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CAMPUS AVANÇADO “PROF a. MARIA ELISA DE …§ões 2012/arquivos... · were able to see that from...

Date post: 09-Dec-2018
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN CAMPUS AVANÇADO “PROF a . MARIA ELISA DE ALBUQUERQUE MAIA” – CAMEAM DEPARTAMENTO DE LETRAS – DL PROGRAMA DE PÓS – GRADUAÇÃO EM LETRAS – PPGL CURSO DE MESTRADO ACADÊMICO EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ESTUDOS DO DISCURSO E DO TEXTO LINHA DE PESQUISA: TEXTO, ENSINO E CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS A ARGUMENTAÇÃO E OS EFEITOS DE SENTIDO NOS DISCURSOS JURÍDICOS: OS DIÁLOGOS DO DIREITO NOS CAMINHOS DO CANGAÇO DIANA MARIA CAVALCANTE DE SÁ ORIENTADOR: PROF. DR. GILTON SAMPAIO DE SOUZA PAU DOS FERROS 2012
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN

CAMPUS AVANÇADO “PROFa. MARIA ELISA DE ALBUQUERQUE MAIA” – CAMEAM DEPARTAMENTO DE LETRAS – DL

PROGRAMA DE PÓS – GRADUAÇÃO EM LETRAS – PPGL CURSO DE MESTRADO ACADÊMICO EM LETRAS

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ESTUDOS DO DISCURSO E DO TEXTO LINHA DE PESQUISA: TEXTO, ENSINO E CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS

A ARGUMENTAÇÃO E OS EFEITOS DE SENTIDO NOS DISCURSOS JURÍDICOS: OS DIÁLOGOS DO DIREITO NOS CAMINHOS DO CANGAÇO

DIANA MARIA CAVALCANTE DE SÁ

ORIENTADOR: PROF. DR. GILTON SAMPAIO DE SOUZA

PAU DOS FERROS

2012

DIANA MARIA CAVALCANTE DE SÁ

A ARGUMENTAÇÃO E OS EFEITOS DE SENTIDO NOS DISCURSOS JURÍDICOS: OS DIÁLOGOS DO DIREITO NOS CAMINHOS DO CANGAÇO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras – PPGL, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN, Campus Avançado Profª. Maria Elisa de Albuquerque Maia – CAMEAM, como requisito final para a obtenção do título de Mestra em Letras, na área de concentração: Estudos do Discurso e do Texto e linha de pesquisa: Texto, Ensino e Construção de Sentidos.

Orientador: Prof. Dr. Gilton Sampaio de Souza

Diana Maria Cavalcante de Sá

Pau dos Ferros

2012

Sá, Diana Maria Cavalcante de.

A argumentação e os efeitos de sentido nos discursos jurídicos: os diálogos do direito nos caminhos do cangaço. / Diana Maria Cavalcante de Sá. – Pau dos Ferros, RN, 2012.

106 f.

Orientador (a): Prof. Dr. Gilton Sampaio de Souza.

Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Departamento de Letras. Programa de Pós-Graduação em Letras. Área de Concentração: Estudos do Discurso e do Texto.

1. Linguagem – Dissertação. 2. Direito – Dissertação. 3. Dialogicidade – Dissertação. 4. Argumentação – Dissertação. 5. Discurso Jurídico – Dissertação. I. Souza, Gilton Sampaio de. II. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. III.Título. UERN/BC CDD 401.41

Catalogação da Publicação na Fonte.

Bibliotecário: Tiago Emanuel Maia Freire / CRB - 15/449

Dedico

A meu Deus, grande pai misericordioso.

A minha filha, Olívia, razão de minha existência.

A meus pais, meus amores, Maura Cavalcante e “Chico Léo”, exemplos de ética,

honestidade e simplicidade.

A meu esposo Bruno, amigo e amado de todas as horas.

A meus irmãos Haline, Artur e Carol, pessoas a quem amo incondicionalmente.

A meus amados sobrinhos, Isadora e Estêvão, que fazem os meus dias mais felizes.

Agradeço

A meu Deus, por nunca ter me faltado. Não conto as vezes que chamei por Teu nome, quando

tudo parecia não dar certo. Sua misericórdia e seu amor são imensuráveis e por isso agradeço,

primeiramente, a Ti.

A minha Olívia, por ter existido bem no meio dessa caminhada. Se não fosse você, talvez eu

não tivesse encontrado forças para seguir. Só o seu sorriso (des)constrói todos os meus

sentidos e discursos.

A meu esposo Bruno, pela paciência, pelo amor, pelo incentivo (sempre me dizendo que ia

dar tempo, quando eu pensava que não). Só consegui chegar até aqui, porque você também

esteve ao meu lado.

A minha mãe, Maura , que não hesitou, mesmo com o seu limitado tempo, em me socorrer,

quando me encontrava em meio a muitas dúvidas. Obrigada, minha mãe, por você ser o meu

orgulho! Espero um dia ser igualzinha a você.

Ao meu pai, Chico Léo, pelo sábio silêncio e pelo seu amor inquestionável.

A minha irmã, Haline, pelo exemplo de paciência e de luta.

A meu irmão, Artur, pelo exemplo de simplicidade e amizade.

A minha irmã e “comadre”, Carol, pelo exemplo de tranquilidade, cumplicidade e sabedoria,

mesmo com tenra idade.

A meu Orientador, Dr. Gilton Sampaio, que, mesmo com o seu limitado tempo, nunca

deixou de atender-me em meus anseios e inquietudes. Obrigada, por ter guiado meus passos

nessa minha empreitada. Sem você nada disso teria sido possível.

A minhas amigas/irmãs por afinidade: Ana Maria (Aninhazinha), Vânia (Vaninha), Aline

Raquel (Esponjinha), Shirley (Shirlynha), Lidiana , Luzinete e Aline Gomes, por terem

compartilhado comigo a angustia e a felicidade dessa conquista. São presentes de Deus.

Agradeço todos os dias por vocês existirem em minha vida.

A Viviane (Vivi), Liliane (Lili), Larissa (Lalá), Zaíra, (Zazá), Amanda Moura (Mandica),

pela amizade que transcende o tempo e a distância.

Aos doutores que fazem o PPGL, que fizeram “apaixonar-me” pelas Letras. Obrigada pelo

conhecimento compartilhado, sem os quais não seria possível a realização de nossa pesquisa!

Aos colegas de mestrado, pelos momentos de discussões, alegrias, angústias, em sala de aula

e fora dela. Cada um de vocês teve uma quota de participação na realização dessa conquista.

A Francimeire Cesário e a Marcos Luz, mais do que colegas de mestrado, amigos que

sempre atendenderam aos meus chamados, quando eu me achava perdida em meio à

complexidade teórica da linguagem.

A Marília e Ricardo, pelo pronto atendimento. A eficiência é uma virtude de poucos.

A todos que direta ou indiretamente participaram na construção desse trabalho. Obrigada pelo

apoio!

Nas entranhas do Direito, Vi, em grande estardalhaço, A linguagem se aninhando Nas encostas do Cangaço.

Maura Cavalcante Morares de Sá

SA, D. M. C de. A argumentação e os efeitos de sentido nos discursos jurídicos: os diálogos do direito nos caminhos do cangaço. 84p. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Letras) – Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Pau dos Ferros, 2012.

RESUMO

Diante da compreensão de que o Direito é constituído essencialmente da linguagem, é que decidimos realizar uma pesquisa que evidenciasse essa ligação em um de seus principais pontos de convergência: o discurso. Dentro dessa perspectiva, optamos por trabalhar essencialmente a argumentação, a dialogicidade e os efeitos de sentidos no discurso jurídico, com base nas teorias defendidas por Mikhail Bakhtin (1988, 1997, 2004), Chaim Perelman (2000, 2005) e Sírio Possenti (2009), efetivando uma pesquisa intitulada “A argumentação e os efeitos de sentidos nos discursos jurídicos: os diálogos do direito nos caminhos do cangaço”. Analisando a argumentação no discurso jurídico sobre o cangaço, considerando os processos dialógicos da linguagem e seus efeitos de sentido, em processo tramitado contra Virgulino Ferreira, vulgo Lampião, e seus comparsas (objetivo geral da pesquisa) - Ação Penal nº 883/2000, corpus de nossa pesquisa, selecionamos discursos de diversos sujeitos que fizeram parte do processo, como testemunhas, delegado, representante do ministério público, defensor público e até mesmo o juiz, através dos quais pudemos: compreender as relações dialógicas que se manifestam em processos judiciais; identificar e analisar as técnicas argumentativas utilizadas pela acusação e pela defesa, na sustentação de suas teses; e verificar os efeitos de sentido atribuídos ao cangaço, no processo criminal em questão (objetivos específicos da pesquisa). Em resposta ao primeiro objetivo, compreendemos que as relações dialógicas se dão em todo o processo judicial, visto que as marcas dialógicas do outro e do contexto sócio-histórico-ideológico podem ser encontradas nos discursos que o compõem, desde o início até o momento final: a decisão. Cumprindo com o nosso segundo objetivo, identificamos, através da análise dos discursos correspondentes às das alegações finais da defesa e da acusação, as técnicas argumentativas utilizadas em defesa de suas teses. Sobre as técnicas utilizadas pela acusação, identificamos as baseadas na estrutura do real: com os argumentos de autoridade e a fortiori e as técnicas de ligação quase lógicas: com argumentos da comparação e da transitividade; sobre as técnicas utilizadas pela defesa, identificamos a de ligação quase lógica: como o argumento da retorsão. Correspondendo ao terceiro objetivo acima apresentado, pudemos verificar que do processo emergem os sentidos: de que o cangaço é um sinônimo de banditismo e de que o cangaço é, na verdade, uma vítima da sociedade. Esperamos, com essa pesquisa, contribuir, essencialmente, para os estudos voltados para as teorias base de nosso trabalho, evidenciar a íntima ligação entre as ciências do Direito e da Linguagem, colaborar com a transcrição de um corpus rico, por sua natureza histórico-cultural, para diversas outras áreas que foquem estudos relativos ao cangaço.

Palavras-chave: Linguagem. Direito. Dialogicidade. Argumentação. Efeitos de Sentido. Discurso Jurídico. Processo Criminal. Cangaço.

SA, D. M. C. The argumentation and the effects of sense in the legal discourses: the dialogues of Law through the cangaço. 84p. Dissertation (Academic Master in Letras) - University of State of Rio Grande do Norte. Pau dos Ferros, 2012.

ABSTRACT

Given the comprehension that the Law consists essentially of language, we decided to conduct a research that would show this connection at one of the main convergence points: the discourse. On this perspective, we opted to research argumentation, dialogicity and the effects of sense in the legal discourse, based on the theories defended by Mikhail Bakhtin (1976, 1988, 1997, 2004), by Chaim Perelman (2000, 2005) and Sírio Possenti (2009), carrying out a research entitled “The argumentation and the effects of sense in the legal discourse: the dialogues of Law through the cangaço”. Analyzing the argumentation on the legal discourse about the cangaço, considering the dialogic processes of language and their effects of sense, in procedure against Virgulino Ferreira, commonly known as Lampião, and his accomplices – lawsuit No 883/2000, our research corpus, we selected speeches of various individuals who took part of the lawsuit as witnesses, Police chief, prosecuting counsel representatives, public defensor and even the judge, whereby was possible: to understand the dialogic relations that manifest in the judicial processes; to identify and analyze the argumentative tactics used by the prosecution and by the defense, when they supported their theses; and verify the effects of sense assigned to cangaço, on this lawsuit (specific objectives of research). In response to the first objective, we understood that the dialogic relations are in the entire lawsuit, wherein the dialogic marks of the other and of the socio-historical and ideological context can be found in the discourses that compose it, from the beginning until the final moment: the decision. In relation to the second objective, we identified, by analysis of speeches related to the final allegations of the defense and of the prosecution, the argumentative tactics used to support their theses. About the tactics used by the prosecution, we identified those based on the structure of the real: with the authority arguments and the fortiori and the bonding tactics almost logical: with arguments of the comparison and the transitivity; about the tactics used by the defense, we identified the bonding almost logical: with the argument of the retorsion. Corresponding to the third objective presented above, we were able to see that from the lawsuits the senses rise: the cangaço is a synonymous of banditry and that the cangaço is, indeed, a victim of society. We hope, with this research, to contribute, essentially, to the studies focused on the basic theories in our work, to evidence the intimate connection between the sciences of Law and Language, to collaborate with the transcription of a rich corpus, by their cultural-historical nature, to several other areas that focus on studies on the cangaço.

Keywords: Language. Law. Dialogicity. Argumentation. Effects of Sense. Legal discourse. Lawsuit. Cangaço.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 11

1. UM ENCONTRO DE TEORIAS ................................................................................. 16

1.1 Uma linguagem bakhtiniana ...................................................................................... 16

1.1.2 Linguagem e Direito: uma relação de afinidade ......................................................... 18

1.2 A argumentação: da Retórica à Nova Retórica de Chaim Perelman .................... 22

1.2.1 O orador, o auditório e o acordo ................................................................................. 25

1.2.2 As teses e as técnicas argumentativas......................................................................... 27

1.2.3 Os elementos ethos, pathos e logos ............................................................................ 30

1.3 O gênero discursivo: uma visão bakhtiniana e swalesiana ...................................... 32

1.3.1 Quanto ao gênero ........................................................................................................ 32

1.3.2 Quanto à esfera de comunicação ou comunidade discursiva ..................................... 34

1.3.3 Comunidade discursiva............................................................................................... 34

1.3.4 Comunidade discursiva jurídica ................................................................................. 35

1.3.5 O discurso jurídico ..................................................................................................... 36

1.4 Sobre efeitos de sentido ............................................................................................... 37

1.4.1 Os efeitos de sentido no processo jurídico ................................................................. 38

2. A CONSTRUÇÃO DO OBJETO ................................................................................. 40

2.1 O tipo de pesquisa e procedimentos metodológicos .................................................. 40

2.2 Do corpus ...................................................................................................................... 40

2.2.1 Composição do corpus ............................................................................................... 42

2.2.2 Conhecendo o processo .............................................................................................. 42

2.3 O universo de estudo .................................................................................................. 49

2.4 As condições de produção dos discursos ................................................................... 51

2.4.1 O processo de acusação contra Lampião e seu bando ................................................ 52

2.4.2 As condições de produção do discurso sobre o cangaço ............................................ 52

2.5 Critérios de análise ...................................................................................................... 53

2.5.1 Das questões ............................................................................................................... 54

2.5.2 Da fundamentação e da análise .................................................................................. 56

2.5.3 Dos resultados ............................................................................................................ 57

3 LAMPIÃO E O CANGAÇO EM PROCESSO CRIMINAL: ESTUDOS SOBRE A ARGUMENTAÇÃO, A DIALOGICIDADE E OS EFEITOS DE SENTI DO ............ 59

3.1 Os processos dialógicos manifestados em processos judiciais ................................. 59

3.1.1 Estudo 1 ...................................................................................................................... 60

3.2 As técnicas argumentativas em processo criminal contra Lampião e seu bando .. 67

3.2.1 Estudo 2 ...................................................................................................................... 67

3.3 Os efeitos de sentido sobre o cangaço em processo tramitado na comarca de Pau dos Ferros/RN .................................................................................................................... 73

3.3.1 Estudo 3 ..................................................................................................................... 73

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 77

REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 80

ANEXOS ............................................................................................................................ 83

ANEXO A - Denúncia feita pelo Promotor de Justiça Manoel Augusto Abath ................. 84

ANEXO B – Relatório de conclusão feito pelo Delegado Jacintto Tavares Ferreira .......... 87

ANEXO C- Alegações finais Promotor de Justiça Claudionor Telógio de Andrade .......... 90

ANEXO D – Julgamento da denúncia feito pelo juiz Janúncio Gorgônio de Nóbrega ...... 92

ANEXO E - Depoimento da testemunha João Porfírio da Silva ......................................... 95

ANEXO F – Alegações finais do Defensor Público Francisco de Assis Moraes................ 98

ANEXO H- Sentença proferida pelo Juiz de Direito João Afonso da Silva Pordeus ......... 100

11

INTRODUÇÃO

Iniciamos este texto afirmando que não há como falar em Direito sem nos referirmos à

linguagem. É essa a ideia que assumimos diante da experiência adquirida, ao estudarmos o

discurso jurídico sob a ótica de teorias de diferentes áreas, sobretudo do Direito, da

Linguística, da Filosofia da Linguagem e, em especial, da Nova Retórica. Essa experiência

nos leva a afirmar que todos os profissionais da área jurídica devem ter algum contato, por

mínimo que seja, com os estudos Linguísticos, por ser da linguagem que o Direito

essencialmente se constitui.

Foi partindo dessa concepção de que o Direito não existe sem a linguagem que

decidimos aprofundar os conhecimentos sobre essas áreas de conhecimento, na tentativa de

evidenciarmos, ainda mais, a relação em que elas se envolvem e, por que não dizer, também,

para mostrar aos profissionais da justiça, bem como às universidades que os preparam, que,

mais do que complementar, é essencial compreender as teorias que explicam esse fenômeno

sendo, por este motivo, necessária a inclusão de disciplinas dessa área nos cursos de

graduação da área jurídica.

Vale salientar que sentimos essa necessidade por termos vivenciado essa realidade,

tendo em vista a nossa formação acadêmica em Direito, e observamos, durante a realização do

curso, a carência de disciplinas voltadas para os estudos da linguagem, sobretudo, sobre uma

de suas formas que consideramos essencial para a construção do direito: a argumentação.

Optamos, então, como forma de aprofundar o conhecimento sobre as ciências da

linguagem e de contribuir para essa ampliação de conhecimentos e conscientização da

necessidade de estudos nessa área, por realizar uma pesquisa que envolvesse o Direito e a

linguagem em um dos principais pontos em que elas se encontram: o discurso. Escolhemos,

para isso, um corpus jurídico/histórico: o processo criminal, tramitado na Comarca de Pau dos

Ferros/RN, contra Virgulino Ferreira, mais conhecido por “Lampião”, e seu bando pelos

crimes cometidos por esses cangaceiros no então distrito de Vitória (hoje Marcelino Vieira).

A escolha desse corpus se deu em virtude da possibilidade de se realizar estudos sobre a

linguagem envolvendo conhecimentos jurídicos; para isso trabalhamos com textos datados do

ano de 1927.

Assim, decidimos analisar a argumentação nos discursos que constituem a ação penal

tramitada contra Virgulino e seus comparsas, considerando os processos dialógicos da

linguagem e seus efeitos de sentido (nosso objetivo geral).

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O primeiro passo, após decidirmos o que trabalharíamos, foi escolher o que

exatamente trataríamos nesse estudo sobre discursos jurídicos; daí nos veio a ideia de

trabalharmos a argumentação, a principal ferramenta utilizada na busca da efetivação do

Direito. Assim, entendemos ser necessário identificar e analisar as técnicas argumentativas

utilizadas pelo Ministério Público, na acusação dos réus, e da Defensoria Pública, na defesa

desses cangaceiros, e, durante a realização de nossos estudos, percebemos que alcançar esse

objetivo poderia contribuir para que a nossa pesquisa se tornasse um estudo revelador.

À medida que identificamos e analisamos as técnicas argumentativas no referido

processo, poderemos oferecer a possibilidade de verificação da qualidade das teses adotadas

pelos seus interlocutores, de modo que em possíveis estudos posteriores, possa ser possível

desconstruir os argumentos levantados pela acusação ou pela defesa, revelando, dessa forma,

ao meio jurídico, situação diversa que poderia, caso o processo ainda estivesse tramitando, e

ainda houvesse possibilidade de punir os acusados, mudar o curso processual e incidir

diretamente em seu resultado.

Assim, cientes da importância do conhecimento dessas técnicas para os estudos da

linguagem e para o próprio Direito, traçamos um de nossos objetivos específicos: identificar e

analisar as técnicas argumentativas utilizadas pelo ministério público e pela defensoria

pública no processo tramitado em Pau dos Ferros contra Lampião e seu bando.

Pautados na ideia de que o discurso, assim como a própria ciência do Direito, é um

produto sócio-histórico, em que o indivíduo interage com outros sujeitos e com o próprio

contexto de sua produção foi que traçamos outro objetivo específico: compreender as relações

dialógicas que se manifestam em processos judiciais.

Por último, por existir interesse e contato com discursos e múltiplos sentidos sobre o

cangaço, enquanto cultura, meio de vida, ou banditismo é que decidimos verificar os efeitos

de sentido atribuídos ao cangaço no processo, corpus de nossa pesquisa, considerando os

discursos jurídicos do referido processo criminal. Pensamos, com esse objetivo, que

poderemos enriquecer ainda mais os estudos acerca do cangaço, contribuindo, de maneira

significativa, para outros trabalhos que visem a estudar esse fenômeno.

Portanto, os objetivos específicos de nossa pesquisa assim se apresentam:

compreender as relações dialógicas que se manifestam em processos judiciais; identificar as

técnicas argumentativas utilizadas em defesa das teses da acusação e da defesa; e verificar os

efeitos de sentidos atribuídos ao cangaço no processo tramitado na Comarca de Pau dos

Ferros/RN. Assim, buscamos ressaltar a afinidade que existe entre o Direito e a Linguagem;

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daí a escolha do título: “A argumentação e os efeitos de sentido nos discursos jurídicos: os

diálogos do direito nos caminhos do cangaço”.

