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Arte e Décadence em Nietzsche: O Caso Wagner, um Tornar-se ... · Entretanto, se a leitura que...

Date post: 28-Nov-2018
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Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012 Arte e Décadence em Nietzsche: O Caso Wagner, um Tornar-se desde O Nascimento da Tragédia Art and Décadence in Nietzsche: The Case Wagner, a becoming since The Birth of Tragedy Isadora Raquel Petry 1 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Resumo: O presente artigo visa problematizar a noção de décadence e suas implicações com a temática da arte em O Caso Wagner (1888), do filósofo alemão Friedrich Nietzsche. O tratamento aqui desenvolvido em relação a O Caso Wagner encontra-se problematizado por um cruzamento com O Nascimento da Tragédia (1872), levando em conta a importância não apenas do tornar-se quem se é para Nietzsche mas, também, do tornar-se dos escritos, ou seja, como O Caso Wagner pode ser visto sob um outro ângulo quando colocamos em questão a sua obra de juventude. O foco estará na crítica que o filósofo faz a Wagner, porém, considerando que "Wagner" tenha sido escolhido ironicamente como o cenário que Nietzsche utiliza para tratar de um problema que diagnosticaria desde seus primeiros escritos: a decadência de uma cultura, precisamente, a alemã. A partir daí, pretende mostrar como em Nietzsche um problema de arte, ou seja, do âmbito do criar, não pode ser pensado separadamente de um problema de décadence. Palavras-chave: Arte, Décadence, Tornar-se, Nietzsche, Wagner. Abstract: The present article aims to problematize the notion of décadence and its implications with the theme of art in The Case of Wagner (1888), by the german philoshoper Friedrich Nietzsche. The treatment that will be developed in relation to The Case of Wagner is problematized by a interlacement with The Birth of Tragedy (1872), taking into acount not only the importance of how one becomes what one is, but also the becoming of the writtings; it means, how The Case of Wagner can be seen from another angle when we put into question the work of his youth. The focus will be on the criticism that the philosopher makes to Wagner, however, considering that "Wagner" has been ironically chosen as the scenario that Nietzsche uses to address a problem that diagnoses from his earliest writings: the decadence of a culture, precisely, the German. Thereafter, intends to show how in Nietzsche a problem of art, in other words, the scope of create, can not be considered separately from a problem of décadence. Keywords: Art, Décadence, Become, Nietzsche, Wagner. 1 Bacharel em Artes do Corpo pela PUC-SP com Iniciação Científica pela FAPESP. Atualmente é Mestranda em Filosofia pela PUC-SP / e-mail: [email protected]
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Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012

Arte e Décadence em Nietzsche: O Caso Wagner, um Tornar-se desde O Nascimento da Tragédia

Art and Décadence in Nietzsche: The Case Wagner, a becoming since The Birth of

Tragedy

Isadora Raquel Petry1 – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Resumo: O presente artigo visa problematizar a noção de décadence e suas implicações com

a temática da arte em O Caso Wagner (1888), do filósofo alemão Friedrich Nietzsche. O

tratamento aqui desenvolvido em relação a O Caso Wagner encontra-se problematizado por

um cruzamento com O Nascimento da Tragédia (1872), levando em conta a importância não

apenas do tornar-se quem se é para Nietzsche mas, também, do tornar-se dos escritos, ou

seja, como O Caso Wagner pode ser visto sob um outro ângulo quando colocamos em questão

a sua obra de juventude. O foco estará na crítica que o filósofo faz a Wagner, porém,

considerando que "Wagner" tenha sido escolhido ironicamente como o cenário que Nietzsche

utiliza para tratar de um problema que diagnosticaria desde seus primeiros escritos: a

decadência de uma cultura, precisamente, a alemã. A partir daí, pretende mostrar como em

Nietzsche um problema de arte, ou seja, do âmbito do criar, não pode ser pensado

separadamente de um problema de décadence.

Palavras-chave: Arte, Décadence, Tornar-se, Nietzsche, Wagner.

Abstract: The present article aims to problematize the notion of décadence and its

implications with the theme of art in The Case of Wagner (1888), by the german philoshoper

Friedrich Nietzsche. The treatment that will be developed in relation to The Case of Wagner is

problematized by a interlacement with The Birth of Tragedy (1872), taking into acount not

only the importance of how one becomes what one is, but also the becoming of the writtings;

it means, how The Case of Wagner can be seen from another angle when we put into question

the work of his youth. The focus will be on the criticism that the philosopher makes to

Wagner, however, considering that "Wagner" has been ironically chosen as the scenario that

Nietzsche uses to address a problem that diagnoses from his earliest writings: the decadence

of a culture, precisely, the German. Thereafter, intends to show how in Nietzsche a problem of

art, in other words, the scope of create, can not be considered separately from a problem of

décadence.

Keywords: Art, Décadence, Become, Nietzsche, Wagner.

