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Blimunda # 42, novembro de 2015

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    Os 20 anosde um livroindignado

    Editorial

    Leiturasdo ms

    Sara Figueiredo Costa

    DicionrioMiguel HortaTeresa Lima

    Espelho MeuAndreia Brites

    Notas deRodapAndreia Brites

    Its the end ofthe World as we

    know itJoo Mon te iro

    Ensaio Sobrea Cegueira

    Jos Saramago

    EstanteAndreia Brites

    Sara Figueiredo Costa

    Um novo comeopara JosSaramago

    Ricardo Viel

    Agenda

    Bruno VieiraAmaral

    Sara Figueiredo Costa

    Silvia CastrillnAndreia Brites

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    Este um livro francamente terrvel com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrev-lo, disse

    Jos Saramago na apresentao do Ensaio Sobre a Cegueira, em Lisboa, no dia 2 de novembro de 1995. Cerca de quatro

    anos antes, sentado sozinho mesa de um restaurante, espera do almoo, ocorreu-lhe o ttulo do livro. Em seguida

    pensou: e se todos cegssemos? E respondeu a si mesmo: estamos todos cegos.

    Durante praticamente quatro anos a histria de uma epidemia de cegueira que assola uma cidade deu voltas sua

    cabea. (...) lutei, lutei muito, s eu sei quanto, contra as dvidas, as perplexidades, os equvocos que a toda a hora se

    me iam atravessando na histria e me paralisavam. Como se isto no fosse o bastante, desesperava-me o prprio horror

    do que ia narrando. Enfim, acabou, j no terei de sofrer mais, anotou Jos Saramago

    no dia 9 de Agosto de 1995 no seu dirio publicado no terceiro volume dos Cadernos

    de Lanzarote.

    Passados vinte anos da publicao do Ensaio inegvel a importncia deste ttulo no

    conjunto da obra de Jos Saramago. H uns anos o jornal britnico The Guardianfez uma

    lista dos cem melhores romances da histria da literatura mundial, e entre os nomes

    estava o Ensaio sobre a Cegueira. o romance mais lido e traduzido de Jos Saramago,

    mas tambm o mais duro e pessimista, o que demonstra que no houve qualquer concesso da sua parte para que

    seus livros chegassem a mais pessoas. A injustia do mundo a dos que, podendo ver, cegam os outros, retirando ao

    ser humano a possibilidade de se desenvolver. No compreendo que uma sociedade que dispe de meios cientficos etecnolgicos de toda a ordem no resolva certos problemas. A minha forma de me insurgir este livro (...) Este livro um

    livro indignado, disse Jos Saramago ao Expresso em outubro de 1995.

    H vinte anos nascia um livro indignado, cruel e belo como s a vida pode ser. Era o alerta de um romancista para o facto

    de que estamos cegos. Ou, como diz uma das personagens do livro, de que somos cegos que, vendo, no vem.

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    Blimunda 42

    novembro 2015

    DIRETOR

    Srgio Machado Letria

    EDIOEREDAO

    Andreia Brites

    Ricardo Viel

    Sara Figueiredo Costa

    REVISO

    Rita Pais

    DESIGN

    Jorge Silva/silvadesigners

    Casa dos Bicos

    Rua dos Bacalhoeiros, 10

    1100-135 Lisboa Portugal

    [email protected]

    www.josesaramago.org

    N. registo na ERC 126 238

    Os textos assinados

    so da responsabilidade

    dos respetivos autores.

    Os contedos desta publicao

    podem ser reproduzidos

    ao abrigo da LicenaCreative Commons

    JooFaz

    enda

    FUNDAOJOSSARAMAGOTHEJOSSARAMAGOFOUNDATIONC

    ASADOSBICOS

    ONDEESTAMOSWHERETOFINDUSRuadosBacalhoeiros, LisboaTel:(351)218802040

    [email protected]

    GETTINGHEREMetroSubwayTerreirodoPao

    (LinhaazulBlueLine)

    AutocarrosBuses25E,206,210,

    711,728,735,746,759,774,

    781,782,783,794

    SegundaaSbado

    MondaytoSa

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    10s18hora

    s

    10amto6pm

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    PreguiaO Apocalipse feitopatrimnioO conjunto de livros medievaisproduzidos na Pennsula Ibrica econhecidos como Manuscritos doComentrio do Apocalipse (Beatusde Libana) na Tradio Ibricaapresentaram uma candidatura(conjunta, com Portugal eEspanha) ao Programa Memriado Mundo, da UNESCO, tendo sidorecentemente reconhecidos por

    esta entidade. Na pgina da DireoGeral do Livro, dos Arquivos edas Bibliotecas, pode ler-se umpequeno texto sobre esse conjuntode manuscritos, onde se explica asua enorme importncia cultural:Os manuscritos conhecidoscomo Beatus so uma sriede cdices e fragmentos quecontm a cpia do Comentrioao Apocalipse atribuda ao monge

    Beatus de Libana, que viveu nasAstrias na segunda metade dosculo VIII. Estes manuscritos soparticularmente relevantes comoexpresso cultural e artsticaproduzida na Pennsula Ibricae com grande disseminao noresto da Europa medieval. So

    considerados nicos no seu gnero.Inspiraram algumas das maisfamosas obras literrias e artsticascontemporneas e constituem umadas provas materiais da transiodo Mundo Antigo para os temposmedievais no campo da Arte, daLiteratura e do Pensamento noMundo Mediterrneo e na EuropaOcidental.Um desses manuscritos, oApocalipse de Lorvo, encontra-se guarda da Torre do Tombo,em Lisboa, e sendo a sua

    consulta reservada a estudiosos eespecialistas da poca, qualquerpessoa pode conhecer o livrointegral atravs da internet e dofundo de documentos digitalizadosque a Torre do Tombo disponibiliza.

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    LEITURAS DO MS/ S A R A F I G U E I R E D O C O S T A

    A P O C A L I P S E D O L O R V O

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    Andrea Camilleri

    no BabeliaAos 90 anos, Andrea Camillerimantm a lucidez com quesempre refletiu sobre o mundo,ditando os seus textos a umaassistente e contrariando, dessemodo, a cegueira quase total,num gesto que permite aos seusleitores continuarem a segui-lo.Numa entrevista concedida aosuplemento Babelia, do jornal

    El Pas, o autor que acaba depublicar um novo romance, Donne(Mujeres, na traduo espanholaeditada pela Salamandra), fala dassuas memrias, dos tempos quevivemos e daquilo que poder vira ser a sua herana, um legadopouco agradvel para as geraesfuturas se o observarmos luzdas notcias da atualidade. Semperder as suas convices,Camilleri confirma que notem por que haver contradioinsanvel entre ideais utpicose impossibilidades prticas:Mis ideas polticas ya no sonrealizables. Porque han fracasadoen todos sitios, como es evidente.Pero yo contino siendo fiel a

    aquel ideal que es el de dar atodos la misma base de partida.

    Digo, madre ma, he vivido tanto,he luchado polticamente, y estoydejando en herencia a mis nietosy a mis bisnietos la incertidumbreabsoluta sobre su futuro. Yome despertaba mejor. Yo por lamaana me levantaba sabiendoque tena un trabajo, que adems,como le deca antes, me gustaba,y la jornada ya tena un colorparticular. Pero si te despiertas ysabes que no tienes trabajo y quees dificilsimo encontrarlo, tancomplicado casi como ganar a lalotera, entonces la perspetiva detristeza es terrible. Son ya bravosestos jvenes por no cometeratos de desesperacin. Se ve quela vida es ms fuerte que todaesta situacin.

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    Presos polticosem angolaDepois de Luaty Beiro, um dosquinze presos que continuam nacadeia espera que os tribunaisangolanos decidam o seu futuro,

    ter dado por terminada a grevede fome que levou a cabo durante

    36 dias, a crnica de AlexandraLucas Coelho do passado dia 1 denovembro regressava ao tema.No Pblico, a jornalista escrevia:No h independncia semliberdade. Estes presos polticosfortalecem mais a independnciade Angola do que o regime deJos Eduardo dos Santos em36 anos. Na quarta-feira, aAmnistia Internacional entregouna Embaixada de Angola emPortugal peties por angolanos(os 15 presos polticos, maisMavungo, mais o processo contraRafael Marques), somando 42mil assinaturas. Ao fim da tarde,apesar da chuva, e de j estarterminada a greve de fome, oRossio voltou a encher-secom centenas de pessoas pela

    libertao dos 15, aquela praaque sempre foi o centro dopoder colonizador, agora comfaixas pela liberdade penduradasna esttua de D. Pedro IV (alis,primeiro imperador do Brasilindependente). L estava a avde Luaty encontrando velhasconhecidas de Luanda, talvez

    mais africanos do que nuncacom cartazes e velas, rappers

    cantando o 27 de maio de 1977,que tanto sofrimento ainda tempara vir ao de cima. Na prximaquarta-feira, a concentrao frente Embaixada de Angola.O fim da greve de fome de Luaty s o fim de uma etapa, e muitagente parece sentir aquilo queos 15 tm dito: toda essa foralhes chega, e os fortalece, numacorrente. E, mais adiante, aconcluso: O fraco jamaisperdoa, o perdo um atributodos fortes uma clebre frasede Gandhi. Ele tambm disse quea fora no vem da fora fsica,mas de uma vontade indmita.E, para quem se esteja aperguntar se tudo isto serve paraalguma coisa, h uma outra frase:Tudo o que fazes insignificante,

    mas importante que o faas."l

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    LEITURAS DO MS/ S A R A F I G U E I R E D O C O S T A

    http://www.publico.pt/mundo/noticia/por-cada-um-angola-e-em-forca-1712817http://www.publico.pt/mundo/noticia/por-cada-um-angola-e-em-forca-1712817http://www.revistaenie.clarin.com/literatura/Elogio-poesia-intensidad_0_1459054100.htmlhttp://www.revistaenie.clarin.com/literatura/Elogio-poesia-intensidad_0_1459054100.htmlhttp://www.revistaenie.clarin.com/literatura/Elogio-poesia-intensidad_0_1459054100.htmlhttp://www.publico.pt/mundo/noticia/por-cada-um-angola-e-em-forca-1712817
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    J. M. Coetzee naAmrica Do SulO escritor sul-africano J. M.Coetzee tem andado pelaAmrica do Sul em palestras eapresentaes, tendo passadouma temporada em Buenos Aires,onde lanou o livro 51 poetas.Antologa ntima, uma escolhapessoal das suas leituras de poesia.Em entrevista revista , do jornalClarn, o autor explicou o seuinteresse pela regio, um espao de

    onde saram alguns dos nomes maisrelevantes da literatura do sculoXX: Al igual que la mayora de miscontemporneos, estuve inmerso enel trabajo de los grandes maestroscomo Borges y Garca Mrquez,pero las visitas recientes que hicea la Argentina me permitieronfamiliarizarme con una nuevageneracin de escritores. Desde elcomienzo, qued impresionado porla seriedad con la que el pblicolector de la Argentina trata a susescritores, y en general, con el lugardestacado que los libros ocupan enla vida del pas. Adems, a travs deltrabajo que estoy haciendo ahoracon la Universidad Nacional de SanMartn, me involucr yo mismo

    en la cuestin de las relacionesculturales sur-sur, relaciones entrelas naciones del hemisferio sur. Por

    mucho tiempo, estas relacionesfueron mediadas a travs de lasinstituciones del norte editoriales,medios, etc. aunque esperoque ese panorama comience acambiar. E sobre o livro agorapublicado, Coetzee apresentou-ocomo resultado das leituras deuma vida: La gente piensa que unnovelista profesional pasa su tiempolibre leyendo la obra de otros

    novelistas profesionales. Nada msalejado de la verdad. Los escritoresleen de todo: historia, filosofa,temas de actualidad, biografas Enmi caso personal, leo mucha poesa,porque en la obra de los poetas sepuede encontrar el lenguaje llevadoa su mxima intensidad. La antologaque recopil su ttulo es 51 poetas es el resultado de una vida de

    lectura. Es una antologa personalo ntima en el sentido de que lospoemas incluidos son poemas queadmiro mucho, poemas que enmuchos casos han tenido influenciasobre mi obra y realmente sobre mivida.

