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C. S. Lewis - A Anatomia de Uma Dor

Date post: 10-Oct-2015
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  • A ANATOMIA DE UMA DOR

  • C . S . L e w i s

    ANATOMIA DE UMA DORum luto em observao

    Traduo

    Alpio Franca

  • 1961, d e C . S. Lewis 1996, C . S . Lewis Pte. Lta.

    T tulo originalA G rief Observededio publicada originalmente por H a r p e r C o l l in s P u b l is h e r s , Ltd. (Hamm ersmith, London, United Kingdom)

    Todos os direitos em lngua portuguesa reservados por Editora Vida

    P r o i b id a a r e p r o d u o p o r q u a i s q u e r m e i o s ,

    SALVO EM BREVES CITAES, C O M INDICAO DA PO N TE.

    Todas as citaes bblicas foram extradas da Nova Verso Internacional (NV1),2001, publicada por Editora Vida, salvo indicao em contrrio.

    E d it o r a V id a

    Rua J lio de Castilhos, 280, CEP 03059-000 So Paulo, SP

    Tel.: 0 xx 11 6618 7000 Fax: 0 xx 11 6618 7050 www.editoravida.com.br www.vidaacadem ica.net

    Coordenao editorial: Snia Freire Lula AlmeidaEdio: ris GardiniReviso: Srgio BarbosaReviso tcnica: Carlos CaldasConsultoria: Luiz SayoDiagramao: Sonia PeticovFoto: Toni RodriguesCapa: M oema Cavalcanti

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cm ara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Lewis, C. S., 1898-1963A anatomia de uma dor: um luto em observao / C. S. Lewis; tra

    duzido por Alpio Franca Correia Neto So Paulo: Editora Vida, 2007.

    Ttulo original: A Grief Observed ISBN 85-7367-859-3 I S B N 9 7 8 -8 5 -7 3 6 7 -8 5 9 -8

    1. Consolao 2. Davidman, Joy 3. Lewis, C. S., 1898-1963 4.Luto - Aspectos religiosos - Cristianismo I. Ttulo

    0 7 -4 9 1 2 C D D -242 .4

    ndice para catlogo sistemtico:

    1. Luto: Meditaes: Cristianismo 242.4

  • S u m r io

    Prefcio edio brasileira 7

    Prefcio edio original 11

    Introduo 17

    C a ptu lo u m 2 9

    C a ptu lo d o is 4 1

    C a ptulo tr s 5 7

    C a ptu lo q u atro 7 7

  • C r d ito s

    P r e f c io e d i o b r a sil e ir a

    Carlos Caldas

    P r e f c io e d i o o r ig in a l

    Madeleine LEngle

    I n t r o d u o

    Douglas H. Gresham

  • P r e f c io e d i o b r a s il e ir a

    fato bastante conhecido que C. S. Lewis foi um dos mais influentes e importantes pensadores cristos do sculo XX. No Brasil, de alguns anos para c, Lewis tem-se tornado cada vez mais conhecido, bem como algumas passagens de sua vida. Uma delas, a histria de seu curto, mas emocionalmente intenso casamento. Lewis casou com Joy Davidman, uma norte-americana divorciada e me de dois filhos. O casamento aconteceu por motivao puramente humanitria: Joy era uma estrangeira na Inglaterra e estava ameaada de deportao. O problema seria resolvido se ela casasse com um cidado britnico, o que efetivamente ocorreu. No entanto, algo absolutamente inesperado aconteceu: naquele casamento to improvvel, surgiu amor verdadeiro. O casamento foi de curta durao, pois logo Joy foi acometida de um cncer que se revelou fatal.

    A anatomia de uma dor o pungente relato da dor e do sentimento de perda sofrido por Lewis. curioso observar que, alguns anos antes de passar pela experincia da viuvez, Lewis havia escrito O problema do sofrimento. Nessa obra, Lewis fala sobre o drama da dor e do sofrimento com sua

  • habitual clareza de raciocnio e grande facilidade na exposio de idias. O livro apresenta uma defesa filosfica da inevitabilidade do sofrimento. Em O problema do sofrimento encontra-se a famosa declarao de Lewis quanto ao sofrimento ser o megafone de Deus, que ele usa para falar aos seus filhos. Todavia, A anatomia de uma dor bastante diferente. Trata-se da obra mais sombria e amarga de Lewis. Nela, encontram-se no mais idias tericas a respeito do sofrimento, mas o relato sincero de toda a confuso emocional, mental e espiritual experimentada por algum que perdeu a pessoa mais amada. Quem passou por experincia semelhante decerto h de identificar-se com o corajoso e autntico relato feito pelo autor.

    preciso lembrar que Lewis no foi o primeiro a usar uma linguagem ousada em seu momento de dor os salmos de lamento da Bblia utilizam uma linguagem extremamente inovadora em suas oraes. Tal linguagem no fruto de mero desespero ou falta de f. Muito pelo contrrio: o lamento era a orao dos fiis ao Senhor nos tempos da antiga aliana. O lamento era a orao no de ateus ou de pessoas contra Deus. O lamento era a orao de pessoas que tinham muita intimidade com o Senhor. Deus, em sua graa, concede aos fiis que esto em aliana com ele a oportunidade de, nas oraes de lamento, expressarem sua dor, sua angstia, sua indignao; mas, ao mesmo tempo, sua esperana, assim como C. S. Lewis o faz em A anatomia de uma dor. Nestas pginas h revolta e indignao. No se aceitam consolaes fceis, apresentadas com palavras vazias, assim como os antigos salmistas no aceitavam.

  • Em A anatomia de uma dor encontra-se tambm a expresso de que, acima de nossa capacidade humana de compreenso, est o Deus que no podemos entender. Se pudssemos entender todas as suas aes, ele no seria Deus. Apesar dessa realidade, esse Deus pode verdadeiramente consolar e dar esperana real que ultrapassa at mesmo a barreira da morte.

    Alguns evanglicos brasileiros podero surpreender-se com a maneira rude pela qual Lewis apresenta suas idias. Ningum obrigado a concordar com tudo o que ele escreveu. A palavra apostlica, que nos recomenda examinar tudo e reter o que bom, continua sendo vlida. Da que, antes de julgar o autor fundamentando-se em princpios moralistas e simplistas, preciso admitir que talvez Lewis expresse neste texto o que muitos cristos que vivem o luto pensam, mas no tm coragem de expressar.

    Est de parabns a Editora Vida pela iniciativa corajosa de publicar esta obra no Brasil.

    C a r l o s C a l d a s

    Professor na Escola Superior d e Teologia e no Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio da

    Universidade Presbiteriana Mackenzie, em So Paulo.

  • P r e f c io e d i o o r ig in a l

    Quando A anatomia de uma dor foi publicada pela primeira vez com o pseudnimo de N. W. Clerk, ela me foi presenteada por um amigo, e a li com grande interesse e um certo distanciamento. Eu estava na metade do meu casamento, com trs filhos jovens e, embora em muito me solidarizasse com C. S. Lewis em seu perodo de luto pela morte de sua mulher, naquela poca essa experincia estava to distante da minha realidade, que no me tocou profundamente.

    Passados muitos anos, depois da morte de meu marido, um outro amigo me enviou a obra e eu li, esperando envolver-me de modo muito mais prximo do que estivera na primeira leitura. Partes do livro tocaram-me profundamente; mas, no conjunto, minha experincia e a de Lewis, com o luto, eram muito diferentes. Em primeiro lugar, quando C. S. Lewis casou com Joy Davidman, ela estava hospitalizada. Ele sabia que casava com uma mulher que estava morrendo de cncer. E mesmo que houvesse o perdo inesperado, e alguns bons anos de suspenso temporria da pena, sua experincia com o casamento era pequena, se comparada a meu casamento de quarenta anos. Ele fora convidado a uma

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  • grande festa de casamento, e o banquete fora-lhe rudemente arrancado antes que ele pudesse ter feito mais do que provar a entrada. Para Lewis, aquela sbita privao acarretou uma breve perda da f. ... onde est Deus? [...] volte-se para Ele, quando estiver em grande necessidade, quando toda outra forma de amparo for intil, e o que voc encontrar? Uma porta fechada na sua cara.

    A morte de um cnjuge, aps um casamento longo e pleno de realizaes, algo bem diferente. Talvez eu nunca tenha sentido mais intimamente a fora da presena de Deus do que pude sentir durante os meses da agonia de meu marido e depois de sua morte. Essa presena no apagou o luto. A morte de uma pessoa amada uma amputao; contudo, quando duas pessoas casam, cada uma delas tem de aceitar que a outra poder morrer primeiro. Quando C. S. Lewis casou com Joy Davidman, uma coisa era certa: ela morreria primeiro, a menos que acontecesse algo inesperado. Ele entrou no casamento com uma expectativa iminente da morte, num testemunho extraordinrio de amor, coragem e sacrifcio pessoal. A morte que ocorre depois de um casamento completo e de um perodo razovel de vida, entretanto, faz parte da questo toda que envolve nascer, amar, viver e morrer.

    A leitura de A anatomia de uma dor durante meu prprio luto permitiu que eu entendesse que cada experincia com o luto nica. Sempre h, porm, determinadas semelhanas bsicas: Lewis menciona o estranho sentimento de medo, a boca seca, o esquecimento. possvel que, a exemplo de Lewis, todas as pessoas que crem sintam certo horror dos que, porventura, falem diante de uma tragdia seja feita a

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  • tua vontade, como se um Deus de amor jamais quisesse algo seno o bem para ns, sua criao. Ele mostra impacincia com os que tentam fingir que a morte no importante para o cristo, uma impacincia que muitos de ns sentimos, independentemente do tamanho da nossa f. C. S. Lewis e eu partilhamos, tambm, do medo da perda da memria. Nenhuma fotografia pode, na verdade, evocar o sorriso da pessoa amada. Vez por outra, certo vislumbre de algum andando

    pela rua, de uma pessoa viva, movendo-se, em ao, toca-nos, com a angstia da recordao genuna; mas nossas lembranas, por mais caras que sejam, escorrem inevitavelmente pelo crivo da peneira.

    A exemplo de Lewis, tambm eu mantive um dirio, dando continuidade a um hbito comeado quando eu estava com meus oito anos. No h mal algum em se revelar num dirio: trata-se de um modo de nos livrarmos da autopie- dade, do comodismo e do egocentrismo. O que fazemos em nosso dirio ns no despejamos na famlia nem nos amigos. Sou grata a Lewis pela honestidade de seu dirio de dor, porque ele deixa bem claro que ao ser humano concedido o afligir-se, e isso normal, que correto lamentar-se, e que ao cristo no negada sua reao natural perda. Lewis faz perguntas que todos fazemos: para onde iro as pessoas que amamos quando morrerem?

    Lewis confessa: Sempre fui capaz de orar pelos mortos,1 e ainda o fao, com certa confiana; mas, quando tento orar

    Essa foi uma posio muito particular de Lewis num momento especfico de sua vida e imortalizado nesta obra, o que no reflete nem o consenso evanglico nem a posio da Editora [N. do E.] .

  • por H. [como ele chama Joy Davidman em seu dirio], paraliso.. E esse sentimento eu entendo bem. A pessoa amada parte to forte dentro de ns mesmos a ponto de nos faltar a perspectiva da distncia. Como orar por aquilo que parte de nosso corao?

    No temos respostas prontas. A igreja ainda pr-coper- nicana em sua atitude com relao morte. A imagem medieval do cu e do inferno no foi substituda por nada mais realista, ou mais terno. Talvez, para aqueles que esto convencidos de que s os cristos que partilham seus pontos de vista so salvos e iro para o cu, as velhas idias ainda sejam adequadas.