Estudar um discurso produzido, em um período em que muitos de nós sequer

havíamos nascido, à luz de algumas teorias publicadas em momentos posteriores à abertura

tramitação do processo, é desafiador. Com base, essencialmente, nas teorias de Mikhail

Bakhtin (1988, 1997, 2004), de Chaim Perelman (2000, 2005) e de Sírio Possenti (2009),

correspondentes, respectivamente, aos temas: dialogicidade, argumentação e efeitos de

sentido é que responderemos às seguintes questões de pesquisa: Como se dão as relações

dialógicas em processos jurídicos? Que técnicas argumentativas foram utilizadas pela defesa e

pela acusação, no processo contra Lampião e seu bando em defesa de suas teses? Que efeitos

de sentido sobre o cangaço emergem dos discursos que compõem o processo? Vejamos,

sucintamente, o que dizem esses estudiosos da linguagem:

Souza (2006, p. 3), bem retrata a visão sócio-interacionista de linguagem de Bakhtin,

que traz o dialogismo e o auditório social como elementos formadores do discurso, vejamos:

“ao enunciar, o locutor estabelece um diálogo com os discursos alheios, com vários

enunciados que circulam na sociedade e, também, com um auditório social definido, ou seja,

com o outro, com um interlocutor para quem o seu discurso é dirigido numa situação concreta

imediata”. Assim, é a partir dessa concepção sócio-interacionista, que buscaremos,

correspondendo às expectativas levantadas pela primeira questão, compreender as relações

dialógicas que se manifestam em processos judiciais, representados, em nosso trabalho, pelo

processo, corpus da pesquisa.

Perelman e Tyteca (2005) trazem, em sua obra Tratado da Argumentação: a nova

retórica, uma teoria argumentativa voltada para uma relação dialógica entre o orador e seu

auditório, após um longo período na história em que a argumentação se manteve apagada pela

ascensão racionalista oriunda de Descartes. Nessa obra, conceitos como os de premissas e

técnicas argumentativas, auditório, orador e acordo mostram que os argumentos em defesa de

determinada ideia devem ser levantados, observando-se o sujeito a quem o discurso se dirige e

o contexto em que esse discurso é produzido, para que, dessa forma, o orador possa

conquistar a adesão a sua opinião. Isto posto, baseados nos conceitos apresentados por

Perelman, na Nova Retórica, é que nos propomos, respondendo a nossa segunda questão de

pesquisa, citada acima, identificar e analisar as técnicas argumentativas usadas pelo ministério

público e pela defensoria pública, no processo em questão.

Baronas (s.d) diz que às palavras, às expressões, às proposições não são atribuídos

sentidos senão através das posições ideológicas manifestadas nos contextos sociais nas quais

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estão inseridas. Não podemos, segundo esse pensamento, atribuir um único sentido a um

determinado discurso, por exemplo, se esse discurso pode ser interpretado de várias formas

por pessoas com ideias diferentes e em circunstâncias diferentes, ou seja, são vários os efeitos

que emergem desse discurso e caberá a cada um atribuir-lhe sentido. Indo mais além, Possenti

(2001) afirma que pelo fato de o discurso ser constituído de outros discursos, é possível

chegar à conclusão de que o próprio (o discurso) é desprovido de sentido. Sendo assim,

entendemos que o sentido é o produto que surge do que Baronas (s.d) entende como formação

ideológica e o que vem antes disso são os seus efeitos. E é como base no pensamento de que

são vários os sentidos manifestados sobre fatos, circunstâncias e pessoas, especialmente sobre

Lampião e o cangaço, que, respondendo a nossa terceira questão de pesquisa, também citada

acima, nos propomos verificar os efeitos de sentido atribuídos ao cangaço, no processo

criminal que nos propomos analisar.

Para efetivação dos objetivos e melhor organização do trabalho, estruturamos o

conteúdo em três capítulos: o primeiro deles, que tratará do referencial teórico, intitulado de

"Um encontro de teorias”, no qual discutiremos os conceitos basilares de nossa pesquisa,

buscando sempre mostrar a aproximação entre as áreas do Direito e da Linguagem. Nele,

discutiremos, essencialmente, os conceitos de linguagem, argumentação e efeitos de sentido,

considerando, também, dentro dessa perspectiva, os conceitos de gênero discursivo, discurso

jurídico e Direito.

No segundo capítulo, que chamamos da “Construção do objeto”, trataremos da

caracterização geral da pesquisa, momento em que detalharemos o corpus, o universo da

pesquisa, os procedimentos metodológicos e os critérios adotados para a realização da análise.

O terceiro capítulo, que chamamos de “Lampião e o cangaço em processo criminal:

estudos sobre a argumentação, a dialogicidade e os efeitos de sentido”, diz respeito à análise

do corpus, momento em que aplicaremos os critérios elencados ainda no segundo capítulo e

levantaremos as respostas às questões de pesquisa, apresentadas neste texto introdutório.

Respondendo às questões de análise, correspondentes aos objetivos específicos, neste capítulo

evidenciaremos os conceitos defendidos pelos teóricos citados no referencial, fundamentando

as respostas das questões levantadas com recortes de textos do corpus, através dos quais

faremos a análise e chegaremos ao resultado almejado.

Apresentaremos, por último, as considerações finais do trabalho, em cuja parte

faremos uma retomada da pesquisa desde a teoria à análise do corpus, refazendo o caminho

percorrido do primeiro capítulo aos resultados do trabalho.

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Julgamos, portanto, de grande relevância a realização da pesquisa, por considerarmos

a pertinência de estudos que relacionem as ciências da linguagem com outras ciências, haja

vista que isto vem corroborar, ainda mais, com o entendimento de que a linguagem, como

instrumento de interação humana, é imprescindível aos mais diversos campos da atividade

humana; além disso podemos contribuir para a ampliação dos conhecimentos acerca dos

estudos da argumentação, da dialogicidade e sobre efeitos de sentido.

16

1 UM ECONTRO DE TEORIAS

Optamos por intitular esse primeiro capítulo como “Um encontro de teorias”, porque

buscamos, nesta unidade do trabalho, ao mesmo tempo em que apresentamos as teorias

fundamentadoras, discutir a proximidade entre os estudos da Linguagem e o Direito.

Realizaremos, assim, um percurso dividido em dois caminhos: o caminho da linguagem e o

caminho do Direito, que, apesar de seguirem veredas diferentes, se encontram em um ponto

comum: o discurso.

Iniciaremos essas discussões tratando das teorias bakhtinianas sobre linguagem,

momento em que debateremos as noções preliminares da linguagem enquanto instrumento de

interação e as relações dialógicas manifestadas nos discursos. Entendemos que as discussões

sobre as teorias de Bakhtin são de imensurável amplitude, mas tentaremos focar o dialogismo,

tema de um dos nossos objetivos.

Após a abordagem inicial sobre linguagem, continuaremos a discussão tratando dos

conceitos sobre argumentação, de Chaim Perelman (2005), considerando, de maneira breve, a

Retórica, e aprofundando os conhecimentos acerca da Nova Retórica, defendida por este

autor. Por último, trataremos da noção de efeitos de sentido, já que uma de nossas intenções é

verificar os efeitos de sentido produzidos no processo.

Para serem analisadas, portanto, as técnicas argumentativas dos discursos que

compõem o processo contra Lampião e seu bando, e compreender os processos dialógicos que

se manifestam em processos judiciais, dois de nossos objetivos específicos, precisamos,

primeiramente, estudar os conceitos de linguagem, dialogismo, argumentação, orador,

auditório e acordo, ethos, pathos, logos, gênero discursivo, discurso jurídico, dentre outros

que também seguem a linha de pensamento dessa pesquisa; bem como entender a noção de

efeitos de sentidos, para podermos verificar os sentidos que se manifestam em processos

judiciais, discutindo aqueles que são atribuídos ao cangaço (terceiro objetivo de nosso

trabalho), através dos discursos que constituem o processo judicial contra “Lampião” e seu

bando.

1.1 Uma linguagem bakhtiniana

A linguagem é, conforme pensamento bakhtiniano (2004), um instrumento de

interação; através dela os sujeitos estabelecem vínculos, compromissos, em todas as

17

circunstâncias nas relações cotidianas, nas quais se envolvem. Para Bakhtin (1988, p. 100),

“[...] a linguagem coloca-se nos limites do seu território e nos limites do território de outrem.

[...] ela está povoada ou superpovoada de intenções de outrem.” Assim sendo, como atividade

constitutiva, em que o locus de realização é a interação verbal, a linguagem é esse

instrumento, através do qual os sujeitos interagem, e, nesse processo de interação, produzem

discursos intensamente marcados pelo outro e pelos contextos de produção.

Essa é a essência do pensamento de Bakhtin (2004). Na constituição do discurso, o

indivíduo não é o único responsável pelo seu conteúdo. No processo de produção discursiva,

o indivíduo interage com outros sujeitos e com o contexto, e esse discurso é o que podemos

chamar de produto sócio-histórico. Podemos dizer que a própria língua é um produto desse

processo, e a palavra, signo verbal, é o principal meio responsável por essa forma de

interação social.

Defendendo a ideia de que a linguagem é um instrumento de interação, Bakhtin (2004)

critica o subjetivismo individualista1 e o objetivismo abstrato2. Ele afirma que a verdadeira

substância da língua é constituída “[...] pelo fenômeno social de interação verbal, realizada

através da enunciação ou enunciações. A interação verbal constitui, assim, a realidade

fundamental da língua” (BAKTHIN, 2004, p. 123). Segundo Bakhtin (2004, p. 124), “a

língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema

linguístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes”.

Portanto, a enunciação, independente da maneira que se apresente, será um produto da

interação entre indivíduos, e a palavra, principal meio de expressão da enunciação, estará

condicionada aos sujeitos a quem ela será dirigida, sendo, também, pois, produto da interação

entre os sujeitos envolvidos na relação dialógica. A palavra, assim, “[...] variará se se tratar de

uma pessoa do mesmo grupo social ou não, se esta for inferior ou superior na hierarquia

social, se estiver ligada ao locutor por laços mais ou menos estreitos (pai, mãe, marido, etc.)”

(BAKHTIN, 2004, p.112). “A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros.

1 “O psiquismo individual constitui a fonte da língua, como fundamento da língua (no sentido de toda atividade de linguagem sem exceção). As leis da criação linguística – sendo a língua uma evolução ininterrupta, uma criação contínua – são as leis da psicologia individual, e são elas que devem ser estudadas pelo linguista e pelo filósofo da linguagem. Esclarecer o fenômeno linguístico significa reduzi-lo a um ato significativo”(BAKHTIN, 2004, p. 72). 2 “Nós podemos sintetizar o essencial das considerações da segunda orientação nas seguintes proposições: 1. A língua é um sistema estável, imutável, de formas linguísticas submetidas a uma norma fornecida tal qual a consciência individual e peremptória para esta. 2. As leis da língua são essencialmente leis linguísticas específicas, que estabelecem ligações entre os signos linguísticos no interior de um sistema fechado (...). 3. As ligações linguísticas específicas nada têm a ver com valores ideológicos (...). Entre a palavra e seu sentido não existe vínculo natural e compreensível para a consciência, nem vínculo artístico. 4. (...) Entre o sistema da língua e sua história não existe nem vínculo nem afinidade de motivos. Eles são estranhos entre si. (BAKHTIN, p. 82-83)

18

Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre meu interlocutor. A

palavra é o território comum do locutor e do interlocutor” (BAKHTIN, 2004, p. 113).

Essa constante interação enunciativa entre sujeitos e o contexto é o que Bakhtin

denomina de dialogismo, cujo conceito expressa a ideia de que não há que se falar em

discurso próprio, pois o discurso consiste em uma soma de enunciados. Klaus (2010), em

estudo sobre o dialogismo de Bakhtin, bem explica essa concepção; vejamos:

O enunciador, para constituir um discurso, leva em conta o discurso de outrem, que está presente no seu. Todo discurso é atravessado pelo discurso alheio. Nenhum discurso é só meu sempre tem a voz do outro. Portanto, o dialogismo é as relações de sentido que se estabelecem entre dois enunciados.

Segundo Klaus (2010), essa dialogicidade pode se apresentar de maneira direta,

situação em que o discurso do outro é abertamente citado, de maneira separada do discurso de

quem o cita, e de maneira indireta, situação em que há a inserção do dicurso do outro, mas de

maneira não explícita, pois o discurso, no segundo caso, se encontra internamente

dialogizado.

Isto posto, compreendemos, assim, o conceito de linguagem na concepção

bakhitiana, como uma relação dialógica (de interação) entre sujeitos e o contexto no qual

estão inseridos, em que a enunciação (o discurso), que emerge dessa relação, é marcada pela

presença de outros enunciados (o outro) de maneira direta ou indireta.

1.1.1 Linguagem e Direito: uma relação de afinidade

A linguagem, sobretudo a linguagem enquanto instrumento de interação manifestada

através da argumentação, se apresenta das mais diversas formas e nos diferentes campos da

atuação humana. No meio jurídico, onde ela é a base fundamental para as decisões judiciais,

essa manifestação da linguagem é ainda mais relevante, por lidar com os direitos e com a

liberdade do homem. Mas a relação da linguagem com o Direito vai muito além do uso de

recursos linguísticos para a defesa dos direitos dos cidadãos; podemos afirmar que a

linguagem é o próprio pilar da ciência do Direito, pois a sua essencialidade se expressa na

construção de todo o aparato jurídico, e na sua materialização, que se dá na prática jurídica.

19

Podemos perceber isso, ao buscarmos compreender, por exemplo, os caminhos

percorridos pela justiça, através da linguagem, para assegurar os direitos do cidadão, uma de

suas metas. Sob a forma de argumentação, o discurso jurídico é construído de modo a levar

em consideração todas as manifestações que influam direta ou indiretamente no fato a ser

discutido. Assim sendo, entram, nessa construção discursiva, a interação entre os sujeitos, a

relação entre fatos, circunstâncias, condições de produção dos discursos, o contexto sócio-

histórico e ideológico, em que se situam os sujeitos desse domínio discursivo; numa espécie

de interação social que envolve todos os elementos que constituem o direito a ser defendido.

Tanto a estrutura quanto as técnicas utilizadas na aplicação dos princípios gerais aos

diversos ramos do Direito, no ordenamento jurídico, têm sido orientadas pelas modificações

ocorridas na sociedade, como reflexo dos acontecimentos sócio-políticos e econômicos em

toda a história da humanidade - um tipo de interação entre os homens e o meio em que vivem,

consideradas todas as circunstâncias de produção desses sujeitos. Observamos essa interação

na própria criação das regras que constituem o Direito, as quais são estabelecidas de acordo

com a realidade de cada época, como também na aplicação desse Direito, em que os sujeitos

responsáveis por essa aplicação produzem discursos argumentativos na “busca da decisão

mais razoável eficiente e justa” (MANELI, 2004, p. 32).

Sobre essa construção sócio-histórica e ideológica dos sujeitos, afirma Bakhtin (2004,

p.112) que,

na maior parte dos casos, é preciso supor além disso um certo horizonte social definido e estabelecido que determina a criação ideológica do grupo social e da época a que pertencemos, um horizonte contemporâneo da nossa literatura, da nossa ciência, da nossa moral, do nosso direito (BAKHTIN 2004, p.112).

Assim, a linguagem, no Direito, é a mais evidente expressão do seu caráter

interacionista, conforme pensamento bakhtiniano. Sob a forma de argumentação, sua principal

manifestação no meio jurídico, ela se dá através da interação entre os sujeitos e o seu contexto

social. No Direito, a linguagem, manifestada através da argumentação, é indispensável para a

sua constituição e aplicação. Sem ela (a linguagem) não seria possível mantermos a ordem

jurídica e social do mundo em que vivemos.

Podemos observar, de maneira prática, a importância dessa manifestação no Direito ao

analisarmos as três fases que o constituem, cuja análise aponta que todas elas se dão em um

processo de constante interação: a primeira fase, de produção, em que o legislador produz as

leis de acordo com os anseios sociais da época (interação social, política e econômica), e para

20

isso, precisa convencer (argumentar) o Legislativo de que o seu projeto é pertinente para

atender às necessidades sociais; a segunda fase, de interpretação, na qual os representantes

das partes interessadas interpretam as regras de maneira a adequá-las a suas teses, produzidas

para adesão de seu auditório, utilizando-se, assim, de técnicas argumentativas baseadas no

interacionismo entre o sujeito, os fatos e o auditório ao qual se dirige; e a terceira fase, de

aplicação, na qual o juiz, através da interação entre a lei, os fatos, o meio e os argumentos

levantados pelas partes interessadas (interação entre sujeitos), procurará julgar os conflitos da

forma mais razoável e eficiente, justificando (argumentando), assim, a sua decisão como

sendo a mais justa.

Percebemos que a argumentação, expressa pela linguagem como fruto da interação

entre sujeitos e os aspectos históricos, sociais, políticos e econômicos, está presente em todos

os momentos de constituição do Direito: na construção das regras - argumentação do

legislador; na interpretação - argumentação dos sujeitos representantes dos direitos dos

cidadãos : Ministério Público, Advogado, Defensor Público, Procurador de Justiça; e na sua

aplicação - argumentação do juiz, em cuja fase a decisão tomada é efetivamente a mais

adequada, sendo necessário, para a construção dessa argumentação, levar em conta a interação

entre sujeitos e fatos.

Imaginemos, pois, a falta do interacionismo na produção da linguagem para a

constituição do Direito, em sua produção, interpretação e aplicação. Idealizemos, por

exemplo, um mundo em que as regras de convivência sejam estagnadas, em que a Lei de

Talião (“olho por olho, dente por dente”), encontrada no Código de Hamurabi, em 1780 a.C.,

ainda permanecesse em nosso ordenamento jurídico. Se assim fosse, constataríamos que a

sociedade, sem o fenômeno da interação, nunca haveria se tornado civilizada; seria, sim, uma

humanidade consumida pela barbárie.

Logo, percebemos que o fenômeno do interacionismo da linguagem, defendido por

Mikhail Bakhtin (2004), está presente nos mais diversos campos das atividades humanas,

sobretudo no meio jurídico. Se não existisse a interação entre os sujeitos no processo da

linguagem não existiria o Direito, e, portanto, não existiria uma sociedade organizada.

O Direito, “conjunto de princípios, regras e instituições destinado a regular a vida em

sociedade” (MARTINS, 2008, p.4), por si só (re)cria-se a todo instante fundamentado na

adaptação ao contexto social; acrescenta-se a isso o fato de este mesmo Direito ser uma

ciência jurídica completamente dependente da palavra (e da linguagem) como instrumento

efetivador de seu objetivo.

21

A reflexão sobre a linguagem jurídica não pode ser vista como um exercício de atenuada pertinência. Tampouco pode ser encarada como uma atividade subalterna às questões ditas centrais do meio jurídico. De fato, pensar a linguagem do Direito é tarefa de relevância extrema, uma vez que a atividade discursiva sempre comparece ao primeiro plano da prática jurídica. Entendendo-se, todavia, que se a existência social é, por excelência, uma vida de práticas verbais e a linguagem impregna, produz e é moldada por toda e qualquer atividade humana, sejam profissionais, institucionais, artísticas etc, não haveria primazia para o Direito a presença do interesse de estudos lingüísticos. Ainda assim, deve-se salientar que o interesse pelo estudo da linguagem jurídica reveste-se de uma importância peculiar. Não é descabido afirmar que a palavra é a “ferramenta” fundamental de trabalho do profissional da área forense. Já houve até quem dissesse que “o Direito é, por excelência, entre as que mais o sejam, a ciência da palavra” (XAVIER, 1982, p. 1). De fato, é por meio dela, seja escrita, seja falada, que é consumada a maior parte das atividades do oficio jurisdicional: aconselhar, peticionar, defender, acusar, provar, absolver, condenar, entre tantas outras (BULHÕES, s.d).

Para a efetivação do exercício das ciências jurídicas se faz necessário o uso da

linguagem, sem ela não seria possível atingir um de seus objetivos primordiais: a defesa dos

direitos do ser humano. Mas a relação entre o Direito e a linguagem não se limita apenas a

esse objetivo. A linguagem e o Direito se interrelacionam na própria criação do Direito e na

constituição de outro objetivo: a manutenção da ordem social através de imposições de regras

mínimas de conduta. O Direito, além de assegurar que sejam garantidos os direitos do ser

humano, tem objetivo de manter a ordem social, através do estabelecimento dessas regras para

que os indivíduos as cumpram. Uma vez não sendo obedecidas as regras impostas, os sujeitos

serão punidos pelos atos que contrariem os critérios de ordem social.

Em uma passagem de sua obra Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin (2004, p.

112) diz que “a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente

organizados”. Acontece que, para os sujeitos serem socialmente organizados, assim como

toda a sociedade, para que não se tornem um caos as relações entre as pessoas e seu meio

social, devem ser estabelecidas, por esta mesma sociedade, normas de conduta a serem

cumpridas. Essas normas são elaboradas tomando-se por base o comportamento do homem

comum, constituindo-se, assim, o Direito. Segundo Martins (2008, p.4),

o objetivo do Direito é regular a vida humana em sociedade, estabelecendo, para esse fim, normas de conduta, que devem ser observadas pelas pessoas. Tem por finalidade a realização da paz e da ordem social, mas também vai atingir as relações individuais das pessoas.