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    LEITURAS DO MS/ S A R A F I G U E I R E D O C O S T A

    J . M . C O E T Z E E

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    David Soares ser reconhecidopor muitos leitores graas sua

    persistncia numa temtica aque poderamos chamar, semdemasiado rigor, fantstica. Aindaque afunilemos este discursocom referncia exclusiva bandadesenhada, deixando de lado osromances, os contos e outrostrabalhos que cruzam disciplinas esuportes, essa uma linha temticaimediatamente reconhecvel naproduo do autor e, no sendo anica, talvez aquela que asseguraa arrumao do seu trabalho sobum rtulo algo simplista. Com OPoema Morre, tambm assinadopor Snia Oliveira (que assegurao desenho), volta a confirmar-se que essa linha temtica naverdade, mais ambiente e motivodo que tema no a essnciada obra do autor, porque o que

    David Soares parece utilizar comomatria-prima do seu trabalhona banda desenhada aquilo aque poderamos chamar misriahumana, as vertentes menos nobresda nossa natureza comum, osgestos que guardam a violncia, asordidez, a ignorncia, a maldade.No podia ser mais universal e

    menos atreito a rtulos de gnero.Em O Poema Morre acompanhamos

    a respirao de uma guerra, osmomentos que a antecedeme os que lhe sucedem, paraalm da guerra em si. Nestaextenso temporal, queprocura antecedentes e mostraconsequncias, est grande partedo flego narrativo, no tanto pelashipteses de estruturar uma linhahistrica que tudo explique, masantes pela vontade de perscrutargestos e impulsos nas pequenascoisas do quotidiano, procurandoentre a matria de todos os diasos momentos em que o conflitodeflagra, s vezes suavemente oude modo restrito, outras vezesimparvel. O trabalho de SniaOliveira acompanha esta vontadede modo orgnico, usando as linhasfinas e sinuosas do seu trao como

    matria capaz de moldar esteretrato cinzento (tambm na paletade cores) de um tempo que poderiaser muitos tempos.Parcialmente inspirada na biografiado alemo Gottfried Benn, umpoeta obcecado com a morte e adegradao dos corpos, acolhidopelo regime nazi como um vate

    e depois amaldioado por essemesmo regime, a narrativa deste

    livro prope uma reflexo sobreo modo como o conflito e noapenas o conflito armado e emgrande escala se impe nasnossas vidas, os desentendimentosque lhe do origem, a mudana,que da sempre advm. ItaloCalvino escreveu, em O ViscondeCortado ao Meio, que a guerra um passar de mo em mo decoisas cada vez mais amachucadase o livro de David Soares e SniaOliveira confirma essas palavrasem cada prancha, mas onde afrase de Calvino aponta para umaconcluso, hipoteticamente situadano momento em que as coisasamachucadas percam a sua forma ese extingam, O Poema Morreindiciaum constante recomeo, um modotelrico de olhar a guerra, a vida, o

    mundo, uma certeza sobre o eternociclo de que somos feitos, por maisque o contrariemos com os gestosluminosos, afveis e generosos deque tambm somos capazes.

    LEITURAS DO MS/ S A R A F I G U E I R E D O C O S T AO Poema MorreDavid Soares e SniaOliveiraKingpin Books

    O eterno ciclo

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    Contos de AprendizCarlos Drummond de AndradeCompanhia das LetrasVolume que rene quinze

    narrativas de um dos grandesautores da literatura em lnguaportuguesa. Nestas histriascurtas, publicadas quando CarlosDrummond de Andrade celebroucinquenta anos, o autor constrium universo que reflete as suasmemrias de infncia e o modocomo estas se misturam comuma certa memria coletiva doBrasil do incio do sculo XX.

    Lisboa Very,Very TypicalVVAAChili Com Carne

    Depois deZona de Desconforto,livro que reunia bandasdesenhadas de vrios autoresportugueses vivendo noestrangeiro, o novo volumecoletivo editado pela Chili ComCarne junta autores estrangeirosque vivem em Lisboa. Opropsito o mesmo: dar espao reflexo sobre as experincias

    individuais, as pequenas histrias,as expectativas, potenciandouma leitura mais ampla sobrecomo ser-se estrangeiro numacidade (e logo numa que cada vezmais se promove como destinode sonho para turistas) nos diasque correm.

    ContosHans Christian AndersenTemas e DebatesA Temas e Debates prossegue

    a edio das narrativastradicionais, desta vezantologizando 156 contos dodinamarqus Hans ChristianAndersen. A partir da consulta defontes inglesas e alems, assimcomo do H. C. Andersen Centret,cuja pgina web disponibilizagrande parte do seu esplio, aequipa editorial selecionou osttulos que no total englobam omais e o menos conhecido doprolfico autor dinamarqus.

    Aqu viven leonesFernando Savater e Sara TorresDebateAquele que se anuncia como

    o derradeiro livro do filsofoFernando Savater, escrito emparceria com a sua companheira,Sara Torres, nasceu nasequncia de uma srie dedocumentrios televisivos feitospelos dois autores sobre oslugares onde viveram algunsdos seus escritores preferidos.Shakespeare, Edgar Allan Poe,Ramn del Valle-Incln, AgathaChristie ou Gustave Flaubert soalguns dos autores cuja vida eobra serve de mote s viagenspropostas.

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    OblomovIvan GontcharovTinta da China

    O novo volume da coleodedicada ao humor que RicardoArajo Pereira dirige na Tintada China traz a obra maisconhecida do romancista russoIvan Gontcharov, uma ode inrcia que tambm umapardia sobre a decadnciada nobreza, cuja funo socialcomeava a notar-se apagadana segunda metade do sculo

    XIX. A traduo e as notas sode Antnio Pescada, motivoacrescido para se (re)descobriruma obra to fundamental.

    Salta para o Saco!Antnio TorradoCaminho

    A Caminho continua a reeditar aobra de um dos mais cannicosautores portugueses de literaturainfantil. Neste caso trata-se deuma pea de teatro que conjugasentido dramtico e uma moral,assentes na subtileza da crticasocial e do humor, to ao estilode Antnio Torrado. Um jovemenamorada acaba por passar15 anos numa guerra, sem

    saber porqu. No regresso,a esperana do amor pareceirremediavelmente perdida. Asdidasclias complementam osentido do texto, conferindo-lheuma componente cenogrficaque o valoriza.

    Imageria O Nascimentodas Histrias emQuadrinhosRogrio de CamposEditor VenetaUm percurso pelas origensda banda desenhada, semfugir eterna discusso sobrequem foi o seu primeiro autore apresentando a publicaointegral de algumas obras deWilliam Hogarth, R. F. Outcault

    e Rodolph Tpffer, entre outrosautores fundamentais para umconhecimento transversal sobreo incio e o desenvolvimentodesta linguagem onde texto eimagem se cruzam.

    Uma Bicicleta ChuvaMargarida Fonseca Santos

    BooksmileO bullyingtem sempre umaorigem, uma causa. Encontrara causa o primeiro passo pararesolver o problema. Esta podeser a moral da novela juvenil queacompanha o sofrimento fsicoe psicolgico de Jaime, a par doambiente familiar disfuncional doprincipal agressor. Uma bicicletaacaba por alterar toda a situao.De destacar ainda as ilustraesde Danuta Wojciechowska, numregisto a preto e branco algosurpreendente. Este o primeirottulo de uma nova coleo daautora, intitulada a escolha minha.

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    A S B SB S

    TEXTOS

    Alexandre Andrade, William Boyd, A.M. Pires Cabral,Matilde Campilho, Dulce Maria Cardoso,Mrio Cludio, Jos Rio Direitinho, Nuno Jdice,Robert Macfarlane, Jay McInerney, Antonia Pellegrino,Ana Teresa Pereira, Helen Simpson, Colin ThubronENSAIO FOTOGRFICO

    Jordi BurchILUSTRAESRachel CaianoCAPA

    Jorge Colombo

    Na noite cabe tudo: o tangvel e o imaginado,a insnia e o sono, o sonho e o pesadelo, o cansaoe o descanso, a boca que beija e a boca que morde,o isqueiro e a lmina, o salto e o susto, a sombra e asombra da sombra. Carlos Vaz Marques

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    Fundao Jos Saramagoe Casa Fernando Pessoa

    josesaramago.orgcasafernandopessoa.pt

    Pessoa e Saramago nas ruas de Lisboa

    Dias doDesassossego 15

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    B R U N O V I E I R A A M A R A L : A O F I C I N A D E U M E S C R I T O R

    Com As Primeiras Coisas, Bruno Vieira Amaral venceu a ltima edio do PrmioJos Saramago/Fundao Crculo de Leitores. Publicado pela Quetzal em 2013, no oprimeiro livro do autor, que j havia publicado um Guia Para 50 Personagens da FicoPortuguesa, mas o seu primeiro romance. O jri do prmio destacou a qualidade daconstruo narrativa e, atravs de Nlida Pion, um dos seus elementos, afirmou que aspginas de Bruno Vieira Amaral talham um mundo perturbador, dando-nos a ler um bairroque a metfora de uma comunidade condizente com um pas [] cuja construo, semfalhas, expressa a inveno do real. A matria, enfim, que jaz em ns e nos emociona.