    Contudo, para a maioria de ns, que vemos um Deus de muito mais amor do que um deus tribal que s faz zelar por seu pequeno grupo, h mais coisas necessrias. E estas so um salto de f, certa segurana de que aquilo que foi criado com amor no ser abandonado. Deus no cria para depois destruir; mas o lugar onde Joy Davidman ou meu marido se acha agora no pode ser apresentado por nenhum padre, nenhum ministro, nenhum telogo nos termos limitados de um fato provvel. ... no me venha falar sobre as formas de consolo que a religio d, escreve Lewis, caso contrrio, desconfiarei que voc no sabe do que est falando..A verdadeira consolao da religio no cor-de-rosa nem cmoda, mas con-fortadora , no sentido verdadeiro da palavra: com fora. Fora para continuar vivendo e para acreditar em que tudo aquilo de que Joy necessita, ou tudo aquilo de que necessita algum que amamos e que morreu, equivale a ser alvo daquele Amor que foi a origem de tudo. Lewis,

  • com propriedade, rejeita os que piedosamente lhe dizem que Joy agora est feliz, que est em paz. Ignoramos o que ocorre depois da morte, mas tenho dvidas de que todos ns ainda tenhamos muito a aprender, e que a aprendizagem no necessariamente fcil. Jung afirmava que no se vem vida sem dor, e isso pode muito bem ser verdadeiro para o que nos sucede aps a morte. O importante que no sabemos. Isso no se acha no campo das provas. Pertence ao campo do amor.

    Tambm sou grata a Lewis por ele ter tido a coragem de gritar, duvidar, revoltar-se contra Deus com violncia e raiva. Essa uma parte saudvel do perodo de luto que, por vezes, no estimulada em ns. de fato proveitoso que C. S. Lewis, que se empenhou com tanto xito em favor do cristianismo, tivesse a coragem de admitir a dvida acerca do que proclamou de modo to magistral. Sua dvida permite-nos admitir nossas prprias dvidas, nossas revoltas e angstias, e saber que fazem parte do desenvolvimento da alma.

    Dessa maneira, Lewis partilha seu prprio desenvolvimento e sua viso crtica. A consternao no o truncamento do amor conjugal, mas uma de suas fases regulares a exemplo da lua-de-mel. O que queremos viver bem nosso casamento, e de maneira fiel, passando tambm por essa fase. Sim, essa a vocao para a qual tanto o marido quanto a mulher so chamados.

    Tenho fotografias de meu marido espalhadas em meu escritrio, em meu quarto, agora, depois de sua morte, assim como as tinha por perto enquanto ele estava vivo, mas elas so cones, no dolos; projees instantneas e minsculas de

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  • lembranas, no as coisas em si mesmas, e, como diz Lewis, vez por outra constituem um obstculo, e no uma ajuda memria. Toda realidade iconoclasta, escreve ele. A pessoa amada na Terra, at mesmo nesta vida, no cessa de triunfar sobre a simples idia que voc faz dela. E voc quer que seja assim; voc a quer com todas as resistncias, todas as faltas, toda sua imprevisibilidade [...]. E isso, e no outra imagem ou lembrana qualquer, que devemos amar mesmo depois que ela morra.

    E isso mais importante do que aparies dos mortos, embora Lewis questione o assunto. No final das contas, o que se irradia ao longo das pginas finais de seu dirio de dor uma afirmao de amor, seu amor por Joy e o dela por ele, amor que se acha no contexto do amor de Deus.

    No se oferecem formas de consolo fceis nem sentimentais; no entanto o propsito ltimo do amor de Deus a todos ns, criao humana, o amor. Ler A anatomia de uma d o r partilhar no s a dor de C. S. Lewis, como tambm sua compreenso do amor, e isso , na verdade, riqueza.

    M a d e l e i n e L E n g l e

    Crosswicks, agosto d e 1988

    M adeleine LEngle (1918- ) escreveu mais de 50 livros, queabrangem muitos gneros: fantasia [A Swiftly T ilting P lanet (Um planeta ligeiramente inclinado)] , poesia [A Cry Like a B ell (Um grito como de sino)], ensaios [W alking on Water (Caminhada sobre as guas)] e biografia [Two-Part Inven tio (Inveno em duas partes)], alm de dirio [The Crosswick Jou rna ls (Os dirios de Crosswick)]. Recebeu o prmio Newbery pela obra A W rinkle In T im e [Uma dobra no tempo, Mundo Cristo, 2000].

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  • In t r o d u o

    A anatomia de uma dor no uma obra comum. Em certo sentido, no se trata absolutamente de um livro; antes o produto apaixonado de um homem de coragem que se volta para encarar seu sofrimento e analis-lo a fim de poder entender mais o que se requer de ns ao vivermos esta vida, o que pressupe termos de esperar o padecimento e a tristeza da perda dos que amamos. verdade afirmar que bem poucos homens poderiam ter escrito este livro, e ainda mais verdadeiro assegurar que um nmero menor o teria escrito mesmo que pudesse; menos pessoas, ainda, o teriam publicado, embora o tivessem escrito.

    Meu padrasto, C. S. Lewis, j havia escrito acerca do tema do sofrimento (O problema do sofrimento, 1940), o qual, para ele, no era uma experincia com que no estivesse familiarizado. Ele conhecera o luto quando criana: perdeu a me quando estava com nove anos de idade. Lamentou os amigos que perdera com o correr dos anos; alguns mortos em batalha durante a Primeira Guerra Mundial e outros por doena.

    Reeditado por Editora V ida, 2006 [N. do E.].

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  • Lewis tambm escrevera sobre os grandes poetas e suas canes de amor, mas de algum modo nem seu aprendizado nem suas experincias o haviam preparado para o contraponto que a combinao entre o grande amor e a grande perda; o jbilo a pairar nas alturas, que a descoberta e a conquista da pessoa amada que Deus reservou a ns; e o golpe esmagador, a perda, que a corrupo de Satans da grande ddiva que a de amar e ser amado.

    Quando algum, em conversa, faz referncia a este livro, costuma deixar de fora, quer inadvertidamente, quer por negligncia, o artigo indefinido do ttulo o que no deve ser feito em hiptese alguma, pois o ttulo descreve de maneira completa e abrangente o valor real desta obra. Qualquer coisa intitulada A anatomia da dor teria de ser to geral e vaga quanto acadmica em sua abordagem e, assim, de pouca utilidade a quem quer que aborde ou viva a experincia da perda de algum.

    Este livro, por sua vez, um duro relato das tentativas refletidas de um homem de atracar-se com a paralisia emocional do sofrimento mais dilacerante de sua vida e o de super-la no final.

    O que faz desta obra algo ainda mais notvel o fato de seu autor ter sido um homem excepcional, e de aquela, por quem pranteou, ter sido uma mulher brilhante. Ambos foram escritores, ambos dotados de talento acadmico, ambos cristos comprometidos; aqui, porm, cessam as semelhanas. Fascina-me o modo pelo qual Deus, de tantas maneiras, une pessoas que at ento estavam distantes e funde-as na homogeneidade espiritual que o matrimnio.

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  • Jack (C. S. Lewis) foi um homem cuja erudio extraordinria e capacidade intelectual isolaram-no de grande parte da humanidade. Poucas pessoas houve em seu mundo acadmico capazes de disputar com ele no debate ou na anlise, e os que poderiam fazer isso quase inevitavelmente se viam levados uns aos outros num pequeno grupo organizado que passou a ser conhecido como The Inklings [Tinturas] e que nos deixou um legado literrio. J. R. R. Tolkien, John Wain, Roger Lancelyn-Green e Neville Coghill estavam entre os que freqentavam essas reunies informais.

    Helen Joy Gresham (Davidman era seu nome de solteira), o H. a que se faz referncia neste dirio, talvez fosse a nica mulher a quem Jack conheceu como seu par intelectual e tambm to versada e de educao to ampla quanto a dele. Os dois partilhavam um outro fator comum: ambos tinham memria absoluta. Jack nunca esqueceu nada do que havia lido; tampouco Helen.

    A criao de Jack era um misto de irlands de classe mdia (ele veio de Belfast, onde seu pai era procurador do tribunal de polcia) e ingls, situada bem no comeo do sculo XX poca em que os conceitos de honra pessoal, o compromisso total com a palavra empenhada e os princpios gerais de cavalheirismo e boas maneiras ainda eram incutidos no jovem britnico do sexo masculino com muito mais intensidade do que qualquer outra forma de observncia religiosa. Os escritos de E. Nesbit, Sir Walter Scott e talvez Rudyard Kipling constituam os exemplares dos padres com que Jack foi doutrinado quando jovem.

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  • Minha me, por sua vez, no poderia ter uma formao mais divergente do que a dele. Filha de imigrantes de segunda gerao de judeus de classe mdia-baixa, o pai de origem ucraniana, a me de origem polonesa, nasceu e foi criada no Bronx na cidade de Nova York. As nicas semelhanas notveis encontradas na comparao do desenvolvimento que ambos tiveram em seus primeiros anos eram as de que os dois eram detentores de uma inteligncia verdadeiramente surpreendente, aliada ao talento acadmico e memria eid- tica. Ambos chegaram a Cristo por uma estrada longa e difcil que vai do atesmo ao agnosticismo e, deste, pela via do tesmo, finalmente para o cristianismo; ambos desfrutaram de um xito admirvel em seu percurso de estudantes universitrios. O de Jack foi interrompido em virtude de seu dever para com a ptria na Primeira Guerra Mundial; o de minha me, pelo ativismo poltico e pelo casamento.

    Muito se escreveu, tanto de cunho ficcional como real (vez por outra, um se disfarando do outro), sobre a vida deles, seu encontro e casamento, contudo a parte mais importante da histria que pertence a este livro to-somente um certo reconhecimento do grande amor que floresceu entre eles at se tornar uma incandescncia quase visvel. Davam a impresso de caminhar juntos no fulgor de sua prpria criao.

    Para que entendamos ao menos um pouco da agonia que esta obra apresenta, bem como a coragem que demonstra, indispensvel reconhecer o amor entre os dois. Quando eu era criana, observei essas duas pessoas notveis se unirem, primeiramente como amigos, depois, numa progresso in- comum, como marido e mulher; por fim, como apaixona-

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  • dos. Eu fiz parte da amizade, e fui agregado ao casamento, mas permaneci exterior ao amor. Com isso no quero dizer que, de alguma forma, eu tenha sido excludo deliberadamente; mas, de preferncia, que o amor entre eles era algo de que eu no poderia, e no deveria, fazer parte.

    Mesmo naquela poca no comeo da minha pr-ado- lescncia permaneci do lado de fora e observei o amor desenvolver-se entre os dois, e era capaz de sentir-me feliz por eles. Era uma felicidade tingida de tristeza e medo, pois eu sabia, assim como minha me e Jack, que aquele, o melhor dos tempos, seria breve e terminaria em perda.

    Eu tinha ainda de aprender que todos os relacionamentos humanos terminam em sofrimento trata-se do preo que nossa imperfeio permitiu a Satans extorquir de ns em paga ao privilgio do amor. Eu tinha, por ser jovem, a capacidade de recuperar-me quando minha me morreu. Para mim, haveria outros amores a encontrar e, sem dvida, a seu tempo perder, ou por esses amores deixar-me perder. Quanto a Jack, todavia, aquele fora o fim de muito o que a vida por tanto tempo lhe negara e ento lhe oferecera brevemente como uma promessa estril. Para ele no houve nenhuma das esperanas por mais vagas que eu possa v-las de prados iluminados pela luz do sol nem de luz de vida e risos. Eu tinha em Jack algum em quem me apoiar, e o pobre Jack s tinha a mim.