22

Logo, assim como o Direito necessita da linguagem para assegurar a decisão mais

eficiente e justa sobre os fatos analisados, a enunciação, para sua existência, necessita de dois

indivíduos socialmente organizados, e, para que haja a organização social no meio no qual

interagem estes indivíduos, é preciso que sejam estabelecidas, pelo Direito, regras de conduta.

Em outra passagem de sua obra, Bakhtin (2004, p. 34) afirma que “a consciência só se

torna consciência quando se impregna de conteúdo ideológico (semiótico) e,

consequentemente, somente no processo de interação social”. Assim, diz Bakhtin (2004, p.

35):

O ideológico enquanto tal não pode ser explicado em termos de raízes supra ou infra-humanas. Seu verdadeiro lugar é o material social particular de signos criados pelo homem. Sua especificidade reside, precisamente, no fato de que ele se situa entre os indivíduos organizados, sendo o meio de sua comunicação.

Entendemos, com isso, que, se a consciência só se torna consciência quando se

impregna de conteúdo ideológico e se o ideológico só se situa entre os indivíduos

organizados, não existindo regras que estabeleçam um mínimo de controle sob o

comportamento humano para que esses indivíduos vivam de forma organizada, não seria

possível haver organização social.

É importante ressaltar que o Direito, ao qual nos referimos, trata-se de toda e qualquer

regra mínima de conduta a que os seres humanos devem se submeter; e essa é uma

necessidade que perpassa a história da humanidade, desde as primeiras civilizações.

É possível perceber, pois, que, na aplicação da ciência do Direito, se faz necessária a

constante interação entre os sujeitos e o contexto social em que esses sujeitos vivem, sendo,

portanto, a linguagem, a ferramenta utilizada, por excelência, para a defesa dos interesses

sociais e pessoais do ser humano. Entendemos, ainda, que a relação entre o Direito e a

linguagem se dá para além do uso desse recurso linguístico como instrumento de defesa dos

direitos dos cidadãos; ela (a linguagem) é considerada um dos pilares da própria construção

do Direito, e que o Direito, como forma de organização social, de certa forma influi na

constituição da linguagem e no processo de interação entre os sujeitos.

1.2 A argumentação: da Retórica à Nova Retórica de Chaim Perelman

23

Em toda a história da humanidade, a argumentação se faz presente. Nas relações

cotidianas, desde as mais simples discussões entre cidadãos comuns aos debates entre

profissionais do meio jurídico em busca da efetivação de direitos, a argumentação representa

um instrumento essencial para a formação de ideias e tomada de decisões. É, portanto, pela

sua importância para o meio social, que a argumentação tem sido matéria muito discutida ao

longo da história. É importante ressaltar, contudo, que o fenômeno da argumentação nem

sempre foi compreendido sob uma mesma ótica.

Antes mesmo do aprofundamento dos estudos acerca da argumentação, ainda no

século V a.C., Córax e Tísis, os primeiros a ensinar a técnica do bem falar, apresentavam a

arte de conquistar a adesão do público à ideia defendida sob uma perspectiva estritamente

persuasiva. Desenvolvida pelos sofistas, essa técnica se tornou essencial na vida dos cidadãos

da época, cuja participação política era ativa; daí a necessidade do seu domínio. Surgiu,

assim, a Retórica.

A Retórica surgiu na antiga Grécia, ligada à Democracia e em particular à necessidade de preparar os cidadãos para uma intervenção activa no governo da cidade. "Rector" era a palavra grega que significava "orador", o político. No início esta não passava de um conjunto de técnicas de bem falar e de persuasão para serem usadas nas discussões públicas (FONTES, s.d).

Muitos foram os que estudaram a Retórica, no decorrer da história. Uma das grandes

contribuições para esses estudos foi a teoria de Aristóteles, que dispôs a Retórica como um

sistema coerente e lógico. Segundo Perelman e Tyteca (2005, p. 2), “o raciocínio more

geométrico era o modelo proposto aos filósofos desejosos de construir um sistema de

pensamento que pudesse alcançar a dignidade de uma ciência”.

Descartes, filósofo francês, considerava que, quando há posições contrárias sobre um

mesmo assunto, dentre as duas teses uma está errada.

“Todas as vezes que dois homens formulam sobre a mesma coisa um juízo contrário, é certo”, diz Descartes, “um dos dois se engana. Há mais, nenhum deles possui a verdade; pois se um tivesse dela uma visão clara e nítida poderia expô-la a seu adversário, de tal modo que ela acabaria por forçar sua convicção” (DESCARTES, apud PERELMAN, 2005, p. 2).

O pensamento racionalista de que a verossimilhança da argumentação aproxima o

discurso da falsidade descartava qualquer possibilidade de haver provas válidas senão as que

24

eram reconhecidas pelas próprias ciências naturais. Qualquer proposição, portanto, não seria

discutível, deveria ser, necessariamente, aceita.

Foi diante de situações em que a lógica não encontraria solução exata para os

problemas que Perelman e Tytetca (2005) questionaram o raciocínio lógico defendido por

Descartes.

Deveríamos, então, tirar dessa evolução da lógica e dos incontestáveis progressos por ela realizados a conclusão de que a razão é totalmente incompetente nos campos que escapam ao cálculo e de que, onde nem a experiência, nem a dedução lógica podem fonercer-nos a solução de um problema, só nos resta abandonarmo-nos a forças irracionais, aos nossos instintos, à sugestão ou à violência? (PERELMAN e TYTECA, 2005, p. 3)

Assim surgiu a Nova Retórica, como o estudo da argumentação e suas “técnicas

discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhes

apresentam ao assentimento” (PERELMAN e TYTECA, 2005, p. 4), e que toma como base a

Retórica, mas leva em consideração um auditório universal, o discurso em sentido amplo, e

não apenas o discurso oral. As técnicas argumentativas trabalhadas na Nova Retórica buscam,

acima de tudo, a manutenção da adesão do auditório a sua tese e não apenas a sua conquista.

[...] (1) Enquanto a Velha Retórica se refere a auditórios determinados, a Nova Retórica tem em vista não só o auditório determinado (auditório particular), mas também o auditório de cunho geral e indeterminado (auditório universal). (2) a Velha Retórica preocupava-se com o discurso oral, a Nova Retórica preocupa-se, também, com o discurso escrito, com o texto impresso. (3) Enquanto a Velha Retórica privilegiava o condicionamento do auditório, a Nova Retórica, além disso, tem como objetivo o estudo das estruturas da argumentação e das técnicas argumentativas. (4). Perelman desenvolve uma retórica mais larga e eficaz, cujo escopo não é apenas o de obter a adesão do auditório, mas, uma vez conquistada esta adesão, mantê-la (retórica da manutenção), fazê-la crescer, incitando o auditório a agir (HENRIQUES, 2008, p. 30).

A Nova Retórica, fundada por Chaim Perelman, “constitui uma ruptura com uma

concepção da razão e do raciocínio oriunda de Descartes” (PELREMAN e TYTECA, 2005,

p.1). Ela considera que ambas as partes envolvidas no diálogo “possuem opiniões válidas e

razoáveis, pois os problemas humanos, práticos, políticos e morais não podem ser reduzidos à

antinomia, ao verdadeiro ou falso” (MANELI, 2004, p.26). Essas opiniões válidas e razoáveis

são expostas de maneira a conseguir a adesão da opinião que, inicialmente, se mostra

contrária uma a outra, através da argumentação.

25

Descartes e os racionalistas puderam deixar de lado a retórica, na medida em que a verdade das premissas era garantida pela evidência, resultante do fato de se referirem a idéias claras e distintas, a respeito das quais nenhuma discussão era possível. Pressupondo a evidência do ponto de partida, os racionalistas desinteressaram-se de todos os problemas levantados pelo manejo de uma linguagem. Mas, assim que uma palavra pode ser tomada em vários sentidos, assim que se trata de aclarar uma noção vaga ou confusa, surge um problema de escolha e decisão, que a lógica formal é incapaz de resolver; cumpre fornecer as razões da escolha para obter a adesão à solução proposta, e o estudo dos argumentos depende da retórica [...] (PERELMAN, 2000, apud RUSSO, 2008).

A Nova Retórica é, portanto, a “busca de um modo de tomar as decisões mais

razoáveis, eficientes e justas e que possam ganhar o maior apoio possível de um público

dividido por diversas controvérsias” (MANELI, 2004, p. 32). Para ela, o homem razoável não

é sempre racional - “apesar de ambas as expressões significarem conformidade com a razão,

raramente interagem; uma sugere uma dedução em conformidade com as regras de

racionalidade lógica, mas não necessariamente razoável” (MANELI, 2004, p. 28) – ele

adéqua o que seria justo e injusto, o que seria certo e errado à realidade que o cerca.

Segundo Maneli (2004, p.29),

O homem razoável, por outro lado, não é sempre “racional”. Ele é influenciado pelo “senso comum” ou pelo “bom senso” e se esforça para saber o que é aceito pelo seu próprio meio social e, se possível, por todos. Ele leva em consideração as mudanças das circunstâncias, a evolução social, a sensibilidade, o desenvolvimento da moral e os critérios modificáveis da decadência (MANELI, 2004, p.29).

O que é simplesmente racional nem sempre é o mais justo. Assim como a própria

ciência do Direito, a justiça deve acompanhar a evolução humana de maneira a corresponder

às expectativas da sociedade, que se modificam no curso do tempo. O racionalismo, na

concepção de seus seguidores, não permite a discussão, não levando, assim, em consideração

os argumentos acerca das mudanças no meio social.

1.2.1 O orador, o auditório e o acordo

A Nova Retórica considerou, segundo Maneli (2004), as opiniões válidas e razoáveis,

que oportunamente são defendidas em um discurso que podemos chamar de discurso

argumentativo. Esse discurso é composto, essencialmente, pelo orador, definindo como

26

aquele que discursa, e o auditório, que diz respeito a quem o discurso é dirigido. Sobre

aquele que discursa, entendemos que não existe dificuldade em conceituá-lo, no entanto,

quanto ao auditório, é preciso que tenhamos maior clareza para compreendê-lo, pois nem

sempre é o que entendemos ser.

Como definir semelhante auditório? Será a pessoa que o orador interpela pelo nome? Nem sempre: o deputado que, no parlamento inglês, deve dirigir-se ao presidente pode estar procurando convencer não só os que o ouvem, mas ainda a opinião pública de seu país. Será o conjunto de pessoas que o orador vê à sua frente? Não necessariamente. Ele pode perfeitamente deixar de lado uma parte delas: um chefe de governo, num discurso ao Parlamento, pode renunciar de antemão a convencer os membros da oposição e contentar-se com a adesão de sua maioria (PERLEMAN e Tyteca, 2005, p. 21).

A noção que temos sobre quem é o auditório, numa relação discursiva, pode ser

errônea, se levarmos em consideração alguns elementos da citação acima. Segundo Perelman

e Tyteca (2005, p. 22), é “preferível definir o auditório como o conjunto daqueles que o

orador quer influenciar com sua argumentação”. Se definirmos o auditório como aqueles a

quem nos dirigimos, a quem pretendemos atingir com os nossos discursos, certamente

estaremos abrangendo todos os nossos interlocutores.

A importância de sabermos definir o auditório, seja ele um auditório universal3 ou

particular (o interlocutor4 ou o próprio sujeito5), está na maior chance de obtermos sucesso ao

tentar influenciá-lo com as argumentações; afinal, sabendo a quem estamos nos dirigindo,

poderemos estudar quais os fatores e em que circunstâncias o auditório poderá ser

influenciado. “O conhecimento daqueles que se pretende conquistar é, pois, uma condição

prévia de qualquer argumentação eficaz” (PERELMAN e TYTECA, 2005, p. 23).

Um terceiro elemento, chamado de acordo, é figura presente, segundo Perelman, em

um discurso argumentativo. Segundo ele, a conquista da adesão do auditório, através da

argumentação, pressupõe a ideia de acordo. “Tanto o desenvolvimento como o ponto de

partida da argumentação pressupõem acordo do auditório” (PERELMAN e TYTECA, 2005,

p. 73). O acordo dá-se na construção dos argumentos, momento em que o orador deve levar

em consideração a reflexão que seu auditório faz acerca do que está sendo discutido, pois

qualquer argumentação deve apoiar-se em teses admitidas pelo auditório. Este, ao analisar o

3 “constituído pela humanidade inteira, ou pelo menos por todos os homens adultos e normais” (PERELMAN e TYTECA, 2005, p. 34) 4 É [...] a quem especialmente nos dirigimos (PERELMAN e TYTECA, 2005, P. 34) 5 “é o estabelecido pelo próprio locutor; é o caso, verbi gratia, do exame de consciência em que alguém pesa os prós e os contra para tomar uma decisão” (HENRIQUES, 2008, p. 34)

27

discurso de seu orador, poderá interpretá-lo a sua maneira ou, muitas vezes, construir seus

próprios argumentos.

De acordo com Perelman e Tyteca (2005, p.213),

Enquanto o orador argumenta, o ouvinte, por sua vez, ficará inclinado a argumentar espontaneamente acerca desse discurso, a fim de tomar uma atitude a esse respeito, de determinar o crédito que lhe deve dar. O ouvinte que percebe os argumentos não só pode percebê-los à sua maneira como é o autor de novos argumentos espontâneos, o mais das vezes não expressos, mas que ainda assim intervirão para modificar o resultado final da argumentação.

Essa reflexão realizada pelo ouvinte poderá ser conduzida pelo orador, de modo “que

este mesmo forneça aos ouvintes certos argumentos referentes às características de seu

próprio enunciado, ou então que forneça certos elementos de informação que favorecerão esta

ou aquela argumentação espontânea do ouvinte” (PERELMAN e TYTECA, 2005, p.213).

Assim, o orador age de tal modo sobre o ouvinte que poderá influenciar no resultado final: a

adesão do ouvinte a sua tese.

É dessa forma que se dá o processo argumentativo do orador na busca da adesão do

seu auditório: orador deve interagir com a reflexão dos seus ouvintes ao defender a sua tese

principal. Abreu (1999, p. 46) explica com clareza como se deve dar o processo de

argumentação na defesa de uma tese. Para ele,

ao iniciar um processo argumentativo visando ao convencimento, não devemos propor de imediato nossa tese principal, a idéia que queremos vender ao nosso auditório. Devemos, antes, preparar o terreno para ela, propondo alguma outra tese com a qual o auditório possa antes concordar.

Deverá, portanto, existir uma tese inicial, preparatória, que geralmente é uma opinião

comum ao próprio auditório, para facilitar a adesão à tese principal a ser defendida pelo

orador. Essa transposição de teses é chamada de acordo entre o orador e o auditório, o qual

requer do orador o conhecimento sobre as ideias, opiniões e crenças do auditório que se

pretende conquistar.

1.2.2 As técnicas argumentativas

28

Nessa construção argumentativa, segundo Perelman e Tyteca (2005), ocorrem

processos, também chamados de esquemas ou lugares, que podem estabelecer a ligação ou a

dissociação de elementos, com o objetivo de conquistar a adesão do auditório à tese

defendida.

Entendemos por processos de ligação esquemas que aproximam elementos distintos e permitem estabelecer entre estes uma solidariedade que visa, seja estruturá-los, seja valorizá-los positiva ou negativamente um pelo outro. Entendemos por processo de dissociação técnicas de ruptura com o objetivo de dissociar, de separar de desunir elementos considerados um todo, ou pelo menos um conjunto solidário dentro de um mesmo sistema de pensamento (PERELMAN e TYTECA, 2005, p. 215).

Perelman e Tyteca (2005) classificaram em três grupos os argumentos de ligação, cuja

finalidade é associar ideias: os argumentos quase lógicos, os argumentos baseados na

estrutura do real e os argumentos que fundamentam a estrutura do real; e, em um grupo, os

argumentos que visam a dissociar ideias, desfazendo incompatibilidades: a dissociação das

noções. Cada grupo é composto por tipos de argumentos que podem ser utilizados na

construção argumentativa do orador, na busca pela conquista da adesão do seu auditório.

Vejamos cada um deles:

Os argumentos de ligação quase lógicos vão buscar toda a sua eficácia persuasiva na

lógica formal; procuram se aproximar dessa lógica para obter maior credibilidade. “A cada

argumento lógico, de validade reconhecida e incontestável, corresponderá um argumento

quase-lógico de estrutura semelhante, cuja força persuasiva consistirá justamente na sua

proximidade com aquele” (PACHECO, 2011). Segundo Henriques (2008), nesse grupo,

podemos encontrar os seguintes argumentos: compatibilidade-incompatibilidade, que faz com

que o auditório aceite um enunciado, associando-o a outro; regra de justiça, que estabelece

tratamento igual aos indivíduos de uma mesma categoria; retorsão, que utiliza o próprio

argumento do adversário para contradizê-lo; ridículo, que procura mostrar a

incompatibilidade de um argumento, aproveitando-se do grotesco; definição, que trata o

assunto com determinado conhecimento, seja ele por gênero e diferença específica, por

descrição de suas características, por etmologia ou por definições normativas; sacrifício, que

sacrifica algo por determinado resultado; comparação, que põe em confronto realidades

diferentes para que essas sejam avaliadas umas em relação a outras; reciprocidade, que se

funda no estabelecimento de uma relação de simetria entre duas situações; transitividade, que

afirma a existência da relação entre um elemento a e c, se esta mesma relação existir entre os

elementos a e b e os elementos b e c; e, por último, a inclusão/divisão, que trata a relação do

29

todo e suas partes sob dois aspectos: a inclusão das partes no todo e a divisão do todo em suas

partes.

Os argumentos baseados na estrutura do real buscam, nas opiniões que se formam

acerca da realidade e que estão ligadas entre si, fundar argumentação que possibilite passar de

um desses elementos da “realidade” para outro, sob a forma de sucessão ou coexistência. A

relação de sucessão ocorre, quando os argumentos “a) [...] tendem a relacionar dois

acontecimentos sucessivos dados entre eles, por meio de um vínculo causal; b) [...] dado um

acontecimento, tendem a descobrir a existência de uma causa que pôde determiná-lo; c) [...]

dado um acontecimento, tendem a evidenciar o efeito que dele deve resultar” (PERELMAN e

TYTECA, 2005, p. 299). Já a relação de coexistência, segundo Perelman e Tyteca (2005), é

uma forma de ligação entre realidades de níveis desiguais, sendo uma mais fundamental, mais

explicativa do que a outra. Vejamos os tipos de argumentos baseados na estrutura do real:

• de autoridade: fazer uso de palavras/opiniões de pessoa reconhecida para reforçar

a tese defendida;

• a fortiori: “tal argumento repousa na dupla hierarquia em que se estabelece uma

escala de valores e, portanto, na hierarquia qualitativa e quantitativa que se refere a

uma relação entre pessoas e seus atos” (HENRIQUES, 2008, p. 68);

• Desperdício: “é aquele que alega uma oportunidade que não se deve perder, um

meio que existe e do qual é preciso servir-se” (PERELMAN, 1996, apud

HENRIQUES, 2008, p. 70);

• Pragmático: “aquele que permite apreciar um ato ou um acontecimento consoante

suas consequências favoráveis e desfavoráveis” (PERELMAN e TYTECA, 2005,

p. 303).

Os argumentos que fundam a estrutura do real são aqueles que utilizam um caso

particular, generalizando-o, para se estabelecer aquilo que se acredita ser a realidade

construída. Segundo Perelman e Tyteca (2005), trata-se dos argumentos que se utilizam: do

exemplo: baseado em um acordo preliminar entre o orador e auditório, usa-se um caso

particular como regra, generalizando-o; da ilustração: “enquanto o exemplo era incumbido de

fundamentar a regra, a ilustração tem a função de reforçar a adesão a uma regra conhecida e

aceita” (PERELMAN e TYTECA, 2005, p. 407); do modelo e antimodelo: a argumentação

baseada no modelo acontece quando um comportamento estimula uma ação, promovendo

certa conduta, já a argumentação baseada no antimodelo aquele comportamento permite

afastar-se de determinada conduta; da analogia: estabelece uma relação de semelhança entre

30

relações que unem duas entidades; segundo Perelman e Tyteca (2005, p. 453) “é em função da

teoria argumentativa da analogia que o papel da metáfora ficará mais claro”.

Enquanto os argumentos de ligação unem, “os argumentos por dissociação são aqueles

que, ao invés de proceder através da ligação e ruptura de associações anteriormente

estabelecidas, procuram solucionar uma incompatibilidade do discurso, restabelecendo uma

visão coerente da realidade” (PACHECO, 2011). Segundo Perelman e Tyteca (2005, p. 467),

“a técnica de ruptura de ligação consiste, pois, em afirmar que são indevidamente associados

elementos que deveriam ficar separados e independentes”. Henriques (2008) aponta os tipos

de argumentos que se baseiam na dissociação de ideias. Vejamos:

• Distinguo: “o indivíduo tem por objetivo estabelecer diferenças para se chegar à

clareza”. (HENRIQUES, 2008, p. 78)

• Dilema: “argumento pelo qual se obriga o adversário a uma alternativa, cada uma

de cujas partes conduz a mesma conclusão” (JOLIVET, apud HENRIQUES,

2008).

• por exclusão: “consiste tal argumento na proposta de hipóteses que se vão

eliminando uma por uma até a aceitação de uma delas” (HENRIQUES, 2008, p.

80).