    Uma semana depois do anncio do Prmio Jos Saramago, a Blimundaapanhou o barcopara o Barreiro e instalou-se com o autor num caf da estao fluvial, no muito longe doVale da Amoreira que esteve na origem do ficcional Bairro Amlia de As Primeiras Coisas,

    para uma conversa longa sobre literatura, fico e os bairros em volta delas.

    FOTOGRAFIAS DE RUI CARTAXO RODRIGUES

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    B R U N O V I E I R A A M A R A L : A O F I C I N A D E U M E S C R I T O R

    s Primeiras Coisas acon-

    tecem no Bairro Amlia,espao ficcional plantadona margem sul do rio Tejoonde se junta o conjuntode personagens que h de

    estruturar uma narrativaapresentada em fragmen-

    tos. Inspirado no bairro onde Bruno Vieira Amaral cresceu,o Vale da Amoreira, o Bairro Amlia s existe na fico e

    feito de muitos espaos, como todos os bairros o so, in-dependentemente de se situarem no centro ou na periferia,

    e cada espao assume importncias distintas para as per-sonagens e para o desenrolar da sua histria, como expli-ca o autor, recusando determinismos sem fugir ao peso dascoisas: Os espaos condicionam sempre as personagens,diria que condicionam a nossa forma de nos relacionarmos

    com os outros, e isto antes da literatura. A forma como nosrelacionamos com os outros depende muito da organiza-o do espao, dos locais de convvio, de como esses espa-os so importantes para a vida comunitria. Neste caso,so. As pessoas saem pouco dali, toda a vida delas se cingequeles espaos, e ento o caf tem uma importncia cen-

    tral, as mercearias, tambm, os prdios, tudo isto so es-paos importantes para a vida destas personagens, porque

    elas vo-se definindo neste jogo com os outros. No fundo,existem nestas relaes que vo aproximando e afastandoem funo tambm dos espaos que elas frequentam. Seriainteressante fazer uma espcie de desenho do percurso daspersonagens, se escolhssemos uma e fizssemos o percur-so dela ao longo de um dia, acabaria por se chegar a vrias

    concluses sobre a sua vida, a relao com os outros... Haviapessoas cuja vida era toda feita dentro do bairro e num per-

    curso pequeno poderia estar o fundamental da vida dessaspessoas. H, ento, uma grande relao entre o espao e aspersonagens, no numa viso determinista, como se o espa-

    o se impusesse, mas sabendo que se definem tambm pelasua relao com o espao. Uma das coisas que me interessouno processo de escrever o livro foi observar a transformaoda importncia dos espaos na vida das pessoas, que impli-

    ca uma transformao na vida das pessoas e da vida em co-munidade.

    Sem querer misturar a realidade do bairro onde cresceucom a dimenso literria deste outro bairro criado para oromance, Bruno Vieira Amaral no deixa de os colocar ladoa lado quando fala sobre os lugares e as pessoas. Quando

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    B R U N O V I E I R A A M A R A L : A O F I C I N A D E U M E S C R I T O R

    tu cresces num determinado local e voltas l depois de al-

    guns anos, a verdade que aqueles espaos continuam a serhabitados pelas pessoas que conheceste. Naquele espao,continua a haver aquela ausncia. Isto pode levar para um

    caminho prximo do realismo mgico, de mortos que conti-nuam a existir, mas o realismo mgico tambm traduz rea-lidades sociais... A histria da ascenso aos cus da Rem-dios, nos Cem Anos de Solido, talvez o episdio mais famosodo realismo mgico, Gabriel Garca Mrquez explicou quefoi baseado na histria de uma rapariga l da terra dele que

    desapareceu, fugiu com um saltimbanco, e os pais, envergo-nhados, inventaram aquela histria de que ela teria ascen-dido aos cus. Ou seja, o realismo mgico no tem muito defantstico, a no ser quando mal feito. Quando bem feito,traduz muito a realidade, e acaba por ser mais realismo doque mgico. Foi isso que quis transmitir nalguns captulos.

    Quando o narrador regressa a um caf onde ele trabalhou,de certa forma as pessoas ainda l esto, mesmo que o espa-o se tenha transformado.

    omea a ganhar corpo o modo como

    a experincia de um autor pode serponto de partida para a constru-o de um romance, sem que se te-

    mam as armadilhas de uma ficofeita de histrias reais. Uma des-sas armadilhas estava na prpriaideia do bairro, suburbano, pobre,

    uma noo por vezes transformada em quadro romntico(sobretudo por parte de quem vive noutras realidades). As

    Primeiras Coisaspodia ter cado nessa armadilha, fazendo deum bairro com poucos recursos um lugar de justia social,uma imagem de mundo melhor a nascer entre os mais fra-cos, mas Bruno Vieira Amaral no quis ir por a. Este no um livro ingnuo, nem na estrutura, nem no olhar sobreas personagens. No um livro em que eu no soubesse que

    terrenos estava a pisar, quer de um ponto de vista sociolgi-co, quer literrio. E at sobre essa questo de como que ossubrbios surgem na literatura, como que os podemos re-presentar de forma a que no haja uma romantizao, umaglamourizao, pintar os subrbios de dourado... Eu tinhaconscincia disso e sabia o que que no queria fazer. Acho

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    que esse risco existe, e no s no caso dos subrbios, mas nocaso de meios mais desfavorecidos, para ser muito claro. Oretrato de meios desfavorecidos perigoso sobretudo paraquem no conhece esses meios.

    ra esse o problema de algum notodo neorrealismo, um conhecimen-

    to muito superficial dessas realidadese, por isso mesmo, por haver um pre-conceito positivo de romantizao da

    pobreza, corre-se o risco de fazer umacoisa condescendente e paternalista

    e isso obviamente o pudor de quemno conhece, um pudor compreensvel, de procurar o n-gulo positivo e acabar por oferecer uma verso amputadadaquela realidade, um discurso condescendente sempre aapontar que ali no h s pessoas ms, que tambm h pes-

    soas trabalhadoras. Quem vive essa realidade tem uma vi-so mais natural das coisas, olha para as pessoas que podeou no transformar em personagens e v-as tambm comos seus defeitos, os seus rancores, a sua mesquinhez. Issotinha de estar no livro, porque no queria tentar embelezarnada, como no queria demonizar. Tinha noo de que era

    um caminho perigoso. No queria romantizar o subrbio,nem fazer aquele quadro que diz isto a vida real, por-que deploro profundamente essa viso das coisas: to real

    aquele bairro como real uma penthouseem Lisboa, a vidado bairro como a vida dos banqueiros. Esta ideia de que orealismo a vida dos pobres no me convence. O realismo ,antes de tudo, uma conveno literria, no tem que ver como grau de realidade da realidade, se podemos dizer assim,

    uma forma de organizar uma determinada realidade numdiscurso literrio. Mas h aquela ideia de que se eu falar do

    Vale da Amoreira, isso realismo, j se eu falar da vida doscantores, ou dos ricos, ou dos famosos, isso j no realis-mo, o que mentira. Quis evitar essas armadilhas, mas oque eu queria fazer resulta dessa experincia. No quero di-

    zer que para escrever sobre um meio tenha de haver essa ex-perincia, mas acho que o olhar de quem viveu aquela reali-dade necessariamente diferente daquele de quem tem um

    conhecimento superficial, e isso mais por causa do tal pudorde expor as coisas de uma forma mais crua, para no rotularnegativamente uma realidade que, para mim, mltipla.

    Arrumadas as ideias sobre aquilo a que confortavelmentechamamos realidade e os modos diversos de olhar para ela,importa perceber como que o que se conhece se transfor-

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    ma no que o leitor h de ler, como que o Vale da Amoreiradeixa de ser o bairro onde podemos ir, no Barreiro, e passaa ser o Bairro Amlia, que s no romance conseguimos visi-tar: O grande desafio est alm do ponto de vista social e o de transformar este olhar natural sobre uma determinadarealidade em matria literria. A, a conversa outra, por-

    que j no me vale de muito ter vivido esta experincia dire-tamente, porque os critrios so outros, so os do funciona-mento do texto. Claro que a leitura sociolgica tem sentido,mas o que me preocupa so as questes do texto literrio,

    dos artifcios que se constroem e que funcionam ou no.

    pesar desta separao not-ria de campos, deixando

    sociologia o que lhe perten-ce e literatura o que s a eladiz respeito, difcil passar

    porAs Primeiras Coisas semuma reflexo sobre parte dasociedade portuguesa do

    ps-25 de abril. A descrio que o narrador nos d do BairroAmlia, explicando a sua gnese, mostrando as origens dasmuitas pessoas que o foram habitar e confessando o modo

    como tambm ali se criaram diferenas sociais, hierarquiasbem vincadas baseadas no lugar de onde se veio, nos hbitos,nos recursos, no deixa de ser um retrato possvel do Portu-gal dos anos 70. No posso fugir disso, porque isso est na

    gnese da formao daquela comunidade. Se o que me atraina histria daquele bairro concreto esse seu processo deformao to improvvel, no posso ignorar o contexto his-trico e social daquele stio. No que as personagens sejamdeterminadas pelo lugar, mas claro que isso conta. muitodiferente a experincia do retornado que chega ao bairro e ali

    tem de recomear e a das pessoas que vinham dos bairros delata em Lisboa, da Serafina, por exemplo, como era o caso dafamlia da minha me, e que chegam ali e aquilo j representauma melhoria de vida. Isto influencia claramente as pessoas,ajuda a definir o seu comportamento, e portanto vai ajudar aconstruir as personagens. O romance no outra coisa que

    no a anlise dessas relaes, onde a histria, o contexto, o

    espao so fundamentais. O que um problema, para mim, eque procurei evitar, reduzir as personagens a isso, por issoquis mostr-las na sua complexidade, na tenso das relaes,por exemplo, entre os que j c viviam e os retornados, que

    davam azo a discursos sobre os que estavam a ser beneficia-dos ou no, discursos que hoje se mantm, com outros alvos,

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    no ajudam os de c e ajudam os que vm de fora. Tudoisso influencia as personagens e a atitude em relao vida,

    o modo fatalista como uns achavam que nunca iriam sair dobairro e o modo esperanoso como outros faziam tudo para

    conseguirem sair.

    eixemos o bairro e avancemos paraa estrutura do romance. Entradasorganizadas alfabeticamente vocontando histrias de muitas per-

    sonagens, por vezes intercaladascom descries de lugares, ambien-tes, gestos habituais nas rotinas decada um. Antes disso, um prlogo

    vai buscar as linhas narrativas que, sem o leitor poder sab-loainda, ho de orientar a topografia deste romance, apresentan-

    do-nos um narrador que regressa ao bairro depois de alguns

    anos fora, trazendo uma sensao de fracasso nos ombros e al-guma vontade de refazer caminhos do passado.

