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Blog de Papel - 2ª Edição

Date post: 31-Mar-2016
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Jornal da Faculdade de Jornalismo da ESPM-Sul
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Voltas O acaso alterando vidas: 18 histórias que se reinventaram a partir do inesperado Jornal da Faculdade de Jornalismo ESPM-Sul Edição 2 Porto Alegre Dezembro 2012 Venda Proibida ESPM-Sul
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1www.espmblogdepapel.blogspot.com.br

Genis experfe rferRepelenis molorehent, ommo ommo bear-

um haritat volore nim custiis nihilit facest, et magnient vidipsum voluptae niani.

VoltasO acaso alterando vidas:

18 histórias que se reinventaram a partir

do inesperado

Jornal da Faculdade de Jornalismo ESPM-Sul

Edição 2 Porto Alegre

Dezembro 2012Venda Proibida

ESPM-Sul

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2 www.espmblogdepapel.blogspot.com.br

JORNAL BLOG DE PAPEL é uma publicação semestral dos alunos do curso de Jornalismo ESPM-Sul na disciplina de Oficina de Redação I. DIREÇÃO DA FACULDADE DE JORNALISMO: Prof. Dra. Janine M. P. Lucht. Equipe da Edição Nº 2 (Agosto/Dezembro de 2012): TEXTOS: Amanda Cristina Treter, Camile Brufatto Fornasier, Carolina Allegretti Pascuetti, Danilo Pedrazza, Felipe Braun da Silva, Gabriela Kliemann Dias, Guilherme de Moraes Thofehrn, Lauren Graef Dutra Camargo, Lucas Guimaraes Abati, Lucas Witkoski Brolezi, Mariana Brito Ceccon, Marthin Manzur Weindorfer, Matheus Dornelles Pandolfo, Rhea Carolina Hickmann Ribas, Roberta Lage Santiago, Thamara Marques Riter, Valeska Linauer, Vicente Fiametti Lütz. Coordenação de Conteúdo: Profa. Me Patrícia Specht. Coordenação do Design Editorial e Produção Gráfica: Profa. Carolina Fillmann. Criação do nome do Jornal Blog de Papel desenvolvido por Micaela Ferreira e Richard Koubik e projeto gráfico por Eduardo Diniz e Marcos Mariante. Nossos contatos online: www.blogdepapel.blogspot.com - email: [email protected] ESPM – Sul – Rua Guilherme Schell, 350 e 268 - Santo Antônio - Porto Alegre - RS, 90640-040 - (0xx)51 3218-1300.

Impressão: Gráfica Odisséia - Tiragem: 1.000 exemplares.

Às vezes, a gente volta porque precisa. Outras vezes, porque quer. Às

vezes, voltamos para o mesmo lugar, a mesma pessoa, o mesmo país. Mas nunca voltamos iguais. Foi isso que a turma do segundo semestre do curso de Jornalismo da ESPM-Sul descobriu ao mergulhar na vida de pessoas (e de um clube) que fizeram (ou ainda tentam fazer) o caminho de volta. São trajetórias reinventadas diante do inesperado, eis o que descobrimos e revelamos nesta segunda edição do Blog de Papel. Nova chance para viver com saúde, com o marido, com a amiga de longa data, com os colegas, com a lucidez. É claro que voltas indesejadas também apareceram pelo caminho e estão nas páginas seguintes: Larissa voltou a ficar sem pai, Adilso voltou a ficar cego, Sabrina deixou para trás um trabalho comunitário do qual se orgulhava.Voltas que as vidas protagonizam. E que mudaram também uma turma de Jornalismo. Ninguém volta de uma pauta como essa do jeito que foi. Boa leitura. Profa. Patrícia Specht

VOLTAS

Inez e os filhos Por Matheus PandolfoPág. 03

Tereza e o sorriso Por Amanda TreterPág. 04

Tânia e o álcool Por Roberta Santiago Pág. 05

Victor e os amigos Por Carolina HickmannPág. 06

Fabiany e a maternidade Por Carolina Allegretti PascuettiPág. 07

Adilso e a visão Por Mariana CecconPágs. 08 e 09

Brasil de Pelotas e as mortes Por Lucas AbatiPágs. 10 e 11

Bernard e o Nazismo Por Gabriela Kliemann DiasPágs. 12 e 13

Irene e a família Por Marthin ManzurPág. 14

Lucas e a escola Por Thamara RiterPág. 15

Sabrina e a África Por Guilherme ThofehrnPág. 16

Bruno e a leucemia Por Camile FornasierPág. 17

Larissa e o pai Por Danilo PedrazzaPágs. 18 e 19

Enrico e o pânico Por Lauren Graef CamargoPág. 20

Guilherme e o skatePor Vicente LützPág. 21

Elenir e Nara e a amizade Por Valeska LinauerPág. 22

Pedro e o câncer Por Lucas BroleziPág. 23

Maurício e o futebol Por Felipe Braun da SilvaPág. 24

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PELOS FILHOS

MATHEUS PANDOLFO

Readaptar-se à cultura local, criar seus filhos e montar um negócio foram os prin-

cipais desafios de Inez Aso na volta ao Brasil, em 2003, após 14 anos no Japão. Ela deixou o país com o so-nho de conhecer a terra de seus avós e voltou com o desejo de promover um futuro melhor para a família que construiu na Terra do Sol Nascente. Um futuro que ela ainda luta para tornar realidade.

No período em que morou fora, Inez trabalhou em três empresas de desenvolvimento de software, morou em cinco cidades diferentes, acostu-mou-se com os constantes terremo-tos, apaixonou-se, casou-se – com um brasileiro, também descendente de japoneses – e engravidou.

Aska, seu primeiro filho, aca-bou definindo a volta da família ao Brasil no momento em que entraria para a escola, aos seis anos.

– Eu não imaginava meus filhos sendo educados no modo rígido dos

Apesar das dificuldades enfrentadas ao recomeçar a vida em família no Brasil, ela não se arrepende de ter trocado novamente de pátria

Inez voltoudo Japão

japoneses. Escutavam-se histórias de crianças com 12, 13 anos se sui-cidando porque perderam uma pro-va, porque chegaram atrasadas. Para mim, isso não é vida – explicou Inez.

Quando desembarcou no Brasil, em 2003, entre as várias mudanças percebidas no país natal, a que mais chamou a atenção de Inez não foi positiva:

– Me assustaram muito as gra-des nas casas. Eu imaginei que isso aqui tinha virado uma prisão, todas

as casas tinham grades, cercas elé-tricas. Para mim era inimaginável, porque na época em que eu saí não era assim, bastava um muro.

De início, a família ficou insta-lada no sítio onde morava com seus pais, em Viamão. Posteriormente, com as economias feitas no exterior, ela e o marido compraram um apar-tamento na zona norte de Porto Ale-gre, próximo a um parque. Compra-ram também um negócio, uma loja de suprimentos de informática no Centro. Entretanto, devido à inex-periência do casal na administração, somada a um mercado competitivo, a empresa acabou fechando. Mesmo assim, Inez não desistiu. Comprou outra loja, desta vez de materiais escolares, junto a um hipermercado. Só que o casal foi enganado: ad-quiriu uma firma falida, que já en-frentava inclusive um processo de despejo.

– Quando o oficial de justiça veio, eu já tinha comprado todo o material de volta às aulas, o Natal já estava negociado. Com alguns fornecedores

eu até consegui reverter, mas, mesmo assim, foi um investimento perdido.

Hoje, Inez continua lutando por uma vida melhor para a família, atu-ando como corretora de imóveis.

– Já que tenho quatro filhos, não procuro emprego com horário fixo, porque assim posso atendê-los quando precisam – afirmou Inez.

Apesar de todas as dificuldades enfrentadas nesta volta, ela não se arrepende de nada:

– Meus filhos estão bem, tenho melhor qualidade de vida, melhores oportunidades, embora hoje esteja passando por dificuldades financeiras.

« Eu não imaginava meus filhos sendo educados no modo rígido dos japoneses».Inez Aso

Inez e o marido Yukio (primeiro casal da esq. para a dir.), em visita ao vulcão

Sakurajima, com colegas de trabalho

Inez e o marido cercados pelos filhos no dia do nascimento de

Kuki, em 2009, já no Brasil

Inez e os filhos Aska ( esq.) e Ayla, em um parque do Japão

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Tereza não deixou APESAR DO CÂNCER

Com a ajuda da família, a Rainha da Melhor Idade do Rio Grande do Sul superou a perda do marido e uma doença grave sem deixar de lado a alegria, sua marca registrada

AMANDA TRETER

Uma única volta não é sufi-ciente para contar a história de Tereza Maria Schmitz,

a hamburguense de 65 anos que en-frentou o câncer do marido e o pró-prio, voltou a ter os pais por perto, perdeu o medo de chuva e ganhou o título de Rainha da Melhor Idade do Rio Grande do Sul.

A primeira volta aconteceu em 2007 quando ela descobriu que es-tava com câncer de mama. Anos antes, seu marido também tinha tido a doença. Ele ficou muito doente e precisou passar bastante tempo no hospital. Tereza ficava o dia todo cuidando dele, saía de casa de ma-nhã cedo e voltava só à noite. O marido chegou a se recuperar, mas, depois de 12 anos, o câncer voltou e ele acabou falecendo.

Tereza sofreu bastante. Demorou a seguir em frente e perceber que ti-nha de valorizar os momentos bons passados com o marido. Quase dez anos depois, porém, ela volta a ficar sem chão. Foi na segunda metade de 2007, quando sentiu um caroço em um dos seios. Preocupada, contou sobre isso à nora, mas decidiu espe-rar mais um tempo antes de fazer o exame de mama. Cerca de três se-manas depois, sentiu que o caroço tinha aumentado, e decidiu adiantar seus exames anuais. Quando os re-sultados saíram, descobriu que esta-va com um tumor maligno. O câncer estava de volta a sua vida.

Tereza entrou em choque, mas agiu. Marcou a cirurgia para retirar o nódulo, de cerca de um centíme-tro e meio, para o início de 2008. A operação foi relativamente simples: ocorreu à tarde e, à noite, Tereza já estava em casa. Além disso, não foi preciso que tirassem o seu seio, pois o tumor era pequeno. Depois da cirurgia, fez 33 aplicações de ra-dioterapia e, por último, quatro de quimioterapia.

Na última parte do tratamento, Te-

reza perdeu todo o cabelo, inclusive as sobrancelhas. Mesmo assim, não deixou de se arrumar. Fazia lenços estampados e boinas para usar na ca-beça, adorava usar brincos de argola e, quando ia ao hospital, maquiava-se para não parecer tão pálida. Foi nesse período que os pais voltaram para perto de Tereza:

– Meus pais vinham me visitar no máximo uma vez por ano. Agora eles estão aqui quase todas as sema-nas.