Essas técnicas argumentativas, definidas por Perelman e Tyteca (2005) como

esquemas, podem ser apresentadas, consciente ou inconscientemente, pelos sujeitos, na

construção de suas teses.

No Direito, tanto a defesa como a acusação, atuantes em um processo, utilizarão

técnicas argumentativas, seja consciente ou inconscientemente, em defesa de suas teses, e é

com base nessas técnicas, que o auditório, seja ele constituído de juiz ou jurados, analisará os

argumentos levantados pelas partes em seus discursos (jurídicos) para poderem chegar à

decisão mais razoável, eficiente e justa.

1.2.3 Os elementos ethos, o pathos e o logos

Perelman e Tyteca (2005, p.16) afirmam que “a argumentação visa à adesão dos

espíritos e, por isso mesmo, pressupõe a existência de um contato intelectual”. No discurso

argumentativo, deve haver esse contato intelectual entre os envolvidos no discurso, pois o

orador deve preocupar-se em penetrar no mundo de seu interlocutor, pensar nos argumentos

31

que podem influenciá-lo, sempre tentando entender seu estado de espírito, para que possa

conseguir a adesão do mesmo a sua tese.

Com efeito, para argumentar, é preciso ter apreço pela adesão do interlocutor, pelo seu consentimento, pela sua participação mental. (...). Cumpre observar, aliás, que querer convencer alguém implica sempre certa modéstia da parte de quem argumenta, o que ele diz não constitui uma “palavra de Evangelho”, ele não dispõe dessa autoridade que faz com que o que diz seja indiscutível e obtém imediatamente a convicção. Ele admite que deve persuadir, pensar nos argumentos que podem influenciar seu interlocutor, preocupar-se com ele, interessar-se por seu estado de espírito. (PERELMAN e TYTECA, 2005, p.18).

Essa adesão é conquistada através da persuasão. O orador deverá persuadir seu

interlocutor; e os componentes que darão base a sua argumentação, para tornar a sua tese

aceita pelo auditório, são: o ethos, o pathos e o logos, considerados os três pilares

fundamentais da argumentação.

O ethos trata-se do componente pessoal de quem argumenta; diz respeito a sua pessoa

enquanto orador. Esse componente é usado para causar uma boa impressão, através da forma

como é construído o discurso, da sua capacidade de dialogar.

É o orador como princípio (e também como argumento) de autoridade. A ética do orador é seu “saber” específico de homem, e esse humanismo é sua moralidade, que constitui fonte de autoridade. Evidentemente liga-se ao que ele é e ao que ele representa. (...) O éthos se apresenta de maneira geral como aquele ou aquela com quem o auditório se identifica, o que tem como resultado conseguir que suas respostas sobre a questão tratada sejam aceitas. (MEYER, 2007, p. 34).

Já o pathos consiste em o orador usar as estratégias adequadas para provocar, no seu

auditório, emoções e paixões que culminem na adesão do mesmo a sua tese. Segundo Meyer

(2007, p.36), “se o ethos remete às respostas, o pathos é a fonte das questões e estas

respondem a interesses múltiplos, dos quais dão prova às paixões, às emoções ou

simplesmente às opiniões”.

O logos diz respeito à importância que o orador dá ao conteúdo, expondo a sua tese de

forma clara. “O logos é tudo aquilo que está em questão” (MEYER, 2007, p. 45). Esse

componente traduz o que o orador vai dizer com relação ao que está sendo questionado.

Assim, o mesmo terá que selecionar bem os seus argumentos que fundamentam sua tese, para

que o auditório a aceite.

32

Nas interações discursivas que constituem as relações sociais dos seres humanos, os sujeitos falantes, os oradores, ao construírem os seus textos, o que implica em defender teses, dialogam com os seus interlocutores também nas relações estabelecidas entre as teses argumentadas, uma vez que, nessa interação dialógica, o orador almeja convencer o seu auditório da veracidade ou plausibilidade de seus argumentos, de sua tese (logos), ou muitas vezes, interpelá-lo (pathos) a agir de uma forma desejada pelo orador (ethos). Esses componentes são os pilares que sustentam a base da teoria da argumentação defendida pelo estudo da Nova Retórica (SOUZA, 2003, p. 64).

1.3 O gênero discursivo: uma visão bakhtiniana e swalesiana

Referenciamos, nas discussões teóricas até então realizadas, o termo discurso jurídico;

convém agora explicarmos essa classificação discursiva, mas, antes de compreendermos o

discurso jurídico propriamente dito, faremos uma explanação sobre gêneros discursivos na

visão bakhtiniana e swalesiana, cujas definições nos parecem ser afins.

1.3.1 Quanto ao gênero

Bakhtin (1997) afirma que todas as esferas da atividade humana estão relacionadas à

língua, através de enunciados, e a forma como a língua é usada varia de acordo com a

atividade realizada. Sendo assim, cada atividade humana busca elaborar seus tipos

relativamente estáveis e esses tipos são denominados gêneros discursivos. Vejamos:

O enunciado reflete as condições específicas e as qualidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela relação operada nos recursos de língua - recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais-, mas também, e, sobretudo, por sua construção composicional. Esses três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundam-se indissoluvelmente no todo do enunciado e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação. Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso. (BAKHTIN, 1997, p. 279)

Os gêneros vivem em constante transformação. Assim como a própria sociedade, os

gêneros discursivos se modificam para atender às necessidades da própria sociedade que os

33

utiliza; daí a consideração de serem relativamente estáveis. Assim, se considera gênero,

conforme Bakhtin (2000, p. 284), “um dado tipo de enunciado, relativamente estável do ponto

de vista temático, composicional e estilístico”.

Rodrigues (2009) trabalha o conceito de gênero sob a visão Swalesiana, explicando

detalhadamente as características abordadas por este estudioso, como sendo as necessárias

para a identificação do gênero como tal.

Segundo Rodrigues, Swales entende que a “primeira característica está relacionada à

ideia de classe, uma categoria em que se encaixam textos semelhantes pertencentes ao mesmo

gênero” (RODRIGUES, 2009, p.21).

“A segunda característica do gênero é o propósito comunicativo” que “seria a força

motivadora do evento” (RODRIGUES, 2009, p.21). No entanto, quanto a essa característica,

Rodrigues diz que existem dois problemas: o fato de o propósito comunicativo não estar

explícito, dificultando a identificação do gênero, e o caso de o gênero, geralmente, apresentar

mais de um propósito comunicativo. Esses problemas, segundo Rodrigues, faz Swales chegar

à conclusão de que a identificação do gênero puramente através de seu propósito

comunicativo não é segura.

A terceira característica diz respeito à prototipicidade, mas antes entendamos o que

quer dizer essa expressão. “Os protótipos são definidos como os melhores exemplares das

categorias por condensarem as propriedades típicas de tal categoria, são aceitos e

reconhecidos por uma grande parcela da comunidade” (LUZ, 2001). Compreendemos, com

isso, que aqueles textos considerados “mais típicos da categoria representam os protótipos”

(RODRIGUES, 2009, p. 22).

A quarta característica do gênero é a lógica ou razão subjacente. “Essa lógica ou razão

delimita o conteúdo, forma e posicionamento estrutural do gênero, e está relacionada ao seu

propósito” (RODRIGUES, 2009, p. 22). Entendemos que é uma forma de, através de uma

sequência de atos estruturados e posicionados intencionalmente, melhor atingir o propósito

almejado.

As terminologias determinadas pela comunidade discursiva para seu próprio uso é a

quinta e última característica. Todavia, assim como o propósito comunicativo, a característica

referente à terminologia pode apresentar dois problemas: o mesmo evento pode ser

denominado com mais de um termo, o que dificulta a identificação do gênero, ou, mesmo não

havendo a alteração do termo, o gênero poderá sofrer um processo evolutivo, o que poderá,

também, causar problemas de identificação (RODRIGUES, 2009).

34

Assim, com base nesses elementos caracterizadores, podemos definir gênero, de

acordo com a concepção swalesiana, como sendo uma classe de eventos comunicativos

determinados por uma comunidade discursiva, os quais apresentam um propósito em comum

e são estruturados através de uma lógica ou razão, nos quais são utilizadas terminologias

específicas, cujos melhores exemplares são vistos com protótipos (modelos) a serem

adotados.

Percebemos, portanto, que existe afinidade entre as concepções de gênero defendidas

por Swales e Bakhtin, sobretudo no que diz respeito ao grupo a que está relacionado o gênero,

seja ela “esfera”, como diz Bakhtin, ou “comunidade”, como expressa Swales.

Assim, o que tentamos esclarecer é que sempre um gênero acontece dentro de uma esfera, ou de uma comunidade, que irá determinar escolhas e estilos, e que irá, no evento da comunicação, pressupor conhecimentos e buscar, digamos, uma cumplicidade dos participantes (POSSAMAI, s.d, p. 6).

Embora Bakhtin afirme que os gêneros se caracterizam pelo agrupamento em relação à

própria atividade discursiva e Swales entenda que os mesmos acontecem por afinidades de

propósitos comunicativos, entendemos que ambos tratam de uma cumplicidade, um ponto em

comum, que levará à construção desse gênero; daí a relação entre as duas concepções.

1.3.2 Quanto à esfera de atividade ou comunidade discursiva

Embora um dos conceitos basilares de nossa pesquisa seja referente à concepção

bakhtiniana de linguagem, após traçarmos alguns pontos em comum sobre os conceitos de

gênero, na visão de Bakthin e de Swales, preferimos trabalhar com o conceito de comunidade

discursiva (o que não contraria, como já vimos, o pensamento de Bakhtin) por considerarmos

esse conceito, de acordo com as características apresentadas por Swales, o que melhor

explicita a associação dessa teoria ao discurso jurídico, que é o foco dessa pesquisa.

1.3.3 Comunidade discursiva

O gênero é determinado pela própria comunidade discursiva, daí a afirmação de que

não há como tratar de gêneros sem nos referirmos à comunidade discursiva. Contudo, assim

35

como o gênero depende da comunidade para sua existência, a comunidade precisa do gênero

para realizar suas atividades e atingir os seus objetivos. Mas antes de adentrarmos a questão

da importância do gênero para a comunidade discursiva, apresentaremos as seis características

apresentadas por Swales (1990) como sendo as definidoras da comunidade discursiva, para

melhor compreendermos essa afirmação.

A primeira delas se expressa enquanto “conjunto de objetivos que os usuários dos

gêneros mantêm em comum” (RODRIGUES, 2009, p. 23). Para que se caracterize como

comunidade discursiva, o grupo deverá ter objetivos em comum, podendo esses estarem

expressos ou não.

A segunda e a terceira características são bem definidas por Rodrigues; vejamos:

Duas outras características têm a ver com o papel da informação no grupo. Primeiro, deve existir comunicação entre os membros da comunidade. Segundo, esses mecanismos têm a função de viabilizar a troca de informações e facilitar o engajamento dos membros da comunidade nessa troca (RODRIGUES, 2009, p. 24).

A quarta característica, chamada de critérios por Sakata (2009, p.198), diz respeito à

utilização de um ou mais gêneros textuais “no favorecimento discursivo dos seus objetivos”.

Tais gêneros podem ser específicos da comunidade discursiva, criados pela própria

comunidade, ou podem ser de outras comunidades amoldadas a suas necessidades.

A capacidade que as comunidades têm de desenvolver um léxico próprio que servem

aos seus objetivos, dispondo de termos com significados específicos para o uso dos gêneros,

bem como a organização hierárquica de seus membros, seja de forma explícita ou implícita,

“que se caracteriza pela necessidade de se haver um nível de entrada de membros com um

grau de conteúdo relevante e perícia discursiva” (SAKATA, 2009, p. 201), correspondem,

respectivamente, à quinta e à sexta características elencadas por Swales.

Ao reunirmos todas as características (ou critérios) que definem a comunidade

discursiva, chegamos à seguinte conclusão sobre seu conceito: comunidade discursiva é, pois,

um grupo de pessoas reunidas em torno de objetivos comuns, interagindo entre si, as quais,

através de gêneros, léxico próprio e organização hierárquica, conseguem atingir esses

objetivos.

Após a definição do conceito de comunidade discursiva, podemos entender mais

claramente a importância do gênero para essa comunidade: é através dos gêneros que elas (as

comunidades discursivas) realizam suas atividades, com a finalidade de alcançar os objetivos

do grupo.

36

1.3.4 Comunidade discursiva jurídica

Compreendendo essas características definidas por Swales, podemos identificar de

maneira mais acessível quais grupos são reconhecidos como comunidades discursivas.

Retomando a definição do conceito de comunidade discursiva enquanto um grupo de

pessoas reunidas em torno de objetivos comuns, interagindo entre si, que através de gêneros,

léxico próprio e organização hierárquica, conseguem atingir esses objetivos, já explicitado

anteriormente, é possível abordar e compreender o conceito de comunidade discursiva

jurídica.

Primeiramente, podemos observar que os operadores do Direito trabalham em torno de

um objetivo comum: a justiça, “faculdade de julgar segundo o Direito e melhor consciência”

(FERREIRA, 2004). Segundo, “os operadores do Direito contam com diversos mecanismos

de intercomunicação, que promovem o incremento e a canalização das informações para todos

os membros” (CATUNDA, 2009, p. 180). Terceiro, podemos elencar como mecanismos de

participação para uma série de propósitos: o curso de graduação em Direito, o Exame de

Ordem dos Advogados do Brasil e os concursos púbicos para juízes e promotores

(CATUNDA, 2009, p. 181). A quarta característica definida por Swales diz respeito à seleção

de gêneros, o que mais caracteriza, de acordo com o nosso entendimento, a comunidade

jurídica, sendo representados pelas peças de um processo judicial. A quinta característica, a

capacidade de desenvolver um léxico próprio, terminologias criadas especificamente para o

uso dos membros da comunidade discursiva, pode ser constatada nos inúmeros termos e

expressões estabelecidos para o uso exclusivo dos operadores do Direito. E, por último, a

característica da organização hierárquica, a qual pode ser observada na própria distribuição de

competências jurídicas das instâncias, onde se pode observar a superioridade hierárquica

jurídica de uma em relação à outra.

1.3.3 O discurso jurídico

Sabe-se que a elaboração da norma jurídica, através da ciência do Direito, deve

obedecer às condições em que a sociedade se encontra à época de sua elaboração. Do mesmo

modo, a aplicação dessas normas deve ser realizada de forma a acompanhar o

desenvolvimento social e as circunstâncias as quais levam à mudança da sociedade e do

37

próprio indivíduo. Muitas vezes, essas mudanças não estão evidentes aos olhos do homem

comum e é preciso que o próprio homem utilize meios para evidenciá-las.

No meio jurídico, é através do discurso, sobretudo da argumentação, que o defensor de

um indivíduo que tenha cometido um ilícito penal, por exemplo, constrói a sua tese de defesa.

O auditório, muitas vezes, não conhece o fato propriamente dito, ou até conhece, mas

desconhece as circunstâncias as quais levaram esse indivíduo a cometer tal delito; todavia, é

através dos argumentos que o defensor tenta mostrar o que para ele é a “realidade dos fatos”,

mediante as circunstâncias, que culminaram na realização do ato ilícito. Assim como a defesa,

a acusação procura mostrar, sob seu ponto de vista, também através do discurso, o que para

ela constitui a “realidade dos fatos”, adequando a aplicabilidade das normas àquilo que

defende como direito. Nesse contexto, os argumentos usados pelo orador, seja ele

representante da defesa ou da acusação, fortificam e sustentam as teses que defendem para a

conquista da adesão do auditório, teses essas sustentadas pelos três pilares fundamentais, já

mencionados: o ethos, o pathos e o logos.

O orador, na defesa de sua tese, baseado nos argumentos manifestados em seu

discurso, neste caso o discurso jurídico, deve considerar as mudanças das circunstâncias, a

evolução social, a sensibilidade, o desenvolvimento da moral e os critérios modificáveis da

decadência, critérios esses defendidos por Maneli (2004), possibilitando, assim, à justiça

tomar a decisão mais razoável, eficiente e justa.

Isso revela, portanto, a importância do discurso na aplicação das normas de conduta

social ao ser humano. Através dele, os direitos dos homens poderão ser identificados e, por

que não dizer, dependendo das circunstâncias, serão construídos.

1.4 Sobre efeitos de sentido

Como já mencionamos, é com a linguagem, enquanto meio de interação, manifestada

através dos discursos, que são produzidos os sentidos. Segundo Possenti (2001, 2009), o

próprio discurso é desprovido de sentido, uma vez que ele é constituído de outros discursos;

para Pêcheux, às palavras, às expressões, às proposições não são atribuídos sentidos senão

através das posições ideológicas manifestadas nos contextos sociais nas quais estão inseridas.

As palavras, expressões, proposições... mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas

38

adquirem seu sentido em referência a essas posições, isto é, em relação às formações ideológicas. (PÊCHEUX, apud BARONAS, s.d.).

Entendemos, assim, que o sentido não existe por si só. Trata-se, portanto, de um

produto da intenção persuasiva/argumentativa do enunciador que visa, através do enunciado, a

imprimir determinado sentido ao que se refere. No entanto, por mais que o enunciador

pretenda imprimir determinado sentido ao seu enunciado, não quer dizer que a este, de fato,

seja atribuído apenas esse sentido; pelo contrário, não existem limitações para os sentidos de

um enunciado, pois as interpretações feitas pelos indivíduos a quem se dirige a informação

são as mais diversas possíveis; daí a noção de efeitos de sentido.

Segundo Maliska (2011), “(...) o sentido não está atrelado ao significante, que um

texto pode ter muitos sentidos, que o sentido é antes um produto, resultado de um processo:

uma produção, cujos efeitos, são efeitos de sentido”. Sendo assim, consideramos que é com o

processo de interação entre sujeitos e o meio social, manifestado através dos discursos, que

emergem os sentidos.

O texto, na sua dimensão verbal, visual ou verbovisual, tanto quanto os sujeitos e os discursos que lhe dão vida, participa de uma história e de uma cultura, mantendo uma identidade e, ao mesmo tempo, movendo-se ao longo de percursos que iluminam suas múltiplas e diferentes faces. (BRAIT, 2004, p. 37)

É com base nos conhecimentos dos estudiosos supracitados sobre a concepção de

efeitos de sentido que buscaremos verificar os efeitos de sentido atribuídos ao cangaço em

processo criminal contra Lampião e seu bando, na Comarca de Pau dos Ferros, corpus do

nosso trabalho.

1.4.1 Os efeitos de sentido em processos judiciais

Partindo do pressuposto, como fora afirmado no texto acima, de que o sentido é um

produto persuasivo/argumentativo do enunciador que visa, através do enunciado, a passar

determinado sentido ao que se refere e que outros sentidos podem ser atribuídos por outros

sujeitos a esse mesmo enunciado, é que podemos afirmar que os discursos são carregados de

sentidos. Sejam políticos, jornalísticos, religiosos, científicos, literários, jurídicos, dentre

outros, os discursos apresentam uma carga de sentidos que foge da condição humana a

39

possibilidade de delimitá-los, já que cada indivíduo pode atribuir-lhes de acordo com suas

ideias, moral, formações, com o contexto no qual estão inseridos, dentre outros fatores que

poderão fazer a diferença.

Ao observarmos, por exemplo, os discursos que fazem um processo judicial,

percebemos que a um mesmo fato são atribuídos sentidos diferentes. São teses diferentes

defendidas para a conquista da adesão de um auditório, seja ele o juiz ou os jurados,

dependendo da natureza processual.

Em um processo penal são muitos os discursos e os sentidos que se produzem nas

diferentes peças, os quais revelam as marcas da dialogicidade. No caso específico do

processo, corpus dessa pesquisa, são envolvidos, essencialmente, os discursos das vítimas,

das testemunhas, do delegado, do ministério público, do defensor público, de um dos réus e

do juiz, todos atribuindo sentidos ao fato ocorrido; o que reflete direta ou indiretamente na

construção simbólica do cangaço, que tem na figura de Lampião e demais cangaceiros a

expressão de um estilo de vida que marcou a história do nordeste.

40

2 A CONSTRUÇÃO DO OBJETO

A este capítulo atribuímos o título “A construção do objeto”, por entendermos que,

nesta unidade, reunimos todos os passos dados para tornar possível a realização da pesquisa.

Nele discutiremos o tipo de pesquisa do nosso trabalho, procedimentos metodológicos

adotados, o objeto, bem como o seu universo de estudo; apresentaremos, ainda, a ferramenta

utilizada para efetivação da pesquisa: o corpus, e os critérios elaborados para a realização

desta.

2.1 O tipo de pesquisa e procedimentos metodológicos

Quanto aos seus objetivos, o método de pesquisa é de caráter descritivo; assim

buscaremos corroborar conhecimentos já existentes sobre as teorias de argumentação,

discurso, sobretudo o discurso jurídico, e efeitos de sentido.

A pesquisa apresenta, ainda, caráter interpretativo, na medida em que buscaremos

interpretar os sentidos atribuídos ao cangaço, através de discursos que compõem o corpus.

Quanto aos procedimentos técnicos, trata-se de uma pesquisa bibliográfica e

documental, pois além de utilizarmos como fontes alguns materiais já elaborados (livros,

artigos científicos, dentre outros), os quais nos fornecerão todo o aparato teórico,

utilizaremos, como corpus da pesquisa, documento oficial, cujo teor ainda, de acordo com

informação passada pela secretaria da Vara Criminal, não foi analisado, sobretudo no que diz

respeito aos estudos linguísticos, qual seja: o processo contra Lampião e seu bando tramitado

na Comarca de Pau dos Ferros/RN.