    Sempre quis a oportunidade de explicar um detalhe deste livro que revela certa incompreenso. Jack refere-se ao fato de que, se ele mencionasse minha me, eu poderia ficar incomodado, como se ele houvesse dito algo obsceno. Ele

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  • no entendia o que se passava algo incomum para ele. Quando minha me morreu, eu tinha catorze anos e era o produto de quase sete anos de doutrinao na Escola Prepa- ratria Inglesa. A lio que me foi mais repetida durante todo aquele perodo era que a maior vergonha que me poderia ocorrer seria ver-me compelido s lgrimas em pblico. Meninos ingleses no choram; mas eu sabia que, se Jack conversasse comigo acerca de minha me, eu cairia num pranto incontrolvel, e, pior ainda, ele tambm. Essa era a fonte do meu incmodo. Foram necessrios quase trinta anos para eu aprender a chorar sem ficar envergonhado.

    Este dirio um homem que se desnuda emocionalmente em seu prprio Getsmani. Trata da agonia e do vazio de uma dor, tal como poucos de ns tm de suportar, j que, quanto maior o amor, maior o luto e, quanto mais profunda a f, mais ferozmente Satans toma de assalto sua fortaleza.

    Quando Jack se viu afligido pelo tormento emocional de seu luto, ele tambm padeceu a angstia mental advinda dos trs anos de uma vida de medo constante, da extrema dor fsica causada pela osteoporose e de outras enfermidades, alm da pura exausto de gastar aquelas ltimas semanas cuidando continuamente da mulher moribunda. Sua mente distendeu-se de uma forma inimaginvel muito alm do que um homem mais frgil pudesse suportar; passou a tomar nota de seus pensamentos e de suas reaes a eles, a fim de que o caos em que se transformara sua mente fizesse algum sentido. Na poca em que os registrava, no tinha a inteno de que aquelas efuses fossem publicadas; mas, ao examin-las

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  • algum tempo depois, sentiu que poderiam muito bem ser de alguma ajuda a quantos se vissem afligidos de modo semelhante com o turbilho de pensamentos e sentimentos que o luto nos impinge. Esta obra foi inicialmente publicada com o pseudnimo de N. W. Clerk. Em sua severa honestidade e simplicidade sincera, o livro tem um poder raro: o poder da verdade revelada.

    Para que se reconhea a profundidade de seu sentimento carregado de dor, julgo importante saber um pouco mais das circunstncias que marcaram seu primeiro encontro e seu relacionamento posterior.

    Minha me e meu pai (o romancista W. L. Gresham) eram ambos muito inteligentes e talentosos, o que no impediu que tivessem muitos conflitos e dificuldades no casamento. Minha me crescera num ambiente ateu e, mais tarde, filiou- se ao comunismo. Sua inteligncia inata no lhe permitiu ser enganada muito tempo por aquela filosofia oca; assim (nessa poca, casada com meu pai), viu-se procura de algo menos pedante e mais real.

    Em meio a leituras de uma ampla variedade de autores, deparou com a obra do escritor ingls C. S. Lewis; assim, tornou-se consciente de que, sob o verniz frgil e muito humano das igrejas organizadas do mundo, jaz uma verdade to real e antiga, que, a seu lado, todas as posturas filosficas estudadas desmoronam. Tambm se deu conta de que ali estava uma mente dotada de uma lucidez mpar. A exemplo do que fazem todos os novos adeptos da f crist, ela tinha perguntas, por isso escreveu para Jack. Ele reparou em suas cartas de imediato, pois tambm davam sinais de uma

  • mente notvel; no demorou para que comeassem a se corresponder.

    Em 1952, minha me trabalhava na obra sobre os Dez Mandamentos [Smoke on the Mountain (Fumaa na montanha), Westminster Press, 1953] e, enquanto convalescia de uma doena grave, viajou para a Inglaterra determinada a debater o livro com C. S. Lewis. Sua amizade e seus conselhos foram sem limite, assim como os de seu irmo, W. H. Lewis, historiador e escritor de habilidade respeitvel.

    Ao voltar para os Estados Unidos, minha me (ento uma perfeita anglfila) descobriu que seu casamento com meu pai terminara e, depois do divrcio, partiu para a Inglaterra com meu irmo e comigo. Vivemos algum tempo em Londres, mas Jack no nos visitava, embora j trocassem cartas. De fato, ele raramente ia a Londres, cidade da qual no gostava. Aquela poca, minha me e ele nutriam apenas uma amizade intelectual, embora, como muitas outras pessoas, recebssemos um significativo apoio financeiro de seu fundo de caridade especial.

    Minha me achou Londres um lugar deprimente para se viver e teve vontade de estar perto de seu crculo de amigos em Oxford, o qual inclua Jack, seu irmo, Warnie, e pessoas como Kay e Austin Farrer. Acho demasiado simples e hipottico dizer que o nico motivo que a levou a se mudar fosse estar perto de Jack, mas este com certeza foi um fator muito importante.

    Nossa curta estada em Headington, sada de Oxford, parecia o comeo de muitas coisas que poderiam ter sido maravilhosas. Nossa casa era visitada com freqncia por bons

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  • amigos e era o cenrio de muitos debates intelectuais animados. Foi tambm durante essa poca que o relacionamento entre Jack e mame comeou a tomar novo rumo. Acho que Jack resistiu ao profundo apego emocional a minha me quando comeou a tomar conscincia dele, em grande parte porque esse relacionamento era algo que ele equivocadamente julgava estranho sua natureza. A amizade platnica era- lhes conveniente e no causava a Jack nenhum enrugamento na plcida superfcie de sua existncia; entretanto ele foi impelido no apenas conscincia interior de seu amor por ela, como tambm ao reconhecimento pblico desse amor diante da sbita compreenso de que estava beira de perd-la.

    Parece quase uma crueldade: a morte dela foi-se protelando at ele chegar a am-la to plenamente, que ela lhe preenchia o mundo como a maior ddiva que Deus lhe concedera; ento ela morreu e o deixou s no vazio de sua ausncia.

    O que muitos de ns descobrem nesse transborda- mento de angstia que sabemos exatamente aquilo sobre o que ele est falando. As pessoas entre ns que trilharam a mesma via, ou que a esto trilhando enquanto lem este livro, descobrem que no estamos, afinal de contas, to ss quanto pensvamos.

    C. S. Lewis, o homem que escreveu coisas to claras e corretas, o pensador cuja intensidade de raciocnio e clareza de expresso nos facultaram entender tantas coisas, esse cristo vigoroso e determinado tambm mergulhou no turbilho de pensamentos e sentimentos instveis e procurou, atordoado, por apoio e orientao no fundo do abismo escuro

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  • da dor. Como eu queria que ele tivesse sido abenoado exa- tamente com uma obra como esta! Se no encontrarmos ne- nhum consolo no mundo nossa volta, nenhum refrigrio quando bradarmos a Deus, se o mundo no fizer nada mais por ns, ao menos este livro nos ajudar a enfrentar nosso luto e a interpret-[lo] em parte.

    Para outras leituras, recomendo Jack: C. S. Lewis and His Times [C. S. Lewis e sua poca], de George Sayer (Harper & Row, 1988; Crossway Books), como uma das melhores biografias disponveis; a biografia de minha me escrita por Lyle Dorsett, And God Came In [E Deus entrou] (Macmillan, 1983); e tambm, talvez de maneira um tanto sem modstia, para se ter um ponto de vista de algum prximo vida familiar, meu prprio livro, Lenten Lands [Terras lgubres] (Macmillan, 1988; HarperSanFrancisco, 1994).

    D o u g l a s H. G r e s h a m

    Douglas Gresham (1945- ) bigrafo e produtor de cinema.Filho de Joy Gresham e enteado de C. S. Lewis, por quem foi adotado em 1956. Douglas co-produtor na adaptao da srie As crn icas d e N rnia para o cinema. Escreveu Lenten Lands: M y Childhood with Joy Davidman and C. S. Lewis (1988) e Jacks Life: The Life Story o f C. S. Lewis (2005).

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  • A ANATOMIA DE UMA DOR

  • C a p t u l o u m

    Ningum me disse que o luto se parecia tanto com o medo. No estou com medo, mas a sensao a mesma. A mesma agitao no estmago, a mesma inquietao, o bocejo, a boca seca.

    Outras vezes como estar ligeiramente embriagado, ou em estado de choque. H uma espcie de vu entre o mundo e mim mesmo. Custa-me assimilar o que qualquer pessoa diz. Ou, talvez, o difcil seja querer assimilar. Tudo to pouco interessante, no entanto quero que os outros estejam ao meu redor. Tenho horror quando a casa est vazia. Ah, se eles conversassem uns com os outros e no comigo!

    Existem momentos, de maneira mais inesperada, em que algo dentro de mim tenta assegurar-me de que realmente no me importo tanto, no tanto assim, apesar de tudo. O amor no tudo na vida de um homem. Eu era feliz antes de conhecer H. Tenho muito do que se chama de recursos. As pessoas recuperam-se dessas coisas. Vamos, no posso me deixar levar dessa maneira. Temos vergonha de dar ouvidos a essa voz, mas por um instante ela parece ser boa. Ento sobrevem um golpe repentino de lembranas acaloradas, e todo

  • esse lugar-comum desaparece como a formiga na boca da fornalha.

    No momento seguinte, passa-se s lgrimas e autopieda- de. Lgrimas piegas. Quase prefiro os momentos de agonia. Pelo menos, eles so puros e honestos; mas o banho de auto- piedade, o afundar-se nela, o prazer repugnante de entregar-se a ela isso me enoja. E mesmo enquanto o estou fazendo, sei que isso me leva a desfigurar a imagem da prpria H. Se eu der rdea solta a esse estado de esprito, em poucos minutos terei substitudo a mulher real por uma simples boneca pela qual vou chorar desesperadamente. Graas a Deus minhas lembranas sobre ela so ainda fortes demais (seno sempre assim?) para que eu seja bem-sucedido fazendo isso.

    H. no era assim de forma alguma. Sua mente era gil, veloz, vigorosa como um leopardo. A paixo, a ternura e o sofrimento eram todos igualmente incapazes de desarm-la. Ela farejava o menor resqucio de lamria ou de pieguice; depois saltava e derrubava voc antes que voc soubesse o que estava acontecendo. Quantas bolhas de ar minhas ela no furou! Em pouco, aprendi a no lhe dizer bobagens, a menos que o fizesse por puro prazer e l vem outro golpe fervente pelo puro prazer de me expor e de rir de mim. Nunca fui menos tolo do que na condio de seu amado.

    E ningum nunca me falou sobre a preguia do luto. Exceto em meu trabalho em que a produo parece continuar em grande parte como de costume abomino o menor esforo. No s escrever, mas tambm ler uma carta algo demasiado. At mesmo fazer a barba. Ora, o que

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  • importa se meu rosto est barbeado ou no? Dizem que um homem infeliz quer distrao algo que o faa sair de si. E como um homem morto de cansao que deseja uma coberta extra numa noite de inverno, mas, em vez de se levantar e procurar uma, ficasse deitado l, tremendo de frio. E fcil ver por que as pessoas sozinhas se tornam mal-arrumadas e, no final de tudo, sujas e repulsivas.

