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Artigo Ana sobre superdotação

Date post: 03-Jul-2015
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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA PSICOTERAPIA NA CONSTRUÇÃO DO SELF EM CRIANÇAS SUPERDOTADAS: RETOMANDO O CASO DIBS (Some considerations on psychotherapy and the construction of self in gifted children: back to Dib’s case) Autora: Ana Cristina Tietzmann* *Médica psiquiatra; Mestre em Medicina: clínica médica, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Psicoterapeuta de adultos, adolescentes e crianças, pelo Centro de Estudos Luis Guedes (UFRGS-CELG); Preceptora do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre/ Hospital Materno Infantil Presidente Vargas (UFCMPA/HMIPV).
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Page 1: Artigo Ana sobre superdotação

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA PSICOTERAPIA NA

CONSTRUÇÃO DO SELF EM CRIANÇAS SUPERDOTADAS:

RETOMANDO O CASO DIBS

(Some considerations on psychotherapy and the construction of self in

gifted children: back to Dib’s case)

Autora: Ana Cristina Tietzmann*

*Médica psiquiatra; Mestre em Medicina: clínica médica, pela Universidade Federal do

Rio Grande do Sul (UFRGS); Psicoterapeuta de adultos, adolescentes e crianças, pelo

Centro de Estudos Luis Guedes (UFRGS-CELG); Preceptora do Programa de

Residência Médica em Psiquiatria da Universidade Federal de Ciências da Saúde de

Porto Alegre/ Hospital Materno Infantil Presidente Vargas (UFCMPA/HMIPV).

Endereço para correspondência:

Av. Taquara nº 586 sala 605

Porto Alegre/RS

90460-210

e-mail: [email protected]

Artigo apresentado como trabalho de conclusão do Curso de Extensão de Psicoterapia

de Infância e Adolescência do Centro de Estudos Luís Guedes, em dezembro de 2007,

sob a orientação da Dra. Norma Escosteguy.

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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DA PSICOTERAPIA NA

CONSTRUÇÃO DO SELF EM CRIANÇAS SUPERDOTADAS:

RETOMANDO O CASO DIBS

Resumo:

Objetivos: Discutir algumas considerações teóricas que podem ser úteis no

trabalho psicoterápico com crianças superdotadas utilizando como ilustração clínica o

caso do menino Dibs , descrito há muitos anos. Metodologia: Após uma breve revisão

das teorias atuais sobre a inteligência e características socioemocionais das crianças

muito inteligentes, é apresentado um resumo do caso Dibs e discutidos fatores ligados

ao desenvolvimento emocional e construção do self que influenciam na forma como a

criança lida com suas habilidades e com seu mundo. Para isso, foram utilizados como

referenciais as obras de Winnicott e Kohut, dentre outros. Conclusões: O

reconhecimento, por parte do terapeuta, das características e particularidades

relacionadas às altas habilidades ou superdotação pode minimizar confusões

diagnósticas e facilitar a atitude empática do terapeuta no processo psicoterapêutico

contribuindo para a construção de um senso de self verdadeiro pelo paciente.

Unitermos: crianças superdotadas, psicoterapia, self, empatia, Dibs

Abstract:

Aim: The aim of this work is discuss theoretical aspects that could be useful in

psychotherapeutic work with gifted children. For this purpose, was used the case of

Dibs described many years ago in the homonymous book with . Methods: After a brief

review of current theories of intelligence and socioemocional characteristics of gifted

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children, are discussed aspects of emotional development and self’s construction that

influence the way the children use their abilities and deal with their own world. For this,

were utilized references of Winnicott and Kohut, among others. Conclusions: The

recognition, by the therapist, of characteristics and particularities related to gifted

condition can minimize diagnostic confusions and promote an empathic attitude in the

psychotherapeutic process that contribute to construction of patient’s self.

Keywords: gifted children, psychotherapy, self, empathy, Dibs

1. Introdução:

No trabalho terapêutico com crianças e jovens superdotados, é importante que

sejam levadas em consideração algumas particularidades inerentes a esta condição. No

contexto psicoterápico, a identificação dos componentes de superdotação ajuda o

terapeuta a estabelecer uma atitude empática que pode ser decisiva na criação de um

ambiente adequado ao desenvolvimento psíquico e emocional do paciente.

A partir de alguns estudos realizados na primeira metade do século passado,

difundiu-se uma crença de que estes indivíduos seriam menos suscetíveis a problemas

sociais, emocionais ou físicos. Como conseqüência, profissionais da saúde e da

educação não costumam receber, em suas formações, informações adequadas sobre as

características e necessidades especiais de crianças e adultos superdotados. Esta falta de

informação dá margem em para confusões diagnósticas além de negligência quanto às

necessidades destes indivíduos.(1,2)

Enquanto a superdotação é considerada, por alguns, como sinônimo de alto QI e

criatividade (3), os pesquisadores da área ressaltam que os superdotados não formam

um grupo homogêneo. Para que se possa inferir tal conceito é preciso considerar um

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conjunto de traços ou características pessoais, ter uma visão multidimensional de

inteligência, observar fatores internos e externos que influenciam no desenvolvimento

do talento, reconhecer as diferenças individuais e a diversidade sociocultural e perceber

as habilidades em um continuum direcionado à auto realização (4).