Quanto à análise, adotaremos o método dedutivo, pois faremos um levantamento

particular através de nosso corpus de pesquisa, tomando por base conclusões gerais,

consideradas como premissas. Nossas conclusões, portanto, corroborarão as teorias adotadas

como premissas de nosso trabalho.

2.2 Do corpus

O corpus que utilizamos para a realização desse estudo foi o processo contra Lampião

e seu bando tramitado na Vara Criminal da Comarca de Pau dos Ferros-RN – AÇÃO PENAL

41

N° 883/200. Trata-se de ação penal proposta pelo Ministério Público Estadual, no ano de

1927, através do qual se imputa a prática dos delitos previstos no art. 294, § 1°, e art. 353,

ambos da Consolidação das Leis Penais, vigente na época, à Virgulino Ferreira, vulgo

Lampião, e alguns de seus comparsas, pelo fato de, no dia 10 de junho de 1927, terem

subtraído, com emprego de violência, vários objetos, animais e dinheiro de diversas fazendas

do Município de Pau dos Ferros (distrito de Vitória – atual Marcelino Vieira), bem como

atacado o destacamento do então Tenente Napoleão Agra, produzindo na pessoa do soldado

José Monteiro de Matos ferimentos, que deram causa a sua morte.

Tal processo ficou paralisado por mais de 67 (sessenta e sete) anos. Por muito tempo

os Autos permaneceram em cartório, aguardando a captura dos acusados para que pudessem

ser julgados pelo Júri Popular, mas com a morte de Lampião e alguns comparsas, em 1938,

em Angicos/SE, o processo começou a ser visto pelo seu caráter histórico.

Assim sendo, para resguardar o processo original, dada a sua grandeza histórica, o Juiz

Dr. João Afonso Morais Pordeus determinou que fossem feitas cópias dos autos, realizando

nova autuação. Além de, em virtude da necessidade de determinar a sentença terminativa do

caso, visto que até determinado momento não havia sido concluído o processo, o Juiz

supracitado determinou vistas dos autos ao Ministério Público, o qual pugnou pela declaração

da extinção de punibilidade pela prescrição punitiva do Estado.

Após a análise dos relatos da promotoria, o Sr. Juiz declarou, nos termos do art. 107,

IV, c/c os artigo 109, IV, e § único, do CP (Código Penal), bem como do artigo 61 do CPP

(Código de Processo Penal), definitivamente exaurido o referido processo, reconhecendo a

extinção da pretensão punitiva por parte do Estado, em virtude do decurso do prazo

prescricional, e, consequentemente, o arquivamento dos autos, em 07 de dezembro de 2001.

O referido processo constitui-se, essencialmente, de: sumário de culpa, recebimento de

denúncia, inquérito policial, autos de queixa, inquirição de testemunhas, mandatos, certidões,

julgamentos, sentenças, depoimentos testemunhais, alegações finais da acusação e da defesa e

sentença.

Os documentos que constituem o corpus são de extrema relevância para a análise das

técnicas argumentativas utilizadas pelos sujeitos no discurso jurídico do processo, assim

poderemos analisar as técnicas argumentativas utilizadas pelos sujeitos na construção de suas

teses, examinando quais os efeitos de sentido produzidos, através desses discursos, sobre

Lampião e o cangaço.

O que nos chamou a atenção para desenvolvermos uma pesquisa sobre esse objeto foi,

além do caráter sócio-histórico e cultural de que se reveste, a possibilidade de realizarmos

42

estudos linguísticos sobre um discurso jurídico do início do século XX, podendo ser

compreendido à luz da Nova Retórica de Perelman. Como em processo dessa natureza, o

auditório do discurso é bastante restrito, e, tendo em vista que este não chegou à fase de Júri

Popular, este estudo abre a possibilidade, também, de ampliação desse auditório, já que

realizamos a transcrição do processo, que, datado de 1927, fora escrito à mão.

2.2.1 Composição do corpus

Apesar de serem muitas as peças que constituem o processo como um todo, quais

sejam: sumário de culpa, recebimento de denúncia, inquérito policial, autos de queixa,

inquirição de testemunhas, mandatos, certidões, julgamentos, sentenças, depoimentos

testemunhais, alegações finais da acusação e da defesa, e sentença, optamos por fazer alguns

recortes dos textos, para que fizéssemos uso daqueles que nos proporcionariam maior suporte

para a consecução dos objetos propostos. Para tanto, escolhemos as peças, cujos discursos

melhor oferecem a possibilidade de análise da dialogicidade, da argumentação e dos efeitos

de sentido produzidos.

Agora, a título de conhecimento, passaremos a discutir alguns conceitos sobre as peças

que compõem o processo contra Lampião e seu bando, para melhor compreensão em relação

aos trâmites processuais da ação penal.

Chamamos a atenção, para melhor entendimento, que preferimos dividir os conceitos

em duas fases: a fase policial e a fase judicial - a primeira, que diz respeito a todas as ações

policiais, que são efetivadas para o auxílio da investigação criminal, e a segunda cuja

responsabilidade deixa de ser de competência policial para ser de competência judicial; mas

que não serão seguidas necessariamente nesta ordem, tendo em vista que os textos do corpo

processual não obedecem a uma ordem sequencial. Atente-se, ainda, para os números das

páginas que serão citadas no decorrer da apresentação das peças, cuja paginação corresponde

à transcrição digitada.

2.2.2 Conhecendo o processo

Apesar de alguns procedimentos policiais serem as diligências inaugurais de uma

investigação criminal, o corpo do texto de nosso corpus inicia-se com um texto da fase

43

judicial do processo, a autuação da denúncia e do inquérito policial, que, embora tenha sido

realizada ainda no ano de 1927, fora determinada pelo Juiz João Afonso Morais Pordeus, na

data de 18 de janeiro de 2000, após determinação de busca do número de registro nos livros

de Registro de Feitos Criminais da Comarca de Pau dos Ferros.

A autuação é, digamos, o registro de um documento; neste caso, consta da denúncia e

do inquérito policial, que, verificadas as informações, a ele é atribuído um número de registro

e protocolo de encaminhamento, preparando-o para uma tramitação interna.

O número de registro do processo, corpus desse trabalho, é 883/2000 e ocorreu na

Vara Criminal da Comarca de Pau dos Ferros.

A peça que segue a autuação determinada pelo juiz João Afonso é a atuação realizada

pelo cartório, datado de vinte de novembro de 1931, cujo número não foi encontrado nos

livros de Registros de Feitos Criminais da Comarca de Pau dos Ferros; daí a determinação de

nova atuação para registro de número de identificação.

Na página 3 do processo transcrito, segue o recebimento da denúncia oferecida pelo

Ministério Público (fase judicial), no ano de 1927.

A denúncia, segundo o renomado jurista, professor e promotor de justiça Fernando

Capez (2006):

É a peça acusatória iniciadora da ação penal, consistente em uma exposição por escrito de fatos que constituem, em tese, ilícito penal, com a manifestação expressa da vontade de que se aplique a lei penal a quem é presumivelmente e a indicação das provas em que se alicerça a pretensão punitiva (CAPEZ, 2006, p. 146).

No caso do corpus, dessa pesquisa, o promotor ofereceu denúncia contra Virgulino

Ferreira, vulgo Lampião, Sabino Gomes de Goes, Antônio Leite, conhecido também por

Massilon, Benevides e seus comparsas: Francisco Ramos, vulgo Mormaço, Navieiro, Delfino,

Coqueiro, Ezequiel, Luiz Pedro, Virgínio, Mergulhão, José Roque, Pernambuco, Benedito,

Jatobá, Pinhão da Serra do Mato, Trovão, Miguel, Euclides, Rio Preto, Pinga-Fogo, Lua

Branca, Pai Velho, Jararaca, Antônio Farol, Valatão de Tal, Zé Latão, Luiz Sabino, Casca

Grossa, Balão, Português, Relâmpago, Bem-te-vi, Manoel Mauricio, João Vinte e Dois,

Jurema, Ás de Ouro, Candieiro, Caiçara, Gato, Palmeira, Manoel Antônio, Cocada, Jurity,

Romeiro, Tenente do Riacho do Navio, Sabiá do Ceará, André Marinheiro, José Marinheiro,

José Roco, Manoel Leite e outros, por terem praticado, no dia 10 de junho de 1927, segundo

autos de declarações, roubos e depredações no município de Vitória, distrito da Comarca de

44

Pau dos Ferros, hoje Marcelino Vieira, solicitando a punição dos acusados nas penas dos arts.

294,§ 1º e 356 do Código Penal vigente na época (Código Penal Brasileiro de 1890)6.

As próximas peças correspondem ao inquérito policial (fase policial), que é “o

conjunto de diligências realizadas pela polícia judiciária para a apuração de uma infração

penal e de sua autoria, a fim de que o titular da ação penal possa ingressar em juízo” (CAPEZ,

2006, p. 72).

No corpus em análise, o inquérito , que se inicia na página 5, compõe-se de: 1) autos

de queixas, acompanhados pela autoridade policial, nos quais os queixosos: Aprízio da Silva,

João Damião de Araújo, Luiz Pereira da Silva, Vicente Ferreira de Lima, Antônio Rosa da

Silva, José Barreto do Nascimento, Francisco Thomaz de Aquino, José Moysés, Manoel

Ferreira de Lima, João Fernandes da Silva, Manoel José da Silva, Manoel Joaquim, José

Belarmino da Silva, João Vicente da Silva, Raimundo Rodrigues do Nascimento, Francisco

Germano da Silveira, Coronel Marcelino Vieira da Costa, Martiniano de Souza Rêgo e

Marcelino do Nascimento, através de suas declarações, registraram o que sabiam sobre os

fatos ocorridos (páginas 6 a 22 do processo); 3) autuação de portaria de intimação dos

peritos e testemunhas para realização do exame cadavérico no corpo do soldado José

Monteiro de Matos (páginas 25 e 26); 4) auto de exame cadavérico do soldado José

Monteiro de Matos (página 29); 5) inquirições das testemunhas: José Pereira Umbelino,

Teotônio José do Nascimento, Avelino Moreira do Nascimento, João Porfírio da Silva,

Venâncio Ferreira Alencar, Antônio Lopes Cardoso, José Fernandes, para elucidação dos

fatos (páginas 31 a 41); 6) relatório conclusivo elaborado pelo delegado Jacinto Tavares,

após ter acompanhado as declarações (páginas 42 e 43); 7) remissão dos autos ao Juiz de

Direito da Comarca (páginas 43 e 44); dentre outros documentos, como, por exemplo,

certidões emitidas pelo escrivão.

Remitidos os autos ao Juiz de Direito, este, por sua vez, com base na denúncia e

declarações colhidas em fase de inquérito policial, declarou a prisão preventiva de Lampião e

seus comparsas, solicitando a expedição dos mandatos para cumprimento de sua determinação

(páginas 44 e 45).

Mesmo já havendo sido instaurado o inquérito policial, Martiniano de Souza Rêgo,

Segundo Suplente do Delegado de Polícia, remeteu auto de perguntas feitas pela autoridade

6 Art. 294. Matar alguém: § 1º Si o crime for perpetrado com qualquer das circunstâncias agravantes mencionadas nos §§ 2º, 3º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 16º, 17º, 18º e 19º do art. 39 e § 2º do art. 41: Pena – de prisão celular por doze a trinta anos. Art. 356. Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel, fazendo violência à pessoa ou empregando força contra a coisa: Pena – de prisão celular por dois a oito anos.

45

policial, na delegacia de polícia, ao bandido Francisco Ramos, vulgo “Mormaço”,

procedimento realizado no dia 5 do mês de setembro de 1927.

No auto de perguntas (diligência realizada pela polícia em fase judicial), o cangaceiro

conta toda sua história de vida no Cangaço, bem como a trajetória do grupo nas terras

potiguares, na época em que ocorreu o fato alegado nas declarações prestadas pelos queixosos

e testemunhas (páginas 48 a 59). Abrimos, aqui, um parêntese nesta apresentação do corpus

para destacarmos a riqueza histórica e cultural do depoimento prestado pelo cangaceiro

“Mormaço”. Acreditamos que são raros os documentos que registram tão fielmente a vida do

cangaço e as relações daqueles que eram chamados de “bandidos” com aqueles que eram

intitulados nobres “coronéis”.

Dando continuidade a esta apresentação, obedecendo à sequência do corpo processual,

mencionamos o dia 6 de setembro do mesmo ano (1927), em cuja data foi expedido mandado

de prisão preventiva a Francisco Ramos, vulgo “Mormaço” (página 60).

Segundo Rosa (1999, p. 459), a finalidade da prisão preventiva é “assegurar a

execução do processo penal e impedir que o acusado fuja do processo ou procure conseguir

desvio de provas [...] a prisão preventiva deve ser decretada apenas quando haja indícios

suficientes de que o acusado é autor do crime”. No caso do processo de que estamos tratando,

o juiz entendeu existir provas suficientes da autoria do crime, e, para assegurar o bom

andamento do processo, determinou a prisão preventiva do acusado “Mormaço”. É importante

ressaltar, contudo, que, por não haver sido encontrado, não pôde ser cumprida a referida

determinação.

Após a determinação de prisão preventiva, podemos observar, no processo, o auto de

qualificação, que trata da coleta de informações sobre o suspeito. No auto de qualificação do

cangaceiro “Mormaço”, perguntas sobre: nome, prenome, idade, filiação, estado, profissão,

naturalidade, residência e sobre se sabia ler e escrever foram realizadas para a identificação do

acusado.

É importante frisar que algumas peças, como: vistas, remessas, certidões, intimações e

juntadas podem ser identificadas, durante todo o corpo do processo; no entanto, optamos por

não especificá-las, visto que tais documentos são diligências comuns a todos os processos em

tramitação.

Da página 67 a 97 estão registrados os mandatos de prisão preventiva dos bandidos:

Sabino Gomes de Góes, Coqueiro, Mergulhão, Ezequiel, Valatão de Tal, Miúdo, José Roque,

Pinga-Fogo, José Coco, Navieiro, Euclides, Rio Preto, Félix, Virgínio, Lua Branca, Luiz

46

Pedro, Pai Velho, Antônio Farol, José Pretinho, Pinhão, Jatobá, Benedito, Mourão, Antônio

Leite, Delfino, Virgulino Ferreira, Miguel, Trovão, Serra d’Umam e Jararaca.

Na página 98 do processo, o escrivão do feito, Abílio Deodato, certifica que o

cangaceiro Francisco Ramos, vulgo “Mormaço”, não mais existe, tendo sido assassinado no

município de Mossoró, e, na sequência (página 99), com base no depoimento deste mesmo

cangaceiro, o Ministério Público, através do Promotor de Justiça, Claudionor Telógio de

Andrade, requer que se junte aos autos o atestado de óbito do referido cangaceiro, bem como

dos cangaceiros Colchete e Jararaca, também assassinados no município de Mossoró. Quanto

aos demais cangaceiros, no mesmo documento o promotor solicita as testemunhas para

prestarem depoimentos.

A próxima peça processual a ser apresentada é a declaração de suspeição do juiz José

Fernandes Vieira, que solicita a remissão do processo para outro juiz de direito pelo fato de

uma das vítimas, o Sr. Marcelino Vieira da Costa, ser seu pai. No Direito, segundo Machado

(2007, p. 130), a suspeição “enquanto fenômeno do mundo do processo é a circunstância de

caráter subjetivo que gera a desconfiança ou suspeita de que o juiz seja parcial; é a

circunstância que faz nascer a presunção relativa de parcialidade”. Neste caso, o juiz,

obedecendo à lei vigente na época (hoje regulamentada pelo artigo 135, II do CPC), declarou,

de ofício, a suspeição pelo grau de parentesco que tinha com uma das vítimas do processo.

Sendo os autos remetidos ao Juiz Distrital da Comarca de Pau dos Ferros, Juiz José

Ferreira da Costa, foi lançado edital de citação7 dos acusados, após não haverem sido citados

pelo Oficial de Justiça da Comarca, por não terem sido encontrados, e, aos vinte e seis dias de

setembro de mil novecentos e trinta, o referido edital foi juntado ao processo (página 101).

A próxima peça do processo é a certidão dos autos de exame cadavérico dos

cangaceiros Jararaca e Colchete. É importante ressaltar que o juiz da Comarca de Mossoró,

Eufrásio Mário de Queiroz, deixou de enviar o exame cadavérico do cangaceiro Francisco

Ramos, por esse não se encontrar no cartório da referida Comarca (página 105).

Segue, no decorrer do processo, a citação, por meio de oficial de justiça, das

testemunhas: José Pereira Umbelino, Teotônio José do Nascimento, João Porfirio da Silva e

Venâncio Ferreira Alencar para deporem (página 109). Na sequência, mais uma vez, lança-se

edital de citação aos réus (página 111) e emite-se mandado de citação às testemunhas para se

fazerem presentes em audiência, no dia 26 de outubro de 1931; sendo essa remarcada pelo

7 É uma forma de citação feita nos casos em que o réu é desconhecido ou incerto; quando ignorado, incerto ou inacessível o lugar em que se encontra e nos casos expressos em lei. disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/topicos/292003/citacao-por-edital. Acesso: 06/09/11

47

juiz para o dia 20 de novembro, em virtude de seus muitos afazeres; lançando-se, portanto,

novo edital para os réus e mandato para as testemunhas (página 111).

No dia 20 de novembro, conforme certidão constante na página 114, o juiz se

encontrava doente, sendo remarcada, assim, a audiência para o dia 16 de dezembro, lançando-

se, mais uma vez, edital de citação dos réus e determinação de citação de testemunhas.

Pelo fato das testemunhas não comparecerem na audiência marcada, o juiz determinou

nova citação para comparecimento em audiência, no dia 16 de janeiro, sob pena da lei,

lançando, mais uma vez edital de intimação e mandado (páginas 118 e 119).

O Defensor Público, Escolástico Bezerra, apresentou defesa oral aos réus com base na

negativa de autoria, diante da falta das testemunhas na audiência anterior (páginas 120 e 121).

Em audiência, no dia 16 de janeiro de 1932, cujo termo segue anexo no processo na

página 139, os réus foram inertes diante de seu direito de defesa (faltaram à audiência), mas

as testemunhas foram devidamente inquiridas, como se pode ver no termo de assentamento

seguido pelos depoimentos (páginas 121 a 124).

Obedecendo-se a sequência do processo (páginas 125 a 127), observamos as alegações

finais, em que o Ministério Público (acusação), na pessoa do Promotor de Justiça Claudionor

Telógio de Andrade, levanta seus argumentos para o julgamento da denúncia a favor de sua

tese, além de solicitar a extinção da ação penal quanto aos bandoleiros “Jararaca” e

“Mormaço”, por estarem provadas as suas mortes, e o Defensor Público (defesa), que,

também através da argumentação, tenta convencer o seu auditório, neste caso o juiz de Direito

Janúncio Gorgônio da Nóbrega, de que a melhor decisão será aquela baseada na tese da

defesa. Chamamos a atenção para as alegações finais da acusação e da defesa que são de

fundamental importância para os estudos sobre a argumentação, pois, dentre as peças do

processo, estes são os principais gêneros que utilizamos para a análise das técnicas

argumentativas.

Em seguida, verificamos a posição do juiz (páginas 128 a 130), na qual, segundo ele,

encontram-se provados os fatos arguidos na denúncia, julgando, assim, em parte, procedente

quanto aos denunciados: Virgolino Ferreira (Lampião), Sabino Gomes, Antônio Leite,

também conhecido por Massilon e Benevides, Navieiro, Delfino, Coqueiro, Ezequiel, Luiz

Pedro, Virgínio, Mergulhão, José Roque Oliveira, vulgo Alagoano, Félix, Miúdo, Serra d’

Uman, José Coco, José Pretinho, de Pajeú, Mourão, Benedito, Jatobá, Pinhão da Serra do

Mato, Trovão, Miguel, Euclides, Rio Preto, Pinga-Fogo, Lua Branca, Pai Velho, Antônio

Farol, Valatão de Tal, Zé Latão, Luiz Sabino, Casca Grossa, Balão, Português, Relâmpago,

Bem-te-vi, Manoel Mauricio, João Vicente, Dois Jurema, Ás de Ouro, Candieiro, Capão,

48

Caiçara, Gato, Palmeira, Manoel Antônio, Cocada, Jurití, Romeiro, Tenente do Riacho do

Navio, Sabiá, André Marinheiro e José Marinheiro, José Boco e Manoel Leite; julgando

improcedente a denúncia quanto aos cangaceiros “Momarço”, “Jararaca” e “Colchete”, por

existir provas nos autos de seus falecimentos. No final do julgamento da denúncia, o juiz

solicita que sejam lançados os nomes dos réus no rol dos culpados e que se expeçam os

respectivos mandatos de prisão.

Sendo todos intimados, através de edital de intimação (página 133), em 28 de janeiro

de 1934, a comparecerem no prazo de 20 dias a fim de ouvirem a leitura da sentença do

julgamento da denúncia. Como os cangaceiros não compareceram em juízo (conforme

certidão na página 134), seus nomes foram lançados no rol dos culpados, no dia 17 de

fevereiro de 1934.