    Nesse meio-tempo, onde est Deus? Esse um dos sintomas mais inquietantes. Quando voc est feliz, muito feliz, no faz nenhuma idia de vir a necessitar dEle,1 to feliz, que se v tentado a sentir suas reivindicaes como uma interrupo; se se lembrar e voltar a Ele com gratido e louvor, voc ser ou assim parece recebido de braos abertos. Mas, volte-se para Ele, quando estiver em grande necessidade, quando toda outra forma de amparo for intil, e o que voc encontrar? Uma porta fechada na sua cara, ao som do ferrolho sendo passado duas vezes do lado de dentro. Depois disso, silncio. Bem que voc poderia dar as costas e ir embora. Quanto mais espera, mais enftico o silncio se torna. No h luzes nas janelas. Talvez seja uma casa vazia. Ser que, algum dia, chegou a ser habitada? Assim pareceu, certa vez. E essa semelhana era to forte quanto agora. O que isso pode significar? Por que em tempos prsperos Ele mais parece um comandante e em tempos conturbados Sua ajuda to ausente?

    Com o intuito de manter o estilo e a perspectiva do autor, foram preservados nesta obra os usos de letras maisculas e minsculas, notadamente nas referncias a Deus e a nomes comuns quando personificados ou individualizados [N. do E].

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  • Tentei expor alguns desses pensamentos a C. nesta tarde. Ele me lembrou de que o mesmo parece ter acontecido com Cristo: Por que me abandonaste?.2 Eu sei. Mas isso torna as coisas mais fceis de serem entendidas?

    No que eu esteja (suponho) correndo o risco de deixar de acreditar em Deus. O perigo real o de vir a acreditar em coisas to horrveis sobre Ele. A concluso a que tenho horror de chegar no ento, apesar de tudo, no existe Deus nenhum, mas ento, assim que Deus realmente. No se iluda..

    Nossos antepassados discutiam e diziam Seja feita a tua vontade.3 Quantas vezes o amargo ressentimento foi sufocado por meio do simples horror, e um ato de amor sim, em todo sentido, um ato , usado para ocultar a operao?

    Evidentemente, bem fcil afirmar que Deus parece ausente em nossas maiores necessidades, porque Ele est ausente no-existente. No entanto por que Ele parece to presente quando, para dizer com franqueza, no solicitamos sua presena?

    Uma coisa, contudo, o casamento fez por mim. Nunca mais acreditarei que a religio se produza fora do nosso inconsciente, dos desejos famintos, nem que seja um substituto para o sexo. Naqueles poucos anos, H. e eu festejamos o amor, em cada aspecto dele grave e alegre, romntico e realista, vez ou outra to dramtico quanto uma tempestade de tro-

    2Mateus 27.46 [N. do E.].3Mateus 6.10 [N. do E.].

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  • ves, poucas outras vezes de modo to confortvel, cmodo e agradvel quanto usar chinelos macios. Nenhuma fissura da alma nem do corpo ficou por preencher. Se Deus fosse um substituto para o amor, deveramos ter perdido todo o interesse por Ele. Quem se importaria com substitutos quando se tem a coisa em si? Mas no o que ocorre. Ambos sabamos que queramos algo alm de um ao outro um tipo de coisa bem diversa, uma espcie muito diferente de necessidade. Voc pode muito bem dizer que, quando as pessoas que se amam tm uma outra, jamais querem ler, nem se alimentar nem respirar.

    Depois da morte de um amigo, anos atrs, durante algum tempo tive a mais vvida sensao de certeza da continuidade de sua vida; at mesmo do enaltecimento de sua vida. Tenho rogado que me seja dada at mesmo uma centsima parte da mesma certeza a respeito de H. No h resposta alguma. S a porta fechada, a cortina de ferro, o vcuo, o nada. Pois todo o que pede ...4 no recebe. Fui um louco em pedir. Por ora, mesmo que essa segurana sobreviesse, eu no lhe deveria dar crdito, antes deveria julg-la uma auto-hipnose motivada por minhas prprias oraes.

    De qualquer modo, devo continuar ao largo dos espiritualistas. Prometi a H. que o faria. Ela conhecia alguma coisa desses crculos.

    Manter promessas feitas aos mortos, ou a qualquer outra pessoa, muito bom; mas comeo a perceber que o respeito

    4M ateus 7.8 [N. do E.].

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  • pela vontade do morto uma armadilha. Ontem, parei no exato momento em que iria fazer um comentrio sobre uma bobagem qualquer: H. no teria gostado disso. Isso injusto com os outros. Se continuasse assim, em pouco tempo eu usaria a expresso o que H. gostaria como instrumento de tirania domstica, o que faz de suas supostas preferncias um disfarce cada vez mais imperceptvel para as minhas prprias preferncias.

    No consigo falar sobre ela com as crianas. Quando tento fazer isso, aflora-lhes ao rosto no o pesar, nem o amor, nem o medo, tampouco a piedade, mas a pior de todas as manifestaes, o embarao. Eles me olham como se eu estivesse praticando um ato indecente. Torcem para que eu pare. Com a morte da minha me, sentia exatamente a mesma coisa diante da mais simples meno a seu nome por meu pai. No posso culp-los. Os meninos so assim.

    Vez por outra acho que a vergonha, a vergonha imprevista, reprimida, tola, faz tanto para impedir as boas aes e a felicidade constante, quanto qualquer um de nossos vcios capaz de fazer. E no s na juventude.

    Ou ser que os meninos esto certos? O que pensaria a prpria H. destas anotaes medonhas a que retorno repetidas vezes? Seriam elas mrbidas? Certa vez, li a frase fiquei acordado toda a noite com dor de dente, pensando sobre dor de dente e sobre ficar acordado. Isso funciona para a vida. Parte de todo tipo de privao , por assim dizer, o seu reflexo ou sombra correspondente o fato de que voc no apenas sofre, mas tem de continuar pensando no fato de que est sofrendo. No s vivo meu luto a cada dia interminvel,

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  • como tambm vivo a cada dia pensando sobre o que viver todos os dias em luto. Ser que esses apontamentos s fazem agravar esse aspecto do luto? S confirmam o avano montono do redemoinho da mente em torno de um s tema? Mas o que devo fazer? Preciso de algum remdio, e ler no um remdio forte o bastante no momento. Ao tomar nota de tudo (tudo? no: de um pensamento em uma centena), como se tomasse uma dose do medicamento. Eis como eu haveria de defender esse ponto de vista perante H., mas aposto dez contra um que ela perceberia uma falha na minha defesa.

    No so apenas os meninos. Um estranho subproduto de minha perda o fato de que estou consciente de causar um embarao a quem quer que eu encontre. No trabalho, no clube, na rua, vejo pessoas que, ao se aproximarem de mim, tentam decidir se diro ou no algo sobre o assunto. Detesto que o faam, e detesto que no o faam. Alguns o evitam completamente. R. evitou-me durante uma semana. Gosto mais dos rapazinhos bem educados, quase meninos, que se aproximam de mim como se eu fosse um dentista: enchem- se de rubor, recompem-se e, ento, caminham para o bar to depressa quanto lhes permita a discrio. Talvez aqueles que se viram privados de algum devessem ser isolados em lugares especiais, como acontece com os leprosos.

    Para alguns, sou pior do que um embarao. Sou uma caveira. Toda vez que deparo com um casal feliz, sou capaz de not-los pensando: Um de ns algum dia vai ser como ele agora.

    A princpio, sentia muito receio de ir a lugares em que H. e eu framos felizes nossopub favorito, nosso bosque fa

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  • vorito; mas resolvi fazer isso de uma vez como mandar um piloto voar de novo logo depois de ter sofrido um desastre. De repente, no faz diferena alguma. No sinto a falta dela nesses lugares mais do que em qualquer outro. Essa falta definitivamente no se prende ao local. Acredito que, caso se proibisse todo sal a algum, essa pessoa no haveria de perceb-lo mais num alimento do que em outro. De modo geral, o ato de comer seria diferente a cada dia, a cada refeio. E mais ou menos assim. O ato de viver diferente a cada momento. A ausncia dela como o cu, estendido sobre todas as coisas.

    Mas no inteiramente. H de haver um lugar em que eu perceba sua ausncia de modo preciso, um lugar que no posso evitar. Refiro-me a meu prprio corpo. Ele tinha uma importncia distintiva enquanto era o corpo da pessoa que H. amava. Agora como uma casa vazia; mas eu no me deixo enganar a mim mesmo. Esse corpo haveria de tornar-se importante para mim de novo, e bem rapidamente, se eu pensasse que havia algo errado com ele.

    Cncer, cncer e mais cncer. Minha me, meu pai, minha mulher. Pergunto-me quem ser o prximo na fila.

    A prpria H., contudo, ao morrer de cncer, estando bem consciente do fato, disse que perdera muito de seu antigo horror por essa doena. Quando a realidade chegou, o nome e a idia j tinham perdido um pouco a cor. E at certo ponto eu quase entendia. Isso importante. A pessoa nunca depara com o Cncer, nem com a Guerra, tampouco com a Infelicidade (ou Felicidade). Na verdade, depara apenas com a hora e o momento em que chegam. Com toda sorte de

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  • imprevistos. Com muitos aspectos ruins em nossos melhores momentos e com muitos aspectos bons nos piores. Nunca se tem o impacto total, a coisa em si; o nome que lhe damos, porm, imprprio. A coisa em si so apenas todos esses imprevistos: o restante no passa de um nome ou de uma idia.

    E inacreditvel quanta felicidade, at mesmo quanto divertimento, no raro vivencivamos juntos depois que toda a esperana se foi. Que conversa longa, tranqila, construtiva, tivemos juntos naquela ltima noite!

    E, no entanto, no estvamos inteiramente juntos. H um limite para o ser uma s carne.5 No podemos, de fato, partilhar a fraqueza de algum, nem o medo, tampouco o sofrimento. O que voc sente pode ser ruim. Hipoteticamente, poderia ser to ruim quanto o que o outro sente, mas eu no confiaria muito em algum que alegasse a total semelhana; pois ainda seria muito diferente. Quando falo do medo, quero referir-me ao medo puramente animal, ao recuo do organismo diante da possvel destruio ao sentimento asfixiante, sensao de ser um rato numa ratoeira. Esse sentimento intransfervel. A mente pode at compreender; j o corpo, menos. De certa forma, o corpo das pessoas que amam tem menos chance ainda. Todos os momentos de amor pelos quais passaram juntos foram preparatrios para que tivessem sentimentos no idnticos, mas complementares, correlatos, at mesmo opostos, um em relao ao outro.

    5Gnesis 2 .24 [N. do E.J.

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  • Ambos sabamos disso. Eu tinha minhas infelicidades, no as dela, que por sua vez possua as suas, no as minhas. O fim de suas infelicidades equivaleria ao amadurecimento das minhas. Estvamos seguindo por estradas distintas. Essa verdade fria, essas regras de trnsito (A senhora, dirija-se direita; o senhor, esquerda, por favor.) so apenas o comeo da separao que a morte.

    E essa separao, suponho, est espera de todos. Tenho pensado em H. e em mim mesmo e em como fomos injustamente separados um do outro. Presumo que todos os apaixonados o so. Um dia, ela me disse: Mesmo que morramos exatamente no mesmo instante, enquanto estamos aqui deitados um ao lado do outro, seria uma separao igual de que voc tem tanto medo. claro que ela no sabia, no mais do que eu; no entanto, ela estava perto o bastante da morte para dar um tiro certeiro. Costumava dizer Sozinha rumo solido. Dizia ter a impresso disso. E imensamente improvvel que fosse de outra forma! O tempo, o espao e o corpo eram o que nos uniam; os cabos telefnicos pelos quais nos comunicvamos. Corte um ou ambos ao mesmo tempo, e a conversa no ser interrompida de todo jeito?

    A no ser que voc admita que alguns outros meios de comunicao inteiramente diferentes, porm com a mesma funo devessem ser substitudos de imediato; mas, ento, que fim concebvel poderia haver em separar os antigos? Ser que Deus um palhao, que de sbito lhe retira a tigela de sopa a fim de, no momento seguinte, substitu-la por outra com a mesma sopa? Nem a natureza parece seme-

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  • lhante palhao. Ela jamais toca duas vezes a mesma msica exatamente igual.

