vai desestimulando a fazer o grupo (projetos conjuntos);
Acho que tem que ficar no interesse deles. Vocês (ESF) não querem fazer? Então nós
não vamos fazer.
O NASF realiza, então, um movimento de afastamento das ESF, quando a proposta
original é justamente que essas equipes trabalhem juntas de fato. Um profissional do NASF
conta como entende as intervenções realizadas na prática:
As VD são muito solitárias. As partes do NASF e ESF são divididas. As ESF tem
hierarquia (médico e enfermeiro); não tem noção de equipe.
Mas para as ESF também é difícil trabalhar alguns temas, como diz o médico da ESF P
para o NASF, em uma reunião para discussão de caso:
É muito difícil o trabalho com o NASF, porque trabalhamos com vocês temas difíceis.
A gente transpira.
Talvez por isso tantas barreiras impostas ao trabalho do NASF, ainda mais quando esta
equipe convida a trabalhar com o campo da saúde mental, o que não é tarefa fácil e gera
medo, angústia e impotência; aliás, não é a loucura um tema difícil, como vimos no Capítulo 1?
Apoio, no sentido de amparo, é fundamental para se trabalhar na realidade em questão.
Retomando aqui Winnicott (1975), para haver experiência de transicionalidade é
preciso que diferentes realidades aproximem-‐se e separem-‐se, misturando aquilo que elas têm
de bom e de ruim, para um processo de criação de algo novo. Para tanto, é fundamental haver
continência, continuidade no tempo e confiança em relação ao ambiente. Se por um lado a ESF
P parece ter essa experiência de continência e apoio por parte do NASF, este não vive está
mesma condição, de modo que às vezes encontre-‐se desvitalizado para poder exercer essa
função.
Entre o NASF e as ESF há alguns momentos de encontros, e muitos outros de
desencontros. Em cada uma das partes desses entres aí em questão, estamos diante de
intensos sofrimentos, o que pode provocar um movimento de fechamento e afastamento, em
92
vez de aproximação em relação ao ambiente externo51 em questão. Em vez de a ESF
aproximar-‐se de fato da população, ela se fecha para isso; em vez de o NASF querer trabalhar
com as ESF, e vice versa, há uma tendência de refúgio nas próprias equipes, como recurso de
sobrevivência.
Talvez a presença de um terceiro elemento, que não é nem do NASF e nem do PSF,
mas alguém que os conhece e os estranha, que adentra nessa realidade, mas consegue dela se
retirar, não sendo completamente engolido e desestimulado por ela, possa ajudar a resgatar a
potência que há em cada um dos atores ali presentes. É o que se observa quando, em uma
reunião de equipe com o NASF, responderam quando lhes perguntei se acreditavam no
próprio trabalho:
Eu ainda acredito.
(...)
Eu não acredito.
(...)
É que estamos cansados.
Numa heterogeneidade entre a equipe, alguns têm mais motivação do que outros. E
nesta mesma reunião dizem que, atualmente:
(É possível) discutir alguns casos;
(É possível realizar) pequenas mudanças...
São movimentos que vão e voltam. Mudam os profissionais.
(...)
Dá muito cansaço trabalhar desse jeito (...).
(...)
O ganho que eu penso que temos nessa história é pensar na história mesmo. (...) Hoje
somos todos funcionários da OS e estamos reencontrando pessoas com quem
trabalhamos, e temos notícias do que plantamos lá atrás. As pessoas não sustentam
51 Mantive a terminologia “ambiente externo” para condizer com a linguagem de Winnicott, já que está em debate uma discussão sobre experiências de transicionalidade. Mas entendo que, na prática, a distinção entre realidade interna e externa é ilusória, apenas indicando diferentes ângulos de uma mesma realidade em questão.
93
(as mudanças), mas conseguiram alguma diferença. A mudança é no micro mesmo, é
nas pessoas. Pessoal mesmo, não é no profissional.
(...)
Também acho que é no micro. As mudanças muitas vezes são sutis. (...) eu me
transformei trabalhando com esta equipe de NASF, conquistei qualidades com este
trabalho. Essa transformação que acontece em mim talvez também aconteça com
outras pessoas. Ganhei habilidades, construí um novo jeito e uma disponibilidade
para os pacientes que antes eu falava que não era comigo, e passava para outro,
porque eu também não dava conta. Fiz uma mudança que é interna, não é
mensurável. Isso não mudou o jeito como a equipe trabalha. Mas com certeza,
quando eu estou com o paciente, tem uma mudança, mas ela é sutil e não é
mensurável.
Aqui o passado é lembrança positiva para continuarem investindo no presente. E
reconhecem que as mudanças não são só na realidade “externa”, mas também na própria
equipe. Este um aspecto importante do trabalho do NASF: entre duas realidades, entre duas
equipes que trabalham juntas, ambas se transformam. Não se trata de um trabalho do NASF
para uma ESF, mas de uma prática conjunta, de implicação mútua, o que nos indica que
alguma transicionalidade é possível ali. Tanto que, em seguida, lembram-‐se de um caso que foi
construído, no sentido de construção de caso.
Trata-‐se de uma paciente usuária de drogas, que era um daqueles casos dos quais
ninguém queria saber na UBS. Mas, após uma intervenção compartilhada do NASF com a ESF,
hoje essa paciente, que frequenta a UBS e vai à terapia comunitária, está bem e encontrou
novas possibilidades para sua vida, como no fala um profissional do NASF:
Se de nada valesse esse trabalho, já valeu por essa paciente. Ela me contou que tinha
resgatado sua vida e queria participar do grupo de terapia comunitária, e ela foi;
Isso dá força para a gente permanecer no trabalho.
O NASF reconhece, assim, que seu trabalho constrói mudanças, seja neles mesmos,
nos profissionais do PSF, ou na população, e talvez por isso ainda não desistiram, apensar do
clima nostálgico e desestimulante que paira sobre eles. Não se trata de uma mudança
qualquer, mas daquela que acontece, aos poucos, em algumas pessoas, transformando suas
práticas e, aí sim, provocando experiências de transicionalidade, no sentido de criação de
novos contornos e lugares para si, no mundo.
94
É o que nos dizem profissionais do NASF ao final da reunião de equipe que começou
com tantas queixas, mas terminou com otimismo pelo futuro:
(Tem uma transformação) Mas essa transformação não é mensurável;
Mas é visível.
(...)
São micro conquistas, você faz pequenas parcerias. Tem confiança com aquilo que
você propõe.
(...)
O que me alimenta são essas coisas. São mudanças. Tem mudanças que não tem
preço e que não são mensuráveis, mas visíveis.
(...)
Tem casos lindos de saúde mental, coisas que você fica encantado de ver. De ruptura
com a realidade, com retorno à vida.
Lembrar-‐se das parcerias possíveis, da confiança no próprio trabalho e de um caso que
“deu certo” estimula. Entre NASF, ESF e população produzem-‐se dificuldades e desencontros,
mas também experiências de apoio e transformações.
O entre essas duas equipes não se dá naturalmente; é preciso ser construído e,
principalmente, trabalhado, já que se mostra como um lugar complexo, de embates e
conflitos, não apenas de fruição, em uma realidade complexa e desgastante. Não basta existir
o dispositivo Apoio no NASF, é preciso que ele seja permanentemente inventado, de forma a
se atualizar naquilo que pretende transformar.
Vimos que a clínica em questão é permeada de diferentes tipos de loucura, seja a do
contexto de trabalho, a da instituição, a dos profissionais, ou a da população. E, em contato
com a loucura, algumas pessoas de fato enlouquecem. Foi o que se passou com Maria, que
surtou e tentou suicídio com uma faca no peito, como nos diz o médico da ESF P. Conheçamos
agora o caso Maria, num exercício de tentar construí-‐lo, desvendando e revelando os aspectos
que o compõe e que apontam um certo modo de clinicar.
95
CAPÍTULO 5: O CASO MARIA ENTRE NÓS: UMA CLÍNICA DA TRANSICIONALIDADE?
5.1 – Apresentação do caso Maria
O caso Maria configura-‐se em meio a uma reunião do NASF com a ESF P em que o
médico desta equipe pediu ajuda àquela para lidar com alguns pacientes que surtaram,
segundo ele. Maria é apresentada nesta e nas outras reuniões em que seu caso foi discutido
com o NASF por meio de alguns elementos “identitários” e de uma cronologia dos eventos que
marcaram o processo de construção do seu caso.
Maria é apresentada pela ESF P como uma mulher que tentou suicídio há poucas
semanas da data dessa primeira reunião, com uma faca no peito, que perfurou seu pulmão e
implicou a realização de uma cirurgia de drenagem torácica. Por conta desta cirurgia, ficou
internada em um hospital geral, onde também foi medicada com antidepressivo e
antipsicótico Quando teve alta, foi encaminhada para o CAPS mais próximo, mas como este
não era o da sua região, de lá foi encaminhada para a sua UBS de referência, e foi quando seu
caso surgiu na UBS M: seu marido foi atrás de um psiquiatra, porque os remédios da Maria
estavam acabando e ela precisaria renovar suas receitas, conta o médico da ESF P.
A ESF P pede então ajuda ao NASF para construir esse caso e tem nesse pedido as
seguintes questões centrais: por que será que ela tentou suicídio? Como se atende um
paciente nessas condições e o que é possível fazer neste caso?
Maria tem 25 anos, é casada e tem uma filha de dois anos e três meses, deste
casamento. Concluiu o Ensino Médio, mas nunca trabalhou fora de casa. É evangélica e
frequenta a igreja assiduamente, principalmente depois que casou, de acordo com a ACS
responsável. Mora com o marido, que trabalha o dia inteiro como cozinheiro em um
restaurante, e sua filha, em uma casa que fica no quintal de sua sogra. Antes de se mudar para
esta casa, morava em uma casa de aluguel com sua família nuclear. Seus pais são vivos e
moram em bairro próximo ao seu atual. Ela tem também um único irmão, de 14 anos, e que
foi, de acordo com a ESF P, quem a impediu de enfiar a faca por completo no próprio peito.
Desde que teve alta do hospital, Maria está hospedada na casa de sua mãe, e voltará
para sua casa, onde está seu marido, quando melhorar, de acordo com a ACS responsável. É
paciente da UBS M desde 2005, inicialmente apenas para consultas com o ginecologista, e
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posteriormente sendo cadastrada no PSF. A casa de sua mãe fica em área de outra ESF da UBS
M, mas a ESF P traz o caso para a discussão na postura de já tê-‐lo assumido, sem ter
combinado isso com a ESF de referência da casa da Maria.
É, faltou uma conversa aí entre as duas equipes. (médico da ESF P).
Mas justificam tal escolha dizendo que já conhecem a mãe da Maria há muitos ano.
ESTA escolha deu-‐se em função do vínculo com a família e também pela preocupação da
equipe em relação à gravidade do caso. Não por acaso, nessa primeira reunião, o médico diz
ao grupo:
É interessante como a gente constrói vínculo com as famílias: é através dos acidentes,
das desgraças, por uma necessidade. No começo, nem te abrem a porta. Não é por
boas maneiras.
Se por um lado o início do caso Maria é marcado pela importância da construção do
vínculo com ela, por outro, este vínculo produz-‐se em um contexto de emergências, doenças e
necessidades, como lembra esse médico, mais adiante:
Mudar uma realidade crônica, que é mais social e tem também doença no meio, é
mais complicado.
O caso Maria é composto pelas especificidades do campo da saúde mental, pelo
realidade do contexto de trabalho do e no território em questão, o que inclui a configuração
do PSF e a relação entre as equipes, e pela prática clínica que está se construindo, no
entrecruzar de todos esses aspectos.
Como no capítulo anterior já discutimos o contexto de trabalho e a relação entre NASF
e ESF que compõe a realidade aqui em questão, nos itens seguintes focaremos dois eixos que
compõem esse caso: especificidades do campo da saúde mental e uma prática clínica. A partir
desses dois grandes eixos acompanharemos o movimento de construção do caso Maria por
parte das equipes nele implicadas, assinalando o que se destacou neste processo, como
eventos, intervenções pensadas e realizadas, dados da história da vida da Maria e
desdobramentos do caso.
97
5.2: Especificidades do campo da saúde mental: imaginários sobre a loucura e a questão
medicamentosa
Loucura como doença mental, experiência de desrazão, produção psicossocial ou
produção estética? O campo da saúde mental contempla um debate sobre a loucura, de modo
que este tema atravessa o caso Maria. Como os profissionais que compõem a construção
deste caso entendem a tentativa de suicídio da Maria? Primeiramente, entendem este caso
como sendo “de saúde mental”, pois além de o agruparem dentre os pacientes que surtaram,
foi um caso disponibilizado para esta pesquisa, cujo tema foi especificado, desde o início,
como o da clínica ampliada em saúde mental na AB. Mas do que trata e caso Maria: um acesso
de loucura, um surto, doença ou transtorno mental, etc.?
Considerarei a tentativa de suicídio de Maria como a vivência de um momento de
crise, que é compreendida por dell’Aqua & Mezzina (1991) como ruptura de uma experiência,
em que há conflitos manifestos, e que é também uma possibilidade de reorganização e
recondução de uma situação. Para Knobloch (1998), a crise é uma experiência de diluição de
fronteiras, no tempo presente, e de ausência de suporte. Nas palavras dessa autora:
“A crise é, talvez, loucura, no sentido de algo que irrompe na organização do sujeito e
o faz sentir-‐se totalmente estranho, fora de si, esquisito. É o efeito dos desligamentos,
das dissoluções do formalizado que se faz sentir: fragilidade, vulnerabilidade,
oscilação, desassossego, agitação, flutuação, mutabilidade” (1998: 143).
O caso Maria contempla, então, um debate sobre um episódio de crise referido ao
campo da saúde mental, de modo que abarque a temática da loucura, sendo esta entendida
no sentido proposto por Knobloch como “(...) a dolorosa descoberta subjetiva do inumano no
humano” (1998: 144).
Algo de inédito e de surpreendente está posto na crise, algo da ordem do inominável,
daí o movimento de se tentar compreendê-‐la, nomeá-‐la. É o que se observa em meio à
primeira reunião em que se discutiu o caso Maria, quando o médico da ESF P tenta entender o
que houve com os pacientes que surtaram e coloca esta questão à psicóloga do NASF:
Todos os pacientes surtaram, não sei se é sazonal. (...). É natural isso, você está
acompanhando uma leva de psicóticos e de repente surtam muitos?
Acontece sim; (psicóloga)
O motivo é fatal de medicação? (médico)
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Não, são as relações. Tem gente que está medicada e mesmo assim surta; (psicóloga)
A gente é médico, faz a receita e pensa que está tudo bem. A gente foi acostumado
assim. Mas tem coisa que não é só a medicação (...). A gente só pensa naquele método:
medicamento-doença. (médico)
Anuncia-‐se a clínica médica tradicional, em que se prioriza o olhar para a doença e a
intervenção medicamentosa. Mas aí é feita uma ampliação: o médico reconhece a
possibilidade de interferência do ambiente em um processo de “enlouquecimento” e a
psicóloga acrescenta a isso o fator relacional. Entretanto, ainda nessa reunião, o médico diz:
Eu receitei Haldol até a gente definir o que fazer.