Este trabalho visa discutir, baseado no caso Dibs - descrito há muitos anos-

algumas considerações que podem ser úteis no trabalho psicoterápico com crianças

superdotadas. Será abordada uma das muitas facetas do trabalho terapêutico com estas

crianças e jovens: aquela que diz respeito à vivência interna e fatores ligados ao

desenvolvimento emocional e construção do self que influenciam na forma como a

criança lida com suas habilidades e com seu mundo, evidenciando a importância da

atitude empática do terapeuta neste processo.

2. Considerações Teóricas:

É importante que se tenha em mente que existem várias definições para

superdotação e diferentes enfoques.(5 ) Para uma melhor compreensão destes conceitos,

serão apresentadas, de forma resumida, algumas teorias atuais a respeito dos processos

envolvidos no fenômeno inteligência. As teorias apresentam visões que se

complementam entre si, mas a última parece ser particularmente útil pois apresenta uma

visão mais dinâmica da inteligência. Logo após, serão apresentadas características do

desenvolvimento socioemocional dos indivíduos muito inteligentes e que contribuem

para uma melhor compreensão do caso a ser discutido.

2.1. Teorias Atuais sobre Inteligência:

2.1.1. O Modelo Triádico:

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Segundo Sternberg(6), o comportamento inteligente abrange três fatores:

habilidades de processamento da informação, experiência com dada situação ou tarefa e

habilidade de moldar o próprio comportamento para se adaptar às demandas do

contexto.

Nesta visão, a pessoa inteligente é aquela que lida com as novidades e tarefas

exigidas pelo contexto de forma rápida e adequada. Com a experiência acumulada em

um campo, a pessoa inteligente pode aprender a ajustar a maneira como processa a

informação aos diferentes contextos nos quais opera. Diferentes situações exigem

diferentes tipos de inteligência.

2.1.2. A Teoria das Inteligências Múltiplas:

Segundo Gardner (7), a competência cognitiva humana pode ser melhor descrita

como sendo um conjunto de nove habilidades, talentos ou capacidades mentais,

estabelecidas como universais na espécie humana: a inteligência lingüística, lógico

matemática, espacial, corporal-cinestésica, musical, naturalista, interpessoal,

intrapessoal e, recentemente, estando ainda em estudo, foi adicionada a inteligência

espiritual. O autor deixa claro que as inteligências não devem se limitar àquelas

estudadas por ele, embora proporcionem um quadro mais claro das capacidades

cognitivas humanas do que as teorias que o antecederam. Além disso, cada inteligência

abarca componentes que emergem e florescem em diferentes momentos da vida, nas

diferentes interações da pessoa com o ambiente e são valorizadas de acordo com o

contexto cultural.

2.1.3. O Modelo dos Três Anéis:

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Renzulli(8) define superdotação como o resultado da interação entre três fatores:

habilidade acima da média, envolvimento com a tarefa e criatividade. Estas

características estão presentes em “certas pessoas, em certos momentos e sob certas

circunstâncias” tornando estes comportamentos dinâmicos, complexos e temporais,

envolvendo a interação entre as habilidades cognitivas, traços de personalidade e o

ambiente em que o indivíduo está inserido.

A habilidade acima da média pode ser definida em termos de habilidades gerais

ou específicas. As habilidades gerais são mais facilmente medidas nos testes

psicométricos estando relacionadas à memória, fluência verbal, raciocínio lógico e

numérico, relações espaciais e pensamento abstrato e consistem na capacidade de

processar informações e integrar experiências de forma a gerar respostas adequadas ou

capazes de responder a novas situações ou problemas. As habilidades específicas

referem-se ao domínio de conhecimento e estratégias aplicadas a um campo particular

como matemática, química, pintura, música ou escultura. O envolvimento com a tarefa

diz respeito à energia investida na execução de um projeto ou resolução de um

problema. Traduzindo-se em termos de altos níveis de perseverança, dedicação,

paciência, concentração, autoconfiança e motivação na produção criativa. A criatividade

é o terceiro fator citado e diz respeito a: (a) características do pensamento como

fluência, flexibilidade e originalidade, (b) fatores associados a traços de personalidade

como abertura a novas experiências, curiosidade, sensibilidade e coragem e, (c)

características da produção como inovação, riqueza de detalhes e abundância. Segundo

este autor, os comportamentos de superdotação são entendidos com maior clareza se

analisadas duas amplas categorias de habilidades superiores: superdotação acadêmica

ou escolar e superdotação criativa-produtiva.

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O que produz a realização que resulta dos comportamentos de superdotação é a

interação dinâmica dos três componentes. O autor utiliza o termo “superdotado” como

adjetivo em uma perspectiva de desenvolvimento, referindo-se a comportamentos de

superdotação em áreas específicas de aprendizagem e expressão humanas. Acentua que

a superdotação emerge ou se esvai em diferentes épocas e sob diferentes circunstâncias

na vida de uma pessoa. É uma posição polêmica no sentido de que vai contra a postura

tradicional de se compreender a inteligência como um traço imutável e único. Este

modelo teórico remete à questão da potencialidade e dos aspectos dinâmicos que

envolvem a manifestação das habilidades potenciais.

Em resumo, as altas habilidades envolvem muito mais do que apenas o QI. Para

uma avaliação mais real da inteligência, é necessária a observação das pessoas em seu

ambiente e a competência no desempenho de tarefas que estimulam o intelecto, dentro

da cultura de cada um e de acordo com características individuais. A superdotação

engloba tanto fatores cognitivos como não- cognitivos (afetivos, motivacionais, etc).