    Esta estrutura permite um passeio um pouco desorde-nado, no linear cronologicamente, por vrios tempos. Todepressa se est no incio da histria daquele bairro como se

    regressa ao tempo do narrador, e isso permitido pela pr-

    pria estrutura, que tem essa flexibilidade, acolhendo esses

    passeios cronolgicos no lineares sem que isso comprome-

    ta a unidade do texto. H uma unidade de tom, ou eu ten-tei que houvesse, que consegue suportar esses saltos tem-porais, que creio que tambm esto bem sustentados pelamemria, uma espcie de cola. a, no campo da memria,que surge a personagem de Virglio, dantesca na sua homo-

    nmia com o guia que acompanha Dante na Divina Comdia

    e tambm nessa funo, ainda que com as devidas distn-cias, porque o Bairro Amlia est longe de ser o Inferno. Aideia era ter um guia, sim, mas no propriamente entrar emcrculos infernais. H esse lado de deambulao, de passeio

    guiado por algum que conhece o stio, e isso tambm umartifcio literrio, claro, uma soluo para que aquilo que seescreve surja como homogneo e quem est a ler no sintademasiadas oscilaes de tom, ou que sinta que essas osci-laes fazem parte de um todo com sentido. Nesse aspeto,

    um passeio pelos espaos e pelos tempos, sempre com a me-mria como guia. Se o Virglio simboliza alguma coisa essamemria coletiva, as pequenas histrias mal contadas quese foram ouvindo, com verses contraditrias, e ele quaseessa entidade real de uma memria coletiva a que se recorrepara compreender aquela comunidade.

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    uando se comea a ler As Pri-meiras Coisas, os textos que vo

    surgindo alfabeticamente pare-cem configurar um catlogo de

    personagens. A ateno ao tex-to compensa, no entanto, comosempre, e essa ideia rapidamentese desfaz custa de uma estrutu-

    ra bem urdida e escondida no modo de contar as histrias,

    nas ligaes que se estabelecem entre pessoas e episdios,no impulso que vai crescendo de transformar aquelas entra-das num mapa. Os primeiros textos que escrevi surgiramcomo esto aqui no livro, mas a minha ideia nunca foi fazerum romance coral naquele sentido de aparecerem histriasque se vo cruzando umas com as outras at se juntarem

    e haver um desfecho. A ideia era que no meio de cada his-tria aparecesse uma referncia a outras e aquilo que fiz

    foi comear por esses pequenos textos, que eram uma es-pcie de laboratrio, cruzando histrias que conhecia comoutras que quis inventar. A dada altura tentei escrever umromance convencional, no sentido de ter uma linearidade,

    um tronco que sustentasse as histrias, narrado na terceirapessoa, mas senti que era falso. Chegava ali a vinte ou trinta

    pginas e percebia que estava a criar uma coisa artificial,que alertava constantemente para essa artificialidade. Co-

    mecei a perceber que para fazer justia a estas histrias es personagens que j tinha imaginado, as coisas tinham de

    surgir assim. E a questo era saber se eu colocasse apenasas histrias umas a seguir s outras, como entradas, o que que isto seria. Podia haver uma unidade de tom, mas algofalhava. Nessa altura, e j depois de falar com o Francisco[Jos Viegas], meu editor, percebi que precisava de um pr-logo que permitisse ao leitor aceitar esta ideia de dicionrio,

    entrar neste mundo. Quando j tinha o livro praticamenteescrito, comecei a escrever o prlogo, que eu pensava queteria meia dzia de pginas e acabou por se estender, por-que me pareceu que estava a fazer sentido assim; era uma

    boa maneira de entrar naquele mundo, com uma voz na pri-meira pessoa que conferia unidade s histrias que pare-

    ciam dispersas. A certa altura, tive de cortar o prlogo, e h

    quem o ache demasiado longo e quem ache que o prlogodevia ser o livro, inserindo as histrias. Mas o livro isto,tal como est, porque as histrias so a forma como tu ascontas, no existem de outro modo. A estrutura no umcapricho, no sentido de ser uma esperteza do autor, uma

    necessidade.

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    abendo que o Bairro Amlia se inspi-rou num bairro real, e que algumas

    personagens podem ter nascido domesmo processo, difcil resistir aessa leitura, bem como curiosida-de de saber at que ponto As Primei-

    ras Coisas no existiriam sem o Valeda Amoreira. Em alguns casos, foi

    isso mesmo que aconteceu e a personagem que aparece no

    livro resulta de uma observao, quanto a mim, muito fiel,de certas pessoas que conheo, mas a partir do momentoem que se escreve sobre uma pessoa, cria-se uma realidade

    autnoma e h um corte. Para mim, no so a mesma pes-soa, mesmo quando se mantm uma srie de caractersticas.Atravs da linguagem cria-se outra realidade, cuja validadeno depende da semelhana com a realidade que suposta-mente retrata. Isto vale para as personagens e para o bair-ro, claro. Uma das caractersticas do primeiro romance de

    Bruno Vieira Amaral o modo como mostra, sem esforo dedissimulao, as suas prprias costuras, o modo como se vaiestruturando enquanto romance. As notas de rodap quevo explicando ou baralhando, por vezes, mesmo, avisandoo leitor de que est perante uma fico, com outras fices

    dentro, ou as contradies entre a mesma histria contadapor diferentes personagens. De um certo modo, aquilo que

    uma caracterstica da escrita do autor pode ser tambm ummodo de assegurar algum distanciamento perante o terrenoescorregadio de uma literatura que nasce de uma realidadeassumida e identificvel. Funciona nos dois nveis, sim.

    um truque narrativo que acrescenta coisas, que permite mo-mentos de um discurso meta-literrio, e essa uma das coi-sas do livro que pode agradar ou no. Por um lado h uma

    realidade muito visceral, muito crua, realista (com todas asaspas), por outro h um plano que instala a dvida, um dis-tanciamento que podia ser brechtiano, de certo modo. Se ca-

    lhar era mais expectvel que me ficasse pelo primeiro plano,mas no era isso que queria fazer. Houve quem no tivessegostado desses recursos, das notas de rodap, por exemplo,mas a ideia no foi mostrar truques nem brincar ao ps-mo-dernismo, foi usar isso para criar um equilbrio. Estamos

    no incio do sculo XXI e j ningum acredita nessa ideiade realidade, simplesmente. Para alm de um artifcio li-terrio, isto tambm o que eu sou, o livro tem as minhasqualidades e os meus defeitos. Tem esse apego realidade,olhar as coisas que me so prximas e refletir sobre elas, etem a dimenso puramente literria, quase ldica, de jogo.

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    A advertncia ao leitor isso, como o so as notas de roda-p, e portanto no um artifcio, aquilo que eu sou. Adoro

    o Borges, o Cortzar, o Calvino, ento, estou dividido entreestas duas dimenses: a realidade interessa-me e quero queos meus livros falem sobre aquilo que vejo, sobre as pessoas

    que conheo, mas por outro lado no consigo impedir-me detrazer esse lado mais de jogo, de construo, de artifcio lite-rrio. Isso tanto pode agradar como no, mas uma misturaarriscada, acho. No entanto, o que eu sou. No fui buscarreferncias populares s porque sim; a referncia atriz de

    uma telenovela no foi nada forada, porque era uma coisa deque eu me lembrava, que fez parte do meu crescimento. Nome vejo fechado numa s dimenso do trabalho literrio.

    s Primeiras Coisas chegou slivrarias h dois anos. Coma atribuio do Prmio Jos

    Saramago, ter agora umanova vida, algo que poucos

    livros com dois anos con-seguem, no pelo que tra-zem dentro, mas antes pelo

    modo de funcionar de um mercado que acabou por se organi-

    zar de modo a conferir um prazo de validade, sempre curto,aos seus prprios objetos. Essa , no entanto, matria para asociologia do livro, e no tanto para esta conversa. Por agora,importa saber se Bruno Vieira Amaral tem algum livro entre

    mos. O que estou a escrever agora, comecei antes deste li-vro. O episdio do Joozinho Treme-Treme, que entra em As

    Primeiras Coisas, mais ou menos inspirado no homicdio deum primo meu, que ocorreu h trinta anos, l no bairro. Con-sultei o processo judicial, notcias que saram na altura, faleicom familiares. Na altura, tinha ideia de escrever uma coi-

    sa de no fico, mas depois a histria comeou a alargar-see comecei a descobrir coisas sobre a famlia que me fizeramperceber que teria de ser fico. difcil, porque a realidade to rica... Os nomes, por exemplo: a tia que criou esse meuprimo chama-se Isolina e eu no consigo imaginar um nometo bom para essa personagem, mas vou ter de conseguir.

    H coisas que so da vida das pessoas e que no quero for-

    ar, mas depois, h coisas que vou descobrir em livros... Porexemplo, descobri coisas sobre a vida desta minha tia numlivro chamado O ABC do B , de Jacques Arlindo dos San-tos, sobre o Bairro Operrio. Fala sobre a vida do bairro nos

    anos 50 e 60, entre outras coisas, e a dada altura estou a ler evejo o nome de Isolina, que tinha uma bote! E foi assim que

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    descobri isso, que no sabia. isso que estou a escrever, j hdois anos e tal, mas ainda no sei quando acabo. O livro ser

    isso, uma histria que comea naquele caso do homicdio. Oque eu queria era reconstituir a vida desta pessoa, o Joo Jor-ge, porque quase tudo o que sabia sobre ele era a histria da

    sua morte. Portanto, ser sobre ele, mas sobretudo sobre oprocesso de construo literria, como que partes de umapequena coisa para chegares ao livro, personagem. O JavierCercas disse numa entrevista, a propsito de O Impostor, queos testemunhos no so a verdade, so parcelas, so discur-

    sos. Os testemunhos acabam por ser contraditrios e querotrazer isso tudo para o livro, no quero que seja apenas umahistria sobre um crime. No fundo, quero questionar a cons-truo do processo narrativo.

