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ANAIS DO 10º ENCONTRO DE LETRAS DA UNIVERSIDADE …ºEncontrodeLetrasUCB.pdf · Anais do 10º...

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ANAIS DO 10º ENCONTRO DE LETRAS DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA ISSN: 2175-6686
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ANAIS DO

10º ENCONTRO DE LETRAS

DA UNIVERSIDADE

CATÓLICA DE BRASÍLIA

ISSN: 2175-6686

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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA REITOR

Prof. Dr. Cícero Ivan Ferreira Gontijo

PRÓ-REITOR DE GRADUAÇÃO Prof. Dr. Ricardo Spindola Mariz

PRÓ-REITOR DE EXTENSÃO Prof. Dr. Jorge Hamilton Sampaio

PRÓ-REITOR DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

Prof. Dr. Ruy de Araujo Caldas

DIRETOR

Prof. Esp. Rogério da Silva Sales Pereira

ASSESSORA Profa. MSc. Déborah Christina de Mendonça Oliveira

COMISSÃO ORGANIZADORA DO 10º ENCONTRO DE LETRAS Prof. Esp. Rogério da Silva Sales Pereira – Presidente da Comissão

Profa MSc. Déborah Christina de Mendonça Oliveira Profa Esp. Synthia Patrícia Lemes

Profa MSc. Vera Lúcia Cordeiro da Conceição Prof. Dr. Wiliam Alves Biserra

Chelon Cristina Viana Veríssimo

OUTUBRO DE 2012

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Os textos são de inteira responsabilidade dos autores. 3

PROGRAMAÇÃO

Dia 23 de outubro

8:30 Credenciamento

9:00 Abertura Prof. Esp. Rogério da Silva Sales Pereira – Diretor do Curso de Letras (UCB)

9:10 Palestra: O português brasileiro: sua história, formação e peculiaridades Prof. Dr. Renato Miguel Basso (UFSCar) Coordenação: Profa. MSc. Vera Lúcia da Conceição (UCB)

10:30 Coquetel

16:00 Cine-Debate: Documentário O grande silêncio (2005) Direção: Philip Gröning Debatedor: Prof. Dr. Wiliam Alves Biserra (UCB)

19:50 Palestra: O ‘eu’ e seu tratamento semântico: um exercício de análise gramatical Prof. Dr. Renato Miguel Basso (UFSCar) Coordenação: Profa. Dra. Christine Maria Soares de Carvalho (UCB)

21:10 Coquetel

Dia 24 de outubro

8:30 Mesa-Redonda: Vozes Femininas – Literatura e questões de gênero Prof. MSc. Marcos de Jesus Oliveira (UnB) Profa. MSc. Polliana Cristina de Oliveira (IPJUS) Profa. PhD. Cristina Maria Teixeira Stevens (UnB) Coordenação: Prof. Dr. Wiliam Alves Biserra (UCB)

10:00 Lançamento do livro: Santas (im)possíveis: religião e gênero na literatura contemporânea de Wiliam Alves Biserra e Cristina Maria Teixeira Stevens.

10:15 Sessões de Comunicação

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Os textos são de inteira responsabilidade dos autores. 4

16:00 Cine-Debate: Filme Teresa: o corpo de Cristo (2007) Direção: Ray Loriga Debatedor: Prof. Dr. Wiliam Alves Biserra (UCB)

19:30 Mesa-Redonda: Literatura e sagrado Profa. Dra. Alessandra Matias Querido (UFSC) Prof. Dr. Piero Luis Zanetti Eyben (UnB) Coordenação: Prof. Dr. Maurício Lemos Izolan (UCB)

21:00 Lançamento do livro: Santas (im)possíveis: religião e gênero na literatura contemporânea de Wiliam Alves Biserra e Cristina Maria Teixeira Stevens.

21:15 Sessões de comunicação

Dia 25 de outubro

8:30 Palestra: The Role of memory in language learning Profa. MSc. Sara Walker (Ministério das Relações Exteriores) Coordenação – Prof. Esp. Rogério da Silva Sales Pereira (UCB)

10:00 Palestra: Princípios da neurociência para o ensino de línguas Profa. MSc. Olga Cristina Rocha de Freitas (EAPE-DF) Coordenação – Profa. Dra. Virginia Andrea Garrido Meirelles (UCB)

11:30 Apresentação Artístico-Cultural: Acústico: Beatles e outros artistas Músicos: George Lucas e Elias Zulu

16:00 Cine-Debate: Minissérie Mãe de Santo (1990) Direção: Henrique Martins Debatedor: Prof. Dr. Wiliam Alves Biserra (UCB)

19:00 Apresentação Artístico-Cultural: Acústico: Beatles e outros artistas Músicos: George Lucas e Elias Zulu

19:30 Palestra: Reimaginando o cânone: tendências contemporâneas nas literaturas de expressão inglesa Prof. Dr. Cláudio Roberto Vieira Braga (UnB) Coordenação: Profa. MSc. Lívila Pereira Maciel (UCB)

21:00 Encerramento

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Os textos são de inteira responsabilidade dos autores. 5

SUMÁRIO

RESUMOS Pronomes de tratamento e suas diferenças culturais no ensino de PLE

para falantes de Inglês ..................................................................................

Adriana Campos de Sousa (UCB)

08

Projeto de Extensão – O Cinema como insumo no ensino e aprendizagem

de LE- inglês .................................................................................................

Ana Carolina Nunes de Araújo (UCB)

Cléria Maria da Costa (UCB)

09

Os verbos SER e ESTAR na aquisição do português por estrangeiros .......

Beatriz Rodrigues Carvalho de Lima (UCB)

Suzanne de Souza Soares (UCB)

10

Formações adjetivas em -vel e -able ............................................................

Bruna Elisa da Costa Moreira (UnB)

11

Educação de surdos: algumas possibilidades de atuação docente .............

Chelon Cristina Viana Veríssimo (UCB)

12

Fazendo sentido na ausência de sentido do poema "Jabberwocky" ............

Clarice Melo Ferreira (UCB)

13

Reimaginando o cânone: tendências contemporâneas nas literaturas de

expressão inglesa .........................................................................................

Cláudio Roberto Vieira Braga (UnB)

14

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Os textos são de inteira responsabilidade dos autores. 6

Estudo linguístico na cultura popular maranhense: léxico e cultura no

Bumba meu boi e no Tambor de Crioula do Maranhão ................................

Heridan Guterres Pavão Ferreira (UFMA)

Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho (UCB)

15

As toadas de bumba-meu-boi: sociabilidades, conflitos e associações .......

Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho (UCB)

Heridan Guterres Pavão Ferreira (UFMA)

Denise Maria Soares Lima (UCB)

16

A área da esquerda em Sintagmas Nominais – Um estudo de sintaxe

comparada do português do Brasil e do Inglês ............................................

Marco Tulio Orelli Bittencourt (Cooplem Idiomas)

17

Princípios da neurociência para o ensino de línguas ...................................

Olga Cristina Rocha de Freitas (EAPE-DF)

18

A nuvem e a noite, poros e aporias ..............................................................

Paulo Guilherme Borges Chaves (UCB)

19

O português brasileiro: sua história, formação e peculiaridades ..................

Renato Miguel Basso (UFSCar)

20

O ‘eu’ e seu tratamento semântico: um exercício de análise gramatical ......

Renato Miguel Basso (UFSCar)

21

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Os textos são de inteira responsabilidade dos autores. 7

TEXTOS COMPLETOS Pronomes de tratamento e suas diferenças culturais no ensino de PLE

para falantes de Inglês ................................................................................

Adriana Campos de Sousa (UCB)

22

Formações adjetivas em -vel e –able ..........................................................

Bruna Elisa da Costa Moreira (UnB)

33

Fazendo sentido na ausência de sentido do poema "Jabberwocky" ...........

Clarice Melo Ferreira (UCB)

54

As toadas de bumba-meu-boi: sociabilidades, conflitos e associações ......

Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho (UCB)

Heridan Guterres Pavão Ferreira (UFMA)

Denise Maria Soares Lima (UCB)

70

A senhora Noé: uma arca guiada por mulheres ..........................................

Polliana Cristina de Oliveira (IPJUS)

82

O ‘eu’ e seu tratamento semântico: um exercício de análise gramatical .....

Renato Miguel Basso (UFSCar)

106

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Os textos são de inteira responsabilidade dos autores. 8

PRONOMES DE TRATAMENTO E SUAS DIFERENÇAS CULTURAIS NO

ENSINO DE PLE PARA FALANTES DE INGLÊS

Adriana Campos de Sousa (UCB)

Este é um trabalho de pesquisa feito para a disciplina 'O ensino de Português como Língua Estrangeira' sobre as dificuldades dos aprendizes de língua inglesa em compreender o uso dos pronomes de tratamento no dia-a-dia. O trabalho apresenta os pontos contrastivos entre o português e o inglês, levando em consideração o que as gramáticas tradicionais de ambas as línguas falam a respeito dos pronomes de tratamento. A pesquisa foi baseada nas dúvidas dos estrangeiros levantadas pelas autoras, Rodrigues, El-Dash e Lombello, do livro 'Brazilian Portuguese: your questions answered', bem como em algumas situações do cotidiano e questões de formalidade que divergem quanto ao uso dos pronomes nas respectivas línguas. Palavras-chave: Pronome de tratamento. Cotidiano. Formalidade.

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Os textos são de inteira responsabilidade dos autores. 9

PROJETO DE EXTENSÃO – O CINEMA COMO INSUMO NO ENSIN O E

APRENDIZAGEM DE LE- INGLÊS

Ana Carolina Nunes de Araújo (UCB)

Cléria Maria da Costa (UCB)

Será feita a apresentação do projeto de extensão em andamento no curso de Letras da UCB em 2012. Este projeto consiste em apresentar o uso de filmes como insumo no ensino e aprendizagem de LE contextualizados. Os alunos das escolas participantes são estimulados a desenvolver a Competência Comunicativa por meio do contato com a língua inglesa através do cinema, bem como sua autonomia. Para gerar a aquisição, a língua é apresentada como gênero, construída na interação social (PAIVA, 2006). O recurso a filmes apresenta também o viés crítico e pode ensejar a mudança de uma abordagem estruturalista para uma abordagem mais adequada às necessidades e possibilidades do contexto escolar específico (vide KUMARAVADIVELU 1994; LARSEN-FREEMAN, 2003; BROWN, 2002). são realizadas rodas de cinema quinzenais nas escolas, com permanente coleta de dados e elaboração de relatórios por parte das professoras. As alunas bolsistas da UCB, por sua vez, assistidas por suas professoras, atuam como mediadoras, auxiliando os professores em serviço e desenvolvem habilidades necessárias para sua futura prática e têm o inestimável contato com a realidade das salas de aula de LE.

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Os textos são de inteira responsabilidade dos autores. 10

OS VERBOS SER E ESTAR NA AQUISIÇÃO DO PORTUGUÊS POR

ESTRANGEIROS

Beatriz Rodrigues Carvalho de Lima (UCB)

Suzanne de Souza Soares (UCB)

Na língua portuguesa há dois verbos diferentes, ser e estar, para expressar os diversos significados do verbo to be. Esse é, sem dúvida, um dos maiores pontos críticos no processo de aquisição/aprendizagem do português por falantes de inglês. Uma explicação simples pode ajudar o aprendiz a superar tal dificuldade. Tendo isso em mente, esse trabalho foi elaborado para proporcionar ao aluno a possibilidade de estudar e refletir sobre as particularidades do novo idioma, sem perder de vista a necessidade que o estudante tem de interagir na língua-alvo. Visto que o profissional do ensino de português para estrangeiros é, antes de tudo, um especialista em língua portuguesa, consciente das diferenças entre gramática tradicional e o uso efetivo/real do idioma, num primeiro momento, analisaremos as ocorrências dos verbos ser e estar nos principais manuais do português, tanto de cunho normativo quanto científico. Após, faremos uma análise contrastiva tendo como base os pressupostos de Grannier et alii (1992) em seu livro Brazilian Portuguese: Your Questions Answered. Ao cabo, um exercício de sistematização gramatical com foco na forma-significado-uso é proposto. Perceber essa influência da língua materna sobre o falante de inglês é de primordial importância, pois, irá proporcionar um percurso tranquilo durante o processo de ensino/aprendizagem da língua portuguesa. Palavras-chave: Ser. Estar. Aquisição. Português. Estrangeiros.

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Os textos são de inteira responsabilidade dos autores. 11

FORMAÇÕES ADJETIVAS EM -VEL E -ABLE

Bruna Elisa da Costa Moreira (UnB)

Tradicionalmente, a morfologia derivacional é vista como uma forma de relacionar palavras a outras palavras, em oposição à morfologia flexional, concebida como aquela que determina diferentes formas de uma mesma palavra, sem envolver mudanças de categoria. Essa divisão implica uma outra separação: o que é produzido na sintaxe e o que é produzido no léxico. Teorias morfológicas contemporâneas desafiam essa separação, postulando um único mecanismo responsável pelos fenômenos derivacionais e flexionais, bem como pela construção de palavras e sentenças. Neste trabalho, desenvolvido na perspectiva da gramática gerativa, apresentamos uma discussão sobre as teorias lexicalistas (DI SCIULLO & WILLIAMS, 1987; ARONOFF, 1976; WASOW, 1977) e sintáticas (HALLE & MARANTZ, 1993; MARANTZ, 1997, 2001) para a formação de palavras, e abordamos o caso específico do sufixo -vel e do sufixo -able, formadores de adjetivos em português e inglês, respectivamente, observando seus aspectos sintáticos, morfológicos e semânticos, bem como suas propriedades distribucionais. Palavras-chave: Morfologia. Formação de palavras. Sufixo –vel. Sufixo –able.

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EDUCAÇÃO DE SURDOS: ALGUMAS POSSIBILIDADES DE ATUAÇ ÃO

DOCENTE

Chelon Cristina Viana Veríssimo (UCB)

O trabalho faz uma análise da prática docente na educação do surdo. Para isso, realizou-se uma pesquisa bibliográfica, cujo intuito foi o de localizar a educação de surdos dentro do contexto educativo nacional, assim como realizar um levantamento de práticas docentes possíveis, algumas delas pouco difundidas. No trabalho é relatado uma pesquisa de campo, na qual se observou uma aula em que duas professoras atuavam em conjunto, tendo, contudo, papéis bem delimitados e identificados, seguindo o modelo da bidocência. Assim, o objetivo da presente pesquisa se expressa no relato e análise de práticas vantajosas ao processo de ensino-aprendizagem de surdos, com destaque para o modelo da bidocência. Na observação, procurou-se atentar para as questões metodológicas aplicadas na prática docente, como o uso da Língua Brasileira de Sinais (Libras) na ministração da aula; reconhecimento das características da pessoa surda e de sua cultura; o emprego da tecnologia como recurso didático; as peculiaridades desta prática que a distingue de outras; a formação requerida ao docente para atuar nesse modelo, entre outros. Palavras-chave: Educação de surdos. Formação de professores. Bidocência.

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Os textos são de inteira responsabilidade dos autores. 13

FAZENDO SENTIDO NA AUSÊNCIA DE SENTIDO DO POEMA

"JABBERWOCKY"

Clarice Melo Ferreira (UCB)

“Jabberwocky” de Lewis Carroll, presente no livro Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá, é considerado um dos maiores poemas nonsense em inglês. O trabalho procura analisar o poema baseado em comentários do próprio autor e através de uma pesquisa dos significados de suas palavras incoerentes e neologismos em dicionários da língua inglesa. Ao confrontar a análise com a teoria da construção de sentido, o artigo leva em consideração a teoria do nonsense e o sentido da palavra poética para desvendar a relevância do significado das palavras no contexto poético do nonsense, a participação de outros elementos estruturais inerentes à poesia e a importância do que a palavra não significa na construção do sentido. Palavras-chave: Construção de sentido. Nonsense. Significado das palavras.

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Os textos são de inteira responsabilidade dos autores. 14

REIMAGINANDO O CÂNONE: TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS NA S

LITERATURAS DE EXPRESSÃO INGLESA

Cláudio Roberto Vieira Braga (UnB)

Neste trabalho, problematizo o conceito de cânone literário no âmbito das literaturas de expressão inglesa, confrontando as tradições literárias eurocêntricas da Inglaterra e dos Estados Unidos com as literaturas produzidas nas periferias dos centros de poder. Assim, proponho a expansão do cânone para abranger tradições historicamente ignoradas nos processos de seleção de obras e métodos de ensino em literatura, trazendo como exemplo as literaturas africanas em inglês.

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Os textos são de inteira responsabilidade dos autores. 15

ESTUDO LINGUÍSTICO NA CULTURA POPULAR MARANHENSE: L ÉXICO

E CULTURA NO BUMBA MEU BOI E NO TAMBOR DE CRIOULA D O

MARANHÃO

Heridan Guterres Pavão Ferreira (UFMA)

Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho (UCB)

Este trabalho, ainda em fase de desenvolvimento, tem como objetivo identificar e analisar as variações linguísticas presentes nos elementos da cultura popular maranhense e como elas se materializam enquanto elementos de identidade local. Para tanto, tomou-se como referencial o Tambor de Crioula e o Bumba meu boi, a partir dos cantos entoados nas duas manifestações. A análise demonstra que a identidade linguística maranhense sofre influências de tais elementos e que estes devem incorporar o currículo de Língua Portuguesa, em um processo de reflexão sobre a mesma, impingindo significado ao conteúdo trabalhado na sala de aula. Palavras-chave: Variação linguística. Norma culta. Linguagem popular.

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Os textos são de inteira responsabilidade dos autores. 16

AS TOADAS DE BUMBA-MEU-BOI: SOCIABILIDADES, CONFLIT OS E

ASSOCIAÇÕES

Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho (UCB)

Heridan Guterres Pavão Ferreira (UFMA)

Denise Maria Soares Lima (UCB)

O bumba-meu-boi, consagrado patrimônio imaterial do Brasil, é composto por um conjunto de toadas, que compõem a cena musical de uma das mais belas e tradicionais manifestações do Maranhão. Esse artigo pretende sobrepor a lógica de análise clássica do estudo das letras dessas toadas, buscando efetuar o estudo sobre os discursos presentes revelados no cotidiano dos sujeitos retratados nestas narrativas. Neste sentido, as toadas são marcadas por relações de poder que tanto expressam conflitos como soluções. O discurso corrente mostra associações, sociabilidades e outros modos de integração, assim como a compreensão dessas manifestações protagonizadas por esses atores envolvidos podem conduzir a entender problemas sociais, bem como apontar possíveis soluções. Palavras-chave: Bumba-meu-boi. Toadas. Discursos. Conflito.

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A ÁREA DA ESQUERDA EM SINTAGMAS NOMINAIS – UM ESTUD O DE

SINTAXE COMPARADA DO PORTUGUÊS DO BRASIL E DO INGLÊ S

Marco Tulio Orelli Bittencourt (Cooplem Idiomas)

O objetivo deste trabalho é, para efeitos pedagógicos, elucidar o entendimento de Sintagma Nominal (NP – Noun Phrases em Inglês), levando em consideração a área da esquerda e a relação dos constituintes entre si. Além disso, o trabalho deseja descrever como e quais constituintes vão juntos para que os estudantes de Inglês como Língua Estrangeira possam observar a ordem ótima desses constituintes. Há uma tabela desenvolvida pelo professor Mário Perini com uma amostra dos constituintes no Português do Brasil e sua ordem para que os estudantes e professores sejam capazes de entender a formação de NP em língua portuguesa. Este trabalho irá usar as regras e exemplos da descrição dos NP em Português e aplicá-los ao Inglês para ver se existem parâmetros entre os dois idiomas quanto a esse aspecto. Finalmente, este trabalho deseja apresentar algumas ideias pedagógicas para o ensino de inglês como língua estrangeira a brasileiros no que tange NP em Inglês, mediante a elaboração de uma tabela que esperamos ser um auxílio esclarecedor do assunto para professores e estudantes brasileiros de Inglês. Palavras-chave: Noun phrases. Gerativismo. Universal Grammar.

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Os textos são de inteira responsabilidade dos autores. 18

PRINCÍPIOS DA NEUROCIÊNCIA PARA O ENSINO DE LÍNGUAS

Olga Cristina Rocha de Freitas (EAPE-DF)

Com o avanço dos exames de neuroimagem, da nanotecnologia, o estudo da especialização das regiões neuronais tem sinalizado com algumas contribuições importantes para os processos de ensino aprendizagem das línguas, quer sejam orais, quer sejam de sinais. Algumas dessas contribuições, por sua replicação, apresentam-se como princípios neurocientíficos a serem considerados por professoras e professores de línguas.

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Os textos são de inteira responsabilidade dos autores. 19

A NUVEM E A NOITE, POROS E APORIAS

Paulo Guilherme Borges Chaves (UCB)

Este trabalho apresenta ume studo comparativo entre “A Nuvem do não saber”, de autor anônimo, e a “Noite Escura”, de São João da Cruz, passando também por outras obras suas. A análise é fundamentada, basicamente, na desconstrução de Jacques Derrida, explorando os poros entre a différance, ideia central de seu pensamento, e a chamada teologia negativa, princípio orientador dos dois autores. Palavras-chave: Cristianismo. Mística. Idade Média. Igreja Católica. Derrida. Desconstrução. Différance.

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Os textos são de inteira responsabilidade dos autores. 20

O PORTUGUÊS BRASILEIRO: SUA HISTÓRIA, FORMAÇÃO E

PECULIARIDADES

Renato Miguel Basso (UFSCar)

Nesta apresentação, de caráter expositivo, discutiremos alguns aspectos históricos da formação do português brasileiro, com ênfase na junção de perspectivas externas (extralinguísticas) e internas (linguísticas). A discussão será feita com base em diversos textos produzidos no Brasil e sua análise. Apresentaremos também algumas das principais teorias sobre a formação do português brasileiro que explicariam suas peculiaridades e diferenças com relação ao português europeu. Finalmente, falaremos um pouco sobre os mecanismos de mudança linguística, seu funcionamento e quais mudanças parecem estar atualmente ocorrendo no português brasileiro.

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Os textos são de inteira responsabilidade dos autores. 21

O ‘EU’ E SEU TRATAMENTO SEMÂNTICO: UM EXERCÍCIO DE ANÁLISE

GRAMATICAL

Renato Miguel Basso (UFSCar)

O objetivo desta apresentação é discutir algumas das interpretações possíveis para o item ‘eu’. Geralmente tomado como um dêitico ou um indexical cuja referência é sempre o falante, pretendemos mostrar que essa análise simples e direta de ‘eu’ não dá conta de inúmeros outros usos que fazemos desta palavra. No total, há pelo menos sete usos diferentes de ‘eu’ e as teorias tradicionais dão conta de apenas um desses usos. Depois de apresentar a teoria padrão sobre o ‘eu’ e os usos que a desafiam, passaremos a discutir algumas propostas de solução. Além disso, outros objetivos da análise são discutir as relações entre forma e uso, o alcance de uma abordagem formal da gramática e de como modo tal abordagem pode ter impacto sobre práticas pedagógicas.

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Os textos são de inteira responsabilidade dos autores. 22

OS PRONOMES DE TRATAMENTO E SUAS DIFERENÇAS CULTURA IS NO ENSINO DE PLE PARA FALANTES DE INGLÊS . 1

Adriana Campos de Sousa2

Resumo: Este artigo traz alguns pontos relevantes sobre as dúvidas dos aprendizes de Português como segunda língua, especialmente no que diz respeito ao uso dos pronomes e pronomes de tratamento na língua falada. A pesquisa faz uma relação entre algumas características específicas no uso dos pronomes em Português e Inglês, com o intuito de ajudar os estrangeiros a entender o processo de uso da língua. Palavras-chave : Português. Segunda Língua. Língua Estrangeira. Pronomes. Cultura. Introdução

Essa é uma pesquisa feita para a disciplina O ensino de Português como Língua Estrangeira (PLE), cuja finalidade é entender os caminhos do ensino/aprendizagem de uma língua estrangeira, além de comparar as diferenças gramaticais e culturais entre duas línguas (Português X Inglês) no que diz respeito ao uso dos pronomes de tratamento. A relação gramatical será feita com base nos autores das gramáticas tradicionais de língua portuguesa Bechara (2009) e Cunha & Cintra (1985) e da gramática da língua inglesa das autoras Murcia & Larsen-Freeman (1999). A pesquisa está voltada para a explicação de fatores que ocorrem na língua em uso, ou seja, para a comunicação do aprendiz e por isso as questões culturais serão levantadas com intuito de esclarecer as dúvidas dos falantes de Inglês aprendizes de Português. O material usado como base para essa pesquisa foi o livro Brazilian Portuguese: your questions answered de Grannier et al (1992), além de outras fontes de referência como em Brown (2001) e Lyons (1987) para levantar dados sobre o ensino/aprendizagem e as culturas das línguas.

1 Trabalho apresentado na sessão de comunicação durante o 10º Encontro de Letras da UCB em 24 de outubro de 2012. 2 Estudante do 5º semestre do curso de Letras Português e Inglês da Universidade Católica de Brasília.

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O objetivo do trabalho é entender porque os falantes de Inglês, estudantes de nível intermediário e avançado, que já possuem um bom nível de conhecimento da língua portuguesa, apresentam dúvidas com relação ao uso dos pronomes de tratamento do Português. O foco do trabalho será somente nas dúvidas relacionadas aos pronomes, porém esse tópico é apenas um dos vários tipos de dúvidas levantadas nas pesquisas feitas por Grannier (1992) após anos no ensino de Português para estrangeiros.

O primeiro passo da pesquisa será entender qual a diferença entre aprendizagem e aquisição de uma língua.

1 Aquisição x Aprendizagem

Segundo Krashen (1988 apud Schütz 2011), a aquisição de uma língua é um processo de assimilação natural que envolve um aprendizado intuitivo e subconsciente. É produto de interações reais entre pessoas dentro da cultura e do ambiente da língua alvo, onde o aprendiz é um participante ativo. O processo de aquisição é semelhante ao das crianças aprendendo a primeira língua (L1). O foco é a língua falada sem o conhecimento teórico. O aprendiz se familiariza com as características fonológicas, estruturais e com o vocabulário. Nesse processo, o estudante se torna capaz de ouvir e se comunicar com boa pronúncia fonológica, mas sem se prender às regras, já que gastam mais tempo se comunicando. Esse método desenvolve a autoconfiança do aprendiz.

No caso da aprendizagem, o autor mostra que o foco da língua alvo é a forma escrita e o objetivo é que os aprendizes entendam a estrutura e as regras da língua. A forma é mais importante que a comunicação. Tanto o ensino quanto a aprendizagem são mais técnicos e programados. Procura-se transmitir ao aprendiz o conhecimento sobre a língua, sua função e a estrutura gramatical. Os alunos se tornam proficientes na estrutura da língua, porém pobres quanto à pronúncia, além de adquirirem um vocabulário um pouco mais limitado e às vezes apresentam problemas na comunicação. É útil para adultos, pois esses já possuem senso crítico, podendo refletir sobre o aprendizado, além de serem capazes do automonitoramento. No aprendizado de uma língua, as limitações ocorrem a partir do suporte utilizado para ensinar, como os materiais para estudo, por exemplo.

O aprendiz pode aprender ou adquirir uma língua como sendo uma língua estrangeira ou segunda língua. A diferença entre as duas está no contexto de ensino e aprendizagem, como será explicado a seguir.

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2 Ensino como Língua Estrangeira X Ensino como Segunda Língua

Segundo Brown (2001), o ensino de segunda língua (L2) é aquele cujo contexto da língua alvo está disponível fora de sala da aula, ou seja, o ensino não está limitado à sala de aula já que os aprendizes estão expostos à língua alvo no cotidiano, tornando natural a aprendizagem da língua. Ensinar Português a um americano que veio ao Brasil a trabalho é um bom exemplo de ensino de L2. Esse americano tem o Inglês como língua nativa (L1) e precisa aprender Português para se comunicar e realizar as tarefas do dia-a-dia, dessa forma, o Português será sua L2, pois o mesmo já tem o Inglês como L1. Grannier (2001) explica que no ensino do português para estrangeiros, o aprendiz se encontra num país cuja língua nacional/oficial é o português, porém, nesse caso, é preciso lembrar que há cidadãos de países de língua portuguesa que não tem o português como L1, como é o caso dos falantes de línguas indígenas como L1; dos brasileiros que têm LIBRAS como L1 e de alguns africanos e timorenses. Todos que se encontram nessa situação aprenderão o português como L2.