Assim sendo, é necessário levar em consideração como o indivíduo interage com seu

contexto sociocultural e, principalmente, como percebe suas competências ou áreas

fortes, seu senso de valor e auto-estima.(9)

2.2. Características do desenvolvimento socioemocional no superdotado:

Crianças com altas habilidades constituem um grupo muito variado e se

caracterizam por sentir e pensar de forma diferenciada de seus colegas da mesma faixa

etária.(10)

Leta Hollingworth, em 1926, foi quem primeiro apontou para a questão de que

crianças superdotadas poderiam apresentar problemas relacionados às disparidades entre

a idade mental e cronológica. Com seus estudos observou que existe uma faixa de

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inteligência – em termos de QI, entre 120 e 145 - em que os riscos de desenvolver

problemas são baixos em circunstâncias normais. Seus estudos revelam que quanto mais

alto o QI, mais problemas de ajustamento podem surgir. Especialmente crianças com QI

acima de 160 são as que se encontram em risco de alto estresse emocional (2,10,11).

O conceito de assincronia no desenvolvimento das crianças superdotadas

focaliza a experiência consciente e dilemas existenciais que são desencadeados por esta

condição. A falta de sincronia ou assincronia no desenvolvimento destas crianças pode

se apresentar em relação a aspectos internos e sociais. A assincronia interna refere-se a

disparidades entre níveis de desenvolvimento intelectual, psicomotor e emocional. A

assincronia social ocorre quando a criança sente-se deslocada em relação ao seu

contexto social, por exemplo, quando, na escola, uma criança superdotada é colocada

em uma turma, de acordo com a idade cronológica ao invés de mental, e sente-se fora de

sintonia em relação aos colegas.

O conceito de assincronia também incorpora a noção da intensidade com que os

superdotados respondem ao ambiente, as chamadas superexcitabilidades

(overexcitabilities), e que caracteriza a personalidade destes indivíduos ao longo do

ciclo vital.(11) Podendo ocorrer em apenas uma área, freqüentemente ocorrem em mais

de uma área no mesmo indivíduo. As cinco áreas de potencial superexcitabilidade são as

seguintes:

a)Psicomotora: capacidade aumentada de ser ativo e energético;

b)Sensorial: envolve o prazer (e o desprazer) que advém dos sentidos

(olfato,visão, paladar, audição e tato) e da apreciação do belo; tendência ao

perfeccionismo;

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c)Intelectual: capacidade de manter atividade intelectual, avidez pelo

conhecimento, persistência na definição e resolução de problemas, compulsão pela

leitura, pensamento analítico, preocupação por problemas teóricos,etc;

d)Imaginativa: uso freqüente de imagens e metáforas, facilidade em inventar e

fantasiar, visualização detalhada, tendência à dramatização, mistura de fatos com ficção

e imaginação rica e vívida;

e)Emocional: intensidade de emoções (positivas e negativas), sensibilidade nos

relacionamentos e apego com pessoas, animais, lugares ou coisas, grande empatia,

compaixão e preocupação pelos outros , entusiasmo e também medos, ansiedades,

sentimentos de inadequação e inferioridade,etc.

Estas características, quando interagem com os fatores ambientais (família,

escola, etc), podem criar vulnerabilidades que requerem compreensão e atenção a fim de

que se possa promover um desenvolvimento integrado (2).

3. Exemplo clínico: o caso Dibs

O caso que será discutido a seguir foi descrito, originalmente, em um livro

publicado em 1964: Dibs in search of self. A tradução para o português foi feita em

1973.(12) A autora, Virgínia M. Axline, psicóloga,descreve detalhadamente, baseada

em gravações e observações, as sessões da psicoterapia realizada, ao longo de alguns

meses, na sala de ludoterapia da escola infantil que o menino freqüentava.

Aqui, o caso será apresentado de forma resumida, destacando algumas

passagens e as informações consideradas mais importantes para a compreensão do

mesmo. Os trechos em itálico são transcrições do texto original.

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Dibs tinha cinco anos e já freqüentava a escola há quase dois anos quando a

autora foi procurada, pela escola, para avaliá-lo. Inicialmente, ela encontrou uma

situação de angústia e confusão, por parte da equipe da escola (professores, psicóloga e

pediatra), em relação ao menino. Seu comportamento era muito diferente das outras

crianças e as hipóteses de Autismo e Retardo Mental estavam sendo cogitadas. Não

falava , mantinha-se absorto em si mesmo, desligado da professora e das outras

crianças. Ao chegar na escola, ficava imóvel, nunca tirava o casaco e esperava que as

professoras o fizessem. Freqüentemente tinha violentos acessos de raiva ou resistia

ferozmente quando tentavam obriga-lo a fazer o que não queria ou na hora de voltar

para casa. Nunca olhava diretamente para os olhos de uma pessoa e jamais respondia

quando alguém lhe falava. Enquanto as outras crianças ocupavam-se em trabalhos em

grupo ou trabalhos individuais, Dibs passava o tempo engatinhando ao redor da sala,