1Bacharel em Artes do Corpo pela PUC-SP com Iniciação Científica pela FAPESP. Atualmente é Mestranda em

Filosofia pela PUC-SP / e-mail: [email protected]

Arte e décadence em Nietzsche: O Caso Wagner, um tornar-se desde O Nascimento da Tragédia -47-

Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012

1 Um Nascimento que Atravessa...

ezesseis anos após a publicação de O Nascimento da Tragédia (1872),

Nietzsche escreve O Caso Wagner (1888), sendo este um de seus últimos livros escritos,

juntamente com Crepúsculo dos Ídolos, Anticristo e Ecce Homo2. Todos esses escritos

pertencem a denominada última fase de Nietzsche, sendo que o filósofo deste período é

comumente visto por suas preocupações mais políticas e por seu afastamento da temática da

arte. Porém, O Caso Wagner é justamente a prova de que a obra de Nietzsche resiste a essas

interpretações.

À primeira vista, O Caso Wagner parece conter críticas, - ou mais, diagnósticos -

apenas estéticos. Entretanto, se a leitura que aqui se faz preocupa-se em jogar as próprias

brincadeiras que o texto de Nietzsche nos propõe, não é difícil perceber que as críticas

aparentemente estéticas mascaram um diagnóstico da cultura e, assim, da décadence3. Ocorre,

por exemplo, que arte e cultura não podem ser pensadas separadamente em Nietzsche. Nesse

sentido, Nietzsche, "debruçando-se sobre diferentes manifestações artísticas, está ciente das

dificuldades em apreender o seu significado e aquilatar o seu alcance; tanto é que procura

diagnosticar os valores que nelas se expressam" (MARTON, 2009, p. 4).

Assim, ao tratar da esfera estética em O Caso Wagner, Nietzsche não se preocupa em

apreender somente o sentido expresso na obra de Wagner, mas no que esta pode contribuir

para um diagnóstico acerca de nossa cultura e nossos valores morais. Se podemos dizer que

Nietzsche atenta-se na questão do estilo, o faz para refletir acerca das implicações da estética

na cultura.

Desde O Nascimento da Tragédia, as preocupações do filósofo acerca da arte eram

diretamente relacionadas a preocupações culturais. Em O Caso Wagner, Nietzsche explicitaria

a relação entre arte, vida e cultura já anunciada em O Nascimento da Tragédia, porém,

partindo aparentemente de perspectivas opostas. Em sua primeira obra publicada, via em

Wagner a realização de um possível renascimento dos sentimentos e dos impulsos apolíneo e

2 Nietzsche escreve todas estas obras no mesmo ano, sendo o período de sua maior produtividade: 1888.

3 Faremos uso do termo em francês pois é dessa maneira que Nietzsche o utiliza em O Caso Wagner e diversos

outros escritos do período de 1888. Quando utilizarmos em português, ou seja, decadência, será por se tratar de

um período no qual o filósofo ainda não utilizava o termo décadence. Mais adiante, mostraremos nossa hipótese

acerca da questão.

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dionisíaco que faziam parte da tragédia ática.

E, desses supremos mestres [os gregos trágicos], em que momento precisaríamos mais

do que agora, quando nos é dado assistir ao renascimento da tragédia e estamos em perigo de

não saber nem de onde ela vem nem de poder explicar-nos aonde ela quer ir? (GT/NT, §20).

Dessa forma, Nietzsche realiza uma crítica da decadência ateniense que teria se

instaurado a partir de Sócrates, a fim de tratar dos problemas que diagnosticava na Alemanha

do século XIX. Embora o filósofo ainda não utilizasse o termo décadence em seus primeiros

livros, sendo que este aparece apenas em sua maturidade4, esse problema já estaria presente

desde o início em seus escritos, manifestando-se como um determinado olhar nas questões de

saúde e decadência. Lembremos que o próprio filósofo irá denominar-se, a priori, um

décadent, mas também a antítese disso: como summa summarum, como fundamento, um

homem sadio. Justamente por ser ambos é que foi capaz de perceber os sinais de saúde e

decadência de uma cultura:

A fortuna de minha existência, sua singularidade talvez, está em sua fatalidade:

diria, em forma de enigma, que como meu pai já morri, e como minha mãe ainda

vivo e envelheço. Essa dupla ascendência, como que do mais elevado e do mais

rasteiro degrau da vida, a um tempo décadent e começo - isso explica, se é que algo

explica, tal neutralidade, tal ausência de partidarismo em relação ao problema global

da vida, que acaso me distingue. Para os sinais de ascensão e declínio tenho um

sentido mais fino que homem algum jamais teve, nisto sou o mestre par excellence -

conheço ambos, sou ambos (EH/EH, "Por que sou tão sábio", §1).

Além disso, há outra problemática transversal a sua obra desde O Nascimento da

Tragédia: apenas a arte seria capaz de livrar o homem da décadence. Ou, para utilizarmos o

termo empregado pelo filósofo em O Nascimento da Tragédia, a arte seria a justificação

estética da existência. Assim, notamos que o filósofo não havia se afastado daquela questão

primordial desde seu primeiro texto publicado - no qual defendia a tese de que a redenção só

seria possível pela arte, na medida em que a arte justifica a vida -; mas a elaborava com

diferentes máscaras. "Agora ousai ser homens trágicos: pois sereis redimidos" (GT/NT, §21).