A aprendizagem de uma nova língua na categoria de língua estrangeira (LE) ocorre, segundo Brown (2001), em contextos nos quais o aprendiz não tem um ambiente que propicie a comunicação da língua alvo fora de sala de aula. O contato com a nova língua pode ocorrer em situações específicas como uma viagem, um programa de TV, livros e outras oportunidades que podem ser criadas pelo professor ou aprendiz. Para Grannier (2001), o ensino do português como LE ocorre em países cuja língua nacional/oficial não é o português. Dessa forma, um americano aprendendo Português em Nova York, estaria aprendendo a língua portuguesa como língua estrangeira (LE).

Enfim, no ensino do Português como segunda língua (PL2), o aprendiz tem a vantagem de estar em contato 24 horas do dia com a língua, assim como inúmeras oportunidades para aprender a língua de forma mais rápida. Por outro lado, no ensino do Português como língua estrangeira (PLE) tanto o professor quanto o aprendiz tem um grande desafio nas mãos. No ensino de uma língua na categoria de LE, o professor passa a depender de diversos fatores que vão desde a motivação intrínseca por parte do aprendiz, passando pelo pouco tempo de exposição do aprendiz à nova língua em sala de aula, até os materiais didáticos disponíveis para trabalhar.

3 Abordagem Interacionista

A abordagem escolhida para essa pesquisa sobre o ensino de PLE foi a ‘interacionista’. Segundo Salles (2004), “a ideia central nessa abordagem é a de que a aprendizagem se dá por meio do exercício comunicativo de interagir, por meio da construção do discurso [...] podendo ser intitulada comunicativa-interacionista.” Para Richards & Rodgers,

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A língua é concebida como um meio para a realização de relações interpessoais e para o desempenho de transações sociais entre indivíduos. Ela é vista como um instrumento para a criação e manutenção das relações sociais (RICHARDS & RODGERS, 1986:17 apud Salles 2004:103).

Por meio da abordagem interacionista o professor possibilita ao aprendiz

a utilização da língua alvo em contextos reais de uso da língua, provocando a comunicação entre professor e aluno de forma descontraída.

4 Os pronomes de tratamento e suas diferenças culturais no ensino de PLE para falantes de inglês.

No livro Brazilian Portuguese os autores Grannier-Rodrigues, El- Dash &

Lombello (1992), apontam as dúvidas dos falantes de língua inglesa com relação ao Português no que diz respeito ao uso dos pronomes de tratamento, dos pronomes Tu e Você, além das formas específicas da segunda pessoa para o singular e o plural.

Essa pesquisa apresenta um contraste entre as explicações sobre o uso dos pronomes de tratamento nas gramáticas tradicionais das línguas portuguesa e inglesa, com relação ao que ocorre nas situações reais de uso das línguas.

4.1 Os pronomes na língua portuguesa

De acordo com Pereira Júnior (2012), tradicionalmente, os pronomes são considerados pelas gramáticas como substitutos do substantivo, de termos com a função de nome, de um adjetivo ou de uma oração. O termo ‘pronome’ é originário do Latim ‘pronomen’ (‘pro’: em lugar de e ‘nomen’: nome)

Segundo Bechara (2009, p.162), pronome é a classe de palavras categoremáticas que reúne unidades em número limitado e que se refere a um significado léxico pela situação ou por outras palavras do contexto. De modo geral esta referência é feita a um objeto substantivo considerando-o apenas como pessoa localizada do discurso.

Para Cunha e Cintra (1985, p.289), os pronomes desempenham na oração as funções equivalentes às exercidas pelos elementos nominais, servindo para representar um substantivo ou acompanhar um substantivo determinando-lhe a extensão do significado.

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4.1.1 Pronome de tratamento na língua portuguesa.

Segundo Cunha & Cintra (1985), os pronomes de tratamento “O senhor, a senhora e a senhorita”, no Brasil, são, formas de respeito ou de cortesia e, se opõem a “você”, na maior parte do Brasil.

Existe ainda a forma de tratamento indireta, a de 2° pessoa que leva o verbo para a 3° pessoa. São as chamadas formas subs tantivas de tratamento ou formas pronominais de tratamento (BECHARA, 2009). Ex: “Você/Vocês” - no tratamento familiar. “O senhor, a senhora” - tratamento cerimonioso.

Segundo Lyons,

O significado social e expressivo dos pronomes familiares e polidos é obviamente dependente de cultura; é um caso de conhecimento socialmente adquirido. [...] e o conhecimento é prático e não baseado em proposições: situa-se dentro do escopo do conhecimento social. (LYONS, 1987, p.289)

Dessa forma, é possível perceber que as questões culturais influenciam fortemente o uso dos pronomes de tratamento revelando particularidades da língua falada que serão brevemente comentadas a seguir. 4.1.2 Algumas particularidades sobre os pronomes de tratamento do Português: Uso dos pronomes “Tu”, “Você” e “Vós”.

O uso de “Tu” restringe-se ao extremo sul do País e a alguns pontos da região Norte. O uso de “Você” ocorre nas demais regiões do País e está voltado para um tratamento de igual para igual ou de superior para inferior (BECHARA, 2009). Existem ainda três formas de expressar a segunda pessoa: Tu és/ tu vais; Tu é/tu vai & Você é/você vai. Além disso, o “Vós” é usado somente nas escrituras antigas, como por exemplo, na Bíblia Sagrada.

Além da não inclusão do ‘você/vocês/ a gente’, que são formas amplamente utilizadas na linguagem coloquial, a Gramática Tradicional concebe “nós” e “vós” como formas plurais de “eu” e “tu”. Cardoso (1996, p.115-123) explica que a gramática tradicional não apresenta uma posição coerente e única com relação à forma “a gente”. Ora consideram “a gente” como pronome de 1ª pessoa, ora como pronome de tratamento, ou ainda indefinido.

Ainda segundo Cardoso (1996), o uso do “a gente” vai muito além do (eu + você = nós), o falante o escolhe quando quer dizer que tem um grupo maior de pessoas. É bom lembrar que o substantivo ‘gente’ está relacionado a povo, multidão e por isso o uso de ‘a gente’ como pronome indica uma quantidade maior de pessoas com relação ao uso do ‘nós’. Outra característica interessante sobre o uso de ‘a gente’ é que como pronome da primeira pessoa

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do plural deveria ser acompanhado por um verbo também na 3º pessoa do plural, porém o verbo utilizado por muitos falantes é o da 3º pessoa do singular.

Os pronomes da língua portuguesa traduzem uma pequena mostra da língua como produto da cultura do Brasil. Algumas características do uso dos pronomes podem revelar algumas particularidades do falante, como o seu local de origem ou o grupo social a que pertence. A seguir veremos como os pronomes de tratamento são usados na língua inglesa.

4.2 Os pronomes na língua inglesa

Murcia & Freeman (1999) apresentam os pronomes como “uma classe de palavras que substituem um nome ou fazem referência a ele ou a uma sentença nominal.” Essa referência é feita considerando a pessoa do discurso ou fazendo uma referência direta a uma situação externa (ex: para responder a um barulho repentino, falamos “O que foi aquilo?”). Os pronomes ocupam a mesma posição de um nome ou de uma sentença nominal.

4.2.1 Pronomes de tratamento em Inglês

Os pronomes de tratamento em Inglês são de modo geral Mr, Mrs, Miss (+ sobrenome), Sir e Madam (nome desconhecido). O uso desses pronomes ocorre em situações de trabalho, em ambientes escolares (aluno/professor/diretor), ao falar com pessoas desconhecidas ou mais velhas. O uso mais frequente é do pronome ‘you’ no cotidiano.

4.2.2 Algumas particularidades dos pronomes da Língua Inglesa.

Uso do pronome ‘you’ na língua inglesa serve tanto para segunda pessoa do singular como para segunda pessoa do plural. O pronome ‘it’ da terceira pessoa do singular, usado para representar objetos inanimados, é substituído, às vezes, por ‘he’ ou ‘she’, ou seja, pode ser usado ,por exemplo, para fazer referência aos animais de estimação, à navios com nomes de pessoas e aos furacões.

O uso do gênero masculino na língua inglesa não tem preferência nos casos de generalizações. O falante escolhe o gênero que achar conveniente. Imagine a situação: uma palestrante pode usar o pronome de tratamento ‘Mrs.’ para se referir as pessoas que estão assistindo a palestra, mesmo que haja um ou dois homens no ambiente. Porém, essa ainda é uma situação muito controversa.

É interessante notarmos que situações como a mencionada acima ocorrem de maneira diferente na língua portuguesa. Se o palestrante estivesse

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no Brasil apresentando para um grupo 95% feminino e 5% masculino, precisaria optar pelo uso do gênero masculino ao se dirigir ao público.

É possível notar que a língua inglesa apresenta poucas mudanças em relação às normas da gramática tradicional. Talvez, seja esse o motivo das dúvidas dos falantes de Inglês com relação à língua portuguesa. Para melhor ilustrar alguns pontos comentados anteriormente, apresento a seguir um quadro comparativo dos pronomes do Português e do Inglês, com alguns pontos relevantes sobre as dúvidas dos falantes de Inglês na aprendizagem do Português.

4.3 Os pronomes de tratamento. Análise contrastiva de usos: Português X Inglês.

O quadro abaixo apresenta as principais dúvidas dos falantes de Inglês,

com relação aos usos dos pronomes, levantadas nas pesquisas feitas por Grannier et al (1992) durante os anos de ensino de Português para estrangeiros. O quadro traz uma análise contrastiva entre o Português e o Inglês somente nos tópicos apontados.

Quadro 1

Português Inglês

Tu e Você – Variam de acordo com a região

You – serve para todas as regiões.

Sing.: Tu e Você // Plural: Vocês Sing. E Plural: YOU.

Não faz distinção: Idade/sexo Não faz distinção: Idade/sexo

Você leva o verbo p/ 3ª pessoa (é) Verbo sempre na 2ª pessoa: ‘are’

Seleção relativa (Escolha para uso de ‘você’ ou ‘Sr’, ‘Sra’.).

Seleção preferencial (para uso de ‘you’)

Pronomes de tratamento: Senhor, Senhora, Dona, Tia (relacionados a costumes familiares).

Pronomes de tratamento: Mr., Mrs. e Miss – seguidos pelo sobrenome, usados em situações específicas.

Uso do pronome possessivo ‘seu’ como pronome de tratamento. Ex: Seu José.

Não ocorre.

O quadro 1 mostra que no Português existe uma alternância no uso de ‘tu’

e ‘você’ dependendo da procedência do falante, além disso, existe uma forma de uso para o singular e outra para o plural. No Inglês, independentemente da

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região, o falante usa o pronome ‘you’, que serve tanto para o singular como para o plural.

No Português, o pronome ‘você’ leva o verbo para a terceira pessoa e no Inglês o verbo que acompanha o pronome ‘you’ é sempre ‘are’, tanto no singular quanto no plural. O uso dos pronomes de tratamento ‘Você’, ‘Senhor’ ou ‘Senhora’ está relacionado com questões culturais e sociais, além do processo de criação e educação do falante. Na língua Inglesa o falante tem preferência pelo uso do pronome de tratamento ‘you’, porém alguns casos específicos pedem o uso de pronomes como Mr, Mrs. Ou Miss, que servem para se dirigir ao professor (a), diretor (a), presidente e pessoas mais velhas como forma de respeito, todos seguidos pelo sobrenome da pessoa.

Outra particularidade da língua portuguesa é o uso do pronome possessivo ‘seu’ no lugar do pronome de tratamento ‘Senhor’, como em ‘Seu José’. Esse fenômeno não acontece na língua inglesa. Além disso, as formas de tratamento ‘Dona’ e ‘tia’ são muito utilizadas na língua portuguesa, como em ‘Dona Maria’ e em ‘Oi, Tia!’. Casos como esses não ocorrem na língua inglesa.

Os quadros apresentados a seguir são referentes à situação atual de uso dos pronomes sujeito e possessivo em Português e Inglês possibilitando uma comparação referente à complexidade com relação ao ‘uso’ dos pronomes pelo falante. Os pronomes em destaque revelam o que o falante produz em relação ao que a gramática tradicional apresenta. É possível entender, ao comparar as duas tabelas, as dúvidas dos falantes de Inglês, já que na língua Inglesa o falante procura manter os pronomes na devida ordem.

Quadro 2. Situação atual dos pronomes do Português.

Pessoa Pron. Sujeito Pron. Possessivo

P1 Eu Meu,minha

P2 Tu/Você Teu,tua, seu,sua,de você

P3 Ele/ela Seu, sua, dele, dela

P4 Nós/a gente Nosso (a), da gente

P5 Vós/ Vocês Vossos(as), Seu(s),sua(s),de vocês

P6 Eles/elas Seu(s), sua(s), deles(as)

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Quadro 3. Situação atual dos pronomes do Inglês

Pessoa Pron. Suj. P. Posses. (adj. / subst)

P1 I My// mine

P2 You Your//yours

P3 He/She/It His/her/its//his/hers

P4 We Our//ours

P5 You Your//yours

P6 They Their // theirs

Os itens destacados no quadro 2 se referem aos pronomes em ‘uso’ na

língua portuguesa. Os pronomes na cor preta são os que aparecem normalmente nas gramáticas normativas. No quadro 3 os pronomes da língua inglesa permanecem sem alterações na gramática normativa.

Ao observar os quadros é possível entender porque os falantes de Inglês apresentam tantas dúvidas com relação ao uso dos pronomes em Português, pois o que a gramática normativa apresenta não está de acordo com que o aprendiz vai encontrar em situações reais de comunicação.

Conclusão

A pesquisa mostrou que as dúvidas levantadas pelos falantes de Inglês na aprendizagem de PLE estão relacionadas com questões culturais no uso dos pronomes. Os quadros apresentados na pesquisa revelam a complexidade dos pronomes de Português com relação aos pronomes de Inglês. Neles podemos observar as várias possibilidades no uso dos pronomes da língua portuguesa enquanto, na língua inglesa, a simplicidade gramatical é mantida pelo falante. A escolha dos pronomes de tratamento é um reflexo do comportamento sociocultural, por isso é importante conhecer a cultura da língua alvo para entender o funcionamento dessa língua.

O ensino de uma língua estrangeira deve ir além do que está escrito nas gramáticas tradicionais. É essencial que o professor mostre aos seus alunos as diversas possibilidades no uso da língua e que, no caso da língua portuguesa, as variações são reflexo de uma região rica em diversidades cultural e social.

Enfim, para aprender uma língua é preciso praticá-la em situações reais de uso, experimentá-la imersa em seu ambiente sociocultural.

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The cultural functions in the use of pronouns and p ersonal address in teaching Portuguese as a foreign language to Eng lish speakers.

Abstract: This article brings some relevant points about the doubts of students of Portuguese as a second language, especially in the use of pronouns in spoken language. The research makes a relation between some specific characteristics when using pronouns in Portuguese and in English, helping learners to understand the oral language process. Key-words : Portuguese. Second and Foreign Language. Pronouns. Bibliografia BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. BROWN, H. Douglas. Teaching by Principles. An Interactive approach to Language Pedagogy . Second Edition. 2001. Longman. CARDOSO, Suzana Alice Marcelino (org.) Diversidade Linguística e Ensino . Salvador: EDUFBA, 1996. P. 115-123. CUNHA, Celso e CINTRA, Lindley. Nova gramática do português comtemporâneo . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. GRANNIER, Daniele Marcelle. Perspectivas na formação do professor de português como segunda língua. Publicado em Cadernos de Centro de Línguas, Volume 4. USP 2001. LYONS, J. Linguagem e cultura. In: Lingua(gem) e linguística: uma introdução . Ed. Guanabara S. A., Rio de Janeiro, 1987. MURCIA, Marianne & LARSEN-FREEMAN,Diane. The Grammar Book: an ESL/EFL teacher´s course. Second Edition. Heinle Cengage Learning,1999. PEREIRA JUNIOR, Luiz Costa. Classe de palavras: o lugar do outro . Revista Língua Portuguesa – Edição Julho/2012. Disponível em: http://revistalingua.uol.com.br/textos/67/artigo249105-1.asp SALLES, Heloisa Maria Moreira de A. (Colab.). Da abordagem audiolingual à interacionista: em direção à comunicação. In: Ensino de língua portuguesa

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para surdos : caminhos para a prática pedagógica. Brasília: Ministério da Eduação, Secretaria de Educação Especial, 2003. Disponível em: HTTP://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/lpvoll.pdf SCHÜLTZ, Ricardo. Language Acquisition – Language Learning . Disponível em: http://www.sk.com.br/sk-laxll.html. Acesso em: 02/10/2011.

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FORMAÇÕES ADJETIVAS EM –VEL E –ABLE

Bruna Elisa da Costa Moreira3 Resumo: Tradicionalmente, a morfologia derivacional é vista como uma forma de relacionar palavras a outras palavras, em oposição à morfologia flexional, concebida como aquela que determina diferentes formas de uma mesma palavra, sem envolver mudanças de categoria. Essa divisão implica uma outra separação: o que é produzido na sintaxe e o que é produzido no léxico. Teorias morfológicas contemporâneas desafiam essa separação, postulando um único mecanismo responsável pelos fenômenos derivacionais e flexionais, bem como pela construção de palavras e sentenças. Neste trabalho, desenvolvido na perspectiva da gramática gerativa, apresentamos uma discussão sobre as teorias lexicalistas (DI SCIULLO & WILLIAMS, 1987; ARONOFF, 1976; WASOW, 1977) e sintáticas (HALLE & MARANTZ, 1993; MARANTZ, 1997, 2001) para a formação de palavras, e abordamos o caso específico do sufixo –vel e do sufixo –able, formadores de adjetivos em português e inglês, respectivamente, observando seus aspectos sintáticos, morfológicos e semânticos, bem como suas propriedades distribucionais. Palavras-chave: Categorias Lexicais; Adjetivos em –vel/–able; Morfologia Derivacional. Abstract: Traditionally, derivational morphology is viewed as relating words to words, while inflectional morphology is viewed as determining different forms of the same word, without involving category change. This distinction implies another one (the lexicon-syntax distinction): what is constructed in the syntax or in the lexicon. Current morphological theories defy this notion, postulating a single mechanism responsible for both derivational and inflectional processes and both word and sentence formation. The present article, developed within the generative Grammar framework, discusses lexicalist theories (DI SCIULLO & WILLIAMS, 1987; ARONOFF, 1976; WASOW, 1977) and syntactic theories (HALLE & MARANTZ, 1993; MARANTZ, 1997, 2001) of word formation. We 3 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade de Brasília (PPGL/UnB) sob a orientação da Professora Doutora Heloisa Salles. Bolsista CAPES.

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discuss adjectives formed by the suffixes –vel and –able, focusing on its syntactic, morphological and semantic aspects, as well as its distributional properties in the sentence. Keywords: Lexical Categories; Adjectives formed by –vel –able; Derivational Morphology. 1 Introdução

Este artigo investiga as propriedades do sufixo –vel –, que, no português, forma adjetivos como lavável, quebrável e amável – quanto à escolha da base para a sufixação e à interpretação semântica do adjetivo formado. A discussão será orientada por trabalhos sobre esse sufixo no português, e também sobre o sufixo correspondente, –able, no inglês. Processos típicos da morfologia derivacional envolvem: (i) a determinação da categoria lexical, a partir do acréscimo de um sufixo derivacional a uma base; e (ii) a sensibilidade à categoria lexical: um sufixo derivacional usualmente elege uma base de determinada categoria. O sufixo –vel, por exemplo, usualmente liga-se a bases verbais para formar adjetivos, já um sufixo como –oso elege bases nominais para formar adjetivos etc. No entanto, observa-se que, enquanto (i) é invariável, ou seja, sufixos derivacionais definidores de categoria lexical apresentam um comportamento esperado (–vel e –oso, por exemplo, sempre formarão adjetivos), (ii) não apresenta o mesmo caráter, ou seja, um sufixo derivacional pode ora ligar-se a uma base de determinada categoria lexical, ora de outra, ou ainda ligar-se a uma raiz mais abstrata não categorizada. É o que atestam os exemplos a seguir em (1), para o sufixo –vel4, e (2), para o sufixo –ous, formador de adjetivos no inglês (sufixo análogo ao sufixo –oso no português):

(1) a. base verbal: lavável (lavar), quebrável (quebrar), amável (amar) b. base nominal: carroçável (carroça), colunável (coluna social)

4 A menos que seja indicada outra fonte de referência, todos os exemplos do português citados neste artigo foram retirados do Dicionário Houaiss, versão eletrônica (2009).

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c. base não categorizada: flexível (*flexi), solúvel (*solu)5

(2) a. base nominal: glorious (glory), dangerous (danger)6 b. base não categorizada: curious (*cury)

Raízes não ocorrem em uma sentença sem serem categorizadas. *Cury,

por exemplo, não ocorre livremente, mas ligado sufixos derivacionais, curious, curiosity, curiousness etc. Todos os elementos que formam uma sentença devem ser categorizados. Dessa constatação aparentemente óbvia surgem duas questões. Uma diz respeito à identidade categorial que as palavras podem compartilhar: como caracterizar nomes, verbos e adjetivos translinguisticamente? Outra diz respeito a como se realiza a categoria. Ambas as questões são abordadas por Baker (2004), para quem a distinção entre as categorias lexicais nome, verbo e adjetivo7 é captada conforme o sistema representado em (3), com adaptações:

(3) Nome é +N = ‘tem índice referencial’ Verbo é +V = ‘tem especificador’ Adjetivo é −N, −V

Nesse sistema, os nomes têm critério de identidade, o que se traduz no

nível sintático como a capacidade de se realizar como um índice referencial; os verbos são “predicados por excelência” e sempre têm um especificador; os adjetivos são elementos “sem essência”, caracterizados por não serem nomes nem verbos, uma categoria default, para a qual a propriedade de denotar qualidades e de ser comparável é apenas derivada, não prototípica. Segundo Baker (2004, p. 2-11), propostas anteriores para a distinção entre categorias, como a combinação de traços valorados, +/– N e +/– V, de Chomsky (1970), ou a valoração de posições argumentais, +/ – suj, +/ – obj, de Jackendoff (1977), não são robustas o bastante para fazer previsões e generalizações translinguísticas acerca das categorias lexicais.

Quanto à segunda questão, Baker (2003, p. 264) pergunta: o que exatamente carrega a marca de categoria? O que pode ser caracterizado como nome, verbo ou adjetivo? Para quais dessas unidades a categoria é inerente e 5 Nesse caso, as palavras em questão já entraram na língua com o sufixo latino –bilis, flexibilis e solubilis. 6 Exemplos de glorious e curious extraídos de Marantz (2001, p. 13). 7 As adposições (preposições e posposições) são consideradas elementos funcionais, conforme Baker (2003, p. 303).

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para quais é derivada ou mesmo indefinida? Baker observa que, tradicionalmente, a morfologia derivacional é vista como uma forma de relacionar palavras a outras palavras, em oposição à morfologia flexional, concebida como aquela que determina diferentes formas de uma mesma palavra, sem envolver mudanças de categoria. Essa divisão implica outra separação: o que é produzido na sintaxe e o que é produzido no léxico. A existência de dois lugares diferentes para a formação de palavras, no entanto, é pressuposto de teorias de orientação lexicalista, que assumem determinada divisão do trabalho entre os componentes da gramática. Essas teorias já foram desafiadas por teorias sintáticas para a formação de palavras, como será discutido na próxima sessão.

O estudo da formação dos adjetivos em –vel vincula-se, assim, a diversas questões, entre elas, a categorização das bases para a sufixação e a contribuição da base e do sufixo para a interpretação semântica do adjetivo formado. Esses temas são discutidos ao longo deste artigo, que apresenta a seguinte estrutura: após esta breve introdução, a seção 2 apresenta diferentes teorias, de orientação lexicalista e sintática, para a formação de palavras; a seção 3, apresenta uma discussão sobre os adjetivos em –able e –vel, enfocando as diferentes propostas de análise para esse tipo de formação, em termos de uma estrutura passiva e causativa perifrástica; a seção 4 apresenta as considerações finais; por fim, seguem as referências bibliográficas.

2 Diferentes orientações teóricas para a formação d e palavras

Tradicionalmente tido como o berço do Lexicalismo, o clássico artigo Remarks on nominalization, de Chomsky (1970), aborda as nominalizações do inglês. O autor observa que, tanto os nominais gerundivos, em (4), quanto os nominais derivados, em (5), são relacionados à sentença John has refused the offer (“João recusou a oferta”), mas cada uma dessas nominalizações apresenta peculiaridades.

(4) John’s refusing the offer (5) John’s refusal of the offer

Chomsky (1970, p. 187) destaca que a relação de sentido entre o

nominal gerundivo e a proposição que lhe dá origem é regular, e o nominal gerundivo não apresenta a estrutura interna de um NP (Noun Phrase); já os

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nominais derivados apresentam produtividade restrita e a estrutura interna de um NP. Por essa razão, as nominalizações gerundivas estariam associadas a uma transformação gramatical, ao contrário dos nominais derivados.

Apesar de ser considerado o berço do Lexicalismo, o artigo de Chomsky (1970) é interpretado por Marantz (1997, p. 9) como o precursor de teorias sintáticas para a formação de palavras. O autor chama a atenção para o fato de que Chomsky (1970) não propõe regras lexicais especiais, mas uma extensão das regras de base para acomodar os nominais derivados diretamente. Segundo Marantz (1997, p. 9), essa ideia é compatível com a interpretação de que os nominais derivados não são verbos em nenhum estágio da derivação, por isso não são transformações relacionadas a uma sentença, estando antes relacionados a um ambiente nominal. Como será discutido mais adiante, essa é uma das ideias desenvolvidas pelo Modelo da Morfologia Distribuída sobre a realização das categorias, que não seriam inerentes aos itens lexicais, mas criadas em ambientes verbais, nominais ou adjetivais.

Na literatura, estão presentes teorias que postulam a existência de um componente lexical na estrutura da gramática, responsável pelos fenômenos no nível da palavra, e teorias que assumem mecanismos sintáticos para a formação de palavras. O Quadro 1, a seguir, apresenta um panorama dessas teorias.8 Quadro 1. Tendências Téoricas Hipótese Lexicalista Forte

Hipótese Lexicalista Fraca

Hipótese Sintática Forte

As palavras são criadas no léxico por meio de regras diferentes das regras da sintaxe – palavras são unidades atômicas que a sintaxe não pode penetrar.

A Derivação ocorre no léxico por meio de regras de derivação, e a Flexão ocorre na sintaxe por meio de regras da sintaxe.

Toda a formação de palavras, incluindo a flexão e a derivação, ocorre na sintaxe por meio de regras da sintaxe.

Di Sciullo e Williams (1987).

Aronoff (1976), Wasow (1977).

Halle e Marantz (1993), Marantz (1997, 2001).

8 Adaptado de Marvin (2003, p. 11).

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Di Sciullo e Williams propõem a separação do componente responsável pela formação de palavras e de sentenças. Para os casos em que parece haver uma interação entre esses dois componentes, os autores postulam que traços categoriais e noções como tempo e número podem estar presentes em ambos. Quanto à realização das categorias, Di Sciullo e Williams (1987, p. 25) consideram que os próprios sufixos pertençam às categorias N, V e A, assim como as palavras. Um sufixo nominalizador do inglês como –ion, que forma transmission, é um nome, mas, como é também um morfema preso, não pode ocorrer independentemente de uma base à qual deve ser ligado – esse sufixo corresponde ao sufixo –ão no português, que forma nomes, transmitir—transmissão. Um conceito importante nessa teoria é o conceito de núcleo. Assim, os sufixos são considerados núcleos de palavra e determinam categoria desta, ao contrário dos prefixos não são considerados núcleo de palavra; logo, não têm o mesmo poder. Para ilustrar essa propriedade, os autores citam o sufixo –ion, que determina categoria e sempre deriva nomes (transmission, admission), e o prefixo counter-, que não determina categoria e pode derivar verbos (counterscrew), nomes (counterspy) ou adjetivos (counterrevolutionary) (DI SCIULLO e WILLIAMS, 1987, p. 24).

A teoria de Aronoff (1976, p. 21) pode ser definida como a morfologia baseada na palavra (word-based morphology), segundo a qual: “Todos os processos regulares de formação de palavras tomam por base palavras. Uma nova palavra é formada a partir da aplicação de uma regra regular a uma palavra já existente. Ambas as palavras, a nova e a que serviu de base para esta, fazem parte de categorias lexicais”. Aronoff (1976, p. 2) reconhece a distinção entre flexão e derivação, porém a considera “relativamente delicada”. Segundo o autor, fenômenos flexionais são de natureza “puramente gramatical” (marcação de tempo, aspecto, pessoa, número, gênero, caso etc.), e fenômenos derivacionais têm caráter restrito ao domínio das categorias lexicais.