No dia quinze de março de 1934, os autos foram remetidos à Secretaria do Superior

Tribunal de Justiça do Estado, e, através do acórdão de fls. 135-v, de 25 de abril de 1934, é

confirmada a decisão de extinção da ação penal contra os cangaceiros “Mormaço”, “Jararaca”

e “Colchete” (páginas 137 e 138), e o seu cumprimento foi determinado em 7 de junho de

1934.

Contados setenta e três anos da data em que ocorreu o fato alegado pelas vítimas e

testemunhas, em 18 de janeiro de 2000, o então juiz da Vara Criminal da Comarca de Pau dos

Ferros, João Afonso Morais Pordeus, observando não haver nenhuma sentença terminativa do

caso, determinou que fossem feitas cópias do processo, com nova autuação, como já fora

explicitado no início do texto, bem como determinou vistas ao Ministério Público (Página

142). O Ministério Público, por sua vez, através da pessoa do promotor de justiça, Maranto

Filgueira Rodrigues de Carvalho, emitiu parecer requerendo a declaração de Extinção da

Punibilidade8 de Virgulino Ferreira Lampião e seus comparsas (página 147).

Em decisão prolatada pelo Juiz João Afonso, a justiça reconheceu a extinção da

pretensão punitiva por parte do Estado, por haverem transcorridos mais de sessenta e sete

anos, entre a data de pronúncia e a data da sentença terminativa9, e por não haverem sido

punidos os réus pelos crimes cometidos, dentro do prazo prescricional de 20 e 12 anos, o juiz

determinou o arquivamento dos autos (páginas 150 e 155).

8 É quando existem causas que impedem o Estado de punir o agente. Algumas dessas causas são: a morte do agente; a retroatividade de lei que não mais considera o fato como criminoso; a prescrição, decadência ou perempção, dentre outras causas. 9 25.04.1934 – data da pronúncia (confirmação do Superior Tribunal de Justiça) - 07.12.2001 – data de registro da sentença terminativa do processo.

49

As últimas diligências realizadas pela justiça (fase judicial) foram o lançamento do

edital para intimação do inteiro teor da sentença prolatada e a certidão de arquivamento do

processo (páginas 159 e 164).

Portanto, autuação do processo, denúncia, autos de queixas, conclusão indefinida do

delegado Jacinto Tavares, autuação de portaria de intimação dos peritos e testemunhas para

realização do exame cadavérico no corpo do soldado José Monteiro de Matos, auto de exame

cadavérico do soldado José Monteiro de Matos, inquirições das testemunhas, relatório

conclusivo de acusação, elaborado pelo delegado Jacinto Tavares, remissão dos autos ao Juiz

de Direito da Comarca, declaração de prisão preventiva, auto de perguntas, mandato de prisão

preventiva, auto de qualificação, edital de citação, auto de exame cadavérico, defesa oral,

alegações finais, julgamento da denúncia, pronúncia do STJ, parecer do Ministério Público,

sentença terminativa e arquivamento do processo, além das vistas, remessas, certidões,

intimações e juntadas, são, os textos legais que compõem o processo contra Lampião e seu

bando, tramitado na comarca de Pau dos Ferros.

Ainda sobre o processo, ressaltamos que, apesar de ser longo o período de setenta e

três anos para conclusão de um processo criminal, diante da precariedade em que se deu o

referido, como podemos verificar no processo (página 71), em que os borrões do processo são

justificados pelo fato de uma galinha ter pulado na mesa e derramado a tinta do tinteiro sobre

os processos que lá estavam, e as circunstâncias as quais contribuíram para o seu moroso

andamento, tal ação ainda correspondeu às expectativas judiciais, como podemos verificar nas

próprias palavras do Juiz João Afonso e nas passagens em que constatamos as faltas dos réus

e das testemunhas às audiências, problemas de arquivamento de cartório, atraso por motivo de

doença dos funcionários que atuaram no feito, e ainda a incansável busca pelos réus para o

cumprimento das intimações (observada a precariedade dos meios de locomoção da época).

Tais circunstâncias descrevem perfeitamente as dificuldades que o processo, objeto de nosso

estudo, enfrentou para chegar a sua conclusão.

2.3 O universo de estudo

Como já foi afirmado, é também objetivo do nosso trabalho analisar a construção

argumentativa dos discursos jurídicos que constituem a ação penal instaurada contra Lampião

e seu bando na Comarca de Pau dos Ferros-RN, bem como busca identificar os efeitos de

sentido produzidos neste mesmo processo sobre o cangaço e os seus sujeitos.

50

Para a realização da pesquisa, utilizamos como corpus um processo judicial penal,

como já foi mencionado, cujos discursos que o compõem são as peças fundamentais para sua

construção, em busca da conquista dos resultados esperados pela justiça e determinados pelo

Direito.

Apesar de ser esta uma pesquisa voltada essencialmente para o fenômeno da

linguagem, o seu universo de estudo circunscreve-se na esfera jurídica, em um meio em que o

discurso é a chave fundamental para a construção do próprio Direito. Sendo assim, não

podemos falar sobre o meio jurídico sem antes definir o que é o Direito.

O Direito, enquanto ciência, “é o conjunto de princípios, de regras e instituições

destinado a regular a vida humana em sociedade” (MARTINS, 2008, p. 4).

Tem o Direito princípios próprios, como qualquer ciência, ainda que não seja exata. Exemplos são: o princípio da boa-fé, razoabilidade, proporcionalidade etc. Possui o Direito inúmeras regras. Algumas delas são compendiadas em códigos como o Código Civil, o Código Tributário Nacional (CTN), o Código Comercial, o Código de Processo Civil (CPC), além de inúmeras leis esparsas. As instituições são entidades que perduram no tempo. O Direito tem várias delas, como os sindicatos, os órgãos do Poder Judiciário, do Poder Executivo etc. (MARTINS, 2008, p.4).

Compreendemos, desta forma, que o Direito busca manter a ordem da sociedade,

através de princípios e regras cujas determinações partem dos mais diversos órgãos e poderes

constituídos. Uma vez o sujeito contrariando os preceitos sociais e as regras regulamentadas

pelo nosso Direito, será punido pelos seus atos, responsabilizando-se por aquilo que fez ou

deixou de fazer. No Direito Penal10, por exemplo, a ação ou omissão do sujeito diante de

determinada situação que esteja enquadrada nos conceitos legais de crime será punida de

acordo com a determinação dos dispositivos legais que o regem.

Como podemos observar, segundo a denúncia ofertada, os cangaceiros agiram

criminosamente, ou seja, cometeram ações as quais a ciência do Direito conceitua como

crimes, e para se chegar à conclusão de que existiram as ações e que de fato foram os

cangaceiros que as cometeram, muitos procedimentos foram realizados para que não houvesse

erros em seus resultados. Muitos desses procedimentos se deram, essencialmente, através de

10 “É o conjunto de normas jurídicas que regulam o poder punitivo do Estado, tendo em vista os fatos de natureza criminal e as medidas aplicáveis a quem os pratica” (NORONHA, apud MARTINS, 2008, p. 184).

51

discursos construídos pelos sujeitos participantes do processo, nos quais foram levantados

fatos e argumentos para se chegar à decisão mais eficiente e justa.

2.4 As condições de produção dos discursos

Na construção dos discursos, o indivíduo interage com outros sujeitos e com o

contexto. É uma espécie de produto sócio-histórico; a própria língua é um produto desse

processo. E a palavra, signo verbal, é o principal meio responsável por essa forma de

interação social. Vejamos:

(...) Bakhtin desenvolve a idéia de que a língua é um produto sócio-histórico e o mundo das idéias não existe fora dos quadros da linguagem. Para Bakhtin, o estudo da ideologia não pode direcionar-se senão para o estudo do signo; todo signo é ideológico e sem signo não existe ideologia. E a palavra, signo verbal, é a instância privilegiada em que se podem perceber as tensões da sociedade, figurando como uma espécie de arena dos conflitos sociais. Ou seja, a palavra é o fenômeno ideológico por excelência e o meio mais puro e sensível de interação social (BULHÕES, s.d).

A palavra, sobretudo a palavra manifestada através da linguagem verbal, se apresenta

das mais diversas formas e nos diferentes campos da atuação humana. No meio jurídico, onde

a argumentação é a base fundamental para as decisões judiciais, o discurso argumentativo é

ainda mais relevante, por lidar com os direitos e com a liberdade do homem. Mas a relação da

linguagem com o Direito vai muito além do uso de recursos linguísticos para a defesa dos

direitos dos cidadãos; podemos afirmar que a linguagem é o próprio pilar da ciência do

Direito, pois a sua essencialidade se expressa na construção de todo o aparato jurídico, e na

sua materialização, que se dá na prática jurídica.

Podemos perceber isso, ao buscarmos compreender, por exemplo, os caminhos

percorridos pela justiça, através da linguagem, para assegurar os direitos do cidadão, um de

seus objetivos. Sob forma de argumentação, o discurso jurídico é construído de modo a levar

em consideração todas as manifestações que influam direta ou indiretamente no fato a ser

discutido. Assim sendo, entram, nessa construção discursiva, a interação entre os sujeitos, a

relação entre fatos, circunstâncias, condições de produção dos discursos, o contexto sócio-

histórico e ideológico, em que se situam os sujeitos desse domínio discursivo; numa espécie

de interação social que envolve todos os elementos que constituem o direito a ser defendido.

52

2.4.1 O Processo de acusação contra Lampião e seu bando

No processo estudado nesse nosso trabalho, podemos verificar a relevância do

discurso na construção do Direito. Durante todo o corpo do processo, encontramos sujeitos

que, através do discurso, descrevem fatos, expressam emoções, levantam argumentos de

defesa e de acusação e ainda tomam decisões sobre os assuntos que envolvem o processo.

Como já fora mencionado no referencial teórico, o próprio Direito é constituído

essencialmente de discursos, sobretudo de discursos argumentativos. Logo, não poderia ser

diferente com um de seus procedimentos: a ação penal.

Ainda em fase policial, como podemos constatar no processo, os autos de queixas das

vítimas e a inquirição das testemunhas se constroem discursivamente, ainda que estes

discursos não sejam de caráter argumentativo. O caráter discursivo dessas peças é marcado

pela dialogicidade própria da linguagem, em cujas falas podemos perceber as marcas da

presença do outro e do contexto de produção desses discursos.

No oferecimento da denúncia, em que o Ministério Público, diante dos fatos narrados

pelas vítimas e testemunhas inquiridas e das provas constituídas no início da ação penal,

manifesta expressamente sua vontade de que se aplique a lei penal a quem é presumivelmente

o culpado (CAPEZ, 2006), constatamos a presença do discurso, esse já argumentativo, em que

a pretensão do promotor de justiça é convencer o juiz, diante das circunstâncias, de que

Lampião e seu bando são culpados, pelo menos presumivelmente.

O discurso do delegado, em seu relatório conclusivo sobre os fatos até então apurados,

o auto de perguntas feitas ao cangaceiro “Mormaço”, a declaração de suspeição do juiz José

Fernandes Vieira, a defesa oral apresentada pelo defensor público, as alegações da acusação e

da defesa, bem como o parecer do Promotor de Justiça Maranto Filgueira e a decisão do Juiz

João Afonso Pordeus, todas essas peças se constituem, também, de discursos, e, como tal, se

materializam nas relações dialógicas.

Toda a ação penal é constituída, pois, de discursos, uns acusatórios, outros defensivos,

mas discursos que buscam um único objetivo, qual seja: chegar a uma decisão sobre os

acontecimentos alegados pelas vítimas no ano de 1927.

53

2.4.2 As condições de produção do discurso do cangaço

Esse processo, iniciado na década de 192011, é representativo para o interesse dessa

pesquisa, por ser capaz de oferecer melhores condições para a análise dos discursos

produzidos sobre o cangaço e sobre o que esse modo de vida representava para o Brasil, numa

época tida como auge dos conflitos nordestinos entre coronéis, polícia e cangaceiros, pelo

menos teoricamente, cujos resultados refletiam diretamente na população sertaneja. Assim, a

época, em que se deu início ao processo contra Lampião e seus comparsas, tramitado na

Comarca de Pau dos Ferros, marca os discursos produzidos nesse processo como um reflexo

daquilo que se entendia sobre o cangaço àquela época.

Crimes como os alegados no processo, tendo como acusados os próprios cangaceiros,

considerados o terror nordestino, só poderiam dar condições para a população, temerosa com

os acontecimentos da época, expor seus medos, aflições, angústias e revoltas com a situação

em que viviam.

Em todo o processo, podemos constatar discursos inflamados sobre os acontecimentos

alegados e sobre os próprios cangaceiros, dos autos de queixa aos discursos produzidos pela

acusação e defesa do processo, os quais traduzem as considerações da população acerca do

cangaço.

No capítulo de análise de nosso trabalho, pretendemos identificar esses discursos,

apontando quais os efeitos de sentido produzidos sobre o cangaço e os sujeitos que o

protagonizam nos discursos daqueles que participam da produção do processo.

2.5 Critérios de análise

Antes da realização da análise das peças processuais, corpus do nosso trabalho,

delimitamos um tempo para constituição, leitura e transcrição do corpus (4 meses). Como se

trata de um processo judicial, apesar de ser considerado um processo histórico, não nos exigiu

muito tempo para a sua constituição, foram exatos 30 dias (1 mês) para termos contato e

conseguirmos a cópia com a Secretaria da Vara Criminal de Pau dos Ferros.

11 Época em que o cangaço para muitos foi um fenômeno ocorrido no nordeste brasileiro no qual os bandidos cometiam toda sorte de roubos, depredações e assassinatos, e para outros o cangaço era um meio de vida para aqueles que se sentiam injustiçados pela sociedade da época.

54

Para leitura e concomitante transcrição do processo, delimitamos o tempo de 3 meses,

tempo maior devido ao grande número de páginas a serem transcritas (o processo, em sua

forma original tem 153 páginas, sendo a maior parte delas escrita à mão pelos escrivães da

época), bem como à dificuldade de entendimento na leitura do corpus, por ser um processo

manuscrito com precários recursos, além dos borrões e das falhas de cópia em algumas de

suas páginas. Para ilustrarmos, vejamos um dos trechos do processo que traduz a precariedade

da condição de produção do processo:

“Certifico que os borrões constantes nas folhas retro destes autos, foram em conseqüência de uma gallinha, que, pulando sobre a mesa, onde se achava um tinteiro sem a rolha, virou-o, derramando a tinta por cima não só destes autos, como ainda sobre outros papeis que se achavam tambem sobre a referida meza. O referido é verdade; dou fé.” Pau dos Ferros, 4 de outubro de 1927 Abílio Deodato do Nascimento Escrivão do feito”

Após a constituição, leitura e transcrição do processo, selecionamos os textos que

constituem os discursos da defesa e da acusação para identificarmos que técnicas

argumentativas foram utilizadas pelos sujeitos que os representam nas defesas de suas teses.

Selecionamos, ainda, algumas passagens dos textos que constituem o processo para, através

da análise destes, compreendermos o processo dialógico e os efeitos de sentido sobre o

cangaço, os quais que se manifestam no decorrer de todo o processo.

Alguns recursos metodológicos foram utilizados para a efetivação da análise, com o

intuito de melhor alcançarmos os objetivos de nosso trabalho.

2.5.1 Das questões

Elaboramos questões que envolvem os objetivos de nossa pesquisa, para que, ao

respondê-las, pudéssemos identificar mais facilmente os resultados da pesquisa.

Ressaltamos, contudo, que aplicamos, intencionalmente, às questões, uma estrutura

básica utilizada nas peças inaugurais dos processos, que dão início aos trâmites judiciais, o

que chamamos na área jurídica de petições iniciais, que reúnem, em uma sequência lógica, em

primeiro lugar os fatos, momento em que a parte impetrante (o requerente da ação), por meio

de seu procurador (o advogado ou defensor público), narra os acontecimentos que deram

55

causa ao direito; em segundo lugar a fundamentação, parte da petição em que serão dispostos

os dispositivos legais, citações doutrinárias, jurisprudências e outras fontes do Direito, que

darão alicerce, sustentabilidade ao direito; e, por fim, em terceiro lugar, o pedido, peça em

que é explicitado o que se requer da justiça diante dos fatos narrados e da fundamentação

exposta. Foi, portanto, com base na estrutura de uma petição inicial que elaboramos a

estrutura da análise das peças que compõem o corpus de nossa pesquisa.

Primeiro apresentaremos, representando a narrativa de nosso trabalho, as questões que

dão base de sustentação a nossa pesquisa, já que são estas questões as representantes diretas

dos objetivos específicos para os quais serão obtidos resultados, que, por sua vez, representam

figurativamente o direito conquistado. Assim, a primeira parte de nossa análise será intitulada

“Da questão”. Como serão três questões a serem respondidas, a sequência será: “Da questão

1”, “Da questão 2” e “Da questão 3”.

No segundo momento da análise, apresentaremos de maneira direta, a resposta a cada

questão para podermos apresentar, na sequência, a sua fundamentação. O segundo item é

intitulado, portanto, de “Da resposta”.

Seguindo ainda o raciocínio da estrutura da petição inicial, partiremos para o terceiro

item intitulado de “Da fundamentação e análise”, momento em que exporemos os recortes

dos textos que traduzem a resposta apontada, realizando, nesse momento, uma análise

minuciosa com base nos conceitos abordados no referencial, como forma de dar

sustentabilidade à resposta apresentada.

Na sequência, apresentaremos o item que intitulamos de “Dos resultados”, momento

em que apresentaremos sucintamente os resultados obtidos na análise. Esse item corresponde

ao que chamamos na petição inicial de “pedido”, porque o pedido, na peça inaugural do

processo, representa o que se espera como resultado da ação.

Isto posto, retomando a intencionalidade da elaboração dessa estrutura, optamos por

utilizar essa forma de análise como uma maneira de aproximar ainda mais esses campos de

conhecimento a Linguagem e o Direito. Aplicando uma estrutura que, de certa forma, “foge”

aos padrões dos trabalhos científicos realizados na área da linguagem, entendemos que

conseguimos ampliar ainda mais os horizontes, nessa área dessa ciência, provando a constante

interação da linguagem com a área da ciência jurídica, permitindo, desta forma, que ideias ou

estruturas aplicadas em outras ciências possam ganhar espaço no vasto e rico mundo dos

estudos da linguagem.

Explicaremos, abaixo, como se dará o processo de análise, para melhor compreensão

dos itens supracitados. Vejamos:

56

Exemplo:

Da questão 1

Como se dão as relações dialógicas em processos jurídicos?

Analisando peças do corpus de nossa pesquisa, compreenderemos, a partir desta

questão, como se dão as relações dialógicas em processos jurídicos, de acordo com a

concepção de linguagem de Bakhtin (1988, 2004). Identificaremos, com isso, quais fatores

caracterizam a dialogicidade nos discursos que fazem o processo penal contra Lampião e seu

bando, o que nos permitirá corroborar com a ideia de afinidade entre o Direito e a linguagem.

Da Questão 2

Que técnicas argumentativas foram utilizadas pela defesa e pela acusação, no processo

contra Lampião e seu bando, em defesa de suas teses?

Norteados por esta questão, analisaremos os discursos do Ministério Público e da

Defensoria Pública em defesa de suas teses. Levantaremos todos os argumentos usados pelas

partes, identificando quais técnicas argumentativas foram utilizadas nos discursos de acusação

e de defesa, com base nos conceitos abordados por Perelman (2005).

Desdobraremos esta questão em duas partes: uma referente às técnicas argumentativas

utilizadas pela defesa e outra referente às técnicas argumentativas utilizadas pela acusação.

Questão 3

Que efeitos de sentido sobre o cangaço emergem dos discursos que compõem o processo?

Verificaremos, buscando responder a esta questão, os efeitos de sentidos (POSSENTI,

2001, 2009) atribuídos ao cangaço nos discursos que constituem a ação penal contra Lampião

e seus comparsas; cujos sentidos revelam o sentimento do povo sobre o fenômeno do cangaço

que marcou a história e a cultura de nosso Brasil, de modo particular da região nordeste.

2.5.2 Da fundamentação e da análise

57

Após a exposição da questão e a apresentação da resposta, como já explicitado,

apresentaremos a sua fundamentação. Para tanto, transcreveremos recortes de textos que serão

dispostos em quadros para, em seguida, ser realizada a análise. Como as respostas terão como

base mais de um recorte, os quadros serão organizados em ordem alfabética.

As questões não apresentarão um padrão de número de recortes. Para cada resposta

utilizaremos recortes diversos, em menor ou maior número, de acordo com a análise de cada

uma delas. Vejamos um exemplo utilizando a “questão 1”:

• Da questão 1

Como se dão as relações dialógicas em processos judiciais?

• Da resposta

Espaço onde será respondida a questão

• Da fundamentação e da análise

Recorte A

Espaço destinado para a identificação do argumento

Espaço para a transcrição do recorte do texto

Levando em consideração as respostas dadas às questões elencadas acima e a

fundamentação disposta no(s) quadro(s), analisaremos o(s) recorte(s) do(s) texto(s)

apresentado(s) como fundamentação, discutindo os conceitos abordados no referencial teórico

acerca da linguagem, argumentação e efeitos de sentido, de maneira a explicar como foi

possível chegar à resposta inicialmente exposta.

2.5.3 Dos resultados

Os resultados serão expostos em quadros sintéticos como forma de retomar, após a

devida fundamentação e análise, a resposta apontada no primeiro momento.