O pai não aceitava o casamento da filha e, por isso, os dois se distan-ciaram, chegando a ficar até quatro anos sem conversar. Voltar a convi-ver com os pais foi muito importan-te para a sua recuperação, acredita Tereza, assim como o carinho re-cebido dos filhos Cláudio, Paulo e Marco, e das noras.

O tratamento durou cerca de um ano e meio. Depois da recuperação, ela tinha de fazer exames de mama a cada três meses, e a espera pelo resultado era sempre sinônimo de medo e aflição. Mais tarde, o exame passou a ser feito uma vez por ano. E, até agora, apesar da ansiedade, os resultados têm sido sempre po-sitivos:

– Mudei o jeito de lidar com as pessoas, recebi muito apoio e amor. Fi-quei mais emotiva e passei a enxergar mais as coisas boas da vida. E deixei de lado medos bobos, como de chuva ou de vento forte.

Um ano após o tratamento, em 2010, Tereza ganhou o título de Rainha da Melhor Idade de Osório, cidade onde mora atualmente, e do Rio Grande do Sul. Em Cuiabá, re-presentou o Estado no concurso na-cional, o que significou uma espécie de recompensa por sua superação. Os cabelos estavam voltando a cres-cer, ela precisou dar entrevistas, foi procurada e elogiada. Entoou linda-mente um canto gauchesco e ficou em quarto lugar. Voltou animada, com um sorriso no rosto. O mesmo que sempre a acompanhou.

de sorrir

« Meus pais vinham me visitar no máximo uma vez por ano. Agora eles estão aqui quase todas as semanas».Tereza Maria Schmitz

Tereza conquistou o primeiro lugar no concurso estadual de Rainha da Melhor Idade, em novembro de 2010, realizado em Bento Gonçalves

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Tânia enfrenta a vida com sobriedade

UM DIA DE CADA VEZ

Ex-alcoólatra conta sobre seus aprendizados e sua nova forma de encarar a vida ao recuperar-se do vício

ROBERTA SANTIAGO

Uma doce e rígida Tânia me recebeu numa tarde cin-zenta de quarta-feira na

Central de Serviços de Alcoólicos Anônimos do Rio Grande do Sul. Não hesitou em contar o que viveu na pior fase de seu alcoolismo. Es-tava feliz em compartilhar a história de sua recuperação e o papel funda-mental do A.A. em sua volta à vida.

Enquanto fala sobre as ativida-des que desenvolve no grupo, conta os motivos pelos quais o seu nome completo não poderá aparecer na matéria do Blog de Papel:

– Os Alcoólicos Anônimos de-vem atrair as pessoas, e não promo-vê-las.

Na sala, mexendo em papéis, também está Gaspar, diretor de área do A.A. responsável pelo controle do funcionamento da rede em todo o Estado. Por alguns minutos ele sai um pouco da sua concentração e, prestando atenção em nossa con-versa, acrescenta:

– Além disso, vivemos em uma sociedade preconceituosa. Imagina seu nome circulando por aí como uma ex-dependente do álcool. Isso

pode prejudicar extremamente as relações sociais de um ex-alcoólatra ou de um alcoólatra em recupera-ção. Claro que a coisa não tinha que ser assim, mas, de fato, é.

Assim que começou a frequen-tar o A.A., a identificação de Tânia com a fraternidade foi automática. Foi lá que ela ganhou forças para lutar contra a doença. Começou a participar das reuniões e logo tor-nou-se parte do grupo, ajudando na organização da estrutura da entida-de e ocupando diferentes funções, desde secretária até responsável pela limpeza. Tornou-se parte do grupo, onde fez alguns amigos, como Gaspar, e dali tirou forças para manter-se sóbria e, principal-mente, satisfeita com o que a vida lhe proporcionava. Foram 10 anos sem beber, até que, em 1998, ela recaiu:

– Depois de todos aqueles anos sem beber, recair me fez ver tudo ao meu redor com outros olhos. Passei a valorizar muito mais o que eu tinha e percebi que o caminho que eu esta-va tomando anteriormente, longe do álcool, era o que eu realmente queria seguir. Tanto que agora estou há 14 anos sem ingerir nenhuma substân-

cia alcoólica. E continuo com a mes-ma vontade de seguir em frente que eu tinha desde a primeira semana em que comecei essa luta, ou com uma força ainda maior.

Tânia começou a beber quan-do tinha 16 ou 17 anos de idade. Frequentava festas, consumia ál-cool e ficava bêbada usualmente, comportamento normal entre o seu grupo de amigas. Ao contrário de muitos alcoólatras, que descobrem seu problema na transição da ado-lescência para a fase adulta, Tânia só foi se dar conta disso um pouco mais tarde.

Casou-se muito cedo. O ex-ma-rido havia perdido o pai devido ao alcoolismo, portanto, o casal não consumia álcool de jeito algum. Ela gostava de beber mas, em respeito à história do marido, evitou a bebi-da durante o casamento. Entretan-to, logo separou-se e, aos 24 anos, quando estudava Letras na PUC--RS, viveu seu momento de maior envolvimento com o álcool:

– Naquela época eu tinha pas-sado a beber quase todos os dias, quando não todos os dias. Levava bebida para a faculdade até em em-balagem de desodorante. O álcool sempre seguia escondido comigo na bolsa.

Depois de ter se tornado uma

pessoa não mais bem-vinda no gru-po de amigos e no âmbito profis-sional, Tânia decidiu procurar uma clínica de reabilitação. Sua experi-ência foi na Pinel, em Porto Alegre:

– Dentro da clínica, havia um grupo de Alcoólicos Anônimos, como existe até hoje. Lá ocorreu meu primeiro contato com pessoas que tinham os mesmos objetivos de vida do que eu. Aquilo mexeu mui-to comigo. Tive força de vontade para me manter sóbria e lutar pela minha causa, que era voltar a viver .

Foi a partir de sua primeira ex-periência no A.A. que Tânia co-meçou a construir seu caminho de volta, seu retorno à sociedade, aos amigos, familiares e, principalmen-te, ao encontro de seu amor próprio. Hoje, depois de 24 anos no grupo e 14 sóbria, leva a expressão lema do A.A. ao pé da letra, vivendo “Só Por Hoje” e acreditando que não precisa resolver de uma vez só to-dos os problemas.

Sobretudo, crê intensamente na filosofia do grupo: “Concedei-me, Senhor, serenidade para aceitar as coisas que não posso modificar, co-ragem para modificar aquelas que posso, e sabedoria para distinguir umas das outras”.

Vivendo, assim, um dia de cada vez.

«Levava bebida para a faculdade até em embalagem de desodorante. O álcool sempre seguia escondido comigo na bolsa».Tânia

O A.A. acredita que o apoio coletivo é fundamental na recuperação de dependentes

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VictorComo o apoio dos amigos, que o receberam com festa em Cruz Alta, no noroeste gaúcho, ele conseguiu retomar a rotina e a vida depois de um mês longe de casa recuperando-se de uma doença grave

CAROLINA HICKMANN

Em 23 de fevereiro de 2012, Victor Stefanello foi recebi-do por uma carreata repleta

de amigos ao chegar à cidade de Cruz Alta, onde mora. O menino de 16 anos havia passado pela maior barra de sua vida, superando uma doença que o deixou em coma por quase um mês.

Tudo começou com uma tosse diagnosticada como pneumonia. E a gravidade só foi percebida quando os médicos pediram que o levassem para Porto Alegre. Victor foi remo-vido do Hospital São Vicente de Paula, em Cruz Alta, para a Santa Casa de Misericórdia por via aérea e com urgência. O quadro se agravou e ele precisou ser colocado em coma induzido. Mas a situação piorou ain-da mais, e Victor foi ligado a uma máquina extracorpórea, usada em cirurgias cardíacas e transplantes. O médico de Victor, Sadi Marcelo Schio, da equipe liderada pelo re-nomado José Camargo, lembrou, à época, que o máximo de tempo que tinha presenciado alguém ficar liga-

voltou a ser Victor

do à máquina foi 18 horas. Victor ficou quatro dias e meio.

A recuperação foi um processo difícil que durou um mês. A sala de espera do Bloco Pereira Filho, parte do Complexo Hospitalar San-ta Casa, ficava lotada de parentes e amigos, de noite e de dia, que se re-vezavam para estar perto de Victor. Caio Ribas, Victor Carús e Marcelo Tragnago foi um trio presente. Mar-celo, inclusive, chegou a auxiliá-lo em momentos em que a fraqueza não permitia que Victor se movi-mentasse. Mas o garoto conta que a visita mais providencial foi a de Lourenço, seu primo, quase um ir-mão. Quando Victor acordou, pen-sou estar em uma parte diferente do hospital de Cruz Alta, e o primo se

encarregou de explicar:– Eu disse que ele estava em

Porto Alegre, que ele tinha ficado um tempo sedado, que agora tudo estava melhorando e ia dar certo.

Foram esses amigos e mais al-guns que o aguardaram no trevo de Cruz Alta. As semanas após o re-torno para casa ainda eram delica-das, o menor sinal de piora deveria servir de alerta. Victor não podia sair de casa e confessa que nem forças tinha para isso. Mas seus amigos o visitavam quase todos os dias. Ficavam por perto, jogando videogame, conversando. Coisas de amigo. E foi com um deles que o jovem viu a rua novamente, de-pois de meses recluso:

– Saí pela primeira vez de casa

para passear com o Baixinho, o Victor Carús. Era novidade de novo – recorda.

Olhar o movimento era o má-ximo que Victor Stefanello podia na época, por isso, uma volta de carro na Pinheiro Machado – uma das principais ruas da cidade – era um programa e tanto. Seus amigos, notando a inquietude do rapaz, tam-bém se tornaram mais caseiros.

Hoje Victor leva uma vida nor-mal. Está namorando, mas não dei-xou os amigos. Toda semana, às terças, é dia de churrasco com os companheiros de todas as horas.

– Precisei passar por tudo isso para aprender a valorizar mais a vida como um todo. E prometo não dar outro susto – brinca Victor.

CERCADO DE CARINHO

« Precisei passar por tudo isso para aprender a valorizar mais a vida como um todo. E prometo não dar outro susto».Victor Stefanello

A partir da esquerda, Cassiano Toniollo, Victor Carús, Victor Stefanello, Julio César Funk, Caio Ribas e César Fogaça

Victor Stefanello e Caio RibasFo

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CAROLINA ALLEGRETTI PASCUETTI

Positivo. Esse era o resulta-do que o teste de gravidez de Fabiany Smania acusava

pela segunda vez. Ela sabia que essa era apenas a confirmação do que ela já sentia. Nos dois casos, a mens-truação atrasou e ela sentiu enjoos. Agora, porém, a alegria de ser mãe vinha acompanhada do medo. Sen-sação explicada pelo trauma ocorri-do em maio de 1992, um ano e qua-tro meses após o nascimento de sua primeira filha, Mariely.