No modelo da Morfologia Distribuída, de Halle e Marantz (1993) e Marantz (1997, 2001), assume-se que há um único mecanismo responsável pela formação de palavras e de sentenças. Assim, as palavras, que pertencem às categorias lexicais N, V e A, são criadas por meio de mecanismos sintáticos pela combinação de raízes a núcleos funcionais n, v e a. A identidade categorial é determinada pelo ambiente sintático em que as raízes são inseridas; logo, as raízes são acategoriais. Na Morfologia Distribuída, a sintaxe não manipula itens lexicais propriamente ditos, mas gera estruturas a partir da

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combinação de traços morfossintáticos, fonológicos e semânticos ao longo da derivação (HARLEY e NOYER, 1999).

Nessa teoria, não se postula a tradicional distinção entre processos flexionais e processos derivacionais. A esse respeito, Marantz (2001, p. 10) considera que as diferenças tradicionalmente assumidas entre flexão e derivação não se sustentam, sendo a derivação, no geral, tão paradigmática, produtiva e transparente quanto a flexão. Nesse sentido, o autor questiona o que significa associar a flexão a uma maneira de determinar “formas da mesma palavra”: por que o sufixo agentivo do inglês –er, que forma driver, não estaria também determinando outra forma do verbo drive? Observa-se que o ponto fundamental das teorias anteriores ao modelo da Morfologia Distribuída é a distinção entre o que é da alçada do léxico (irregular) e o que é da alçada da sintaxe (regular). Nessas teorias, a existência de dois lugares para a formação de palavras é o que explica a distinção entre processos regulares e irregulares. De forma explícita, Fabb (1984, p. 38-39) distingue os processos lexicais e os sintáticos de formação de palavras, a partir dos seguintes critérios: o processo sintático de formação de palavras é produtivo e tem propriedades previsíveis, ao contrário dos processos lexicais. Segundo Fabb (1984, p. 33-34), palavras podem ser formadas de três maneiras: (a) uma palavra se combina a outra palavra, formando um composto: trigger-happy, love-boat; (b) um afixo (sufixo ou prefixo) combina-se a uma palavra para formar outra palavra; e (c) um sufixo ou um prefixo combina-se diretamente a uma raiz para formar uma palavra. Para Fabb (1984, p. 34), as palavras do tipo (a) e (b) são formadas na sintaxe.

No modelo da Morfologia Distribuída não se assume a existência de dois lugares. Em vez disso, as diferenças observadas quanto à regularidade/ irregularidade dos processos de formação de palavras emergem de operações da sintaxe, e referem-se fundamentalmente a uma diferença entre raízes e palavras. Basicamente, esta é a intuição subjacente à proposta de Fabb (1984) para os processos de formação de palavras: (a) e (b) são regulares, (c) não é regular. Os processos (a) e (b) referem-se a processos com base em palavras já existentes; o processo (c) refere-se a processos com base em raízes. É justamente a diferença entre palavras e raízes que capta a diferença entre o que é regular e o que idiossincrático. Segundo Marantz (2001, p. 7), a construção de palavras pode ocorrer no domínio das raízes; nesse caso, as palavras terão de ter seu significado negociado; ou fora do domínio do núcleo funcional (no domínio das palavras); nesse caso, a palavra categorizada já tem

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o seu significado determinado, e a nova palavra formada tem caráter previsível e regular.

3 Sobre os adjetivos em –able e –vel

Conforme mencionado, Aronoff (1976) propõe uma morfologia baseada na palavra. Nesse modelo, os processos de formação de palavras ocorrem por meio de regras, que o autor denomina RFP (regra de formação de palavras). Uma RFP especifica um grupo de palavras às quais determinada regra pode ser aplicada. Esse grupo é chamado de base para a regra. Cada RFP especifica um rótulo sintático e uma subcategorização para a palavra resultante, bem como uma representação semântica, que é uma função da base. A partir dessas ideias, Aronoff (1976, p. 32-47) desenvolve a Hipótese da Base Única (Unitary Base Hypothesis), segundo a qual um sufixo deve “eleger” uma base de determinada categoria, aplicando-se unicamente a ela. Assumindo-se a Hipótese da Base Única, uma pergunta que surge é como Aronoff explica contra-exemplos, como os apresentados em (1a) e (1b). Para o caso de sufixos que aparentemente selecionam mais de uma categoria como base, Aronoff (1976, p. 48) postula que se está diante de casos de homofonia. Para ilustrar essa proposta, Aronoff (1976) discute o sufixo –able no inglês, que pode se ligar tanto a nomes (fashionable, sizable) como a verbos (acceptable, doable). Para não violar a Hipótese da Base Única, o autor propõe que há dois sufixos –able no inglês. Uma das evidências apresentadas é a de que as contrapartes nominais de nomes e verbos formados em –able são formadas a partir de regras distintas. Os adjetivos denominais sempre aceitam o nominalizador –ness e nunca o nominalizador –ity (cf. (6)), enquanto os adjetivos deverbais não têm nenhuma restrição do tipo (cf. (7)). (6) sizableness *sizability (7) acceptability acceptableness Outra evidência, segundo Aronoff (1976, p. 48), diz respeito à “semântica muito distinta” desses sufixos. O sufixo deverbal significa “capaz de ser Xado”, sendo X a base, enquanto o sufixo denominal significa “caracterizado por X”, sendo X a base. O autor compara pares homófonos de nome/verbo, como fashion, que tanto pode ser nome quanto verbo no inglês.

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Nesse caso, fashionable, que pode ser tanto denominal quanto deverbal, tem ambos os significados previstos: “in fashion” e “capable of being fashionable”. Wasow (1977, p. 331) também aborda as formações de adjetivos em –able, a partir de uma discussão sobre que tipos de estruturas são formadas com base em regras lexicais e que tipos de estruturas são formadas com base em transformações. Para tanto, Wasow (1977, p. 331) propõe um série de critérios que distinguem ambos os processos, apresentados a seguir no Quadro 2.

Quadro 2. Regras Lexicais vs. Transformações Regras Lexicais Transformações Critério 1 Não afetam a estrutura Não necessariamente

preservam a estrutura Critério 2 Podem relacionar itens de

diferentes categorias Não mudam rótulos de categoria

Critério 3 “Locais”; envolvem apenas NPs que mantêm relação gramatical com os itens em questão

Não necessariamente “locais”; formuladas em termos de propriedades estruturais dos marcadores frasais

Critério 4 Aplicam-se antes de transformações

Podem ser alimentada por transformações

Critério 5 Apresentam exceções Apresentam poucas exceções

Wasow (1977, p. 334) baseia-se na argumentação de Lakoff (1970, apud WASOW, 1977) sobre as formações em –able. Segundo Lakoff (1970), a regra do sufixo –able deve ser uma transformação que opera no output de uma transformação da passiva, como representado em (8) a seguir:

(8) a. His handwriting can be read � His handwriting is readable b. He can be depended on � He is dependable

Wasow (1977, p. 334) apresenta um contra-exemplo em (9), em que a

forma passiva do verbo “soa muito pior” do que a sua contraparte adjetiva.

(9) ?? Your unfortunate remarks can be regretted �Your unfortunate remarks are regrettable.

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O argumento definitivo de Wasow (1977, p. 336) para dispensar a proposta de Lakoff (1970) é o de que “transformações não podem alimentar regras de mudança de categoria, logo a formação desses adjetivos deve seguir regras lexicais”. A argumentação de Wasow (1977, p. 336) desenvolve-se a partir das seguintes observações acerca dos critérios propostos no Quadro 2: o Critério 1 prevê que adjetivos devem aparecer somente em posições “usuais” de adjetivos, o que de fato é atestado pelos exemplos; o Critério 3 prevê que o sujeito a que se refere o adjetivo deve corresponder ao objeto direto associado ao verbo; o Critério 4 prevê que nenhuma transformação pode “alimentar” a regra; e o Critério 5 permite que haja exceções. Wasow (1977, p. 336) não prevê nenhuma correlação entre os ambientes que permitem as passivas e os ambientes que permitem os adjetivos em –able. Para o autor, o fato de que esses adjetivos podem ser parafraseados como as passivas deve-se a duas razões: o conteúdo semântico do sufixo aproxima-se do significado de can; e a regra lexical que relaciona verbos aos adjetivos em –able correspondentes identifica o sujeito do último com o objeto direto do primeiro, assim como fazem as passivas. Para o autor, no entanto, isso não constitui evidência suficiente que justifique a aplicação de construções passivas na derivação desses adjetivos.

Outro autor que também correlaciona as formações adjetivas em –able às formações passivas é Kayne (1984), discutido por Baker (2004). Segundo Baker (2003, p. 285), o sufixo –able é tido como um sufixo que envolve uma derivação sintática, apresentando a produtividade e a regularidade semântica que se espera de uma derivação. Baker (2004) aborda o sufixo –able com base em uma discussão prévia de Kayne (1984), segundo a qual essas formações têm uma derivação sintática que inclui um vestígio de NP, similar à passiva, como mostrado em (10), em que é permitida a introdução de uma by-phrase, indicando o agente:

(10) This book is readable by a 10-year old

Com base em (10), Baker (2004) desenvolve a hipótese de que –able seja gerado como um núcleo adjetival que toma um verbo na passiva como seu complemento. O núcleo desse verbo então incorpora no adjetivo. A by-phrase é licenciada dentro do VP, como representado em (11):

(11) This booki is [AP readk-able [VP ti tk by a 10-year old]]

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A estrutura em (11), segundo Baker (2004, p. 285), está de acordo com

o fato de que o sufixo em questão é categorialmente restrito a se ligar apenas a verbos. A sensibilidade à categoria seria uma maneira de distinguir entre processos puramente sintáticos e processos puramente morfológicos. Para Baker (2004, p. 282), os primeiros seriam sensíveis à categoria, os segundos não. O autor destaca que há poucos exemplos de adjetivos em –able formados com base em nomes, e que esses casos não apresentam evidência de estrutura sintática. É o caso de marriageable e companionable, para os quais não se pode prever a introdução da by-phrase, como em (12) (contrastar com (10)):

(12) *This girl is marriageable only by a boy with a good job

Para Kayne (1981 apud FABB, 1984, p. 219) há dois tipos de adjetivos em –able: aqueles que estão associados a um vestígio e aqueles que não estão. Nos termos de Fabb (1984), os primeiros estão associados a um afixo sintático e os segundos a um afixo lexical. As evidências para –able como sufixo sintático são as seguintes: o sufixo pode se ligar livremente a qualquer verbo transitivo (returnable, wearable, hearable etc.); e os adjetivos em –able recebem predicados resultativos, indicando que existe um vestígio que age como o sujeito do predicado resultante (beef is eatable raw). As evidências para –able como sufixo lexical são as seguintes: o prefixo in– é razoavelmente produtivo com palavras em –able, e o output da prefixação in– é frequentemente lexical, ou seja, apresenta propriedades idiossincráticas; e não há correspondência entre o tipo de complemento que a forma prefixada e a não prefixada pode receber, como mostrado em (13) a seguir:

(13) a. reversable by the judge/ *irreversable by the judge b. curable with penicillin/ *incurable with penicillin

Além disso, Fabb (p. 223) observa que apesar de –able ser altamente

produtivo com verbos transitivos, também pode se ligar a verbos intransitivos (em casos muito raros) ou a nomes e raízes (ambos os casos relativamente numerosos), como atestam os exemplos em (14) abaixo:

(14) a. verbos intransitivos + –able : perishable, variable b. nomes + –able: palatable, comfortable, seasonable

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c. raízes + –able: viable, soluble, durable, culpable

Adjetivos em –able, segundo Fabb (1984, p. 223) não requerem preposição, que seria necessária pela passiva adjetiva, conforme (15) a seguir:

(15) a. profit from – profitable b. listen to – listenable c. live in – liveable d. depend on – dependable e. rely on – reliable

Fabb (p. 224) sugere que os adjetivos em –able apresentados em (13),

(14) e (15) são formados no léxico, uma vez que não fazem parte de grupos produtivos. Nesses casos, as propriedades argumentais do verbo não são levadas adiante no adjetivo em –able.

De fato, uma análise proposta para os adjetivos em –able a partir de sua contraparte verbal não é totalmente livre de problemas. Chomsky (1970, p. 212), propõe que readable seja derivado de uma estrutura como (16) a seguir:

(16) the book is able [S for the book to be read]S

No entanto, o autor reconhece que readable tem sentido mais restrito do que able to be read e, no caso de outros adjetivos, o sentido é restrito ou baseado em uma subregularidade bastante diferente, como nos casos de abominable, irreplaceable, incomparable, decidable, detestable etc. Há ainda, segundo Chomsky (1970, p. 220), muitos casos em que não é possível determinar uma forma de base, como nos casos de probable, formidable, peaceable, sociable, miserable etc.9

A impossibilidade de se determinar o significado de uma forma derivada a partir da sua contraparte verbal é um dos aspectos discutidos por Barker (1998)10 em artigo sobre outro sufixo do inglês, o nominalizador –ee, que forma nomes como employee, escapee, refugee. Segundo Barker (1998), a análise da formação desses nomes baseada na estrutura argumental do verbo que lhe dá origem é insatisfatória. Portanto, não haveria critérios sintáticos para determinar a derivação de nomes formados com o sufixo –ee no inglês. Os

9 Observa-se que muitos dos exemplos citados referem-se a operações mentais / cognitivas / psicológicas. 10 Para uma discussão desse artigo, ver Marantz (2001, p. 17).

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critérios assumidos por Barker (1998) dizem respeito ao que o autor chamou de “interpretação episódica” da base que dá origem à nominalização em –ee. No caso de presentee, por exemplo, Barker (1998) propõe que o evento denotado pelo verbo to present envolve três entidades, como mostrado em (17):

(17) 1. A pessoa que apresenta 2. A entidade apresentada 3. A pessoa a quem a entidade é apresentada

Para determinar qual dessas três entidades pode ser referida usando-se

o nome presentee, Barker (1998) argumenta que são necessários três fatores essencialmente semânticos:

(18) 1. O referente do nome deve ser senciente/sensível.

2. A denotação do nome deve estar ligada à denotação indicada pela base verbal (gazee deve participar do “gazing event”).

3. Falta de controle volitivo por parte do referente (amputee). A entidade que está em conformidade com os três fatores acima é a entidade 2 em (17), “a entidade apresentada” (presentee).

Parte-se agora para os dados do português referentes às formações adjetivas em –vel, sufixo que tem origem no latim, –abilis, ‘passível de’. Em geral, esse sufixo liga-se a verbos, mas há várias exceções quanto à escolha da base para a sufixação.11 Basilio (2002, p. 57) aborda o que chamou de “fenômeno de extensão de base” das formações em –vel, ao reconhecer que a base para a sufixação pode ser tanto verbal quanto nominal. A esse respeito, Lobato (2010, p. 54) assume que, para a formação adjetiva em –vel, não é necessária “certa base verbal com argumento externo e interno, mas sim a interpretação da relação semântica em questão”. Abre-se, assim, a possibilidade de que a base seja nominal, desde que esta seja capaz de estabelecer uma relação semântica com o sufixo análoga à relação estabelecida pela base verbal.

11 Um dos aspectos relevantes na interpretação das formações em –able e –vel é o da modalidade. A forma payable (pagável) do inglês, por exemplo, recebe duas interpretações: 1. required to be payed; due e 2. able to be paid (New Oxford American Dictionary). Na primeira acepção, a ideia é de ‘dever/necessidade’; na segunda, de ‘possibilidade’.

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Quanto ao fenômeno da extensão de base das formações em –vel para as formas nominais, Basilio (2002) trata especificamente dos casos presidenciável, ministeriável, prefeitável e reitorável. A autora conclui que, apesar de a base não ser verbal, a formação com os nomes tem função idêntica à de base verbal, caracterizando “algo ou alguém como paciente potencial”. Para Basilio (2002, p. 58), não são quaisquer nomes que podem servir de base para a sufixação, “mas apenas aqueles correspondentes a cargos ou funções12. Este particular nos indica que a disponibilidade para formações em –vel vem de um fator semântico, em oposição a fatores morfológicos ou sintáticos”.

Salles e Mello (2004, p. 3) propõem a formulação de critérios semânticos em termos sintáticos para analisar os adjetivos em –vel atestados em português, ainda que suas bases verbais não estejam dicionarizadas. As autoras abordam as mesmas formas propostas por Basilio (2002) (presidenciável, prefeitável, reitorável); no entanto, propõem que esses adjetivos sejam formados a partir de estrutura causativa analítica, constituída do auxiliar causativo e do nome que designa a função ou cargo (presidente, prefeito, reitor). Salles e Mello (2004, p. 12) propõem que o adjetivo presidenciável seja derivado a partir da estrutura representada abaixo em (19):

(19) O povo fez Lula presidente

As autoras argumentam que o critério semântico não dá conta da diferença entre nomes como ‘presidenciável’ e ‘gerenciável’, ambos formados a partir de nomes de cargos/ funções, respectivamente ‘presidente’ e ‘gerente’, mas somente o primeiro é derivado na estrutura causativa perifrástica. Em particular, notam que, diferentemente do ‘presidenciável’, o argumento interno de que nomes como ‘gerenciável’ predicam não é o argumento interpretado como ocupante do cargo, pois este não é o paciente, mas coisa gerenciada: o banco é gerenciável/ o gerente gerencia o banco. Nesse sentido, no caso de ‘presidenciável’, a estrutura perifrástica capta a interpretação de ‘paciente/ tema’ associada ao argumento ocupante do cargo, o que permite comparar essa formação à de verbos denominais, como ‘petrificar’, que denotam uma

12 Enquanto presidenciável, reitorável e prefeitável claramente fazem referência a um cargo ou função, (presidente, reitor e prefeito), ministeriável é transparente o bastante para ser associada ao lugar, ministério, não ao cargo ou função de ministro (*ministrável). Ainda que a interpretação de ministeriável seja claramente ligada ao cargo de ministro, a formulação quanto ao critério de cargo ou função, se considerada com rigor, não se aplicaria a essa formação.

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mudança de estado, e que geram o adjetivo em –vel ‘petrificável’. As autoras acrescentam que um requisito para a formação de adjetivos em –vel a partir de bases nominais como ‘pedra’ e ‘presidente’ é que tais nomes descrevam propriedades da estrutura do objeto de que predica, no sentido material ou abstrato – o que autoriza a interpretação de mudança de estado.

Assumindo-se que presidenciável predica do argumento interno da estrutura causativa, outro aspecto relevante é que a imposição sugerida por Basilio (2002) de que os nomes que servem de base à sufixação em –vel se refiram a cargos ou funções não se aplica aos exemplos já mencionados em (1b), em que carroçável (que se pode atravessar com uma carroça) e colunável (que pode figurar nas colunas sociais) apresentam bases nominais que não se referem a cargo ou função, carroça e coluna social.

Esses dois casos seguramente representam contra-exemplos para os quais podem ser feitas ressalvas, uma vez que são marginais e pouco usuais na língua, fruto antes de pesquisa lexicográfica do que de vocabulário de uso. Outro exemplo é o de confortável, para o qual se pode propor como hipótese inicial que também seja gerado com base nominal (conforto). As evidências que levam a considerar essa hipótese são as seguintes: tomando-se como correta a afirmação de Basilio (2002) de que o sufixo –vel caracteriza algo ou alguém “paciente potencial em relação à base (ou ao verbo base)”, se o adjetivo tivesse como base o verbo confortar, não seria possível formular uma sentença como (20) a seguir:

(20) O sofá é confortável

Em (20), sofá não é interpretado como o paciente do verbo confortar, mas como algo que “proporciona conforto físico, comodidade”. A hipótese de que confortável é formado com base nominal, no entanto, não explica a sentença (21) a seguir:

(21) O menino está confortável

Em (21), menino não possui a qualidade de “proporcionar conforto”, mas é “paciente potencial em relação à base”. Observa-se, assim, que o adjetivo confortável parece se relacionar tanto à forma verbal confortar quanto à forma nominal conforto. Observação que está de acordo com o que o dicionário registra para o adjetivo: “1. passível de ser confortado; consolável; e 2. que

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proporciona conforto físico, comodidade”, ainda que a intuição quanto à acepção 1 não seja muito clara, sendo a acepção 2 a mais comum.

Similarmente, a interpretação de um adjetivo como durável parece se relacionar tanto a um tipo de “intensificação” do evento denotado pelo verbo quanto à contraparte nominal durabilidade, como mostram os dados (22)13:

(22) a. A pilha é durável (A pilha dura muito tempo / tem durabilidade) b. O material é durável (O material dura muito tempo / tem durabilidade)

c. *O filme é durável (O filme dura três horas)

Os dados logo acima mostram que a interpretação do adjetivo relaciona-se ao aspecto do evento que é expresso pelo verbo, assim como à modalidade. Em (a) e (b), a interpretação de durável refere-se ao aspecto do evento expresso pelo verbo durar. Em (a) e (b), pode-se forçar a interpretação de que ‘pilha’ e ‘material’ têm duração estimada, o que implica uma leitura atélica; já em (c), ‘filme’ tem uma duração medida com exatidão, sugerindo que a interpretação télica é incompatível com as propriedades do adjetivo. A hipótese é a de que a não aceitabilidade de (c) refira-se à interação entre o sufixo e as propriedades aspectuais do predicado. Como atestado nos dados discutidos do inglês, os casos menos problemáticos são aqueles em que –vel se liga a verbos que admitem apassivação. Estes estão de acordo com a intuição dos autores que associaram essas formações à passiva:

(23) a. quebrável: pode ser quebrado b. lavável: pode ser lavado c. dispensável: pode ser dispensado

A partir das considerações feitas para o sufixo –able, pode-se dizer que

as formações em –vel envolvem uma derivação sintática similar à passiva? Elas apresentam a produtividade e a regularidade semântica que se espera de uma derivação sintática? Conforme Kayne (1984 apud Baker, 2003) mostra

13 Em (22), observa-se que ‘filme’ pode ter duração previsível, enquanto ‘pilha’ e ‘material’ não necessariamente. Nesse caso, parece haver algo entre o sufixo e aspecto ou modalidade do evento. Agradeço à Rozana Naves por essa observação.

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para o inglês, essas formações admitem a introdução de uma by-phrase, como em (10), reproduzido a seguir em (24a)? Os exemplos encontram-se a seguir em (24b-e):14

(24) a. This book is readable by a 10-year old b. ?O carro é lavável por um menino/pelo menino c. ?A falta/multa é justificável por um aluno/pelo aluno d. ?O vaso é quebrável pelo menino/por um menino/pelo

vento e. ?A prova é dispensável por um aluno/pelo aluno

Além de confortável, há outros adjetivos em –vel formados com base em

verbos psicológicos, que apresentam peculiaridades, como agradável; amável; apaixonável; aterrorizável; desprezível; detestável; espantável etc. Esses adjetivos recebem interpretação diferente do grupo apresentado em (23), como mostram os dados seguintes em (25):

(25) agradável: que agrada, satisfaz amável: 1. que merece afeto/amor; digno de ser amado; 2. que demonstra delicadeza apaixonável: suscetível de se apaixonar aterrorizável: passível de aterrorização desprezível: que merece desprezo detestável: digno de ser detestado, que inspira aversão espantável: que causa espanto; espantoso

Os dados em (25)15 instigam a busca pela determinação dos traços da base que são levados adiante na derivação desses adjetivos. Especificamente

14 Os julgamentos refletem a minha intuição. Outros julgamentos me foram indicados: no caso de ‘d.’, por exemplo, o indefinido parece favorecer a leitura, combinando com a ideia de ‘possibilidade’; o exemplo ‘c.’ também parece admitir a leitura de que a multa é tão ‘simples’ que poderia ser justificada por qualquer pessoa, um menino, um aluno. 15 Independentemente de o verbo ser Experienciador Sujeito ou Experienciador Objeto na versão transitiva, o sufixo –vel parece se ligar ao argumento interno (como observado por Rozana Naves). Uma exceção é o caso de espantável, que se liga ao argumento externo e tem a interpretação de espantoso (João espanta Maria: João é espantável/*Maria é espantável) – de acordo com o dicionário. Esse dado tem de ser futuramente testado, pois não parece ser esta a leitura disponível para alguns falantes, para os quais, ao contrário, a interpretação seria a de que Maria é espantável, incluindo-se nessa interpretação um caráter modal: “se espanta com facilidade”.

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porque há casos em que, de forma clara, se perde a noção de paciente, como é o caso de agradável e espantável. Nesses casos, os adjetivos referem-se ao sujeito, não ao objeto. Em (26) observa-se, ainda, que a distribuição dos adjetivos em –vel na sentença com os verbos ser/estar varia:

(26) a. O tecido é lavável / *O tecido está lavável b. O material é quebrável / * O material está quebrável c. João é agradável/ João está agradável d. O sofá é confortável/ O sofá está confortável

A respeito da distribuição de adjetivos em –vel formados a partir de

bases verbais psicológicas, considere-se ainda os dados em (27), que predicam de eventos (realizados como orações):

(27) a. Caminhar no parque é agradável b. Fazer a prova é dispensável c. Dormir na rede é confortável

Não é possível construir sentenças desse tipo com os adjetivos

apresentados em (23a-b), formas consideradas mais regulares. A generalização parece ser que formações regulares não predicam de eventos, mas tão-somente de argumentos que descrevem entidades.

Na comparação com os dados do inglês, há também o caso dos verbos que recebem complemento introduzido por preposição, e que geram adjetivos em –vel, como (28a-c), exemplos também fogem à regra que presume a preferência por bases verbais que permitem apassivação. No entanto,diferentemente do inglês, nem todos os verbos preposicionados em português permitem a contraparte adjetiva (28e-g) (exemplos extraídos de SALLES e MELLO: 2004, p.10):

(28) a. acreditar em: acreditável b. gostar de: gostável c. confiar em: confiável e. depender de: *dependível f. desistir de: *desistível g. insistir em: *insistível

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4 Considerações finais

Neste artigo, abordamos questões da morfologia derivacional que envolvem mudança de categoria lexical e sensibilidade à categoria lexical na formação de palavras por derivação. A discussão concentrou-se primordialmente nas formações adjetivas em –able e –vel, do inglês e do português, respectivamente, mostrando que, para ambos os sufixos, não é possível determinar uma única base para a sufixação. Os dados investigados, bem como as análises já propostas na teoria, apontam para aspectos que ainda precisam ser investigados a respeito dessas formações. É consenso que as raízes não podem ser interpretadas livremente, estando submetidas à imposição de que devem se ligar a um núcleo funcional que definirá sua identidade categorial. No entanto, não há consenso a respeito de qual é o papel das raízes e da estrutura funcional na construção do significado da palavra formada. Como os dados mostraram ao longo do trabalho, há casos em que a base que serve de sufixação apresenta comportamento regular e previsível, e casos em que, ainda que a base seja uma palavra categorizada na língua, observa-se um comportamento imprevisível. Fica clara, assim, a necessidade de se estabelecer qual é o papel da base e do sufixo na interpretação das formações adjetivas geradas. O estudo aprofundado dessas formações poderá trazer fundamentação para o debate quanto à natureza dos processos morfológicos e ao lugar da morfologia na gramática. Referências ARONOFF, M. Morphology by Itself: Stems and Inflectional Classes. Cambridge, Massachusetts, London, England: The MIT Press, 1994. ARONOFF, M. Word Formation in Generative Grammar. The MIT Press, 1976. BAKER, M. C. Lexical Categories – Verbs, Nouns, and Adjectives. Cambridge University Press, 2003. BARKER, C. Episodic –ee in English: a thematic role constraint on new word formation. Language, 1998. Disponível em: <http://semarch.linguistics.fas.nyu.edu/barker/Research/index.html#ee>. Acesso em: 10 jun. 2012.

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FAZENDO SENTIDO NA AUSÊNCIA DE SENTIDO DO POEMA “JABBERWOCKY”

Clarice Melo Ferreira

Resumo: “Jabberwocky” de Lewis Carroll, presente no livro Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá, é considerado um dos maiores poemas nonsense em inglês. Este trabalho analisa o poema baseado em comentários do próprio autor e através de uma pesquisa dos significados de suas palavras incoerentes e neologismos em dicionários da língua inglesa. Ao confrontar a análise com a teoria da construção de sentido, o artigo leva em consideração a teoria do nonsense e o sentido da palavra poética para desvendar a relevância do significado das palavras no contexto poético do nonsense. Aborda ainda a participação de outros elementos estruturais inerentes à poesia e a importância do que a palavra não significa na construção do sentido. Palavras-chave: Construção do sentido. Nonsense. Significado das palavras. Abstract: “Jabberwocky” by Lewis Carroll, from Through the Looking Glass and What Alice Found There, is considered one of the greatest nonsense poems in English. This paper analyses the poem based on the author’s own comments and through dictionary search for the meaning of its incoherent words and neologisms. When it confronts the analysis to the theory of construction of sense, this work takes into consideration the theory of nonsense and the sense of the poetic word in order to reveal word meaning relevance in the poetic context of nonsense. It also approaches the role of other structural elements inherent to poetry and the importance of what the word does not mean. Keywords: Construction of sense. Meaning of words. Nonsense. 1 INTRODUÇÃO

Na literatura nonsense, Lewis Carroll é um nome de destaque. Ele criou um mundo fantástico onde situações aparentemente sem sentido, nunca antes

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imaginadas, desenvolvem-se no desenrolar de belas e envolventes histórias. A confusa Alice aos poucos aprende que as regras de lógica e coerência aprendidas no lugar de onde ela veio são as verdadeiras coisas sem sentido no País das Maravilhas. Quando uma nova aventura a leva para um mundo através de um espelho, mais uma vez Alice tem que desvendar as leis que regem o local.