Entre NASF e ESF surge aí um pedido de ajuda, uma disponibilidade de construção
coletiva, da gente, e ainda uma medicação psiquiátrica. Até que haja outro tipo de recurso,
como o apoio do NASF, o médico valeu-‐se de um recurso já conhecido na sua formação e na
sua prática. Assim, o Haldol é respaldo para a família, para a Maria e também para a ESF.
Mais adiante, esse mesmo médico afirma:
Mulher que se mata é por causa de briga com o marido.
Por quê? O NASF não questiona essa compreensão, deixa que a discussão se
desenrole, mas de pronto estamos diante de uma ESF que considera que um processo de
enlouquecimento pode estar associado a um conflito amoroso. Na reunião seguinte52, a
equipe conta que o médico perguntou ao marido da Maria, em consulta, se os dois tinham
brigado, mas a reposta foi negativa. O que teria feito então Maria tentar se matar com
tamanha violência? Um dos ACS diz, na reunião seguinte entre as equipes, outra hipótese
levantada pelo médico na tentativa de compreensão da crise da Maria:
Ele estava pensando em esquizofrenia, pelo que ela fez, pelo que aconteceu; ele
estava pensando que o quadro dela é esquizofrenia;
É que o quadro de esquizofrenia, até você chegar nele, leva anos para dar. (psicóloga)
Nesta fala, a psicóloga do NASF traz à cena outra compreensão sobre o campo da
saúde mental, que não aquela que se refere ao modelo psiquiátrico tradicional, amparado em
diagnósticos surgidos de antemão. Se neste exemplo o médico aponta para a ocorrência de um
transtorno mental, compreendido a partir de um diagnóstico talvez já estereotipado, o NASF
52 Nesta reunião, o médico da ESF P estava de férias, por isso a equipe falou em seu nome.
99
procura fala a partir de outro referencial psicopatológico. Algo então se esboça na direção de
uma clínica ampliada, com outra noção de diagnóstico, composto por diversos paradigmas e
disciplinas, em vez de pautado apenas em uma, assim como sugere Campos (2011).
Dando sequencia à conversa sobre a possibilidade ou não do diagnóstico de
esquizofrenia, a TO do NASF diz, depois de ter visto a Maria na primeira VD que realizamos:
Mas ela tem uma resposta verbal, e outra com o corpo, né?
(...)
Com o corpo ela fala que ouve vozes, e verbalmente ela nega.
(...)
Então fica difícil, você não consegue... Acho que no primeiro dia (primeira VD), a gente
não conseguiu identificar os sintomas que poderíamos chamar de classificatórios de
esquizofrenia ou algo do tipo.
Um pouco adiante, nesta conversa, os ACS trazem novos elementos para o caso:
Eu estudei com ela, era da minha sala na escola. Ela era uma menina que sempre foi
reservada, não era de falar muito. Na visão que a gente tinha, ela nunca precisou
fazer nada (em casa). E aí, quando você casa, tem que lidar com responsabilidades...;
Ela pode ter se sentido atingida pela sogra, mas de repente a sogra estava dando um
toque nela, ‘olha, vai lavar a louça, tem que limpar a casa’, e ela já achou que a sogra
estava mandando nela.
(...)
O marido disse que ela achava que todo mundo ficava falando dela. Mas ele achava
que era tudo fantasia da cabeça dela;
Ela sempre foi retraída, quietinha.
Se não foi briga com o marido e se não há produções alucinatórias, não confirmando
um diagnóstico de esquizofrenia, é preciso encontrar outra explicação para a crise da Maria, e
a ESF P faz então um movimento de resgate da história desta moça. Começam a construir o
caso relacionando um momento de crise a um processo de enlouquecimento (surto), vivido
por alguém mais solitário, fechado (retraído, quieto, não fala muito) e que não trabalha, não
tem responsabilidades.
100
Se na era do Alienismo, o louco era tido como menor, alguém que não trabalhava e era
irresponsável, como aponta Castel (1978), aqui, o imaginário relativo ao louco não é o de
menoridade neste sentido, mas sim no apresentado pelas classes trabalhadoras brasileiras,
que associam loucura a “doença dos nervos”, sendo esta normalmente relacionada por elas a
situações conflitivas de trabalho, especialmente para o gênero masculino (Costa, 1989b)53.
Para essas pessoas, a saúde está associada possibilidade da pessoa trabalhar, com um corpo
que está em condições para exercer esta atividade.
Para Duarte & Ropa (1985), embora o sistema psiquiátrico seja aceito prontamente
como universal, há que se considerar que esse é um modelo possível, embora dominante, e
que, neste sentido, as classes trabalhadoras, que tem outra relação com o corpo, com o
trabalho e com a vida, constroem manifestações culturais próprias, bem como terapêuticas a
partir de outras visões de mundo, geralmente mais próximas das medicinas populares. Com
base nessas considerações, o autor faz uma importante ressalva:
“(...) os discursos sobre pessoa e doença nas classes trabalhadoras não representariam
uma visão empobrecida ou degradada dos modelos tradicionais, ou dos modelos
modernos dominantes, mas espelhariam sistemas simbólicos diferentes, articulados e
complexos” (1985: 187).
O NASF, ainda nessa segunda reunião de discussão do caso, conta as que informações
obteve sobre a história da Maria na primeira VD realizada:
A mãe dela disse que ela nunca teve nada, elas falaram muito pouco. A Maria disse
que não se lembrava de nada e que queria ficar boa logo, para poder cuidar da filha
dela.
Diante de um presente disruptivo, essa primeira VD tinha, como um de seus objetivos,
contribuir para a construção do caso naquilo que se refere às explicações para a crise da
Maria. Mas, nessa intervenção, Maria pouco conseguiu dizer, explicitamente, o que houve com
ela; tanto ela quando sua mãe disseram querer esquecer isso que aconteceu. O que é isso?
Se do ponto de vista dos profissionais isso pode ser sintoma de esquizofrenia,
consequência de uma forma estranha e isolada de ser, ou “doença dos nervos”, para a família
em questão parece ser algo que faz sofrer e de que ninguém quer se lembrar; uma experiência
sem nome, angustiante: loucura? Talvez, mas o que sabemos é que quem vive isso quer 53 Não foi objetivo deste trabalho traçar um mapeamento fino da hipótese brasileira sobre o imaginário sobre loucura das classes trabalhadoras, de modo que utilizo brevemente contribuições sobre esse tema, que se fez presente no campo aqui estudado. Para maior aprofundamento, sugiro a leitura de “Da vida nervosa (nas classes trabalhadoras urbanas)”, de Luiz Fernando Dias Duarte.
101
distância desta experiência, enquanto que quem trabalha com isso quer disso saber tudo
quanto possível.
Ainda nessa VD, a mãe de Maria contou, aos poucos, que um mês antes do que
aconteceu (a tentativa de suicídio da filha), perceberam que Maria estava estranha, quieta e
não falava com as pessoas. Marcaram, então, uma consulta com psiquiatra particular, para,
segundo a mãe, ela tomar uns calmantes (...). É, porque ela tinha uns espasmos.
Aqui aparece a imagem da “doença dos nervos”, como compreensão das classes
trabalhadoras acerca dos conflitos que, nos modelos psicológicos e psiquiátricos, são
chamados de angústia, transtorno mental, psicose, etc. A “doença dos nervos” é, para Souza
(apud Costa, 1989b), estratégia de vida e reflexo de uma visão fragmentada da consciência
corporal, em função dos problemas das populações de baixa renda, que enfrentam desafios de
sobrevivência física, psíquica e social.
Para Costa (1989b), trata-‐se de um termo polissêmico que se refere a um sistema
nervoso que não tem correlação com conflitos identificatórios de romances familiares ou
quadros psicossomáticos, mas sim à imagem de um corpo-‐trabalho, em que saúde é associada
a força e disposição para trabalhar, dada esta necessidade. Com relação aos homens, o
trabalho relaciona-‐se à atividades fora de casa, enquanto às mulheres, às tarefas domésticas.
No caso Maria, sua família entendeu que, frente aos espasmos do corpo, é preciso
calmante, e este quem prescreve é o psiquiatra. Mas como a Maria entende isso que se passou
com ela? Discretamente, no final desta primeira VD, ela conseguiu falar que estava bem até o
momento em que morava apenas com o marido e a filha em uma casa de aluguel, o que se
modificou quando foram morar na casa que fica no fundo do quintal da sogra, para quem não
precisariam pagar aluguel. Então começaram a vir as cobranças, disse ela. Conta que se sentia
humilhada, e faz questão de falar que está tudo bem no casamento; o problema era só com a
família do marido, depois desta mudança de casa.
Será que a hipótese do médico da ESF P de que mulher que tenta se matar é porque
brigou com o marido começa a se confirmar, indiretamente? Ainda na segunda reunião em
que se discutiu o caso, a terapeuta ocupacional do NASF traz um saber “especialista” sobre o
processo de adoecimento mental para tentar explicar a crise da Maria:
(...) essa questão da sogra ficar perseguindo. Pode ser um quadro, um
comportamento mais persecutório, né? E dentro de um quadro da doença em si, faz
parte.
102
Ela casou grávida, tem mais isso. Aí ela foi pra igreja. E aí já começa a pesar, eu não
sei não. Acho que quem não quer fazer uma coisa, quem não quer fazer o almoço,
você tem que pagar alguém pra fazer. Tem coisa que tem que fazer, mas se eu não
quero fazer, pago pra alguém fazer. (ACS)
O saber da terapeuta ocupacional está marcado pela compreensão médico-‐
psiquiátrica, em que a crise é associada a um transtorno psiquiátrico, entendido como doença.
Se outrora o NASF questionou a prática clínica da psiquiatria tradicional, respondendo
negativamente à hipótese de esquizofrenia, aqui há outro discurso, característico de uma
formação especialista. Uma ambiguidade discursiva, tendo em vista que as formações em
saúde mental ainda se pautam em grande parte na clínica médica e psiquiátrica tradicional, e
que o NASF opera o dispositivo Apoio em direção à transformação deste modelo, que também
foi e é o seu em alguns momentos.
Mas, com uma visão diferente da dos “especialistas”, os ACS insistem na relação entre
trabalho e “doença dos nervos”, o que talvez se explique pela sua dupla inserção na UBS:
profissionais da saúde e membros da população atendida.
Mais adiante, nessa reunião, a ACS responsável pela área da casa da mãe da Maria diz:
Ela está totalmente diferente (para melhor);
Está muito boa como antes, que ficava lá e tentou se matar, né? (ACS)
Ela anda com um semblante que parece que ela está em outro mundo. Ela anda
assim, tipo viajando (ACS54).
Entre esses ACS surgiu uma ampliação: um lembrou o outro que é preciso considerar o
aspecto “invisível” da loucura, que, como lembra Pelbart (1993), implica uma experiência que
é da ordem do inominável, que extrapola os nossos registros e que escapa à concretude; uma
espécie de outro mundo, diferente do nosso, mas que está aqui, à nossa vista, embora nem
sempre seja perceptível diretamente.
Mas pouco adiante, o NASF reproduz, novamente na voz da terapeuta ocupacional, um
discurso do “especialista”, retomando a potência do medicamentoso como recurso:
A gente tem que lembrar que ela está sob efeito de medicação. Então ela vai dar uma
aliviada, na tristeza e em algo mais de ruim que ela possa estar sentindo. Então a
gente tem que...;
54 Cada fala em questão nesta conversa foi feita por diferentes profissionais ACS.
103
Haldol e Bipedirdeno; (enfermeira)
Tem que fazer uma conversa com ela e ver se ela está aceitando que está doente. De
repente ela não quer tomar os remédios, vai falar que está bem... e aí”? (ACS).
Nesse trecho, nota-‐se que o grupo, impulsionado pelo NASF, está configurando isso
como doença, e doença não só se trata, mas também se cura, com remédio. Vemos aí a
repetição de uma clínica moderna no campo da saúde mental, em que aquilo que sofre
merece ser curado (Pelbart, 1993).
Mas, para além de Haldol e Biperideno, há outros remédios em questão, como o
trabalho, tão lembrado pelos ACS. Na terceira reunião entre as equipes para discussão do caso
Maria, a ACS responsável pela micro área em questão diz:
O trabalho vai ser bom pra ela, porque assim ela vai ficar longe da sogra, não ter que
ouvir tudo aquilo, e vai diminuir a pressão;
Mas assim, não adianta substituir o trabalho achando que tudo vai se resolver. Se ela
não resolver as questões internas dela... O trabalho acaba, tem o final de semana, tem
uma série de coisas. (psicóloga)
Nesta conversa, cada um fala a partir do seu saber sobre a loucura: para o ACS,
trabalhar cura; para a psicóloga, a cura depende do cuidado e do olhar para o mundo interno;
para o médico, medicação psiquiátrica ajuda, e para a Maria, tanto o trabalho quanto o
remédio são importantes. É interessante notar como o caso Maria reúne esses diversos
discursos e práticas, sendo que os ACS, que ficam entre a população e os profissionais da UBS,
ora se aproximam do discurso médico/especialista, ora se identificam com a população,
concordando com a escolha da Maria pelo trabalho.
Está (re)posto aí o debate sobre os diferentes saberes com relação à loucura, ao
campo da saúde mental; um refere-‐se ao pensamento científico e o outro refere-‐se ao
cotidiano das camadas mais populares, ou classes trabalhadoras, havendo desencontros entre
ambos.
Maria continuou apostando no seu emprego como forma de melhora, já que não
ofereceu à ESF P um novo horário para consulta ou VD, mas a ACS responsável pelo caso diz,
na quarta reunião entre as equipes para discussão do mesmo:
104
A mãe dela disse que a Maria piorou, ela passou mal, está tomando remédio, mas
mudou a quantidade e está se sentindo angustiada. Às vezes começa a lembrar do
que aconteceu e fica angustiada.
No desenrolar desta conversa, a auxiliar de enfermagem da ESF P recorre aos recursos
que conhece e à sua compreensão sobre o campo da saúde mental e diz:
Precisa falar pra ela que tem que ela tem que voltar a fazer o tratamento, porque se
deixar...
Mas ela abandonou o tratamento? (pesquisadora)
Não, ela está tomando meio comprimido à noite. Só que não está mais conversando
com ninguém, e a gente previu isso, que ela ia começar a trabalhar e, com a pressão,
tal, ia cair de novo; (auxiliar de enfermagem)
Ela disse que o sogro está falando um monte pra ela (ACS).