– Primeira filha, primeira neta, primeira sobrinha, primeira tudo – lembra Fabiany, explicando que, por ser primeira, Mariely tinha todas as atenções e mimos da família.

O acidente que marcou profun-damente a família ocorreu após um almoço na casa de Anilde, mãe de Fabiany. Terminada a refeição, o casal de jornalistas tinha dois even-tos para comparecer, um no início e outro no final da tarde. A profissão deles era de sábados, domingos e fe-riados repletos de compromissos.

– Levamos Mariely junto porque, sempre que eu podia, queria que ela ficasse comigo – recorda Fabiany.

Tinha tudo para ser mais um fi-nal de semana de trabalho para os jornalistas que se conheceram em uma situação típica de filme român-tico. Saul Carvalho trabalhava na rádio Cidade FM, a de maior audi-ência na cidade de Criciúma (SC), e procurava uma locutora. Faby, como Fabiany é conhecida, ligou para a rádio pedindo para ouvir a música Você é linda, de Caetano Veloso. Saul atendeu a ligação e, ao ouvir a bela voz feminina, convo-cou-a para um teste como locutora. Fabiany fez o teste e foi contratada, no mesmo dia. Ele havia encontra-do uma colega de trabalho e sua futura esposa. Casaram-se jovens:

Fabiany foi mãeoutra vez

MESMO COM MEDO DE PERDER

Quase três anos depois da morte da primeira filha em um acidente de carro, ela ficou grávida de Júlia, hoje com 18 anos

com uma sensação muito ruim, me lembro muito disso.

No hospital, Pedro Smanis, pai de Fabiany, contou para a filha que Ma-riely não tinha resistido. Palavras que Fabiany guarda na memória até hoje.

– Minha filha, Deus não pode só levar doentes, velhos e bandidos. Ele precisa de anjos para sustentar esse mundo, e a tua filha era um anjo. Foi assim, desse jeito lindo, que ele me deu a notícia – recorda Fabiany.

A causa da morte foi traumatismo craniano devido ao impacto da bati-da contra o painel do carro.

Os anos que se seguiram foram muito tensos.

– Minha vida mudou totalmente. Eu quis me separar, me matar. Por um período de cinco anos, quase en-louqueci – conta Fabiany, que, ini-cialmente, não conseguia ter contato com fotos e pertences da filha.

Para a casa antiga, também não voltou. Ficaram na casa da mãe até o marido melhorar dos ferimentos e encontrar outro apartamento. Várias foram as tentativas de suicídio.

– Com comprimidos ou cortando os pulsos, mas sempre na hora o Saul chegava e impedia.

Foi um processo longo e dolori-do, que passou por busca de respos-tas em diferentes religiões. Agora, Fabiany não se culpa mais:

– Porque Jesus já me perdoou e porque creio que pra tudo há um pro-pósito. Hoje sei que tive o privilégio de ter uma menina linda por um ano e quatro meses.

Mas a felicidade só voltou quan-do a segunda filha do casal nasceu. A chegada da menina foi preparada com muito carinho pela mãe, que or-ganizou um enxoval todo rosa e uma cadeirinha no carro equipada com cinto de segurança:

– Foi bem difícil até a Júlia com-pletar um ano e quatro meses.

Ela sentia que esse era o prazo. Julia nasceu três anos após a morte de Mariely. Fabiany não notou dife-rença na maternidade, mas se via as-sombrada pelo medo da perda.

A gravidez foi uma surpresa e aconteceu em uma troca de com-primidos anticoncepcionais. Hoje, Fabiany é só elogios para Júlia, que tem 18 anos. A maternidade sempre foi algo que a alegrou. Ela conta que vive para os filhos e para agradá-los, e tinha certeza de que seria assim. Casada há 22 anos com um homem que se manteve ao seu lado em to-dos os momentos, construiu uma fa-mília com Júlia e Lucas, o caçula de 11 anos. Na gravidez do filho mais novo, o medo da perda já tinha ido embora. Fabiany vivenciou a ges-tação de maneira tranquila e sem a preocupação da anterior:

– Nasci pra ser mãe, minha vida não tem sentido sem meus filhos.

«Eu quis me separar, me matar. Por um período de cinco anos, quase enlouqueci».Fabiany Smania

ela com 18 anos, grávida de cinco meses, e ele com 24.

Quem dirigia o carro que se aci-dentou era a própria Fabiany, que op-tou em deixar o marido no segundo evento e depois levar a babá e a bebê para casa.

O casal estava na frente e dois colegas de trabalho da rádio divi-diam o banco traseiro com a babá, que segurava a criança no colo. A motorista sentiu os pneus vibrarem e parou no acostamento. Após te-rem verificado os quatro pneus, se-guiram viagem. Mariely ficou nos braços do pai no banco da frente. De repente, os dois pneus do lado direito estouraram e Fabiany perdeu o controle do carro, que bateu em um muro:

– Parece que é um sonho, a gen-te fica meio anestesiada. Só sei que desde o início daquele dia eu estava

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Fabiany com os filhos Lucas, 11 anos, e Júlia, 18 anos, e o marido Saul Carvalho, em foto de 2012

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PELA SEGUNDA VEZ

MARIANA CECCON

Adilso Luis Pimentel Corlas-soli, 42 anos, é assessor de Educação Especial da Secre-

tária Municipal de Educação de Porto Alegre, professor de alunos com defi-ciência visual do Colégio Protásio Al-ves e cego. E, apesar de não possuir o sentido da visão, que ele teve e depois perdeu, Adilso não é uma pessoa limi-tada. Pelo contrário: sua autonomia e segurança são características de uma pessoa que soube “enxergar” que o melhor caminho é seguir a vida.

Natural de Esmeralda, interior do Rio Grande do Sul, Adilso nas-ceu com catarata congênita, doença que deixa a visão turva. Mas foi so-mente aos 14 anos que ele fez uma cirurgia que o deixaria livre da do-ença. Entretanto, houve complica-ções e, devido a uma infecção hos-pitalar, ele perdeu a visão.

– Não conhecia ninguém cego na minha cidade, então pensei: bom acabou, vamos esperar a morte che-gar. O que mais me doeu foi não poder voltar à escola. Praticamente toda noite eu sonhava que estava na sala de aula – desabafa.

Aos 18 anos, Adilso encontrou em Porto Alegre a oportunidade de voltar à sala de aula. Cursou a 8ª série e o Ensino Médio no colégio Protásio Alves. Aprendeu a escrever em braile e a se locomover com a bengala no Instituto Santa Luzia, onde morou durante dois anos. E, depois, mudou-se para o Lar da Amizade, lugar onde muitos cegos

O professor perdeu a visão aos 14 anos, voltou a enxergar aos 22 e, hoje, está cego novamente

abrigam-se em Porto Alegre.Mas foi em 1992 que Adilso pas-

sou, literalmente, a ver a vida com outros olhos. Ele tinha 22 anos e, após um mês esperando uma córnea compatível em Belo Horizonte, fez um transplante. Segundo o médico Sérgio Domingues, que realizou o procedimento, o transplante iria permitir com que Adilso enxergas-se vultos. Ele viu mais do que isso.

– Quando tirei o curativo foi um choque de cores e nitidez. Tudo muito claro, muito branco. Foi uma claridade tão forte que, quando en-trou no meu olho, parecia que esta-va entrando na minha cabeça – ex-plica Adilso, que recuperou a visão do olho esquerdo e conseguia até ler usando óculos.

Como desde o nascimento sofria de catarata, ele teve a oportunidade de vislumbrar, pela primeira vez, um mundo sem opacidade. Aquela sensação de imagens turvas desa-pareceu, e o mundo clareou. Por-to Alegre, onde morava há quatro anos, foi, finalmente, enxergada.

Apesar de ter voltado a ver, al-guns hábitos da época de ceguei-ra jamais foram abandonados. Ao sair na rua, levava a bengala junto, mesmo que não houvesse neces-sidade. Caminhava com ela sus-pensa no ar, apenas por segurança. Havia passado em um concurso e trabalhava como telefonista do Pa-lácio da Polícia. Foi um período especial e feliz.

Adilso deixou deenxergar

Adilso no trabalho, na Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre

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9www.espmblogdepapel.blogspot.com.br

«Com 14 anos, a deficiência foi mais fácil de ser aceita. Aos 22, sofri mais».Adilso Pimentel Corlassoli

No decorrer dos meses, porém, ele percebeu que sua visão foi fi-cando mais opaca e turva nova-mente. Procurou o médico Sérgio Domin gues, que o examinou e o abraçou para dizer: “Só Deus”. De-vido a um deslocamento da retina, a visão foi totalmente perdida.

– Minha visão é zero hoje. E vol-tar a ser cego não é fácil. Não sei se pela imaturidade, mas aos 14 anos a deficiência visual foi mais fácil de ser aceita. Com 22 anos eu sofri mais, foi um processo muito ruim. Acho que tu ficas psicologicamente mais abalado também – conta Adil-so, que precisou aprender a confiar mais na bengala e no ouvido, suas ferramentas para guiar-se.

Apesar de abalado, Adilso não se entregou. Fez vestibular para Matemática na Universidade Fe-deral do Rio Grande do Sul (UFR-GS) e enfrentou as dificuldades de um curso que não estava preparado para receber alunos com deficiên-cia visual. Com ajuda de colegas, que liam os textos e o auxiliavam na interpretação de gráficos e tabe-las matemáticas, tornou-se profes-sor de Matemática. Depois, cursou pós-graduação em Educação Es-pecial, com ênfase em deficiência visual, na Pontifícia Universida-de Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

Andréa Zenari e Salete Moraes, colegas de trabalho de Adilso na secretaria, garantem que sua auto-

nomia é impressionante. Ele é capaz de se amparar nos outros sentidos e consegue se virar sem a visão. De-pendendo do ambiente, movimenta--se sem a bengala, dando o primeiro passo com a perna esquerda, como se estivesse “avaliando o território”, e, em seguida, a perna direita se junta à primeira. O tato e a audição tornaram-se os sentidos mais im-portantes na vida do professor, que espalha sua mão pelos móveis para encontrar os objetos, e que reconhe-ce as pessoas pelo som da voz.

Adilso mora no bairro Parte-non e diariamente desloca-se até a Avenida Bento Gonçalves, onde embarca em um ônibus em direção ao centro da cidade, bairro no qual trabalha. De lá vai, também de ôni-bus, para o colégio Protásio Alves. Volta para casa às 22h30min, com a esposa Márcia, que o pega de carro. Nos momentos livres, gosta de es-tar na presença de amigos, de Már-cia, com quem é casado há 10 anos, e com os filhos Giovana, 6 anos, e Nilton, 21 anos.