É nesse contexto que encontramos “Jabberwocky”, importante poema nonsense da língua inglesa, que se encontra completo no Anexo A deste trabalho. Inicialmente parecia uma língua desconhecida, mas logo a menina entende que os versos estão ao contrário. “Ora, este é um livro do Espelho, claro! E se eu o segurar diante de um espelho as palavras vão aparecer todas na direção certa de novo” (CARROLL, 2002, p. 143). Porém não foi o bastante para tornar o poema inteligível. Recheado de palavras incoerentes e neologismos, “Jabberwocky” deixa Alice atônita, mas encantada: “Parece muito bonito, mas é um pouco difícil de entender!” (CARROLL, 2002). É interessante notar aqui que o poema escrito por Carroll obedece à sintaxe inglesa, segue o verso pentâmetro iâmbico, típico inglês, e talvez por isso tenha soado tão belo a Alice, apesar da menina não conseguir apreender o significado dos versos. Será essa a reação que Carroll esperava causar no seu leitor?

Figura 1: A primeira estrofe do poema como apareceu para Alice

Fonte: Carroll (2000)

O foco deste trabalho na análise do poema “Jabberwocky” são

exatamente as palavras nonsense presentes no texto. Tomando como ponto de partida noções da teoria da construção do sentido e sua relação com o mundo nonsense, esta análise se utiliza de pesquisa feita em diversos dicionários a fim de investigar se é possível fazer senso dos neologismos do autor inglês a partir de outros itens do léxico inglês. São extremamente valiosos os comentários do próprio Carroll acerca dos significados de suas palavras, mas sua relutância

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em esclarecer certos termos levanta a dúvida sobre até que ponto suas explicações seriam exatas.

Outras características do poema são abordadas, como seus elementos tipicamente poéticos e os inegavelmente narrativos. “Jabberwocky” não se destaca apenas por suas palavras incoerentes, mas também pela mistura de aspectos tradicionais e inovadores. Diante das idiossincrasias do poema, busca-se desvendar a importância do significado dessas palavras na compreensão textual. 2 CONSTRUÇÃO DE SENTIDO

A construção de sentido é um processo dinâmico, uma vez que “o sentido não está no texto, mas se constrói a partir dele, no curso de uma interação” (KOCH, 2005). Em contato com um texto, o leitor precisa recorrer a seu conhecimento de mundo assim como a seu conhecimento linguístico a fim de que o sentido seja estabelecido. A barreira mais evidente que pode encontrar nesse processo é no campo léxico, por isso a busca pelo significado das palavras parece ser uma estratégia importante da compreensão textual.

Eduardo Guimarães destaca dois aspectos da obra de Bréal (1883 apud GUIMARÃES, 2005, p. 13) que colocam em xeque essa estratégia: “1) questões de significação não podem ser tratadas pela via etimológica, mas pela consideração de seu emprego; 2) é preciso considerar a palavra nas suas relações com outras palavras, no conjunto do léxico, nas frases em que aparecem.” O significado das palavras é construído primeiro pela relação de uma palavra com as outras da sentença e em seguida pelo contexto no qual a palavra é empregada. Guimarães aponta ainda o problema do corte saussuriano. Ao estabelecer que o que interessa é o valor do signo, constituído por uma relação interna ao sistema, significante e significado, Saussure exclui o referente, o mundo, o sujeito e a história da construção do sentido.

Entender que a linguagem pode ir além dos aspectos linguísticos, porém, não é necessariamente libertá-la de certas regras e padrões. A coerência textual, elemento fulcral da construção do sentido e do próprio texto, existe diante da possibilidade de se estabelecer a relação existente entre seus elementos. Koch e Travaglia (2003) argumentam que, apesar de não se bastarem para a compreensão, a importância dos elementos linguísticos e do significado, particularmente, nesse ponto é indiscutível. São elementos que podem servir de gatilho para reavivar os conhecimentos armazenados na

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memória ou para elaboração de inferências (KOCH; TRAVAGLIA, 2003). Talvez por isso Carroll tenha mantido em seus textos, como aponta Deleuze (2011), certo rigor sintático e gramatical, deixando suas invenções para o vocabulário.

No caso do significado das palavras, pode-se imaginar que quanto maior o conhecimento linguístico do leitor, maior sua capacidade de decodificar as palavras e deixá-las agir como gatilho. Contudo, pode-se perceber que Carroll entendia o sentido como algo mais abrangente que a mera significação no poema “Jabberwocky”, que aparece em Através do Espelho, onde a construção de sentido se mostra inegavelmente de vanguarda. 2.1 O NÃO-SENTIDO DO NONSENSE

“Vamos fazer de conta que o espelho ficou todo macio, como gaze, para podermos atravessá-lo” (CARROLL, 2002, p. 138). É assim, fazendo de conta, que Alice embarca em uma nova aventura. Da mesma maneira, fazendo de conta, encaramos o mundo do nonsense. Defini-lo ainda é um desafio. Gilles Deleuze (1990) estabelece que a relação entre sentido e nonsense não é comparada àquela entre verdadeiro e falso, ou seja, não pode ser entendida em uma relação de exclusão. Por isso não é possível conceber o nonsense como a ausência de sentido. Ele é a negação do sentido. Uma negação remete sempre a uma afirmação. Assim, o nonsense afirma o sentido paradoxalmente. (DELEUZE, 1990).

Assim, é possível entender melhor a afirmação de Michael Holquist (1992, p. 390) de que nonsense “não é o caos, mas o oposto do caos”. Mais à frente o professor estabelece uma importante distinção entre nonsense e absurdo. Para ele, o absurdo joga com a ordem e a desordem, apontando discrepâncias entre valores puramente humanos e valores puramente lógicos. O nonsense, por sua vez, trata apenas da ordem, apontando contrastes entre um sistema de ordem e outro sistema de ordem (HOLQUIST, 1992). Holquist defende que, por ser sistemático, o sentido do nonsense pode ser apreendido.

Quando o Lírio-tigre explica a Alice que as flores de outros jardins não falam porque os canteiros são fofos demais e elas estão sempre dormindo percebe-se que há lógica naquele mundo, há leis que o regem e que são entendidas pelas criaturas que o habitam. Apesar do estranhamento do primeiro contato, Alice logo percebeu que o livro do Espelho estava invertido e que precisaria de um espelho para ver as palavras na direção certa. O leitor

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mais atento também logo entende o conselho que a Rosa dá a Alice: nesse mundo invertido, através do espelho, é preciso ir à direção contrária para encontrar alguém. Como em um jogo, precisamos estar dispostos a estabelecer as mais diversas associações e estar receptivos às diferentes relações que se apresentam diante de nós. 2.2 A PALAVRA POÉTICA E A POESIA NONSENSE

“Seja como for, parece encher minha cabeça de ideias... só não sei exatamente que ideias são” (CARROLL, 2002, p. 145). Segundo Martin Gardner (2002), é nessa fala de Alice que se encontra o segredo do encantamento do poema “Jabberwocky”, pois “embora não tenham nenhum sentido, as palavras estranhas se harmonizam com sugestões sutis” (GARDNER, 2002, p. 146).

A linguagem poética traz em si uma liberdade que desafia os limites do sentido e re-significa o signo. Qual seria então o sentido da palavra poética? Não é possível atribuir à palavra poética apenas um papel significativo ou um significado preciso. No poema a palavra deixa de ser uma unidade da categoria lexical e se destaca através de outros fatores como seu ritmo, sua sonoridade, e principalmente pela forma como se relaciona com as outras palavras. A harmonização observada por Gardner em “Jabberwocky”.

É possível inferir que a rigidez com que Lewis Carroll trabalhou a forma de seu poema é a grande responsável pela sensação de sentido que os versos passam ao leitor. Não há desafios à norma culta da língua inglesa, as rimas são bem amarradas e o tamanho dos versos, consistentes. As provocações propostas por Carroll estão todas em suas palavras.

Assim, enquanto a linguagem poética desafia os limites do sentido, a linguagem poética nonsense os extrapola, superando o próprio sentido. O poeta nonsense é comparado ao pintor abstrato ao sugerir significados vagos sem reproduzir as cores e formas agradáveis da realidade (GARDNER, 2002). Como defende Novalis (apud TINIANOV, 1975), “pode-se imaginar poemas cheios de belas palavras, mas sem nenhum sentido ou nexo, e somente esta ou aquela estrofe serão compreendidas como partes independentes”. Iuri Tinianov (1975) nos chama a atenção para a exigência de “belas palavras”, indicando a importância do som sobre o sentido. Em uma passagem do primeiro livro escrito por Lewis Carroll, o rei pergunta ao príncipe o significado

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de uma palavra e o príncipe responde: “Não sei dizer, meu senhor, senão que se encaixa mais adequadamente na métrica” (GARDNER, 2002, p. 148). 3 O NOVO VOCABULÁRIO DE CARROLL

“Posso explicar todos os poemas que foram inventados – e muitos que ainda não o foram” (CARROLL, 2002, p. 205). Humpty Dumpty não chega a explicar “Jabberwocky” a Alice, mas oferece significado para todas as palavras intricadas da primeira estrofe e a menina parece ficar satisfeita com isso. Sabemos, assim, que bryllig (briluz)16 é derivado do verbo to broil e se refere às 4 da tarde – quando começa-se a cozinhar (broil) o jantar; slythy (lesmolisas) é composto de slimy e lithe e significa liso e ativo; tove (touvas) é uma espécie de texugo; gyre (roldavam) é um verbo que quer dizer girar e girar como um giroscópio; gymble (relviam) vem de gimblet e significa furar buracos em tudo; wabe (gramilvos) são os canteiros de grama em volta de um relógio de sol; mimsy (mimsicais) vem de flimsy e miserable e significa infeliz; borogove (pintalouvas) é um tipo de pássaro magrelo com aparência surrada; mome17 é abreviação para from home, fala de alguém que perdeu seu caminho; rath18, uma espécie de porco verde; e outgrabe (grilvos) é o passado do verbo outgribe e é “algo entre estridular, guinchar, cricrilar, estrilar, estrilar e assobiar com uma espécie de espirro no meio” (CARROLL, 2002).

A primeira e última estrofe de “Jabberwocky” se repetem. Os versos enigmáticos são:

'Twas brillig, and the slithy toves Did gyre and gimble in the wabe; All mimsy were the borogoves, And the mome raths outgrabe (CARROLL, 2000, p. 148)

Ela pode então ser traduzida como: Era 4 da tarde, e os texugos lisos e ativos estavam girando e girando e furando buracos na grama em volta do relógio de sol; muito infelizes estavam os pássaros magrelos; e os porcos

16 As traduções do poema “Jabberwocky” apresentadas são de Augusto de Campos por sua preocupação em manter a mesma atmosfera do poema original. Mantivemos a forma como aparecem no poema, por isso pode haver mudança de classe gramatical ou tempo verbal. A tradução completa encontra-se no Anexo B deste trabalho. 17 Augusto de Campos traduz os termos mome e rath como uma única palavra: momirratos. 18 Idem.

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verdes perdidos guinchavam. Já havia uma indicação que os versos parecem estabelecer o cenário da ação narrada no poema; falar de texugos lisos e ativos, pássaros infelizes e porcos verdes que guinchavam, porém, não adiciona muito significado à compreensão geral.

As outras estrofes do poema diferem dessa primeira no uso mais moderado das palavras nonsense. Podemos não conhecer o significado de vorpal, mas sabemos que se refere a uma espada. Como uma criança a descobrir as palavras, a interrogação nos leva ao dicionário. A busca nos deixa sem resposta entre os verbetes voracious e vortex (PENGUIN, 2006), contudo. Voltamos ao texto de Carroll (2000, p. 149): “He took his vorpal sword in hand”19 e percebemos a aproximação entre vorpal e mortal. Por que não usar a segunda opção, com o mesmo número de sílabas, mesma sonoridade? Porque uma vorpal sword não é simplesmente uma espada mortal – é mais que isso. O quê? Não importa realmente. É um novo conceito apresentado.

Na segunda estrofe, o personagem é avisado a evitar (shun) o Bandersnatch e o chama de frumious. Se é preciso evitá-lo, entendemos que frumious não pode ser uma qualidade positiva e somos remetidos a furious. Novamente não se pode considerar uma mera relação de sinonímia entre as palavras. No prefácio de outro poema nonsense, Carroll (2004) explica que outro significado está contido em frumious: fuming, aquele que emite um tipo de gás venenoso ou irritante. Esse novo tipo de palavra, que abarca o conceito de duas ou mais outras palavras, mas não cria um novo significado, foi criada por Carroll e é chamada de palavra-valise (em inglês portmanteau word). Da primeira estrofe de “Jabberwocky”, slythy e mimsy são outros exemplos de palavra-valise.

Seguindo o mesmo caminho, suspeitamos de uma conotação negativa para manxome, uma vez que caracteriza o inimigo (foe): “Long time the manxome foe he sought”(CARROLL, 2000, p. 149)20. À primeira vista procuramos nela uma palavra-valise. Primeiramente identificamos man, ou manly, alusivo ao que tem qualidades consideradas masculinas. A busca por palavras terminadas em –xome foi mais difícil. William Long (2007) sugere que a segunda palavra seja buxom, que na Idade Média significava despreocupado, animado (hoje em dia refere-se a uma mulher corpulenta) (PENGUIN, 2006). O adjetivo nonsense parece, assim, caracterizar a criatura Jabberwock como confiante de que não corre perigo. O significado, porém, não condiz com a postura do Jabberwock na terceira estrofe – a criatura vai ao encontro de seu

19 “Ele arrancou sua espada vorpal” (CAMPOS, 1980) 20 “E foi atrás do inimigo do Homundo.” (CAMPOS, 1980)

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adversário, pronta para a batalha – nem tampouco representa uma palavra-valise, pois as duas palavras originais unidas estariam criando um novo significado. Como esta foi uma das palavras para as quais Carroll não ofereceu explicações, pode-se adotar a conotação negativa para manxome indicada pelo contexto semântico das palavras próximas a ela e prescindir de seu significado.

Uffish thought, que aparece na quarta estrofe – “And, as in uffish thought he stood” (CARROLL, 2000, p. 149)21 – foi um tipo de pensamento (thought) impossível de ser desvendado. O dicionário não nos ofereceu muitas pistas além do sufixo -ish que forma adjetivos a partir de substantivos ou de outros adjetivos. Contudo não foi possível encontrar o verbete uff nos dicionários nem qualquer palavra que se aproximasse. Apenas o próprio Carroll poderia esclarecer esse caso e a explicação para uffish está no som das outras palavras da qual se origina: “Parece sugerir um estado de espírito em que a voz está um pouco rouca, a maneira um pouco bruta e o temperamento um pouco raivoso” 22 (CARROLL, 1877 apud GARDNER, 2000, p. 153).

No mesmo trecho em que explica uffish, Carroll diz que não pode oferecer uma explicação para tulgey wood. Mais uma vez é possível pensar em uma palavra-valise. Ao buscar na Internet palavras terminadas em -gey foi encontrada a palavra fogey que refere-se ao que está fora de moda ou ao tradicional e, por dar uma característica a uma floresta, é possível pensar em tradicional como antigo e pensar em uma floresta antiga, com árvores bem desenvolvidas. A busca por palavras iniciadas em tul- ou similares mostrou-se infrutífera, mas tendo aprendido com Carroll, através da definição de uffish, a importância dos sons, pode-se tul- ao advérbio de intensidade too e visualizar uma floresta antiquíssima, densa, escura e assustadora. Obviamente a palavra não se caracteriza como uma palavra-valise, mas a estratégia mostrou-se válida.

A palavra composta snicker-snack parece ser usada para descrever o movimento da espada vorpal: “The vorpal blade went snicker-snack!” (CARROLL, 2000, p. 149)23. Seria simples de atribuir um significado a ela se os significados de cada palavra que a compõe fizessem sentido no contexto – mas também nesse caso ela não seria uma palavra nonsense. Snicker é uma maneira específica de rir (frequentemente ridícula) e snack é uma pequena refeição, um lanche, ou o ato de consumi-la. Ou seja, o significado das

21 “E enquanto estava em sussustada sesta” (CAMPOS, 1980) 22 “It seemed to suggest a state of mind when the voice is gruffish, the manner roughish, and the temper huffish”. As traduções que não envolvem os textos poéticos são nossas. 23 “Vai-vem, vem-vai, para trás, para diante!” (CAMPOS, 1980)

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palavras nada tem a acrescentar. Uma rápida pesquisa na Internet, contudo, mostra que ao invés de aludir ao movimento da espada, snicker-snack pode ser o som que a lâmina produz durante o movimento, como uma onomatopeia nonsense. Essa teoria é amplamente aceita entre os falantes de língua inglesa e a definição correspondente já consta nos dicionários informais online.

A tentativa de descobrir o significado de galumphing, presente no último verso da quinta estrofe, trouxe um resultado inesperado: lá estava, entre galosh e galvanic (PENGUIN, 2006), devidamente creditada a Lewis Carroll. A palavra descreve a maneira triunfante que o herói galopa depois de matar a fera:

galumph /gə’lumf/ verb intrans informal to stride along or bound around with exuberant din: He left it dead, and with its head he went galumphing back. – Lewis Carroll. >> galumphing adj. [prob from GALLOP + TRIUMPHANT; coined by Lewis Carroll d. 1898, English writer]

Entretanto galumphing não foi a única palavra encontrada no dicionário. Segundo Long (2007), o Oxford English Dictionary, aparentemente o único dicionário que contém este verbete, diz que frabjous, no terceiro verso da sexta estrofe, significa fair (em português, justo) ou joyous (em português, alegre). Em sua versão online, os dicionários da Oxford (2012) oferecem as palavras delightful e joyous como definição de frabjous e explicam sua origem: “criada por Lewis Carroll em Através do Espelho, aparentemente para sugerir justo e alegre”24. Se ficarmos apenas com a definição do dicionário o significado de fair se perde, portanto, frabjous é uma palavra-valise e precisamos dos dois significados, justo e alegre, para defini-la.

Assim como galumphing e frabjous, chortled, do último verso da sexta estrofe, também encontrou seu caminho para os dicionários, no modo infinitivo. A edição da Penguin (2006) define como “rir ou dar risada, especialmente com satisfação ou júbilo” 25. A versão online da Oxford (2012) diz que chortle é “rir de maneira barulhenta, alegre” 26. Ambas creditam a criação da palavra a Carroll e dizem que é uma mistura de chuckle (dar risada) e snort (bufar).

24 “coined by Lewis Carroll in Through the Looking Glass, apparently to suggest fair and joyous”. 25 “to laugh or chuckle, especially in satisfaction or exultation”. 26 “laugh in a noisy, gleeful way”.

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3.1 SERES E MONSTROS

É pertinente ressaltar que na construção de sentido em “Jabberwocky” o conhecimento prévio do leitor acerca de monstros e heróis representa um importante papel. Encontramos, no poema, o próprio Jabberwock, o pássaro Jubjub e uma criatura chamada Bandersnatch. Nenhuma descrição é dada sobre a aparência física dos seres, mas apreende-se a periculosidade deles a partir dos versos “Beware the Jabberwock, my son! / The jaws that Obite, the claws that catch! / Beware the Jubjub bird, and shun / The frumious Bandersnatch!” (CARROLL, 2000, p. 148)27 nos quais o herói é avisado para tomar cuidado (beware) com essas criaturas.

Na ilustração original de John Tenniel, o Jabberwock é retratado como uma besta horrível com asas gigantes similares às de um morcego. O pássaro Jubjub reaparece em The hunting of the snark, onde é descrito muito de seu comportamento, mas pouco de sua aparência. Deduz-se que se trata de um pássaro gigante e assombroso. O Bandersnatch também reaparece em The hunting of the snark. Novamente não há uma descrição detalhada de sua aparência, mas a partir dessa obra é possível saber que o Bandersnatch tem um longo pescoço e presas muito fortes (CARROLL, 2004).

Figura 2: Ilustração do Jabberwock

Fonte: Tenniel (2000)

27 ““Foge do Jaguadarte, o que não morre! / Garra que agarra, bocarra que urra! / Foge da ave Felfel, meu filho, e corre / Do frumioso Babassurra!” (CAMPOS, 1980)

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Outra questão relacionada aos seres que aparecem no poema de Carroll é a diferença entre o nome do monstro, Jabberwock, e o nome do poema, Jabberwocky. O sufixo –y em inglês é usualmente adicionado a substantivos e verbos para formar adjetivos (PENGUIN, 2006). No poema de Lewis Carroll, podemos inferir que adjetivo formado indica que o herói precisou agir tão ferozmente quanto o monstro para enfim derrotá-lo. 4 A LÍRICA NARRATIVA

Numa profusão de palavras nonsense, o leitor tende a se apegar às palavras conhecidas em busca da total compreensão do poema. As palavras sword (espada), eyes of flame (olhos de fogo), dead (morto) e joy (alegria), por exemplo, dão a ideia de uma luta (sword), com um ser perigoso (eyes of flame), derrotado no final (dead e joy). Porém o sentido que as palavras ajudam a construir não se limita a seus significados.

A construção em versos e, especialmente, a musicalidade de “Jabberwocky” não nos deixa dúvida de que se trata de uma composição lírica. Porém, como Helena Parente Cunha (1975) coloca, na essência lírica há sempre um eu que se expressa, tornando íntima a relação entre o eu e o mundo. O que encontramos em “Jabberwocky”, contudo, é o distanciamento entre o narrador e o mundo narrado, típico do gênero narrativo (CUNHA, 1975).

O primeiro fenômeno estilístico (CUNHA, 1975) que podemos observar em “Jabberwocky” é o uso do tempo pretérito – e é interessante ressaltar aqui que Carroll criou formas no passado inclusive para os verbos inventados por ele, como outgrabe que é o passado de outgribe, e chortled que se apresenta como passado de chortle. Além disso, pode-se observar que o poeta é um narrador, narra ações das personagens, narra a luta em que o monstro Jabberwock foi derrotado. A apresentação dos fatos obedece a um caráter progressivo: identificamos facilmente a passagem do início para o clímax e então o desfecho.

Todas essas características mostram que os gêneros lírico e narrativo se misturam no poema de Lewis Carroll. Desta forma, é possível entender melhor os versos como uma sequência de acontecimentos.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A teoria da construção de sentido e da coerência textual mostra que o significado das palavras tem o seu papel na compreensão do texto, pois podem reavivar a memória ou servir de ponto de partida para construir deduções (KOCH; TRAVAGLIA, 2003). O significado sozinho, porém, não se basta para desvendar o texto. Outros elementos como contexto e experiências do leitor também devem ser levados em consideração.

Mesmo sendo um elemento importante para a construção do sentido, a significação é prescindível na teoria nonsense, que estabelece sua própria lógica. Essa lógica é difícil de ser apreendida, pois apesar de negar o sentido, o nonsense não se opõe a ele (DELEUZE, 1990). Percebe-se, inclusive, através do estudo da poesia nonsense, que se trata de uma literatura carregada de sentido. Porém, esse sentido está no som, no ritmo, na relação entre as palavras, numa conjugação verbal, muito mais do que em um significado. Os próprios comentários de Carroll mais confundem do que esclarecem – e não há dúvidas de que isso foi proposital. As explicações de Humpty Dumpty para a primeira estrofe do poema, por exemplo, não a tornam nem um pouco mais acessível.

Diversos estudiosos se dedicaram à busca pelo significado das palavras nonsense de “Jabberwocky” (GARDNER, 2000). E ela se mostra, de fato, um belo exercício etimológico que nos permite brincar com as possibilidades semânticas apresentadas pelo texto. Diante do apresentado, porém, percebemos que o significado em si pouco tem a acrescentar à construção do sentido. O distanciamento entre o narrador e o mundo narrado, característica do gênero narrativo (CUNHA, 1975), revela mais sobre o poema do que o significado de outgrabe. Muitas vezes é o não-significado das palavras que muito tem a dizer – como saber que manxome não é uma qualidade positiva. Por fim, a questão da construção de sentido em “Jabberwocky” não se esgota neste trabalho. Novas pesquisas podem ser feitas a fim de aprofundar e explorar o assunto a partir de outras óticas. REFERÊNCIAS CAMPOS, A. de. Tradução dos poemas. In: CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no país das maravilhas e Através do espelho e o que Alice encontrou lá. Tradução de Sebastião Uchoa Leite. 9. ed. São Paulo: Summus Editorial, 1980.

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CARROLL, L. Alice: edição comentada. Tradução de Maria Luiza Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. ______. The annotated Alice: The definitive edition. New York: Norton, 2000. ______. The Hunting of The Snark. An agony in eight fits. Los Angeles: Tigertail Associates, 2004. CUNHA, H. P.. Os gêneros literários. In: PORTELLA, Eduardo et alii. Teoria Literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p. 93-115. DELEUZE, G.. The logic of sense. Londres: The Athlone Press, 1990. GARDNER, M. (Notas) In: CARROLL, Lewis. Alice. Edição Comentada. Tradução de Maria Luiza Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002 ______. (Introduction and notes). In: CARROL, Lewis. The annotated Alice: The definitive edition. New York: Norton, 2000. GUIMARÃES, Eduardo. Os Limites do Sentido. Um estudo histórico e enunciativo da linguagem. 3 ed. Campinas: Pontes, 2005. HOLQUIST, M. What is a Boojum? Nonsense and Modernism. In: CARROL, Lewis. Alice in Wonderland. Organised by Donald J. Gray. 2. ed. New York: Norton Critical Editions, 1992, p. 388-398. KOCH, I. V.; TRAVAGLIA, L. C. A coerência textual. 15 e. São Paulo: Contexto: 2003. KOCH, I. V. O texto e a construção dos sentidos. 8. ed. São Paulo: Contexto, 2005. LONG, W. Jabberwocky. Dr Bill Long website, 2007. Disponível em <http://www.drbilllong.com/2008Words/Jabber.html>. Acesso em: 20 out. 2012. OXFORD dictionaries. Oxford University Press, 2012. Disponível em: <http://oxforddictionaries.com/>. Acesso em: 20 out. 2012.

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PENGUIN Complete English Dictionary. London: Penguin Books, 2006. TENNIEL, J. (Original illustrations). In: CARROL, Lewis. The annotated Alice: The definitive edition. New York: Norton, 2000. TINIANOV, I. O problema da linguagem poética II. O sentido da palavra poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1875.

ANEXO A JABBERWOCKY Lewis Carroll ‘Twas brillig, and the slithy toves Did gyre and gimble in the wabe: All mimsy were the borogoves, And the mome raths outgrabe. “Beware the Jabberwock, my son! The jaws that bite, the claws that catch! Beware the Jubjub bird, and shun The frumious Bandersnatch!” He took his vorpal sword in hand: Long time the manxome foe he sought -- So rested he by the Tumtum tree, And stood awhile in thought. And, as in uffish thought he stood, The Jabberwock, with eyes of flame, Came whiffling through the tulgey wood, And burbled as it came! One, two! One, two! And through and through The vorpal blade went snicker-snack! He left it dead, and with its head

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He went galumphing back. ‘And, has thou slain the Jabberwock? Come to my arms, my beamish boy! O frabjous day! Callooh! Callay!’ He chortled in his joy. ‘Twas brillig, and the slithy toves Did gyre and gimble in the wabe; All mimsy were the borogoves, And the mome raths outgrabe.’

ANEXO B JAGUADARTE Tradução de Haroldo de Campos Era briluz. As lesmolisas touvas Roldavam e relviam nos gramilvos. Estavam mimsicais as pintalouvas, E os momirratos davam grilvos. “Foge do Jaguadarte, o que não morre! Garra que agarra, bocarra que urra! Foge da ave Felfel, meu filho, e corre Do frumioso Babassurra!” Êle arrancou sua espada vorpal E foi atrás do inimigo do Homundo. Na árvora Tamtam êle afinal Parou, um dia, sonilundo. E enquanto estava em sussustada sesta, Chegou o Jaguadarte, ôlho de fogo, Sorrelfiflando através da floresta, E borbulia um riso louco!