Ao introduzir essa problemática em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche já se

afastava aos poucos tanto de Wagner quanto de Schopenhauer, talvez sem perceber, como um

viajante em seu barco que vê tão lentamente que imperceptível, a figura distanciar-se de si. O

afastamento de Nietzsche com Wagner se daria, entre outras coisas, pelo fato de que o músico,

ao encontrar-se com a obra de Schopenhauer, passa a acreditar não mais na salvação pela arte,

4Apenas na chamada terceira fase da obra de Nietzsche (Crepúsculo dos Ídolos, Anticristo, O Caso Wagner e

Ecce Homo) que o filósofo passa a empregar o termo décadence.

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mas sim, em um fim político5. É nesse sentido que segundo Nietzsche, a obra de Wagner

passa a não servir mais à finalidade da própria arte - a vida -, mas sim a um fim pessimista e à

moral cristã.

Que aconteceu então? Um acidente. A nave foi de encontro a um recife; Wagner

encalhou. O recife era a filosofia schopenhaueriana; Wagner estava encalhado numa

visão de mundo contrária [...] Enfim vislumbrou uma saída: o recife no qual

naufragara, e se ele o interpretasse como objetivo, como intenção oculta, como

verdadeiro sentido de sua viagem? [...] E ele traduziu o Anel em Schopenhaueriano.

Tudo vai torto, tudo afunda, o novo mundo é tão ruim quanto o velho (WA/CW, §4).

Nietzsche, no final de O Nascimento da Tragédia, já mostra-se crítico em relação a

uma arte que sirva, antes de mais nada, a uma moral determinada, algo que diagnosticaria

posteriormente em Wagner:

Eu pergunto pelo prazer estético e sei muito bem que muitas dessas imagens podem,

além do mais, produzir de vez em quando um deleite moral, por exemplo em forma

de compaixão ou de triunfo moral. Quem pretendesse, todavia, defluir o efeito

trágico unicamente dessas fontes morais, não poderá crer que haja feito com isso

algo pela arte: a qual, em seu domínio, deva antes de tudo exigir pureza. Para aclarar

o mito trágico, o primeiro reclamo é justamente o de procurar o prazer a ele peculiar

na esfera esteticamente pura, sem qualquer intrusão no terreno da compaixão, do

medo, do moralmente sublime (GT/NT, §24).

Neste aspecto, retomamos essa problemática em O Caso Wagner, quando Nietzsche

nos diz que:

Em Wagner, há sempre alguém que deseja ser redimido: ora um homenzinho, ora

uma senhorita - este é o problema dele. - E como varia ricamente o seu leitmotiv!

Que digressões raras e profundas! Quem, se não Wagner, nos ensinaria que a

inocência redime de preferência pecadores interessantes? (O caso de Tannhaüser)

[...] Wagner defende assim a idéia cristã, "Deves crer a precisas crer (WA/CW, §3).

É possível perceber que no escrito de 1888 Nietzsche confere a Wagner algo que já

criticava em seu primeiro livro publicado. Ao dizer-nos que o problema de Wagner consiste

em sempre assinalar alguém que deseja ser redimido, a crítica se desenvolve na medida em

que a busca pela salvação se daria não pela própria arte, mas pela moral e pela política. Em

Wagner, Nietzsche farejava esses elementos como a priori seja para a construção do mito,

5Este encontro de Wagner com Schopenhauer do qual Nietzsche nos fala seria, especificamente, com o quarto e

último livro de O Mundo como Vontade e Representação, no qual Schopenhauer sucumbiria a sua tese de que

apenas a arte salva, substituindo-a pela salvação da vida ascética. Mais precisamente, essa referência pode ser

encontrada do parágrafo 65 ao 71.

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seja para a música.

2 Decadência Torna-se Décadence

Nietzsche, ao tratar de Wagner, diz-nos que este sofre de uma doença fisiológica, que

sua arte decadente é intimamente relacionada com a sua decadência física e moral: "Estou

longe de olhar passivamente enquanto esse décadent nos estraga a saúde - e a música, além

disso!" (WA/CW, §5). Nesse sentido, notamos que Nietzsche, ao diagnosticar Wagner, não se

refere apenas ao caráter artístico, dado que este estaria intrinsecamente ligado à saúde. A

reação do próprio Nietzsche remete-nos a um caso fisiológico, como, por exemplo, na

seguinte expressão: "Sinto o desejo de abrir um pouco a janela. Ar! Mais ar!" (WA/CW, §5).

A relação fisiológica que Nietzsche estabelece com a arte e a decadénce se fazem ainda

mais precisas quando o filósofo nos diz que desejaria, em breve, fazer um livro sob o título

Fisiologia da estética no qual mostraria "[...] mais detalhadamente como essa metamorfose

geral da arte em histrionismo é uma expressão de degenerescência fisiológica" (WA/CW, §7).

Embora Nietzsche não tenha conseguido escrever esse livro, estaria pensando o problema da

arte e da décadence em uma relação íntima com a fisiologia.