O professor aprendeu a lidar bem com as limitações, mas não deixa de sentir-se perdido, às vezes. Como quando está sozinho em uma parada de ônibus e escuta um veícu-lo se aproximando. Esse é um dos momentos que nem a sua audição, nem o tato, muito menos a memó-ria, podem ajudá-lo. Apesar disso, o professor Adilso fez uma escolha:

– Eu segui a vida.

Quem é o professor Adilso• Diretor Secretário da União de Cegos do Rio

Grande do Sul (UCERGS)• Membro do Conselho Fiscal da Federação

Riograndense de Entidades e para Cegos (FREC)• Delegado do Rio Grande do Sul na Organização

Nacional de Cegos do Brasil (ONCB)• Entre 2008 a 2010, foi 1º Presidente do Conselho

Municipal dos Direitos das Pessoas com DeficiênciadePortoAlegre(COMDEPA)

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Professor Adilso tem um computador adaptado para deficientes visuais

Adilso acompanhado de seus pais e irmão

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Brasil de Pelotas quer voltar a ser grande

PARA SUPERAR A TRAGÉDIA

LUCAS ABATI

Após perder três integrantes do clube em um acidente de ônibus, na volta de uma partida, em janeiro de 2009, o time do sul do Estado sonha em retornar às grandes competições de futebol

Veículo que transportava os jogadores de volta a Pelotas capotou perto de Canguçu

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quer voltar a ser grande

40 metros próximo a Canguçu. O acidente levou não só as perspecti-vas positivas para aquele ano, como também três guerreiros do Brasil: Claudio Milar, goleador e, para al-guns, o maior ídolo da história do clube; Régis Gouveia, xerife na de-fesa e prata da casa; e Giovani Gui-marães, treinador de goleiros.

Diante da tragédia, o Brasil pre-cisou recuperar o psicológico dos poucos jogadores que saíram do acidente em condições de jogo e re-montar a outra parte do elenco para cumprir um calendário penoso, po-rém necessário, já que o clube não conseguiria dar suporte às famílias dos mortos e feridos caso não jogas-se. Foi então que o espírito de equi-pe tomou conta de uma das princi-pais lideranças do time.

– Segui pela minha família e pela dos que morreram, eu tinha que representar os filhos deles. Tu adquires um carinho como famí-lia, irmão – explicou Alex Martins, amigo de infância e companheiro de zaga de Régis.

A torcida, que faz do Brasil um clube forte, não deixou de partici-par. Após chorar no velório das três vítimas, no estádio que havia sido palco de grandes jogos, os Xavan-tes, como são chamados os torcedo-res, pretendiam ajudar a recuperar o time, e a mantê-lo na primeira divi-são na base de raça e da voz vinda das arquibancadas.

– Fazer daquele episódio uma

força a mais para permanecer era o objetivo – definiu André Muller, comunicador de esportes da Rádio Pelotense.

Para manter-se nessa condição, o Brasil contou com a solidariedade dos dois grandes clubes da Capital, que cederam jogadores, e da Fede-ração Gaúcha de Futebol (FGF), que adiou algumas partidas e conseguiu com que o técnico Claúdio Duarte treinasse a equipe voluntariamente por 30 dias. Era chegada a hora de enfrentar o primeiro adversário após o acidente.

Por ironia do destino, o rival era justamente o Santa Cruz, só que o clube pelotense não contava mais com Milar, nem com o ímpeto de-fensivo de Régis.

– Envolveu um emocional muito forte. Nunca tinha visto o estádio do Brasil com tanta gente assim, gente espremida na tela, comovida. Foi difícil trabalhar naquele dia – rela-tou Muller sobre o primeiro jogo pós-acidente, que terminou com um empate em 3 x 3.

Em 2010, um alento: o atacante Bruno Milar, irmão do grande ídolo, assinou contrato com o clube.

– Ele não era muito bom, mas quando fez o gol e comemorou igual ao Milar, a torcida foi à loucu-ra – contou o torcedor Rafael We-ber, 17 anos, lembrando que o cen-troavante Milar, morto no acidente, comemorou parte dos seus mais de 100 gols fazendo em campo o mo-vimento de arco e flecha, em alusão ao índio xavante.

Mesmo com reforços, empates e derrotas se sucediam no decorrer das semanas, e o rebaixamento foi inevi-tável ao perder de 3 x 1 para o Vera-nópolis. Com o passar do tempo, ou-

tras desclassificações ocorreram. Em 2011, o clube já estava na série D. Em 2012, apesar da eliminação na série D, a torcida estava esperançosa na Copa Hélio Dourado, que garante uma vaga em competição nacional ao campeão e vice.

Para os próximos anos, é hora de sonhar com a volta dos grandes jo-gos na Série A do estadual e no Bra-sileirão, com a xaranga empurrando o time para as vitórias antológicas, como a vitória sobre o Flamengo de Zico, nas quartas de finais do Brasi-leiro de 1985. Para isso, a diretoria buscou jogadores renomados como Fabiano Eller e Marcos Denner. Os fãs do Grêmio Esportivo Brasil sa-bem que cabe a eles reconstruir o clube.

– A torcida pegava tijolos em obras da cidade e levava para a cons-trução do Bento Freitas. Temos o único estádio inteiramente de tijolo, meu avô era um dos que levava até a obra – recorda o torcedor e taxista Juliano Recondo.

A difícil situação do clube divide opiniões. Para alguns, é ainda um re-flexo da tragédia de janeiro de 2009.

– Até hoje continua complicado o negócio – explicou Luiz Balarini, frequentador do Bento Freitas des-de 1956.

Para outros, o problema vai além.– Vai depender da mudança da di-

retoria, tem que deixar o sócio votar – disse João Alberto, um simpático senhor de 59 anos que há 32 trabalha nos serviços gerais do estádio.

Mas os dois concordam num aspecto: a falta de Milar, um atleta carismático que tomava chimarrão com os torcedores após o treino, e de Régis, ainda não foi superada.

Talvez nunca seja.

«Segui pela minha família e pela dos que morreram, eu tinha que representar os filhos deles. Tu adquires um carinho como família, irmão».Alex Martins, amigo de infância e companheiro de zaga de Régis, morto no acidente ocorrido em janeiro de 2009

As marcas da noite de 15 de janeiro de 2009 ainda per-manecem vivas na me mó ria

de muitos moradores de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul. Principalmente dos torcedores do centenário Grêmio Esportivo Brasil, popularmente conhecido como Bra-sil de Pelotas. Marcas de um trauma que matou três integrantes do time e do qual o Brasil ainda não se recu-perou.

Foi na volta de um jogo-treino contra o Santa Cruz, em Vale do Sol, com distância aproximada de 400 quilômetros de Pelotas, que o time teve sua trajetória interrompida em um barranco de aproximadamente

Foto emblemática de Millar, morto no acidente, com asas de anjo. Acima, índio xavante e homenagem ao ídolo

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DEPOIS DE PERDER O PAI

GABRIELA KLIEMANN

Segunda Guerra Mundial, uma

das maiores guerras da história, marcada pelas atrocidades cometi-das pelo exército nazista de Hitler. Negros, gays, comunistas e, prin-cipalmente, judeus, deveriam ser extintos. A Holanda começa a ser atacada em maio de 1940. O judeu Bernard Kats estava lá.

Nascido em 1936, em Henge-lo, cidade holandesa na época com 50 mil habitantes, Bernard tinha quatro anos quando tudo começou. Morava com os pais e uma irmã num apartamento de um prédio que abrigava, no térreo, um peque-no banco da região, frequentava a pré-escola e conhecia toda a ga-rotada do bairro. Com o início da guerra, a rotina mudou: ele não po-dia mais ir ao colégio e, todo dia, era levado a uma cidade vizinha para estudar:

– Eu ficava nervoso, precisava ir de ônibus para outra cidade, num ambiente completamente alheio, es-tranho, com companheiros novos.

O clima era tenso, com entra e sai de amigos do pai em casa e me-didas contra os judeus começando a aparecer. Bernard lembra que sua irmã achava que todo o movimen-to ocorria por causa de seu aniver-sário. Estava enganada. A casa si-lenciou quando os nazistas vieram buscar seu pai e o levaram para um campo de concentração.

Cerca de três semanas depois, sua mãe recebeu uma carta da

Escondidos na casa de estranhos e longe da mãe, ele e a irmã viveram uma infância sofrida em meio à guerra

Cruz Vermelha que comunicava que seu pai havia sido morto no campo de concentração Mauthau-sen, a 20 km da cidade de Linz, na Áustria. A cena nunca mais deixou Bernard:

– Ainda hoje vejo a minha mãe na porta da casa com a carta na mão. O cabelo dela ficou grisalho de um dia para o outro.

Após o ocorrido, amigos e vi-zinhos insistiram para que eles se escondessem. Bernard e sua irmã foram entregues a uma organiza-ção da Igreja Reformada da Ho-landa, de doutrina calvinista, que os levava cada dia para um lugar diferente, por segurança. Daí em diante, ele deixou de ter notícias de sua mãe.

No mesmo período, Bernard e a irmã ficaram cinco semanas abrigados na casa de uma família, até serem levados ao lugar onde permaneceram a maior parte da guerra: um sítio no interior da Holanda. Como nas proximida-des havia um café convertido em quartel alemão, ele e a irmã vi-veram um período de reclusão e medo. Por algumas vezes, a casa foi revistada pelo exército ale-mão, mas os dois, que costuma-vam ficar no antigo estábulo da propriedade, nunca foram encon-trados.

Daquela época, a melhor lem-brança vem do tempo em que per-maneceram escondidos, durante

Bernard sobreviveu

ao Nazismo

Bernard Kats e sua irmã em 1943

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«Meu trauma do que me ensinaram: nome e sobrenome diferentes, cidade natal diferente».

ao Nazismomais de um mês, numa fazenda na fronteira com a Alemanha. Um lu-gar sem vizinhos ameaçadores:

– Lá não tinha ameaça algu-ma. A gente podia sair e brincar no pátio, uma maravilha – recorda Bernard.

Se, por algum motivo, fossem questionados sobre suas identida-des, deveriam repetir nomes falsos e uma história inventada: vieram de uma cidade bombardeada, seus pais haviam morrido e estavam na casa de tios.

Em maio de 1945, sua mãe veio buscá-los, após cinco anos longe dos filhos. Viveram por um tempo na casa de amigos até que um pri-mo, que tinha contatos no Uruguai, decidiu que Montevidéo poderia ser um bom lugar para viver.

– Tinha um parente que escrevia maravilhas de Montevidéo. Além disso, fomos embora da Holanda porque chegara a hora de eu entrar para o exercício militar, e minha mãe, que já tinha perdido o marido, não queria o único filho fazendo exercícios militares na Alemanha – explica Bernard.