escondendo-se sob as mesas, olhando livros durante horas. Nunca recebia nada

diretamente. Os materiais lhe eram oferecidos e deixados perto dele. Após algum

tempo, os examinava cuidadosamente. Nunca deixava de aceitar livros, olhava

atentamente as páginas escritas como se pudesse ler. Havia algo em relação ao seu

comportamento que impedia os professores de classificá-lo. Suas atitudes eram

paradoxais. Ás vezes apresentava indícios de retardamento mental em grau extremo e,

outras vezes realizava certas atividades com tanta rapidez e tranqüilidade que

evidenciava possuir um nível de inteligência superior. A psicóloga da escola o havia

observado e tentado testa-lo várias vezes, mas ele não estava pronto para ser testado. Os

professores já haviam sugerido várias vezes que o menino precisava de ajuda

profissional mas a mãe não concordava. A certa altura, a escola decidiu que seria

solicitada a avaliação de uma psicóloga clínica a fim de decidir se desligariam a criança

da escola e a mãe concordou com esta avaliação. Na ocasião, a mãe solicitou que, caso

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não pudessem mantê-lo naquela escola, sugerissem uma outra, com internato para

crianças excepcionais, pois ela e o marido já tinham aceitado o fato de que Dibs era

retardado e que provavelmente tinha uma lesão cerebral.

Na reunião com a equipe da escola, antes de falar com a mãe ou ver a criança, a

terapeuta pôde sentir a compaixão e o respeito daqueles que trabalhavam na escola pelo

menino e o impacto de sua personalidade em todos eles. Planejou que primeiro

observaria o menino na escola, junto às outras crianças, e tentaria vê-lo sozinho por

algum tempo, antes de conversar com a mãe.

Neste primeiro dia, pôde observar que o menino, apesar de manter-se isolado,

sem participar das atividades com os colegas e reagir agressivamente às suas tentativas

de aproximação, mantinha-se observando, atento às movimentações, de forma muito

sutil. Observou também que seu desenvolvimento motor estava afetado. No entanto,

mostrou curiosidade com a presença de uma estranha na sala e disposição de

acompanhá-la ao pátio na hora do recreio. Surpreendentemente concordou, após breve

hesitação, em acompanhá-la à sala de brinquedos, que ficava na própria escola.

Ao chegarem à sala, observou inicialmente como caminhava ao redor da sala,

com passos pesados, trocando um brinquedo pelo outro, tediosamente. “Não parecia

haver alegria ou felicidade para aquela criança”. Depois, ele caminhou até a casinha e,

nomeando todos os objetos, começou a estabelecer uma comunicação verbal. Cada vez

que nomeava um objeto, a terapeuta tentava comunicar-lhe que estava compreendendo

suas palavras, confirmando seu significado. Quando o menino pegou o boneco pai e

disse:

- Papai? – Ela respondeu-lhe: - Pode ser papai.

Então, sentou-se no chão e por um longo tempo olhou para a casa de bonecas.

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Após longo tempo, apertando as mãozinhas juntas contra o peito, com a voz

expressando ansiedade desesperada, disse repetidas vezes:

- Portas trancadas, não. Portas trancadas, não... Dibs não gosta de portas

trancadas.

- Você não gosta que as portas sejam trancadas.

Ele parecia sofrer, sua voz tornou-se um sussurro:

- Dids não gosta de portas fechadas e trancadas. Não gosta de paredes à sua

volta. Começou, então a tirar os bonecos da casa, onde os tinha colocado, e ordenar

que fossem embora. Primeiro foi o boneco pai e depois a boneca mãe. – Vão para a

loja. Vão para a loja. Vão embora.

Descobriu que as paredes divisórias da casa podiam ser removidas e deslocou-

as uma a uma, dizendo:

- Não gosto de paredes. Dibs não gosta de paredes. Jogue fora, bem longe,

todas as paredes, Dibs.

E assim, brincando dolorosamente, ele começou a livrar-se das paredes que

havia construído ao redor de si.

Quando foi conversar com a mãe do menino, começou a visualizar o mundo em

que ele vivia. A mãe a recebeu para uma conversa em sua própria casa. Moravam em

uma mansão antiga, luxuosa, onde tudo era tão belo e impecável que não havia sinais de

que alguém realmente vivesse na casa. Ao longe, podia ouvir a voz de Dibs gritando

que não queria portas trancadas. Deduziu que ele ficaria em seu quarto. A mãe, uma

senhora que parecia mais velha do que realmente era, recebeu-a de forma cortês e séria.

Estava aparentemente muito nervosa mas tentava manter-se sob intenso controle. Disse

que ela e o marido já haviam aceitado a tragédia de Dibs mas que ficariam satisfeitos

em poder cooperar com a pesquisa do comportamento humano se o caso fosse útil.

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Acrescentou que ela e o marido não estariam disponíveis para reuniões ou entrevistas,

que a escola seria a melhor fonte sobre maiores detalhes sobre o caso. Percebendo a

resistência, a terapeuta concordou com estas condições, colocando-se à disposição, caso

em algum momento ela quisesse falar sobre Dibs. Combinaram que ele seria visto uma

vez por semana, às quintas-feiras, na própria escola.