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Um, dois! Um, dois! Sua espada mavorta Vai-vem, vem-vai, para trás, para diante! Cabeça fere, corta, e, fera morta, Ei-lo que volta galunfante. “Pois então tu mataste o Jaguadarte! Vem aos meus braços, homenino meu! Oh dia fremular! Bravooh! Bravarte!” Êle se ria jubileu. Era briluz. As lesmolisas touvas Roldavam e relviam nos gramilvos. Estavam mimsicais as pintalouvas, E os momirratos davam grilvos.

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AS TOADAS DE BUMBA-MEU-BOI: SOCIABILIDADES, CONFLIT OS E ASSOCIAÇÕES

Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho28 Heridan Guterres Pavão Ferreira29

Denise Maria Soares Lima30 Resumo: O bumba-meu-boi, consagrado patrimônio imaterial do Brasil, é composto por um conjunto de toadas, que compõem a cena musical de uma das mais belas e tradicionais manifestações do Maranhão. Esse artigo pretende sobrepor a lógica de análise clássica do estudo das letras dessas toadas, buscando efetuar o estudo sobre os discursos presentes revelados no cotidiano dos sujeitos retratados nestas narrativas. Neste sentido, as toadas são marcadas por relações de poder que tanto expressam conflitos como soluções. O discurso corrente mostra associações, sociabilidades e outros modos de integração, assim como a compreensão dessas manifestações protagonizadas por esses atores envolvidos podem conduzir a entender problemas sociais, bem como apontar possíveis soluções. Introdução

Religião e festas são temas importantes no cotidiano das camadas populares e denotam quais valores são considerados na formação de uma identidade étnica e cultural. De modo especial no estado do Maranhão e em todo o nordeste, religião e festas constituem tema de grande relevância na vida de muitas pessoas, as quais vêem suas rotinas modificadas no percurso do ano, pela organização ou participação em festas e atividades como o bumba-meu-boi.

28 Professor da rede pública municipal e estadual do Maranhão, mestrando em Educação da Universidade Católica de Brasília/DF e pesquisador da Cátedra UNESCO da mesma Universidade e do Grupo de Linguagens, Cultura e Identidades da UFMA. 29 Professora mestra, graduada em Letras e professora Assistente da Universidade Federal do Maranhão e pesquisadora do Grupo de Linguagens, Cultura e Identidades da UFMA. 30 Professora, advogada, mestre em Educação da Universidade Católica de Brasília/DF e pesquisadora da Cátedra UNESCO da mesma Universidade.

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As festas não representam somente momentos de lazer. Constituem-se trabalho árduo, porém prazeroso para aqueles que delas fazem parte e, no que concerne ao bumba-meu-boi, isto não é diferente.

Brincar bumba-boi não somente atrai como envolve as pessoas que dele participam, no Maranhão, esse envolvimento se dá por conta do ciclo junino que começa logo após o carnaval e segue até meados de setembro. Esse é o bumba-boi em seu plano ritual, que começa com o batizado que ocorre no início de mês de junho; logo em seguida, se tem o período das brincadas, que vai do mês do começo do mês de junho, logo após o batizado do boi, até o final do mês de junho. Embora essa seja a configuração original das brincadas, no mês de julho tem-se a extensão desse período por mais um mês com o projeto “Vale Festejar”. Logo após as brincadas vem a morte do boi, também chamada da matança, palhaçada ou doidice

Esta brincadeira afrodescendente se tornou a mais expressiva manifestação cultural do estado, e sua diversidade é tão grande que ela é dividida em categorias, que são chamadas de sotaque (AZEVEDO NETO, 1997, REIS, 2000). O sotaque tenta organizar as brincadeiras, tentando assim classificar os tipos de bumba-boi pelas suas características, os sotaques mais conhecidos são: Matraca ou Ilha, Zabumba ou Guimarães, Pindaré ou Baixada, Orquestra e Costa de mão. Esses sotaques, por sua vez, são caracterizados pela composição de múltiplas expressões artísticas, entre essas o teatro, a música, a dança, a poesia e a literatura, sendo as toadas um elemento importante neste vasto repertório cultural regional.

Nesse contexto, este trabalho se propõe a analisar os valores afro-brasileiros, presentes nas toadas de pique, entoadas no bumba-meu-boi sotaque de matraca, tomando como base para tal análise, a poesia trovadoresca, haja vista a mesma, especialmente no que diz respeito às cantigas de escárnio e às de maldizer, apresentarem semelhanças com as toadas de pique.

Contextualizando as toadas: literatura e cultura or al

Encontram-se na literatura da antropologia e da sociologia publicações que abordam a temática das manifestações culturais, inclusive o bumba-meu-boi, considerando-o sobre vários aspectos. No Maranhão, mais precisamente na cidade de São Luís, muitos são os grupos de bumba-meu-boi. No passado, havia uma maior predominância dos grupos do sotaque Matraca ou Ilha, com o

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passar do tempo os grupos de Orquestra foram se multiplicando e hoje representam maioria.

Tais grupos de bumba-meu-boi, a cada ano, apresentam novas toadas que levam sempre em consideração ou mesmo inspiração, como dizem os cantadores a lua, a natureza, Jesus, os reis da encantaria, entre outros. Os bois em geral dividem as apresentações da seguinte forma: a) guarnicê, que é o reunir da brincadeira; b) chegada, que representa a entrada da brincadeira no terreiro; c) lá vai, que representa o momento em que o boi já está no terreiro e começa a evoluir; d) o urro, que representa o momento em que o boi entra na brincadeira e e) a despedida, que é a última, ou últimas toadas cantadas antes de o boi encerrar sua apresentação.

As toadas, porém, não são somente para render louvor a São João, a São Pedro e a São Marçal. Elas também servem para manter vivas tradições, exaltando características peculiares das comunidades de origem. Nos bois de Matraca entre o urro e a despedida, geralmente se cantam algumas toadas chamadas de toadas de pique, que são toadas feitas para desafiar e, muitas vezes, para ridicularizar o cantador do outro grupo ou o grupo inteiro. Essas toadas são carregadas de ironia e irreverência e fazem lembrar as cantigas de escárnio e maldizer que eram muito usadas em antigos festivais na Europa na Idade Média.

Nas últimas décadas, tem se intensificado os estudos a respeito de identidade multicultural, focando-se, principalmente, a questão dos valores identitários afro-brasileiros, que permeiam os sujeitos e suas relações no país, onde se considera principalmente a contribuição do negro na formação do povo brasileiro. Considera-se, ainda, que no contexto dos valores identitários afro-brasileiros se fazem presentes a oralidade, a ancestralidade, a circularidade, entre outros, que se manifestam nos usos e nos costumes do brasileiro, inclusive, na cultura popular, por exemplo, as danças circulares como o tambor de crioula e o bumba-meu-boi.

No que diz respeito à contribuição do branco, destaca-se a poesia trovadoresca portuguesa. Segundo Moisés (1981), duas se destacam pela irreverência: as cantigas de escárnio e de maldizer, que no Brasil se manifestam nos repentes e também nas toadas de pique, objeto do estudo proposto.

As toadas de pique, tais como as cantigas de escárnio e de maldizer, se caracterizam por dizer mal de alguém, sendo que ambas se diferem pela maneira como o fazem. Segundo Moisés (1981), a cantiga de escárnio é indireta e apresenta traços de ironia e sarcasmo, enquanto que a cantiga de

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maldizer faz uma sátira direta, emprega palavras maldosas e, muitas vezes, de baixo calão; na maioria das vezes, nomeia a pessoa criticada.

As cantigas de escárnio e de maldizer eram propagadas por jograis, que eram espécies de trovadores oriundos das classes marginalizadas e que cantavam em troca de seu trabalho artístico. De acordo com Saraiva (1985), não eram apenas os jograis que compunham as cantigas satíricas. Também os fidalgos trovadores o faziam, havendo disputas entre estes últimos e os primeiros:

Vislumbramos, assim, uma dissensão evidente entre os jograis e trovadores, uma vez que estes queriam corroborar a hierarquia existente, na qual ocupavam o patamar mais alto. Aqueles ansiavam por ascender a uma condição mais respeitável no meio em que atuavam. Logo, os trovadores não se dedicavam apenas às cantigas líricas, pois, pelo menos o que as interpretações teóricas nos permitem dizer, desejavam ser responsáveis pela composição de todas as cantigas. Sendo assim, o caráter marginal era relegado ao jogral e não, propriamente, às cantigas satíricas, que, por vezes, eram compostas por ele. (SARAIVA,1985, p. 67).

Vale ainda dizer que as cantigas satíricas, não eram, necessariamente,

canções de protesto, possuíam um cunho humorístico, haja vista trazerem em seu bojo ironias tanto ao clero quanto às camadas economicamente mais privilegiadas da sociedade. Para tanto, sua linguagem fugia às convenções formais, sendo muitas vezes livre e obscena.

As toadas, as relações de conflito e associação

Considerando que tanto nas cantigas satíricas quanto nas toadas de pique existe uma espécie de embate entre oponentes, observando-se uma espécie de conflito, George Simmel (1988) afirma que o conflito pode modificar os grupos de interesse, uniões, organizações. É paradoxal pensar que um movimento que tenha essa filosofia possa culminar em um outro fenômeno chamado de sociação.

Pensar esse fenômeno como um organismo único é quebrar a ideia daquilo que o gerou. A sociação necessita que haja pelo menos dois indivíduos para que ela aconteça, entendendo-se que o conflito acontece por conta de ações dissociativas e que é por meio desse mesmo conflito que o grupo se

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fortalece; o que culmina no desaparecimento da outra parte envolvida como descreve Simmel (1988):

Os fatores de dissociação — ódio, inveja, necessidade, desejo — são causas do conflito; este irrompe devido a essas causas o conflito está assim destinado a resolver dualismos divergentes; é um modo de conseguir algum tipo de unidade, ainda que através da aniquilação de uma das partes conflitantes (SIMMEL, 1988, p. 155).

Assim sendo, o bumba-meu-boi encontrou nas toadas de pique uma

forma de trazer à tona não apenas antagonismos como também reivindicações com relação às condições em que viviam negros, índios e mestiços, podendo assim exigir direitos que lhes eram negados. Por apresentar tal cunho reivindicativo o boi é visto como uma manifestação de cunho agressivo como diz Marques (1999, p.59) que o “boi aparece já em 1820 como um folguedo agressivo, violento baderneiro, insólito, barulhento e atentador da ordem moral”.

Simmel (1988) ressalta que toda sociedade precisa de forças de atração e forças de repulsão e desse modo, o bumba-meu-boi é um movimento marcado por esse tipo de sentimento, evidenciado pelos escritos que, embora poucos, refletem exatamente o conflito existente nos encontros de agremiações de bumba-meu-boi nos bairros de Madre Deus e no João Paulo, em São Luís do Maranhão.

Marques (1999) salienta que a repressão policial ou a irmandade que perpassava pelos grupos de boi gerava o que se conhece hoje como “o desafio de um contrário” que, se resumiam a toadas irônicas, satíricas, que são compostas na hora da apresentação e cantadas para provocar o outro, mas também para causar riso, para fazer a platéia participar e escolher de que lado ficaria na disputa.

Saber que a disputa nem sempre foi nesse molde atual, é fazer um resgate da cultura do bumba-meu-boi no Maranhão, pois as disputas – que hoje se dão por meio de palavras para se chegar a uma vitória simbólica sobre o outro grupo e que tem linguagem armamentista – eram bem mais violentas, no passado, e chegavam a desfechos fatais como ocorreu no bairro do João Paulo, na capital maranhense, como descreve Marques (1999):

Se a violência funciona como elemento catártico e unificador de todos os grupos na luta contra a repressão social, por outro, serve também para legitimar as tentativas de supremacia de um grupo sobre o outro. Uma violência, considerada necessária para acabar com o

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antagonismo que levam até a morte, como ocorreu em 1930 em São Luís, numa briga em frente à fábrica de tecidos Cânhamo, entre os bois da Madre Deus e do Centro, no pique de uma apresentação. O pescador da comunidade chamado de Zé-nos-Peito dança no meio do povo, com a calça arriada, a bunda exposta, à espera da palmada que iniciaria a briga, [...] Uma violência consagrada no bairro do João Paulo onde os grupos, sob as mangueiras, desafiavam uns aos outros, originando uma tradição até hoje desenvolvida e estimulada (MARQUES, 1999, p. 63).

Nesses encontros no bairro do João Paulo aconteciam os desafios de

um grupo ao outro no dia de São Marçal, fato esse descrito por Marques (1999) e que ainda mostra como aconteciam as disputas e como se consagrava o vencedor de tal disputa, todo esse ensejo é relatado da seguinte forma:

Todos os anos no dia 30 de junho, dia de São Marçal, os grupos do sotaque matraca se reúnem no bairro do João Paulo para ver quem é o batalhão mais pesado, quem faz o melhor desafio, quem possui mais seguidores, quem consegue mais aplausos, e assim por diante. É um espetáculo que nasceu da violência e que se transformou num ritual coletivo, onde todos participam do desfile ao longo da avenida (MARQUES, 1999, p. 63).

Mauss (2001) discorre que nas sociedades os inúmeros subgrupos, o

poder político, a propriedade, o estatuto político, e o estatuto doméstico acham-se intimamente misturados. Pensando dessa forma, o autor demonstra que os grupos e subgrupos estão, embora organizados internamente, também organizados entre si, ou seja, uns em relação aos outros. A esse fenômeno dá-se o nome de “sistema de arranjo”.

No caso apresentado do bairro do João Paulo, o festejo é formado por grupos e essa integração termina sendo um fator de extrema significância para a manutenção tanto do encontro anual como dos grupos por deixá-los mais coesos entre si. Mauss (2001) deixa bem claro esse tipo de relação ao dizer que:

Esses arranjos entre grupos, muito mais do que entre indivíduos localizados nestes grupos, tem um caráter de perpetuidade e de segurança que os contratos individuais de nossos direitos não têm. A esses arranjos corresponde todo um sistema de expectativas de todos para todos, e para sempre, mesmo para além das gerações (MAUSS, 2001, p. 106).

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Nos encontros dos bois, fica evidente o que o autor comenta a respeito desse tipo de relação, ele diz que essas esferas são animadas de movimentos respectivos e solidários entre si. O Bumba-meu-boi é, de fato, um movimento que gera o conflito e se fortalece tirando sua existência dele, fato que é reforçado pelo cuidado que “os amos” dos bois têm em compor todos os anos: toadas que façam o seu grupo sair vencedor de um combate de batalhões. Deste modo, observa-se o respeito entre os líderes dos clãs, fato esse que serve para fortalecer cada organismo individualmente.

As teorias, pois, de Simmel (1988) e Mauss (2001) reforçam a ideia de como a toada de pique no bumba boi de matraca serve como elemento de conflito entre os grupos, e, além do conflito, pode-se observar, entre os grupos, uma relação de coesão social estabelecida.

Toadas de pique: análise dos conflitos e linguagem

A cultura popular apresenta características que ajudam a definir e caracterizar um determinado grupo ou segmento social, como é o caso do bumba-meu-boi, que apresenta, conforme exposto, variados sotaques, com características peculiares, que se mostram na batida e nas músicas entoadas, denominadas toadas. No caso do bumba-meu-boi de matraca, chamam a atenção as toadas de pique, que geralmente são provocações ou respostas a estas provocações, que um grupo lança a outro em forma de canção. Essas toadas, entoadas no bumba-meu-boi sotaque de matraca são importantes elementos para aferir-se em que medida os valores afro-brasileiros se fazem presentes no contexto da cultura popular, possibilitando a construção de uma identidade étnica.

A seguir, apresentar-se-ão algumas dessas toadas, buscando relacioná-las às terias anteriormente expostas, tomando-se como base as canções de escárnio e as canções de maldizer. Observem abaixo as toadas Meu compadre mentiroso e palhaço: Toada I: Meu compadre mentiroso31 (CHAGAS AT AL, 2007) Meu compadre mentiroso Tá acabando com o bumba boi da madre Deus E aquele outro esbandalhou com a fortaleza da Maioba 31 Compositor João Chiador

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Meu compadre mentiroso Tá acabando com o bumba boi da madre Deus E aquele outro esbandalhou com a fortaleza da Maioba Saí de lá fui contratado pra Ribamar, por lá ele ficou, O que ele fez foi espalhar o povo do lugar Agora quer ser o maioral É viola desafinada, Agora quer ser o maioral É viola desafinada O Cantador da Maioba, vou dizer pro povo como ele é tá feito mineira velha, quando não tem mais pajé. Toada II: Palhaço32 (CHAGAS AT AL, 2007) Palhaço, mentiroso é tu Já enrolou a ilha inteira de norte a sul Quem não conhece a tua história Em Ribamar enganou Iraci Na rodoviária ajudou quebrar Vitória Lá Oiteiro, de ruim tu não passa Tá igual um palhaço que não sabe fazer graça.

Como já exposto, as cantigas satíricas portuguesas representavam

críticas ao comportamento social de seus pares, difamavam alguns nobres ou denunciavam damas. Do mesmo modo, as toadas de pique também revelam em suas letras condenações ou censuras, como nos exemplos acima. As toadas citadas demonstram os conflitos entre grupos rivais. Ambas, no título, já expressam essas animosidades: um chama o outro de mentiroso; enquanto o segundo já responde devolvendo a ofensa, chamando o primeiro de palhaço. Vale acrescentar que esses termos “mentiroso” e “palhaço”, assim como nas cantigas de escárnio e de maldizer assumem um caráter irônico, reforçados no decorrer do texto.

Do mesmo modo, os códigos sociais entre os grupos também são denunciados, quando desrespeitados: O primeiro grupo, em tom de denuncia: “Tá acabando com o bumba boi da madre Deus”, ou seja, descaracterizando-o, 32 Compositor Zé Alberto

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cometendo equívocos; o segundo grupo, em réplica: “Já enrolou a ilha inteira de norte a sul”. E assim, a toada resulta em um confronto, um jogo, conforme já exposto na teoria simmeliana.

Além dos conflitos presentes nessas expressões culturais, a linguagem se aproxima da poesia trovadoresca europeia. Nas toadas “Meu compadre mentiroso” e “Palhaço” as características presentes nas cantigas de escárnio estão visíveis em algumas passagens analisadas abaixo:

a)Presença de ironia e de equívoco: “Agora quer ser o maioral É viola desafinada” (Toada I). “Já enrolou a ilha inteira de norte a sul” (Toada II).

b) Palavras de duplo sentido: “tá feito mineira velha, quando não tem mais pajé” (Toada I). “Tá igual um palhaço que não sabe fazer graça”(Toada II). c) Não já identificação direta da pessoa satirizada: “Meu compadre mentiroso” (Toada I). “Palhaço, mentiroso é tu” (Toada II). d) Referências indiretas:

“E aquele outro esbandalhou com a fortaleza da Maioba” (Toada I). “Em Ribamar enganou Iraci. Na rodoviária ajudou quebrar Vitória” (Toada II).

Nas toadas acima, observaram-se algumas similaridades entre as composições cantadas pelo cantador de bumba-meu-boi e o trovador. Note-se que os elementos presentes nas cantigas de maldizer também estão presentes nas toadas, por exemplo: críticas de modo mais direto, linguagem ofensiva, palavras de baixo calão e identificação da pessoa satirizada. Para ilustrar essas características, cita-se uma conhecida poesia trovadoresca: Cantiga de maldizer (PORTÃO SÃO FRANCISCO, 2012) Marinha, o teu folgar tenho eu por desacertado, e ando maravilhado de te não ver rebentar; pois tapo com esta minha

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boca, a tua boca, Marinha; e com este nariz meu, tapo eu, Marinha, o teu; com as mãos tapo as orelhas,os olhos e as sobrancelhas, tapo-te ao primeiro sono; com a minha piça o teu cono; e como o não faz nenhum, com os colhões te tapo o cu. E não rebentas, Marinha?

Na poesia acima, o trovador utiliza uma linguagem ofensiva carregada de ironia, termos grosseiros e palavrões; além disso, identifica explicitamente a pessoa satirizada. Da mesma forma a toada abaixo, utiliza esses elementos expressos na cantiga de maldizer:

Toada III : O vira lata33 Olha cantador chegou a tua vez Vou te dar uma grande surra pra pagar pelo que fez Tu conhece o peso do meu batalhão Cachorro doido que anda babando a multidão Eu já falei com a saúde pra mandar te examinar Eu sou canário novo do amanhã, Dessa vez tu vais passear na carrocinha da SUCAM Tu disse que estou com falazar, não sou eu é tu Que já começou a secar Já mandei Zé Alberto te vacinar Ele disse: não tem mais jeito pro vira lata do Ribamar.

Nos trechos acima, o toador critica direta e explicitamente a pessoa,

usando termos claros para reforçar os insultos pretendidos (vira-lata, vacina, carrocinha, examinar, cachorro doido, baba), deixando nítida a intenção do toador. De maneira que algumas referências presentes na linguagem das cantigas do trovadorescas estão presentes no bumba-meu-boi considerando-se o caráter satírico das toadas de pique, presentes nesta manifestação cultural maranhense. 33 Anônimo

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Considerações finais

Embora seja um estudo ainda em curso, pode-se entender, que o conflito gerado pelas toadas ditas de pique, são fator preponderante para a união do grupo. Estes grupos tendem a se fortalecer por uma vitória simbólica que é conquistada no momento em que o cantador de um grupo diz uma toada mais bela que a do outro, rebaixando-o, causando uma desagregação do seu grupo e consequentemente fortalecendo o outro, bem como pela questão da organização do grupo como um todo que leva em consideração a animação de cada uma de suas indumentárias.

Isso fica claro em festivais como o “Encontro de Gigantes” e o “Festejo de São Marçal” nos quais a disputa em termos de toada e o desempenho por parte dos grupos ajudam no seu fortalecimento e união, causando assim, uma associação ou sociação, como dizem Mauss e Simmel.

As toadas de pique têm grande semelhança com as cantigas trovadorescas e os repentes tão usados nos grandes festivais na região Nordeste, nesses festivais os repentes também são conhecidos como duelos, onde a disputa ocorre verso a verso. Espera-se no decorrer da pesquisa conseguir aferir melhor as questões já levantadas possibilitando futuramente um trabalho com resultados mais apurados e precisos. Referências AZEVEDO NETO, Américo. Bumba-meu-boi no Maranhão . 2 ed. São Luís: Alumar, 1983. CHAGAS at al. Toadas de pique de duelos. [s/l], 2007. CD-ROM. Especial. MARQUES, Francisca Ester de Sá. Mídia e experiência estética na cultura popular: o caso do bumba-meu-boi. São Luís: Imprensa Universitária, 1999. MAUSS, Marcel. Ensaios de sociologia . São Paulo: Perspectiva, 2001. MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa . São Paulo: Cultrix, 1981.

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PORTÃO SÃO FRANCISCO. Trovadorismo , 2012. Disponível em: <http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/trovadorismo/trovadorismo.php>. Acesso em: 12 maio 2012. REIS, José Ribamar Sousa. dos. Bumba-meu-boi, o maior espetáculo popular do Maranhão . 3 ed. São Luís: LITHOGRAF, 2000. SARAIVA, Antônio. História da Literatura portuguesa. In Luís de Camões. 11. ed. Porto Editora, 1979. p. 223-367. SIMMEL, George. A natureza sociológica do conflito. In: MORAES FILHO, Evaristo (Org.). Simmel : Sociologia. São Paulo: Ática, 1988. p. 122-164.

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A SENHORA NOÉ: UMA ARCA GUIADA POR MULHERES

Polliana Cristina de Oliveira34 “Eu já tive o suficiente em ser mulher, confinada em um corpo faltante, definida por homens.” Senhora Noé

Introdução

Michèle Roberts, escritora inglesa contemporânea, tem se destacado no cenário literário por seu estilo inovador e, principalmente, pela perspectiva feminista presente em suas obras. Autora de livros polêmicos35, Roberts questiona o poder do sistema patriarcal sobre as mulheres, por meio do revisionismo de narrativas construídas sob a ótica do falocentrismo. A autora possui uma vasta produção literária iniciada nos anos setenta, que inclui poesia, ensaios, além de doze romances até o momento. A contribuição de Roberts à literatura contemporânea de autoria feminina e aos esforços dos feminismos no sentido de repensar a sociedade patriarcal é inegável; em toda

34 É pesquisadora no Instituto de Pesquisas Judiciárias e Sociais (IPJUS), assessora jurídica no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e advogada. Ingressou no Doutorado em Psicologia Clínica e Cultura (PCL/UnB) neste ano de 2012, em que estuda a efetividade das políticas de enfrentamento de violência doméstica frente à judicialização das demandas. Este projeto de doutorado possui co-orientação no Departamento de Direito da UnB. Além da graduação em Direito, cursou Letras. No ano de 2010, finalizou o mestrado no Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília, no qual pesquisou técnicas textuais e gênero, principalmente com relação às novas formas de representação da maternidade, na obra da escritora Inglesa contemporânea Michèle Roberts. É integrante de diversos grupos de pesquisas cadastrados no CNPq, dentre eles, Direito Fundamentais, no qual o líder é o Ministro do STF Gilmar Ferreira Mendes e o Grupo de Reconstrução Histórica da Constituinte de 1987/88. Tem experiência na área de Letras e de Direito, com ênfase em Estudos de gênero, sistema prisional e violência doméstica, lidando principalmente nos seguintes temas: literatura, feminismo, mulher, estereótipos e maternidade. 35 Referimo-nos, especialmente, à obra The Wild Girl (1984), que causou enorme polêmica devido a seu conteúdo considerado subversivo, pois Roberts reescreve a vida de Jesus segundo a perspectiva de Maria Madalena e tomando por base os textos apócrifos gnósticos encontrados em Nag Hammadi (RODRIGUEZ, 2003).

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sua obra percebemos uma intensa preocupação em problematizar as narrativas patriarcais que moldam o imaginário ocidental.

Roberts é Fellow da Royal Society of Literature e detentora do grau de Chevalier de l‟Ordre des Arts et des Lettres. Ensina Escrita Criativa na Universidade de East Anglia, acumulando o ensino com a atividade de crítica literária e a presidência do painel consultivo de literatura do British Council. Seu primeiro romance foi publicado em 1978 – A Piece of the Night – e outros o seguiram; The Visitation (1983), The Wild Girl (1984), The Book of Mrs. Noah (1987), In the Red Kitchen (1990), Daughters of the House (1992), Flesh and Blood (1994), Impossible Saints (1997), Fair Exchange (1999), The Looking Glass (2000), The Mistressclass (2002) e Reader, I married him (2005). Apesar de sua intensa produção literária, os estudos acadêmicos baseados em suas obras ainda são escassos.

Roberts acredita que “as mulheres, que tiveram acesso à educação pública somente nos últimos cem anos, não participavam ativamente da tradição literária. As coisas mudaram significamente nos últimos vinte anos. Uma série de batalhas foi travada. Elas podem escrever o que quiserem”36 (1998:118). A autora toma essa última frase como princípio norteador em sua produção literária, pois problematiza questões ligadas às narrativas bíblicas, às sexualidades, ao processo criativo das mulheres, às dificuldades de escrita ligadas, frequentemente, a valores e conceitos patriarcais, dentre outras reflexões. Sim, elas podem escrever sobre o que quiserem e assim o fazem de forma cada vez mais confiante.

Além das reflexões sobre autoria feminina, bem como as experiências do maternar e a submissão das mulheres ao longo da história, Michèle Roberts também se preocupa com a forma de sua escrita de ficção; segundo ela escrever ficção é, de certo modo, elucidar todos os problemas literários de forma e tentar resolvê-los escrevendo um romance ou contos. Descobrindo, assim, o que se pode fazer com a forma, brincando com ela e reinventando-a em cada lapso de tempo. Parece-me muito útil olhar para essa questão em termos de perspectiva narrativa (1998:6).

Todos seus romances possuem algum traço experimental, todavia, a própria autora diz que uma de suas narrativas atingiu o amadurecimento: trata-se de The Book of Mrs. Noah37 (RODRIGUEZ, 2007).

Este breve estudo priorizará a análise de Noah por ser o romance mais experimental de Roberts, além de revisitar, em sua temática, a grande narrativa

36 Neste trabalho, a tradução dos textos publicados em Língua Inglesa é de minha autoria. 37 Em português, O Livro da Senhora Noé. Doravante, será referido neste trabalho como Noah.