Em Montevidéo, a adaptação foi relativamente fácil. Alfabeti-zado durante a guerra pela irmã, um ano e meio mais velha, com 15 anos Bernard falava holandês, in-glês, francês e alemão, além de ter noções de contabilidade. Em seis meses, dominou o espanhol, co-nheceu a cidade e a esposa Marta.

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Além disso, foi office boy do Ban-co Holandês Unido, atuou em ou-tras empresas e finalmente, após 30 anos e já sócio de uma companhia, assumiu a filial em Porto Alegre.

– Eu tinha cinco anos quando perdi meu pai, seis quando meu avô, que vivia conosco, morreu. Em seguida, fui afastado da minha mãe e entregue para terceiros. A fa-mília que me criou me tratou bem, mas não lembro de um beijo. Ter-minou a guerra, perdi a minha fa-mília adotiva e voltei à mãe que me tinha abandonado. Imagina como alguém se sente com tudo isso?

Bernard demorou 30 anos para conseguir contar sua história, ex-ternar e entender os sentimentos da época.

Tempo que demorou também para conseguir falar pela primei-ra vez de suas experiências com a esposa e para conhecer o campo de concentração no qual seu pai foi morto.

Bernard e a esposa Marta

Aposentado, Bernard vive hoje em Porto Alegre

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Irene recuperouApós sofrer um acidente que quase tirou sua vida, ela encontrou no marido a maior razão para se recuperar física e emocionalmente

MARTHIN MANZUR

Irene Fonseca Assumpção, 40 anos, sofreu um acidente que a reaproximou da família e repre-

sentou a retomada do casamento.– Tive uma segunda chance – ex-

plicou o marido Émerson Assump-ção, que ainda se emociona ao lem-brar do acidente de carro, ocorrido no dia 4 de maio de 2007 com Irene, professora de Educação Física do colégio Leonardo da Vinci, de Porto Alegre, por 12 anos.

Ela saiu da festa de despedida de sua prima e voltava para casa de carro. Era meia-noite, e resolveu passar no bar de amigos para con-versar, pois estava triste com o final de seu casamento. Naquele dia, seus filhos de 3 e 5 anos estavam com o pai. Ela tomou cerveja. Entrou no carro, percebeu-se cansada ao diri-gir, mas continuou.

– Comecei a ficar com muito sono e duas vezes entrei no piloto automático. Na primeira vez, passei num quebra-molas e dei uma acor-dada. Na outra, fui fazer uma curva, já perto de casa, dormindo na dire-

os laços familiares

ção, e entrei embaixo de um ônibus que vinha na mão contrária – des-creveu Irene.

Ao acordar, tonta, no hospital, a professora tinha um corte na cabeça e fraturas expostas nas pernas. En-quanto isso, Émerson ficara saben-do do ocorrido por meio do telefo-nema de um irmão dela.

– Foi um divisor de águas nas nossas vidas. Com essa tragédia, veio uma reaproximação e uma realidade totalmente novas – contou Émerson, entre lágrimas.

A partir daquele momento, as constantes brigas do casal viraram coisas do passado. Émerson decidiu dar apoio à ex-esposa, que enfren-tava um dos piores momentos de sua vida.

– Me desesperei com a avalia-ção do médico. Meu futuro era uma incógnita, eu não sabia se os pinos das pernas iriam ou não infeccionar, como eu iria cuidar de meus filhos ainda pequenos, se iria voltar a cami-nhar e a trabalhar – desabafou Irene.

Sua jornada de recuperação

DiSPOSTA A CURAR FERIDAS

«Com tudo o que aconteceu, tive uma admiração maior por ela, nos tornamos um novo homem e uma nova mulher».Émerson Assumpção, marido de Irene

foi demorada. Foram cerca de seis meses sem colocar os pés no chão e muitas cirurgias. Junto com os fi-lhos e o ex-marido, precisou mudar--se para a casa dos pais, adaptar-se a uma cadeira de rodas e aprender a caminhar novamente. Sentia-se cui-dada como uma criança.

– Sempre tive muita fé e acre-ditava que as coisas acontecem por algum motivo e de alguma maneira pode-se carregar – contou a profes-sora de hidroginástica e natação.

Hoje, Irene ainda tem algumas placas de ferro nas pernas, não mexe a perna direita e só caminha com a ajuda de muletas. Antes ativa e pra-ticante de esportes, hoje é uma pro-fissional aposentada por invalidez.

– Minha maior conquista foi o retorno ao casamento, meu ma-rido se mostrou um pai e esposo exemplar. Além disso, consegui unir a família, que passava por uma época complicada, um irmão brigando com o outro. Todos se envolveram comigo e acabaram ficando mais pacientes entre si – contou, feliz.

– Com tudo o que aconteceu, tive uma admiração maior por ela, nos tornamos um novo homem e uma nova mulher. Aprendemos os verdadeiros valores da vida, a família, os filhos, as relações de afeto. Isso é o essencial, o mais importante, uma lição de vida – afirmou o marido, orgulhoso.

Acima, Irene com os dois filhos, antes do acidente. Ao lado, com o marido Émerson

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THAMARA RITER

Em fevereiro de 2011, mais um ano letivo se inicia na Esco-la Santa Dorotéia, no Bairro

Cristo Redentor, em Porto Alegre. Seria um ano diferente para Lucas Tartari, 16 anos, que voltava aos es-tudos depois de um acidente que o deixou em coma por quase um mês. Lucas passara mais de seis meses afastado da escola, longe dos amigos de infância, mas sentia-se vitorioso. E temeroso. Ao retornar, não estava mais na turma de sempre.

– Eu não sabia como as pesso-as iriam me receber. Se ficariam me olhando por estar com marcas no rosto. Sentia vergonha por estar com aquelas cicatrizes que jamais imaginei ter.

Cicatrizes que resultaram de um acidente na volta das férias. Depois de 15 dias passeando por Punta del Este, Bariloche e Buenos Aires, em 29 de julho de 2010, o grupo de ado-lescentes retornava para Porto Ale-gre. Antes de saírem da capital ar-gentina, passaram em um supermer-cado para comprar mantimentos. Ao voltar para o ônibus, Lucas reclamou com a colega Marina, que sentara no lugar onde ele estava antes da para-

da, atrás do motorista. Marina levan-tou e saiu. Lucas sentou na poltrona que seria atingida, horas depois, pelo choque frontal com o caminhão con-duzido por José Vanderlei Schmitz. O acidente com o ônibus no qual viajavam 45 passageiros ocorreu no Km 611 da BR-290, em Alegrete. O motorista do ônibus fretado pela agência de viagens Rio Sul, Anaure-lino Borges Moreira, morreu na hora. Dois estudantes ficaram gravemente feridos. Lucas foi um deles.

Enquanto era encaminhado para o Hospital de Caridade Astrogildo de Azevedo, em Santa Maria, os amigos do jovem entravam em contato com sua família. O pai, Moacir Tartari, atendeu a ligação e não entendeu o que os amigos do filho diziam. Mas imaginou o pior. Ao chegar no hospi-tal, acompanhado da mãe de Lucas, Iole Tartari, Moacir encontrou o filho vivo, mas ferido. Abraçou o médico Enedir Teixeira e pediu:

– Que Deus lhe acompanhe, dou-tor. Salve meu filho.

Diagnosticado com traumatismo craniano, fratura exposta no lado es-querdo e lesão cervical da terceira à quinta vértebra, o garoto que adorava viajar, jogar futebol e estar na com-panhia dos amigos, ficou em coma

por 27 dias. Ao acordar, a irmã mais velha, Rafaela Tartari, tentou expli-car ao irmão sobre o acidente, mas Lucas, sob efeitos de anestésicos, não conseguiu entender. Virou para o lado e voltou a dormir.

– Eu só entendi o que realmente tinha acontecido quando me olhei no espelho.

Lucas completou 16 anos longe dos amigos, deitado em uma cama de hospital. Somente após 38 dias, voltou a Porto Alegre. Além das visitas de familiares, recebeu cerca de dez amigos, de surpresa, em sua casa, dias depois de voltar do hospi-tal. Um deles, Rennan, esteve muito próximo durante o período em que Lucas esteve longe da escola. Para que o amigo não perdesse o conteú-do das aulas, Rennan tinha dois ca-dernos: o seu e o de Lucas. Os dois com o conteúdo em dia. Na cadeira usualmente ocupada por Lucas na sala de aula, os amigos colaram um desenho do menino com mensagens de força e de esperança. Ninguém sentou ali durante o período em que Lucas esteve afastado.

De volta à escola Santa Dorotéia, Lucas foi bem recebido pelos profes-sores e amigos, que lhe prestaram os auxílios necessários para que voltas-

se a acompanhar a rotina das aulas. No entanto, sentia medo, inseguran-ça e tristeza. Não conhecia os novos colegas, tornou-se – de repente – o mais velho da turma. Estava sozinho. Além da desagradável sensação de que os alunos o olhavam pensando “aquele é o guri que quase morreu no acidente”. Então, mais uma vez, con-tou com a ajuda do amigo Rennan, que pediu para que os novos colegas o acolhessem de volta à escola. Aos poucos foi se adaptando à nova reali-dade, à nova “velha escola”. O amigo confirma a volta por cima de Lucas:

– Hoje o Lucas sabe que nasceu de novo. Ele cresceu uns quinze anos após o acidente. Aprendeu a valori-zar muita coisa.

Mas sua adaptação à nova vida escolar aconteceu de fato, em 2012, quando trocou de escola e passou a cursar o 3º ano do Ensino Médio. Nas primeiras semanas, era muito questionado sobre o acidente, mas não se importava em falar no as-sunto. Sentia falta dos amigos anti-gos, mas estava feliz com os novos. Ansiedade, angústia e medo foram substituídos por alegria, de viver e de estar vivo. E, aos poucos, tudo foi voltando ao normal. Afinal, a vida segue para Lucas Tartari.

COM CICATRIZES

Recuperado de um acidente que o afastou, durante meses, do convívio com os amigos, ele superou os traumas e retomou os estudos

«Eu tinha receio, pois não sabia como as pessoas iriam me receber».Lucas Tartari

Lucas retornou à escola

Foto da viagem que acabou em tragédia: Lucas é o primeiro a partir da direita.

À esquerda, mensagens dos colegas de turma.

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MESMO QUERENDO FICAR

GUILHERME THOFEHRN

Sabrina Dummer Laguilio, 23 anos, não queria voltar ao Brasil. Estava no Senegal, em

missão religiosa, e nem mesmo as duas agressões físicas sofridas no país africano a fizeram desejar o retorno, de onde partira meses antes com o ob-jetivo de ajudar a comunidade local. Por determinação da organização que a levara para lá, teve de interromper as atividades e embarcar para o Rio de Janeiro, em maio de 2011, quatro meses antes do previsto.