Poucas semanas após o início do tratamento, Dibs começou a mostrar alguns

sinais de mudança, saindo um pouco mais do quarto e deixando transparecer mais sua

tristeza e raiva em relação aos pais. Em um desses momentos, os pais sentiram-se

profundamente atingidos em suas defesas. Conseguiram chorar juntos e sentiram-se

próximos no sofrimento. No dia seguinte, a mãe procurou a terapeuta e, muito ansiosa,

com muito sofrimento, pôde relatar com detalhes a história de Dibs desde sua

concepção.

Eram um casal feliz antes da gestação. Tinham uma vida social rica, amigos

brilhantes, bem sucedidos. O pai era um cientista renomado, muito ocupado com o

trabalho . A mãe era cirurgiã e estava no caminho de alcançar muito sucessso em sua

carreira quando engravidou. A gestação não fora desejada e estivera doente durante todo

o tempo. O casal não podia mais ir a lugar algum. O marido foi se afastando dela,

enterrando-se em seu trabalho. Após o nascimento, Dibs era um bebê estranho. Ela o via

“como um bebê grande e sem forma, um pedaço de qualquer coisa. Não reagia a

nada”. Sentia que a rejeitara desde o momento do nascimento. Enrigecia-se e gritava

cada vez que o tirava do berço. A mãe sentia que havia falhado e aquilo fez com que

desistisse de seu trabalho. Envergonhavam-se de ter um filho que não era normal.

Decidiram procurar um neurologista, em outra cidade, que não encontrou nada de

organicamente errado no menino. Algum tempo depois procuraram um psiquiatra o qual

realizou várias entrevistas com os pais. Ao serem avaliados, sentiram-se afrontados e

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resistiram. Foram informados que Dibs não tinha deficiência mental, psicose ou lesão

cerebral. Segundo a avaliação do psiquiatra, quem necessitava ajuda clínica era o casal.

Isso foi uma experiência chocante para eles. Consideravam-se bem e nunca haviam tido

qualquer problema pessoal que não pudessem superar por eles mesmos. Na verdade,

consideravam uma prova de que a deficiência não era deles o fato de que haviam tido

uma filha aproximadamente um ano depois de Dibs. Esta filha era “perfeita”, nunca os

havia decepcionado e atualmente estudava em um internato, freqüentando a casa

somente nos finais de semana e nas férias. Optaram por mandá-la para esta escola pois

era difícil a convivência entre os irmãos.

Parecia claro que sua incapacidade de relacionar-se com o filho com amor,

respeito e compreensão era devido à sua própria deficiência emocional. Após a

experiência de ter compartilhado com a terapeuta essas vivências, a mãe pareceu muito

aliviada por ter sentido que era respeitada e compreendida e que também tinha razões

para o que fazia, que tinha capacidade para mudar e que essas mudanças precisavam vir

de seu próprio interior.

Na sessão que ocorreu após a entrevista com a mãe, Dibs veio muito feliz,

dizendo que se sentia contente naquele dia. Tirou o chapéu, o casaco, e, sem nenhuma

ajuda dependurou-os na maçaneta da porta. Após brincar um pouco com tinta, e com a

tesoura, demonstrando satisfação e mais segurança nas decisões, voltou-se para a casa

de bonecas e anunciou:

-Tenho um trabalho a fazer hoje:

-Tem?

-Sim.

Com muito cuidado, removeu todas as paredes da casinha, carregando-as para

a caixa de areia. Pegou uma pá e cavou um grande buraco onde enterrou as paredes.

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Pegou a porta da casa e enterrou-a também. Trabalhou com eficiência e intenção, em

silêncio. Disse, olhando para a terapeuta:

-Livrei-me das paredes e da porta.

- Sim. Vi que o fez.

Em seguida, entrou na caixa de areia, estirou-se, rolou, cobriu-se de areia. Seus

movimentos eram livres e relaxados. Pediu a mamadeira, disse que faria de conta que

aquele era seu bercinho, fingiria ser bebê de novo. Sugou a mamadeira com alegria.

Cantou, sentiu-se poderoso.

Dibs, por vezes, mostrava sinais de mais autonomia, em outras, demonstrava

necessidade de ser ajudado, mas sempre ficava a comunicação de que seria valorizada

sua vontade, dentro dos limites da realidade. Logo passou a referir-se a si mesmo na

primeira pessoa, o que não acontecia anteriormente. Parecia sentir satisfação quando

conseguia fazer alguma coisa por si próprio.

Aos poucos, pôde expressar seus sentimentos em relação aos pais e à irmã.

Aproveitava muito aquele espaço, de maneira muito criativa, expressou toda a raiva e

agressividade, mas também carinho e capacidade para restaurar a relação com sua

família. Com o passar do tempo, os pais também se sentiam e comportavam de forma

diferente em relação a ele. Na sala de brinquedo também encenou sua aproximação com

as outras crianças e sua necessidade de participar do grupo. Demonstrou que durante

todo o tempo que freqüentou a escola estava atento, conhecia todos pelo nome.

Um dia, quando brincava na caixa de areia, levantou-se subitamente e foi buscar

a tabuleta que ficava na porta da sala. Mostrou a tabuleta e perguntou:

- O que é terapia?

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- Terapia? – Perguntei, surpresa. – Bem, deixe-me pensar por um minuto.-

Indagava-me porque teria feito tal pergunta. Que explicação poderia representar uma

resposta sensata?

- Diria que terapia significa esta oportunidade de vir aqui brincar e falar

apenas sobre o que você deseja. É um período em que você pode ser da maneira que

quiser ser. É um período que você pode usar do modo que mais lhe agradar. É uma

hora em que você pode ser você.