A ESF P assume, neste momento, a mesma compreensão que o NASF trouxe: trabalhar,
por si só, não é garantia. Mas Haldol e Biperideno são garantias? De acordo com Costa
(1989b), os pacientes só aderem ao “tratamento” que lhes faz sentido. Ao propormos uma
clínica ampliada, construída a partir da singularidade do caso, e mais, que possibilite
experiências de transicionalidade, não basta oferecer medicação ou consulta se isso não fizer
sentido para a paciente; é preciso fazer um belo exercício para questionarmos nossas
inúmeras ofertas e reconhecermos que há demandas de naturezas diversas, como sugere
Bezerra Jr. (1994). Maria já quis como remédio receitas das medicações psiquiátricas, mas
agora o está encontrando no seu trabalho.
Mais adiante, nessa mesma reunião, a psicóloga do NASF responde à angústia da ACS,
frente ao pedido de ajuda da mãe da Maria:
Mas isso é muito bom, que ela possa lembrar do que aconteceu, ela tem que lembrar,
como ela vai reformular se ela não consegue lembrar? Porque o que é o tratamento?
É rever. Nem sempre a angústia é ruim, a angústia às vezes ajuda a caminhar. Você
vai ter que parar, olhar para a angústia, resolver e caminhar. Nem sempre ela é ruim.
Agora, é lógico que ela pode ficar na angústia. Ela tem que resolver, andar com ela;
Mas eu fico pensando que... esse lembrar por um lado é bem interessante, mas assim,
se ela está trabalhando, se ela não está bem... ninguém consegue trabalhar se não
está bem; (enfermeira)
Eu também acho; (psicóloga)
105
Ainda mais depois da situação dela. (...) Então assim, se você não está bem, você não
consegue (trabalhar). (enfermeira).
A psicóloga reconhece e valoriza o “mundo interno” no processo de sofrimento da
Maria, e acredita que a sua melhora só é possível quando ela enfrentar seus sentimentos,
resolvendo os conflitos desta natureza. A enfermeira fica na dúvida, pois, para ela, assim como
para os ACS, a capacidade de trabalhar é associada a um bem estar mental, ainda mais depois
de isso, que talvez comprometa tanto quem o viveu que lhe seja impeditivo de trabalhar.
Sobre a relação entre doença mental e psicologia, Foucault considera:
“(...) é pela angústia que a evolução psicológica se transforma em história individual; é
a angústia, com efeito, que, unindo o passado e o presente, os situa um em relação ao
outro e lhes confere afinidade de sentido” (2008: 51).
Para o autor, a psicanálise e a psicologia aproximaram loucura e angústia, através do
estudo dos mecanismos de defesa. Mais adiante, o autor prossegue nessa direção:
“Ora, é esse ponto para o qual convergem as significações (...) – a angústia. A história
psicológica do doente constitui-‐se como um conjunto de comportamentos
significativos, que criam mecanismos de defesa contra a ambivalência das
configurações afectivas” (2008: 52).
Faz sentido, então, dentro do seu campo de formação, que a psicóloga reconheça na
angústia da Maria tanto um sinal de saúde quanto de doença, em função dos mecanismos ou
não de defesa construídos em torno dessa emoção. Mas os ACS trazem, na quinta reunião de
equipe entre NASF e ESF P em que se discutiu este caso, outra visão, reforçando a idéia de que
melhora relaciona-‐se a crescimento, independência e trabalho:
Ela não vive a vida dela ainda, está vivendo um pouco agora porque está
trabalhando;
(Ela precisa ter) essa responsabilidade, eu acho que a mãe vive a vida dela, e ela a vida
da mãe.
(...)
Na vida você tem que começar a desvincular, né?
Na clínica ampliada propõe-‐se autonomia, e aqui se fala em desvinculação. Para
Winnicott (1975), o crescimento refere-‐se à passagem de um estado de dependência absoluta
106
para outro, que é de dependência relativa. A desvinculação, então, não é um rompimento com
as bases de dependência do indivíduo, mas sim uma menor dependência em relação a elas.
Entretanto, é preciso lembrar que estamos diante de um campo de tensionamentos,
em que há diversas compreensões de homem: reconhecimento do mundo interno; corpo
como instrumento de trabalho; loucura como doença, dependência, ausência de trabalho, etc.,
e processo de cuidado em saúde como tratamento (também medicamentoso), resolução de
angústias, ser capaz de trabalhar, etc.
Na medida em que pretendemos que o dispositivo Apoio opere a favor da produção de
uma clínica ampliada, nosso esforço é por não reproduzir as dicotomias que se fazem
presentes no campo da saúde mental. Como sugere Campos (2011), não se trata de opor
Saúde Coletiva e práticas clínicas, tampouco de negar as tecnologias existentes, mas de
congregar as múltiplas possibilidades de oferta e demanda na construção de um sentido
comum entre profissionais e população atendida.
Na quarta reunião em que as equipes discutiram seu caso, tanto a psicóloga quanto a
enfermeira dizem que, para saber sobre a Maria, é preciso vê-‐la, conversar com ela e
perguntar como ela está. A paciente é então considerada como alguém que orienta o saber do
profissional, pois, embora pouco conseguir falar explicitamente sobre isso, é quem melhor
pode contar da sua própria condição. Uma prática que se baseia na clínica ampliada, em que
se aposta no saber do paciente e na sua singularidade, ou na clínica moderna, baseada no
olhar e na linguagem, em que se vai até o leito do doente?
Talvez uma mescla de ambas, já que se trata de um processo de transformação,
facilitado pelo dispositivo Apoio, que é composto por diferentes paradigmas, ainda que vise a
construção de outras clínicas que não apenas a tradicional, estritamente ambulatorial e
medicamentosa.
Se inicialmente, quando o caso Maria começou a ser discutido, o médico levantou a
hipótese de esquizofrenia, na quinta reunião entre as equipes, depois de não ter sido dado à
Maria nenhum diagnóstico psicopatológico, dois ACS apontam como muitas vezes se espera
um diagnóstico:
Vai depender da fala dela pra vocês verem um diagnóstico? É, dependendo do que ela
fala, do que ela está sentindo , aí vocês vão entrar, vão falar, vão achar;
Eu chego pra conversar contigo, ‘eu estou com dor de estômago, eu quero tratar o
estômago’, mas ela não fala o que aconteceu, como você vai entender ela?
107
A ESF P também espera do NASF uma ajuda especializada, amparada na clínica
tradicional. Mas, ao mesmo tempo, a ESF P questiona tal clínica quando, nesta mesma reunião,
relativiza a eficácia da medicação:
É porque vira quase uma muleta o remédio, ‘ah, eu estou tomando remédio, vou
melhorar’, mas não muda o estilo de vida para melhorar. Acho que o pessoal pensa
muito nisso. (ACS)
(...)
Muito é essa coisa da cultura, da visão da pessoa, da medicalização, e se eu ofereço
outra coisa: ‘você está tirando sarro da minha cara?’ Eu já ouvi isso. Tem coisa que é
da cultura deles, se eles saem da consulta sem remédio, acham que o médico não
presta pra nada; (enfermeira)
Precisa pedir um exame; (ACS)
A gente ter que mudar isso agora é difícil; (enfermeira)
É muito legal eu ir para um grupo de crochê; (psicóloga)
Eu amo; (enfermeira)
Mas a visão dos pacientes é outra (...). O paciente vai no médico e quer sair com
receita e com remédio, que é igual veneno, que ele tomou e não resolveu. Eles pensam
que é igual veneno: tomou matou, tomou, curou. (ACS)
(...)
Hoje tudo é patológico, tudo é ser doente. Se a criança briga com o irmão e bate nela,
é porque ele tem algum problema, e tem que tomar medicação. E aí, quando você
propõe uma outra saúde, não é fácil. (terapeuta ocupacional)
Segundo os profissionais da ESF P, a população ainda os coloca no lugar de técnicos de
uma clínica assistencialista, organicista e medicamentosa, tanto que, nas duas VD que
acompanhei no caso Maria, as únicas falas que a mãe de Maria fez à essa equipe foram com
relação à medicação em uso pela filha. Quando a auxiliar de enfermagem perguntou se estava
tudo bem, a resposta foi com relação ao uso remédio: está tomando direitinho, disse a mãe na
primeira VD, e parou de tomar aquele, disse ela na segunda.
A equipe queixa-‐se da relação que a população tem com a mediação, mas, de acordo
com Bezerra, não se demanda medicamentos se eles não são ofertados; só se demanda aquilo
que está disponível:
108
“Esta demanda de medicamentos longe de ser algo natural e espontâneo pode ter suas
raízes solidamente fincadas em um complexo sistema de idéias, expectativas,
representações acerca da doença, da saúde e do tratamento” (1994: 150).
Na terceira VD que fizemos na casa da mãe da Maria, essa nos contou que a filha:
(...) achava que eles (os remédios) estavam fazendo a mão dela formigar e deixando a
sua boca inchada, esquisita. Então ela parou de tomar o azulzinho (Haldol) e está
tomando só o rosinha (Imipramina) e o branquinho (Biperideno).
Mas para que tomar Biperideno se ela não está tomando o Haldol? (auxiliar de
enfermagem)
A mãe da Maria não soube responder. Parece que nem sempre o que se receita é o
que se recebe. O médico receita Haldol e a paciente toma o azulzinho, que sente que lhe faz
mal e, então, para de toma-‐lo. Segundo Bezerra (1994), para as classes trabalhadoras o
remédio exerce a função de agir sobre o corpo possibilitando-‐lhe retornar ao trabalho. E como
se nota no caso Maria: o Haldol talvez tenha cumprido essa função na medida em que, ao
começar a trabalhar e se reconhecer neste lugar, Maria prescindiu do azulzinho. O autor dá
então uma sugestão válida para quem pretende construir uma clínica a partir de sentidos
comuns entre paciente e profissional:
“Se o médico for suficientemente criterioso para ouvir o discurso do paciente não
como produto da ignorância ou da pobreza intelectual mas como discurso diferente,
de complexidade e riquezas próprias, terá aí um campo de intervenção terapêutica e
de pesquisa altamente promissora. O medicamento poderá ser então um instrumento
que lhe permite acesso a este outro código de percepção e expressão emocional”
(1994: 153).
Maria questionou a crença que parecia absoluta por parte da população no remédio e
ainda desafiou o poder médico ao optar por outra forma de cuidado que não apenas a que lhe
foi receitada. Em um momento escolheu o trabalho e recusou o Haldol, que, vale dizer, é o
antipsicótico mais receitado na rede pública e que tanto foi usado nos hospitais psiquiátricos,
contribuindo para a construção da figura do louco catatônico. Como bem percebeu um ACS, o
melhor remédio pra ela está sendo esta promoção55 (no trabalho).
O encontro entre ESF P, NASF e população é atravessado pelas diferentes
compreensões sobre o campo da saúde mental que vimos. Nesse encontro, a ESF P ora se
55 Fala feita na quarta reunião de equipe em que discutimos o caso, quando a ACS responsável contou que Maria estava melhor e que inclusive seria promovida no seu trabalho.
109
reconhece, ora se desconhece no lugar de clínica médica moderna em que tanto se coloca,
quanto se vê colocada pela população, e o NASF tanto questiona a fabricação de diagnósticos
psiquiátricos, quanto às vezes reproduz discursos desta natureza.
Na quinta reunião em que as equipes discutiram o caso Maria, quando propus um
momento de restituição desta pesquisa, na forma de uma conversa sobre o caso a partir de
uma linha do tempo com todas as nossas intervenções feitas até então, a enfermeira da ESF P
diz:
Na equipe você tem hipertenso, diabetes, gestantes, crianças, e a gente intercala essas
consultas com o médico. Eu estava vendo que o paciente de saúde mental não, é só
com o médico (da ESF P), não intercalamos as consultas. (...). Por que? Porque ele (o
médico) manda retornar para ele mesmo, porque é receita controlada. (...). Mas esses
casos que são só medicação... Um epilético, por exemplo, é importante o médico
acompanhar também, porque não tem só epilepsia, ele é um ser humano, então
minha consulta de enfermagem é totalmente diferente da consulta dele, médica. A
minha consulta é para o auto cuidado, para prevenção, promoção de saúde. (...) não é
só renovar receita. (...). Porque a gente está acompanhando, eles (os casos) estão
sendo registrados, mas eles estão sendo cuidados? Porque não é só a medicação.
Houve aí uma ampliação: na medida em que os casos puderam ser compreendidos
para além da questão medicamentosa, foi possível à enfermeira repensar o seu próprio
trabalho, recuperando a sua potência como profissional e relativizando a “eficácia” de uma
clínica essencialmente médica, que valoriza principalmente a consulta e as intervenções
medicamentosas.
Ao final dessa reunião, a enfermeira lembrou que ela também fazia algo semelhante a
essa “linha do tempo” com os pacientes que acompanhava, mas que isto se perdeu, frente ao
cotidiano tumultuado de trabalho. Preciso voltar a fazer isto, a anotar tudo no meu caderno,
diz ela.
Podemos pensar que a pesquisa, de alguma forma, ocupou, naquele momento, uma
função intermediária entre as equipes, ajudando que algo se movimentasse ali, de forma que o
grupo resgatasse outras possibilidades das quais podem lançar mão na clínica. E talvez o NASF
tenha representado essa função intermediária entre a ESF P e a população quando não
afirmou, e sim questionou, a possiblidade de um diagnóstico de esquizofrenia. Na mesma
direção, o NASF contribuiu para que a atitude criativa da Maria do prescindir, por conta
própria, de parte da medicação que lhe foi receitada fosse legitimada: o psiquiatra dessa
110
equipe orientou a terapeuta ocupacional e à psicóloga56 a dizerem para a ESF P que Maria não
precisava voltar a tomar a medicação que parou de tomar por conta própria, já que estava se
sentido bem.
Se incialmente o remédio surgiu como recurso entre população, NASF e ESF P, no fim
do processo foi abandonado pela própria Maria, e associado a veneno, considerado tanto
capaz de salvar, quanto de matar, como disse um ACS. Aliás, tal atitude de Maria pode ter sido
importante para ela não se sentir aprisionada nos padrões de uma clínica que carrega a marca
do paradigma manicomial, daí sua recusa à tomar Haldol, seja dando-‐lhe outro nome,
azulzinho, seja parando de toma-‐lo.
Nesse sentido, presenciam-‐se vivências de experiências de transicionalidade em
relação a algumas especificidades do campo da saúde mental: Maria transformou o Haldol da
rede em azulzinho, posteriormente dispensando-‐o, e as equipes prescindiram do diagnóstico
de esquizofrenia e construíram uma intervenção para isso, ainda que na dificuldade de
suportar a ausência de um nome específico para isso.
O caso Maria anuncia tanto uma clínica médica, quanto uma clínica do sujeito,
ampliada, de acordo com Gastão (2007), pois indica um movimento de transformação do
campo da saúde mental na AB, no qual está presente o dispositivo Apoio, que potencializa o
jogo dialógico entre NASF e ESF e a possibilidade de heterogeneidade de discursos.