Desde cedo, o tema da decadência se faz presente nos escritos de Nietzsche, mas em

1888 torna-se um dos conceitos principais de sua filosofia, sendo que o filósofo passa a

empregar o termo décadence. Tal acontecimento se dá, entre outras coisas, devido a leitura

que Nietzsche faz dos Essais de Psychologie Contemporaine (1883), do francês Paul Bourget,

onde teria encontrado formulações específicas do conceito de décadence. Nietzsche chega a

praticamente transcrever de forma literal uma frase de Bourget6 na qual o filósofo dirá que a

caracterização da décadence literária se dá: “Pelo fato de a vida não mais habitar o todo. A

palavra se torna soberana e pula fora da frase, a frase transborda e obscurece o sentido da

página, a página ganha vida em detrimento do todo - o todo já não é mais um todo” (WA/CW,

§7).

6 Encontramos tal frase de Bourget citada por Müller-Lauter (1999): "'Um estilo de décadence é aquele em que a

unidade do livro se decompõe para dar lugar à independência da página, em que a página se decompõe para dar

lugar à independência da frase e a frase, para dar lugar à independência da palavra. Na literatura atual,

multiplicam-se os exemplos que corroboram essa fecunda verdade" ,(BOURGET apud MÜLLER-LAUTER, W.

Décadence artística enquanto décadence fisiológica: a propósito da crítica tardia de Friedrich Nietzsche a

Richard Wagner, p. 13).

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Nietzsche é influenciado por Bourget7 em diversas passagens de O Caso Wagner,

identificando o seu conceito de décadence com o artista Wagner. Tal procedimento que o

filósofo realiza, mostra-nos o quanto Nietzsche dialogava com a ciência e a medicina de sua

época. Em O Nascimento da Tragédia, já nos dizia que o livro ousou "ver a ciência com a

óptica do artista, mas a arte, com a óptica da vida" (GT/NT, "Tentativa de autocrítica", §3).

Uma vez que entramos na problemática da relação entre arte e decadência é interessante nos

referirmos ao conceito - ou operador - décadence: Primeiramente, podemos afirmar que o

caráter determinante da décadence seria a anarquia dos instintos, a "desagregação da

vontade". Quando os instintos brigam entre si, sente-se a necessidade de criar um contra-

tirano, ou seja, um instinto que domine todos os outros que se faziam rebeldes (GD/CI, "O

problema de Sócrates", §9).

Partindo dessa interpretação, podemos pensar a arte e a décadence na sua relação

íntima com a fisiologia. Se a décadence para Nietzsche é pensada como a "desagregação da

vontade", e o corpo é a vontade, a décadence aconteceria, primeiramente, no corpo. Nesse

sentido, é possível nos retermos a Schopenhauer na medida em que este constitui-se como um

desafio no que concerne a busca de Nietzsche pela noção de Vontade.

Schopenhauer via a Vontade como a causadora de toda a dor e desprazer humano. Isto

porque ela é um querer contínuo, uma sucessão de desejos que, quando satisfeitos,

imediatamente outro sobrepõe-se no lugar. Vontade, para Schopenhauer, seria "fratura" e

"falta". A saída, portanto, seria negar essa Vontade, o que coloca o homem na figura de

“santo”, pois rejeita esse querer. Ele quer o Nada, quer não mais querer. A solução da vida

seria eliminar esse querer incessante, como diz o próprio filósofo, essa “vontade cega”. Nesse

sentido, o santo se assemelharia ao artista pois este vive a redenção diante da contemplação

artística, o que faz com que Schopenhauer diga que a arte redime o homem, no momento da

contemplação, do querer incessante da vontade. Porém a arte proporcionaria a redenção

apenas no momento da contemplação, sendo que uma vez o contato com a arte cessa,

imediatamente o querer incessante da Vontade retornaria. Assim, Schopenhauer vê a ascese

como a solução para a Vontade: na ascese, a Vontade seria negada a todo momento, e não

apenas na contemplação artística.

7 Na tradução El Anticristo realizada por André Sánchez Pascual, encontramos uma nota em que o tradutor nos

confirma a hipótese de que o conceito décadence chega a Nietzsche a partir das suas leituras de Paul Bourget,

especificamente dos Nouveaux essais de psychologie contemporaine (1885), sendo este encontrado até os dias de

hoje em sua biblioteca pessoal. No texto de Bourget, o filósofo teria sublinhado com duplo ou triplo traço

diversas passagens, chegando, em muitas dessas, a escrever: Moi! (Eu!).

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É sob o aspecto da negação da vontade que pensamos encontrar-se uma das principais

objeções de Nietzsche contra a arte de Wagner, na medida em que o músico foi fortemente

influenciado pela filosofia e pela estética Schopenhaueriana. Nietzsche identificaria Wagner

como um artista décadent por ter se submetido à moral do asceta. Wagner quer a salvação não

pela própria arte, mas pela moral. Ao introduzir no seu projeto da Obra de Arte Total

(Gesamtkunstwerk) a moral ascética da negação da vontade proposta por Schopenhauer,

assumiria para si o papel de artista e de asceta, de modo que a arte não estaria à serviço da

vida8, como defende Nietzsche, mas da moral. Para o filósofo, o artista deveria ser justamente

o contrário do asceta, pois ele é uma pulsação de desejos, resiste da décadence dizendo sim à

vontade. Concorda com Schopenhauer no sentido de que a existência é sim um absurdo, sem-

razão. Mas para Nietzsche a vida não pode ser justificada nem pela filosofia, nem pela

religião, nem pela ética. Talvez, só haja um meio pelo qual a existência possa ser justificada: a

estética.