Dibs apanhou a tabuleta de sua mão e virou-a.

- Sei o que isso significa. “Não perturbe”quer dizer para todos que, por favor,

deixem sozinhos os que estão aqui dentro. Que não incomodem. Não entrem. Não

batam à porta. Deixem os dois serem. Este lado quer dizer “eles estão sendo”. E este

lado quer dizer “deixe-os ser”. É assim?

- Sim Dibs. É isso mesmo.

Após um doloroso processo, em que repetidas vezes pôde expressar sua raiva em

relação aos pais, através do brinquedo, ele conseguiu sentir e conhecer suas próprias

emoções, deixa-las emergir, enfrentá-las e dominá-las. Então, um dia, Dibs foi capaz de

expressar seu amor pela mãe, de forma espontânea. A mãe ficou realmente muito

emocionada. No dia seguinte, pediu outra entrevista com a terapeuta e mostrou como

estava refletindo sobre tudo o que havia acontecido. Estava muito agradecida, mas

também confusa, pois Dibs demonstrava ser uma criança com habilidades

extraordinárias. Seus desenhos e pinturas fugiam do padrão para crianças da sua idade.

Durante muito tempo o estímulo intelectual fora o único canal de comunicação entre

mãe e filho. Ele havia aprendido a ler com dois anos. A mãe o havia ensinado. Desde

aquela idade a mãe vinha estimulando-o intelectualmente das mais variadas formas.

Com músicas, livros e explicações. Precisava provar que ele podia aprender e que ela

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podia ensinar-lhe. Na verdade sabia que ele não era um deficiente. Seus sentimentos

eram ambíguos. Testando, observando, duvidando dele e dela própria. Buscava uma

maneira de se aproximar mas, na verdade, levantava um muro entre eles com tantas

exigências. A avó materna era a única pessoa da família que o aceitava como era. Com

ela, ele ficava mais tranqüilo. Mas a avó convivia pouco com ele pois morava em outra

região do país.

Poder vivenciar que sentimentos e atitudes podiam se modificar deu outra

perspectiva àquela família. A mãe pôde dar-se conta da importância da dimensão

emocional na vida de sua família e na sua própria.

Após as férias de verão, quando a família pôde passar mais tempo junta

(incluindo a irmã e a avó) e usufruir das mudanças em todos , Dibs retornou para um

último encontro. Estava diferente, entrou com um passo firme, sorriso vivo e olhos

brilhantes.

Conseguiu despedir-se da mamadeira, da casa de brinquedo e da terapeuta.

Estava satisfeito com sua família e agora sentia-se parte dela.

Na escola, Dibs passou a conviver bem com os colegas e não apresentou mais

acessos de raiva. Participava das atividades com satisfação.

Na semana anterior ao final da terapia, um psicólogo clínico aplicou em Dibs o

teste de inteligência de Stanford-Binet. Dibs manteve-se interessado e cooperativo. O

resultado do teste atestou-lhe um QI de168.

4. Discussão:

Este caso, descrito há mais de 40 anos, possibilita a identificação de muitos

aspectos para discussão ou interpretação, que vão além da posição teórica original da

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Page 18: Artigo Ana sobre superdotação

autora, e que podem ser úteis no trabalho clínico. Neste trabalho, serão enfocados os

seguintes:

a) Uma criança com capacidades superiores, vista à luz das teorias atuais de

inteligência, interagindo precocemente com seu ambiente e apresentando um quadro

clínico que gera confusões diagnósticas;

b) O narcisismo dos pais e seus ideais rígidos, distorcendo a interação com a

criança e impedindo o reconhecimento do filho como um ser diferenciado e com

necessidades próprias, frustrando excessivamente a criança e infligindo danos narcísicos

profundos;

c) O papel do trabalho psicoterápico e da capacidade empática do terapeuta,

como oportunidade de transformação e construção do self na criança;

d) O self nuclear coeso como base para a construção de um narcisismo normal

(além da recomposição das relações objetais e a transformação das pulsões agressivas)

permitindo o desenvolvimento emocional e a expressão das habilidades superiores na

criança superdotada.

Ao revisarmos o caso de Dibs, podemos supor que as suas habilidades

intelectuais superiores, provavelmente geneticamente herdadas (pois seus pais

destacavam-se intelectualmente), e estimuladas desde cedo pela mãe, possibilitaram um

desenvolvimento intelectual muito acima da média. Por outro lado, seu

desenvolvimento emocional ficou seriamente prejudicado pelas deficiências na

interação com ambos os pais. Este é um exemplo de como a assincronia no

desenvolvimento pode se estabelecer.

Além disso, pode-se supor que suas características inatas, superexcitabilidades,

que precocemente interagiram com seu ambiente, desfavorável emocionalmente e pouco

empático, produziram sintomas com uma intensidade incomum (depressão, oposição).

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Pode-se também ver sua disposição para o tratamento e coragem, que aparecem já na

primeira hora de jogo, a habilidade no processamento das informações, criatividade e a

capacidade para integrar rapidamente as experiências vivenciadas numa psicoterapia de

curta duração, como parte de um contexto de superdotação tanto do menino como de

seus pais.