Não por acaso, na última reunião de discussão do caso Maria da qual participei, a ESF P
havia selecionado os prontuários de todos os casos de pacientes em uso de medicação
psiquiátrica, para pensar como eles estavam atualmente: se ainda tomavam remédio, se
estavam de fato sob acompanhamento clínico e se precisariam da elaboração de novos
projetos terapêuticos. Mas, curiosamente, a sala onde estavam esses prontuários estava
trancada, e ninguém tinha acesso à chave de lá. Os prontuários, então, por lá ficaram, até a
próxima reunião, sendo adiada a discussão sobre esses casos.
Winnicott lembra que “(...) a loucura se relaciona com a vida comum” (1982: 198), em
função dos seus mecanismos de funcionamento. Mas, esse mesmo autor reconhece que, por
mais que loucura e saúde não sejam polos opostos, e sim facetas da condição humana, a
sociedade, por medo da loucura, caminha em direção à sanidade, de modo que aqui estamos
56 Em uma reunião de equipe do NASF, a dupla de referência aqui em questão, conforme combinado com a ESF P, perguntou ao psiquiatra de sua equipe as consequências da atitude de Maria ao ter parado de tomar, por conta própria, o Haldol. E depois a dupla informou à ESF P as considerações do psiquiatra.
111
diante do desafio do dispositivo Apoio: criar estratégias para abrir, e não apenas manter
trancadas, as portas que guardam e resguardam os casos de saúde mental.
5.3: Um modo de clinicar: transicionalidades de uma prática
Winnicott (1971) valoriza a experiência de continuidade, ao lado da confiabilidade e
contiguidade, como fundamental para a instauração de transicionalidades. Até agora,
conhecemos alguns aspectos do processo de construção do caso Maria, que nos apontaram
minimamente o modo de clinicar da ESF P com sua respectiva dupla de referência do NASF.
Aprofundarei agora a reflexão sobre a clínica que se estabeleceu entre essas equipes a partir
desse caso, tendo como norte as considerações de Winnicott acerca das experiências de
transicionalidade, que se relacionam à temporalidade, à confiança e ao processo de união e
separação entre realidades distintas.
Quando o caso Maria foi discutido pela primeira vez entre as equipes NASF e ESF P,
todos se mostraram assustados frente à tentativa de suicídio da Maria, entendendo que
deveriam intervir com certa rapidez. O médico medicou a paciente e, na primeira reunião de
discussão de caso que teve com o NASF, pediu-‐lhe ajuda. De pronto, coloca-‐se um modo de
clinicar pautado tanto na autonomia do médico frente à urgência do caso (urgência que então
se tornou sua também), quanto na busca de uma construção coletiva, da gente, tendo em vista
a necessidade de apoio.
Nessa reunião, a psicóloga do NASF pergunta ao médico:
Você acha melhor a gente ir na casa, conhecer primeiro, e depois pensar em uma
consulta com o psiquiatra do NASF?
Eu acho bom. (médico)
A data comum possível entre NASF e ESF P foi quase 15 dias depois dessa reunião, e
combinaram de estar presentes nesta VD a dupla de referência do NASF, uma auxiliar de
enfermagem e uma ACS57 da ESF P e eu, como pesquisadora. Por que essa data, por que esses
profissionais e como seria essa VD? Nenhum desses aspectos foi problematizado.
A escolha da data deu-‐se em função da compatibilidade de agendas; a escolha dos
profissionais passou pela prática já tradicional de VD compartilhada, feita normalmente pela
57 Neste momento, a ACS responsável pela micro área da casa da mãe da Maria estava de férias, de modo que outra iria nos acompanhar na VD; a equipe tem essa possibilidade de movimentação e criação de estratégias.
112
dupla do NASF, ACS e auxiliar de enfermagem e/ou enfermeira ou médico (neste caso, nem o
médico e nem a enfermeira poderiam ir), e o planejamento de como seria a VD não foi feito
naquele momento, talvez por já estarem acostumados a fazer esta intervenção.
Podemos pensar também que, diante de uma tentativa de suicídio, é preciso ir ver o
que aconteceu, para então se pensar nos passos seguintes. Novamente, nota-‐se algo da
visibilidade em questão; não basta escutar o caso, é preciso conhecê-‐lo também através dele
mesmo. Uma clínica da visibilidade, em que olhar e linguagem associam-‐se para a produção de
um saber, como Foucault (2006) entende acontecer na modernidade.
O que esperavam conhecer da Maria, ou, parodiando Foucault, o que esperavam ver,
ouvir e dela poder falar ao irem até à casa onde estava? Nesta primeira VD, o NASF sentiu
grande dificuldade no contato com ela, como diz a psicóloga na segunda reunião em que
discutiram esse caso:
Eu achei assim, a gente (dupla do NASF) conversou um pouquinho da visita e achou
que foi uma visita muito difícil, alguém que não se abre para falar. Saca rolha, sabe?
(...)
Acho que no primeiro dia a gente não conseguiu identificar os sintomas mesmo (...);
(terapeuta ocupacional)
Então, o próprio marido, na fala dele, quando estava na sala com o Dr., perguntou
para ele se tinha receita. E aí o Dr. perguntou se tinha briga de casal, e ele falou que
‘não, não tem, mas teve um tempo em que ela falou que ficava ouvindo vozes’. E o Dr.
Perguntou ‘mas nesta semana vocês chegaram a discutir, teve briga, alguma coisa’? e
ele falou ‘não, não teve nada’; (ACS)
Então, o que ela conta é assim, o que deu para perceber: parece que ela era muito
ligada à mãe, na casa, não é isso? E primeiro morou um pouquinho com a mãe, e
depois ela foi morar em uma casinha no quintal da sogra, não é isso? E aí ela conta
que quando foi morar no quintal da sogra, ela se sentiu responsável, a gente não sabe
como foi, mas ela não se sentiu aceita. E nesse ponto, ela achava que as pessoas
davam indireta nela, porque aquele espaço não era dela. E ela fala que foram essas
coisas que foram desagradando, e ela foi adoecendo. (psicóloga)
Havia um desejo por parte dos profissionais em esclarecer o caso rapidamente, em
saber sobre a história da Maria, seus sintomas e as possíveis causas da sua tentativa de
suicídio. Mas não houve esses esclarecimentos e então todos se queixaram do silêncio na casa:
113
Porque a mãe também não nos ajudou em nada a melhorar essa história... Não sai
nada, e nós estávamos em quatro (profissionais); (psicóloga)
Às vezes, eles acham que guardando pra eles vai ser melhor, né? (ACS)
Não sai nada, ou espera-‐se que saia algo mais claro, definido, aquilo que se quer ver e
ouvir? Se a Maria não falou o que se esperava, talvez tenha sido porque ela achou melhor,
como bem pontuou o ACS acima. O silêncio é uma forma de fala, que no caso podia dizer que
estava difícil conversar sobre o que aconteceu, até porque, Maria ainda não tinha vínculo com
o NASF, elemento que as próprias equipes pontuaram como fundamental na clínica.
O que Maria dizia explicitamente era eu quero esquecer e ficar boa. Parece que havia
aí um desencontro inicial: Maria pediu ajuda de alguma forma, seja através da sua tentativa de
suicídio, seja através da sua família, e os profissionais dispuseram-‐se a ajuda-‐la, mas, para isso,
queriam tocar em um assunto que ela queria esquecer. Seria preciso tempo e confiança,
então, para que uma aproximação maior fosse possível ali.
Vocês foram esperando que ela apontasse bem mais coisas e de lá não saiu nada, fala
um ACS no fim dessa segunda reunião, exercendo uma função de Apoio58, aos profissionais
que fizeram a VD. Novamente, de lá não saiu nada, ou havia dificuldade dos profissionais em
aguentar estar ali com a Maria, na sua fala silenciosa e na sua dor, sem saber exatamente
sobre sua história, o motivo de sua tentativa de suicídio e seu “prognóstico”? Esta segunda
possibilidade confirma-‐se na medida em que, quando Maria começou a se abrir e a falar mais
dela na VD, contando que tinha dificuldades com a sogra e isto a deixou mal, a psicóloga do
NASF, sem perceber, fez-‐lhe um corte:
Bom, então nós voltamos daqui a 15, 20 dias.
Por que voltar após quase três semanas quando o que se pretende é construir vínculo
com a paciente? Como querer que ela confie nos profissionais e fale de si se o intervalo de
tempo entre os encontro fica tão espaçado? Que continuidade foi pensada aí? Meses depois,
fiz tal questionamento à equipe, e a psicóloga então me respondeu:
Não sei se era pelo volume de casos. Quando tem necessidade, a gente vira, se
desdobra, mas é assim, do jeito que a família se comportou e do jeito como se
comportou naquela primeira VD, não achei que valia à pena voltar dali uma semana.
58 Nota-‐se que o Apoio não é exercido apenas pelo NASF, mas sim por quem desempenha o papel de questionar, refletir e ampliar as práticas que estão dadas, contribuindo para a transformação de um campo de ações. Foi o que o ACS fez neste exemplo: lançou mão de um comentário, que é analisador da dificuldade da equipe de estar com Maria nas suas reais possibilidades.
114
Se tivesse mais tempo para que ela (Maria) pensasse, elaborasse alguma coisa dentro
dela... Foi mais por isso que pensei. Tanto é que a gente falou ‘se você precisar de
alguma coisa, nos procure’. (...) E que ela pudesse pensar, porque naquele dia ela não
falava nada com nada, não que não falava nada com nada, mas ela não queria entrar
em contato com a coisa, mas não adianta você ficar insistindo se a pessoa não quer.
Em um contexto de muitos casos, muitas urgências e falta de apoio, os profissionais
podem querer resolver logo as demandas, encontrando rapidamente um caminho de chegada.
Mas a construção do caso implica espera, silêncio e desconexões, o que nem sempre é possível
nessa realidade, o que provoca retirada e afastamento prévios por parte dos profissionais em
relação ao caso (especialmente se este se referir a um episódio de crise), quando é preciso
tempo, continuidade nas intervenções e possibilidade de estabelecimento de confiança para
que o vínculo seja, de fato, estabelecido.
Na urgência de querer esclarecer o caso e resolver a crise da Maria, sem a equipe ter
ainda, de fato, condições para isso, a segunda VD foi marcada (com intervalo significativo de
tempo) e, enquanto isso, o NASF ofereceu à paciente a terapia comunitária59, sem se dar conta
de que este é um espaço grupal e de relativa exposição, coisa que Maria demonstrou não estar
disposta a fazer. Diante de recursos escassos, os profissionais oferecem aquilo que tem, que
não necessariamente é do que precisa o paciente, e a terapia comunitária foi uma tentativa de
cuidado na pressa de ajudar, ao mesmo tempo em que na dificuldade de fazê-‐lo.
É como se, nesse contexto de tanto percalços e em um caso que é de crise, a
capacidade de sonhar e criar dos profissionais ficasse em alguns momentos esvaziada,
impedindo-‐os de pensar, por exemplo, que o setting pode ser reinventado, e que talvez uma
VD em que estivessem presentes, no mesmo ambiente, quatro profissionais, Maria, sua mãe e
sua filha, não fosse a melhor estratégia. Tampouco puderam brincar com a frequência do
atendimento, perguntando à Maria quando ela queria conversar de novo com eles, arriscando
voltar na mesma semana ou na seguinte, recriando suas agendas, em vez de usar a frequência
que parece ser padrão ali (retorno depois de duas, três semanas).
Na segunda reunião da ESF P com o NASF em que se discutiu o caso Maria, um mês
após o grupo ter decidido assumi-‐lo, a ACS responsável traz uma novidade:
Agora a Maria já está morando na casa dela, que é na outra área, da ACS de outra
ESF;
59 O NASF ofereceu terapia comunitária à Maria em todas as VD que lhe fez; Maria não foi a nenhuma sessão dessa terapia.
115
Mas gente, ela ia ficar tanto tempo na casa da mãe... (psicóloga)
E agora, que equipe irá se responsabilizar pelo caso Maria? É o que pergunta a
psicóloga do NASF mais adiante, enquanto planejavam as intervenções futuras:
Depois tem que ter uma certeza, de como a gente vai acompanhar. (...) Porque assim,
ela já teve um começo de vínculo com a gente, começo. Se ela não ficar na casa da
mãe, a gente mantém o atendimento, ou de qualquer forma tem que passar para
outra equipe? Como é que vocês pensam?
Eu acho que poderia manter, pelo menor por um tempo, pelo menor pra gente
conhecer um pouco mais; (enfermeira)
Então legal; (psicóloga)
Porque tem um vínculo com a mãe (da Maria). A gente tem um vínculo com ela, a
preocupação também é com ela; (enfermeira)
Porque senão fica meio atrapalhado, a gente vai para o segundo encontro e em pouco
tempo, ficou esse combinado com ela, e depois começar a ir outras pessoas, porque
mudou de área... (psicóloga)
(...)
E também assim, é uma paciente que sempre foi nossa, agora teve essa mudança de
situação, mas ela sempre foi nossa. (enfermeira)
Se o serviço prescreve critérios formais para o modo da assistência, como o de
demarcação geográfica do território, o NASF questiona se isto vale no caso Maria, e a ESF P,
impulsionada pelo NASF, “transgride” então essa lógica do PSF, em nome do vínculo com a
paciente. Neste exemplo, nota-‐se que, apesar de sentir como difícil com contato com a Maria,
o dispositivo Apoio contribuiu para um movimento de ampliação da clínica realizada nesse
contexto.
Criaram uma estratégia contra a possibilidade de prescrição de uma conduta e de uma
ação protocolar, o que é trabalho na clínica ampliada, como vimos com Cunha (2005).
Analogamente, Campos (2007) refere-‐se à presença da plasticidade nesta clínica, no sentido de
que a equipe realiza ações específicas, em função da singularidade do caso, e não das regras
gerais, e no exemplo acima, o grupo caminhou naquela direção. Além disso, a clínica ampliada
aposta no vínculo como condição de trabalho.
116
Como em uma experiência de transicionalidade, parte-‐se das referências já conhecidas
para, no contato com outras, criar-‐se um terceira, que se produz a partir daquilo que se tem,
mas que é inusitado e original. Algo desta natureza esboça-‐se quando NASF e ESF P decidem,
juntos, atender Maria, apesar dela já morar em outra área do território. É importante ressaltar
que, se tal ampliação foi possível, isto se deve tanto ao NASF quanto à ESF P; no caso de uma
experiência de transicionalidade, é preciso implicação e transformação de ambas as realidades
envolvidas para que uma nova possa ser criada, a partir delas.
Mas há um movimento ambivalente do grupo: ir ao encontro da Maria, apostando na
construção do vínculo com ela, ou desencontrar-‐se dela, pelo impedimento de escutar aquilo
que ela podia falar.
Na segunda VD realizada, repete-‐se o mesmo setting anterior: foram praticamente os
mesmos profissionais, participaram da cena as mesmas pessoas da família e o enquadre era o
mesmo. Na reunião posterior60 a esta intervenção, o NASF conta que Maria estava melhor,
pretendia trabalhar e perguntou sobre o programa de planejamento familiar da UBS M, pois
queria trocar de método anticoncepcional; não foi combinado com ela um retorno, mas sim
que conversariam com a equipe e que estavam disponíveis caso ela precisasse de ajuda até o
próximo retorno, ainda por combinar.