Ainda sobre o conceito de décadence, no livro El Anticristo (tradução e notas de André

Sánchez Pascual), encontramos notas nas quais Pascual cita um dos fragmentos póstumos de

Nietzsche, escritos durante a primavera de 1888, e que conteriam três descrições importante

da noção de décadence. Citamos aqui algumas delas:

Sobre el concepto ´décadence´: 1. El escepticismo es una consecuencia de la

décadence: lo mismo que el libertinage del espíritu. 2. La corrupción de las

costumbres es una consecuencia de la décadence: debilidad de la voluntad,

necesidad de estimulantes fuertes... [...] 4. El nihilismo no es causa, sino sólo la

lógica de la décadence (apud PASCUAL, 1998, p. 130).

Realizando um salto para Crepúsculo dos Ídolos (1888), Nietzsche também se apropria

da definição de décadence para tratar do problema de Sócrates, dizendo-nos que a Atenas da

época estava doente pois os instintos voltavam-se uns contra os outros, todos queriam se

sobrepor, fazer-se tiranos. Assim, Sócrates aparece como médico ao "adivinhar" a sua própria

doença e a doença dos demais e, com isso, inventa um contra-tirano: a razão. Nietzsche não

vê tanto um problema na escolha da razão, mas sim, no fato desta ter se tornado um

fanatismo, o único remédio possível para Sócrates e seus doentes: "Não havia escolha: ou

perecer, ou ser absurdamente racionais" (GD/CI, "O problema de Sócrates", §10).

Mas por que Wagner seria umdécadent, e em que medida isso importa para

compreendermos a décadence? Consideremos, segundo o próprio texto de Nietzsche que,

8 Sobre este aspecto, ver: ,(GD/CI, "Incursões de um extemporâneo", §24).

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embora o livro tenha sido escrito à custa de Wagner, este ("pessoa Wagner") seria o menos

importante. Percebemos isso explicitado na seguinte frase de Nietzsche:

Nunca ataco pessoas - sirvo-me da pessoa como uma forte lente de aumento com

que se pode tornar visível um estado de miséria geral porém dissimulado, pouco

palpável.[...] Assim ataquei Wagner, ou mais precisamente a falsidade, a bastardia de

instinto de nossa 'cultura', que confunde os sofisticados com os ricos, os tardios com

os grandes (EH/EH, "Por que sou tão sábio", §7).

Talvez, o filósofo tivesse encontrado em Wagner a expressão maior da decadência de

sua época, bem como o fez com Sócrates e Atenas. Entretanto, isso não descarta a importância

de compreendermos porque Nietzsche nos diz que não apenas Wagner era doente e que o seu

público estava fisiologicamente doente, mas que a arte de Wagner era doente. Quais

elementos propriamente artísticos da ópera de Wagner fariam com que o filósofo identificasse

uma degenerescência dos instintos?

Segundo Nietzsche, um dos problemas de Wagner seria justamente aquilo que o tornou

famoso: o grande estilo. Wagner, na sua busca por uma obra de arte total, que contemplasse

música, drama e palavra, acabaria acentuando o efeito que a obra de arte deveria causar no

público, indo na direção de uma arte "mentirosa". Além disso, pelo modo como Wagner

desejou criar uma obra que contemplasse todos os estilos, cênicos ou musicais, estaria

atuando no mecanismo da décadence descrito anteriormente. Podemos dizer que em Wagner,

não só todos os instintos, mas todos os estilos queriam se fazer tiranos ao mesmo tempo.

Nesse sentido, a melodia infinita wagneriana poderia ser um dos exemplos, pois as

tonalidades sobrepõem-se tão rapidamente umas às outras que o ouvinte não mais consegue

diferenciá-las, levando-o, assim, a uma aceitação e passividade da audição. ‘Wagner não

calcula jamais como músico, a partir de alguma consciência musical; ele quer o efeito, nada

senão o efeito [...]. Wagner não nos dá o bastante para mastigar. Seu recitativo - pouca carne,

alguns ossos e muito caldo” (WA/CW, §8).

Para Nietzsche, o problema de Wagner também seria seu exagero nos recursos

dramáticos, chegando ao ponto de não conseguir contar até três: "Quando um músico não

consegue mais contar até três, torna-se 'dramático', torna-se 'wagneriano'" (WA/CW, §8).

Assim, a melodia infinita seria aquele conflito que nunca se resolve, sendo levado às últimas

consequências, mas sem jamais encontrar resolução.

Nietzsche também assinala algo no qual Wagner era bom: apenas o mínimo, o detalhe,

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ou seja, a arte de fazer a parte sobrepor-se ao todo: "Vê-se o particular muito nítido, vê-se o

todo muito embotado (...) Mas isto é décadence, uma palavra, que, como entre nós se

compreende por si mesma, não deve censurar, mas apenas designar" (NIETZSCHE apud

MÜLLER-LAUTER, 1999, p. 3).

Problematizando o conflito do filósofo Nietzsche em relação a Wagner, acreditamos

que tal conflito encontrar-se-ia ligado a percepção nietzschiana de que o músico Wagner era

grande ao mesmo tempo em que era decadente. Nesse sentido, Nietzsche reconheceria em

Wagner algo muito próximo de si, chegando a escrever um livro no qual o músico fosse o

cenário para a questão da décadence. A escolha não foi por acaso; Nietzsche sempre

escreveria acerca daquilo que combate e, assim, interpela.