    E difcil ter pacincia com pessoas que dizem: A morte nao existe, ou A morte no importa. A morte existe e, seja l o que for, ela importa. Tudo o que acontece traz conseqncias, e tanto a morte quanto as conseqncias so irrevogveis e irreversveis. Voc pode, do mesmo modo, dizer que o nascimento no importa. Ao olhar para o cu noturno, pergunto-me se h algo mais certo do que isto. Em todos os tempos e espaos, se me fosse dado sond-los, no encontraria em lugar algum o rosto dela, sua voz, seu toque. Ela morreu. Est morta. Ser que a palavra to difcil de se aprender?

    No tenho nenhuma boa fotografia dela. No posso sequer lhe ver o rosto claramente em minha imaginao; no entanto o rosto comum de um estranho em meio a uma multido de pessoas nesta manh pode aparecer para mim numa perfeio vvida no momento em que fecho os olhos noite. No resta dvida: a explicao por demais simples. Vimos o rosto dos que mais conhecemos de modo to variado, de tantos ngulos, sob tantas luzes, com expresses to diversas acordando, dormindo, rindo, chorando, comendo, conversando, pensando , que todas as impresses preenchem nossa memria ao mesmo tempo e se anulam num simples borro; mas sua voz ainda vvida. A voz lembrada que capaz de transformar-me a qualquer momento num menino choro.

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  • C a p t u l o d o is

    Pela primeira vez, voltei os olhos para o que tinha escrito. Meus apontamentos me apavoram. A julgar pelo modo como escrevi, qualquer um pensaria que a morte de H. teve importncia, acima de tudo, pelo efeito que causou em mim. As opinies dela parecem ter-se perdido de vista. Ser que esqueci o momento de amargura em que ela gritou: E h muito por que se deva viver?. A felicidade no lhe aconteceu cedo na vida. Mil anos felizes no teriam feito dela uma mulher blase.1 Seu gosto por todas as alegrias dos sentidos, da mente e do esprito achava-se vivo e inclume. Nada teria sido desperdiado nela. Ela gostava de muitas coisas e gostava mais do que qualquer um que eu tenha conhecido. Uma fome nobre, havia muito no satisfeita, encontrara por fim seu alimento adequado, que quase instantaneamente lhe foi arrancado. O destino (ou seja l o que for) agrada-se em gerar uma grande capacidade e, ento, frustr-la. Beethoven ficou surdo. Para nossos padres, uma piada de mau gosto; a travessura de um idiota mal-intencionado.

    'Do f rancs, entediada, indiferente a novidades [N. do E.].

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  • Devo pensar mais em H. e menos em mim mesmo.Isso parece bem adequado. S que h um empecilho. Penso

    nela quase o tempo todo. Penso em coisas relacionadas a H. palavras ditas, olhares, risos e atos. No entanto, minha prpria mente que os seleciona e agrupa. Neste exato momento, menos de um ms depois de sua morte, sou capaz de sentir o comeo lento e insidioso de um processo que far dela, penso, uma mulher cada vez mais imaginria. Fundada em fatos, sem dvida. No acrescentarei nada de fictcio (pelo menos, o que espero). Mas ser que a arte final no se tornar inevitavelmente cada vez mais uma exclusividade minha? A realidade no est mais l para controlar-me, para fazer-me parar, como a verdadeira H. tantas vezes o fez, de modo to inesperado, ao ser to inteiramente ela mesma e no eu.

    O presente mais precioso que o casamento me trouxe foi esse impacto constante de algo muito prximo e ntimo, ao mesmo tempo incomparavelmente alheio, resistente numa s palavra, real. Tudo isso est para ser desfeito? O que ainda chamo de H. dever acabar submerso em nada mais do que minhas iluses de solteiro? O, minha querida, volte; volte por um momento e afaste esse fantasma miservel. O, Deus, Deus, por que tiveste tanto trabalho de obrigar esta criatura a sair de sua concha se ela agora est condenada a se arrastar de volta a ser novamente levada para l?

    Hoje, tive de encontrar um homem que no via por dez anos. E todo esse tempo eu pensava que me lembrava bem dele de sua aparncia, de como falava e do tipo de coisas que dizia. Os primeiros cinco minutos diante do homem real

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  • despedaaram completamente a imagem. No que ele houvesse mudado. Pelo contrrio. Continuei pensando: Sim, claro, claro. Havia esquecido que ele pensava assim ou no gostava daquilo, ou sabia isso e mais isso, ou voltava a cabea para trs daquela forma. No passado, eu conhecera todas essas coisas, e reconheci-as no momento em que novamente deparei com ele; contudo elas se haviam apagado da imagem mental que eu fizera dele e, quando foram todas substitudas por sua presena concreta, o efeito total foi surpreendentemente diferente da imagem que eu guardara naqueles dez anos. Como posso esperar que tal no acontea com minhas lembranas de H.?, que no esteja acontecendo agora mesmo?, lenta, serenamente, como flocos de neve como os pequenos flocos que caem quando vai nevar a noite toda pequenos flocos de mim mesmo, minhas impresses, minhas escolhas comeam a encobrir a imagem dela. A forma real estar totalmente oculta no fim. Dez minutos dez segundos da H. real haveriam de corrigir tudo isso; contudo, mesmo que me fosse dado esse breve perodo de tempo, um segundo depois os pequenos flocos comeariam a cair de novo. O gosto amargo, forte e purificador de sua alteridade foi embora.

    Que hipocrisia lamentvel dizer: Ela viver para sempre na minha memria!. Viver? Isso exatamente o que ela no far. Voc pode muito bem pensar, a exemplo dos antigos egpcios, que possvel conservar os mortos embalsamando-os. Ser que nada nos vai convencer de que eles se foram? O que resta? Um cadver, uma lembrana e (para alguns) um fantasma. No passam de zombarias ou horrores. Mais

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  • trs formas para a palavra morto. Quem eu amei foi H. Como se eu quisesse apaixonar-me pela memria que tenho dela, uma imagem que pertence a minha prpria mente! Seria um tipo de incesto.

    Lembro-me cie que fiquei um tanto horrorizado certa manh de vero h muito tempo quando um trabalhador corpulento e jovial, carregando uma enxada e um regador, entrou no cemitrio da igreja e, enquanto puxava o porto atrs de si, gritou sobre o ombro para dois amigos: Vejo vocs depois, estou indo visitar mame!. Ele queria dizer que estava indo capinar, regar e arrumar de modo geral o tmulo dela. Fiquei horrorizado porque esse modo de sentir, toda essa histria de cemitrio, era e simplesmente odiosa, at mesmo inconcebvel, para mim; porm, luz de meus pensamentos recentes, comeo a indagar-me se, no caso de ser possvel a algum estar 110 ramo de atividades daquele homem (e a mim no possvel), no h muito a se dizer sobre ele. Mame foi reduzida a um canteiro de 1 m x 2 m. Esse era o smbolo que ele criara para ela, seu vnculo com ela. Cuidar daquilo era o mesmo que visit-la. Em certo sentido, ser que isso no ser melhor do que preservar e acalentar uma imagem daquela pessoa em nossa prpria memria? O tmulo e a imagem so, de igual maneira, elos com o irrecupervel e smbolos do inatingvel. Mas a imagem tem a desvantagem adicional de que far o que voc deseja. Sorrir ou fechar a cara, ser terna, alegre, irreverente ou inclinada discusso conforme o seu estado de esprito exigir. Trata-se de uma marionete cujas cordas voc manipula. No agora, claro. A realidade est ainda por demais recente; lembran

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  • as genunas e completamente involuntrias ainda podem, graas a Deus, precipitar-se e arrancar-me as cordas da mo. Mas a obedincia fatal da imagem, a dependncia inspida que tem de mim obrigada a aumentar. O canteiro, por sua vez, constitui um fragmento da realidade, obstinado, resistente, por vezes intratvel, assim como mame indubitavelmente o era. Como H. era.

    Ou como H. . Ser que eu poderia dizer com franqueza que acredito que ela hoje seja alguma coisa? A maioria das pessoas que encontro, digamos, no trabalho, decerto pensaria que ela no . Embora, naturalmente, elas no procurassem me convencer disso. No numa hora destas. O que penso, na verdade? Sempre fui capaz de orar pelos mortos,2 e ainda o fao, com certa confiana; mas, quando tento orar por H., paraliso. A perplexidade e o pasmo sobrevm. Tenho uma sensao horripilante de irrealidade, de falar no vazio acerca de uma no-entidadc.

    A razo para a diferena simples demais. Voc nunca tem conscincia do quanto de fato acredita em alguma coisa enquanto a verdade ou a falsidade dessa coisa no se torna uma questo de vida ou morte para voc. E fcil dizer que voc acredita que uma corda seja forte e segura, enquanto a est usando apenas para amarrar uma caixa; mas imagine que deva dependurar-se nessa corda sobre um precipcio. Ser que no iria primeiro descobrir o quanto na verdade confia nela? O mesmo se d com as pessoas. Por anos eu teria

    2Ver nota na p. 13 [N. do E.].

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  • dito que tinha total confiana em B. R. Ento veio o dia em qiie tive de chegar concluso sobre se iria ou no confiar-lhe um segredo realmente importante. Isso lanou uma nova luz sobre o que eu chamava de minha confiana nele. Descobri que no havia coisa semelhante. Apenas um perigo verdadeiro pe prova a realidade de uma crena. Aparentemente, a f julgava-a f que me possibilita orar pelos outros mortos s me pareceu forte porque nunca me preocupei de fato, no desesperadamente, sobre se eles existiam ou no; no entanto pensei que me houvesse preocupado.

    Mas h outras dificuldades. Onde ela est, agora? Ou seja, em. que lugar ela est neste momento? Se H., porm, no for um corpo e o corpo que amei com certeza no mais H. ela no se acha em parte alguma. E o neste momento uma data ou um ponto em nossa sucesso temporal. E como se ela partisse numa viagem sem mim e eu dissesse, olhando o meu relgio: Ser que ela est em Euston agora?; contudo, a menos que ela esteja seguindo a sessenta segundos por minuto ao longo dessa mesma linha do tempo que ns, os vivos, devemos percorrer em viagem, o que significa agora?. Se os mortos no esto no tempo, ou no no tipo de tempo que nos peculiar, haver alguma distino clara entre era, e , e ser quando falamos deles?

    Pessoas gentis disseram-me: Ela est com Deus. Em certo sentido, isso est certssimo. Ela , como Deus, incompreensvel e inimaginvel.

    Acho, porm, que essa questo, por mais importante que seja em si mesma, apesar de tudo, no to relevante quanto o luto. Imagine que a vida terrena que ela e eu partilhamos

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  • por alguns poucos anos sejam apenas, na verdade, a base ou o preldio para duas coisas inimaginveis, supercsmicas, eternas, ou mesmo a aparncia terrena delas. Essas coisas poderiam ser retratadas como esferas ou globos. O lugar em que o plano da Natureza os atravessa ou seja, na vida terrena elas se parecem com dois crculos (crculos so subdivises de esferas). Dois crculos que se tocaram; mas estes, sobretudo no ponto em que se tocaram, so a prpria coisa pela qual lamento, de que sou saudoso, de que sinto fome. Voc me diz: Ela continua.; mas minha alma e meu corpo gritam: Volte! Volte! Volte a ser um crculo, tocando o meu crculo no plano da Natureza!. Eu, no entanto, sei que isso impossvel. Sei que o que eu desejo precisamente o que jamais poderei obter. A antiga vida, as piadas, os drinques, as discusses, fazer amor, os pequenos lugares-comuns, de partir o corao. De qualquer ponto de vista, dizer H. est morta equivale a dizer Tudo aquilo acabou. Faz parte do passado. E o passado o passado; isso o que significa o tempo; ele em si mais um nome para a morte, e o prprio Cu um estado em que as primeiras coisas [jj passaram.3

    Fale-me acerca da verdade da religio e ouvirei de bom grado. Fale-me acerca do dever da religio e ouvirei resigna- damente; mas no me venha falar sobre as formas de consolo que a religio d, caso contrrio desconfiarei que voc no sabe do que est falando.

    lApocalipse 21.4 (Almeida Revista e Atualizada, Sociedade Bblica do Brasil, 1993) [N. do E.].