A continuidade do caso ficou “em aberto”. Por que não já marcar este retorno ali com
a paciente, ou assegura-‐la de um próximo atendimento ou VD, deixando pendente apenas a
data a se definir? Foi preciso buscar mais Apoio para que os próximos passos fossem pensados.
A psicóloga e a TO do NASF discutiram o caso Maria com o restante de sua equipe, em uma
reunião do NASF, o que lhes possibilitou pensar em novas estratégias: a importância de olhar
para o irmão da Maria e de pensar em uma consulta da enfermeira da ESF P sobre
planejamento familiar com a Maria.
Na reunião seguinte para discussão de caso com a ESF P, a dupla do NASF sugeriu à
enfermeira realizar essa consulta individual com a Maria e propôs ao grupo marcar uma nova
VD conjunta para Maria, tentando garantir que seu irmão estivesse junto neste momento.
Maria pediu apoio à sua mãe, que o pediu à sua família, que foi (através do marido da
Maria) à UBS procurar o médico da ESF P, que então compartilhou o caso com sua equipe que,
por sua vez, pediu apoio ao NASF, que por fim solicitou-‐o ao restante de sua própria equipe.
60 Terceira reunião entre NASF e ESF P em que foi discutido o caso Maria.
117
Um caso clínico composto por pedidos de ajuda, em um ciclo encadeado e que, quando se
completa, parece acionar possibilidades criativas de cada uma das partes aí envolvidas.
Parodiando Carlos Drummond de Andrade, há uma Quadrilha em movimento. Se na
poesia João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que
amava Lili (...), que casou com J. Pinto Fernandes, que não tinha entrado na história, no caso
Maria, cada ator chama outro para compor a cena, ampliando a possibilidade de Apoio.
Mas, ainda quando isto se dá, algo parece se perder. Até a reunião seguinte, a quarta
em que se discutiu o caso Maria, nenhum dos combinados feitos anteriormente foi cumprido,
pois as equipes, que se encontram apenas uma vez por mês em reunião, demoraram tanto
para dar continuidade ao caso e encontrar uma data comum nas agendas para o retorno, que
Maria começou a trabalhar, não disponibilizando mais horários para uma consulta ou VD.
Como, agora, como dar seguimento à construção coletiva do caso?
Se por um lado a Quadrilha de Drummond é aberta e contempla um movimento
criativo de transformação dos personagens, que nos surpreenderem com o estabelecimento
de novas parcerias e do aparecimento de um novo personagem na história, no caso Maria, às
vezes, a abertura do grupo que o compõe culmina em esvaziamento, como se nota no
exemplo a seguir, quando, nessa quarta reunião, a ACS traz notícias sobre Maria:
A mãe dela falou que ela piorou, que ela passou mal, está tomando remédio, mas
mudou a quantidade, e está se sentindo angustiada.
As equipes irritam-‐se, especialmente a enfermeira, que diz:
Então aí fica difícil, né? Não está bem, mas isto não está saindo da boca dela, está
saindo da boca da mãe. A gente se dispôs a fazer visita, ela não tem tempo, o que a
gente vai fazer?
Para Jean Oury, as demandas não estão prontas e não são explícitas; é preciso que
sejam analisadas, e não objetivadas, se a proposta for ir ao encontro do paciente:
“Logo, não se deve cair numa espécie de objetivação e pensar que esta demanda vai
ser vista. (...). Há, então, um nível microssocial, algo da ordem de uma dialética
possível das prestações e contraprestações, as quais se articulam sob a forma de
demandas, formalizadas em trocas, contratos, etc.” (2009b: 229).
Estava difícil o contato com a Maria, talvez pela singularidade do seu caso, do contexto
e da relação entre as equipes. Mas, independentemente disto, a demora no retorno e a
118
escolha por uma intervenção a partir de uma continuidade quase descontínua contribuíram,
aqui, para um desencontro entre a Maria e ESFP/NASF.
Da mesma forma que o NASF não insistiu no contato com a Maria, ela também não o
fez, talvez porque, desde o início, o que ela queria era esquecer o que se passara e não falar
sobre isso, além de também ter respondido à forma como a equipe estava lidando com ela.
Nas sábias palavras de Costa:
“Disciplina no cuidado de si pode ser uma coisa próxima daquelas (classes sociais) que
foram socializadas num sistema de assistência médica, familiar e escolar, ou de
educação artística e esportiva, onde a regularidade de dia e hora é indispensável à
manutenção da boa forma física e moral. A disciplina horária conhecida pelas camadas
populares é restrita, em geral, às atividades domésticas ou aos horários de trens e
ônibus. A equação se inverte: cedo no trabalho e sem tempo para cuidar de si” (1994:
33).
Não é possível impor à Maria um modo de cuidado; na clínica ampliada trabalha-‐se a
partir da singularidade do caso, então é preciso que a população atendida seja compreendida
no seu contexto de origem a nas suas necessidades, e para Maria, o trabalho parece ter sido
mais necessário do que as consultas ou VD. Ela arrumou um emprego, em um laboratório de
manipulação, e desde então não disponibilizou nenhuma data possível para consulta ou VD.
Para se construir um espaço potencial, a partir do qual é possível criar experiências de
transicionalidade, é preciso encontro, o que implica momentos de união e de separação, e
para isto, Winnicott (1975) diz ser necessário um ambiente que ofereça suporte e confiança.
Mas, se a “realidade externa” não oferece tais condições, em vez de se aproximarem, os
profissionais, inicialmente já se afastam da paciente.
Por mais que tenham escolhido trabalhar a partir do vínculo, a continuidade do
trabalho e da relação terapêutica foi atravessada pelas dificuldades que a realidade e o caso
impõem às equipes, e o tempo “do caso” foi então marcado por rupturas e descontinuidades,
de modo que o próximo, e último, contato que acompanhei das duas equipes com a Maria
demorou quase um mês desde essa quarta reunião.
Como sugere Winnicott (1975), a criatividade só é possível a partir da tradição, de
modo que os profissionais, então, partiram daquilo que já sabiam e conheciam para, depois,
criarem outras estratégias. O médico partiu da busca dos sintomas e da história, como nos
disse na primeira reunião em que o caso foi discutido:
119
A mãe dela falou que antes de acontecer isso ela estava estranha, ouvindo vozes, com
comportamento estranho. Antes tinha um relacionamento bom, não tinha problema
nenhum. Disse que nunca ouviu vozes antes, isso é recente. Mas ela não se lembra de
nada. Eu perguntei para ela por que ela fez isso e ela disse ‘não sei, não lembro’.
A psicóloga do NASF fez a defesa de um campo “psi”, valorizando o mundo interno, e
os ACS recorreram à sua sabedoria sobre loucura como “doença dos nervos”, sobre o território
e o cotidiano das famílias.
Mas, em todas as reuniões de discussão de caso que acompanhei, os profissionais
valeram-‐se principalmente do recurso da VD; o NASF ofereceu terapia comunitária a grande
parte dos pacientes, e não vi nenhum caso em que o NASF fizesse atendimento ou VD sem a
sua dupla de referência presente.
Retomando Winnicott (1975), partir da tradição não implica um processo de repetição
e cristalização de saberes e práticas, mas, ao contrário, é possibilidade de criação. Por isso, que
outras estratégias clínicas há além da VD, consultas e terapia comunitária? O desafio é, dessas
tradições, criar novas estratégias, transformando modos de clinicar instituídos em instituintes.
A reunião entre as equipes não precisa ficar restrita à data estipulada, pode acontecer,
também, em outros momentos, pontuais, a partir das demandas dos profissionais. A terapia
comunitária não precisa ser indicada a todos os pacientes, mas sim apenas àqueles que de fato
a desejam e puderem aproveitar esse recurso. Da mesma forma, pode-‐se brincar com as
agendas, os settings, a frequência e o modo dos atendimentos, bem como com a composição
dos profissionais, criando novas possibilidades, a partir das demandas, e não das burocracias.
Lembrando as considerações de Winnicott (1975) sobre a dificuldade de brincar e criar
em uma realidade cujo ambiente é ameaçador, podemos pensar que os profissionais
envolvidos no caso Maria estão em uma realidade que ameaça, é descontínua e instável, de
modo que preferiram retornar à casa da Maria quase três meses depois da primeira VD à dupla
do NASF separar-‐se entre si e antecipar a visita. Da mesma forma, permaneceram oferecendo-‐
lhe terapia comunitária, através da ACS, ainda que ela não tivesse comparecido após o
primeiro convite; mantiveram a VD com o mesmo setting inicial e, nas discussões, caminharam
na construção do caso tentando entender logicamente a história da Maria.
O NASF explica, na reunião de restituição do caso, após eu ter feito alguns
questionamentos, porque prefere atender sempre com a sua dupla presente:
120
Os casos a gente procura atender sempre junto, porque tem férias, ou... Pra gente não
ficar só.
Mas, quando há um ambiente seguro e um grupo constituído, nem sempre é
necessária a presença física de todos que deste fazem parte para que o caso permaneça na
equipe. O fato da dupla do NASF preferir, quase sempre, estar junta nas intervenções, talvez
seja muito mais por demanda própria de se sentir apoiada do que pela necessidade do caso;
como já dito pela própria equipe do NASF, este precisa de apoio para poder Apoiar.
Isso se confirma quando lembramos que, quando a psicóloga e a terapeuta
ocupacional do NASF discutiram o caso Maria com o restante de sua equipe, passaram a ter
outro olhar para o irmão da Maria e valorizaram a importância de uma consulta desta com a
enfermeira. Ao ter sido Apoiada, a dupla do NASF pôde pensar em novas estratégias; talvez
tenha sido preciso retirar-‐se minimamente daquela realidade, buscando nutrição em outra,
capaz de dar suporte e apoio, para que um processo criativo fosse possível.
Entretanto, quando retornam ao caso, na reunião com a ESF P, a criatividade escapa, e
é como se não tivessem mais alternativas. Daí a irritação da enfermeira frente a um novo
pedido de ajuda por parte da ACS. Nesta reunião, foi preciso outro Apoio61 para que o grupo
pudesse, a partir de uma situação de impasse como a que se encontrava, reencontrar sua
própria potência criativa e compreender o caso a partir de outro ângulo:
Por que será que é a mãe que está vindo e não ela? (pesquisadora)
Na primeira visita, ela queria falar, mas a mãe não deixava. Na segunda, ela já falou.
Então eu acho que se ela estiver sozinha, ela falará; (auxiliar de enfermagem)
Foi na segunda visita que ela falou bastante. E a gente ficou de remarcar, mas como
ela disse que ia voltar a trabalhar, ela ficou de ver os horários para ver se era o dia
todo. Porque aí não dá, você ir até lá e não ter ninguém não dá. Vamos ver se ela vem,
porque a mãe é portadora dessa família, né? (psicóloga)
Produziu-‐se uma abertura neste campo: reconheceram que a relação entre Maria e
sua mãe compõe o caso e o NASF chamou atenção para o sistema familiar do qual a paciente
faz parte. A conversa desenvolve-‐se e outros assuntos são tratados: a psicóloga do NASF diz
que verá um horário com a terapeuta ocupacional, que não pôde estar presente nesta reunião,
para fazerem uma nova VD, a ACS relembra que a Maria está angustiada e a psicóloga pontua
que olhar para a angústia ser bom.
61 Neste caso, oferecido por esta pesquisa.
121
Retomo, então, minha pergunta, acrescentando mais elementos:
Foi a mãe que veio, foi ela quem pediu ajuda para a filha. Será que esta mãe está
querendo falar? (pesquisadora)
Será que não é a mãe que está angustiada porque a filha está o dia inteiro fora?
Porque a mãe é superprotetora, via ela ali do lado, agora... (auxiliar de enfermagem)
É verdade. A gente pode marcar um atendimento para a filha... (psicóloga)
E outro para a mãe! (interrompe a enfermeira)
O grupo pensa, então, em uma data para ir à casa da mãe da Maria e em outra para
atender a própria Maria, na UBS. Criaram uma nova estratégia e, um mês depois, realizamos
essas duas intervenções: retornamos à casa da mãe de Maria, onde também conhecemos seu
irmão, e Maria faltou no trabalho para ir à consulta, individual, na UBS M. Foram precisos um
tempo de espera inicial e um novo Apoio para o NASF e a ESF P darem continuidade à
construção do caso Maria, criando novas formas de compreensão e aproximação desta moça e
sua família, quando as anteriores não mais se faziam suficientes.
Tempo este do qual Maria também precisou, estando mais segura de que isso não
voltaria e com mais estabilidade no seu trabalho, de modo que só então pôde pedir um dia de
licença para ir à UBS, em consulta. Possivelmente todos os atores envolvidos no caso Maria
sentiram medo de entrar em contato com isso, na incerteza, no mistério e na irracionalidade
própria à vida emocional que compõem um momento de crise, aqui marcado pelo episódio de
uma tentativa de suicídio.
Como diz Andreoli, diante da crise, o paciente “necessita de cuidados precisos, perda
da sua história que desaparece com a urgência, estado traumático dos parentes e angústia da
equipe diante da loucura” (1998: 28). E o autor considera que, nesse processo:
“O desamparo dos terapeutas, o desabamento dos sistemas de representação, a perda
do interesse pela interação com outrem, a dificuldade de encontrar o paciente, de o
tratar e finalmente de imaginar um projeto de tratamento que lhe convenha, são as
múltiplas facetas do que habitualmente se chama crise” (1993: 41).
É comum e compreensível, então, que os profissionais quisessem afastar-‐se da Maria.
Na reunião em que houve a restituição da pesquisa em torno do caso, ao relembrarmos as
intervenções que já tínhamos feito e o que ainda caberia fazer, coloco ao grupo outra questão:
122
Vocês falaram em dar um diagnóstico, conhecer a família e escutar. E do que vocês
acham que a Maria precisa? (pesquisadora)
Ela que vai me dizer; (enfermeira)
Isso que veio no meu pensamento. Ela não fala e eu vou ter que ficar oferecendo? Não
tem como você oferecer uma ajuda pra ela; (ACS)
Você pode oferecer uma ajuda, dizer ‘eu estou aqui’, mas especificamente o que, ela é
que vai ter que dizer ‘eu quero isso’; (enfermeira)
Enquanto ela não disser ao certo ‘é isso’, não tem como trata-la realmente, ao certo,
‘vamos fazer desta forma’; (ACS)
Então, porque se ela chegar nesse atendimento e disser que está bem e não precisa de
nada, a gente vai... lógico, a gente sempre acaba insistindo e tentando tirar alguma
coisa. Mas se ela insistir no não e disser ‘estou bem, estou trabalhando’, o que a gente
faz? (enfermeira)
Se na reunião anterior houve ampliação na capacidade de pensar e imaginar da equipe
em relação ao caso, nesta, nota-‐se um movimento de retorno à expectativa de um pedido de
ajuda claro e bem formulado por parte direta da Maria, esperando-‐se ouvir dela algo claro e
específico. Uma espécie de tentativa de nomeação e retirada da crise, frente ao insuportável
que ela traz.