Vejamos exemplo:

58

Questão 1 Resultado

Como se dão as relações dialógicas em processos judiciais?

Neste espaço apresentaremos sinteticamente a resposta de acordo com a análise do(s) recortes(s) do(s) texto(s)

59

3 LAMPIÃO E O CANGAÇO EM PROCESSO CRIMINAL: ESTUDOS SOBRE A ARGUMENTAÇÃO, A DIALOGICIDADE E OS EFEITOS DE SENTI DO

O último capítulo do trabalho se trata da análise do corpus, ferramenta de nossa

pesquisa, que será efetivada através dos procedimentos apresentados no segundo capítulo.

Subsidiadas pelas teorias abordadas no referencial teórico, o resultado das análises nos

fornecerão as respostas levantas como questões de pesquisa.

Chegaremos, portanto, através da análise, às respostas das questões de pesquisa que

inicialmente levantamos, quais sejam: 1) Que técnicas argumentativas foram utilizadas pela

defesa e pela acusação, no processo contra Lampião e seu bando, em defesa de suas teses? 2)

Como se manifestam as marcas discursivas do outro e do contexto sócio histórico na

construção do discurso jurídico? 3) Que efeitos de sentido sobre o cangaço emergem dos

discursos que compõem o processo? Tais respostas serão encontradas através da análise que

será executada por meio dos critérios estabelecidos no capítulo 2, elaborados para melhor

organização e efetivação da pesquisa.

A escolha do título deste capítulo: “Lampião e o cangaço em processo criminal:

estudos sobre a argumentação, a dialogicidade e os efeitos de sentido” se deu por ser este

terceiro capítulo o momento em que, retomando as discussões feitas no referencial teórico

sobre a argumentação, o dialogismo e os efeitos de sentido, estudaremos essas teorias de

maneira a materializá-las na prática, analisando o corpus, qual seja: o processo criminal

contra Lampião e os demais cangaceiros de seu grupo, cujas personalidades também não

poderiam deixar de ser destacadas.

Neste capítulo, analisando o discurso jurídico dos sujeitos que fazem o processo

criminal contra Lampião e seus comparsas, identificaremos, no referido processo: as marcas

discursivas manifestadas pela presença do outro e pelo contexto sócio histórico,

identificaremos e analisaremos as técnicas argumentativas utilizadas pelo Ministério Público e

pela Defensoria Pública, bem como verificaremos os efeitos de sentido atribuídos ao cangaço.

3.1 Os processos dialógicos manifestados em processos judiciais

Com base na fundamentação teórica explicitada no capítulo 1, de modo particular na

parte sobre a concepção bakhtiniana de linguagem, pode-se observar o quão é indiscutível a

amplitude e a complexidade dos discursos, que se manifestam das mais diversas formas e em

60

diversos segmentos. Para o Direito, como já mencionado, a linguagem é a base fundamental

para sua formação, sem a qual, portanto, ele jamais existiria.

Como forma de corroborar com as ideias de Bakhtin de que, na produção de um

enunciado, o enunciador leva em conta o discurso do outro, pois não existe enunciado

próprio, constituído de uma só voz, e a ideia de que esse enunciado é fruto também da

interação entre os sujeitos e entre estes e a própria situação e o meio social em que se

encontram, é que analisaremos recortes de textos do processo tramitado na comarca de Pau

dos Ferros contra Lampião e seu bando, identificando as marcas do outro e do contexto sócio-

histórico que fazem o discurso jurídico, uma das formas de manifestação da linguagem. Ao

mesmo tempo em que realizamos a análise, ratificaremos a ideia de que a ciência do Direito e

a Linguagem caminham juntas.

3.1.1 Estudo 1

• Da questão 1

Como se dão as relações dialógicas em processos jurídicos?

• Resposta

As relações dialógicas estão presentes em todos os gêneros que compõem os processos

judiciais. Os sujeitos, os quais denominamos de enunciadores do processo, que produzem os

discursos constroem seus enunciados com a participação do outro e/ou com base no contexto

sócio-histórico-ideológico, ou seja, o contexto de produção dos discursos em que se situam.

Como todo enunciado parte de outro enunciado - a essência do dialogismo defendido

por Bakthin (2004) -, os discursos que fazem partes dos processos judiciais, desde o momento

em que se dá entrada em uma ação judicial ou até mesmo ainda, como em caso de processos

penais, em momento anterior, ainda em fase policial, são produzidos com a participação de

outras vozes e de acordo com o seu contexto de produção.

As relações dialógicas em processos judicias se dão, assim, com a presença do outro

e/ou sob a influência do contexto sócio-histórico-ideológico, no momento em que os

enunciadores, na construção de seu discurso, se utilizam desses elementos para construir seus

discursos de maneira a defender as suas teses, decisões ou posições no processo.

61

• Da fundamentação e análise

Recortes “A”, “B”, “C” e “D”

Sobre a presença do outro

A - O Promotor público da comarca, usando das suas atribuições que lhe (são) conferidas,

e, baseado no inquérito policial e auto de declarações juntos, (vem) perante V. S. offerecer

denuncia contra os bandoleiros Virgolino Ferreira, vulgo Lampeão [...] e seus comparsas.

(Oferecimento de denúncia pelo Promotor de Justiça Manoel Augusto Abath, grifo nosso).

B - Constata-se pelo depoimento das testemunhas de fls a fls, que esses bandidos

assaltaram e roubaram neste município as propriedades dos citados [...] causando-lhes um

prejuiso de muitos contos de reis; que no logar Caiçara esse grupo de bandidos atacou um

contingente da força publica matando o soldado José Monteiro de Mattos em quem os

bandidos (incompreensível) seu ódio, apunhalando-o depois de morto e esmagando parte da

cabeça, conforme se verifica do auto de exame cadavérico de fls; que essa horda de

bandidos era chefiada pelo scelerado Virgulino Ferreira Lampeão tendo por auxiliares

[...]e outros cujos nomes não foi possivel saber; que uma parte da força atacada ia de

automóvel, sendo que dois desses carros ficaram no logar do ataque e foram incendiados

pelos bandidos; que esse grupo seguia montado em animaes que roubara e agia com

rapidez, uma ânsia (vandálica) de praticar o mal. (Relatório de conclusão do Delegado

Jacintto Tavares Ferreira, grifo nosso)

C - E quanto aos demais bandidos, opino pela pronuncia dos mesmos em virtude dos

depoimentos testemunhaes afirmarem que eles, quando passaram por este município,

cometeram as depredações, roubos e toda sorte de abusos. (Alegações finais do

Representante do Ministério Público Claudionor Telogio de Andrade, grifo nosso).

D - Julgo, em parte, procedente a denuncia de fls, quanto aos denunciados Virgolino

Ferreira, vulgo Lampeão [...]

Com efeito, resaltam dos depoimentos das testemunhas, tanto do inquérito, como da

formação da culpa, que, no dia 10 de junho de 1927, no logar “Caiçara”, do município de

Pau dos Ferros, os denunciados, chefiados por Lampeão, atacaram inexperadamente o

destacamento do então Te. Napoleão Agra, produzindo na pessoa do soldado José Monteiro

62

de Matos, os ferimentos descritos no auto de exame cadavérico de fls. 29, dos quaes lhe

adveio morte instantânea.

A subtração dos objetos, animais e dinheiro, de que tratam os autos, feitas pelos referidos

denunciados, empregando violência, acha-se igualmente provada dentro dos mesmos

autos. (Julgamento da denúncia feito pelo juiz Januncio Gorgonio da Nobrega, grifo nosso).

O enunciado, conforme pensamento bakhtiniano, não é constituído por uma só voz.

No item do referencial teórico dedicado às discussões acerca da concepção bakhtiniana de

linguagem, qual seja: a linguagem é um instrumento de interação, observamos que existem

elementos (assim como definimos) incidindo direta ou indiretamente nos enunciados. Eles (os

enunciados) são carregados de outras vozes, de marcas de outros enunciadores, relações

dialógicas que fazem desses enunciados um produto, digamos, coletivo, e não individual. Essa

concepção é o que Bakhtin denomina de dialogismo.

Com base nisso, recortamos alguns textos do corpus de nossa pesquisa, já citado, para

compreendermos como se dão essas relações dialógicas em processos jurídicos, tendo em

vista a nossa intenção de evidenciar a relação entre a ciência do Direito e a linguagem.

Ressalte-se que, na análise, levamos em consideração as definições de gêneros

discursivos de Bakhtin (1997, 2000) e Swales (1990), e compreendemos que, na comunidade

discursiva jurídica, os gêneros são as peças processuais que fazem o processo judicial, cuja

estrutura obedece a um certo padrão relativamente estável.

Consideramos, portanto, ao realizar a análise de nosso corpus, que as relações

dialógicas se dão com a presença do outro, vejamos, a seguir, como isso acontece:

No recorte “A” , podemos observar que o promotor público só ofereceu a denúncia,

peça inaugural do processo judicial, ou seja, ponto de partida da ação criminal na fase

judicial, porque acreditou e assumiu os discursos das vítimas constantes nos autos de queixa,

bem como no relatório de conclusão apresentado pelo delegado. Quando o Promotor diz

“baseado no inquérito policial e auto de declarações juntos”, embora não tenha citado

diretamente os discursos que lhe fizeram entender a necessidade do oferecimento da denúncia,

houve presença indireta de outros discursos no seu, no momento em que fundamentou o seu

pedido de pronúncia da denúncia com base no inquérito policial (representado pelo relatório

de conclusão do delegado) e o auto de declarações (que se refere aos autos de queixas das

vítimas).

63

No recorte “B”, que faz parte do relatório de conclusão do delegado Jacinto Tavares,

podemos observar que sua posição em relação às queixas prestadas é de que de fato os crimes

foram cometidos por Lampião e seu bando. O delegado não cita diretamente os discursos dos

queixosos, mas fundamenta sua conclusão nos discursos das supostas vítimas, acreditando,

assim, que foram cometidos assaltos e roubos, quando afirma “(...) que esses bandidos

assaltaram e roubaram neste município as propriedades dos citados (...)”, bem como

cometido assassinato, ao afirmar que “esse grupo de bandidos atacou um contingente da

força publica matando o soldado José Monteiro de Mattos”. Por último, o delegado

corrobora com a afirmação dos queixosos de que os bandidos que cometeram os crimes foram

Lampião e seu bando; vejamos: “que essa horda de bandidos era chefiada pelo scelerado

Virgulino Ferreira Lampeão”. Embora o delegado não tenha presenciado o fato, em seu

discurso, utilizando-se exclusivamente dos discursos de outros, assume posições e faz

afirmações, situação essa que revela a voz do outro prevalecendo sobre a voz do próprio

enunciador.

No recorte “C”, o Representante do Ministério Público, argumentando a favor da

procedência da denúncia, usou os depoimentos das testemunhas como fundamentação para

sua defesa: “ opino pela pronuncia dos mesmos em virtude dos depoimentos testemunhaes

afirmarem que eles, quando passaram por este município, cometeram as depredações,

roubos e toda sorte de abusos”. Observe-se que a própria construção do discurso da acusação

foi pautada em argumentos que referenciam o outro, o discurso do outro. Neste caso, o

representante do parquet usou as alegações (enunciações) de outras pessoas para fortificar a

sua tese de que os “bandoleiros” deveriam ser pronunciados, por terem as testemunhas

afirmado que foram eles, de fato, os autores dos crimes ocorridos em Vitória.

No recorte “D”, verificamos que o julgamento da denúncia feito pelo Juiz Janúncio

Gorgônio também se fundamenta nos depoimentos testemunhais. Assim como no recorte

anterior e como em toda ação judicial, seja ela de natureza penal ou não, o juiz, no ato da

elaboração de sua sentença usa, como fundamentos de sua decisão, discursos de outras

pessoas - as testemunhas; o próprio discurso legal (aqui nos referimos às disposições legais,

leis, artigos, incisos, jurisprudências, doutrinas); os discursos da defesa e da acusação. Com

base em todos estes agentes incidentes é que o juiz chegará à decisão que considera mais justa

ao caso em questão, cuja decisão revela uma tese construída e defendida dialogicamente.

Sendo assim, é perceptível a presença do outro nos discursos que compõem o processo

criminal contra Lampião e seu bando.

64

Recortes “E”, “F”, “G” e “H”

Sobre a influência do contexto sócio-histórico-ideológico

E – (...) que apesar de não conhecer (incompreensível), sabe no entretanto que o seu

costume e de roubar, matar e deflorar. Dada a palavra ao Promotor as suas palavras por

intermédio do juis, respondeu a testemunha: que, Lampeão e seu grupo são habituados a

praticarem todos os atos de crueldade, mortes, defloramentos e finalmente tem sido o terror

de toda a família nordestina. (Depoimento da testemunha João Porfírio da Silva, grifo nosso)

F – A nossa historia politica, literária, nunca registrou fatos tão horripilantes, como os que

tem praticado Lampeão e o seu grupo. É uma cousa verdadeiramente dolorosa, que

constrange e comove a alma de todos. Lampeão, como é notoriamente, sabido, tem sido e

continua, sendo o terror dos sertões nordestinos, tem sido um verdadeiro

(incompreensível), um fiel da infâmia, da desgraça e da infelicidade, sorrateiro e

levianamente (incompreensível) das famílias sertanejas do nordeste!(Alegações finais do

Promotor de Justiça, grifo nosso)

G - Somando se alardiou (incompreensível) a passagem de Lampeão e seu bando, todo e

qualquer elemento se aproveitava daquela oportunidade para cometer toda sorte de

roubos, degloriamentos, estupros, violencias brutaes, com a mascara Lampeonesca,

quando talvez Lampeão estivesse muito distante deste estado. (Alegações finais da defesa,

grifo nosso).

H - Isto posto, nos termos do artigo 107, IV, c/c o artigo 109, IV, e § único, do CP, bem

como do artigo 61 do CPP, DECLARO DEFINITIVAMENTE EXAURIDO O

PROCESSO, reconhecendo a extinção da pretensão punitiva por parte do Estado, em

virtude do decurso do prazo prescricional, e, consequentemente, determino o arquivamento

dos autos, com baixa no registro e demais cautelas de estilo. (Sentença Terminativa emitida

pelo Juiz João Afonso da Silva Pordeus, grifo nosso).

Assim como encontramos as marcas do outro nos enunciados, fazem-se presentes,

também, as marcas do contexto sócio-histórico-ideológico em que os enunciadores se

encontram, ou seja, há dialogicidade, também, quando há interação entre enunciador e o

contexto de produção dos discursos.

No referencial teórico, discutimos alguns pontos em comum entre o Direito e a

Linguagem e um deles é exatamente esse aspecto interacionista, em que tanto a Linguagem

quanto o Direito sofrem constantes mutações, e essas mudanças, adequações, atualizações, se

dão, à medida que aquele a quem o discurso é dirigido, sob o aspecto da linguagem, e a

65

sociedade regida pelo ordenamento jurídico brasileiro, sob a ótica do Direito, precisam

acompanhar o contexto no qual se encontram, no momento de sua aplicação.

Nos discursos jurídicos é comum encontrarmos colocações que nos remetem

imediatamente ao contexto sócio-histórico-ideológico de produção do discurso. Muitos são os

sujeitos que compõem um processo jurídico, de natureza penal ou não, que adequam o seus

discursos ao que possivelmente pode ser aceito pelo auditório naquele momento. Neste caso

há uma preocupação por parte do enunciador de, amoldar a enunciação às “necessidades” do

auditório; o que confirma esse caráter interacionista da linguagem.

Analisemos os recortes para melhor explicitarmos essa discussão.

No recorte “E”, compreendemos que o discurso da testemunha João Porfírio da Silva

apresenta fortes marcas do contexto social, histórico e ideológico em que vive naquele

momento. Percebemos que o referido, em suas colocações, afirma com clareza que “[ ...]

apesar de não conhecer (incompreensível), sabe no entretanto que o seu costume e de roubar,

matar e deflorar”. Diante dessa afirmativa, constatamos que o discurso dessa testemunha está

diretamente vinculado a sua formação ideológica, que se baseia no contexto social e histórico

da sociedade, em uma época em que o cangaço e as figuras dos cangaceiros representavam

para a sociedade um perigo, digamos, quase irremediável, em virtude da violência com a qual

os cangaceiros se apresentavam à sociedade e suas ardilosas fugas e impenetráveis

esconderijos que marcaram o sertão nordestino. No momento em que a testemunha afirma não

conhecer os “bandidos”, entendemos que suas afirmações, portanto, se basearam, única e

exclusivamente, no que a sociedade da época afirmava sobre quem eram e o que

representavam Lampião e seu bando para a sociedade como um todo.

No recorte “F”, observamos que o discurso do representante do Ministério Público

utiliza o contexto sócio-histórico-ideológico como argumento para fortalecer sua tese de que

de fato foram Lampião e seus comparsas que cometeram os crimes alegados pelas supostas

vítimas. Apoiado-se na ideia aceita pela sociedade de que Lampião era o “terror dos sertões” e

que suas ações criminosas conhecidas em todo o nordeste o qualificam negativamente ao

ponto de justificar a sua autoria nos crimes alegados, o parquet (representante do Ministério

Público) tenta convencer o seu auditório, neste caso, o juiz, de que os cangaceiros devem ser

pronunciados e responder junto à justiça pelos crimes que cometeram.

No recorte “G”, percebemos a presença, no discurso, do contexto sócio-histórico-

ideológico, quando ele é apontado pelo próprio Defensor Público, no momento em que afirma

que “todo e qualquer elemento se aproveitava daquela oportunidade para cometer toda sorte

de roubos, degloriamentos, estupros, violencias brutaes, com a mascara Lampeonesca.

66

Segundo a defesa, aproveitando-se do contexto em que esses crimes citados eram

característicos das ações imputadas ao grupo de Lampião, pessoas que não faziam parte desse

grupo aproveitavam-se da fama dos cangaceiros para cometer em crimes que seriam, de toda

forma, imputados aos que faziam parte do grupo. Sendo assim, segundo o Defensor Público,

todas as pessoas que quisessem cometer algum crime típico dos cometidos por Lampião

poderiam fazê-lo sem se preocupar com qualquer possibilidade de serem incriminados, pois

certamente a culpa seria atribuída aos cangaceiros, pois, àquela época, eram poucos os que

conheciam a figura de Lampião, muitos apenas o idealizavam, e, por isso, era fácil se passar

por eles.

No recorte “H”, observamos que as marcas do contexto sócio-histórico-ideológico

estão presentes na própria decisão do juiz João Afonso, quando o mesmo declara

“definitivamente exaurido o processo, reconhecendo a extinção da pretensão punitiva por

parte do Estado, em virtude do decurso do prazo prescricional”. Como podemos perceber,

em virtude de haver se passado muitos anos de tramitação processual, transcorridos mais de

67 anos, e por não terem sido punidos os réus pelos crimes cometidos dentro do prazo

prescricional estabelecido em lei, o juiz determinou o arquivamento dos autos, declarando,

assim, extinta a pretensão punitiva do Estado, ou seja, o Estado não poderá mais punir o

agente.

Como o processo de prescrição da pretensão punitiva do Estado se dá de diferentes

formas, dependendo da pena máxima privativa de liberdade cominada ao crime12, pudemos

verificar que, se o Estado houvesse realizado em tempo a punibilidade, no caso em questão, o

resultado do processo seria diverso e, com isso, também, o discurso do juiz. Além disso, se o

conteúdo do dispositivo legal fosse diverso, o que modificaria, também, o contexto de

produção de discurso, a decisão do juiz acompanharia a sua determinação legal; o que

implicaria em um diferente resultado e, consequentemente, em um diferente discurso.

• Resultados

Questão 1 Resultado

12 Art. 109. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, salvo o disposto no § 1º do art. 110 deste Código, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se: I - em 20 (vinte) anos, se o máximo da pena é superior a 12 (doze); II - em 16 (dezesseis) anos, se o máximo da pena é superior a 8 (oito) anos e não excede a 12 (doze); III - em 12 (doze) anos, se o máximo da pena é superior a 4 (quatro) anos e não excede a 8 (oito); IV - em 8 (oito) anos, se o máximo da pena é superior a 2 (dois) anos e não excede a 4 (quatro); V - em 4 (quatro) anos, se o máximo da pena é igual a 1 (um) ano ou, sendo superior, não excede a 2 (dois); VI - em 3 (três) anos, se o máximo da pena é inferior a 1 (um) ano. (BRASIL, 1940).

67

Como se dão as relações dialógicas em processos jurídicos?

As relações dialógicas nos processos jurídicos se dão marcadas pela presença do outro e do contexto sódio-histórico-ideológico no qual o discurso se produz.

3.2. As técnicas argumentativas em processo criminal contra Lampião e seu bando

Com base nos conceitos que constituem todo o aparato teórico, neste trabalho, sobre

uma das principais ferramentas utilizadas para a construção do Direito: a argumentação,

elencaremos as técnicas argumentativas utilizadas pelo Ministério Público e pela Defensoria

Pública, no processo criminal contra Lampião e seu bando, tramitado na Comarca de Pau dos

Ferros/RN.

Para tanto faremos a análise de recortes dos discursos do Ministério Público e da

Defensoria Pública, acusando e defendendo, respectivamente, os imputados: Lampião e seu

bando. Na oportunidade, conheceremos os argumentos levantados pelas partes em defesa de

suas teses em prol da conquista da adesão de seu auditório: o juiz.