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  • A no ser, claro, que voc seja daqueles que acreditam literalmente em tudo que se diz nas tpicas reunies de famlia a respeito do outro lado do rio, retratado de uma perspectiva completamente irreal e terrena; mas nada disso bblico e no passa de hinos e litografias ruins. No h uma palavra sequer sobre o mundo vindouro na Bblia. Alm disso, soa falso. Sabemos que no poderia ser assim. A realidade nunca se repete. Alguma coisa nunca tirada de ns e, depois, -nos devolvida do mesmo modo em que se apresentava. Como os espiritualistas sabem jogar a isca! As coisas deste lado no so to diferentes, afinal de contas.. H charutos no Cu.4 Pois isso que todos ns apreciaremos. Um passado feliz reconquistado.

    E por isso, s por isso, que grito, enlouquecido, no meio da madrugada, lanando splicas vazias ao ar.

    E o pobre C. faz-me a seguinte citao: (...) no se entristeam como os outros que no tm esperana.5 Espanta-me o modo pelo qual somos convidados a pr em prtica palavras endereadas de maneira to bvia aos que so superiores a ns. O que o apstolo Paulo diz s pode consolar os que amam a Deus mais do que aos mortos, e aos mortos mais do que a si mesmos. Se uma me se lamenta no por aquilo que ela perdeu, mas por aquilo que seu filho morto perdeu, um consolo acreditar que o filho no perdeu o objetivo para o qual foi criado. E um consolo acreditar que ela mesma, ao

    4Ver nota na p. 54 [N. do E.].5lTessalonicenses 4.13 [N. do E.].

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  • perder sua principal, ou nica felicidade natural, no perdeu algo maior que ela ainda pode esperar glorificar a Deus e usufru-lo para sempre. Um consolo para o esprito voltado para Deus, esprito eterno que h dentro dela. Mas no para sua condio de me. A felicidade propriamente materna deve ser anulada. Nunca, em nenhum lugar, em tempo algum, ela ter o filho em seu colo, nem lhe dar um banho, nem lhe contar uma histria, nem far planos para o seu futuro, tampouco ver o filho de seu filho.

    Dizem-me que H. agora feliz, que est em paz. O que faz essas pessoas terem tanta certeza disso? No quero dizer que temo o pior. As ltimas palavras de H. foram: Estou em paz com Deus. Ela nem sempre estivera. E nunca mentiu. E no era o tipo de pessoa que se enganasse facilmente, por menos que fosse, em favor de si mesma. No isso o que eu quero dizer. Como essas pessoas tm tanta certeza de que toda a angstia termina com a morte? Mais da metade do mundo cristo e milhes no Oriente tm uma crena diversa. Como podem saber que ela entrou para o descanso? Por que deveria a separao (se nada mais o puder), que tanto angustia a pessoa que ama e ficou para trs, ser indolor para a pessoa a quem amou e agora parte?

    Porque ela est nas mos de Deus.; mas, se assim for, ela estava nas mos de Deus durante todo o tempo, e vi o que lhe fizeram aqui. Ser que de repente as pessoas se tornam mais gentis conosco no momento em que deixamos o corpo? E, se for dessa maneira, por qu? Se a bondade de Deus no coerente com o ato de nos ferir, ento, ou Deus no bom, ou no h Deus algum: pois na nica vida que conhecemos

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  • Ele nos fere de um modo tal, alm de nossos piores pavores, acima de tudo o que podemos imaginar. Se essa bondade for condizente com o ato de nos ferir, ento Ele pode muito bem fazer isso depois da morte de maneira to intolervel quanto antes dela.

    As vezes, difcil no dizer: Deus, perdoe a Deus. s vezes, difcil dizer tanto; mas, se nossa f for verdadeira, ele no fez isso. Ele crucificou-se.

    Ora, o que ganhamos com evasivas? Estamos sob tormentos e no h escapatria. A realidade, encarada detidamente, intolervel. E como, ou por qu, uma realidade assim floresceria (ou morreria) aqui e acol no terrvel fenmeno chamado conscincia? Por que ela produziu coisas como ns, que a podemos ver e, vendo-a, retrocedemos com averso? Quem (ainda que estranho) quer v-la e dar-se ao trabalho de decifr-la, mesmo quando nenhuma necessidade o impele e mesmo que o menor vislumbre dela lhe abra uma chaga incurvel no corao? Pessoas como a prpria EL, que obteriam a verdade a qualquer preo.

    Se El. no est, ento ela nunca esteve. Tomei erroneamente uma nuvem de tomos por uma pessoa. No h, e nunca houve, outras pessoas. A morte s faz revelar a vacuidade que sempre esteve l. Aqueles a quem chamamos vivos so apenas os que ainda no foram desmascarados. Todos igualmente falidos, mas alguns ainda no declarados.

    S que isso no deve fazer sentido. Vacuidade revelada a quem? Falncia declarada a quem? A outras caixas de fogos de artifcio ou nuvens de tomos. Jamais acreditarei para ser mais exato, no consigo acreditar em que uma srie de

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  • fenmenos fsicos pudesse ser, ou cometer, um erro contra outras sries.

    No, meu verdadeiro medo no o do materialismo. Se ele fosse legtimo, ns ou o que designamos equivocada- mente ns poderamos livrar-nos de uma situao angustiante. Uma overdose de sonferos bastaria para tanto. Tenho mais medo de que sejamos, na verdade, ratos numa ratoeira. Ou, pior ainda, ratos num laboratrio. Algum disse, suponho: Deus sempre aplica princpios geomtricos.. Imagine se a verdade fosse: Deus sempre pratica a vivisseco..

    Mais cedo ou mais tarde, devo encarar a questo de frente. Que razo temos ns, com exceo de nossos prprios desejos desesperados, de acreditar que Deus seja bom (de qualquer ngulo por ns estabelecido)? Todas as evidncias prima fa c i e 6 no sugeririam exatamente o contrrio? O que temos para contrapor a elas?

    Contrapomos Cristo a elas; mas como, se ele foi mal compreendido? Suas ltimas palavras podem ter um sentido perfeitamente claro. Ele descobriu que o Ser que ele chamava Pai era horrivelmente, infinitamente distinto do que Ele havia suposto. A armadilha, por tanto tempo preparada, de maneira to meticulosa e com iscas to sutis, fora por fim armada sobre a cruz. A artimanha desprezvel triunfara.

    O que abala toda orao e toda esperana a lembrana de todas as oraes que H. e eu oferecamos, e todas as falsas

    6Do latim , primeira vista [N. do E.].

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  • esperanas que alimentvamos. No eram esperanas nutridas apenas por um pensamento desejoso de coisas boas, por esperanas estimuladas, at mesmo impingidas a ns, por falsos diagnsticos, por exames de raios X, por fases estranhas de alvio, por uma recuperao temporria que poderia muito bem ser classificada como milagre. Passo a passo fomos conduzidos pela senda do jardim. Com o passar do tempo, quando Ele parecia muito misericordioso, estava na verdade preparando a tortura seguinte.

    Escrevi isso na noite passada. Foi um grito, e no um pensamento. Permita-me tentar novamente. racional acreditar num Deus ruim? Ao menos, num Deus to mau quanto tudo aquilo? O Sdico Csmico, o idiota mal-intencionado?

    Se no for outra coisa, acho que antropomrfico demais. Quando se chega a pensar nisso, muito mais antropomrfico do que represent-lO como um velho rei circunspecto, de barbas longas. Essa imagem um arqutipo junguiano. Relaciona Deus a todos os reis sbios e velhos dos contos de fada, a profetas, sbios, mgicos. Embora se trate (formalmente) da figura de um homem, essa imagem sugere algo mais do que a idia de humanidade. Pelo menos, apresenta a idia de algo que nos antecede, algo que tem mais conhecimento, algo que no se pode sondar. Ela preserva o mistrio. Portanto, espao para a esperana, espao para uma forma de horror ou assombro que no precisa ser necessariamente simples medo da maldade de um potentado de intenes malignas. Mas a imagem que eu tinha na noite passada simplesmente a de um homem como S. C. que costumava sentar-se a meu lado durante o jantar e me dizer o que

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  • estivera fazendo com os gatos naquela tarde. Ora, um ser como S. C., por mais poderoso que parea, no poderia inventar, nem criar, nem reger coisa alguma. Haveria de montar armadilhas e de nelas tentar pr a isca; mas ele nunca teria pensado em iscas como o amor, ou o riso, ou os narcisos, ou um crepsculo acompanhado de geada. Ele? Fazer um Universo? No seria capaz de fazer uma piada, nem de dar um cumprimento, nem de fazer uma defesa, nem mesmo ter um amigo.

    Ou se poderia apresentar com seriedade a idia de um Deus ruim, por assim dizer, que entrasse pela porta dos fundos, por um tipo de calvinismo extremo? Poderamos dizer que somos decados e depravados. Somos to depravados, que nossas idias de bondade nada valem; ou valem menos do que nada o prprio fato de que achamos algo bom a evidncia provvel de que esse algo , na verdade, ruim. Ora, Deus tem, realmente nossos piores temores so um fato , todas as caractersticas que consideramos ruins: carter irracional, vaidade, ndole vingativa, injustia, crueldade. Mas todos esses aspectos perversos (do modo como se afiguram a ns) so, na verdade, puros. E apenas nossa corrupo que os faz parecer cruis para ns.

    E da? Isso, para todos os propsitos prticos (e especulativos), apaga Deus da lousa. A palavra bom , aplicada a ele, torna-se sem sentido: como abracadabra. No temos nenhum motivo para obedecer a ele. Nem mesmo temor. E verdade que temos suas ameaas e promessas. Mas, por que deveramos acreditar nelas? Se a crueldade, do ponto de vista dEle, boa, contar mentiras pode ser bom tambm. Mesmo

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  • que sejam verdadeiras, que importa? Se as idias dEle acerca do bem so to diversas das nossas, aquilo a que Ele chama Cu pode muito bem ser o que chamaramos Inferno, e vice-versa. Por fim, se a realidade em sua prpria origem for to sem sentido para ns ou exprimindo-o de maneira contrria, se formos esses rematados imbecis qual o valor de tentarmos pensar sobre Deus ou sobre alguma coisa mais? Esse n desata-se quando tentamos apert-lo.

    Por que ocupo minha mente com tamanhas imundcies e disparates? Ser que tenho esperanas de que, se o sentimento se disfarar de pensamento, sentirei menos? No seriam todos estes apontamentos agonias mentais insensatas de um homem que no aceita o fato de no haver nada que possamos fazer com o sofrimento, exceto padec-lo? Quem ainda cr que haja algum expediente (ah, se esse homem pudesse encontr-lo...) capaz de fazer a dor no ser dor? De fato, no importa se voc agarra os braos da cadeira do dentista nem se suas mos repousam no colo. A broca continua perfurando.