Neste assunto, guardei para mim tudo o que era decisivo - eu amei Wagner. - Afinal,

um ataque a um 'desconhecido' mais sutil, que outros dificilmente descobririam,

concorda com o sentido e a direção de minha tarefa - ó, tenho ainda 'desconhecidos'

inteiramente outros a desmascarar, que não um Cagliostro da música (EH/EH, "O

Caso Wagner", §1).

Nietzsche também diz-nos que aquilo que lhe ocupou mais profundamente foi a

questão da décadence (O Caso Wagner). Wagner teria sido uma das doenças que acometeu

Nietzsche, e sua vivência, uma cura desta. Mas o filósofo diz-nos claramente o quão

indispensável era a doença wagneriana:

Não que eu deseje me mostrar ingrato a essa doença. Se nessas páginas eu proclamo

a tese de que Wagner é danoso, quero do mesmo modo proclamar a quem, não

obstante, ele é indispensável - ao filósofo. Outros poderão passar sem Wagner, mas o

filósofo não pode ignorá-lo. Ele tem de ser a má consciência do seu tempo - para

isso, precisa ter a sua melhor ciência (WA/CW, "Prólogo").

Deixando de lado as críticas de Nietzsche sobre Wagner, o filósofo também o via

como um "companheiro de viagem", sendo que ambos possuíam em si o caráter da

pluralidade, não conseguindo direcionar-se a apenas uma especialidade. Entretanto, no escrito

de 1888, diferenciando-se do jovem Nietzsche, tal caráter plural não é mais visto pelo filósofo

como sinal de força, mas sim, de fraqueza que se arvora em fortaleza ,(MÜLLER-LAUTER,

1999, p. 16). Não se trata de uma crítica à pluralidade em si, mas à forma na qual o caráter

plural de Wagner se daria, isto é, na necessidade que o músico tinha em fazer-se compreender

o mais claramente possível e para o maior número de pessoas. É dessa maneira que Wagner

teria "forçado" o diálogo com as outras artes, reduzindo o caráter plural a uma necessidade em

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Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012

fazer-se compreender a todo custo.

Em O Nascimento da Tragédia, o filósofo via no músico alguém que, assim como ele,

acreditava em um redespertar da cultura através da arte. Nesse sentido, o embate que

Nietzsche travava com Wagner não poderia ser apenas uma crítica a sua decadência, mas um

constante sentimento de forças em combate que o arrastavam ao wagnerismo.

E se o alemão olhar, hesitante, à sua volta, em busca de um guia que o reconduza de

novo à pátria há muito perdida, cujos caminhos e sendas ainda mal conhece - que

apenas atente o ouvido ao chamado deliciosamente sedutor do pássaro dionisíaco

que sobre ele se balouça e quer indicar-lhe o caminho para lá (GT/NT, §23).

Já em O Caso Wagner, Nietzsche percebe que o músico, ao retomar a estrutura mítica

realiza-a a partir de um viés moral, sendo a política seu fim maior, e não a vida, como o

filósofo via na tragédia grega. Assim, o filósofo percebe que não há mais saída nem para

Wagner, nem para a cultura alemã: apenas sucumbir. Wagner teria apenas acelerado este

processo, mas não o modificou de forma alguma. Nesse sentido, podemos pensar que crítica

tardia de Nietzsche ao seu primeiro livro publicado se daria, em grande parte, pela rejeição

aos elogios que este fizera ao músico - e a Schopenhauer - em O Nascimento da Tragédia,

considerando que havia depositado em Wagner a esperança de um redespertar da cultura

alemã. Tanto Nietzsche como Wagner buscariam esse redespertar; daí o sentimento de

afinidade, que durou anos, do filósofo pelo músico.

Ele apenas lhe acelerou o tempo [décadence] - de maneira tal, sem dúvida, que

ficamos horrorizados ante esse súbito precipitar-se abismo abaixo. Ele tinha a

ingenuidade da décadence: esta era a sua superioridade. Ele cria nela, não se deteve

ante nenhuma lógica da décadence. Os outros hesitam - isso os diferencias. Nada

mais! (WA/CW, "Segundo Pós-escrito").

Wagner seria, para Nietzsche, o decadente "perfeito" (WA/CW, §7) na medida em que o

seu "auto-engano, a cegueira com relação ao próprio tipo, à própria constituição (não se ver

como decadente), é o traço distintivo de Wagner em relação aos demais, pois permite ser

decadente integralmente até o limite, inclusive em sua arte" (RABELO, 2000, p.50). Assim,

podemos ressaltar que outra crítica de Nietzsche em relação a Wagner se dá no âmbito da

"teatralidade": Wagner teria se tornado ator na medida em que mente não só para o público,

mas para si mesmo. Para Nietzsche, um dos problemas da décadence de Wagner seria que

este não sabia brincar, levando-se à sério demais ao eliminar o jogo irônico, pois mentir para o

outro e não para si mesmo teria caráter determinante na ironia como jogo.