Há dificuldade em poder sonhar a Maria como parte de um caso clínico em construção,
o que implica caminhar por terrenos desconhecidos, confusos e sem nitidez, deixando a
imaginação vir à tona, como em um sonho, para que se compreenda o paciente e os efeitos
este provoca na equipe envolvida.
Entretanto, quando esse processo não é possível, corre-‐se o risco de realizar uma
intervenção que vise a retirada da crise, ou o rápido reordenamento da situação e nomeação
dos fatos, o que, para Knobloch (1998), é a perda da oportunidade que a crise coloca ao sujeito
de reposicionar-‐se em relação à própria vida. Frente ao sofrimento de permanecer na crise da
Maria, a sua história ainda é pensada em ordem cronológica pelas equipes no momento de
restituição da pesquisa:
A gente estava tentando conversar para lembrar um pouquinho do antes, né? Por que
ela casou, como era... buscar antes disso como era, para entender; (enfermeira)
Por que aconteceu isso? Buscar o antes, a história antes, pra chegar no final. (ACS)
123
Talvez fosse esse antes que esperavam ver o ouvir da Maria desde a primeira VD, por
estarem também amparados na tradição clínica de colher histórias pregressas, ainda que ali
tentassem construir uma intervenção coletivamente. É quase como se a equipe que cuida de
quem está em crise, ou do “louco”, para tomar emprestada esta expressão, já que estamos
nos debruçando sobre um caso de saúde mental, precisasse fazer um esforço de continuidade,
nomeação e simbolização dos fatos, frente a uma experiência tão disruptiva com a realidade.
Partindo desta concepção, Pelbart refere-‐se à loucura como:
“(...) um sofrimento que é da ordem da desencarnação, da atemporalidade, de uma
eternidade vazia, de uma ahistoricidade, de uma existência sem concretude (ou com
excesso de concretude), sem começo nem fim, com aquela dor terrível de não ter dor,
a dor maior de ter expurgado o devir e estar condenado a testemunhar com inveja
silenciosa a encarnação alheia” (1993: 20).
O caso Maria não poderia, então, ser construído de outra forma que não pelas
tortuosidades, incoerências lógicas, mistérios e apagões referentes à história e à crise da
Maria. Embora tenha sido difícil para os profissionais suportar essa ahistoricidade e confusão
da crise da Maria, ela e sua família mostraram-‐nos estar diante de uma nova realidade, como
se nos lembrando do potencial de abertura criativa presente em um episódio de crise
(Knobloch, 1998).
Na última VD que realizamos na casa da mãe da Maria, ela disse que sua filha estava
bem, trabalhando e que seria promovida. Seu irmão estava presente e disse-‐nos que estava
tudo bem; tímido e silencioso, não tinha demandas aparentes. O NASF perguntou-‐lhe um
pouco sobre sua vida, e ele contou que ia à escola, gostava de assistir televisão e de brincar na
rua; perguntou-‐lhe ainda sobre seus sonhos futuros, e então ele disse:
Eu quero ser bombeiro, para salvar vidas.
Brincamos com ele, dizendo que isto já tinha experimentado um pouco, ao ter ajudado
a salvar a sua irmã. Ele sorriu e concordou, e logo voltou a assistir televisão. Nesta cena, todos
puderam sonhar: o irmão da Maria, o NASF e a ESF P, que brincaram com uma realidade dura
e mortífera, transformando-‐a em um projeto futuro. Se para Winnicott (1975) uma experiência
de transicionalidade refere-‐se àquela em que é possível, também através da brincadeira,
acessar novas esferas de si e do mundo, criando novas saídas na cultura, temos aqui um
exemplo de quando, na prática, isto acontece, ou ao menos se inicia.
124
Esclarecida a questão da medicação62, conhecido o irmão da Maria, que
aparentemente estava bem, e sem mais demandas de sua mãe, como proceder ali? Instalou-‐se
um silêncio entre todos. Era hora de ir embora? Podia ser. Mas ainda não estávamos
convencidos de que Maria estava bem, ou ao menos eu, como pesquisadora e clínica63, não
estava. Tomei então uma postura mais ativa e perguntei à mãe da Maria aonde fora parar a
tristeza e o sofrimento da sua filha, que deviam ser grandes para que ela enfiasse uma faca no
próprio peito. Como assim, não entendi, respondeu ela. Repeti a pergunta, esclarecendo-‐a, e
ela, desta vez, falou bastante.
Contou que Maria sempre foi uma menina apegada ao seu pai, e que ela tinha de tudo,
não precisando se preocupar com muitas responsabilidades64; mas mudou muito depois que
casou, isolando-‐se, e ficou ainda mais diferente quando se mudou para a casa no quintal da
sogra, por quem se sentia humilhada. Maria queixava-‐se disto frequentemente à sua mãe; não
queria mais sair de perto dela e passou a se isolar cada vez mais. Sua família, preocupada com
o novo comportamento da Maria, marcou consulta com psiquiatra particular, mas no dia desta
consulta, Maria ficou transtornada, com pavor de ficar sozinha e de ser internada em um
hospital psiquiátrico, até que, em um instante em que sua mãe virou-‐se, ela alcançou uma faca
na bancada da cozinha e enfiou-‐a contra o próprio peito. Sua mãe segurou seus braços e
começou a gritar; o irmão veio ajudar e em seguida vieram vizinhos, até que um deles levou-‐a
para o hospital geral da região.
Pela primeira vez no caso ficou evidente que Maria tinha medo de ser internada. Junto
ao seu desejo de esquecer isso e à sua crença no trabalho como remédio, soma-‐se o medo de
uma internação psiquiátrica e, possivelmente, de todo o estereótipo de doente mental que
está acoplado nesta intervenção. Combinados, esses aspectos contribuíram para que Maria
quisesse distância do psiquiatra e depois do NASF com a ESF P. Mas, quando saiu da crise e
reconheceu na sua identidade, que não era a de um louco como doente mental, ela pôde
retornar à UBS e conversar mais abertamente com esses profissionais.
Em consulta na UBS, quatro meses depois do início da construção do caso, Maria
contou-‐nos que estava muito feliz, pois agora tinha um trabalho (já há três meses), ganhava
seu próprio dinheiro, estava conseguindo cuidar de sua filha e ela o marido pretendiam mudar
62 No início desta terceira VD, a mãe da Maria contou sobre a medicação da filha, dizendo que esta parou de tomar o azulzinho, e estava usando só o branquinho e o rosinha, como já foi apresentado e discutido no item anterior. 63 Incluo aqui as considerações de Costa (1989b) sobre o desencontro frequente entre os profissionais da saúde e a população atendida no que se refere a diferentes modos de cuidar de si, e modo que entendo que, neste momento, minha intervenção refere-‐se tanto a uma formação que pressupõe um dado modo de evolução e melhora de um episódio de crise, quanto a uma tentativa de aproximação do universo da Maria. 64 Nota-‐se nesta fala um discurso semelhante ao dos ACS.
125
de casa. Bem mais comunicativa, falou do presente e do passado, explicitando como a
experiência de ter vivido isso foi sofrida, mas também reordenadora, como pode acontecer em
uma situação de crise:
Antes eu guardava tudo para mim, engolia quieta (...). Os outros faziam e desfaziam o
que queriam. Hoje não. Me sinto mais segura, mais feliz.
(...)
(Antes) Não consegui nem reagir nem dominar a mim mesma. Eu queria fugir
daquela situação.
(...)
O emprego veio na hora certa.
(...)
Não é fácil olhar pra trás e se lembrar de tudo o que aconteceu. Às vezes eu quero
esquecer; eu lembro e eu choro.
Diz que hoje o marido é mais atencioso e que:
(Isso) Foi bom para encaixar as coisas que estavam fora do lugar. Hoje eu já consigo
expor o que eu penso e o que eu deixo de pensar. (...). Antes era como se a autoestima
estivesse muito baixa, hoje não.
Desde a crise, Maria já não mais engole tudo para si: recusou a figura do louco como
doente mental, que fica internado em um hospital psiquiátrico e toma remédios com nomes
estranhos, recusou o Haldol e as consultas que poderiam atrapalhar o seu novo emprego.
O desenrolar dessa história aconteceu ao longo de quatro meses, no processo de
construção do caso e conforme Maria reposicionou-‐se no mundo. Todos precisaram de tempo
para a desconstrução e reconstrução disso, que de amorfo e fonte de sofrimento que era,
possibilitou a criação de um novo contorno, como uma oportunidade para a Maria de
reordenar-‐se e singularizar-‐se, como se dá em uma experiência de transicionalidade.
Se Winnicott (1975) entende essa experiência na cultura como aquela em que se cria
um terceiro elemento, singular, que não é nem um dos envolvidos na relação, mas outro, que
nasce entre eles, na composição de uma nova forma de ser, no exemplo aqui em questão
alguma criação foi possível para Maria. O que não significa ausência de sofrimento, tanto que,
126
nessa consulta, ela queixou-‐se de ansiedade, o que não é de se estranhar tendo em vista a
abertura para um mundo novo diante dela.
Por outro lado, no processo vivido entre o NASF e a ESF P houve dificuldade de
“transicionar” frente a crise da Maria, talvez porque o contexto em que essas equipes estão
inseridas é de uma crise permanente, em que há um somatório de urgências e demandas, sem
apoio suficiente, com desconfiança no ambiente e descontinuidade das ações. Ainda assim, as
equipes não afirmaram o paradigma manicomial, já que não a diagnosticaram como
esquizofrênica e não a encaminharam para um especialista que pudesse interna-‐la ou fazê-‐la
sentir-‐se doente mental. Nesse processo, a presença do NASF foi importante, como diz a
enfermeira da ESF P na, quarta reunião de discussão do caso:
Porque assim, eu tenho o meu olhar, cada um tem o seu olhar, e aqui é verdade, a
gente desanima, porque você propõe isso, não faz; marca médico, não vai. E a gente
vai se sentindo impotente.
(...)
Para mim, o apoio é de me ajudar a pensar em outras possibilidades.
Evidencia-‐se o dispositivo Apoio do NASF como ferramenta de enfrentamento de uma
realidade, seja para transforma-‐la, ao ampliar a clínica para além da intervenção
medicamentosa e das compreensões organicistas e reducionistas sobre as doenças, seja como
apoio aos profissionais, tendo em vista tantas frustrações e dificuldades que estes vivem no
seu cotidiano de trabalho.
Frente a um desamparo ambiental, todos estavam um pouco impedidos de crescer e
de sonhar (acordados). Para Maria foi difícil ingressar no universo do casamento e no universo
das responsabilidades, e para o NASF e a ESF P foi sofrido deixar-‐se construir o caso a partir da
sua singularidade, utilizando um novo repertório clínico, com continuidade e estratégias
próprias, amparadas na tradição, mas ao mesmo tempo criativas e particulares.
Na reunião seguinte, a psicóloga do NASF diz, com relação à expectativa que tem do
trabalho clínico que constroem naquela realidade:
O meu desejo é que as pessoas pudessem, de alguma forma, pegar a sua vida para si.
Não são pacientes, são pessoas. Porque eu acho que a gente, da saúde, faz um
caminho que acha que todo mundo é doente, física ou mentalmente, e que nós temos
o poder de sarar todo mundo, e isso não é verdade. Então eu acho que, quando essa
moça (a Maria) pegar a vida dela na mão, acabou, ela não vai precisar mais da gente,
127
porque ela vai contar com os recursos dela. Então assim, espero que o que a gente
faça aqui em comum seja dar ao outro autonomia de ser ele mesmo, não precisar
recorrer a remédios, terapia, um monte de coisas que a saúde oferece (...).
Trata-‐se de uma crítica ao próprio campo da saúde, que tem muitos recursos a
oferecer, mas nem sempre condizentes com a cultura de outras classes sociais, a mesma feita
por Costa (1989b), como vimos no item anterior. A psicóloga retoma ainda a consideração do
paciente no sentido de pessoa, cidadão do mundo, para além de receptáculo do dispositivo
clínico tradicional. Como diz Saraceno, o processo de reabilitação não é um percurso as
desabilitação à habilitação, mas sim:
“um conjunto de estratégias orientadas a aumentar as oportunidades de troca de
recursos e afetos (...) / (...) um processo que implica abertura de espaços de
negociação para o paciente, para sua família, para a comunidade circundante e para os
serviços que se ocupam do paciente” (1999: 112).
Mais adiante na reunião, a psicóloga, explicita sua concepção de clínica, explicando o
porquê da continuidade escolhida nas intervenções do caso Maria e a composição da equipe
nesse mesmo processo:
O atendimento da família não é só quando a gente vai. A ACS foi lá várias vezes, nesse
período de 20 dias (entre uma VD e outra). Não é que ela ficou ‘abandonada’ ali.
Tinha um olhar. E eles sabem que eles (ACS) podem chamar que a gente vai. Essa
equipe (ESF P) faz coisas sozinhas, nem sempre eles nos chamam, mesmo nas
situações de emergência. (...) porque quando a gente trabalha na equipe, a gente
divide coisas. O ACS é quem está lá, inevitavelmente ele vai passar na frente daquela
casa, ela está lá, não tem como não ver.
Trata-se de uma clínica ampliada? (pesquisadora)
É uma clínica ampliada. Porque ela é nossa, ela não é só da dupla do NASF. A auxiliar
de enfermagem tem uma compreensão muito boa (...). A gente vai dividindo isso,
senão fica muito pesado mesmo.
Mas, como lembram Barros & Passos (2000), a transdisciplinaridade não significa
diluição de fronteiras, mas reordenamento destas. Em outros termos, Campos
(2007) refere-‐se à ampliação da clínica não como perda da especificidade do profissional, mas
sim a complementariedade entre diversos núcleos de saber, para a intervenção em um campo
complexo e multifacetado.
128
O caso Maria foi construído em um campo de trabalho comum ao NASF e à ESF P,
naquilo que se refere à saúde no PSF e às especificidades da saúde mental, de modo que nisto
as especialidades dos profissionais tem que ser aproveitadas, e não rechaçadas. A VD feita
pelo ACS é diferente daquela feita pelo psicólogo, terapeuta ocupacional, enfermeiro ou
médico; assim como a consulta da enfermeira não é a mesma da do médico, como lembrou a
própria enfermeira da ESF P.
Um grupo de trabalho heterogêneo, cujo desafio é criar uma clínica que, desta
heterogeneidade, possa promover singularidades, como sugere Oury, ao se referir à sua
experiência em La Borde:
“Nosso objetivo é que uma organização geral possa levar em conta um vetor de
singularidade: cada usuário deve ser considerado, em sua personalidade, da maneira
mais singular. Daí um tipo de paradoxo: colocar em prática sistemas coletivos e, ao
mesmo tempo, preservar a dimensão de singularidade de cada um” (2009a: 19).