A experiência de Sabrina no con-tinente africano deveria ter durado um ano. O começo foi em agosto de 2010, e o fim planejado para setem-bro de 2011. Depois de atravessar o Oceano Atlântico, muitas mudanças a aguardavam.

– Eu achava que jamais voltaria. Antes de partir, dei e vendi quase tudo o que eu tinha. Na volta, en-contrei dificuldades de readaptação e financeiras. E também um choque de realidade: enquanto no Senegal um pedaço pequeno de sardinha era dividido e disputado entre cinco ou seis pessoas, aqui um pedaço grande de salmão é dispensado – conta.

A língua do país africano não foi um impedimento, muito menos a ca-minhada diária de cinco quilômetros para estudar francês. Além disso, foi discriminada por ser uma turista branca, sofreu agressões de homens que defendiam uma postura racista: levou um soco no rosto no centro da cidade e, tempos depois, foi empur-

Ela teve dificuldades no retorno de uma missão religiosa, mas hoje vive bem no Rio de Janeiro

rada por outro homem enquanto ia ao mercado. Ela caiu no chão e foi chutada, enquanto o homem gritava, em tom ofensivo: Tubab, Tubab.

Uma Tubab. Sim, era Sabrina, branca de olhos verdes e cabelos ruivos, que tem como característica marcante um sorriso largo no ros-to. Tubab é o termo utilizado para identificar turistas de cor branca na África. Sabrina tinha consciência do choque cultural e até de que poderia ser vítima de preconceito pela cor da pele, mas não desistiu. Sabia que ti-nha um propósito a cumprir:

– Na verdade eu não era cora-josa, tinha muito medo do que iria enfrentar. Mas era segura em minhas convicções. Enfrentei resistência da família também, eles não queriam que eu fosse.

Sabrina foi enviada para a África pelo projeto da JUMIB, um minis-

tério da Missão Evangélica Betânia, que tem como objetivo viabilizar ações missionárias transculturais e fazer discípulos entre os povos me-nos evangelizados do mundo. No Senegal, ela fez parte do projeto na reinserção social e alfabetização dos jovens que “fugiam” das práticas da religião muçulmana. Como missio-nária, tinha o trabalho de acolhê-los:

– O trabalho com os meninos independia da conversão ao cristia-nismo. A única bandeira que levan-tamos lá era a do amor.

Segundo Sabrina, os jovens que renunciam à cultura muçulmana no país são vistos como marginais, pois, na cultura senegalesa, aspec-tos sociais, como família, religião e trabalho estão interligados. A maioria das oportunidades de em-prego estão concentradas nas mãos de líderes relígiosos do país, que,

por sua vez, são muçulmanos.Um mês antes de dar início à

missão na África, conheceu o seu atual marido, o chef de cozinha Vi-nicius Laguilio. Enquanto estava em Dakar, capital senegalesa, ele esteve na Inglaterra. Até então, eram apenas namorados. Depois de seis meses em terras africanas, Sabrina recebeu a visita de Vinícius, que passou dois meses com a amada no Senegal. Ao retornarem para o Brasil, decidiram se casar. E foram para o Rio, terra de Vinicius, onde Sabrina ficou um tempo sem trabalho até reorganizar sua vida e sentimentos:

– Voltar foi mais difícil do que ir. Mas me tornei uma pessoa mais generosa, não ligo tanto para bens materiais. Ainda quero voltar, pas-sar mais um tempo lá, participar de novos projetos sociais com os senegaleses.

Sabrina voltou da

África

Sabrina em um de seus momentos alegres no Senegal, cercada de crianças

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Hoje, Sabrina trabalha para a Ode-brecht Realizações Imobiliárias, es-pecificamente na construção da Vila dos Atletas para o Rio 2016, na área de Comunicação Social, já que é for-mada em Marketing. Apesar da nova rotina, ela cultiva uma inquietação:

– Por mim, ficaria o resto da vida no Senegal. Acho até que o meu co-ração ficou lá.

Sabrina fala de situações como a vivida com uma vendedora de legu-mes, perto de sua casa, em Dakar. A comunicação com a vendedora não era muito fácil, mas isso não foi um obstáculo.

– Eu estava aprendendendo a fa-

lar francês e ela só falando wollof (dialeto local), mas nos entendíamos de alguma maneira – lembra.

Ao contar para a vendedora que deixaria o Senegal, a vendedora ime-diatamente guardou seus legumes na banca e levou Sabrina a sua casa, onde lhe serviu um prato típico sene-gales: o chebujen, receita típica feita com arroz, legumes e peixes. Depois da refeição, outro carinho: a vende-dora pintou as mãos de Sabrina, as unhas, parte do braço, pés e unhas dos pés com uma técnica utilizada em festas especiais no Senegal.

– Foi a maior declaração de ami-zade que eu já recebi – conta Sabrina.

« Ainda quero voltar, passar mais um tempo lá, participar de novos projetos sociais com os senegaleses».Sabrina Laguilio

CAMILE FORNASIER

Apesar de curado, Bruno Basso, 20 anos, morador de Bento Gonçal-ves, na Serra Gaúcha, não vai mais voltar a jogar futebol e a dançar no CTG, duas de suas paixões. São se-quelas de uma Leucemia Linfoblás-tica Aguda tipo T, descoberta quando Bruno tinha 14 anos.

– Fiz cinco cursos de dança e até dava aulas, mas agora não consigo mais – explica Bruno, que precisou de um transplante de medula em 2010 para se curar da doença, e que hoje convive com uma escoliose e osteo-porose crônica nos braços e pernas.

Um transplante que, à época, mo-vimentou Bento Gonçalves. Foram quatro campanhas em busca de uma medula compatível, sem sucesso. O mesmo ocorreu com as buscas feitas pelo Hospital de Clínicas nos bancos nacional e internacional de medu-la óssea. A salvação foi encontrada quando apareceram dois cordões umbilicais, um vindo dos Estados Unidos e o outro de São Paulo, utili-zados no transplante.

A contabilista Salete Detoni, que participou da mobilização em busca de doadores compatíveis, ficou preocupa-da ao saber da doença do amigo, pois Bruno ainda era muito novo:

– Como eu também passava na

época por um diagnóstico de câncer, consegui sentir que ele iria superar tudo e encontrar forças para melho-rar e enfrentar todas as adversidades do tratamento. Dentro daquele cor-po nascia um guerreiro.

Bruno, filho do aposentado Dal-cir Basso e da dona de casa Vania Beatriz Trevisan Basso, foi levado a Porto Alegre para ser submetido ao transplante de medula óssea, onde iniciou quimioterapia e radioterapia para eliminar as células infectadas. Cerca de um mês após a cirurgia, ele teve alta médica. Entretanto, a vol-ta à rotina foi complicada: teve que morar um tempo em Canoas, pois tinha que viajar para a Capital dia-riamente para fazer quimioterapia. Além disso, teve que ficar longe dos familiares e, também, do afilhado recém-nascido, filho de Ronaldo, seu irmão. Bruno tem ainda outra irmã, a agricultora Margaret, mãe de seu sobrinho de oito anos. Durante os períodos de internação, Bruno co-nheceu várias pessoas que também tinham leucemia. E muitos viraram amigos. De todos os que conheceu, 22 já morreram.

– Éramos uma família, um pas-sando força para o outro. O momento da perda era muito ruim para mim, pois sempre pensava que o próximo poderia ser eu – desabafa Bruno.

Bruno comemora o transplante que o deixou curado MESMO SEM PODER DANÇAR

Ele recuperou a saúde e a vontade de viver depois de três anos de luta contra a leucemia

«Fiz cinco cursos de dança e até dava aulas, mas agora não consigo mais».Bruno Basso

Bruno no Hospital de Clínicas, em Porto Alegre, em agosto de 2010

Bruno em 2009, no Parque dos Pinheiros, em Bento

Bruno em 2012, pesando 50 quilos

Sabrina e o marido, Vinícius, no dia do casamento, já em solo brasileiro

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A estudante Larissa Stepa-now conheceu seu pai, Jorge, aos 10 anos de ida-

de. A partir daí, foram cinco anos de convivência, almoços, telefone-mas, tentativas tímidas de recuperar afeto. Em 2008, Jorge, então com 51 anos, é encontrado morto em seu apartamento na Capital.

– Eu estava tomando sopa quan-do minha mãe me contou que meu pai tinha falecido. Na hora, parecia que nada tinha acontecido. À noite, a ficha caiu e eu fiquei mal. Afinal, havia perdido meu pai – recorda Larissa, hoje com 19 anos.

Larissa é fruto de um casamento efêmero. Sua mãe, Maria José Ce-cília Stepanow, 51 anos, conheceu o pai de sua filha em 1986. Maria

José e Jorge trabalhavam no centro de Porto Alegre, e foram apresenta-dos por uma amiga em comum. Co-meçaram a namorar naquele mes-mo ano. No seguinte, casaram-se.

Larissa nasceu em 1993, ano em que seus pais se divorciaram.

– Ele tinha problemas com ál-cool. Quinze dias após Larissa nas-cer, ele foi internado. Eu não tinha como cuidar de um bebê e de um alcoólatra. Tentei dar uma chance e o internei. Mas ele voltou a beber, então pedi o divórcio.

Os anos se passavam e as no-tícias de Jorge foram ficando cada vez mais raras. As poucas que che-gavam davam conta de que ele ha-via casado novamente, e que tinha outra família. Enquanto isso, Laris-

sa seguia sua infância, sem o pai:– Eu não conhecia meu pai, per-

cebi isso nas apresentações na es-cola, que ele não ia. Mas nunca per-guntei para a mãe sobre ele, e nunca tinha visto uma foto dele.

A mãe de Larissa diz que tentou contato com Jorge algumas vezes ao longo dos anos, mas não obteve resposta:

– Quando Larissa tinha 10 anos, e sua avó paterna faleceu, Jorge, que já estava separado de novo, fi-cou muito sozinho. E então procu-rou a Larissa.

Marcamos um dia para nos en-contrarmos na psicóloga dele, e foi assim que o homem que ela nunca tinha visto na vida surgiu.

– Eles passaram poucos dias

juntos, mas costumavam almoçar. Eram encontros rápidos, sem muita profundidade – explica Maria José.

Larissa, por outro lado, se diz contente com o reencontro:

– Foram cinco anos bons. Me-lhor do que não ter nada. Nunca me arrependi de tê-lo conhecido. Ele me ligava umas duas, três ve-zes por semana. Ele falava e eu só concordava. Disso eu me arre-pendo: devia tê-lo escutado mais. Lembro-me também que passei um Dia dos Pais com ele. Dei um perfume.