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3 Arte, Vida, Cultura e Algumas Brincadeiras

Levando em conta que Nietzsche diz-nos que o maior combate do filósofo deve ser o

seu tempo, justamente por pertencer a este, é possível pensarmos que a sua relação de

combate com Wagner atuaria no mesmo mecanismo, quer dizer: apenas porque Nietzsche foi

um wagneriano tornou-se capaz de combatê-lo.

Nesse sentido, Wagner foi indispensável ao filósofo, pois apenas tendo conhecido a

doença de seu tempo foi possível combatê-la. Apenas por que Nietzsche foi wagneriano,

tornou-se capaz de ser posteriormente o seu maior antípoda. A doença - concebida também

como decadência - exerce na filosofia de Nietzsche um papel de extrema importância:

"Quanto a minha longa enfermidade, não lhe devo indizivelmente mais do que minha saúde?

Devo-lhe uma mais elevada saúde, uma que é fortalecida por tudo que não a destrói! - Devo-

lhe também minha filosofia..." (NW/NW, "Epílogo", §1).

Partindo desta reflexão de Nietzsche, é possível pensarmos que toda a sua filosofia se

desenvolveu a partir de um amadurecimento da doença, mas que, para isso, é necessário ser

sadio no fundamento (EH/EH, "Por que sou tão sábio"). Escapar da décadence não é mais

possível, ter de combater os instintos seria a fórmula para a décadence (GD/CI, "O problema

de Sócrates", §11)9. É nesse sentido que a doença adquire uma extrema importância, pois o

extemporâneo é aquele que apenas pode combater o seu tempo por viver o seu tempo.

Ao farejarmos o problema da doença e décadence em outros escritos de Nietzsche,

percebemos que o filósofo nos diz haver mais de uma vertente do sintoma da décadence10.

Em

A Gaia Ciência (1882), Nietzsche pergunta-se, se diante da criação artística, foi a doença ou a

vida que se fez criativa: "aqui foi a fome ou o supérfluo que se tornou criativo? [...] ou seja,

reparar se é o desejo de tornar rígido, de eternizar, de ser, que é a causa do criar, ou então o

desejo de destruição, de mudança, de novo, de futuro, de vir-a-ser" (FW/GC, §370). Mas

nesta pergunta Nietzsche diz-nos haver uma dupla interpretação. O desejo de destruição, de

9 Nesse aforismo, Nietzsche nos diz que é um "[...] auto-engano dos filósofos e moralistas pensar que já saem da

décadence ao fazerem guerra contra ela. O sair está fora de sua força: mesmo aquilo que escolhem como

remédio, como salvação, é apenas, outra vez, uma expressão de décadence - eles alteram sua expressão, não a

eliminam propriamente". Assim, vemos que a problemática da décadence em Nietzsche é mais complexa do que

se pensa. Talvez, para o filósofo, o que deveria ser feito é mudar a pergunta, não apenas mover guerra contra a

décadence, ou seja, que para um novo fim, seja necessário, antes de mais nada, um novo meio. 10

Nesse aforismo, vemos claramente como Nietzsche, ao se apropriar do conceito de décadence formulado por

Bourget, desenvolve a sua filosofia da décadence a partir de diversos outros instrumentos que teria elaborado ao

longo de sua vida, realizando assim, uma crítica à arte e ao romantismo de Wagner e Schopenhauer que

acometeria o século XIX.

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vir-a-ser, pode surgir a partir de um desejo de criar, de uma força que visa um novo futuro, ou

de um desejo de anarquia, de simples destruição. Em contrapartida, o desejo de eternizar, de

ser, pode surgir tanto da gratidão e do amor, como do desejo de vingança, de uma vontade

tirânica de transformar o seu sofrimento em universal. Precisamente este último Nietzsche irá

conferir Wagner e a Schopenhauer, sendo o "pessimismo romântico em sua forma mais

expressiva" (Ibidem).

No capítulo referente a O Caso Wagner presente em Ecce Homo (1888), talvez nos soe

estranho que o filósofo, muito mais do que falar de Wagner, fala da nação germânica.

Nietzsche cita Wagner apenas na primeira e na última página deste escrito. Levando isso em

consideração, talvez seja possível pensarmos que Nietzsche, ao escrever O Caso Wagner, não

estaria preocupado apenas com o destino da música, mas com o destino da Alemanha que o

filósofo via se encaminhando para a décadence e niilismo. Wagner seria a expressão da

Alemanha do século XIX, mas este não foi o único alvo no qual Nietzsche lançou sua flecha.

Assim, talvez o uso que o filósofo da suspeita fez de Wagner tenha sido irônico, na medida

em que o ataque de Nietzsche se daria muito mais à nação alemã do que a Wagner

propriamente. "ridendo dicere severum11

" (WA/CW, §1): é com essa frase que nos

encontramos ao ler as primeiras páginas de O Caso Wagner.