Desafio que a clínica ampliada enfrenta, na medida em que se vale de um campo
comum de saberes e intervenções, aproveitando as especificidades de cada núcleo que aí se
colocam, e em que pretende ser singular, de modo a reconhecer e valorizar diferentes saberes,
e não apenas os “científicos”.
Vimos como para se caminhar em direção a esse modo de clinicar, o Apoio do NASF foi
importante. Cabe aqui arriscar que, no caso Maria, tentou-‐se construir uma clínica ampliada
em saúde mental não só a partir de uma equipe multidisciplinar, ou a partir de novos settings
que não o do consultório tradicional, mas, talvez principalmente, a partir de uma clínica do
Apoio. Uma equipe deu Apoio à outra, e assim algum apoio foi dado à família da Maria.
E Maria, para da além de sua família e da UBS M, curiosamente também encontrou
apoio no laboratório de manipulação em que foi trabalhar; em vez de ingerir medicamentos,
agora ajudava a encapsula-‐los. Brincando com a realidade, invertendo as posições antes
delimitadas de médico e paciente e descobrindo-‐se novos remédios e novos usos para eles, o
caso Maria mostra-‐nos uma nova possibilidade clínica. Não mais a do manicômio, nem apenas
a do PSF com o NASF, mas a do enfrentamento de todas essas, a partir também do cotidiano
da vida, dando aos remédios já conhecidos novos contornos.
Um caso em construção, um dispositivo em ação: o entrecruzar de forças distintas,
discursos heterogêneos, confusão de papéis, mistura de referenciais, aproximação e
129
afastamento simultâneos de uma dada realidade; ingredientes que compõem a clínica do caso
Maria.
Um modo de clinicar flutuante entre a disponibilidade e a indisponibilidade para ouvir,
entre o desejo dos profissionais em resolver o caso e o sofrimento pela impotência diante do
mesmo. Profissionais do NASF e da ESF P ocupam diferentes lugares nessa clínica, em
interstícios que tanto podem pegar carona nas forças transformadoras do dispositivo do Apoio,
quanto naquelas que são reprodutoras da clínica tradicional.
Para haver transicionalidade, é preciso apoio e também algum aspecto de onipotência,
na medida em que se sente potente para criar. Como considera Winnicott (1975), não há
experiência transicional quando não se pode confiar no ambiente e quando na há fenômeno
de ilusão, é preciso acreditar na própria capacidade de criação para então criar,
paradoxalmente, algo que já estava ali.
Maria acreditou na sua “intuição” de que o remédio trabalho era o melhor para si, e foi
trabalhar, usando a seu modo, da melhor forma para si, um emprego que lhe foi
disponibilizado. Saiu do lugar de “filhinha da mamãe” e tornou-‐se trabalhadora, sujeita, e não
assujeitada; agente, e não apenas “paciente”.
A ESF P mostrou-‐se potencializada com a presença do NASF, e o NASF cumpriu com
alguns aspectos do dispositivo Apoio, questionando alguns saberes e práticas da clínica
tradicional. Entretanto, diante de um ambiente que desampara e que traz vivência de
impotência, entre NASF e ESF P instalaram-‐se muitos momentos de esvaziamento do potencial
criativo dessas equipes, que em alguns momentos mostraram-‐se impedidas de viverem
experiências de transicionalidade.
É preciso transformar esta condição, oferecendo sustentação e amparo, melhor
dizendo, Apoio, para ambas as equipes, de modo a ser mais possível aos profissionais
resgatarem sua própria potência, alimentando as forças transformadoras do seu dispositivo de
trabalho. Quem sabe, então, será possível construir uma clínica que, no seu permanente
processo de ampliação, mantenha viva tanto sua capacidade transformadora de si quanto dos
atores que a compõem, sejam eles pacientes ou profissionais, podendo todos esses construir
experiências de transicionalidades.
130
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Do paradigma manicomial ao psicossocial, da saúde pública essencialmente curativa à
Saúde Coletiva, acompanhamos um movimento de transformação da clínica em saúde mental.
Se inicialmente a clínica foi produzida com o aparato cientifico da modernidade, na
individualidade do homem, nas dicotomias entre superfície e profundidade, objetividade e
subjetividade, e sobre o leito dos doentes, a partir de um discurso médico, como vimos com
Foucault (2006).
Posteriormente lançada a novos campos de domínio, houve uma movimento de
transformação na clínica, e atualmente produz-‐se uma clínica que é ampliada, pois não se
reduz às intervenções médicas, especializadas, ambulatoriais, medicamentosas ou
individualizantes, tampouco às propostas coletivas e epidemiológicas que anulam as
particularidades dos sujeitos. É heterogênea, capaz de aproveitar os recursos disponíveis e
combina-‐los, em função da singularidade do caso, e de atentar à saúde, às relações sociais e às
emoções, não apenas às doenças. Congrega ética e política, aposta no vínculo, na
corresponsabilidade e na criatividade para a produção de novos modos de subjetivação.
O movimento antropofágico no Brasil, na década de 1920, propunha a não submissão
à cultura estrangeira, dominante, e sim a autonomia e singularização de um povo, com cultura
e arte próprias. Uma luta política para a destruição da condição de colonizado e construção de
uma nova posição, de atitude e cidadania dos brasileiros. Uma luta feita não na negação do
exterior, mas sim na ânsia de devorar e “deglutir” todos os aspectos que o estrangeiro
disponibilizava, ingerindo aquilo que nos servia, e expelindo o que não nos dizia respeito,
como se dá em um processo de criatividade e singularização, em uma experiência de
transicionalidade.
Analogamente a esse movimento, o processo de transformação da clínica pode,
baseado na sua tradição, valer-‐se das heranças positivas de sua história e criar, a partir destas
e daquelas que já não cabem mais, um dispositivo que responda a outras demandas
contemporâneas, como a necessidade de ampliação da clínica tradicional. Assim sendo, pode
lançar mão da tecnologia existente e das especialidades técnicas disponíveis, o que inclui tanto
atendimento individual e especializado e recursos medicamentosos, quanto estratégias
grupais e programas de planejamento, prevenção e promoção em saúde.
131
Para Campos (2000), é preciso combinar núcleos de saberes nas práticas de um campo
comum. E se a proposta é de uma clínica ampliada, a singularidade do caso indicará a
necessidade de um núcleo profissional ou de outro, de uma modalidade de intervenção ou de
outra, e a temporalidade e o setting mais apropriados.
O caso Maria compôs-‐se de diferentes núcleos de saberes em um campo comum. O
médico pensou no diagnóstico de esquizofrenia e prescreveu medicação quando achou
necessário; a psicóloga lembrou que olhar para a angústia não é apenas fonte de sofrimento,
mas também recurso de melhora; a enfermeira afirmou a função de cuidado, prevenção e
promoção em saúde de suas consultas, e os ACS associaram a crise à ausência de trabalho e de
responsabilidades.
O médico da ESF P evidenciou seu olhar formado para as doenças e intervenções
medicamentosas, mas o questionou no que se refere ao processo de enlouquecimento, na
medida em neste se lembrou da presença do ambiente e das relações interpessoais. O NASF
legitimou este tipo de saber que compreende a loucura como inserida e produzida em um
contexto sociocultural, e relativizou uma prática psiquiátrica que diagnostica quase que
prontamente os pacientes; não apostou na hipótese de esquizofrenia levantada por esse
mesmo médico para Maria, e o restante da equipe confiou no NASF e sustentou a posição de
não lhe definirem um diagnóstico psicopatológico, o que não os impediu de seguirem com o
caso.
Estamos no campo da saúde mental, mas sem um diagnóstico psiquiátrico. Aqui, Maria
é protagonista de um caso que contempla: a história de uma jovem adulta, entendida na sua
integralidade e na sua inserção familiar e social, que tentou suicídio frente a uma vivência de
intenso sofrimento; a história de uma ESF que se insere em uma UBS atolada de demandas e
urgências cotidianas, com falta de profissionais, mas com o NASF para ser Apoiada; a história
de uma equipe de NASF, que quer produzir mudanças, mas se sente com poucas condições e
pouco apoio para isso, e a história desta pesquisa, que procurou conhecer a clínica da saúde
mental produzida entre todos esses personagens.
Nesse sentido, houve um processo de construção de caso, em que há uma confluência
de fatores e histórias envolvidos, e desconhecimento prévio do caminho a ser percorrido, mas
idéias e produções conjuntas que se dão no decorrer do processo. Uma possibilidade de
assumirem um caso de “saúde mental” libertando-‐se minimamente dos diagnósticos
psiquiátricos que impedem a presença do estranho e do desconhecido.
132
Entre NASF e ESF é possível construção de casos clínicos, entretanto, nem sempre em
um processo de brincadeira65, em que se subverte a realidade, no melhor dos sentidos, para a
criação de outra, com cara mais própria, autônoma e singular, não (ou menos) colonizada.
Nem sempre porque esses profissionais são parte de um contexto de trabalho que dificulta a
possibilidade de sonhar (mais). Um contexto em que há urgências e demandas incessantes;
falta de profissionais; carência de recursos e pobreza econômica; prática de “passagem de
casos”, que se inicia com a prefeitura e, não à toa, repete-‐se na rede Básica; falta de apoio dos
gestores (municipais e das OS); descaracterização do PSF; descontinuidades e rupturas nos
projetos desenvolvidos e pressões que brotam de diversas direções.
Não casualmente, no caso Maria vimos a dificuldade dos profissionais brincarem com
algumas de suas tradições, como settings, recursos intervenções e temporalidades já
conhecidas, para criarem possibilidades, antes não pensadas, mas sim exclusivas a esse caso.
Não apenas discussão de caso na data estipulada, VD, Haldol, retorno quinzenal ou terapia
comunitária, mas sim algo para a Maria, nas suas condições, bem como nas do território e dos
atores em questão.
Maria mostrou que queria esquecer isso que aconteceu com ela, não queria falar disso
enquanto não estivesse se sentindo bem de fato; tinha medo de ser internada, precisava
trabalhar e prescindir do Haldol. E os profissionais mostraram tanto disponibilidade para se
vincular a ela e ouvir sobre isso, quanto medo de rumar ao desconhecido, por se sentirem sem
amparo e confiança suficientes no ambiente em que estavam.
Como bem diz Knobloch sobre os fenômenos de crise:
“A crise é sempre extraordinária, traz-‐nos sempre algo de inédito, de imprevisto, como
a morte e a paixão... insólita e familiar. É sempre um choque, uma surpresa que nos
obriga a entrar nesse outro tempo, tempo-‐sem-‐tempo. Como equilibrar-‐se no instável
– drama de um e tragédia de todos”? (1998: 147)
À crise de Maria, soma-‐se a crise do contexto em que este caso produziu-‐se.
Possivelmente por isso assistimos a um processo de ir e vir dos profissionais em relação ao
caso, no sentido de movimentos de aproximaram-‐se e afastarem-‐se deste, bem como à
presença de ações e discursos que ora apontavam para uma clínica ampliada, ora para uma
65 Refiro-‐me aqui à brincadeira no sentido proposto por Winnicott (1971), tida como uma possibilidade privilegiada de transformação da realidade, num movimento de criação e de singularização dos sujeitos, em processo dialético com a realidade.
133
clínica tradicional, tanto se valendo de núcleos específicos para agir em um campo comum,
como, às vezes, diluíam esses núcleos, trabalhando multi e não transdisciplinarmente.
Apesar desses duplos movimentos, o dispositivo Apoio mostrou-‐se potente para a
ampliação da capacidade de reflexão clínica acerca do caso, por meio de comentários e
questionamentos como:
É habitual isso, você está acompanhando uma leva de psicóticos e de repente surtam
muitos?
É que o quadro de esquizofrenia (...) leva anos para dar.
Às vezes acham que guardando para eles vai ser melhor
Tem que ter clareza de como vamos acompanhar (...), ela já teve um começo de
vínculo com a gente.
Eu acho importante a gente entender, observar um pouco mais a relação dela com a
mãe.
Eles pensam que (remédio) é igual veneno: tomou matou, tomou, curou
A angústia às vezes ajuda a caminhar.
Vocês foram esperando que ela apontasse bem mais coisas e de lá não saiu nada.
Mas a novidade aqui é que, conforme observamos no canterior, essas falas foram
feitas por diferentes profissionais, de modo que o Apoio não foi sempre exercido pelo NASF,
mas também por outros atores que produziram esse dispositivo, sejam eles os ACS, o médico,
a enfermeira ou até mesmo esta pesquisa. De qualquer forma, o NASF foi reconhecido como
importante para apoiar as ESF, segundo o médico da ESF P na primeira reunião em discutimos
o caso Maria:
Quando foi criado o NASF, a gente reclamava muito, “saúde mental, psicologia,
problema social, a gente pede ajuda pra quem”? Acho que foi daí a idéia de criar o
NASF, uma equipe multidisciplinar para colaborar com o nosso trabalho.
De uma “portaria” criada verticalmente, a um sentido construído em uma realidade de
base, esta fala aponta como o NASF ressoa nesta ESF: uma colaboração que torna mais
palatável o trânsito no campo da saúde mental, uma espécie de clínica a partir de apoio, para
que se ampliem saberes e práticas.
134
“Como fazer uma clínica sem um modelo de clínica quando no fundo está todo mundo
atrás do melhor modelo? Quando já custa um esforço tão hercúleo achar um modelo, por que
tornar-‐se iconoclasta”? Pergunta-‐nos Pelbart (1993: 25). Talvez quando se reconhece a
falência de um presente instituído, que impõe ou dispõe trajes que já não servem mais ou que,
se servem, podem aprisionar e reduzir fenômenos da existência, como acontece com o atual
processo de remedicalização da loucura e de normatização da condição de bem estar
biopsicossocial.
Maria tinha medo de ser internada, possivelmente um medo de repetir, como exemplo
vivo, o silêncio ensurdecedor que por décadas marcou a história da loucura, que foi de um
monólogo da razão sobre a loucura, da psiquiatria sobre outras esferas da vida, como entende
Foucault (1999), e que esse caso mostra que ainda deixa marcas.
O PSF, na sua Estratégia, junto com o NASF, pode exercer esse papel importante de dar
seguimento ao interminável processo de Reforma Psiquiátrica, na medida em que atua no
território, e não em um hospital psiquiátrico, e pretende estabelecer com a população um
vínculo direto e contínuo, não realizando encaminhamentos e internações desnecessários.
Mas Maria nos faz um alerta: os recursos tecnológicos do qual o PSF pode lançar mão,
como uma medicação psiquiátrica ou a presença de um psicólogo, também podem ser
estigmatizantes, daí a importância de serem pensados em parceria com ela, em uma proposta
de clínica ampliada. Tanto que Maria transformou Haldol em azulzinho e não ofereceu uma
nova data para retorno em VD da ESF com o NASF; enquanto isso, construiu o melhor
“remédio” que vislumbrava para si mesma: um trabalho. Mas sabia que, no caso de uma nova
crise, essas equipes estariam disponíveis, o que talvez tenha sido garantia facilitadora para sua
ida a um novo mundo.