    E o luto ainda se parece com o medo. Talvez, de modo mais estrito, com o suspenso. Ou mesmo com esperar; fazer hora espera de que algo acontea. Ele confere vida um carter permanentemente provisrio. Parece que no vale a pena comear algo. No consigo sossegar. Bocejo, tenho gestos de impacincia, fumo em demasia.7 At ento, sempre

    7Por razes culturais, a tradio anglicana no v o tabagismo na categoria de pecado, como faz a maior parte da populao evanglica brasileira [N. do RJ.

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  • tivera muito pouco tempo. Agora no h nada, seno o tempo. Quase o tempo puro, a sucesso vazia.

    Uma s carne, ou, se preferir, um s barco. O motor a estibordo foi embora. Eu, o motor a bombordo, de alguma forma devo seguir roncando at ancorarmos. Ou, de preferncia, at o fim da viagem. Como devo entender um ancoradouro? Uma costa de sotavento, mais provavelmente, uma noite escura, um vendaval ensurdecedor, ondas de rebentao frente e quaisquer acenos vindos da terra provavelmente feitos por salteadores de naufrgio. Tal foi o ancoradouro de H. Bem como o de minha me. Digo o porto delas; no sua chegada.

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  • C a p t u l o t r s

    No verdade que eu esteja sempre pensando em H. O trabalho e as conversas tornam isso impossvel; mas quando no estou pensando nela talvez sejam estes os meus piores momentos. Nesses momentos, embora eu tenha esquecido o motivo, sobre todas as coisas estende-se uma vaga sensao de erro, de alguma coisa imperfeita. Como naqueles sonhos em que nada de horrvel acontece nada que haveria de parecer sequer notvel se voc o contasse no caf da manh mas nos quais a atmosfera, o gosto da coisa em sua totalidade mortal. Assim se d com isso. Vejo as bagas da sorvei- ra-brava ficando vermelhas e por alguns momentos ignoro por que elas, entre todas as coisas, devessem ser deprimentes. Ouo o bater do relgio, e percebo que algo no som que ele sempre teve se foi. O que est errado com o mundo para que parea to plano, pobre, velho? Ento me lembro.

    Essa uma das coisas de que tenho medo. As agonias, os momentos enlouquecedores meia-noite devem, no decurso da natureza, dissipar-se aos poucos; mas o que se seguir? S essa apatia, essa insipidez mortal? Ser que h de vir um tempo em que eu no pergunte mais por que o mundo

  • como uma rua srdida, porque tomarei a sordidez como normal? O luto, no final das contas, capitula ao tdio com tintas de ligeira nusea?

    Sentimentos, e sentimentos e sentimentos. Em vez disso, vamos tentar pensar. Do ponto de vista racional, que novo fato a morte de H. trouxe ao problema do universo? Que bases me concedeu para duvidar de tudo aquilo em que acredito? Eu j sabia que essas coisas, e coisas piores, aconteciam diariamente. Eu teria dito que as havia levado em considerao. Eu fora alertado eu alertara a mim mesmo quanto a no contar com a felicidade terrena. Tnhamos, at mesmo, a promessa de sofrimentos. Eles faziam parte do programa. At mesmo nos disseram: Bem-aventurados os que choram... V e eu aceitava isso. No h nada que eu no tivesse considerado. E claro que diferente quando as coisas acontecem conosco, no com os outros, e na realidade, no na imaginao. Sim, mas deveria, para um homem so, fazer tanta diferena assim? No, e no faria para um homem cuja f houvesse sido a f verdadeira, e cuja preocupao com as tristezas dos outros fosse preocupao real. O caso muito comum. Se meu castelo ruiu com uma tacada, porque era um castelo de cartas. A f que levou essas coisas em considerao no era f, mas imaginao. Lev-las em conta no era compaixo verdadeira. Se houvesse realmente me preocupado, como achei que havia, com as tristezas do mundo, no deveria estar to assoberbado quando minha prpria tristeza

    M ateus 5.4 [N. do E.].

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  • chegou. Foi uma f imaginria, que jogava com fichas inofensivas, rotuladas de Doena, Dor, Morte e Solido. Achei que havia confiado na corda at que se tornou importante saber se ela suportaria o meu peso. Agora que isso importa percebo que no confiava nela.

    Jogadores de bridge dizem-me que deve haver um pouco de dinheiro no jogo ou, ento, as pessoas no vo lev-lo a srio. Aparentemente assim. Sua aposta no jogo Deus ou nenhum Deus, um bom Deus ou o Sdico Csmico, a vida eterna ou a no-entidade no ser sria se nela nada de valor estiver em risco. E voc nunca perceber como ela era sria, enquanto as apostas no estiverem muitssimo altas, enquanto voc no descobrir que est jogando no pelas fichas, nem pelos seis centavos, mas por todo centavo que tem no mundo. Nada menos que isso abalar um homem ou, pelo menos, um homem como eu quanto ao seu pensamento puramente verbal e suas crenas meramente nocionais. Ele deve ficar fora do ar antes que recobre os sentidos. S a tortura trar luz a verdade. S sob tortura que ele mesmo a descobrir.

    E com certeza devo admitir H. ter-me-ia obrigado a admitir, em poucos passes e]ue, se meu castelo era de cartas, quanto mais cedo ele desabasse, melhor. E s o sofrimento poderia fazer isso; mas ento o Sdico Csmico e o Vivis- seccionista Eterno tornam-se uma hiptese desnecessria.

    Seria este ltimo apontamento um sinal de que sou incorrigvel, de que, quando a realidade desfaz meu sonho em pedaos, lamento e rosno enquanto dura o primeiro choque, e depois, paciente, de maneira idiota, ponho-me de novo

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  • ajuntar os pedaos? sempre assim? Por mais que o castelo de cartas desmorone, devo comear a reconstru-lo? Ser que isso o que estou fazendo agora?

    Na verdade, bem provvel que o que eu haverei de chamar, se isso acontecer, de uma restaurao da f se torne apenas mais um castelo de cartas. E no saberei se ou no, enquanto no sobrevier o golpe seguinte quando, digamos, uma doena mortal for diagnosticada em meu corpo tambm, ou quando se deflagrar a guerra, ou eu estiver arruinado em meu trabalho por causa de algum erro desastroso. Mas h duas questes aqui. Em que sentido pode tratar-se de um castelo de cartas? Por que as coisas em que acredito so apenas um sonho, ou porque sonho apenas que acredito nelas?

    Quanto s coisas em si mesmas, por que que os pensamentos que tive uma semana atrs deveriam ser mais confiveis do que os melhores pensamentos que tenho agora? Com certeza, de modo geral, sou um homem mais so do que era na poca. Por que as fantasias desesperadas de um homem atordoado eu disse que era como achar-se em estado de choque seriam particularmente confiveis?

    Por no haver nenhum pensamento cheio de esperana nelas? Porque, por serem to terrveis, eram por isso mesmo tanto mais provveis de ser verdadeiras? Mas h sonhos que satisfazem o medo bem como sonhos que satisfazem a vontade. E eles eram inteiramente repugnantes? No. De certa forma, gostava deles. Estou at mesmo consciente de uma ligeira relutncia em aceitar os pensamentos contrrios. Toda aquela histria acerca do Sdico Csmico era menos a expresso do pensamento que do dio. Estava tirando dela o

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  • nico prazer que um homem em agonia pode obter: o prazer de revidar. De fato, era simplesmente Billingsgate2 pura ofensa; dizer a Deus o que eu pensava dele. E, claro, como em toda linguagem ofensiva, o que eu pensava no significava o que eu julgava ser verdade. S o que eu pensasse de fato haveria de ofend-lo (e a seus adoradores) mais. Nunca se diz esse tipo de coisa sem algum tipo de prazer. Lava a alma. Voc se sente melhor por um momento.

    O estado de esprito, porm, nao evidncia alguma. E claro que a gata rosnaria para o cirurgio e cuspiria nele, alm de mord-lo, se pudesse; mas a questo real sobre o fato de ser ele um veterinrio ou um dissecador de seres vivos. O mal comportamento dela nao lana luz alguma sobre a questo.

    E eu posso crer que Ele seja um veterinrio quando penso em meu prprio sofrimento. E mais difcil quando penso no dela. O que o luto, se comparado dor fsica? Independentemente do que os tolos digam, o corpo capaz de padecer vinte vezes mais do que a mente. Esta possui sempre algum poder de evaso. No pior dos casos, s o que o pensamento insuportvel faz ficar voltando, mas a dor fsica pode ser absolutamente contnua. O luto como um bombardeiro dando voltas e lanando suas bombas para atingir um raio de ao; o sofrimento fsico como a barragem fixa numa trincheira na Primeira Guerra Mundial, horas nela, sem uma

    2Grande mercado de peixe em Londres. Provvel referncia ao ambiente tumultuado e barulhento dc comrcio de peixe, onde se barganha at chegar ao melhor negcio [N. do T.].

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  • pausa em momento algum. O pensamento nunca esttico; a dor muitas vezes .

    Que tipo de apaixonado sou para pensar tanto nas minhas aflies e to pouco nas dela? At mesmo o grito desesperado Volte! por minha causa. Nunca questionei se sua volta, quer fosse possvel, seria boa para ela. Quero-a de volta como um elemento imprescindvel na restaurao do meu passado. Ser que eu poderia ter-lhe desejado algo pior? Passar pela morte, voltar e, depois, em um momento posterior, passar por toda a agonia novamente? Chamam a Estvo o primeiro mrtir. Teria Lzaro recebido um tratamento injusto?

    Agora comeo a entender. Meu amor por H. tinha em grande parte a mesma natureza de minha f em Deus. No vou exagerar, no entanto. Se houve algo alm da imaginao na f, ou algo exceto o egosmo no amor, Deus sabe. Eu no. Poderia ter havido um pouco mais; principalmente em meu amor por EI. Nenhuma das duas coisas, porm, era a que eu acreditava que fosse. Uma rodada perfeita de castelos de carta em ambos os casos.

    O que importa de que modo este meu luto se desenvolve, ou o que fao com ele? O que importa o modo pelo qual me lembro dela, ou se chego a me lembrar dela? Nenhuma das alternativas lhe ir aplacar ou agravar a angstia passada.

    A angstia passada. Como sei que toda a sua angstia j passou? Jamais acreditei julgava-o imensamente improvvel que a alma mais fiel pudesse dar um salto direto perfeio e paz no momento em que a morte agonizasse na

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  • garganta. Pensar nisso agora seria um desejo de vingana. H. era algo esplndido; uma alma reta, brilhante e temperada como uma espada; mas no uma perfeita santa. Uma mulher pecadora casada com um homem pecador; dois dos pacientes de Deus, ainda no curados. Sei que no h apenas lgrimas para enxugar, mas tambm manchas para remover. A espada se tornar ainda mais reluzente.

    Mas, Deus, tenha compaixo. Antes, ms aps ms semana aps semana, voc lhe torturou o corpo com o suplcio da roda, enquanto ela ainda o vestia. Isso no foi suficiente?

    Coisa terrvel c pensar que um Deus bom seja, nesse sentido, quase menos formidvel do que um Sdico Csmico. Quanto mais acreditamos que Deus fere apenas para curar, menos nos dado crer que haja alguma utilidade em suplicar por ternura. Um homem cruel pode ser subornado pode cansar-se de seu esporte imoral pode ter um acesso temporrio de bondade, como os alcolatras tm acessos de sobriedade; mas suponha que aquilo com que voc se bate seja um cirurgio cujas intenes so inteiramente boas. Quanto mais gentil e consciente ele , mais sem piedade prosseguir cortando. Se ele desistir diante de suas splicas, se ele se detiver antes que a operao chegue ao fim, toda a dor at quele ponto ter sido intil; porm de acreditar-se que extremos semelhantes de tortura nos sejam necessrios? Bem, faa sua escolha. As torturas ocorrem. Se elas so desnecessrias, ento no h Deus nenhum, tampouco um Deus mau. Se h um Deus bom, ento essas torturas so necessrias. Pois nenhum Ser que fosse bom, mesmo de maneira

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  • comedida, provavelmente seria capaz de as infringir ou de as permitir caso elas no fossem necessrias.