A confusão em que se encontravam os profissionais antes do início da

psicoterapia, evidencia os riscos de erros diagnósticos nestes casos, pois a intensidade

das manifestações leva a interpretações errôneas. O diagnóstico de autismo ou Síndrome

de Asperger, neste caso, não se justificaria devido à qualidade das relações que o

menino estabelece e a satisfação que demonstra nas interações com as pessoas com o

decorrer da terapia. Tais aspectos o diferenciam claramente destes pacientes.(4,5)

Poder avaliar e discriminar em que proporção as alterações comportamentais e

emocionais dizem respeito a características inerentes à condição de superdotado, suas

superexcitabilidades, dentro de um desenvolvimento “normal”, ou estão relacionadas a

outros transtornos, é uma tarefa importante e fundamental para o adequado

planejamento do tratamento. Confusões diagnósticas são muito comuns. Além disso,

quando existe a presença de algum transtorno mental associado, a “dupla

excepcionalidade” exige cuidados redobrados.(2,5)

Quando uma criança com características incomuns, excêntrica, hipersensível,

encontra pais pouco disponíveis ou sem a empatia necessária, cria-se uma configuração

de risco para o desenvolvimento mental e emocional.

Winnicott, destaca a importância do meio ambiente no desenvolvimento

emocional do bebê. Para ele, “o precursor do espelho é o rosto da mãe.”( 13)

Quando Dibs nasce, sua mãe não o deseja, tampouco seu pai. Tomada por

frustração, e com rígidas defesas, controlando, disfarçando, ocultando sua própria

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depressão, ela projeta no bebê toda angústia e incapacidade que sente. Ela descrevia seu

bebê como “um pedaço de qualquer coisa”, “não reagia a nada”. Posteriormente, ele

passa a reagir violentamente a qualquer tentativa de aproximação. Recusa-se a falar e a

interagir com seus pais e com o mundo à sua volta. Tampouco consegue sentir-se como

um indivíduo, referindo-se a si mesmo na terceira pessoa.

Segundo Anna Ornstein (14) a falta de estabilidade e coesividade do self pode

determinar diferentes níveis de psicopatologia. Utilizando as idéias de Kohut a respeito

do narcisismo e a estruturação do self, postula que muitas manifestações da patologia

do self na infância tem relação com os esforços da criança para lidar com falhas na

empatia parental, o que acarreta a presença de uma raiva narcisística crônica. Falhas na

empatia parental, que são experienciadas pela criança como repetidos danos

narcísisticos sutis, levam à formação de organizações defensivas (primariamente

masoquísticas e paranóides) que servem ao propósito de proteger a criança de

reexperienciar a dor de frustrações traumáticas. Essas organizações defensivas, as quais

se tornam integradas na psiquê em crescimento se caracterizam pela sua rigidez e

natureza inflexível. Já que as crianças estão em pleno controle apenas de seus corpos e

funções, freqüentemente usam a si mesmas para expressar raiva com aqueles que

falharam ou ativamente infligiram danos narcisísticos a elas. (14)

Em sua teoria do self bipolar, Kohut postulou a existência de duas estruturas

narcisísticas primárias partindo de um self nuclear que tenha atingido suficiente coesão:

o “self grandioso”que contém a grandiosidade e o exibicionismo da criança, e a “imago

parental idealizada”, dentro da qual a criança se inclui na (idealizada) força e poder de

seus pais. Em conseqüência das respostas de espelhamento parental, estas estruturas vão

se transformando e gradualmente se integrando no psiquismo em desenvolvimento para

formar as ambições e os ideais. Em meio a estes se encontram as habilidades e talentos

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inatos da criança, os quais, sob condições ótimas são utilizados a serviço de preencher

as ambições e expressar os valores do self nuclear. (14,15)

Segundo Ornstein, crianças que sofreram severas frustrações em sua fase

precoce de espelhamento, e nas necessidades de idealização, podem desenvolver

estruturas psicológicas compensatórias em fases posteriores ao vivenciar respostas

empáticas de outros adultos em seu ambiente. Se bem consolidadas, estas estruturas

podem manter suficiente liberdade funcional ao self, salvaguardar sua coesão e permitir

o progresso do futuro desenvolvimento.(14) Sendo assim, as relações com

psicoterapeutas, professores e outras figuras de referência, podem constituir novas

chances para estas crianças, de passar a existir integralmente. Além disso, no contexto

do tratamento psicoterápico ou psicanalítico, os pais também sofrem transformações

que acabam por modificar sua maneira de ver a criança, contribuindo para o

estabelecimento de padrões mais saudáveis de relacionamento.

No caso descrito, fica evidente essa transformação partindo do tratamento da

criança e atingindo os pais. Para que isso ocorra é necessário um ambiente empático

também para os pais, já que geralmente são inconscientes os mecanismos que

desencadeiam tais interações patológicas. Também o ambiente escolar em que Dibs

pôde iniciar seu contato com o mundo além da família foi crucial na sua história. Um

olhar individualizado, identificando as necessidades de uma criança tão fora do comum,

é o que se preconiza para o desenvolvimento de intervenções educacionais adequadas e

enriquecedoras para crianças superdotadas ou não.(9)

Winnicott, a propósito da tarefa psicoterapêutica nos diz:

“Psicoterapia não é fazer interpretações argutas e apropriadas; em geral, trata-se de devolver ao

paciente, a longo prazo, aquilo que o paciente traz. É um derivado complexo do rosto que reflete o que há

para ser visto. Essa é a forma que me apraz pensar em meu trabalho, tendo em mente que, se o fizer

suficientemente bem, o paciente descobrirá seu próprio eu (self) e será capaz de existir e sentir-se real.