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do dilúvio, que consta no Antigo Testamento. Em Noah, a escritora trabalha com uma miríade de narrativas, o que torna extremamente difícil qualquer tentativa de resumir o romance. As divisões desse romance que serão realizadas neste estudo são artificiais, delimitadas apenas com o objetivo de enfatizar aspectos distintos da obra em capítulos separados, tendo em vista que, neste romance, as fronteiras entre o real e o imaginário – como também as estruturas de tempo e espaço – estão propositalmente pouco nítidas.

Noah é construído em uma intricada tessitura narrativa, na qual diversas vozes de Sibilas se articulam com inúmeras outras vozes de mulheres silenciadas a partir da metanarrativa fundadora do mundo judaico-cristão – a Bíblia, produzindo no romance um efeito pluridimensional bastante complexo. Trata-se ainda de uma obra preciosa que constitui terreno fértil para os estudos sobre a pós-modernidade, os feminismos, além de aspectos relacionados ao dialogismo, à intertextualidade e à representação. Dessa forma, a obra central deste estudo será Noah, a fim de desenvolvermos uma análise de alguns aspectos estruturais da narrativa, bem como das implicações dessas características no que diz respeito à experiência do maternar que o romance explora. As Reinvenções do Maternar em Noah

A temática da maternidade foi escolhida como elemento central deste estudo, tendo em mente que inúmeras problematizações sobre esta experiência são discutidas na obra ficcional de Michèle Roberts, que também desconstrói, com sensibilidade poética, os estereótipos com relação ao maternar. Como ela própria declara em Food Sex and God, a autora ―recria a mãe dentro de nós, continuamente (ROBERTS, 1998:21), por meio de suas diversas personagens.

A escritora inglesa, filha de mãe católica francesa e pai protestante inglês, foi educada em um convento durante grande parte de sua vida. Como ela mesma confessa em uma entrevista (RODRIGUEZ, 2003), Roberts mantinha uma relação conflituosa com a mãe; no entanto, constrói em suas obras, de forma admirável, a figura da avó como a matriarca contadora de histórias. A autora, nessa mesma entrevista citada, diz ainda que seus livros são como bebês, os quais ela engendra com pessoas diferentes, uns de seu marido (hoje, seu ex-marido), outros de sua avó e mais alguns de suas amigas,

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explica-nos Roberts. Como se pode notar, a maternidade ou elementos ligados a ela são recorrentes em seus textos ficcionais e não-ficcionais.

Em Noah, a personagem central abandona sua carreira de bibliotecária para acompanhar o marido cientista em uma viagem à Veneza. Entretanto, após uma discussão sobre a esterilidade dessa protagonista, ela cai no Grande Canal. Em seguida, ela se imagina como esposa de Noé e embarca em uma arca, para cuja viagem convida cinco sibilas do mundo contemporâneo. Nesta viagem, cada uma delas – identificadas por características e não por nomes: Desafiadora, Tagarela, Revisionista, Correta e Abandonada – narra suas histórias de vida como esposas/companheiras, mães e escritoras. Essas histórias ilustram diferentes formas de opressão sofridas pelas mulheres ao longo dos séculos: Desafiadora planeja abandonar sua família – marido e filhos – de forma a poder dedicar-se ao seu trabalho de escritora; Revisionista, mãe divorciada e escritora frustrada, tenta administrar a relação com sua filha em meio aos preconceitos de sua nova condição de lésbica; Tagarela, mãe, nora e esposa dedicada, reflete sobre sua intenção ainda não revelada de não ter mais filhos e sobre seu desejo frustrado de escrever, considerado pela família com condescendência apenas um hobby; Abandonada, solteira e solitária, busca um refúgio na escrita; Correta, sem filhos, produtora de best-sellers de baixa qualidade, dedica-se à sua linha de produção com afinco e determinação, como estratégia compensatória para sua falta, representada pela esterilidade. A única presença masculina é a de Gaffer (aquele que comete gafes), que se intromete no grupo das Sibilas e embarca nesta viagem, pois está convencido da “impossibilidade das mulheres serem capazes de descobrir, muito menos criar um novo mundo” (ROBERTS, 1987:55).

A Senhora Noé se junta às Sibilas em uma viagem na Arca das Mulheres para entender a situação das mulheres no mundo em diversas épocas. Paralelamente a essa tarefa, as Sibilas se juntam à Senhora Noé para que possam debater sobre a escrita de autoria feminina; para isso, logo após o jantar, cada uma delas deve contar a história de algumas mulheres que existiram ou existirão. Para que possamos melhor analisar Noah, sob o ponto de vista das experiências do maternar, teceremos breves reflexões sobre a condição da mulher e sua relação com a maternidade, bem como algumas implicações disso ao longo dos tempos, culminando na maternidade percebida sob a perspectiva das mulheres.

Desde a Antiguidade, textos filosóficos afirmam a inferioridade das mulheres e justificam a consequente necessidade de sua submissão e controle. Para Aristóteles, a mulher é considerada personagem secundária na

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concepção, um simples receptáculo. Segundo Rosemary Agonito, que faz uma compilação das idéias de pensadores importantes da humanidade sobre as mulheres em History of Ideas on Womem (1997), Aristóteles argumenta que a mulher é um ser mutilado ou um homem incompleto. Na reprodução, o homem contribui com a essência e a alma, enquanto que a mulher só fornece a nutrição necessária para manter o embrião. Ou seja, é o homem, e não a mulher, que cria a vida: “A mulher é um homem mutilado, e a catamenia é sêmen, apenas não pura; pois há apenas uma coisa que ela não tem, o princípio da alma [...] As mulheres, então, fornecem a matéria, os homens o princípio do movimento” (AGONITO, 1977:48). Essa “deficiência” tornaria, então, as mulheres mais fracas, incapazes de pensamento racional e, necessariamente, subordinadas ao homem. Dessa forma, para o filósofo, as mulheres são naturalmente inferiores aos homens e, por isso, devem submeter-se à autoridade masculina: “os homens são, por natureza, superiores, e as mulheres inferiores; um governa e o outro é governado” (AGONITO, 1977:51).

A identificação das mulheres com a natureza e a consequente naturalização dos comportamentos relacionados à maternidade foram distorcidos e perpetuados de uma forma negativa para as mulheres, de acordo com os interesses do patriarcado. É o que ocorre, por exemplo, quando pensamos sobre o conceito de instinto materno. Segundo Badinter, a partir do século XVIII, além do discurso médico, o filosófico e o econômico passaram a defender de forma enfática que a mãe assumisse a responsabilidade de cuidar dos filhos, agindo de acordo com o que era universalmente considerado seu instinto natural de mãe, para diminuir a mortalidade infantil no interesse do Estado francês. Badinter afirma ainda que a defesa do instinto materno, no século XX, atingiu o clímax com a psicanálise Freudiana, especialmente, por meio de seu ensaio intitulado A Feminidade (1958). Nesse texto, em particular, Freud atribui o desejo que toda mulher tem de ter um filho à inveja que a mulher teria do órgão sexual masculino. Segundo Freud, o primeiro objeto amoroso do menino é a mãe e continua a sê-lo durante toda a vida. O menino possui inicialmente um grande amor pela mãe; sente ciúmes e rivalidade em relação ao pai, desenvolvendo, assim, o complexo de Édipo. Ao descobrir que a mãe não possui o órgão sexual masculino, o menino tem medo de vir a ser castrado como ela e abandona o complexo de Édipo. Não podendo eliminar o pai para ficar com a mãe, o filho a abandona e se junta ao pai, que representa o poder. Todavia, o menino volta a ter uma mulher como objeto amoroso que, para Freud, estaria substituindo o seu amor pela mãe. O primeiro objeto

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amoroso da menina também é a mãe. No entanto, ao perceber que a mãe não possui o órgão sexual masculino, ao descobrir que, tal qual ela, a mãe também é castrada, a menina sente-se incompleta e repele seu amor à mãe, buscando o amor do pai; com quem sonha em ter um filho que compensaria a ausência do pênis. Assim, explica Freud “a mulher fica desvalorizada para a menina, o mesmo que para o menino e talvez para o homem” (FREUD, 1958: 133); essa inveja traz consequências para toda a vida das mulheres.

Percebemos, dessa forma, que o argumento de Aristóteles sobre as mulheres como seres incompletos possui claro eco na teoria freudiana, correlação que mostra como certas idéias negativas construídas pelos homens sobre as mulheres podem perdurar por muitos séculos, com consequências complexas e profundas. Compreendemos, assim, que as representações relacionadas à maternidade são por diversas vezes constituídas para reforçar uma “verdade” científica e universal, quando, realmente, expressa uma verdade misógina. Além disso, em várias áreas do conhecimento, podemos identificar até mesmo um silenciamento dos aspectos relacionados à maternidade. É o que pude observar nos estudos que fiz na área de literatura, encontrando lacunas, sinais de censura e de mitificação dos aspectos relacionados às mães e às mulheres em geral.

Diante das questões brevemente postas, acreditamos ser necessário problematizar e desconstruir os mitos patriarcais que envolveram e ainda envolvem a maternidade, principalmente na medida em que novos conceitos se juntam ao conceito de maternidade tradicional, como descrito pela professora Cristina Stevens em seu artigo Maternidade e Literatura: Desconstruindo Mitos: Por muito tempo a maternidade foi considerada um fato puramente biológico, fixado literal e simbolicamente nos limites do domínio privado e emocional. Os discursos religiosos, médicos e psicológicos que descreviam e, sobretudo, prescreviam esses papéis, foram bastante danosos para as mulheres. Hoje, debatemos a função e status da maternidade no espaço público, e sua complexidade aumenta à medida que o sentido de maternidade se diversifica, uma vez que à mãe tradicional vem juntar-se a mãe adotiva, a mãe lésbica, o homossexual que materna, a mãe de aluguel, a mãe adolescente, a mãe solteira, a mãe prisioneira, a mãe pobre, negra, a mãe biológica, etc. (STEVENS, 2003: 38). Neste livro, Stevens enfatiza que, na literatura, até, aproximadamente, os anos 70, houve escassas tentativas de retratar a maternidade como tema central e de analisar as distorções criadas pelo patriarcado sobre essa complexa experiência. A partir dessa época, começa a

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se consolidar uma nova produção teórica sobre a maternidade sob a ótica das mulheres.

Ainda no que diz respeito à maternidade, a psicanalista Nancy Chodorow, em sua obra The Reproduction of Mothering (1973), argumenta que os comportamentos sociais tradicionais que envolvem a maternidade, ou seja, o fato de se atribuir às mulheres o cuidado com os filhos, não são naturais, mas sim resultado de valores e práticas sociais que são interiorizados nas primeiras relações da criança com as pessoas que a cercam, sobretudo com a mãe; isso decorre porque a mãe quase sempre exerce a função do cuidado com os filhos. Esses papeis não são dados pela biologia, mas são, na verdade, construções sociais, que, como tais, podem ser desconstruídas e reconstruídas. Assim, esses processos psicológicos dão origem a comportamentos que se perpetuam e são responsáveis pela divisão não igualitária dos papéis gênero e pela conseqüente dominação masculina.

Segundo ela, são essas práticas de cuidados do filho pela mãe que fazem surgir o processo psicológico que conhecemos como natural: O comportamento e as características da personalidade adulta são determinados, mas não biologicamente deterministas. Entretanto, culturalmente, a personalidade e o comportamento esperados não são simplesmente “ensinados”. Mais exatamente, certas características da estrutura social sustentadas por crenças, valores e percepções culturais, são interiorizados por meio das relações objetais sociais primárias da criança e da família. Essa organização inconsciente ampla é o contexto no qual se dá o treinamento de papéis e a socialização intencional (CHODOROW, 1978: 76). Ao mostrar como as funções de cuidado com os filhos são impostas às mulheres e internalizadas por estas mulheres por meio de processos psicológicos e sociais específicos, Chodorow mostra como essas funções também podem ser destinadas aos homens e que ambos devem exercer essas funções de forma compartilhada. Como a citação acima nos explica resumidamente, a reprodução dos padrões tradicionais da maternidade no mundo contemporâneo acontece por meio de processos psicológicos induzidos socialmente e que se reproduzem de forma cíclica.

O livro de Adrienne Rich, Of Woman Born (1981), também constitui um marco nos estudos feministas sobre a maternidade. A partir de uma visão, sobretudo socioantropológica, Rich faz uma espécie de arqueologia da experiência da maternidade a partir das óticas das mulheres. Ela demonstra como a mãe reage às expectativas da sociedade em relação a seu comportamento, escrevendo até mesmo sobre uma alienação da maternidade,

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no sentido de que muitas mulheres não têm uma participação ativa no trabalho de parto, em função das novas tecnologias médicas. Segundo Rich, desde a Antiguidade, as mulheres têm sido “ensinadas” sobre o que devem sentir. Além disso, Rich expõe a escassez de estudos e reflexões sobre a relação entre mães e filhas, uma das razões que a motivou a escrever o referido livro. Rich completa que “as mulheres têm sido mães e filhas, mas há pouco escrito sobre esse assunto; a grande maioria da literatura e das imagens da maternidade chega a nós filtrada através de uma consciência coletiva ou individual masculina” (RICH, 1981:61).

A complexidade das relações entre mães e filhas não foi devidamente explorada e o que conhecemos de maneira mais presente é mediado pelo imaginário dominado pelo patriarcalismo. E é nesse contexto que Noah é relevante, pois além de problematizar as imagens sacralizadas com relação á maternidade, a obra ainda possui uma diversidade de narrativas sobre a relação de mães e filhas, narrativas que foram sempre subestimadas, conforme ressalta Rich.

Com relação à temática da maternidade na literatura, E. Ann Kaplan, em Motherhood and Representation: The Mother in Popular Culture and Melodrama (1992), analisa as representações da mãe em textos literários populares do século XIX, os chamados melodramas, nos Estados Unidos, suas influências européias e suas versões nos filmes de Hollywood na primeira metade do século XX. Ela analisa a mãe em três esferas de representação: a histórica, ou seja, a mãe no seu papel institucional, socialmente construído; a psicanalítica, a mãe no inconsciente, por meio de quem o sujeito é constituído, articulada por Freud, na virada do século XIX para o XX; e a ficcional, a mãe em representações ficcionais, que combina a mãe posicionada institucionalmente e a mãe inconsciente.

Kaplan enfatiza que sua análise foi produzida em um momento de grande transição nos conceitos de mãe, por causa das transformações nas relações e nos discursos políticos, sociais e econômicos, da nova consciência sobre diferenças étnicas na constituição dos sujeitos “mulheres”, sobre a interseção entre raça e gênero, e por causa de novas descobertas científicas na área de gestação, reprodução e nascimento. Em sua análise histórica, Kaplan aponta três discursos sobre a mãe: o discurso rousseauniano, que engendra uma mãe que possa satisfazer os imperativos de uma nova ordem social estabelecida por instituições surgidas na Primeira Revolução Industrial; o discurso darwiniano, marxista e freudiano, que trouxeram uma mãe construída por mudanças sociais pós-romantismo e que chegou à Primeira Guerra

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Mundial e ao entreguerras (nesse período, as mulheres entraram no mercado de trabalho, tiveram mais acesso à educação, conquistaram direitos, o que, segundo Kaplan, ameaçaram a família nuclear); e os discursos pós-modernos recentes sobre as mães, que deram origem ao que ela chamou de mãe pós-modernista, que ainda está em construção, como resposta aos desenvolvimentos sociais, dentre eles, avanços dos feminismos. o rápido crescimento do capitalismo multinacional e a revolução tecnológica e eletrônica.

É a partir dessas reflexões que temos Noah, romance que desafia e estimula o leitor a repensar a maternidade a partir de uma perspectiva que desconstrói toda a mística atrelada ao maternar enquanto função imposta, com o intuito de ressignificar essas imagens tradicionais. As histórias contadas nesse instigante romance tratam da complexa experiência do aborto, de “úteros congelados, onde nenhum bebê cresce” (ROBERTS, 1987:28), da problemática de filhos ilegítimos, adotivos, do controle sobre a gravidez, do infanticídio e tantas outras temáticas que foram injustificadamente silenciadas pela literatura canônica.

Em Noah, Roberts explora diversas experiências ligadas à maternidade. Por certo, nem todas suas personagens são mães; no entanto, todas essas mulheres possuem alguma vivência com relação à maternidade, nem que seja pela incapacidade de algumas delas em gerar filhos e filhas. É essa a preocupação da personagem contemporânea, cujo marido se chama Noah e reage enraivecido à esterilizadade de sua esposa: “eu sei o que você quer dizer. Nós já passamos por isso antes. Todo mês nos últimos dois anos” (ROBERTS, 1987:9). Sequer sabemos o nome dessa mulher, que mais tarde será líder na arca das mulheres; todavia, já conhecemos sua frustração, visto por seu marido cientista como mero capricho. Essa impossibilidade de gerar não será um impasse para essa mulher que, junto a outras, passará pela experiência de gestação na arca, desta vez, gestação de si mesma, conforme melhor analisaremos nesse capítulo. Por causa de uma discussão ainda sobre a ausência de filhos em seu casamento, a mulher se joga em um canal. É a partir desse ato que essa mulher passa a chamar-se Sra. Noé (Mrs. Noah) e tem como principal objetivo guiar a arca das mulheres pelo mundo e pelos mais diferentes tempos, para entender as condições de vida das mulheres no passado e suas consequências no futuro (ROBERTS, 1987:32).

Ao se juntarem à Senhora Noé, as mulheres poderão contar histórias e produzir literatura, como podemos perceber na descrição dessa protagonista: As mulheres virão à arca para buscarem um pouco de

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paz e quietude, para pensarem em suas vidas e questioná-la. As mulheres virão aqui para desenvolver suas habilidades, para discutir seu trabalho em progresso, para criticar e receber críticas, para dividir medos, falhas e ideias. As mulheres se juntam à arca para soltar sua imaginação, para aprender a brincar novamente, para destruir (ROBERTS, 1987: 21/22).

As mulheres estarão na arca para repensar suas vidas, questionar sua

maneira de produzir literatura, pois todas as convidadas a integrar essa jornada são ou almejam ser escritoras. Elas compartilharão momentos de troca de conhecimentos e de experiências enquanto estiverem na arca das mulheres. Diante da brevíssima biografia que mostramos de Michèle Roberts, bem como da recorrência de imagens ligadas à maternidade que ela utiliza em seus romances, é clara a correspondência de uma arca ao útero materno. Essa comparação se torna mais nítida ao longo de toda a obra, em que percebemos que essas mulheres passam por uma jornada de autoconhecimento. Devemos, ainda, nos lembrar que a palavra gestação é de origem latina e significa transportar, o que reforça a imagem da arca como um espaço simbólico de gestação e transformação dessas mulheres. Todas elas são transportadas e transformadas pela influência das várias narrativas de outras mulheres, contadas sobre e por elas mesmas, e sempre acrescidas de suas próprias experiências quando não eram sibilas, mas mulheres comuns, frustradas e reprimidas.

Outro tema recorrente é a crítica ao cristianismo relacionado às temáticas da maternidade; no caso de Noah, a imagem presente é a da Virgem Maria, como símbolo de amor inesgotável e inabalável, de abdicação de seu corpo de mulher e total aceitação quanto ao sofrimento por seu único filho. A Senhora Noé constrói, no interior da arca das mulheres, uma capela, no entanto, diferentemente do que tradicionalmente entendemos desse espaço, ela é ecumênica e poderá ser usada tanto para praticar suas orações quanto para praticar a escrita (ROBERTS, 1987:40). Um dos quadros pendurados nessa capela é o da Virgem Maria com os braços abertos e a face cheia de dor com seu filho morto no colo. A Senhora Noé escuta das paredes da capela católicos entoarem a ladainha38 da Virgem Maria para que a viagem seja segura. A líder da arca das mulheres não consegue repetir nenhum verso da

38 Oração formada por uma série de invocações e respostas curtas e repetidas. Neste sentido, trata-se de uma oração ou súplica à Virgem Maria e aos santos, invocando-os pelos nomes e atributos simbólicos, a fim de rogarem a Deus pelos fiéis, com o responsório repetitivo: “Rogai por nós!”

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litania tradicional, então, ela se junta ao coro das feministas católicas que aparecem na capela e declamam uma versão bastante inovadora à Grande mãe:

Deusa negra Companheira das sibilas Amante de suas difíceis filhas Arca da vida Precioso navio de sangue Sagrada pérola Virgem do silêncio Meretriz da sabedoria Caminho do leite e mel Portão para o paraíso Esteja Conosco. Seios de mármore Amante dos patriarcas Orelhas obstruídas Boca obstruída Grito contido Carcereira de filhas [...] Não me deixe tornar isso.

A litania construída pela senhora Noé e por todas as católicas feministas

que aparecem na capela é uma clara crítica à imagem da Virgem Maria, construída pelo patriarcado, a qual estabelece parâmetros de como uma mulher e, consequentemente, uma mãe, deve ser. Lembramos aqui de Adrienne Rich, que acrescenta à imagem da pietá a noção de espera; para ela, “as mulheres sempre estão à espera de algo: pelo nascimento de seus filhos, pela vinda de seus homens, pela palavra a ser proferida, pela menopausa” (1980: 39). A senhora Noé, ao declamar sua litania, vai contra as imagens ligadas ao modelo de “mãe imaculada”, arraigado no imaginário ocidental patriarcal. Os versos em itálico marcam o refrão que é cantado em coro por todas as mulheres, culminando com o verso final, em que nenhuma dessas mulheres quer se tornar o modelo de mãe imposto pelo patriarcado. Elas querem experienciar a maternidade, mas não querem fazer parte dos comportamentos invocados pela ladainha repetida há tanto tempo.

Para Elizabeth Badinter, o amor maternal não se encontra inscrito na profundidade da ‗natureza feminina‘, ao contrário, esse conceito de amor materno existe em função das exigências e dos valores dominantes de uma sociedade que determina os papéis respectivos do pai, da mãe, da criança. Esse amor, assim, está longe de ser instintivo, natural.

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Todavia, as mulheres grávidas eram tidas como invólucros sagrados. Na Grécia antiga, a casa da mulher grávida era considerada um lugar de asilo inviolável, um santuário onde até os criminosos encontravam abrigo. Já entre os Romanos, à porta das suas moradas, as grávidas suspendiam grinaldas ou folhas de louro para evitar visitas, ficando suas casas interditas aos próprios oficiais de justiça e credores. Entre os índios Guayaku do Paraguai, a grávida possui numerosas virtudes mágicas, pois encontra-se estreitamente ligada ao seu filho (ainda por nascer) e este está em comunicação com o mundo dos espíritos; é-lhe atribuído o conhecimento de numerosos segredos, de prever o futuro e de predizer a morte de parentes (Barbaut, 1990).

Ainda no que diz respeito à maternidade, Roberts torna mais complexa essa experiência e associa à maternidade a outras imagens, mesmo que algumas sejam representadas em tom irônico, como é o caso de um diálogo travado entre as sibilas e Gaffer, em que ele tenta convencê-las de que a escrita e a criatividade são dons típicos masculinos, ele continua: “Como uma mãe pode saber algo sobre o crescimento humano? Qualquer idiota pode dar a luz. Escrever um livro, por exemplo, é um parto” (ROBERTS, 1987: 56). É interessante observar que, embora Gaffer não passe de uma marionete do sistema patriarcal, ele mesmo cita a aproximação do ato de escrever com o parto; imagem que será trabalhada por todas as sibilas durante todo o romance.

Além das ricas imagens ligadas à temática da maternidade, Roberts não deixa de explorar outras tantas imagens referentes ao corpo feminino. Conforme podemos notar no capítulo anterior, a casa é usada pela autora de maneira constante para indicar o corpo das mulheres, bem como para refletir sobre a apropriação desses corpos. A senhora Noé, em um de seus devaneios sobre sua infância, nos relata que ela é uma casa com muitas janelas e muitas portas. Cada dia ela abre uma e espreita o que há lá dentro, comentando para si mesma: “esse é o tempo do advento, da preparação” (ROBERTS, 1987: 63). É nítida a comparação que a autora faz por meio da voz de sua personagem; o corpo da mulher é uma casa, no entanto, ainda desconhecida pela própria moradora, que tenta se conhecer dia após dia. No fim da citação, a personagem conclui que este é o advento. Trata-se de uma referência cristã, advento (do latim adventus, significa "chegada") é o primeiro tempo do Ano litúrgico, o qual antecede o Natal. Para os cristãos, é um tempo de preparação e alegria, de expectativa, onde os fiéis, esperando o nascimento de Jesus Cristo, vivem o arrependimento e promovem a fraternidade e a Paz. Nossa protagonista, por meio de um complexo processo de autoconhecimento na arca

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das mulheres, espreitando seu corpo/casa, entra em um tempo de preparação, que culminará no Natal, ou melhor, de acordo com o próprio significado da palavra, no (re)nascimento dela mesma, e não do homem que representa a salvação da humanidade.

As implicações de ser ou não ser mãe são profundas em uma sociedade marcada por preceitos patriarcais. As mulheres se vêem presas em um labirinto de estereótipos, de leitos de procusto39 prontos para moldá-las em seus papeis sociais. A Senhora Noé, em uma longa reflexão, grita uma exclamação há tanto tempo contida: “Mães não são livres, tornar-se mãe é tornar-se prisioneira. Em confinamento. É deixar para trás todas as imensas possibilidades. As mães existem apenas para comerciais de margarina” (ROBERTS, 1987: 69). No entanto, a personagem continua sua reflexão e conclui que as mulheres que não se transformam em mães, deixam de ser mulheres reais. Assim, mesmo indo contra às imposições patriarcais, elas caem em outro estereótipo de mulheres, geralmente vistas como “secas e tristes, sempre arrependidas por não terem engendrado filhos”. A reflexão, entretanto, não chega a um resultado, “então, eu não serei mãe. Então, eu serei mãe. Então, eu não consigo achar a saída” (ROBERTS, 1987: 69).

Em meio a essas reflexões da senhora Noé, há também todas as outras personagens que a acompanham, as Sibilas e Gaffer. Toda noite, após o jantar, uma das sibilas conta uma história, uma narrativa sobre mulheres. Em nenhuma ocasião sabemos quem profere a narrativa, sabemos apenas que essas histórias não podem ser mais silenciadas. A primeira narrativa contada por uma das sibilas é sobre uma história que Gaffer não colocou no gênesis. A narrativa é sobre João e sua esposa, os quais são aqui protagonistas do episódio do dilúvio bíblico. Mais uma vez a protagonista feminina desse conto não tem nome, reconhecemo-la apenas como esposa de João. Roberts tenta nos mostrar uma possível história do dilúvio sob o ponto de vista feminino, quando a esposa de João comenta com seu marido sobre os sonhos que a invadem:

Uma noite, eu sonhei. A Terra aparecia para mim como uma mulher se retorcendo de dor no parto. Ela jogava suas mãos para as copas das árvores, que são seus cabelos. Ela mordia as montanhas, que

39 Procusto era um bandido que vivia na serra de Elêusis. Em sua casa, ele tinha uma cama de ferro, que possuía seu tamanho exato, para a qual convidava todos os viajantes para se deitarem. Se os hóspedes fossem demasiados altos, ele amputava o excesso de comprimento para ajustá-los à cama, os que tinham com pequena estatura, eram esticados até atingirem o comprimento suficiente. Ninguém sobrevivia, pois nunca uma vítima se ajustava exatamente ao tamanho da cama.

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são seus braços, enquanto sua barriga mexia, provocando terremotos. Sua bolsa estourou e as águas saindo dela se transformaram em uma grande enchente. Por nove meses, ela carregou a semente de uma nova vida e, agora, em meio às ondas, a criança está em seu seio. [...] Naquela noite, eu tive um segundo sonho. Dessa vez, a Terra aparece novamente para mim como uma mulher grávida, mas no início da gravidez. Dentro de seu ventre há toda a criação, todas as formas de vida dançando e crescendo. João, eu e as crianças estamos lá também, nadando em sua barriga, esperando por nascer (ROBERTS, 1987: 74).

Essa mulher conta a seu marido sobre seus sonhos e ele, por sua vez,

por ordem de Deus, constroi a arca que, na verdade, foi ideia de sua mulher. Por meio de seus sonhos, podemos notar mais uma vez a imagem constante de que a arca representa o útero materno e que toda a jornada dentro da arca simboliza a gestação, como já observamos. A esposa de João ressalta o aspecto do renascimento de todos que estão na arca, ao apontar que a viagem durou “nove meses, a duração de uma gravidez” (ROBERTS, 1987: 82). Após a cessação das chuvas, a esposa de João sente-se gestada novamente e renascida. Ela escolhe sua liberdade, ela renomeia os animais e vive com suas noras no alto de uma montanha.