    obre o Prmio Jos Saramago, Bru-no Vieira Amaral no esconde a im-

    portncia da distino, ainda quelhe relativize o peso no trabalho da

    escrita. H dois momentos: aqueleem que escreves, sozinho, sem queningum te valha; aquele em que olivro est fechado e publicado e em

    que pode haver leitores, crticas, prmios. O que aconteceneste segundo momento no me traz mais responsabilida-des em relao ao primeiro, porque uma coisa que j estfechada. Sei o que quero fazer a seguir e no sinto nenhuma

    presso por causa deste ou de outros prmios, at porqueno tenho um contrato, ou uma bolsa. Os prmios so paraeste livro, que est feito. Agora, claro que muda alguma coi-sa relativamente aos leitores, crtica, a eventuais jris deprmios, porque o facto de o livro ter recebido o Prmio JosSaramago e de isso j estar indicado nas livrarias altera o

    modo como as pessoas vo ler o livro agora, claro. Para omeu percurso como escritor, claro que altera as coisas, no-meadamente em termos de convites para ir a stios falar so-

    bre o livro. Isso at pode criar uma certa distoro, porqueas pessoas podem ir comprar o livro por causa do Prmio(o que bom para mim, como autor, claro), ou querer con-

    vidar-me para alguma coisa s por isso... Hoje exige-se de

    um autor que seja tambm um divulgador e isso eu conheobem, porque trabalho no meio. Essa uma vantagem nestesentido, no porque me renda favores, como tantas pessoaspensam, mas porque me permite perceber como as coisasfuncionam e, at, baixar as expectativas, porque sei que os

    livros em destaque so coisas que dependem do funciona-

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    mento do mercado. Depois, como cada um gere a exposi-o, depende de cada um, mas isso no salva ningum de

    crticas, boas ou ms. E, mais importante, nada disso tem aver com a escrita, nem com o livro que se escreveu. outracoisa. Trabalhando no meio editorial, concretamente comoassessor de comunicao da editora Quetzal, que integra o

    mesmo grupo que o Crculo de Leitores, cuja fundao atri-bui este prmio, no era possvel encerrar esta conversa semfalar no elefante no meio da sala...

    o a primeira vez que se ouvem,quase sempre em surdina, sus-peitas levantadas relativamenteao favorecimento de um autor

    que trabalha numa editora rela-tivamente a possveis benefciosno meio editorial. Neste caso,

    tudo se acentua e nada comoperguntar ao autor, sem rodriguinhos, como encara estescomentrios. Quando as pessoas querem elaborar teorias

    da conspirao... As coisas tm o valor que tm e h suspei-tas que podem fazer sentido e outras que tm que ver com oexcesso de imaginao e de ignorncia de algumas pessoas.

    Quando apresentei o Guia Para 50 Personagensda Fico Por-tuguesa Guerra & Paz, no tinha l nenhum amigo. Este

    livro,As Primeiras Coisas, fui falando dele ao Francisco [JosViegas] e quando o acabei, no podia public-lo noutro stioque no na Quetzal, porque foi o seu editor que me incenti-vou a escrev-lo. Claro que vai haver sempre gente a dizerque s o publiquei porque trabalho na Quetzal, mas esse um risco do qual estava consciente. No trabalho na Guer-

    ra & Paz e houve quem dissesse que s publiquei ali por-

    que sou do meio. Quanto ao prmio, no sei se o jri tinhaconscincia ou se tiveram em conta que podiam premiarum autor publicado por uma editora que pertence ao gru-po ao qual pertence a Fundao Crculo de Leitores. O livrofoi entregue para concurso como qualquer outro, de outra

    editora. E confesso que, pensando na hiptese de o livro serconsiderado para este prmio, pensei que esse dado pudesse

    jogar contra mim. Mas isto era a minha perceo, porque

    tudo o resto no passa nem passaria por mim. Se algumtem suspeitas de alguma coisa, dirija-se ao jri e questione.Se algum pode responder a essas dvidas, so eles e no

    eu; a mim atriburam-me o prmio e eu s posso aceitar eagradecer. simples.

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    27 anos depois, neste 3.o quartel do Sculo XX d. C, e muito

    tempo antes do fim do Sculo I d. F., sinto-me muito menos

    otimista do que me sentia quando estava a escrever o Admi-

    rvel Mundo Novo. As profecias feitas em 1931 esto a reali-

    zar-se muito mais depressa do que eu pensava.

    Aldous Huxley, Regresso ao Admirvel Mundo Novo

    FC enquanto gnero lite-rrio nasceu na Europa nosculo XIX, ligado a um

    fenmeno novo: a indus-trializao fomentada peloliberalismo econmico.A FC est, na prpria es-sncia, ligada tomada de

    conscincia das possibilidades que a tecnologia abre hu-manidade. Por isso, numa primeira fase, um gnero muito

    otimista em relao s suas previses, que tinham semprepor centro as grandes concentraes industriais, as cidadesmodernas. Mas Karl Marx, atravs do seu conceito de alie-nao, o primeiro a duvidar deste otimismo, prevendo quea tecnologia em vez de libertar o homem possa gerar o efeitooposto. O gnero entra assim numa prematura decadncia

    moral, o que era antecipao ou especulao tornaram-serealidade. Se bem que as fantasias de Jules Verne se mate-rializaram, o mesmo sucedeu com as negras parbolas de

    George Orwell e Aldous Huxley. no equilbrio destas duasforas criativas utopia e distopia que a FC mantm umadinmica premonitria que lhe tem permitido sobreviverat aos dias de hoje.

    No foi por acaso que o filme de FC nasceu ao mesmotempo que a bomba atmica e foi nesses filmes da idade at-

    mica em que se tomou conscincia de que a cincia ia deixar

    de ser fantstica para se tornar a espada de Dmocles sus-pensa sobre o mundo moderno. As dcadas entre os anos30 e 50 viram-na restringir-se ao universo da srie B King

    Kong, Godzilla ou qualquer sbio louco ofereciam reflexespouco profundas sobre a ambiguidade moral dos tempos

    modernos. Foi s em 1968, com o monoltico 2001, Odisseia

    no Espao, que o cenrio se altera. Atravs deste filme, a FC

    toma conscincia de algumas evidncias essenciais suanatureza: , acima de tudo, um veculo de novas formas depensar. Autores contemporneos como Phillip K. Dick (Bla-de Runner, Total Recall) ou J. G. Ballard (Crash) comeam aser alvo de adaptaes, provocando uma alterao de men-talidade dentro do prprio gnero. Por exemplo, Ballard, o

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    futuro era uma melhor chave do presente que o passado, ebastava olhar para o que iria acontecer nos prximos cincominutos para perceber o que estava a acontecer agora.

    TRAGDIA CIENTFICA

    You have to trust a scientist.

    primeiro filme a mostrar sinais

    claros de um paradigma em mu-tao foi o disaster movie sui gene-risde Lars Von Trier,Melancholia,

    do j longnquo ano de 2011 d. C.No fosse uma infeliz confern-cia de imprensa em Cannes e este

    poderia ter sido o momento maisalto da carreira do polmico cineasta. Melancholia um fil-me sobre um estado de esprito a depresso e Von Trier dos poucos deprimidos crnicos que conseguem conver-

    ter essa perturbao em motor criativo. Justine, a herona dofilme, sofre de depresso, e de certa forma convoca a vindade um planeta gigante chamado Melancholia para colidircom a Terra. Von Trier encena o fim do mundo como umatragdia romntica ao som de Tristo e Isolda, de Wagner. Asprimeiras imagens alucinatrias do filme do conta disso

    mesmo a Terra vai ser evaporada. O iminente apocalip-se visto a partir da intimidade da manso de uma famliaabastada, trazendo memria os apocalipses burgueses de

    Buuel, ou seja, o fim da vida do planeta uma real possi-bilidade mas todos parecem querer ignor-lo. Todos menosa personagem neurtica, Justine, que aparenta receber de

    braos abertos a possibilidade do choque com o objeto ce-leste, encarando mesmo a extino como uma bno.

    Nunca tendo sido um cineasta consensual, alguma crtica

    torceu o nariz quilo que chegou a considerar uma celebra-

    o do apocalipse. Trier limita-se a reconhecer um facto, que luz de eventos recentes parece cada vez mais irrefutvel, ouseja, a civilizao humana autocondenou-se. Num curto di-logo com a sua irm, Justine afirma que a Terra um planeta

    mau e que ningum sentir a sua falta. Nem a cincia esca-pa a esta crtica. A personagem de Kiefer Sutherland, cunha-do de Justine, amante da astronomia e o mais entusiasmado

    com o fenmeno celeste, suicida-se assim que se apercebe quea margem de erro para o desastre se confirmara, deixandoa sua famlia desamparada. Melancholia, ao invs de ten-

    tar recuperar o esprito humano indomvel perante qualqueradversidade, comete a heresia de sugerir uma aceitao des-se facto como ltima rstia de dignidade humana. A beleza

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    estonteante das suas imagens aponta para o conformismocomo ltima hiptese de redeno. A partir de agora, a FCter como ponto de partida este princpio e os filmes que seseguem preocupar-se-o com as alternativas que nos restam.

    BURACOS NEGROS

    Were not meant to save the world, were meant to leave it.

    hristopher Nolan um daqueles ci-neastas a quem a crtica bem-pen-sante gosta de apontar o dedo. O seu

    apelo comercial no combina com aimagem de artista que tenta passar.Os seus primeiros 2 filmes Me-mentoe Insnia parecem constituirduas pedras-base a partir das quais

    o seu cinema se foi desenvolvendo. Os labirintos percetivosdo primeiro refletem-se nas intricadas experincias como

    The Prestige ouInception, enquanto o noirdiurno do segundo amplificado nas ambivalncias do seuBatman. Uma coisa

    certa, Nolan no entende o entretenimento da mesma formaque Hollywood, ou seja, sem apelar inteligncia do especta-dor. E isso j no pouco.Interstellar, a sua primeira FC, umfilme com uma ambio kubrickiana que pretende nunca dar

    passos em falso em relao cincia contempornea. A suanarrativa est circunscrita nas diretrizes da cincia quntica,territrio onde tudo literalmente plausvel de acontecer.

    A Terra digladia-se com alteraes climatricas que estoa provocar o xodo de populaes rurais, cujas colheitas setornam incapazes de sobreviver. Matthew McConaughey um piloto convidado a participar numa misso que visa ex-plorar um buraco negro perto de uma das luas de Saturno.Este buraco abre em si a possibilidade de novos mundos ha-

    bitveis. Como diz o cientista interpretado por Michael Cai-

    ne: no suposto a humanidade salvar o mundo, mas simdeix-lo. O buslis da questo que o conceito de salvaoda humanidade diferente para a comunidade cientfica epara o terrqueo comum, personificado por McConaughey.Ele um dos escolhidos para prosseguir a aventura huma-

    na noutro local do Universo, abandonando a raa humanaao seu triste destino. Pergunta o filme: ser que o instinto de

    sobrevivncia suficiente para justificar a continuidade daespcie? Certamente que o estudo aprofundado de conceitosultra-complexos como universos paralelos ou singulari-

    dades pode conter em si as respostas prticas, poder desco-brir uma dimenso idntica nossa para onde nos possamosmudar, mas no encerra a questo moral.