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Sentir-se real é mais do que existir; é descobrir um modo de existir como si mesmo, relacionar-se aos

objetos como si mesmo e ter um eu (self) para o qual retirar-se, para relaxamento. Não me agradaria,

contudo, deixar a impressão de que essa tarefa, que consiste em refletir o que o paciente traz, é fácil. Não

é; e, emocionalmente, é exaustiva. Mas temos nossas recompensas. Mesmo quando nossos pacientes não

se curam, ficam-nos agradecidos porque pudemos vê-los tal como são e isso nos concede uma profunda

satisfação.”(13)

5. Considerações Finais:

Neste trabalho, apenas pudemos vislumbrar a complexidade destes indivíduos

fora do comum e enfocamos alguns, dentre uma multiplicidade de aspectos, que podem

ser trabalhados num contexto psicoterápico. Gostaria de chamar atenção para o fato de

que muitas crianças, com ou sem características de superdotação, não têm a

oportunidade, que Dibs teve, de encontrar em seu caminho circunstâncias que lhe

possibilitem o resgate das estruturas narcisísticas infantis fundamentais para a

constituição do self. O fracasso em alcançar algum grau de transformação destas

estruturas e a constituição de um self coeso leva estas crianças, ao longo da latência e

adolescência, a manifestar uma falta de vigor e vitalidade, baixa auto-estima, falta de

prazer no self e suas atividades, falta de entusiasmo e iniciativa e falta de investimentos

a longo prazo em metas e ideais. No caso das crianças com altas habilidades, estas

acabam não conseguindo desenvolver seus talentos e capacidades e, por isso, não

podem expressar suas ambições e perseguir seus objetivos. O resultado é um sentimento

crônico de vazio e inutilidade acompanhados de dolorosos graus de auto-consciência.

Os desfechos podem ser os mais variados.(14,16) É nossa responsabilidade, como

profissionais, estar atentos e disponíveis para identificar tais situações, pois parecem ser

mais comuns do que se poderia supor.

6. Referências Bibliográficas:

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1) Chagas, JF. Conceituação e fatores individuais, familiares e culturais

relacionados às altas habilidades. In: Fleith, DS; Alencar, EMLS.

Desenvolvimento de talentos e altas habilidades: orientação para pais e

professores. Porto Alegre: Artmed; 2007. p 15-23.

2) Webb, JT, et al. Misdiagnosis and dual diagnoses of gifted children and adults:

ADHD, Bipolar, OCD, Asperger’s, Depression and other disorders. Scottsdale:

Great Potencial, 2005.

3) Winner, E. Crianças superdotadas: mitos e realidades. Porto Alegre: Artmed;

1998.

4) Alencar, EMLS; Fleith, DS. Superdotados: determinantes, educação e

ajustamento. 2. ed. São Paulo: EPU, 2001.

5) Lovecky, DV. Different minds: gifted children with ADHD, Asperger syndrome

and other learning deficits. London and New York: Jessica Kingsley Publishers,

2004.

6) Sternberg, RJ. A triarchic view of giftedness: theory and practice. In: Colangelo,

N; Davis, GA (Org.). Handbook of gifted education. 2. ed. Needham Heights:

Allyn & Bacon, 1997.

7) Gardner, H. Inteligência: um conceito reformulado. Rio de Janeiro: Objetiva,

2000.

8) Renzulli, JS. The three-ring conception of giftedness: a developmental model for

creative productivity. In: Renzulli, JS; Reis, SM (Org). The triad reader.

Mansfield Center: Creative Learning, 1986.

9) Virgolim, AMR. Altas habilidades e desenvolvimento intelectual. In: Fleith, DS;

Alencar, EMLS. Desenvolvimento de talentos e altas habilidades: orientação

para pais e professores. Porto Alegre: Artmed; 2007. p 25-40.

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10) Fleith, DS. Altas habilidades e desenvolvimento socioemocional. In: Fleith, DS;

Alencar, EMLS. Desenvolvimento de talentos e altas habilidades: orientação

para pais e professores. Porto Alegre: Artmed; 2007. p 42-50.

11) Silverman, LK. Asynchronous development. In: Neihart, M; Reis, SM;

Robinson, NM; Moon, NM (Org). The social and emotional development of

gifted children: what do we know? Waco: Prufrock, 2002. p. 31-7.

12) Axline, VM. Dibs: em busca de si mesmo. São Paulo: Círculo do Livro S.A.

13) Winnicott, DW. O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento

infantil. In: O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1975. p. 153-162.

14) Ornstein, A. Self- pathology in childhood: developmental and clinical

considerations. Psychiatric Clinics of North América. 1981; (4): 435-53.

15) Gabbard, GO. Theories of personality and psychopathology: psychoanalysis:

self psychology. In: Kaplan & Sadock’s comprehensive textbook of psychiatry.

7th ed. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2000. p. 593-96.

16) Grobman, J. Underachievement in exceptionally gifted adolescents and young

adults: a psychiatrist’s view. The Journal of Secondary Gifted Education. 2006;

17(4): 199-210.

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