Jorge foi encontrado morto em seu apartamento na capital gaúcha em 26 de maio de 2008. Na época, segundo Maria José, ele estava ca-sado pela terceira vez, e já estava

AOS QUINZE ANOS

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Larissa ficou novamente sem pai

DANILO PEDRAZZA

O divórcio precoce dos pais fez com que ela crescesse longe do pai. Aos 10 anos, se reencontraram. Após cinco anos de convívio, ela volta a ficar sem ele

Larissa com poucos meses de vida acompanhada da mãe em um parque da Capital

Uma das poucas fotos de Larissa com o pai, na casa da avó paterna, em Morungava, distrito de Gravataí

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«Ele me ligava umas duas, três vezes por semana. Ele falava e eu só concordava. Disso eu me arrependo: devia ter escutado mais ele».Larissa Stepanow

se separando novamente. Foi essa mulher quem avisou Maria José da morte de Jorge. O laudo do IML não apontou a presença de álcool no corpo. Maria José suspeita de uma overdose de medicamentos.

O último emprego de Jorge foi no INSS em Porto Alegre, onde teve colegas como Ari Reinoldo Endres, 59 anos, que lembra do amigo:

– Ele trabalhou uns quatro ou cinco anos aqui. Era muito inteli-gente, mas dava para ver de longe que tinha problemas. Além de falar abertamente sobre suas dificulda-des, também falava com muito ca-rinho de sua filha e de como era sua relação com ela.

Meses depois da morte, Maria José entregou uma carta de Jorge a Larissa, escrita em papéis de recei-tuários médicos quando ele estava internado em uma clínica. Nessa car-ta, Jorge implora perdão à Maria José e diz que ama sua filha mais do que tudo; pede ajuda; diz que vai se reer-guer e vencer a doença.

Quando ele enviou a carta, La-rissa era um bebê. A carta foi lida aos 17 anos por sua filha. E teve uma resposta, nunca recebida por ninguém. É um segredo que Larissa prefere guardar. Durante a produção desta reportagem, Larissa foi ao ce-mitério visitar o túmulo do pai, pela primeira vez.

– Se eu pudesse tê-lo agora, gos-taria de conversar mais. Considera-va-o mais meu amigo do que pai, então queria poder ter essa chance de ver esse meu amigo de novo.

Um registro da convivência entre Larissa e o pai: em 2006, na formatura do Ensino Fundamental do colégio La Salle Dores, na Capital

Larissa na primeira visita ao túmulo do pai, em novembro de 2012

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Enrico voltou Perdas e crises marcaram a adolescência do garoto que aprendeu a superar as dores e encontrou a felicidade

LAUREN GRAEF CAMARGO

Enrico* tinha 15 anos quando foi diagnosticado com síndrome de pâ-nico. Precisou trocar de escola, ten-tou se matar, se isolou do mundo. E voltou do inferno fortalecido.

As fraquezas, há muito exis-tentes, vieram à tona quando o tio morreu. Era a primeira vez que isso ocorria a alguém próximo.

– Na minha criação, até aque-le ponto, tudo havia sido resolvido com dinheiro, mas como comprar a vida do tio de volta? Eu podia pedir isso pro meu pai?

Foi quando ele começou a perce-ber que alguns problemas eram in-solúveis. Nada traria o tio de volta. E veio a crise. Enrico frequentava a escola Sinodal quando começou a perder muitas aulas. Sentindo-se deslocado e inseguro, imaginava que estar no quarto, longe de todos, o deixaria protegido.

Ao final do ano letivo, conseguiu formar-se, apesar das notas baixas.

muito mais forte

No ano seguinte, foi transferido para outra escola. No intervalo das aulas, sentia-se perdido em meio a tanta gente, em um mundo de “cada um por si”, como define. A mudan-ça de colégio fez Enrico faltar ain-da mais aulas, até que abandonasse completamente os estudos. Fora da escola a situação também se agrava-va: ele cortava os pulsos com facas e giletes.

– Isso às vezes parece exagera-do, mas a dor física é muito funcio-nal para aliviar a emocional – justi-fica Enrico.

Nesse ano de crise, Enrico, já habituado a escrever, se empenhou ainda mais na tarefa, até perder-se em meio a personagens e expecta-tivas irreais.

– É tão ridículo e sublime pos-suir um planeta inteiro dentro da sua cabeça – divaga.

A vida de Enrico não tem um grande drama. Foram pequenas de-

DO FUNDO DO POÇO

«Felicidade é quando tu tens muitos problemas e mesmo assim se sente com forças para superá-los».Enrico

cepções, fracassos e omissões que, acumulados, geraram uma crise, uma estagnação social aliada a uma depressão emocional. E foi por in-fluência de um amigo que, após uma tentativa de suicídio, ele buscou a terapia como tentativa de entender as causas de sua depressão. Com o tempo, Enrico diz que passou a perceber que viver no imaginário de sua escrita poderia ser perigoso. A terapia então focou na busca de coragem para que ele enfrentasse desejos e expectativas, até então só encontrados no papel.

A partir do uso de medicação para controlar crises de pânico e reprimir desejos suicidas, Enrico

conseguiu sair de casa e começou a trabalhar:

– Aquelas horas fora de casa eram terríveis. Eu me sentia em um jogo de queimada. Quanto mais lon-ge de casa mais vulnerável eu esta-va, podendo ser atingido por qual-quer um, a qualquer momento.

No ano seguinte, com o apoio da psicóloga, do pai e do mesmo amigo que o havia incentivado a começar a terapia, Enrico se matriculou no Ins-tituto de Educação São José, onde já havia estudado quando pequeno e para onde sonhava voltar. Com ques-tões sérias já elaboradas e resolvidas pela terapia, agora ele vive uma vida real, ainda cheia de expectativas, mas não feita apenas delas.

– Felicidade é quando tu tens muitos problemas e mesmo assim se sente com forças para superá--los – ensina Enrico, que agora diz ter uma espécie de preguiça reversa, uma vontade imensa de correr por aí, um desejo enorme e infindável de gastar a vida.

E compara, quase como um de-vaneio, a vida a um pneu de bicicle-ta ou um tênis que, ao ser gasto e usado, prova-nos que o objeto não está sendo desperdiçado:

– Se de alguma forma eu pu-desse mudar o mundo ou parte dele com apenas um texto, eu gostaria apenas de dizer que nunca é tarde demais ou cedo demais para alguém ser como quer ser.

*O nome foi alterado a pedido

do entrevistadoEnrico na nova escola, em 2012

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VICENTE LÜTZ

Em 2009, o skatista Guilher-me Pio de Almeida, hoje com 22 anos, sofreu um

acidente que o afastou das compe-tições e o deixou três meses com o tornozelo engessado. Depois, fo-ram mais dois meses de fisioterapia até que tomasse coragem de subir novamente num skate.

E isso ocorreu quando encon-trou, ao sair da última sessão de fi-sioterapia, seu irmão Tiago andando de skate na Praça da Matriz. Tiago conta que até tentou impedir o ir-mão, mas a insistência foi enorme:

– Fiquei preocupado em em-prestar o skate, o pé dele ainda estava inchado. Mas no final deu tudo certo, até umas manobras ele arriscou. O problema foi aguentar ele reclamando da dor depois, mas tenho certeza de que valeu a pena, e ele faria o mesmo comigo.

Nos meses seguintes, o jeito foi ir devagar, para fortalecer o pé e resgatar o equilíbrio e o ritmo perdidos.

– No começo foi difícil, pois todos meus amigos estavam no pique de andar sem nenhum pro-blema de lesão, e eu não. Tenta-va acompanhar, mas meu pé doía e inchava. Não conseguia andar por mais de uma hora – contou Guilherme.

Morador do centro de Porto Alegre, Guilherme é frequentador da Praça da Matriz, lugar histórico para o skate gaúcho onde, na déca-da de 90, surgiram grandes nomes para o esporte. Antes do acidente, por morar próximo à praça, ele pas-

sava o dia todo praticando com os amigos. Chegava a matar aula para andar mais tempo. A evolução téc-nica era visível, e Guilherme pas-sou a ganhar competições. Era bem provável que se tornasse mais um talento revelado em Porto Alegre que ganharia o mundo. Mas a vida é cheia de imprevistos.

A queda ocorreu quando ele tentou pular uma escada de sete degraus, realizando a manobra va-rial heelflip. Guilherme caiu e tor-ceu o pé, rompendo os ligamentos. Como não conseguia firmar a perna no chão, sentiu, de imediato, que havia se machucado seriamente.

Apesar da dificuldade de reco-meçar, ele não desistiu de sua pai-xão. Continuou batalhando para recuperar seu nível, mas deparou--se com os problemas que a lesão causara no seu pé esquerdo, agora com movimentos limitados. O so-nho de se tornar profissional havia acabado, mas o envolvimento com o skate não: ele queria registrar e ajudar a divulgar a modalidade.

– Meu pai tinha uma filmadora antiga, então comecei a sair com ela de casa para registrar as sessões com meus amigos. Como em pou-co tempo eu já tinha muita imagem coletada, resolvi editá-las e fazer um vídeo para divulgar no youtube.

Deu certo. Guilherme já está gravando para o seu terceiro vídeo, sempre com imagens descontraídas e manobras de alto nível. Cursando jornalismo na PUC-RS, ele agora quer fazer cursos para aperfeiçoar as edições do material. E planeja um futuro na área, nas pistas de skate, perto dos amigos e de sua paixão.

PELO SKATE

«Meu pai tinha uma filmadora antiga, então comecei a sair com ela de casa para registrar as sessões com meus amigos».Guilherme Pio de Almeida

Guilherme manobrando pela cidade, antes de se

machucar

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soal Ao se lesionar e perder as esperanças de se tornar profissional, ele

encontrou um novo caminho para ficar perto de sua paixão

Guilherme investiu em outra

manobra

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«Nara, filha da Maria da Glória da Rocha, minha amiga?»Elenir Dahmer Linauer

Os encontros de Nara e Nique (a partir da esq.) sáo regados a emoções e risadas

Maria da Glória foi quem começou essa história

Vale

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Lina

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SURPREENDIDAS POR UM ALÔ

VALESKA LINAUER

Era mais um dia pouco mo-vimentado no serviço de atendimento ao consumidor

da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE). A atendente Nara da Rocha cobria o turno de um co-lega de trabalho. O telefone toca. Do outro lado da linha, uma mu-lher queria abrir uma conta para a filha, moradora de Porto Alegre. Como não havia cadastro, era preci-so fazê-lo. O nome? Elenir Dahmer Linauer. Elenir, esse nome era inco-mum demais para ser somente uma coincidência. Mesmo não podendo fugir do protocolo de atendimento, este caso merecia a infração:

– A senhora fez uma cirurgia de coluna anos atrás?

– Isso por acaso consta no meu CPF? – perguntou a cliente.

– Sou eu, a Nara – revelou a atendente da CEEE.

– Nara, filha da Maria da Glória da Rocha, minha amiga?