Elas vivem em uma sisterhood, em solidariedade, compartilhando suas experiências, sem torná-las hegemônicas. A segunda narrativa é sobre a vida de uma mulher que não foi casada; é a biografia ficcional de freira medieval que se torna santa, a Senhora Sabedoria (Lady Wisdom). Essa freira passa a questionar tudo que é imposto a ela com respeito a toda espécie de pecado e horror que é imputado ao corpo feminino: Nossos doutores nos dizem que o corpo da mulher é como se fosse um pedaço de terra arada, pronto para receber as sementes do homem. Ele quem dá à mulher o bebê, eles dizem. Mas eles estão errados. Essas sementes são misturadas no corpo da mulher com suas próprias sementes (ROBERTS, 1987: 122).

Conforme havíamos dito, mesmo mulheres que não experienciaram de maneira direta a maternidade, elas possuem alguma vivência no assunto, haja vista que seus corpos são marcados por sangues menstruais, útero e menopausa. A freira, cujo nome também não sabemos, – ela mesma se intitula Lady Wisdom – reconhece a importância de não anular seu corpo, pecaminoso, como assim os preceitos religiosos descrevem; “por meio do meu corpo, eu sou parte do universo em sua constante mudança e transformação, e minha alma é a palavra que me diz isso” (ROBERTS, 1987: 123). A freira continua em sua dança de epifania e encontra em seu corpo a criação; para ela, a alma passa

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pelo processo de nascimento, atravessando um canal que une a terra ao paraíso, sendo o arco-íris a ponte para esse encontro, a aliança mostrada no dilúvio bíblico. A santa, segundo ela mesma diz, é exilada do céu, talvez jamais seja aceita por causa de suas idéias transgressoras.

Paralelamente às narrativas contadas toda noite pelas sibilas, há todos os dias o debate travado por elas sobre os mais diversos assuntos referentes à vida das mulheres e, especialmente dentre estes, a maternidade em todos os seus aspectos e suas implicações. Em um desses momentos de discussão, a Sibila Tagarela relata que não possui mais amizades, pois todas suas amigas têm filhos, além disso, “as mães não são disponíveis. Como pode, assim, uma amizade sobreviver?” (ROBERTS, 1987: 139).

A Sibila Correta acrescenta que sua mãe tinha amigas, que eram outras mães. A Sibila Desafiadora desabafa que tem se sentido desconfortável pelo fato que de não sentir falta de seus filhos. Afinal, essa sibila experiencia a maternidade, mas vai contra o instinto materno, também questionado por Badinter, conforme mencionados. As sibilas pedem uma história sobre uma mãe; mas a próxima narrativa contará um infanticídio, realidade que faz parte dessa experiência feminina, mas que a sociedade violentamente condena sem pensar nas razões que levam uma mulher a este comportamento radical. A narrativa que focalizará uma experiência de abandono conta a história de uma mãe, uma mulher vitoriana, que enxerga todas as dificuldades em se ter uma filha em seu tempo. Essa mulher, também sem nome, é casada. Em uma noite, ela teve um sonho:

Em meu sonho eu vejo Eva grávida. Ela enche sua mão de areia e cada grão vai escorrendo por entre seus dedos. Saindo carne, sangue e ossos. Adão a conforta dizendo que dois filhos é melhor que um. Eles chamaram seus filhos de Abel e Caim. [...] A mãe de todos nós desapareceu. É minha tarefa escavar para encontrá-la. O deserto a engoliu (ROBERTS, 1987:154).

O sonho que a protagonista dessa passagem tem sobre Eva parece nos

anunciar o que virá. Eva, silenciada, desaparecida no deserto, não desejava ter um de seus filhos. À protagonista cabe encontrar sua mãe, que não é Maria e sim a pecadora Eva. Mesmo assim, o peso da maternidade é grande demais para a nossa protagonista.

Elizabeth, minha primogênita. É cruel fazer você aguentar tudo isso. Eu devo deixar você me esquecer, ou me inventar, em paz. Para você eu sou uma lacuna: ausência. Morta. Eu quero preencher esse

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espaço de sua ignorância, escrever meu nome e oferecer a você minha história, que é sua também. Eu quero que você me herde. Uma mãe precisa de uma filha. Uma filha precisa saber quem é sua mãe, para aceitá-la ou rejeitá-la (ROBERTS, 1987:170/171).

Nesse episódio, temos a complexidade da relação entre mães e filha,

outro assunto relativo á maternidade que também é pouco explorado sob a ótica das mulheres. Rich diz que “a relação entre mães é filhas é uma tragédia essencial” (1980: 236/238), pela qual devem passar. A mãe dessa história abandonará sua filha, no entanto, não é por essa condição que ela deixará de ser mãe. Talvez seja por isso que ela escreve uma carta à sua filha, com o intuito de deixar de ser uma ausência, não ser uma lacuna, tal qual são as mães na literatura sob a perspectiva masculina no século XIX. Essa mãe se reafirma como tal e deixa um legado de memórias à pequena Elizabeth. Ainda nessa linha de pensamento em retratar as mais diversas experiências relativas à maternidade, as sibilas contam a próxima história; a de uma jovem, que vive século XVIII, aproximadamente, e que é seduzida por um homem casado. Como fruto desse romance, a jovem engravida. Ela se vê obrigada a se tornar prostituta, passando fome, frio, além de sofrer violência. E é nesse contexto que ela dá a luz a uma menina, “ela olha para aquela pequena face, e apoia suas mãos sobre ela. Ela a estrangula. Assim, ela não sentirá mais nada. Ela torce o pescoço de sua filha como se fosse o de uma galinha, sua cabeça vira. Ela enterra o corpo por entre o lixo” (ROBERTS, 1987: 203). A jovem desse conto acaba por ser enforcada por ter cometido infanticídio, sua história foi imortalizada em canções, entretanto, não sabemos se essas canções expressam qualquer juízo de valor. Além disso, a única forma de as mulheres serem imortalizadas é por meio de narrativas orais, restam a elas apenas canções, nenhuma palavra escrita.

Em mais um devaneio, a senhora Noé tenta entender porque ela quer tanto uma criança e seu marido cientista simplesmente não quer. Para ela, a explicação é que seu marido quer permanecer sendo a criança, ser cuidado por ela, algo que não aconteceria se ele dividisse suas atenções com um bebê, “ele quer ser uma criança e não um pai” (ROBERTS, 1987: 213). No entanto, esse não é o fim para a senhora Noé, pois ela tece outras possibilidades para atingir seu objetivo:

Eu poderia engravidar dele e deixá-lo. Ou deixá-lo e engravidar de outro homem. Ou até mesmo fazer uma inseminação artificial e, deliberadamente, me transformar em mãe solteira sem dar à criança um pai. Pior ainda: roubar o bebê de outra mulher. Uma amiga morre

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e eu adoto seu bebê. Esse pensamento vai embora, eu tento matá-lo. Eu serei mãe solteira. Muitas mulheres são. Por necessidade, quando seus homens a abandonam. Por opção. A Virgem Maria era mãe solteira (ROBERTS, 1897: 214).

Após esse devaneio, todos se juntam na arca para ouvir a última história

da jornada, um conto sobre uma mulher que fez novos amigos. A narrativa se passa no submundo das crianças abandonadas, em tempos de um futuro orwelliano. Um garoto de rua, conhecido como Tartaruga, encontra um bebê em uma pilha de lixo. Ele a nomeia de Rata. Embora homem, Tartaruga assume o papel de mãe de Rata em uma época que a palavra “mãe” é um tabu, não deve ser pronunciada e nem mesmo pensada: Mulheres da classe D são subdivididas em criadoras, alimentadoras e rudes; isso se elas ainda sangrarem. Se elas não sangrarem, dependendo da idade, são classificadas em buracos (pré-adolescentes) ou sacos (pós-menopausa). Mulheres de classes superiores são chamadas por nomes que ele não conhece. Ele nunca encontrou nenhuma. A primeira ministra tem um desses nomes, A Grande Mãe (Big Mummy). Mas essas são palavras sagradas, reservadas somente a ela e raramente faladas. (ROBERTS, 1987: 253).

Roberts cria um universo com características não tão distantes da nossa sociedade patriarcal. As mulheres são divididas por suas capacidades biológicas e sua função de reprodução para o mundo masculino. E é nesse contexto quase que apocalíptico que a história de Tartaruga e Rata se aprofundará, pois com o tempo, Tartaruga decide abandonar Rata, que ainda é uma criança. Rata, de acordo com a classificação acima disponibilizada, se torna uma prostituta que seduzirá Tartaruga. A inversão edípica é o que dá o tom na história: a mãe-homem (Tartaruga) é seduzida pela filha (Rata). Juntos, eles reescrevem o dicionário da cidade, colocando nele a palavra mãe, dessa vez, com um significado completamente transgressor. E é com uma mãe que a trajetória da arca das mulheres acaba, quando assim fala a Senhora Noé, “Agora que estou grávida, eu tenho de cuidar de mim” (ROBERTS, 1987: 276).

A senhora Noé engravida de ideias, de conhecimento. Após a experiência da arca de conhecer outras narrativas de mulheres, ela renasce e acaba por gestar tantas outras experiências que decide narrar em forma de romance.

Em Noah, o maternar se constitui de forma rica e complexa; lembramos aqui a contribuição Neumann (1999), psicólogo jungiano e antropólogo alemão, que trabalha com o arquétipo da “Grande Mãe”, por meio da análise de um vasto material mitológico e histórico de diferentes grupos culturais em

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diferentes épocas, mostrando o caráter positivo desse arquétipo (A Mãe Bondosa) e o negativo (A Mãe Terrível, A Deusa Terrível etc.). Ele explora de forma detalhada como se desenvolveu, nos povos primitivos, a identificação das mulheres à natureza e os mistérios advindos dessa identificação. Noah também explora alguns símbolos que merecem destaque, tendo em vista que estão em sintonia com a problemática das maternidades, assim como elucidam temas ligados aos feminismos. A simbologia sempre presente e muito relevante com relação à maternidade é a das águas, principalmente quando associada a seu aspecto nutritivo, elemento que faz com que a vida brote de onde é seco. Essa metáfora está relacionada à maternidade e também à produção de escrita, ou seja, com a imanência do útero e com a transcendência da criação da palavra.

“Minha vida é uma longa sede” (1987:81), fala a personagem Sara, outra Senhora Noé, fruto de uma narrativa contada por uma das sibilas da arca das mulheres. Ela continua: “A água é minha mãe, minha amante. Meu elemento, que me dá liberdade para nadar para onde eu quiser. A água é minha comida e minha bebida. A água é meu deus” (1987:83). Essas duas falas são emblemáticas no romance, pois esclarecem o aspecto de transformação e poder que as águas exercem nas mulheres. Em todo o romance, acompanhamos a vida dessas mulheres antes de se juntarem à arca, uma vida improdutiva, algumas a achavam “seca”. Depois que a Senhora Noé e as sibilas se juntam à jornada, elas voltam a produzir literatura e a vida dessas mulheres se inunda de narrativas. Dessa forma, as águas são representadas como elemento nutritivo, bem como elemento libertador, tendo em mente que promove fluidez e maleabilidade de noções antes não questionadas, tais quais, gênero e as condições de vidas das mulheres.

Considerações Finais

Em 1980, Annette Kolodny fez uma reflexão sobre a crítica literária feminista e chegou à conclusão de que era ainda difícil definí-la como “um sistema coerente” ou “um conjunto unificado de metodologias” (KOLODNY, 1997: 171). Segundo Kolodny, uma dos instrumentos mais importantes dos feminismos foi a circulação de trabalhos de mulheres escritoras que foram perdidos ou ignorados, e que agora estavam sendo analisados e utilizados como base para o questionamento do padrão literário estabelecido. Nessa linha de pensamento, Elaine Showalter contribui com o conceito de ginocrítica, que

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busca entender “a psicodinâmica da criatividade feminina, sendo assim o estudo da mulher escritora, a trajetória da carreira feminina individual ou coletiva e a evolução e as leis de uma tradição literária de mulheres” (SHOWALTER, 1993: 29/30).

A presente artigo tentou contribuir com essa tendência ao dar visibilidade à produção ficcional de Michèle Roberts, especialmente à obra The book of Mrs. Noah. Em todos seus romances, a escritora inglesa contemporânea explora as formas de amor, as experiências e as perdas da maternidade também como metáfora, tal qual observamos anteriormente nesse estudo. Em nossa leitura dos romances de Roberts, percebemos que eles representam uma tentativa de pensar para além da dualidade natureza/cultura e possibilitam repensar a maternidade a partir de uma perspectiva diferente que desconstroi a mística da maternidade enquanto identidade institucional imposta e promove inovações no conteúdo e na forma de seus romances.

As análises de suas obras apresentam não apenas reflexões e novas visões sobre a temática da maternidade a partir da perspectiva da própria mãe, mas também critérios estéticos, narrativos e estilísticos diferentes das regras canonizadas da tradição literária masculina. Para Kolodny, a releitura da produção literária de autoria feminina levanta questionamentos sobre as razões para o silenciamento dessa literatura e para o status diminuído desses mesmos trabalhos em relação à produção literária de autoria masculina.

Particularmente, a releitura dos romances de Roberts, associada às contribuições dos feminismos e estudos de gênero relacionados às experiências do maternar apresentadas nesta pesquisa, nos leva a refletir sobre como, sobretudo, os trabalhos ficcionais que retratam a relação mãe-filha sob o ponto de vista da mãe, têm sido excluídos do padrão literário tradicional. Em seus romances, especialmente em The Book of Mrs. Noah, Michèle Roberts aprofunda e diversifica a temática da maternidade como tema central na literatura e, acima de tudo, sob a perspectiva da mulher e da própria mãe. Como bem observa Adrienne Rich, “maternidade e não-maternidade têm sido conceitos tão cheios de significações para nós, precisamente porque qualquer um que sigamos se volta contra nós” (RICH, 1981: 253).

Além disso, Roberts ressaltou uma relação em especial, dentre as muitas que envolvem a maternidade: a relação entre mães e filhas, como procuramos demonstrar neste trabalho. Como vimos, a relação entre mãe e filha é de grande importância para o estudo da maternidade e tem sido foco de atenção de algumas teóricas feministas contemporâneas. Segundo Rich, não somos mães ou filhas; nós somos ambas, somos mulheres que, identificadas,

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solidarizadas, proporcionamos umas às outras tipos de identificação realmente existentes entre mães e filhas.

Em Noah, Michèle Roberts reconstroi ficcionalmente uma personagem bíblica apenas nomeada pelo seu caráter relacional com o masculino: a esposa de Noé, um dos grandes patriarcas do Antigo Testamento. Relacionando maternidade e ficção, as personagens em Noah denunciam a opressão a que as mulheres são submetidas pela ideologia patriarcal e expressam seus próprios pensamentos e ideais, que têm como essência a vontade de dar visibilidade às mulheres como seres livres e independentes; ao longo do romance, as personagens femininas envolvem-se em um corajoso e complexo processo de desconstrução de mitos patriarcais que as oprimem e as confinam no único papel de mãe. Dessa forma, essa pesquisa ajuda a enfatizar que, nas palavras de Rich, “a maternidade, no senso de uma relação intensa com uma criança em particular ou crianças, é uma parte do processo feminino; não é uma identidade para todo o tempo.” (RICH, 1981: 37) Segundo ela, a instituição da maternidade precisa ser destruída. “Isso não significa abolir a maternidade. Significa a criação e o apoio à vida como qualquer outra atividade difícil, mas que pode ser escolhida e não imposta.” (RICH, 1981: 279-280).

Michèle Roberts parte de uma questão ainda relativamente pouco discutida no presente – a maternidade – e a problematiza, lançando nova luz sobre a experiência materna na literatura. Além desta dimensão temática relevante para os feminismos, Roberts também inova na forma de seus romances; em Noah Roberts é especialmente criativa, construindo uma narrativa complexa, com múltiplos pontos de vista, em que há diversas narradoras que contam outras tantas narrativas, formando a teia de Aracne. Para onde quer que olhemos, encontramos uma voz feminina, que é quase sempre também uma voz materna. Para entendermos melhor a rica estrutura de Noah, foi necessário, principalmente, estudarmos o conceito de polifonia proposto por Bakhtin, em "tessitura polifônica na qual confluem, se entrecruzam, se metamorfoseiam, se corroboram ou se contestam outros textos, outras vozes e outras consciências" (BAKHTIN, 1981:103).

Ao ler os romances de Roberts, narrados por mulheres que contam suas experiências de dor, anseios e frustrações, prazer, sonhos e felicidade e, assim, questionam os cânones falocêntricos dos homens que narram suas vidas heróicas ou as vidas de mulheres musas, santas ou diabólicas. O/A leitor/a desenvolve novas estratégias interpretativas, que acabarão levando à aceitação de novas práticas de representação ficcional da experiência feminina, dando importância ao que durante tantos anos foi visto como

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prosaico, insignificante. Assim, romances como Noah, por suas inovações, como as referentes à visibilidade da voz materna e da experiência da mulher na produção ficcional de autoria feminina, contribuem não apenas para a desconstrução de mitos patriarcais e para novas visões da maternidade, mas também para uma reformulação dos padrões estéticos literários tradicionais.

Roberts fragiliza, por meio das ricas e complexas temáticas do romance, os fundamentos do patriarcalismo, em que não há mais espaço para os binarismos de gênero e as definições simplistas e rígidas perpetuadas na sociedade patriarcal. Roberts inova ao propor, através de narrativas não-lineares, um universo do que as maternidades podem ser, de como as mulheres podem experienciar as maternidades e a produção das narrativas sobre elas próprias. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGONITO, Rosemary. History of Ideas on Women. 1 ed. New York: Paragon, 1977. BADINTER, Elisabeth. Um Amor Conquistado: O Mito do Amor Materno. Tradução de Waltensir Dutra. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 2a edição. São Paulo: Hucitec, 1981. BBC World Service. Acervo sobre Michèle Roberts. Disponível em http://www.bbc.co.uk/worldservice/arts/features/womenwriters/roberts_life.shtm. Acessado em maio/2006. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Tradução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. CHODOROW, Nancy. Estrutura Familiar e Personalidade Feminina. In ROSALDO, Michelle e LAMPHERE, Louise. A mulher, a cultura e a sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

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O ‘EU’ E SEU TRATAMENTO SEMÂNTICA: UM EXERCÍCIO DE ANÁLISE GRAMATICAL

Renato Miguel BASSO (UFSCar) Resumo: O item ‘eu’ é tradicionalmente analisado como um dêitico ou um indexical, i.e., uma expressão que recebe seu valor a partir de um elemento do contexto, no caso, do agente (falante, escrevente) do contexto. Depois de apresentar a teoria de Kaplan (1989) sobre esse item – certamente a mais bem sucedida das teorias até agora propostas –, mostramos vários usos de ‘eu’ que não são capturados por esse teoria. Na sequência, defenderemos que a análise gramatical de itens corriqueiros pode se revelar como uma ferramenta interessante para a reflexão gramatical e o ensino de línguas. Palavras-chave: indexicais, pronomes pessoais, descrição definida, semântica, pragmática Introdução Muitas vezes as palavras aparentemente mais simples são aquelas que colocam os desafios mais complexos para as análises linguísticas. Prova disso é a longa tradição já arquiteta sobre o estudo dos artigos definidos, cuja encarnação moderna começa com o texto “On Denoting”, do filósofo britânico Bertrand Russell, escrito em 1905. O estudo dessas palavras “inocentes” é interessante por uma série de motivos: lançamos um olhar científico e analítico a itens usados cotidianamente e sobre os quais dificilmente refletimos; a análise desses itens permite mobilizar todo um arsenal de conceitos já estabelecidos e averiguar e se eles conseguem dar conta do problema em tela, se precisam ser alterados ou se precisamos de ferramentas (i.e., conceitos) novas; além disso, na imensa maioria das vezes, esses itens corriqueiros estão presentes em quase todas as línguas do mundo e seu estudo pode lançar luz sobre a própria arquitetura da linguagem natural.

Com esses objetivos em mente, olharemos neste texto para o item ‘eu’, uma palavra, pelo menos do ponto de vista gramatical, supostamente bem-comportada, cuja contribuição linguística parece ser tão bem entendida que as

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gramáticas e diversos manuais de linguagem sequer gastam muito tempo em sua análise. Ao longo deste texto, procuraremos mostrar como mesmo o item ‘eu’ requer uma análise extremamente sofisticada e desafia certos postulados básicos que parecem explicar completamente tal item.

Antes de começarmos, porém, uma pequena ressalva. É possível, obviamente, analisarmos o item ‘eu’ e seus diversos usos lançando mão de teorias discursivas e enunciativas, mas esse não é nosso objetivo aqui; antes, o que procuraremos fazer é descrever gramatical e semanticamente esse item, de modo a chegar à forma básica que ele deve ter e às regras necessárias que operam sobre essa forma básica para gerar todas e apenas as interpretações possíveis para esse item. Porém, mais do que chegar a uma explicação de ‘eu’, procuraremos mostrar como essa palavra aparentemente tão banal pode nos levar a questões muito interessantes, despertando nossa curiosidade sobre o funcionamento dessa e demais outras palavras do português (e de outras línguas), uma curiosidade que pode ser utilizada para o ensino de gramática.

Sendo assim, o presente texto organiza-se como segue: na seção abaixo, apresentaremos uma primeira intuição sobre o item ‘eu’; feito isso, na seção 2, olharemos com mais cuidado sobre como essa intuição pode ser encaixada numa teoria de escopo mais amplo, no caso, a teoria de indexicais formulada por David Kaplan (1989). Nosso objetivo na terceira seção é mostrar diversos usos da palavra ‘eu’ que não podem ser capturados pela teoria de Kaplan, totalizando 7 usos diferentes (dos quais a teoria de Kaplan, em princípio, só dá conta de 1). Contudo, seria muito surpreendente que, de todos os pronomes pessoais de uma língua, (i) somente o ‘eu’ apresentasse tamanha quantidade de interpretações e que (ii) de fato sejam 7 as interpretações e elas não possam ser arranjados ou agrupadas em categorias mais gerais. Por isso, na seção 4 mostraremos que os outros pronomes pessoais (pelo menos os singulares) apresentam os mesmos usos que ‘eu’ e proporemos uma reorganização dos 7 usos em três categorias, que são encontradas para todos os pronomes. Finalmente, na seção 5 faremos um balanço do caminho percorrido e uma pequena discussão sobre a relação entre reflexões desse tipo e o ensino de português.

1. Uma primeira teoria sobre o item ‘eu’ A palavra ‘eu’ é um exemplo prototípico de “dêitico” ou “indexical”, ou

seja, um item que tem, entre outras propriedades, uma grande dependência

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contextual – a princípio, o referente de ‘eu’, sua contribuição linguística, é o falante e ela muda cada vez que um novo falante pronuncia ‘eu’. Tomemos os exemplos abaixo, em que temos como falante o João em (1) e a Maria em (2); a representação usando os parênteses angulares (<,>) mostra qual proposição (ou pensamento) está sendo expressa: (1) (João:) Eu tô com fome (1’) <João, estar com fome> (2) (Maria:) Eu tô com fome (2’) <Maria, estar com fome> Dado que (i) em (1) e (2) temos as mesmas palavras envolvidas – i.e., a sequência ‘eu tô com fome’ –, (ii) o predicado envolvido não muda (‘estar com fome’), e (iii) ainda assim essa mesma sequência expressa duas proposições diferentes a depender de quem fala, podemos concluir que (iv) o item ‘eu’ é sensível a quem é o falante e o designa, ou seja, o referente de ‘eu’ é o falante. O par de exemplos (1) e (2) acima nos permite fazer a distinção entre sentenças e proposições (ou pensamentos). Sentenças são sequências de palavras organizadas segundo a sintaxe de alguma língua e são gramaticais, assim sendo, como vimos temos a mesma sentença em (1) e em (2); por sua vez, proposições são os pensamentos expressos por uma dada sentença; porém, como mostram o par (1) e (2) não podemos dizer que uma mesma sentença expressa sempre a mesma proposição, afinal, apesar de (1) e (2) representarem a mesma sentença, a proposição que elas expressam são diferentes, e a diferença reside justamente no fato de que a sentença ‘eu tô com fome’ carrega um elemento cuja interpretação depende do contexto, o item ‘eu’. Uma maneira elegante de capturarmos as diferenças e semelhanças entre o par (1)-(2) é postular que proposições são o resultado de proferimentos, e que proferimentos são sentenças (i.e., sequências de sons, sintatica e semanticamente bem formadas) relativizadas a um contexto de proferimento, algo que pode ser representado pelo par <s, c>, no qual ‘s’ está por sentença e ‘c’ por contexto. Note que agora, além de sentença e proposição, temos também o conceito de proferimento (uma sentença relativizada a um contexto) – e tudo isso apenas para podermos analisar duas sentenças aparentemente tão “simples”. Obviamente, falta ainda definir “contexto”, algo que só pode ser feito no interior de uma teoria especifica, como a que apresentaremos na próxima seção.

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Procedendo à análise com os conceitos dos quais dispomos, no caso de (1) e o (2), a sentença ‘s’ é a mesma, i.e., ‘eu tô com fome’, mas o contexto ‘c’ é diferente, porque num deles, que podemos chamar de “c1”, temos o João como agente ou como aquele que fala, e no outro, que podemos chamar de “c2”, temos a Maria desempenhando esse papel. Dado que os pares <s, c> para o caso de (1) e (2) são diferentes – temos <s, c1> para (1) e <s, c2> para (2) – conseguimos capturar o fato de que a mesma sentença (s) pode ser usada para veicular duas proposições diferentes, e que o item sensível ao contexto é ‘eu’. Essa maneira de capturar essas intuições é relativamente simples e bem sucedida, porém ela gera consequências de longo alcance que nem sempre se conformam à nossa intuição. Um dos objetivos deste texto é mostrar que a análise esboçada acima não dá conta de todos os usos que fazemos da palavra ‘eu’, e é necessário uma outra teoria para lidar com esse item. Antes, porém, de vermos os problemas com essa primeira análise, bastante próxima a nossa interpretação intuitiva de ‘eu’ e ao que dizem manuais e gramáticas, vejamos como essa primeira teoria pode ser encaixada numa teoria semântica formal mais ampla – o modelo proposta pelo filósofo David Kaplan. 2. A teoria de Kaplan para o item ‘eu’

A teoria de indexicais de Kaplan (1989) foi formulada pela primeira vez em 1977, mas foi publicada apenas em 1989. O autor tentou dar conta da semântica, da epistemologia e da metafísica que envolve os chamados itens indexicais – justamente os itens que, para receberem uma interpretação, dependem de informações contextuais. Ao lidar com esses termos, Kaplan acabou por definir termos básicos da filosofia da linguagem e da semântica, que são ainda hoje usados conforme ele propôs. Na primeira seção deste texto, já tivemos oportunidade de lidar com as definições de sentença (sequência de sons ou palavras sintatica e semanticamente bem formadas), proposição (pensamento veiculado por um proferimento, que pode ser avaliado em termos de suas condições de verdade) e proferimento (sentença dita num dado contexto); o próximo passo é entender melhor a noção kaplaniana de contexto. É importante notar, antes de mais nada, que o que Kaplan entende por contexto é algo bastante preciso que cumpre certas funções específicas; em sua teoria, contexto nada mais é do que uma série de informações nas

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quais os falantes se apoiam ao usar certas expressões linguísticas (os indexicais). Um contexto é então uma unidade informacional que contém, segundo Kaplan, um agente (ca), um ouvinte (co), um tempo (ct), um lugar (cl) e um mundo possível (cw), e é representado como uma ê-nupla ordenada da forma <ca, co, ct, cl, cw>. Para lidar com as informações contextuais, Kaplan propõe a função caráter – uma função que toma um contexto e resulta num conteúdo; por sua vez, conteúdo é uma função que toma mundos possíveis e resulta em valores de verdade (para o caso de sentenças) e referentes (para o caso de termos singulares). Podemos pensar também que o caráter é uma regra de uso associada a um dado item lexical, ao passo que o conteúdo é a contribuição proposicional do item lexical (como o sistema kaplaniano é composicional, as mesmas considerações se aplicam a sentenças).