Movimento de autonomia que irritou os profissionais, que justamente querem escapar
de uma clínica que opera apenas na emergência. Entretanto, esse movimento só indica que é
importante haver um ambiente confiável e disponível para a saída de um episódio de crise.
Além disso, se lembrarmos das contribuições de Bezerra Jr. (1994) e Costa (1989b), Maria
insere-‐se em uma classe social que associa saúde a trabalho, e que tem outra concepção de
cuidado e tratamento e, portanto, outra forma de se vincular e frequentar a UBS. É preciso
então que entre essas equipes e a população construa-‐se algo em comum para que elas
possam, de fato, encontrar-‐se nas suas ofertas e demandas. Um trabalho de ampliação da
capacidade de reflexão e escuta em relação à população é fundamental para haja, de fato,
ampliação na clínica.
135
Para isso, é preciso não só Apoio entre o NASF e as ESF66, mas também Apoio para o
próprio NASF, de modo que esta equipe se sinta de fato amparada e confiante para trabalhar,
e que possa reconhecer no presente, e não apenas no passado, sua potência de vida e
transformação. É fundamental então à equipe do NASF que participou deste trabalho sentir-‐se
Apoiada efetivamente, de modo a poder realizar um trabalho de luto, no sentido se despedir
de um passado que é lembrado quase que como glorioso, e deixar acontecer um presente
instituinte, que, como realidade que é, é tanto frustrante quanto surpreendente.
Nas palavras de Roland Barthes, escritas em seu diário de luto após a morte de sua
mãe:
“Há um tempo em que a morte é um acontecimento, uma ad-‐ventura, e como tal
imobiliza, interessa, tensiona, ativa, tetaniza. E depois, um dia, já não é um
acontecimento, é um outra duração, comprida insignificante, inenarrada, abatida, sem
apelo: verdadeiro luto insuscetível de qualquer dialética narrativa” (2011: 48).
É preciso (se) deixar morrer para manter viva a dimensão de acontecimento da
existência. Acontecimento, para Foucault, é possibilidade da ruptura e desestabilização, e,
portanto, de novidade na vida; para o autor, são “(...) cesuras que rompem o instante e
dispersam o sujeito em uma pluralidade de posições e de funções possíveis” (2009b: 58).
Que esses profissionais possam se surpreender novamente com o presente, na
dimensão de acontecimento da morte, em que se suporta a desfiguração essencial ao
processo de desconstrução e criação, acessando a pluralidade da vida. Luto do passado e do
apego às práticas já conhecidas, para que estas, como tradição, sejam tomadas e
transformadas em direção à vivência de experiências de transicionalidade.
Transicionalidade que Maria experimentou ao “brincar” com o Haldol, criando deste o
azulzinho, e dando a ele novo contorno, encapsulando-‐o; driblou a condição de mulher dona
de casa e arrumou um emprego. Maria cresceu, aparentemente, conquistou autonomia, com
queriam os profissionais, e manteve a UBS M como um lugar de apoio disponível para, quando
precisar de novo, aciona-‐la, como se contasse com uma espécie de “clínica do Apoio”.
O caso Maria não é de remedicalização da loucura ou de biomedicalização da vida, mas
sim da criação de um novo modo de subjetivação: uma mulher que acede à sua condição de
66 Vimos que as ESF contam com o NASF para enfrentar alguns aspectos da realidade de saúde do território em que estão, e como o NASF também conta com as ESF para realizar o seu trabalho no território. Entretanto, esta equipe ainda assim reclama por falta de apoio.
136
trabalhadora e sente que assim ganha voz no mundo. Do silêncio da loucura à fala produtiva e
criativa de uma crise, da fuga à sanidade à busca de independência, e da prisão do manicômio
à “liberdade” da vida, Maria procurou criar uma língua própria, assim como tentou o
movimento modernista no Brasil, do qual fez bom proveito Manoel de Barros67, que disse
“tudo o que não invento, é falso68”.
Se iniciei este trabalho lembrando Fernando Pessoa, caminho para o seu
encerramento com palavras de Manoel de Barros, brincando com a nossa condição de
colonizados e colonizadores, sujeitos e assujeitados, portugueses e brasileiros que somos. Este
poeta brasileiro, já após o movimento modernista, escreveu o livro “O guardador de águas”,
possivelmente parodiando o guardador de rebanhos, no qual consta a seguinte poesia:
Que a palavra parede não seja símbolo
de obstáculos à liberdade
nem de desejos reprimidos
nem de proibições na infância
etc. (essas coisas que acham os reveladores de arcanos mentais)
Não.
Parece que me seduz é de tijolo, adobe
preposto ao abdômen de uma casa.
Eu tenho um gosto rasteiro de
ir por reentrâncias
baixar em rachaduras de paredes
por frinchas, por gretas – com lascívia de hera.
Sobre o tijolo ser um lábio cego.
Tal um verme que iluminasse
De uma clínica moderna à clínica ampliada, o caso Maria é um caso de clínica do apoio,
em que é preciso Apoio a todos para haver construção de uma língua própria, ultrapassando
67 Poeta considerado importante no Brasil também em relação ao movimento modernista, no sentido de ter, impulsionado pelas forças modernitas, constituído uma “língua própria”. 68 Frase de abertura do livro do autor “Memórias inventadas. A infância”. São Paulo: Planeta. 2003.
137
os muros dos tijolos de uma casa pronta para, naquilo que desta se conhece e se desconhece,
construir uma casa nova e singular, iluminada, onde parecia haver apenas escuridão. Como em
uma experiência de transicionalidade, em que é possível criar e recriar-‐se nas tradições do
mundo.
Então poderemos falar de uma clínica da transicionalidade, como um processo em
devir e de singularização entre cada ator, em cada interstício que a compõe. E, na continuidade
desse tempo, o caso continua, como lembra a psicóloga do NASF69.
69 Fala feita na quinta reunião em que ESF P e NASF discutiram o caso Maria, ao final do momento de restituição desta pesquisa, a partir da linha do tempo do caso.
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147
ANEXOS
ANEXO 1
Tabela comparativa dos modos de atenção manicomial e psicossocial, de acordo com Costa-‐
Rosa (2006):
MODO MANICOMIAL MODO PSICOSSOCIAL
LOUCURA Determinações orgânicas. Consideração de fatores
políticos, culturais e
biopsicossociais.
Doença. Sujeito existência-‐
sofrimento.
Fenômeno individual. Fenômeno social.
Indivíduo é visto como
doente.
Indivíduo é visto como
sujeito em potencial.
TRATAMENTO Hospital psiquiátrico fechado. Conjuntos amplos de
dispositivos de reintegração
social.
Isolamento. Integração.
Sujeito é apenas receptor do
tratamento.
Sujeito é participante
principal do tratamento;
implicação subjetiva.
Adaptação. Singularização.
Aproximações da família têm
caráter pedagógico e
assistencial.
Família participa do
tratamento.
148
Ênfase na retirada do
convívio social.
Ênfase na reinserção social.
Regras e disciplinas. Experimentação de novas
formas de ser.
Hospitalização; medicalização
e objetificação.
Desospitalização;
desmedicalização;
subjetivação.
Remoção ou tamponamento
dos sintomas.
Reposicionamento subjetivo.
ORGANIZAÇÃO
INSTITUCIONAL
Organogramas piramidais ou
verticais (técnicos →
pacientes e comunidade).
Organogramas horizontais.
Instituição é local de
depósito.
Espaços de interlocução.
Função de controle social. Socialização.
Centralização de saberes e
poderes.
Descentralização e
participação de diferentes
grupos nas decisões.
Heterogestão. Autogestão.
Disciplina das especialidades. Interdisciplinaridade.
Ética da generalização. Ética da singularização.
Imobilidade; mutismo e
estratificação.
Mobilidade; integralidade e
territorialização.
149
ANEXO 2
Tabela das atividades da pesquisa no campo:
DATA ATIVIDADE DESCRIÇÃO DA ATIVIDADE70
14/03/2011 Apresentação do projeto de pesquisa
para a equipe de supervisão técnica da
região e coordenadora do NASF
-‐ Apresentação do projeto.
-‐ Escolha do território:
definição de uma equipe de
NASF para ser acompanhar
nesta pesquisa.
15/03/2011 Apresentação do projeto para a equipe
do NASF.
-‐ Apresentação deste projeto
em reunião de equipe do
NASF.
-‐ Acordou-‐se a minha
frequência nas reuniões de
equipe do NASF, com a
proposta de nos
conhecermos e de ser criada
a estratégia da pesquisa.
22/03/2011 Reunião de equipe do NASF. -‐ Apresentação do NASF e da
saúde mental na região.
29/03/2011 Reunião dos Sete NASF. -‐ Reunião (bimestral) com
todos os NASF da região.
-‐ Apresentação do projeto da
pesquisa a todas essas
equipes de NASF.
05/04/2011 Reunião de equipe do NASF. -‐ Conversa sobre como veem
a realidade do território (PSF,
NASF e modo de gestão da
saúde).
-‐ Acordou-‐se a minha
70 Em todas as atividades minha presença foi sempre, também, como observadora-‐participante.
150
presença nas reuniões para
discussão de caso entre o
NASF e as ESF.
07/04/2011 Reunião de discussão de caso: NASF e
ESF F71
-‐ Apresentação do projeto da
pesquisa e discussão de
casos.
12/04/2011 Reunião de equipe do NASF. -‐ Conversa sobre a história da
saúde mental na região, no
que se refere ao passado e ao
presente.
26/04/2011 Reunião de equipe do NASF. -‐ Conversa sobre a relação
entre NAS e ESF.
27/04/2011 Reunião de discussão de caso: NASF e
ESF G.
-‐ Apresentação do projeto da
pesquisa.
24/05/2011 Reunião de discussão de caso: NASF e
ESF F.
-‐ Discussão de casos.
26/05/2011 Reunião de discussão de caso: NASF e
ESF P.
-‐ Discussão de casos.
02/06/2011 Reunião de equipe do NASF. -‐ Restituição n.1 da pesquisa:
leitura de um texto da
pesquisa sobre o contexto de
trabalho percebido na
pesquisa.
14/06/2011 Reunião de equipe do NASF. -‐ Acordou-‐se sobre o
acompanhamento por parte
da pesquisa de um caso de
saúde mental da ESF P, em
atendimento conjunto dela
com o NASF.
29/06/2011 Fórum dos Trabalhadores da Saúde da
região (no CAPS i)
-‐ Conversa sobre a semana
da luta antimanicomial, a
construção de rede entre os
serviços de saúde da região e
71 Cada ESF da UBS em que se deu esta pesquisa foi nomeada com uma letra.
151
dinâmica de funcionamento
do Fórum.
1/07/2011 Reunião de discussão de caso: NASF e
ESF F.
-‐ Encerramento da presença
da pesquisadora nesta
reunião em função da
escolha de acompanhamento
de um caso de outra ESF.
-‐ Despedida da médica desta
ESF.
08/07/2011 Reunião de equipe do NASF. -‐ Discussão de questões
relativas ao cotidiano do
trabalho.
20/07/2011 Reunião de discussão de caso: NASF e
ESF G.
-‐ Discussão de casos.
26/07/2011 Reunião de discussão de caso: NASF e
ESF J.
-‐ Apresentação do projeto da
pesquisa.
Reunião de discussão de caso: NASF e
ESF P. (reunião n.1 – Caso Maria)
-‐ Escolha do Caso Maria:
combinou-‐se VD.
VD n.1 -‐ Caso Maria -‐ VD realizada por:
pesquisadora, dupla de
referência do NASF, auxiliar
de enfermagem. Estavam na
casa Maria, sua mãe e sua
filha.
-‐ Combinado: retorno daqui a
2, 3 semanas, sem data
marcada. ACS iria avisa-‐la da
data.
Reunião de equipe do NASF. -‐ Restituição n.2: conversa
sobre a relação entre NASF e
ESF, a partir das observações
feitas nas reuniões de
discussão de caso pela
pesquisadora.
152
05/08/2011 Reunião de discussão de caso: NASF e
ESF P (reunião n.2 -‐ Caso Maria)
-‐ Discussão do Caso Maria:
contam como foi a VD e as
impressões que tiveram.
10/08/2011 VD n.2 -‐ Caso Maria (não fui nesta VD)
16/08/2011 Reunião de equipe do NASF. -‐ Discussão do Caso Maria.
30/08/2011 Reunião de equipe do NASF. -‐ Restituição n.3: conversa
sobre a realidade de trabalho
no território e com o PSF.
02/09/2011 Reunião de discussão de caso: NASF e
ESF P (reunião n.3 Caso Maria)
-‐ Discussão do Caso Maria:
não se marca nova data para
retorno; esperam ela dar
notícias de quando pode, em
função de seu emprego.
26/09/2011 Reunião dos Sete NASF. -‐ Apresentação da minha
experiência da pesquisadora
com Apoio Matricial.
04/10/2011 Reunião de equipe do NASF. -‐ Conversa sobre reunião
Sete NASF.
07/10/2011 Reunião de discussão de caso: NASF e
ESF P (reunião n.4 -‐ Caso Maria)
-‐ Discussão do Caso Maria:
combinou-‐se VD para família
– mãe e irmão; consulta para
Maria.
1/11/2011 VD n. 3 -‐ Caso Maria -‐ VD realizada por:
pesquisadora, TO, psicóloga,
auxiliar de enfermagem.
Estavam presentes na casa
(da mãe da Maria): a mãe,
irmão de Maria e filha da
Maria – esta estava
trabalhando.
04/11/2011 Reunião de discussão de caso: NASF e
ESF P (reunião n.5 -‐ Caso Maria)
-‐ Restituição n.4: conversa a
partir da linha do tempo do
Caso Maria.
08/11/2011 Atendimento da Maria (na UBS) -‐ Profissionais presentes:
153
pesquisadora, auxiliar de
enfermagem, ACS e psicóloga
e TO do NASF.
-‐ Maria foi sozinha para a
consulta.
-‐ Combinado: procurar
novamente a ESF caso sinta
necessidades de novas
conversas.
05/12/2011 Reunião de discussão de caso: NASF e
ESF P (reunião n.6 -‐ Caso Maria)
-‐ Breve discussão do Caso
Maria.
-‐ Último dia de participação
da pesquisadora nesta
reunião.
-‐ Combinado: restituição
após a finalização da
dissertação para toda as ESF
e o NASF da UBS.
13/12/2011 Reunião de equipe do NASF. -‐ Restituição n.5: leitura de
um texto da pesquisa sobre
clínica ampliada da saúde
mental na AB, com as
impressões da pesquisadora
sobre o campo.
-‐ Combinado: restituição
após a finalização da
dissertação para toda as ESF
e o NASF da UBS.