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    M A D M A X : F U R Y R O A D

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    FRANKENSTEIN JR

    One day the A. I. s are gonna look back on us the same way welook at fossil skeletons on the plains of Africa... an upright ape li-

    ving in dust with crude language and tools, all set for extinction.

    nome Alex Garland esteve at2015 ofuscado pelo de DannyBoyle. Foi para o ltimo que Gar-land escreveu 28 Days Later, The

    Beach e Sunshine. Resolveu no anopassado assumir finalmente a re-

    alizao e voltar ao velho tema dainteligncia artificial, patente em

    filmes comoBlade Runner ouA. I. Ex-Machinanarra-nos umtringulo amoroso composto por cientista, aprendiz e in-veno. Nathan uma espcie de Dr. Frankensteinhipsterque vive isolado numa manso-laboratrio futurista num

    local remoto de uma montanha, onde desenvolve androidesexclusivamente femininos. dono de uma empresa respon-svel por um popular motor de pesquisa na internet, e con-vida um dos seus funcionrios, Caleb, a vir conduzir testespara provar se o seu ltimo modelo capaz de demonstrarconscincia. O filme tem poucos personagens mas levanta

    muitas questes complexas de uma forma bastante contun-

    dente. No final, Ava, o rob, torna-se humana quando a suansia de liberdade transcende a sua condio.

    No eplogo deA. I., projeto de Kubrick que Spielberg ter-minou, o menino-rob (Haley Joel Osment) encontradonuma cpsula milhares de anos aps a extino dohomo sa-

    piens sapiens, sendo ele agora a nica memria da civilizaohumana. Garland tambm olha para a inteligncia artificialcom este otimismo, insinuando mesmo que um futuro hi-

    pottico para a humanidade passa pelo desenvolvimento eaperfeioamento destes seres, uma verso melhorada do seu

    criador. Por outro lado, fica no ar uma acusao implcita deque a culpa da hipottica extino pertence mais ao campomasculino que feminino. Ex-Machina (tambm) uma par-

    bola sobre a solido do desejo masculino. Lembra aquela ane-

    dota em que um homem, sozinho numa ilha isolada, encontrauma lmpada com um gnio que lhe concede dois desejos. Asescolhas vo para uma mulher e outro homem, para lhe poder

    contar as suas aventuras sexuais. A personalidade de Ava programada a partir dos resultados dos motores de pesquisaque encerram em si os interesses e desejos padronizados do

    homem contemporneo, sendo a primeira FC do sculo XXIa focar o tema da vigilncia na internet, ecoando o escndaloque tornou o nome Edward Snowden famoso.

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    O ETERNO FEMININO

    One man, one bullet.profundando o tema do

    primado do cromossomaXY na responsabilidadepelo fim do mundo, estreiaem meados deste ano onovo Mad Max: Fury Roadou como alguns lhe cha-mam, Mad Max: Feminist

    Road. Os filmes cuja ao decorre num cenrio ps-apoca-lptico tornaram-se num subgnero da FC distpica. Geral-mente andam em torno de um cataclismo que substitui associedades contemporneas por vastos desertos, onde a es-cassa populao vive nas runas das velhas metrpoles com

    as condies de vida de um pas de terceiro mundo. O maisfamoso ttulo deste subgnero o australiano Mad Max, deGeorge Miller, filme que inclusivamente lanou Mel Gibsonpara o estrelato. O realizador deA Paixo do Cristo interpre-ta um polcia numa vingana contra os assassinos da suafamlia, um gangue de motards apocalpticos. Apesar de ter

    assinado duas sequelas, Miller nunca desistiu de voltar saga, mas o tempo que demorou a conseguir as condies

    que queria fizeram com que o projeto fosse mudando. Maxj no o centro do filme, apenas algum que se atravessa

    na ao do filme, desta vez centrada em Furiosa, desempe-

    nhada por Charlize Theron, uma guerreira roubada da suaoriginal tribo composta exclusivamente por mulheres (AsVulvalinas).

    Furiosa est determinada em derrubar o monstruoso ti-rano, Immortan Joe, que controla as reservas de gua. O te-

    souro que rouba a Joe composto por um grupo de mulhe-res, destinadas a serem parideiras do dspota. Miller poupa

    no CGI e abusa nas acrobacias reais que usou em toda a sriee o resultado fenomenal. um filme em movimento cons-tante composto na prtica por uma longa perseguio pelodeserto. Apesar disto, o que surpreende verdadeiramente

    neste filme o radicalismo do seu subtexto feminista. ParaMiller, aps o inevitvel cataclismo provocado pelo homem,e quando a luta for por gua em vez de por petrleo, ento melhor entregar o poder de volta s mulheres. Trata-sede uma regresso at tempos primordiais em que os seres

    humanos adoravam os elementos reais responsveis pelasobrevivncia da espcie. EmFury Road, as mulheres escas-seiam e os rapazes so usados como mrtires, por isso o fimdo patriarcado o nico caminho possvel para um novo

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    comeo. Qual foi a ltima vez em que se viram velhinhas a

    combaterem numa misso suicida?

    MACGUYVER EM MARTE

    Im going to have to science the shit out of this

    ais recentemente estreououtro blockbusterde FC assi-nado por um autntico pio-neiro do gnero: o britnico

    Ridley Scott. Da sua visonasceram duas obras-pri-

    mas absolutas,AlieneBlade

    Runner, que formam a con-tinuao lgica do caminho que 2001desbravara. Scott nose queria tornar num realizador exclusivo destas fices, e

    bem tentou fugir sua herana, mas so filmes futuristas

    que o pblico espera dele. Prometheusfoi o ttulo mais inte-ressante que lanou nos ltimos anos, e mesmo que dividaopinies, h muito que no se discutia a relevncia de algumfilme de Scott. The Martian Perdido em Martenasce de umairritao do realizador em relao verborreia cientfica de

    Interstellar, e por isso aceitou um projeto de FC para provar

    que era possvel fazer um filme srio sem ter de incluir lon-

    gos dilogos acerca de teorias qunticas avanadas.Matt Damon basicamente um Robinson Crusoe perdidoem Marte, mas que atravs dos seus avanados conhecimen-tos cientficos consegue sobreviver e provar que o espritohumano acabar por se impor. Damon nunca por um minu-to d mostras de se sentir abatido ou desanimado perante

    a sua iminente morte ou sequer preocupado em manter asanidade mental numa situao de solido espacial. Marte

    , segundo Ridley Scott, a prxima paragem e uma possibi-lidade de vida sustentvel fora da Terra. No entanto, o filmeno nega que a vida na Terra esteja em perigo, alis apontaMarte como uma soluo provisria, uma ponte para outras

    exploraes. A FC voltou a ser o melhor instrumento paraobservarmos o estado do mundo, e estes filmes oferecem ce-nrios cada vez menos fantasiosos. Voltando a Ballard: vi-

    vemos num mundo dominado por fices de todo o tipo. Vi-vemos no interior de um enorme romance. Para o escritor, cada vez menos necessrio inventar contedos, a sua funo

    agora consiste em inventar a realidade.

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    unca tinha estado em Lisboa. S conhecia a cidade pelos livros. Antes de viajar, decidiu reler Afirma Pereira, de An-tnio Tabucchi. Essa a minha Lisboa, confessa. Literatura e memria so duas palavras basilares para descreverSilvia Castrilln, uma bibliotecloga nascida em Medelln que j cumpriu meio sculo de carreira como bibliotecria.

    O seu pensamento confunde-se com associaes de promoo da leitura e o seu iderio sempre a conduziu a defenderpolticas de acesso cultura escrita. Com 73 anos, Silvia Castrilln esteve em Portugal a participar no Seminrio Inter-nacional Educao, Leitura, Literatura, organizado pelo Folio Educa no mbito do Folio, Festival Literrio de bidos.Neste momento, comunicar e cruzar experincias de terreno o que ocupa grande parte do seu tempo. A sua obrasobre promoo da leitura, polticas de leitura pblica e modelos de bibliotecas pblicas e escolares muito vasta,

    destacando-se o ttuloO Direito Leitura e Escritacomo um dos mais conhecidos em toda a Amrica Latina, incluindo o Brasil.Quando nos encontrmos na baixa de Lisboa, Silvia tinha acabado de chegar de bidos, depois de algumas peripcias na viagem.

    Conversmos nas nossas lnguas maternas, porque considera que no faz sentido que portugus e espanhol no se compreendam mu-tuamente. Parece uma atitude de somenos importncia, mas no o . sobretudo uma ponte que convida a um trabalho de partilha,no terreno. Diz Silvia que Portugal vive uma iluso curiosa: considera-se do primeiro mundo, e no o . Por isso, teria muito a ganharcom uma aproximao Amrica Latina, pelas semelhanas estruturais que encontra e a lngua mais no que a sua principal arma.

    Lembra-se da primeira biblioteca que viu?

    Sim, recordo-me. Foi na escola, mas no nos primeiros anos da escola primria. Tive a melhor biblioteca que uma criana podeter. Claro que j vinha com o gosto pela leitura porque o meu pai era muito bom leitor e todos os meus tios tinham uma biblioteca

    especializada de acordo com as suas habilitaes.

    Especializada?

    Sim, uma em matemtica, outra em histria... E eu tinha acesso a todas. Por isso j vinha com gosto pela leitura. Ento encon-trei na biblioteca do colgio o que hoje raramente se encontra numa biblioteca. Fico sempre desiludida nas bibliotecas escolaresporque as colees so muito pobres.

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    Em qualquer parte do mundo?

    Sim. Nos EUA, por exemplo, so melhores, tm alguma tradio. Em toda a Amrica Latina as bibliotecas escolares moderni-zaram-se e muitas transformaram-se em excelentes bibliotecas, mas existe um certo temor pelo livro e pela palavra escrita, ento

    parece que se no introduzirem as novas tecnologias no vo atrair a ateno das crianas.

    Isso pode produzir rudo e desviar as crianas da leitura?

    Desde h algum tempo que no h espaos que convidem ao recolhimento e esse um dos inimigos da leitura: a impossibili-dade de prestar ateno, de concentrar-se. No espero que todos os espaos pblicos o faam, no. Mas h espaos pblicoscomo a escola e a biblioteca que deviam prestar ateno ao tema do silncio. O silncio fundamental para concentrar a ateno.Sem ateno e capacidade de concentrao no h possibilidades de leitura. De um tipo de leitura. Porque h leituras e leituras.