Segundo a teoria de Kaplan, todos os itens linguísticos são interpretados pela função caráter e pela função conteúdo, porém, apenas os indexicais dão resultados diferentes com relação ao caráter (porque são sensíveis ao contexto). Para o caso do indexical, ‘eu’, por exemplo, seu caráter é uma função que resulta, a cada contexto, no falante ou agente daquele contexto, ou seja, [[eu]] = falante/agente de c = ca; foi o que vimos com os exemplos (1) e (2), que repetimos abaixo usando a terminologia introduzida (no que segue, ignoraremos tempo e local do contexto): c1 = <João, co, ct, cl, cw>> (1) (João:) Eu tô com fome Caráter de (1): <s, c1> = <‘eu tô com fome’, c1> =

<‘ca estar com fome’, <João, co, ct, cl, cw>> Conteúdo de (1): <‘ca estar com fome’, <João, co, ct, cl, cw>> = <João estar com fome> c1 = <João, co, ct, cl, cw>> (2) (Maria:) Eu tô com fome Caráter de (2): <s, c2> = <‘eu tô com fome’, c2> =

<‘ca estar com fome’, <Maria, co, ct, cl, cw>> Conteúdo de (2): <‘ca estar com fome’, <Maria, co, ct, cl, cw>> =

<Maria estar com fome>

Para sabermos se as proposições expressas em (1) e (2) são verdadeiras ou falsas, é preciso considerá-las com relação aos mundos possíveis acessíveis; nesse caso, (1) é verdadeira se e somente se (sse) João

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estiver com fome no mundo de consideração; o mesmo vale, mutatis mutandis, para (2). Assim, se considerarmos os mundos abaixo: w1 � João, Pedro, Tiago, Maria estão com fome; w2� João e Pedro estão com fome w3 � Maria está com fome obteremos que a proposição expressa em (1), com o proferimento <s, c1>, é verdadeira nos mundo w1 e w2; e que a proposição expressa em (2), por sua vez, é verdadeira nos mundos w1 e w3. Com a teoria de Kaplan, temos então duas funções que têm como objetivo fornecer a proposição veiculada pelas sentenças das línguas naturais. Essa teoria pode ser representada graficamente pelo esquema abaixo, adaptado de Schlenker (2009):

Há várias nuances que a teoria de Kaplan apresenta, como, por exemplo, diferenciar indexicais como ‘eu’, ‘aqui’, ‘hoje’, etc. dos demonstrativos, chamando os primeiros de indexicais puros, pois sua interpretação depende simplesmente de informações contextuais, dos segundos, chamados de indexicais impuros, pois sua interpretação depende também de apontamentos ou gestos de ostensão para objetos presentes no contexto visual – mas não é possível expormos todas as nuances da teoria aqui (cf. BASSO et al., 2012; BRAUN, 2012; TEIXEIRA, 2012). Porém, é importante chamar a atenção para duas características básicas dessa teoria, que serão desafiadas nas seções seguintes: a ideia de que os indexicais são termos diretamente referenciais e a ideia de que o único contexto mobilizado para a interpretação dos indexicais é o contexto de fala, em contraste, por exemplo, com o contexto de fala relatada ou reportada.

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Com a primeira dessas ideias, Kaplan captura o fato de que a contribuição proposicional de um indexical (que é um termo singular) é um indivíduo e nada mais, ou seja, para uma sentença que contém a palavra ‘eu’, por exemplo, a contribuição proposicional de ‘eu’ será o agente/falante do contexto e nenhum de suas propriedades (descritivas). Essa concepção acarreta que os indexicais são termos rigidamente referencias no sentido de Kripke (1981). Ainda segundo Kaplan, o único contexto que pode ser utilizado para o estabelecimento da contribuição proposicional de indexicais é o contexto de proferimento – qualquer operador que controla o contexto de avaliação dos indexicais, segundo o autor, é um operador-monstro, e Kaplan diz que tais operadores não existem. Essa assunção foi criticada por inúmeros autores e será novamente aqui.

Em resumo, para Kaplan o item ‘eu’ tem a seguinte representação (é imprescindível notar que estamos simplificando ao máximo a teoria de Kaplan): F: [[eu]] = ca � o item ‘eu’, com relação a um contexto c tem como referente o agente do contexto (cA) Com a teoria de Kaplan, um poderoso instrumento para o entendimento dos indexicais nas línguas naturais, passemos aos diversos usos de ‘eu’, mostrando os limites dessa teoria.

3. Os vários usos do ‘eu’ e a teoria padrão

O emprego de ‘eu’ que vimos para os casos em (1) e (2) não é o único que encontramos para esse item. Na verdade, é possível, em princípio, identificar (pelo menos) 7 diferentes usos de ‘eu’, que chamaremos de “uso referencial”, “uso impróprio”, “uso metaficcional”, “uso metonímico”, “uso descritivo”, “uso como variável” e “uso genérico”; esse usos serão analisados, na ordem em que foram apresentados, nas seção 3.1 a 3.7, juntamente com uma avaliação de como a teoria de Kaplan poderia dar conta deles – argumentaremos que, conforme originalmente formulada, essa teoria dá conta apenas do uso referencial. Na seção 4, conforme dissemos na introdução, reduziremos esses 7 usos a apenas 3, que são encontrados também nos outros pronomes.

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3.1 Uso referencial O uso referencial é aquele exemplificado pelas sentenças (1) e (2) e é, talvez, o uso mais comum de ‘eu’. Podemos identificá-lo em todos os exemplos abaixo, lembrando que sua característica principal é referir-se ao agente, falante ou escrevente do contexto: (3) Eu não quero tomar banho. (4) Eu não estou com vontade de estudar. (5) Deixa eu quieto! (6) Me passa cola pra prova...

Para todos esses casos, seguindo a teoria de Kaplan, saber quem é o agente, falante ou escrevente do contexto basta para determinar quem é o ‘eu’ e ele se refere ao agente, falante ou escrevente do contexto devido ao seu caráter e não por conta de alguma propriedade ou característica de seu referente. Em outras palavras, a fórmula [[eu]] = ca dá conta e esgota o uso referencial; todos os casos que veremos na sequência, por sua vez, não cabem nessa fórmula. 3.2 Uso impróprio Usos impróprios são aqueles em que o agente, falante ou escrevente do contexto – aquele que realiza o item ‘eu’ – não é seu referente. Um exemplo particularmente claro é aquele em que alguém (João) escreve um bilhete com os dizeres ‘ME CHUTE’ e cola nas costas do Pedro. Mesmo para os que viram João escrever o bilhete, e, portanto, empregar o ‘eu’, ser seu agente, o referente de ‘eu’ será Pedro – é ele que receberá os chutes caso as pessoas resolver seguir o que está escrito. Outro exemplo, um pouco mais elaborado, é o seguinte: suponhamos um corredor com salas de professores, de modo que as portas fiquem de frente uma para a outra. O professor João não está em sua sala, a sala A. Por sua vez, o professor Pedro, cuja sala, a B, que fica de frente à sala do professor João, está e gosta de trabalhar com a porta aberta. A partir de um certo momento, estudantes começam a bater na porta da sala A, na esperança de conversar com o professor João, sem saber que ele está viajando. Isso ocorre algumas vezes até que acaba irritando o professor Pedro que então escreve o

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seguinte recado num pedaço de papel e o cola na sala A: ‘Eu não estou aqui agora’. A ideia funciona e os alunos, ao lerem o bilhete, vão embora sem bater à porta e sem incomodar o professor Pedro40.

Intuitivamente, tudo parecer funcionar bem e concordamos que o referente de ‘eu’ para o bilhete em questão é João, ou ao menos concordamos que é assim que os estudantes se comportariam. Porém, a teoria de Kaplan não nos dá esse resultado: se a função caráter de ‘eu’, ao tomar como argumento um contexto, resulta no agente do contexto (ca), é óbvio que o agente é Pedro, e logo o conteúdo (referente) de ‘eu’ nesse contexto é Pedro e não João – algo que claramente não captura nossa intuição e interpretação. Para tornar as coisas ainda mais complicadas para a teoria de Kaplan, suponhamos também que Pedro não esteja sozinho em sua sala, mas está trabalhando com um aluno, o José. Suponhamos que José tenha acompanhado tudo o que descrevemos; notadamente, ele viu que foi Pedro que escreveu o bilhete e o colou na porta da sala do professor João. É interessante notar que, mesmo do ponto de vista de José, é contra-intuitivo dizer que o referente de ‘eu’ é Pedro, ou seja, é contra-intuitivo dizer que a sentença colada na porta da sala A expressa a proposição (estruturada) <Pedro, não estar aqui agora>.

Fundamentalmente, o que temos aqui é que o referente de ‘eu’ não é ca, ou seja, o agente/falante/escrevente do contexto, e a fórmula F não funciona para esses casos. Há, porém, diversas formas de resgatar a teoria kaplaniana, mas todas elas têm que dissociar o referente de ‘eu’ do agente/falante/escrevente de ‘eu’ e estabelecer, de alguma outra forma, como sabemos quem é o referente de ‘eu’, já que ele não é mais o agente do contexto. Seja qual for a melhor saída, ela levará a uma reformulação da teoria de Kaplan para o caso do item ‘eu’. Mais sobre esse uso pode ser encontrado em Basso (2010), Corazza et al. (2002), Predelli (1998), Perry (2003) e Romdenh-Romluc (2006). 3.3 Uso metaficcional O uso metaficcional de ‘eu’ foi extensamente analisado por Basso e Teixeira (2011) e Teixeira (2012), e aqui nos interessa apenas apontar sua existência, seus contornos gerais e os problemas que coloca à teoria padrão sobre os indexicais.

40 Exemplo adaptado de Corazza et al. (2002, p. 5).

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Como sempre, imaginemos o seguinte contexto: depois de uma peça de teatro, que envolvia apenas duas atrizes, uma repórter perguntar para uma das atrizes ‘O que você acha que poderia mudar na peça para que ela fosse mais engraçada?’; a atriz responde ‘Eu acho que eu podia ser mais rica’. O ponto interessante é que o segundo ‘eu’ da resposta da atriz tem como referente não a atriz, mas a personagem que ela interpreta. Para que isso fique mais claro, vamos imaginar que as atrizes se chamam Ana e Maria, e as personagens que elas interpretam se chamam, respectivamente, Sandra e Sonia. Considerando isso, e supondo que a pergunta tenha sido feita à Ana, podemos parafrasear a pergunta da repórter e a resposta de Ana como abaixo: pergunta: ‘O que você acha que poderia mudar na peça para que ela fosse mais engraçada?’ ‘O que Ana (=co) acha que poderia mudar na peça para que ela fosse mais engraçada?’ resposta: ‘Eu acho que eu podia ser mais rica’ ‘Ana (=ca) acha que Sandra (=??) podia ser mais rica’

O problema é que essa paráfrase e a interpretação que ela revela não estão disponíveis para a teoria padrão: justamente porque ‘eu’ é ca, e o contexto tem Ana como agente/falante, a única interpretação possível é a abaixo: resposta: ‘Eu acho que eu podia ser mais rica’ ‘Ana (=ca) acha que Ana (=ca) podia ser mais rica’ Essa interpretação, apesar de possível, não faz muito sentido ou não é uma resposta relevante para a pergunta da repórter. Seja como for, a primeira paráfrase está disponível, mas a teoria de Kaplan não tem como gerá-la, simplesmente porque a teoria postula que o único contexto possível mobilizado para a interpretação dos indexicais é o contexto de proferimento, e em tal contexto Ana é sempre o agente/falante. Uma saída possível, adotada por Basso e Teixeira (2011) e Teixeira (2012), é postular um operador-monstro, que manipula o contexto de modo que o primeiro ‘eu’ é fixado no contexto de proferimento e tem como referente seu agente – Ana; mas o segundo ‘eu’ é fixado no contexto da ficção relevante (a peça de teatro) e tem como referente seu agente – Sandra. A explicitação formal dessa proposta e suas consequências não são totalmente óbvias e têm

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ramificações bem interessantes, mas que fogem aos objetivos deste texto. Porém, mais uma vez, resta notar que a fórmula F não pode ser a palavra final sobre o ‘eu’, desta vez porque o contexto, às vezes e sob certas condições, pode ser controlado41. 3.4 Uso metonímico O uso metonímico do item ‘eu’ é ilustrado pela sentença abaixo: (7) Eu tô estacionado na garagem. Com (7), sabemos que o falante, através de ‘eu’, refere-se ao seu carro. Há diversas explicações para que o acontece aqui, e mesmo o uso do termo “metonímico” não é consensual, pois há autores que acreditam que a interpretação sugerida para (7) não envolve um processo metonímico. Seja como for, novamente, e de modo semelhante ao que vimos para o “uso impróprio”, a interpretação de ‘eu’ para esse caso não resulta da simples aplicação de F. Nunberg (1993, 2004) e Mount (2008) apresentam interessantes discussões sobre este uso de ‘eu’. 3.5 Uso descritivo Os usos descritivos colocam sérios problemas para um dos principais pilares da teoria de Kaplan: a ideia de que a contribuição proposicional de um indexical (sendo um termo singular) é um indivíduo, ou seja, eles são termos diretamente referenciais que se referem a indivíduos sem levar em conta nenhuma propriedade ou característica desses indivíduos. Tendo isso em mente, tomemos a sentença abaixo, dita em 2012 por Dilma Rousseff, e a analisemos segundo a teoria kaplaniana: (8) (Dilma Rousseff:) A Constituição me dá a palavra final.

41 Seria possível argumentar que o uso metaficcional é, na verdade, uma instância do uso descritivo, que veremos na seção 2.5. Contudo, essa saída não é viável pois a aplicação do uso descritivo geraria, para ‘Eu acho que eu podia ser mais rica’, a seguinte paráfrase ‘Ana acha que a atriz que interpreta Sandra (e Ana é uma dessas atrizes) pode ser mais rica’, que não captura nossa interpretação da sentença.

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A Constituição dá a palavra final a ca=<Dilma Rousseff, a Constituição dar a palavra final> Num primeiro olhar, essa análise parece correta e a proposição expressa é verdadeira nos mundos possíveis em que a Constituição dá a palavra final para Dilma Rousseff. Consideremos então os seguintes mundos possíveis: w1 � a Constituição dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é a presidente do Brasil w2 � a Constituição dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é balconista de loja w3 � a Constituição não dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é a presidente do Brasil w4 � a Constituição não dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é balconista de loja O ponto interessante é que, segundo a teoria de Kaplan, a proposição expressa pela sentença (8) é verdadeira nos mundos w1 e w2, e falsa nos mundos w3 e w4, pois basta que a Constituição dê a palavra final ao indivíduo nomeado Dilma Rousseff para que a proposição seja verdadeira, independentemente de quaisquer características de Dilma Rousseff42. Ora, isso claramente vai contra nossa intuição, pois diremos que apenas o mundo w1 deve ser levado em consideração, diremos que a Constituição dá a palavra final para Dilma Rousseff porque ela é a presidente do Brasil, ou enquanto ela for a presidente do Brasil. Mas, como esperamos ter mostrado, não é esse o resultado a que chega a teoria tradicional. Uma paráfrase mais adequada para (8) seria como abaixo: (8) (Dilma Rousseff:) A Constituição me dá a palavra final. A constituição dá a palavra final ao presidente do Brasil e Dilma Rousseff (quando profere (8)) é a presidente do Brasil Para dar conta dessa paráfrase, precisamos de uma teoria de indexicais que leve em conta as propriedades dos referentes desses itens, pelo menos em alguns casos. O mesmo ponto pode ser feito através do exemplo de Nunberg

42 É importante lembrar que isso se dá porque, na teoria de Kaplan, o contexto de proferimento determina, exclusiva e exaustivamente, o referente, que em todos os casos do exemplo (8) será Dilma Rousseff porque ela é ca.

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(1993), adaptado abaixo. Imagine um prisioneiro condenado à morte, chamado João; em sua última noite, ele diz ao guarda de plantão: (9) Tradicionalmente, eu tenho direito a uma última refeição. A análise kaplaniana resulta, muito grosso modo, na proposição: <é tradicional <João, ter direito a uma última refeição>> Essa proposição expressa que João, tradicionalmente, tem direito a uma última refeição – algo que simplesmente não faz sentido, pois ninguém, por definição, faz tradicionalmente uma última refeição, já que se trata de uma última refeição. Uma paráfrase mais razoável para (9) seria: (9) Tradicionalmente, eu tenho direito a uma última refeição. Os condenados à morte têm, tradicionalmente, direito a uma última refeição e João é um condenado à morte. É interessante notar que a paráfrase que oferecemos para (9) segue, em linhas gerais, o caso em (8), e ambas mostram que a fórmula F estabelece uma relação direta demais: é necessário levar em conta, em alguns casos, as propriedades dos referentes. 3.6 Uso como variável O uso de ‘eu’ como uma variável aparece na literatura desde 1989 (cf. PARTEE, 1989), e desde então tem sido tratado de diversas maneiras. Para entender esse uso, imaginemos um contexto em que temos João, Pedro e Maria, e que cada um deles tenha filhos; a Maria diz (10), cuja análise kaplaniana é mostrada logo abaixo – grosso modo, em (10’) temos uma representação com o caráter do indexical, e em (10’’), o conteúdo. (10) Só eu posso tomar conta dos meus filhos. (10’) Só ca pode tomar conta dos filhos de ca (10’’) Só Maria pode tomar conta dos filhos da Maria

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Nessa interpretação, o João não pode tomar conta dos filhos de Maria e nem o Pedro, pois somente a Maria pode tomar conta dos filhos da Maria. Contudo, há uma outra interpretação para a sentença (10) proferida pela Maria, cuja paráfrase está em (11), e que não pode ser gerada pela teoria padrão sobre ‘eu’: (10) Só eu posso tomar conta dos meus filhos. (11) A Maria é a única que pode tomar conta de seus próprios filhos Nessa interpretação, Maria pode tomar conta dos filhos de Maria, e João e Pedro também podem tomar conta dos filhos de Maria, mas João não pode tomar conta dos filhos de João e nem Pedro pode tomar conta dos filhos de Pedro. Os esquemas abaixo ajudam a visualizar essas duas interpretações – note que representamos apenas algumas das intepretações possíveis para não poluir demais a imagem:

INTERPRETAÇÃO (10’’)

tomar conta

Maria filhos da Maria

João filhos do João

Pedro filhos do Pedro

INTERPRETAÇÃO (11) tomar conta

Maria filhos da Maria

João filhos do João

Pedro filhos do Pedro 3.7 Uso genérico O uso genérico pode ser exemplificado pelas sentenças abaixo: � assistindo uma partida de futebol, alguém diz, depois de ver um gol feito perdido: (13) Esse gol até eu fazia!

X

X

X

X

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� como comentário sobre o desempenho de um time que jogou muito mal, alguém diz: (14) Se fosse pra ganhar, eu entrava motivado... Os ‘eu’s presentes em (13) e (14) podem receber uma interpretação segundo a qual não se referem ao falante (agente do contexto) nem a ninguém em particular, mas sim a qualquer um – para (13), não interessa quem seja, faria o gol, e para (14), não interessa quem seja, se quiser ganhar esse alguém tem que entrar motivado. A teoria de Kaplan não tem meios de capturar essa interpretação sem alterações drásticas simplesmente porque a única coisa que diz sobre ‘eu’ é a fórmula F. Mais sobre o uso genérico de ‘eu’ pode ser visto nos trabalhos de Zobel (2010, 2011). 3.8. Pequeno balanço Seis dos sete usos que vimos nas seções 3.1-3.7 desafiam a teoria de Kaplan, pois (i) o referente de ‘eu’ não é (simplesmente) o agente do contexto (seções 3.2 e 3.4); (ii) o contexto relevante para a fixação do referente de ‘eu’ não é (unicamente) o contexto de proferimento (seção 3.3); (iii) o estabelecimento do referente de ‘eu’ e das condições da verdade da proposição expressa levam em conta propriedades ou características do referente (seção 3.5), o que fere um dos princípios fundamentais da teoria kaplaniana; e finalmente, (iv) ‘eu’ não se refere a nenhum indivíduo mas sim funciona como uma variável ligada, seja porque expressa uma propriedade ou atua numa sentença genérica (seções 3.6-3.7). É importante salientar que as interpretações de 3.1 a 3.4 podem ser “salvas” numa teoria kaplaniana desde que certos ajustem sejam feitos, o que, em parte, descaracteriza essa teoria. Os casos em 3.5 a 3.7, por sua vez, apresentam desafios mais sérios à teoria e demandam outro tipo de ajuste, o que dificulta sobremaneira qualquer tentativa de explicar com a teoria de Kaplan todos os usos de ‘eu’. Dado que concluir que há mais de um ‘eu’ na língua não é a melhor alternativa dos mundos, a situação descrita até aqui pede por uma outra teoria sobre indexicais e sobre ‘eu’ em particular, e é para uma tal teoria que nos voltamos na sequência. Porém, antes disso, mostraremos que os usos de ‘eu’ podem ser reduzidos a três e que esses três usos podem, também, ser observados em todos os pronomes.

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4. Reduzindo os usos de ‘eu’ e as interpretações do s pronomes pessoais A proposta que faremos nesta seção é que os usos 3.1 a 3.4 podem ser agrupados sobre o rótulo de “uso referencial”, o que vimos em 3.5 é o “uso descritivo” e o que vimos nas seções 3.6 e 3.7 são o “uso como variável”. A ideia é que com o uso referencial o que há como contribuição proposicional é simplesmente um indivíduo e nada, ainda que ele não seja o agente do contexto (pode ser um outro indivíduo, como nos casos de 3.2 e 3.4, ou pode ser o agente de outro contexto que não o de proferimento, como em 3.3) – nesses casos, o problema parece ser o fato de que não temos um regra que funcione para o estabelecimento do referente em todos os casos; por sua vez, no uso descritivo, a contribuição proposicional não é simplesmente um indivíduo, mas também uma propriedade ou característica exemplificada pelo indivíduo (caso 3.5); finalmente, no uso como variável o pronome ‘eu’ contribui para a proposição com uma variável, não com um indivíduo (específico) e nem com uma descrição mais um indivíduo.

Se isso estiver correto, o que precisamos é de uma teoria que conceba o item ‘eu’ de modo que ele possa receber essas três interpretações. Porém, não seria interessante ter uma teoria apenas para o item ‘eu’, e é por isso que analisaremos rapidamente na sequência os pronomes ‘ele’ e ‘você’, com o objetivo de mostrar que esses três usos também são encontrados para esses pronomes, com a expectativa – a ser ainda verificada – que é possível estender as considerações feitas aqui também para os pronomes plurais. No que segue, não faremos uma apresentação exaustiva, que passe pelos 7 casos vistos na seção 3, mas apenas por alguns deles. 4.1 As interpretações de ‘ele’ e ‘você’ As sentenças (15) e (16) abaixo ilustram usos referencias canônicos, ao passo que as sentenças (17) e (18) são exemplos de uso metonímicos: (15) Olha o João ali! Ele chegou cedo hoje! (16) Presta atenção no que eu falo pra você! (alguém apontando para a chave de um carro:) (17) Ele tá lá atrás, na saída da loja.

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(18) Onde você está estacionado? O uso descritivo desses pronomes pode ser um pouco mais difícil de visualizar. Um caso famoso na literatura aparece em Recanati (2005) e Elbourne (2008), e se dá no seguinte cenário: duas pessoas estão conversando e uma delas aponta para o atual Papa, Bento XVI, que é alemão, e diz: (19) Ele costumava ser italiano. Ora, a paráfrase correta para (19) não é (20), mas sim (21): (20) Bento XVI (i.e., Joseph Ratzinger) costumava ser italiano. (21) O Papa costumava ser italiano. O que temos aqui, grosso modo, é o acionamento da propriedade ou característica que o referente representa; logo, a contribuição proposicional de ‘ele’, em (19), não pode ser simplesmente um indivíduo. Para o caso de ‘você’, podemos imaginar uma situação em que há uma empresa, cujo presidente é sempre o membro mais velho da família que é dona dessa empresa, e é o presidente quem toma as decisões importantes; numa reunião, um dos executivos aponta para o (atual) presidente e diz: (22) É sempre você quem toma as decisões importantes. Mais uma vez, a paráfrase mais adequada para (22) não é uma que envolva somente o indivíduo que é o presidente atual, mas também a propriedade de ser presidente, como sugerido pela paráfrase em (23): (23) É o presidente que sempre toma as decisões importantes. Para o caso do uso como variável (genérico ou não), podemos tomar as sentenças abaixo: (24) Todo homem sabe o que ele deve fazer. (uma professora diz, em tom de bronca, para seus alunos) (25) Para conseguir um bom emprego, você precisa saber ler e escrever direitinho.

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‘Ele’ e ‘você’ em (24) e (25) não são nem referenciais nem descritivos. Com essa pequena bateria de exemplos, esperamos ter mostrados que mesmo ‘ele’ e ‘você’ podem, portanto, ter as mesmas interpretações que ‘eu’ e assim colocam os mesmos desafios para quem quiser analisá-los. 5. Descrição gramatical: ainda um convite à pesquis a e ao ensino Ao leitor que chegou até aqui, uma nota importante: não apresentaremos uma proposta de solução para o item ‘eu’ (e os demais pronomes) e suas interpretações; é certo que existe mais de uma maneira de solucionar esse aparente quebra-cabeça (para o leitor interessado, cf. Nunberg, 1993; Basso, no prelo). Porém, nosso objetivo aqui é outro: mostrar que a análise cuidadosa de uma palavra corriqueira e (superficialmente) banal pode levar a questionamentos interessantes e tornar o estudo da gramática algo muito instigante.

A descrição de ‘eu’ que fizemos neste texto é um tanto complexa e vale a pena retomar seus passos: começamos com uma intuição muito singela sobre o papel de ‘eu’, e, através da análise dos exemplos (1) e (2), precisamos chegar a noções muito sofisticadas (sentença, proposição, proferimento, contexto, etc.). Nosso próximo passo foi mostrar que essa intuição pode ser capturada por uma teoria formal extremamente bem elaborada e assim aliada a uma teoria semântica mais ampla, com grandes pontos de encontro com a sintaxe e a pragmática.

Através de exemplos e contextos (num sentido amplo) comuns, procuramos mostrar que nossa primeira intuição sobre ‘eu’, bem como a teoria que a endossa, não podem dar conta de todos os seus usos. Um segundo passo foi mostrar que, na verdade, ‘eu’ não é tão idiossincrático assim e que outros pronomes têm os mesmos usos, e portanto é preciso pensarmos numa teoria que dê conta desses usos – sempre lembrando que, em princípio, nossas intuições é que são a principal baliza segundo a qual uma teoria deve ser avaliada.

Mas o que um estudo tão técnico e intrincado de algo tão específico quanto o item ‘eu’ pode ter a ver com pesquisa e ensino? Muita coisa, na verdade. O ponto principal é que as ferramentas analíticas usadas para formular a teoria kaplaniana, que captura nossa primeira intuição sobre ‘eu’, e os tipos de raciocínio utilizados para depois mostrar os limites dessa intuição (e da teoria que a endossa) não são qualitativamente diferentes do que

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precisamos para analisar os fenômenos e as teorias de outras disciplinas, como a física, a química, a geografia, etc. – com a grande vantagem de que todos, sem exceção, têm acesso ao dado linguístico, pois somos (em princípio) falantes, e não necessitamos de um laboratório ou ir a campo para aplicarmos e testarmos nosso raciocínio, como pode ser para outras disciplinas. O olhar analítico, talvez uma das coisas mais importantes, menos valorizadas e mais mal aprendidas pelos nossos alunos, é o que une desde uma análise gramatical até a formulação de uma lei física. Tomar posse de um olhar como esse nos livra de várias amarradas de preconceitos e receios, pois, com essa postura, o que importa é a formulação clara de uma regra e sua resistência frente aos fenômenos que procura abarcar. Mas por que é tão difícil termos uma postura como essa frente à linguagem? Por que ainda consideramos a linguagem, na imensa maioria das vezes, como algo pronto, cujas regras devem simplesmente ser aprendidas e/ou decoradas? Por que a análise gramatical de fenômenos de nossa língua materna parece não servir para seu ensino e aprendizagem? A resposta a essas perguntas, por mais interessante e importante que seja, nos levaria para muito longe.

O que temos a dizer aqui é algo bem mais modesto: a análise da língua que falamos pode ser um instrumento para ficarmos curiosos sobre nossa língua e essa curiosidade pode nos levar a querer aprender mais. É uma postura certamente romântica, mas também certamente vai contra as expectativas que um aluno tem sobre as aulas de português – o quão mais instigante pode ser aprender sobre os meandros do pronome ‘eu’ do que sobre certos tipos de construções que ele nunca usou e provavelmente nunca usará? E por que a análise de itens corriqueiros que seja instigante e surpreendente não pode levar o aluno a querer saber mais e adotar os mecanismos de análise usados em outras disciplinas também na aula de português? E talvez tudo isso sirva para vencer barreiras com relação ao que aprender nas aulas de português.

É com essa nota em tom esperançoso e indagar que encerramos este texto.

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AGRADECIMENTOS

REALIZAÇÃO

Outubro

2012


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