    Seja o que for, no h como escapar.O que as pessoas querem dizer quando afirmam: No

    tenho medo de Deus porque sei que Ele bom.? Ser que nunca foram ao dentista?

    No entanto isso insuportvel. E ento se balbucia: Ah, se me fosse ciado padecer, ou o pior, ou uma parte, em vezdela. . mas no se pode aquilatar a seriedade dessa declarao, pois no h o risco de se perder algo. Se de uma hora para outra se tornasse uma possibilidade real, ento, pela primeira vez, descobriramos com que seriedade a expressamos. Se isso nos seria possvel incerto, mas o foi a Algum, conforme relatos, e acho que agora posso crer de novo, que Ele fez de modo vicrio tudo o que se pode fazer assim. Ele responde diante de nossa hesitao: Vocs no podem e no ousam. Eu pude e ousei..

    Aconteceu algo imprevisto nesta manh. Por vrias razes, no de todo misteriosas em si mesmas, meu corao estava mais leve do que estivera por muitas semanas. Em primeiro lugar, suponho que comeo a recuperar-me fisicamente de uma boa dose de pura exausto. No dia anterior, eu passara por doze horas muito cansativas, embora bem saudveis, e por uma noite ininterrupta de sono; depois de dez dias de um cu cinzento e de umidade morna e esttica, o sol brilhava e soprava uma brisa leve. De repente, bem no momento em que, at aqui, lamentei menos a perda de H., lembrei-me mais dela. Na verdade, foi algo (quase) melhor do que lembrana; uma impresso instantnea, incontestvel. Dizer que

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  • era como um encontro seria ir longe demais; no entanto houve aquilo que induz uma pessoa a usar essas palavras. Era como se a suspenso da tristeza removesse um obstculo.

    Por que ningum me disse essas coisas? Quo facilmente eu poderia ter julgado mal um outro homem na mesma situao? Eu poderia ter dito: Ele conseguiu superar. J esqueceu a mulher., quando a verdade seria dizer que Ele se lembra mais dela porque em parte conseguiu superar..

    O fato era exatamente esse. E acredito que eu possa com- preend-lo. No possvel ver nada de maneira adequada enquanto os olhos estiverem embaados de lgrimas. Voc no pode, na maioria das situaes, conseguir o que deseja se o fizer desesperadamente: o resultado que no conseguir aproveit-lo ao mximo. No entanto, dizer: Ora, vamos ter uma conversa franca faz calar todo mundo. J Eu preciso de uma boa noite de sono prenuncia horas de viglia. As melhores bebidas passam despercebidas diante de uma sede voraz. De modo semelhante, seria a prpria intensidade do anseio que cerra a cortina de ferro a ponto de nos fazer sentir que estamos olhando fixamente no vcuo quando pensamos sobre nossos mortos? Todo o que pede (em qualquer caso, at importunar)3 no recebe. E talvez no o possa.

    E o mesmo, talvez, no que diz respeito a Deus. Aos poucos passei a sentir que a porta no est mais fechada e aferrolhada. Ser que foi minha necessidade frentica que a fechou na minha cara? Quando nada h em sua alma exceto

    3Ver Lucas 18.1-8 [N. do E.J.

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  • um grito de socorro talvez seja o exato momento em que Deus nao o pode atender: voc como o homem que se afoga e que no pode ser ajudado por tanto se debater. E possvel que seus gritos repetidos o deixem surdo voz que voc esperava ouvir.

    Entretanto ... batam, e a porta lhes ser aberta .4 At que ponto bater significa esmurrar e chutar a porta como um manaco? E h tambm o A quem tem ser dado... .5 No final das contas, voc precisa ter determinada capacidade para receber, caso contrrio nem mesmo o poder absoluto ser capaz de lhe dar. E bem provvel que sua prpria paixo destrua temporariamente tal habilidade.

    Quando voc est lidando com Deus, possvel cometer toda sorte de equvocos. H muito tempo, antes de nos casarmos, H. passou uma manh inteira assustada, enquanto estava s voltas com seu trabalho, com a vaga sensao de Deus, por assim dizer, estar no seu p exigindo ateno. E claro que, por no ser nenhuma santa, ela suspeitou que se tratava, como habitualmente acontece, de algum pecado no confessado ou de algum dever incmodo. Por fim, ela cedeu sei como usar de evasivas e O encarou. Para surpresa sua, a mensagem era: Quero dar-lhe algo. Imediatamente ela foi tomada por uma profunda alegria.

    Acho que estou comeando a entender por que o luto se parece com o suspense. Ele advm da frustrao de muitos

    4Mateus 7.7 [N. do E.],'Mateus 13.12 [N. do E.J.

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  • impulsos que se haviam tornado habituais. Um pensamento aps o outro, um sentimento aps o outro, uma ao aps outra tudo levava at H. Agora, o alvo no existe mais. Como de costume, continuo ajustando uma seta corda, ento me lembro que tenho de vergar o arco. Muitas estradas conduzem o pensamento a H. Comeo a jornada numa delas; mas agora h um posto fronteirio intransponvel. Antes tantas estradas...; agora, tantos culs d esa c.6

    Uma boa esposa traz muitos eus dentro de si. O que H. no foi para mim? Ela foi minha fdha e me, minha aluna c mestra, minha sdita e soberana. Era uma perfeita combinao: minha confidente, amiga, companheira de bordo. M inha amada, mas, ao mesmo tempo, tudo o que nenhum amigo (e olha que tenho bons amigos) jamais foi para mim. Talvez at mais. Se nunca nos tivssemos apaixonado, bem provvel que, mesmo assim, estivssemos sempre juntos e nos tornssemos alvo de mexericos. Foi o que eu quis dizer quando certa vez a elogiei por suas virtudes masculinas. Ela, no entanto, em pouco tempo tratou de dar um basta a isso, perguntando-me se eu gostaria de ser elogiado por minhas virtudes femininas. Foi uma boa riposte/ querida. Mesmo assim, nela havia um qu de Amazona, de Pentesilia8 e

    6Do francs, becos sem sada [N. do E.J.'Do francs, contragolpe, resposta rpida e incisiva [N. do E.],

    8A rainha das amazonas, filha de Ares. Diz-se que, depois dc sucum-? bir, ferida por Aquiles, achava-se to bela na morte, que Aquiles se| apaixonou perdidamente por ela. As amazonas ficaram conhecidas3 por seu esprito blico e viril, prprio do homem [N. do T.J.

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  • Camila.9 E voc, tanto quanto eu, ficou contente que fosse assim. Ficou satisfeita que eu tenha reconhecido isso.

    Salomo chegou a chamar sua noiva de irm. Poderia uma mulher ser uma esposa perfeita, exceto quando, por um momento, num determinado estado de esprito, um homem se sentisse quase inclinado a cham-la de irmo?

    O que bom dura pouco o que sou tentado a dizer de nosso casamento; mas isso pode ser entendido de duas formas. Pode ser algo assustadoramente pessimista como se Deus no conseguisse ver duas pessoas felizes e pusesse um ponto final: Nao tem nada disso aqui!. Como se Ele fosse igual Anfitri que, numa festa regada a xerez, separa dois convidados no exato momento em que eles do mostras de estarem se entendendo muito bem; mas tambm poderia significar: timo, j atingiu a perfeio. Tornou-se naquilo que tinha condies de ser. Portanto, claro, no poderia durar demais. E como se Deus dissesse: Bem, vocs passaram no teste. Estou satisfeito com o resultado. Agora vocs esto prontos para passar ao seguinte. Depois que voc aprende a fazer equaes de segundo grau e chega a gostar delas, nao pra por a. O professor motiva-o a seguir em frente.

    Isso porque somos do tipo que aprendemos e realizamos algo. s ocultas ou s claras, parece haver uma espada entre os sexos at que um casamento genuno os reconcilie. nossa arrogncia que chama virtudes como a franqueza, a im-

    9Filha de Metabo e de Camila. Diz-se que se destacava pela rapidez na corrida e habilidade no manejo do arco [N. do T.].

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  • parcialidade e o cavalheirismo de masculinas, quando as vemos igualmente numa mulher; pura arrogncia nossa atribuir a sensibilidade, o tato, ou carinho de um homem ao seu lado feminino. Igualmente absurdo atribuir caractersticas aos pobres e aos prias da humanidade, homens e mulheres simples, para tornar plausveis as implicaes dessa arrogncia! O casamento tem o poder de curar essas coisas. Juntos, os dois tornam-se de todo humanos. A imagem de Deus [...] homem e mulher os criou.10 Assim, graas a um paradoxo, esse carnaval em que se tornou a sexualidade leva- nos alm dos limites de diferenas entre os sexos.

    E, ento, um ou outro morre. E pensamos nisso como um amor que foi podado; como uma dana interrompida quando comeava a evoluir, ou como uma flor com seu boto bruscamente arrancado algo mutilado e, portanto, deformado. Penso comigo mesmo: se, como no posso deixar de suspeitar, os mortos tambm sentem os tormentos da separao (entendidos por alguns como um dos seus sofrimentos expiatrios), ento para ambos os amantes, e para todos os casais de apaixonados, sem exceo, a perda causada pela morte uma parte universal e integrante da experincia de amar. Ela decorre do casamento de modo to natural quanto o casamento conseqncia do namoro, ou como o outono vem depois do vero. No se trata de um truncamento do processo, mas de uma de suas fases; no a interrupo da dana, mas a execuo do nmero seguinte. Somos arran-

    l0Gnesis 1.27 [N. do E.].

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  • cados de dentro de ns mesmos pela pessoa amada enquanto ela est aqui. Ento se inicia a cena trgica do espetculo em que s nos resta aprender a sermos arrancados de ns mesmos, embora a presena concreta da pessoa amada nos tenha sido arrancada. Aprender a amar exatamente a ela, e a no voltara amar nosso passado, nem nossas lembranas, nem nossa tristeza ou o alvio que temos da tristeza, tampouco nosso prprio amor.

    Revendo o que escrevi, percebo que s h bem pouco tempo estive muito voltado para minhas lembranas de H. e para como elas poderiam tornar-se falsas. Por alguma razo o bom-senso misericordioso de Deus o nico em que posso pensar deixei de aborrecer-me com isso. E o fato surpreendente que, desde que deixei de faz-lo, H. parece vir ao meu encontro em toda parte. Vir ao meu encontro uma expresso forte demais. No quero dizer algo de modo vago como uma apario ou uma voz. No quero referir-me sequer a nenhuma experincia notadamente emocional em determinado momento. De preferncia, refiro-me a um tipo de impresso discreta, mas concreta, de que ela , apenas no grau em que sempre foi, um fato a ser levado em considerao.

    Ser levado em considerao talvez seja um modo infeliz de exprimi-lo. Soa como se ela fosse, de preferncia, uma mulher dominadora. Como o posso definir melhor? Serviria dizer momentaneamente real ou obstinadamente real? como se, com essa experincia, algo dissesse: Por coincidncia, voc est extremamente satisfeito com que H. ainda seja um fato; mas lembre-se de que ela seria igualmente um

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  • fato quer voc gostasse ou no disso. Suas preferncias no foram levadas em conta..

    At onde cheguei? Creio que at onde outro vivo chegaria se parasse de cavar, apoiando-se em sua p, e re


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