Ainda em relação ao caráter irônico, o filósofo diz-nos: "Eu mesmo nunca sofri por

tudo isso [não-reconhecimento de sua obra]; o necessário não me fere; amor fati é minha

natureza mais íntima. Isso não impede, porém, que eu ame a ironia, inclusive a ironia

histórico-universal" (EH/EH, "O Caso Wagner", §4). Em relação ao cinismo em Nietzsche,

Peter Sloterdijk diz-nos que:

Se apresenta uma relação modificada com o 'dizer a verdade': trata-se de uma

relação de estratégia e tática, de suspeita e desinibição, de pragmatismo e

instrumentalismo: tudo isso sobre controle de um eu político que pensa de início e

em última instância em si mesmo, que internamente manobra e externamente se

encouraça (SLOTERDIJK, 2012, p. 14).

Atacar Wagner e a sua época seria, em primeira instância, atacar a si mesmo, pois não

pode reconhecer-se fora de seu tempo. É reconhecer algo de sua época em si e defender-se

disso. Lembremo-nos de quando o filósofo, como psicólogo, nos coloca a seguinte questão:

"Que exige um filósofo de si, em primeiro e em último lugar? Superar em si seu tempo,

tornar-se 'atemporal'. Logo, contra o que deve travar seu mais duro combate? Contra aquilo

11

"Rindo, dizer coisas graves" (N.T)

PETRY, Isadora Raquel -58-

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que o faz um filho de seu tempo" (WA/CW, "Prólogo"). Nesse sentido, é possível dizermos

que apenas porque o filósofo viveu o seu tempo às últimas consequências que pôde,

posteriormente, combater o seu tempo.

Talvez assim seja possível começarmos a compreender o que Nietzsche nos diz acerca

do filósofo-artista, ou de um pensamento que nasce do movimento e da experiência: "Não se

tem ouvido para aquilo a que não se tem acesso a partir da experiência" (EH/EH, "Por que

escrevo livros tão bons", §1). Ainda na relação entre obra e experiência, o filósofo diz-nos que

compreender as questões que tratavam o seu Zaratustra requer, antes de mais nada, tê-las

vivido (Ibidem).

Que filosofia, arte e vida encontram-se sempre relacionadas no pensamento de

Nietzsche não é novidade. Mas o fato de o filósofo ter escrito seu primeiro livro a partir de um

certo olhar para a tragédia grega e por constantemente tratar da temática da arte em seus

escritos não faz com que arte, vida e filosofia se encontrem necessariamente imbricadas. A

relação entre os elementos desta tríade se constrói no pensamento de Nietzsche por outro viés.

Por exemplo, na maneira como o filósofo se relaciona com o seu leitor, exigindo deste uma

postura que vá além da compreensão metafísica do conceito. Exige de seu leitor uma busca

arqueológica, mais ainda, que este construa o "sentido" das ideias (ou decisões, se

preferirmos), sabendo também que na maioria vezes elas não tem sentido nenhum, e tendo em

vista que Nietzsche nunca as coloca prontas para o leitor. E que mesmo ao construir tais

"sentidos", estes sejam novamente questionados e, se necessários, deixados de lado. Ora, este

processo de criação de sentido dos textos nietzschianos assemelham-se a todo processo

artístico que, além do "conhece-te a ti mesmo" e da necessária forma apolínea, sabem escutar

o canto dionisíaco, procurar pelo sentido que está além da explicação racional do conceito e

assim, jogar com ele.

Mas o processo artístico que Nietzsche realiza não o confere apenas ao seu leitor, mas a

si próprio na medida em que antecipa ideias, bem como as refuta sem ressalvas. Sabe da

impossibilidade de atuar através de conceitos, e por isso martela os ídolos12. Desse modo, a

crítica que o filósofo realiza a Wagner não pode tornar o músico menor, inclusive porque em

se tratando de Nietzsche, nenhuma experiência vivida é rejeitada. Mais do que isso, o filósofo

diz-nos que apenas porque foi muitos tornou-se um, de maneira que essa unidade tem como

pressuposto e a priori a multiplicidade. Apenas por ter vivido o mais alto grau de décadence

12

Nietzsche diz, no prólogo de Crepúsculo dos Ídolos que uma de suas metas consiste em auscultar ídolos, fazer

perguntas com o martelo para assim, escutar se há algo dentro destes ídolos ou se há apenas um som oco.

Wagner seria um destes ídolos.

Arte e décadence em Nietzsche: O Caso Wagner, um tornar-se desde O Nascimento da Tragédia -59-

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Nietzsche se diz capaz de conquistar a grande saúde. A contradição, assim, não pode jamais

ser suprimida do pensamento nietzschiano, sendo forma constitutiva de sua filosofia. Trata-se

de manter-se em vida, mudar de pele, como a serpente de Assim Falava Zaratustra. É assim

que Nietzsche faz de sua filosofia um tornar-se a si próprio. Torna-se muitos e, à medida que

isso acontece, suas ideias também se transformam. Nietzsche não transforma apenas o seu

pensamento, mas se transforma. Justamente por isso pode dizer que deve muito a Wagner,

pois apenas por ter sido wagneriano pode chegar a ser o que é. A própria vida deveria ser o

maior objeto de estudo e experiência do homem, sendo que esta vida não aconteceria fora de

si, mas constantemente em si.

PETRY, Isadora Raquel -60-

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Arte e décadence em Nietzsche: O Caso Wagner, um tornar-se desde O Nascimento da Tragédia -61-

Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012

Liberdade, 2012.

Submetido em: 07/09/2012

Aceito em: 15/11/2012


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