    Mas h uma leitura a que um professor brasileiro muito bom, que recomendo muito, Percival Britto, chama leitura escassa. E agoraacabo de ler um livro maravilhoso que gostaria de promover por todos os meios, que se chama Elogio del Papel, Contra El Colo-nialismo Digital, do italiano Roberto Casati, que investigador do Centro Nacional de Investigao Cientfica em Frana, e nesselivro ele fala da leitura profunda. o mesmo conceito de que fala Percival. a leitura que busca sentido, que est mais associadaao conhecimento, mas no ao conhecimento cientfico que agora se considera ser conhecimento; no ao conhecimento social. Oque isso de conhecimento social? Ao conhecimento de si mesmo, do outro, da relao. Essa leitura acontece fundamentalmentecom a literatura e essa a literatura que me interessa que se promova. Mas tambm a filosofia, a histria, outras coisas.

    Como lhe surgiu o interesse em estudar biblioteconomia?

    Quando me surgiu esse interesse o meu pai disse-me: No deves estudar bibliotecologia porque s uma boa leitora e os biblio-tecrios no so bons leitores. Perguntei-lhe: Como assim? Ele tinha um ponto de vista razovel: como os bibliotecrios tinhamde se ocupar de uma parte tcnica ia ser muito frustrante. Agora a verdade que os professores e os bibliotecrios no so bonsleitores. E no tm culpa, porque a sociedade no lhes deu a possibilidade de entender o que significa a leitura.

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    Esteve na criao da rede de bibliotecas pblicas da Colmbia?

    Isso est no meu currculo e no entendo porqu. Trabalhei muito com as bibliotecas pblicas, desde que iniciei a minha car-reira. Parece-me que a biblioteca, em conjunto com a escola, so os espaos pblicos da leitura. So os nicos espaos que a

    sociedade tem para garantir que todos os cidados possam aceder leitura e cultura escrita. Bom, preciso explicar o que isso da cultura escrita. Creio que podemos falar de um lar.

    Um lar como lugar onde se forma o leitor?

    Sim. A minha casa foi um lar. Mas no creio que na maioria das casas haja essa possibilidade. Ento a escola tem de tomarconscincia disso e fazer o que o lar no faz. No quer dizer que a culpa esteja em casa, no est. A leitura algo mais social,no tanto uma coisa individual. individual porque ls sozinha, desfrutas sozinha, isolas-te e aos leitores agrada-lhes estaremisolados do resto do mundo. Mas a leitura um bem social que se alcana socialmente.

    Se a leitura for apenas um hbito social perde a componente individual?

    No, no perde. Aquilo em que acredito que o gosto pela leitura, ou a necessidade de ler, como lhe quiserem chamar, mais fcil de adquirir em grupos onde se l e se conversa, se discute, se escreve sobre o que se l. Creio que os grupos so fun-damentais e nisso sou muito freiriana, estou muito prxima do pensamento de Paulo Freire. Em grupo h espao para se partilharas debilidades que cada um tem em relao leitura, as angstias, a incapacidade de entender algo, ou verificar que h outraspessoas que pensam de outra maneira, ou da mesma...

    A Silvia prefere chamar grupo e no clube de leitores. Porqu?No quero que se d leitura a conotao de que fcil, uma diverso, uma tertlia. Para nos divertirmos...

    Mas esse o discurso que mais vezes acontece agora...

    Exatamente. Por causa da insegurana e do medo que temos perante o poder que a literatura tem de convocar as crianas afazerem um esforo. Se s um desportista tens de fazer um esforo enorme para escalar o Everest: uma quantidade de privaes,

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    sacrifcios, treinos, dietas... Mas fazes com gosto. Ento, associar a leitura recreao, animao que est to na moda, aanimao da leitura , no permite que as crianas descubram a verdadeira natureza da leitura. A sociedade atual est sempre apropor o que fcil. H uma condescendncia enorme com a infncia e a juventude, ningum quer arranc-los do que j sabem

    fazer no seu quotidiano.

    Se vivemos hoje numa sociedade em que o entretenimento tem frmulas de consumo muito rpido, como podem as

    bibliotecas competir com isso?

    As bibliotecas tm muito medo de no atrair a ateno da sociedade, ento apresentam, em termos que no me agradam,um porteflio de servios que inclui tudo, sobretudo o que seja divertido porque consideram que assim vo atrair a ateno daspessoas. Eu considero que isso tem sido contraproducente para as bibliotecas porque h espaos mais adequados para a msicae para a pintura, mas em contrapartida no h na sociedade nenhuma outra entidade, sem ser a escola, que oferea o acesso cultura escrita. Se se mostra como diverso, a biblioteca perde identidade porque a no haver nada de especfico na bibliotecaque a distinga das demais.

    Como que a biblioteca, assumindo essa identidade contrria ao entretenimento, garante pblico?

    um crculo vicioso. Para garantir pblico preciso form-lo. Primeiro h que reconhecer que a biblioteca tem esse trabalhode formao to importante como a escola, de formao do ser humano, da capacidade crtica, do conhecimento das obras eda literatura e que essa formao s acontece a longo prazo. Se no comearmos agora nunca teremos esse pblico. Para alm

    disso, h um mal-entendido no que consideramos que agrada e no agrada s crianas e aos jovens.Como assim?

    Todos pensamos que as crianas no gostam de ler e mentira. Se comeas a fazer um trabalho sistemtico de grupos de lei-tura com crianas e jovens, separados ou juntos, e se eles leem no precisam de ser sempre eles a ler em silncio, podes ler emvoz alta, podem intercalar livros que lhes abram a possibilidade de pensar em si mesmos e de serem capazes de expressar em

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    palavras o que lhes ocorre, e de o expressarem tambm em linguagem simblica, o que pensam, o que sentem, as suas angstias,os seus temores, ento percebes que gostam de ler e pensar sobre o que lem.

    Como que o mediador que acompanha os grupos sabe que esto a gostar e esto a evoluir? sempre possvel saber?Sim. Se refletir continuamente sobre o que acontece, saber. O problema que a sociedade atual no permite que haja tempo

    para isso porque necessita de resultados imediatos.

    Quem que necessita?

    As administraes, as entidades que financiam as bibliotecas. Querem saber as estatsticas do comportamento do leitor, medi-loquantitativamente.

    Para qu?Para as poderem apresentar num papel, por razes polticas. Assim podem dizer que o governo aumentou o nvel de leitura de

    trs para quatro livros por habitante, por exemplo. o mesmo que o PISA.

    Na Colmbia tem havido dois tipos de gesto das bibliotecas, a pblica e a privada. Quem deve gerir as bibliotecas?

    O Estado, absolutamente! A biblioteca uma instituio pblica e para que possa manter o seu carcter pblico tem de sergerida pelo Estado. Temos esse problema na Colmbia, onde h uma orientao cada vez maior no sentido de se privatizarem asbibliotecas. um desastre!

    Como se privatiza uma biblioteca?

    H uma maneira muito subtil de privatizar que no parece uma privatizao: a concesso. O poder pblico anuncia um con-curso com um edital e apresentam-se vrios proponentes privados que se camuflam de tal forma que no paream, embora sejam,totalmente privados.

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    Por exemplo, uma associao?

    Sim. H umas instituies, na Colmbia, que se chamam Caixas de Compensao Familiar. Estas Caixas funcionam de acordocom uma lei que determinou que as empresas privadas deem uma parte para a cultura e outras coisas.

    Foi assim que se fizeram algumas bibliotecas em Medelln, no?

    Sim, muitas. Lindas, todas. Mas trata-se de um critrio privado, paternalista e onde o que prevalece a ideia de favor, da bene-ficncia: Ns oferecemo-vos isto. o dinheiro dos trabalhadores! Do as orientaes que querem, na maioria dos casos muitoconservadoras. No querem a biblioteca, como defendo, como espao de debate pblico e poltico, de discusso dos problemasfundamentais da sociedade, alimentando-se da leitura e da escrita.

    Estas bibliotecas so ento lugares de entretenimento?

    Sim. Quando muito de acesso informao. Mas que informao? Fragmentada, a informao propriedade privada dosgrandes consrcios, no a informao que serve para atuar junto de pessoas que vo votar numa eleio ou para os estudantesse formarem.

    Ainda presidente da Asolectura?

    A Asolectura acabou. uma pena. Aconteceu por razes polticas mas tambm porque me cansei um pouco e os jovens que me su-cederam no quiseram assumir a responsabilidade de uma instituio que requer angariar dinheiro e outras coisas. No nada fcil.

    O que foi a Asolectura?A Asolectura aparece quase ao mesmo tempo que a Fundalectura. Esta em 2000, a Asolectura em 2002, 2003. E trabalha-

    vam de maneira paralela, juntas. Porque se complementavam. A Fundalectura trabalhava com a indstria do livro para que estacontribusse para um programa de promoo da leitura. Isso conseguiu-se e continua a acontecer. Se pensarmos num trip, aFundalectura era um dos ps: levar a indstria editorial, grfica e livreira a promover leitura. O outro p era o Estado com as suas

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    bibliotecas pblicas e com a escola. Faltava algo que era como se organiza e participa a sociedade civil em defesa desse direitode ler e escrever. Isso foi a Asolectura. Tudo o que se fez no acabou, h muita gente que continua.

    De que forma que a Asolectura envolvia a sociedade civil?A Asolectura fazia dois tipos de coisas. Em primeiro lugar, organizao de conselhos municipais e locais de leitura, onde seencontravam grupos de pessoas para debater polticas que permitissem o acesso de toda a populao leitura e cultura escrita.Simultaneamente, criaram-se espaos de leitura, onde as pessoas pudessem descobrir o sentido que a leitura realmente tem. Amaior parte das pessoas que ali iam inicialmente j eram leitores.

    Eram as mesmas pessoas que participavam nos grupos polticos?

    Sim, eram as mesmas. A Asolectura tinha ao mesmo tempo um grupo de leitura e um conselho poltico de leitura, com as mesmas

    pessoas. Do ponto de vista poltico, pretendia-se melhorar as escolas, a formao dos docentes e pressionar as autoridades nessesentido. Melhorar no apenas as condies fsicas das bibliotecas mas tambm as condies de tempo e de silncio para ler.

    Mas ao mesmo tempo esses grupos sentam-se a ler e a conversar sobre o que leem e no se cingem apenas literatura. Leemensaios sobre leitura.

    E depois essas pessoas formam outras pessoas que integram os grupos?

    Exatamente, maioritariamente professores e bibliotecrios, e muitos jovens universitrios. Esses jovens comearam depois a for-mar outros grupos nas suas comunidades.

    Podemos dizer que a sociedade civil funcionou?

    Sim, funcionou. Creio que precisa de mais apoio sistemtico e econmico para continuar. H muitas pessoas que agora traba-lham nas bibliotecas e que se formaram nesses grupos.