Sim, era ela.– Aquela doce voz, por certo her-

dada de sua mãe, me trouxe lembran-ças maravilhosas – conta Elenir.

A voz era da Nara que Elenir ha-via conhecido em 1981, por meio de Maria da Glória Rocha, com quem dividira um quarto no Hospital da PUC. Na época, Elenir, a Nique, como é conhecida, tinha apenas 18 anos e já sentia dores na coluna. Como o hospital da interiorana Santa Rosa não tinha recursos para o tra-tamento da escoliose recém-desco-berta, a moça tímida foi levada para a capital gaúcha, acompanhada de Anita, sua mãe. No quarto de cinco camas do hospital da PUC, Maria da

As amigas se conheceram em 1981 e, dez anos depois, perderam o contato, recuperado através de uma ligação telefônica inesperada

Glória também tratava sua coluna, castigada pelo tempo.

A política de segurança do hospi-tal era rígida, só permitia uma hora di-ária de visitas. Por isso, Anita não po-dia cuidar da filha, que não conseguia movimentar-se. Aos prantos, mãe e fi-lha despediam-se todos os dias. Maria da Glória, da cama ao lado, assistindo a dor daquela mãe, comoveu-se. Ni-que, hoje com 49 anos, ainda lembra da frase que iniciou essa amizade que ultrapassa gerações.

– Pode ir, vai tranquila, eu cui-do dela – disse aquela voz, suave

como o toque de algodão, a uma Anita, que, naquele momento, per-dera a aflição.

E cuidava mesmo. Até água na boca dava, se preciso. Maria tinha três filhos, com idades próximas a de Nique. Todos os dias, das 13h às 14h, o quarto era tomado pela ale-gria dos parentes das duas, que já haviam se tornado amigas. As fa-mílias se uniam à medida em que a amizade de Nique e Maria ia se fortalecendo. Nara, pouco mais ve-lha que Nique, observava a menina naquela cama. Por serem de duas

Nique e Nara resgataram a

amizade

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cidades muito distantes, a curiosi-dade sobre a metrópole e o interior alimentava as conversas.

Os dias foram passando, e Maria da Glória teve alta. Mas ela volta-va ao quarto para visitar sua jovem amiga. Depois da alta de Nique, nem mesmo a distância, de mais de 500 quilômetros, separou as famílias. Sim, famílias, pois a essa altura da história, os filhos e o marido de Ma-ria da Glória já haviam adotado Ni-que como outra filha, escolhida pelo coração. Nara lembra um fato que, para ela, representa esse carinho:

– Um dia, a Nique estava na nos-sa casa, comendo sopa, e resolveu pegar o pão com a mão. Meu pai olhou para ela e disse: Olha só, tu és da família mesmo, e tem que ser assim, bem à vontade.

Trocaram cartas e visitaram-se ao longo dos anos. Telefone? Naquele tempo, era preciso entrar numa in-findável fila de espera para conseguir uma linha, lembra Nara. Foram mais de dez anos de trocas de confidên-cias, carinhos e dedicação. Com o tempo, as jovens moças tornaram--se mulheres. Nique formou-se em Biologia, casou-se e teve duas filhas, ainda morando em Santa Rosa. Nara também se formou e se casou, e é mãe de uma menina e um menino, com as mesmas idades das filhas da amiga. O contato entre elas, entre-tanto, foi escasseando. As mortes do pai de Nara e do marido de Nique só vieram acelerar o processo de dis-tanciamento que elas, entristecidas, confessam não saber onde começou.

Depois daquela ligação tele-fônica que as uniu, Nara e Nique combinaram um jantar. No dia do reencontro, não disseram nada. Só se olharam e choraram abraçadas. Maria da Glória, que tanto deu de si para ajudar aos outros, já se foi, mas a certeza de sua presença naquele encontro era nítida para as amigas.

Na última visita de Nique à fa-mília Rocha, o pai de Nara, que era espírita, havia lhe dito que, na pró-xima visita, contaria a ela o motivo da ligação tão forte entre eles. Ele morreu em seguida, e não houve próxima vez. Mas quem disse que elas precisavam de explicação para essa amizade? A vida trouxe a elas as explicações necessárias.

LUCAS WITKOSKI BROLEZI

Pedro Paulo Rita, 59 anos, morador de Porto Alegre, enfrentou uma cirurgia e

tratamentos longos e complicados para se curar de um câncer. E ago-ra tem saúde plena.

Um Linfoma Não-Hodgkin foi o diagnóstico recebido pelo engenhei-ro civil em novembro de 2007. Após sentir sintomas como emagrecimen-to inexplicado, fraqueza e suor ex-cessivo, Pedro procurou o Hospital Moinhos de Vento, onde fez exames e foi constatada uma hidrocele tes-ticular, um tumor. Um mês depois, fez a primeira cirurgia. E, em março do ano seguinte, começou o trata-mento com uma injeção que previne com que o câncer se espalhe e che-gue ao cérebro.

– Foi uma fase difícil. Eu tinha uma doença pouco conhecida até mesmo por especialistas e, mes-mo passando por muitos médicos,

nenhum tinha respostas concretas – recorda Pedro, que diz ter ficado assustado e cheio de dúvidas.

A situação melhorou quando ele encontrou uma médica que já trata-va um caso semelhante ao dele. E que sugeria fazer o tratamento, com o medicamento injetável. O outro paciente dela não fez o tratamento e a doença havia se espalhado pelo corpo. Pedro precisava decidir.

Um dia antes de falar com os médicos, Pedro estava em casa com a família, quando re-cebeu no quarto a visita de Leandro, que diz:

– Pai, acho que posso te ajudar.E então entregou a ele um papel

com a frase:– Tenha medo, mas tenha o do-

bro de coragem para enfrentar o que vai passar.

Estava decidido, ele faria o tra-tamento indicado pela médica. Com o passar do tempo, por mais que os remédios o deixassem fraco, ele

nunca demonstrou dor ou aflição.– Ele nunca desistiu, sempre

mostrou força – explicou a mulher Nara.

Durante os momentos de imuni-dade baixa, efeito da quimioterapia, Pedro se distraía no quarto, diante do computador. E como a família estava em um bom momento finan-ceiro, ele começou a investir na Bol-sa de Valores. E, por mais que ele te-nha perdido bastante dinheiro, isso o animou. E ninguém se importou com os prejuízos. Em dezembro de 2008, depois de fazer todo o trata-mento, a quimioterapia sistemática, a injeção intratecal e a radioterapia, ele conseguiu se curar. A família está mais unida, e Pedro garante que é um novo homem:

– Estou mais sensível, dou mais importância aos amigos e a família. Além disso, agora sou um pai mais tolerante.

E completamente recuperado, do câncer e das finanças.

Pedro venceu um câncerSEM RECEIO DA DOR

Ele conseguiu se recuperar de uma doença rara depois de indecisões sobre o tratamento

«Estou mais sensível, dou mais importância aos amigos e à família. Além disso, agora sou um pai mais tolerante».Pedro Paulo Rita

Em família, Pedro (seg. a partir da esq) com os filhos e a esposa Nara

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Maurício encarou aDISPOSTO A VENCER A SAUDADE

A perda do pai em 2002, enquanto jogavam uma partida juntos, foi um trauma a ser superado pelo universitário

ragem. Incentivado pela mãe, irmã, amigos do colégio e companheiros de time, Maurício conseguiu, em 16 de fevereiro de 2003, jogar uma partida completa na mesma quadra onde viu seu pai, Ademir, falecer em seus braços. A volta ao futebol foi uma forma de se reaproximar do pai.

– Quando entrei naquele cam-po, tirei uma tonelada dos meus ombros, senti um alívio que jamais achei que sentiria – conta.

A irmã Thaís Krug, que acom-

panhou todo o processo, também vibrou com a conquista:

– Ele se considerava culpado, di-zia que não tinha feito todo o possí-vel. Voltar a jogar futebol era algo que ele sempre quis fazer, por isso aquele jogo foi muito especial para ele.

A recuperação estava comple-ta. Embora ainda sinta saudades do pai, ele cursa Educação Física desde 2009, joga futebol e guarda na memória só lembranças boas do companheiro de time e de vida.

quadra de futebol

«Quando entrei naquale campo, tirei uma tonelada dos meus ombros, senti um alívio que jamais achei que sentiria».Maurício Krug

FELIPE BRAUN DA SILVA

Maurício Krug viveu uma tragédia em 2 de junho de 2002. Tinha 14 anos

e jogava futebol quando o pai, que atuava no mesmo time, sofreu uma parada cardíaca em campo.

– Ele deu um passe, que nosso goleiro reclamou por ter sido ruim, e aí eu olhei para o pai para brincar com o que tinha acontecido. Quan-do vi, ele estava com a mão no pei-to, cabeça baixa, tronco encolhido, depois se ajoelhou e, em seguida, deitou – descreve.

No momento de desespero, Mau-rício, que hoje tem 24 anos, tentou reanimar o pai Ademir. Como não sabia fazer massagem cardíaca, a força usada por ele acabou lesio-nando o tórax de seu pai. Um trau-ma difícil de ser superado. Maurício e o pai eram muito ligados, compa-nheiros de esportes, o que acabou influenciando inclusive a escolha da carreira do filho, que cursa Educa-ção Física e trabalha na Academia Personalle, em Porto Alegre.

Ademir jogava futebol desde pequeno, e quis passar ao primogê-nito o gosto pelo esporte. Quando jovem, Maurício era levado aos jo-gos de fim de semana de seu pai. Ou então ao Parque Marinha do Brasil, também para partidas de futebol.

– Sempre falava para ele: quan-do crescer vou jogar futebol contigo – recorda.

Quando tinha 13 anos, o sonho de infância virou realidade. Em 2001, Ademir convidou seu filho para par-ticipar do jogo de todo domingo com a turma de amigos. Estavam felizes

Maurício Krug (primeiro à esq. na fila de trás) volta a jogar futebol

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com a atividade que os unia. Até que veio a morte do pai, repentinamente, no campo de futebol.

Meses após a perda do pai, Maurício decidiu que queria não só voltar a jogar futebol, mas também participar de um jogo no mesmo campo e com os mesmos amigos de seu pai, num domingo, dia habitu-al da partida. Foi uma meta difícil, já que o medo de jogar futebol era muito grande. Maurício não conse-guia nem assistir a uma partida na televisão. E não era só com o fute-bol o problema. Ele relacionava o drama da morte do pai com qual-quer tipo de esporte. Na escola, não queria mais fazer Educação Física.

Na quadra onde jogava com o pai, ele colocava o uniforme e, na hora de entrar no campo, ficava imóvel. Chegava a tremer as pernas ao tentar entrar. A solução foi acom-panhar os embates do lado de fora, como espectador.

Alguns meses depois veio a co-


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