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    E agora, que a Asolectura acabou?

    O projeto acabou mas os grupos continuam a funcionar nas suas comunidades, nas escolas e nas bibliotecas de cada comunidade.

    E o que ficou por fazer?Continuar a fazer. Continuar. um projeto que poder sempre ser recuperado e continuado. Mas cabe aos jovens a vontadepoltica para o fazer.

    Quais eram os seus principais objetivos quando fundou a Asolectura?

    Que se formulassem polticas pblicas de leitura e de escrita, tanto a nvel nacional como local. Considervamos que isso noaconteceria sem uma organizao da sociedade civil que dissesse o que era preciso. Mas tambm estvamos conscientes de que asociedade civil no tem noo da necessidade de leitura. Da a importncia dos grupos. Agora importante perceber que aceder

    cultura escrita no s promover leitura, tambm promover escrita.

    Sobre leitura?

    No, sobre tudo. Escrita como possibilidade de organizao de pensamento, de formao do sujeito que poder dizer: Estesou eu, digo isto e digo-o por escrito. importante que as pessoas expressem o seu prprio pensamento porque este pode con-trariar o pensamento hegemnico, o pensamento do poder.

    A cultura escrita est em risco?

    Talvez sim. Pelo menos a parte da cultura escrita que trabalha com o pensamento e que essa tal leitura profunda, a leituraescassa. Pode-se pensar sem ter acesso leitura e escrita mas esse pensamento carece da possibilidade de acumulao da sabe-doria que se transmite pela leitura e pela escrita. Pode ser que a tradio oral transmita algo, mas num universo muito fechado.

    O papel da tradio oral perdeu-se?

    O oral j no se manifesta como se manifestava antes, em algumas comunidades, como transmisso de sabedoria.

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    A B I B L I O T E C R I A M I L I T A N T E D A C U L T U R A E S C R I T A

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    importante recuperar essa transmisso oral da sabedoria?

    Sim. Mas a leitura ajuda a essa transmisso. Neste momento no se pode prescindir do escrito para essa transmisso oral.

    Como se cria num cidado a necessidade de ser um cidado crtico e consciente se o cidado no sente essa necessidade?Lendo e escrevendo. Acredito que essa a nica maneira de formar um cidado crtico, um cidado que consiga distanciar-se.Isso muito importante. uma condio fundamental do leitor para poder ver.

    Qual o perigo para a sociedade se a cultura escrita desaparecer?

    espantoso. o perigo de perder a possibilidade de pensar.

    Que projetos tem?

    Cultivar o meu jardim, que tenho um muito bonito! Continuo a pensar que muito importante estabelecer relaes. Quandopenso no que quero fazer isso, estabelecer redes de trabalho conjunto entre pases e pessoas. Convidam-me muito para ir aoBrasil e Argentina. Vou e converso com as pessoas. Isso vou continuar a fazer. Isso o que forma a teia.

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    DICIONRIO

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    WolpertingerCriatura fantstica que acompanhao imaginrio das crianas

    europeias. Segundo a tradioAlem, este animal originriodas margens do rio Danbio naBaviera, sendo o resultado docruzamento entre um pato, umlobo, um veado e um castor. Entrens conhecido como Gambozino,tendo sido identificado em diversaszonas lacustres do nosso pas.Alguns estudiosos afirmam que

    o animal migra para terras lusasdurante a invernia.Ir caa dosGambozinos expresso quedefine antropologicamente o actode captura deste ser, efetuado noite, em equipa, com ajudade candeias, um pau e um sacode serapilheira. Este mtodocinegtico idntico ao utilizadopelos folies da Oktoberfest nabela cidade Bvara de Regensburg,

    muito similar s expediesefetuadas nas margens do riogueda, por altura das festividadesde S. Martinho.

    Miguel Horta, mediador de leitura,

    escritor, pintor e ilustrador

    DICIONRIO L I T E R A T U R A I N F A N T I L E J U V E N I L C O S T A

    or e e ura,

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    tradiooriginrioanbio naltado dopato, um

    castor. Entreo Gambozino,o em diversassso pas.mam que

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    Regensburg,

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    Wolf ErlbruchNas histrias infantis existem dois lobos

    muito populares. Wolf , simultaneamente,o termo ingls que designa o nome comumde um e o nome prprio, em lngua alem,do outro. Um, vulgarmente adjetivado debad (mau), o outro apelidado de Erlbruch.O primeiro, todos conhecem, o segundo,conhecem-no todos os que se interessam porliteratura e ilustrao. Ilustrador e designergrfico alemo, nascido em 1948, tem umaobra de caractersticas nicas. Podem estasser o uso de papel quadriculado, pautadoou antigas tabelas de contabilidade, papelreciclado de um tom azul esverdeado (diriamesmo, azul Erlbruch, como Klein tem o seu),figuras recortadas, previamente traadas emlinha fluida e segura, com gestos e posturasexpressivas, enquadradas em planos semprofundidade, formando composiessimples, eficazes e originais. Entre muitosoutros, autor de um dos mais belos livrossobre a morte, O Pato, a Morte e a Tlipa.

    com um facies feliz, semelhante ao dosenhor K, figura serena e complacente, queme deleito, surpreendo e mesmo emocionoperante as belssimas imagens deste grandeilustrador.

    Teresa Lima, ilustradora

    ESPELHO MEU

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    Antes, DepoisAnne-MargotRamstein,Matthias AreguiGATAfunho

    ESPELHO MEU/ A N D R E I A B R I T E S C O S T A

    Antes, Depoisvenceu no passadoms de maro o Bologna RagazziAward na categoria de NoFico. Agora chega a Portugalcom a chancela da Gatafunho.Este livro sem texto umcompndio metonmico emque o tempo tem um papelcentral, logo destacado nottulo, nico elemento textualpresente. No h, por isso,

    nenhum suporte para aclararqualquer sentido que no sejavisual, assente no desenho. pouco comum e claramenteintencional, j que haveria essapossibilidade clara, recorrendoa etiquetas, na garrafa do leite,na tablete de chocolate, numaeventual legenda esttua...Tudo se desvenda e relacionaapenas e to-s pela imagem.A proposta aparentementesimples: apresentar dois cenriosmediados por uma qualquerinterveno que determinao antes e o depois. Aconteceque a partir deste exerccio aspossibilidades multiplicam-se.A mudana das estaes altera

    o quadro natural, assim como anoite e o dia, na sua sucesso,

    fazem do cu claro ou escuro. Otempo tambm o responsvelpelo abandono de uma casa,primeiramente com o jardimcuidado, um baloio na rvore ea sua cerca e depois com ervasa crescerem desordenadamenteentre troncos quebrados, fendas

    nas paredes, portadas tombadase um buraco no telhado. O

    tempo pode ser lento ou clere,e at subjetivo. Quanto tempodemoramos a ler este livro? Se noincio a areia da ampulheta aindaest na parte superior, na ltimapgina desceu na totalidade paraa parte inferior. Contudo, essetempo de leitura que o livro nos

    ESPELHO MEU

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    oferece no ser certamente igualpara todos.Do que nos lembramos? O querelacionamos? Como observamoso mundo?H o mundo natural e o mundoartificial; h a matria-prima e aobra criada, seja o quadro ou aescultura; h os ingredientes e o

    produto final e o produto final quese transforma em inicial quandolhe sucedem apenas vestgios(falamos de um bolo).H o crescimento, a construo,a destruio. H a cadeia derelao: a pena da pomba queserve para escrever mergulhadana tinta que podia ser a do chocoe que substituda pela mquinade escrever que serve para enviar

    mensagens, inicialmente atravsde um pombo-correio, depoispor carta (com a imagem de umpombo no selo postal). Tambma ovelha d a l que se transformanum novelo, trabalhado comagulhas num bailado de pontos

    que finalmente acabam na cabeade uma criana que brinca na

    neve. E quando h neve corta-selenha para acender a lareira e dachamin sai um fumo cinzentoque contrasta com o branco docu. Inevitavelmente, chega aprimavera e com ela a cegonhaj pode usar o topo mais alto

    daquela casa para fazer o ninho. a descrio perfeita da

    metonmia, a sua multiplicidadede relaes que ultrapassamem muito a lgica da partepelo todo ou da relaodeterminista de causa-efeito.Da perspetiva da lingusticasaussuriana, a metonmia a

    principal caracterstica do eixosintagmtico, aquele que constituia frase e, do ponto de vistaliterrio, a narrativa, por oposioao eixo paradigmtico que acolhea metfora e, inevitavelmente,a poesia.Antes, Depois constriprecisamente uma narrativasem fim, que se alicera numa

    delicadeza cromtica e numtrao detalhado e descritivo.As perspetivas no provocamsurpresas, antes mostram clarae frontalmente o que existe,sempre em comparao. Podeacontecer lado a lado, entrepgina mpar e par, e em pginasduplas sucessivas, obrigando auma ateno permanente. Por issonesta obra aberta, tambm cabem

    a Cinderela, Os Trs Porquinhosou Godzilla. um elogio plstico observao do mundo, narraoe materialidade da maiorabstrao que a humanidade crioue alimenta: o tempo.

    NOTAS DE RODAP

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    Balanolbuns no NewYork TimesCom o aproximar do final doano, comeam a aparecerbalanos literrios e editoriaisnos peridicos. O New YorkTimesadiantou-se e no final deoutubro publicou, nas pginasdedicadas ao livro infantil, alista dos dez melhores lbunsde 2015, publicados nos EUA. Ojri convidado escolheu estilose temas distintos, assim como

    autores dos dois hemisfrios.Dos dez ttulos, apenas FloresMgicasse encontra disponvelem Portugal, com a chancela daLivros Horizonte. Assinalam-sedois aspetos nesta seleo: porum lado a presena forte dano fico com trs biografias,duas das quais relacionadas coma Torre Eiffel, e por outro umarelao prxima com a realidadecontempornea escala mundial,da qual o lbum The Only Childda ilustradora chinesa Guojing exemplo maior.

    "l

    FolioRoger Mello ementrevistaPor ocasio da sua participaono Folio, o festival literrio debidos, Roger Melo conversoucom a jornalista Rita Pimenta,para o jornal Pblico. O ilustradorbrasileiro, distinguido com oprmio Hans Christian Andersen,defendeu a despragmatizao daliteratura infantil e assumiu queno escreve a pensar nas crianasem geral, como se de um leitor

    ideal e homogneo se tratassem.A sua preocupao criativaprincipal centra-se na produoartstica e no contributo que querdar para a formao do leitorcrtico. No distingue a palavrada imagem e opina sobre a lnguaportuguesa. Para alm das suasilustraes e da sua pres


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