3.2.1 Estudo 2

• Da questão 2

Que técnicas argumentativas foram utilizadas pela defesa e pela acusação, no processo

contra Lampião e seu bando, em defesa de suas teses?

• Resposta

Antes de apontarmos as técnicas argumentativas do Ministério Público, apresentamos

a sua tese principal; qual seja: a de que Lampião e seu bando foram realmente os responsáveis

pelos crimes cometidos em Vitória, atualmente Marcelino Vieira. O Promotor de Justiça,

Claudionor Teológio de Andrade, quando diz que “dos presentes autos, vê-se resultar (grave)

evidentemente a responsabilidade dos denunciados Virgolino Ferreira (vulgo Lampião) e

outros, que faziam parte do seu bando sinistro”, defende a tese de que os únicos responsáveis

68

pelos crimes tipificados no processo foram, de fato, os acusados, requerendo a pronúncia dos

cangaceiros, com exceção dos bandidos: José Leite de Santana (vulgo Jararaca) e de

Francisco Ramos (vulgo Mormaço), tendo em vista que os mesmos morreram na cidade de

Mossoró, de acordo com certidão e ofício constantes no processo.

Neste mesmo discurso de pedido de pronúncia, o Promotor usa argumentos para

convencer o juiz de que os cangaceiros devem realmente ser pronunciados. Pudemos, então,

observar, que o Promotor de Justiça fez uso de técnicas, consciente ou inconscientemente, na

construção de seus argumentos, para convencimento do juiz.

Identificamos, assim, no texto, os seguintes argumentos tipificados por Perelman e

Tyteca (2005): o argumento a fortiori (argumento baseado na estrutura do real), o argumento

da comparação (argumento quase lógico), o argumento da transitividade (argumento quase

lógico) e o argumento de autoridade (argumento quase lógico).

Sobre as técnicas utilizadas pela defesa, que adotou a tese de negativa de autoria,

identificamos o argumento da retorsão (argumento quase lógico).

• Da fundamentação e análise - sobre as técnicas argumentativas da acusação

Recorte “A”

Sobre o argumento a fortiori

[ ...] A nossa historia politica, literária, nunca registrou fatos tão horripilantes, como

os que tem praticado Lampeão e o seu grupo. É uma cousa verdadeiramente dolorosa,

que constrange e comove a alma de todos. Lampeão, como é notoriamente, sabido, tem

sido e continua, sendo o terror dos sertões nordestinos, tem sido um verdadeiro

(incompreensível), um fiel da infâmia, da desgraça e da infelicidade, sorrateiro e

levianamente (incompreensível) das famílias sertanejas do nordeste!

A imaginação humana jamais descreveu typos destes maiz, que além de roubar, matar,

deflorar, etc... [ ...]. (Alegações finais da acusação)

Como podemos perceber no trecho selecionado, o Promotor referencia as ações de

Lampião, relacionando-as a sua conduta enquanto pessoa. Este tipo de argumento, a fortiori,

tem o poder de qualificar as pessoas de acordo com o que traduz os seus atos. Segundo

69

Perelman e Tyteca (2005, p.334), “[...] a simples repetição de um ato pode acarretar, seja uma

simples reconstrução da pessoa, seja uma adesão fortalecida à construção anterior”.

Neste caso, o Promotor, com o argumento a fortiori , que se constitui de acordo com a

construção social da realidade (por isso a classificação desse argumento no grupo dos

argumentos baseados na estrutura do real), retratou Lampião como sendo “um fiel da

infâmia”, “da desgraça” e “da “infelicidade”, “por ter roubado, matado, deflorado, etc...”

como, segundo o Promotor, relatam os fatos da história política e literária do país.

Apesar de o fato, nesse momento, ainda não ser uma realidade comprovada, o

Promotor levou em consideração a opinião geral sobre Lampião e os seus comparsas,

tomando como fundamentação outros fatos e circunstâncias que levam a crer ou que

realmente comprovam ações negativas protagonizadas pelos cangaceiros; e foram essas

atitudes passadas, descritas por opiniões ou verdades, que fez com que o Ministério Público

qualificasse os acusados negativamente, justificando, dessa forma, a sua tese de que os

acusados deveriam ser pronunciados.

Essa é uma estratégia comum utilizada pelos representantes das partes em um processo

criminal em defesa de suas teses e pela própria justiça, como podemos perceber, por exemplo,

nos benefícios que são concedidos a um réu que não tem antecedentes criminais. O próprio

Perelman e Tyteca (2005) cita a necessidade da moral e do direito conhecerem as noções de

pessoas e ato e suas ligações.

Recorte “B”

Sobre o argumento da comparação [ ...] praticam todos os actos de crueldade, repelidas, pelos próprios irracionais.

(Alegações finais da acusação)

O Promotor de Justiça, nesta passagem do texto, faz uma espécie de comparação dos

atos cometidos pelos cangaceiros com os atos cometidos pelos irracionais (animais que não

fazem uso do raciocínio, da razão). Este argumento, como já apresentado, confronta

realidades diferentes para fazer uma espécie de avaliação, uma em relação a outra. Em seu

discurso, no trecho descrito, o representante da acusação usou o argumento da comparação

para desqualificar, ainda mais, as ações cometidas e/ou supostamente cometidas pelos

cangaceiros, haja vista que deixa explícita a superioridade da irracionalidade de Lampião e

70

seu bando, em seus atos, a tal ponto de serem esses atos desaprovados, ou melhor,

condenados até pelos animais ‘irracionais’ (grifo nosso).

Assim, de acordo com o raciocínio do Promotor, alguns atos são comuns entre os

irracionais, mas para o ser humano são considerados atos de crueldade, ou seja, os irracionais

estão acostumados a lidar com situações de maleficência, eles agem friamente, mais até do

que os mais frios homens comuns, e se a ação de um homem comum chegar a ser repugnada

por um irracional, isso quer dizer que tal atitude foi de extrema crueldade, atitude esta que

chega a superar a própria irracionalidade do ser.

Sendo assim, podemos observar o argumento de comparação utilizado pelo Promotor

de Justiça em defesa de sua tese. Este argumento, como podemos verificar, também foi

utilizado para justificar a acusação dos cangaceiros e, consequentemente, o pedido de

pronúncia dos acusados.

Recorte “C”

Sobre o argumento da transitividade

Em quase todos os Estados do nordeste Lampeão está pronunciado, restava no Rio

Grande do Norte. (Alegações finais da acusação)

Em seu discurso de acusação, o Promotor também fez uso do argumento classificado

como de transitividade, que, para Perelman e Tyteca (2005), “é uma propriedade formal de

certas relações que permite passar da afirmação de que existe a mesma relação entre os termos

a e b e entre os termos b e c à conclusão de que ela existe entre os termos a e c”.

(PERELMAN e TYTECA, 2005, p. 257).

Ao analisarmos o recorte “C”, apresentado no quadro acima, percebemos que o

Promotor relacionou a ação da justiça de pronúncia, mediante os atos cometidos por Lampião

em sua relação com todos os estados do nordeste, com a atitude que a justiça deveria tomar

em relação aos fatos ocorridos no Rio Grande do Norte. Segundo os argumentos da acusação,

com base no esquema apresentado na citação de Perelman, se as ações que Lampião cometeu

em outros estados, como por exemplo, os estados de Alagoas, Sergipe e Pernambuco, foram

as mesmas cometidas no Estado do Rio Grande do Norte, de realizar roubos, mortes e outras

atrocidades, a atitude da justiça do Rio Grande do Norte deveria ser a mesma tomada nestes

outros estados, qual seja: pronunciar os acusados.

Isto posto, constatamos a presença do uso do argumento de transitividade no discurso

da acusação em defesa de sua tese, com o consequente pedido de pronúncia dos cangaceiros.

71

Recorte “D”

Sobre o argumento de autoridade

E quanto aos demais bandidos, opino pela pronuncia dos mesmos em virtude dos

depoimentos testemunhaes afirmarem que eles, quando passaram por este município,

cometeram as depredações, roubos e toda sorte de abusos (Alegações finais da

acusação).

O representante do Ministério Público, ainda em seu discurso, fez uso do argumento

de autoridade, apontado por Perelman e Tyteca (2005), como sendo de extrema importância.

No trecho selecionado acima, podemos verificar que o Promotor fez referência às afirmações

das testemunhas de que foram os cangaceiros acusados que, de fato, cometeram “as

depredações, roubos e toda sorte de abusos”, e a palavra das testemunhas, ressalte-se, em um

processo criminal, são de grande relevância na apuração dos fatos e na busca pela decisão

mais justa sobre o caso.

O argumento de autoridade é, conforme Perelman e Tyteca (2005), um argumento de

prestígio; dependerá, portanto, da palavra de honra de uma pessoa, que será usada como

argumento em defesa da tese.

Na justiça, podemos até não conhecermos as pessoas que atuam no processo como

testemunhas, e por isso não conhecemos sua índole, sua honradez, no entanto, quando se trata

de prestar depoimento judicialmente, as testemunhas firmam o compromisso de falar a

verdade, sob pena de pagar pelo crime de falso testemunho, o que nos leva a crer que as

palavras proferidas por esses colaboradores são de honra, de grande prestígio, por,

coercitivamente, terem que falar a verdade em juízo, devendo, portanto, serem levadas em

consideração na tramitação do processo; por isso a referência das testemunhas no discurso da

acusação.

Com base no exposto, concluímos que a acusação também fez uso do argumento de

autoridade em seu discurso.

• Da fundamentação e análise – sobre as técnicas argumentativas da defesa

Recorte “E”

Sobre o argumento de retorsão

Somando se alardiou (incompreensível) a passagem de Lampeão e seu bando, todo e

72

qualquer elemento se aproveitava daquela oportunidade para cometer toda sorte de roubos,

degloriamentos, estupros, violencias brutaes, com a mascara Lampeonesca, quando talvez

Lampeão estivesse muito distante deste estado.

Lampeão, estou certo, tem sido uma vitima dos exploradores do momento, tanto assim, que

a policia em combate renhido que dera na Caiçara não reconhecera os inimigos. Apenas

por suposição e esta não merece prova para uma condenação ou pronuncia (...). (Alegações

finais da defesa).

O Defensor Público, utilizando-se do argumento da retorsão, aproveitou as palavras da

testemunha João Porfíirio da Silva, militar que participou efetivamente do combate, para

defender a tese de negativa de autoria. João Porfirio afirmou em seu depoimento (página 34,

linhas 22 a 24) “[...] que se soube ter sido atacado por um grande grupo de cangaceiros

chefiado por Virgulino Ferreira Lampeão, Antonio Massilon Leite e Sabino Gomes”. Ora, se

o militar de apenas ouvir “dizer” soube que se tratava do grupo de Lampião e seus comparsas

e em nenhum momento de seu discurso afirma saber quem são, de fato, os acusados, como

pode ser constatado que eram Lampião e seus companheiros os responsáveis pelos crimes

cometidos no Distrito de Vitória?

Sendo assim, a defesa aproveitou o discurso proferido pela testemunha e contestou o

alegado com o seu próprio conteúdo.

• Dos resultados

Questão 2

Que técnicas argumentativas foram utilizadas pela acusação, no processo contra Lampião e seu bando, em defesa de suas teses?

Resultado

Sobre as técnicas argumentativas da acusação

Foram utilizadas as técnicas baseadas na estrutura do real: com os argumentos de autoridade e a fortiori e as técnicas de ligação quase lógicas: com argumentos da comparação e da transitividade.

Sobre as técnicas argumentativas da defesa

Foi identificado o uso de pelo menos uma técnica, sendo ela de ligação quase lógica: com o argumento da retorsão.

73

3.3 Os efeitos de sentido sobre o cangaço em processo tramitado na comarca de Pau dos

Ferros/RN

Na parte que denominamos de estudo 3 (três), verificamos os efeitos de sentido sobre

o cangaço que emergem dos discursos, os quais compõem o processo criminal contra

Lampião e seu bando; o que corresponde ao terceiro objetivo de nossa pesquisa. Para isso

realizamos, também, recortes de textos cujo conteúdo será analisado com o intuito de

corroborarmos com a concepção de efeitos de sentido discutida no capítulo teórico, conforme

Possenti (2001).

3.3.1 Estudo 3

• Da Questão

Que efeitos de sentido sobre o cangaço emergem dos discursos que compõem o processo?

• Da Resposta

Com base na concepção de efeitos de sentido abordada no referencial teórico,

pudemos observar, ao analisar o corpus de nossa pesquisa, que dois são os sentidos que

emergem dos discursos que compõem o processo criminal contra Lampião e seu bando

tramitado na Comarca de Pau dos Ferros/RN sobre o cangaço: um sentido que denota um

cangaço enquanto sinônimo do banditismo e outro sentido que qualifica o fenômeno cangaço

como uma vítima da sociedade.

Embora a própria natureza penal e as queixas feitas pelas vítimas sejam de natureza

acusatória, os sujeitos, como: testemunhas, defensor e juiz, podem muito bem, de acordo com

os fatos, suas convicções e o andamento do processo, não concordarem com o discurso de

acusação; sobretudo o defensor, que cumpre o dever de defender os acusados, portanto, não

caberá a ele concordar com o sentido acusatório.

Constatamos, com base nesse raciocínio, que os discursos sobre um determinado fato,

pessoa ou condição, em um processo penal, não revelam um sentido único, o que corrobora

com a ideia de efeitos de sentido, que tratamos no aporte teórico desse trabalho.

Fundamentamos essa ideia com o próprio processo, corpus de nossa pesquisa. Como

já mencionado, foram dois os sentidos que encontramos no processo em questão, um que

qualifica o cangaço como um sinônimo de banditismo, através da pessoa de Lampião e seu

74

grupo, defendido pelas vítimas, testemunhas e Ministério Público, e outro que qualifica o

cangaço como vítima da sociedade. Vejamos a análise abaixo para melhor fundamentarmos

nossa resposta.

• Da fundamentação

Recortes “A” e “B”

O cangaço enquanto sinônimo do banditismo

A – [...] que, estando em sua casa, no Panaty, deste município, e estando doente, quando

ouviu bater em sua porta e saindo viu que se tratava de um dos bandoleiros chefiados por

Lampeão o qual pediu-lhe que fosse buscar um cavalo [...] que é verdade os roubos

mencionados na (incompreensível); que apesar de não conhecer (incompreensível), sabe no

entretanto que o seu costume e roubar, matar e deflorar. Dada a palavra ao Promotor as

suas palavras por intermédio do juis, respondeu a testemunha: que, Lampeão e seu grupo

são habituados a praticarem todos os atos de crueldade, mortes, defloramentos e

finalmente tem sido o terror de toda a família nordestina. (Depoimento da testemunha João

Porfírio da Silva, grifo nosso).

B - Dos presentes autos, vê-se resultar (grave) evidentemente a responsabilidade dos

denunciados Virgolino Ferreira (vulgo Lampeão) e outros, que faziam parte do seu bando

sinistro. A nossa historia politica, literária, nunca registrou fatos tão horripilantes, como os

que tem praticado Lampeão e o seu grupo. É uma cousa verdadeiramente dolorosa, que

constrange e comove a alma de todos. Lampeão, como é notoriamente, sabido, tem sido e

continua, sendo o terror dos sertões nordestinos, tem sido um verdadeiro

(incompreensível), um fiel da infâmia, da desgraça e da infelicidade, sorrateiro e

levianamente (incompreensível) das famílias sertanejas do nordeste!

A imaginação humana jamais descreveu typos destes maiz, que além de roubar, matar,

deflorar, etc..., praticam todos os actos de crueldade, repelidas, pelos próprios irracionais.

Infelismente os poderes públicos ainda não tomaram uma medida seria, para a

capturação do chefe do banditismo e seus negrejados comparsas. (Alegações finais da

defesa, grifo nosso).

Embora sejam muitos os discursos que trazem em si uma carga de sentido negativo

sobre o fenômeno do cangaço, optamos, porque consideramos importantes para o resultado do

processo, os discursos de uma das testemunhas e do Representante do Ministério Público, os

75

quais explicitamente denotam o sentido de que o cangaço é um sinônimo de banditismo.

Assim podemos melhor verificar a noção de efeitos de sentido no processo criminal contra os

cangaceiros.

No recorte “A” , podemos observar que a testemunha afirma que não conhece os

cangaceiros, mas que “sabe no entretanto que o seu costume e roubar, matar e deflorar”.

Diante dessa afirmação, percebemos que, mesmo nunca tendo visto Lampião e nem qualquer

um de seus comparsas, nem tampouco ter presenciado os crimes alegados pelas vítimas, a

testemunha afirma saber que o costume dos cangaceiros é “roubar, matar e deflorar” e

atribui a autoria dos crimes cometidos no distrito de Vitória aos cangaceiros. Afirma, ainda, a

testemunha, que “Lampeão e seu grupo são habituados a praticarem todos os atos de

crueldade, mortes, defloramentos” e que “tem sido o terror de toda a família nordestina”

Observa-se, com isso, que o discurso em análise traduz o sentido de que o cangaço,

representado pelos seus protagonistas: Lampião e demais cangaceiros, é de fato um sinônimo

de banditismo, pois se o hábito de quem vive nesse meio é “roubar, matar e deflorar”,

conduta violenta e, portanto, ilegal, outro sentido não poderia ser atribuído ao fenômeno que,

segundo a testemunha, aterrorizou o homem nordestino.

No recorte “B” , podemos observar o discurso “inflamado” do Ministério Público, o

qual busca defender a sua tese de que de fato foram Lampião e seu grupo que cometeram os

crimes ocorridos no distrito de Vitória, alegados pelas vítimas. Embora não tenhamos

recortado todo o discurso, notamos que em todo o seu conteúdo o parquet qualifica

negativamente os cangaceiros (ver destaques no texto). Sendo Lampião o “chefe do

banditismo”, de acordo com as colocações do Ministério Público, percebemos, pois, que

enquanto “protagonista” do fenômeno do cangaço, tendo em vista que Lampião é uma das

figuras mais marcantes, senão a mais marcante da história do nordeste, a acusação denota o

sentido de que o cangaço pode ser considerado um sinônimo do banditismo. Ora, se Lampião

para o parquet é o chefe do banditismo, sendo o cangaceiro conhecido em todo o Brasil como

o rei do cangaço, concluímos que o cangaço, então, para o Ministério Público é, de fato,

sinônimo de banditismo.

Recorte “C”

O cangaço enquanto vítima da sociedade

Quando no termo de defesa oral eu basiei a defesa dos meus constituintes na negativa do

crime, é porque eu poderia fazer com toda (incompreensível). Somando se alardiou

76

(incompreensível) a passagem de Lampeão e seu bando, todo e qualquer elemento se

aproveitava daquela oportunidade para cometer toda sorte de roubos, degloriamentos,

estupros, violencias brutaes, com a mascara Lampeonesca, quando talvez Lampeão

estivesse muito distante deste estado.

Lampeão, estou certo, tem sido uma vitima dos exploradores do momento, tanto assim,

que a policia em combate renhido que dera na Caiçara não reconhecera os inimigos.

Apenas por suposição e esta não merece prova para uma condenação ou pronuncia, porque

destarte nada merecia os depoimentos testemunhaes, e pela analyse jurídicas dos factos, os

autos são o acento legal e probante da clarividência da prova material dos factos.

(Alegações finais da Defesa, grifo nosso)

Com base nas alegações finais da Defensoria Pública, apresentadas no recorte “C” ,

podemos perceber que o sentido que emerge do discurso da defesa é o de que Lampião e seu

bando, na verdade, estão sendo vítimas da sociedade. Os queixosos e, em momento posterior,

as testemunhas, mesmo sem conhecer as figuras dos cangaceiros com propriedade, somente

de “ouvir dizer”, os apontaram como autores dos crimes acontecidos em Vitória, sendo assim,

aproveitando-se dessa falta de conhecimento dos acusados por parte dos sujeitos que fazem a

acusação, o Defensor Público transmitiu o sentido de que o acusado Lampião - e, portanto, o

grupo que o acompanhava -, não passava de “uma vitima dos exploradores do momento”,

pois muitos se aproveitavam da fama dos cangaceiros para cometerem crimes que,

provavelmente, seriam imputados ao grupo de Lampião.

Entendemos, pois, que o sentido que o Defensor Público atribui ao cangaço,

representado pelo seu chefe maior, Lampião, é o de que esses não passa de uma vítima da

sociedade nordestina da época.

• Dos resultados

Questão 3 Resultado

Que efeitos de sentido sobre o cangaço emergem dos discursos que compõem o processo?

• O cangaço enquanto sinônimo de

banditismo

• O cangaço enquanto vítima da sociedade

77

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foram muitos e longos os caminhos percorridos para a realização dessa pesquisa, mas

podemos afirmar, de certo, que estamos seguros do cumprimento de nosso dever.

Apresentemos, agora, o porquê dessa afirmação.

Após realizar todo o estudo teórico que embasa nossa pesquisa, recortamos partes do

processo que pudessem responder, então, às questões de pesquisa levantadas, as quais

correspondem a cada objetivo específico traçado.

Ao realizarmos a análise dos recortes, estruturalmente apresentada em forma de

petição inicial, discutimos e apresentamos as respostas às referidas questões.

Em relação à primeira questão, na qual indagamos como se dão as relações dialógicas

em processos judiciais, concluímos que tais relações, entre sujeitos envolvidos nos discursos

que fazem os processos, se dão com a participação do outro e do contexto sócio-histórico-

ideológico, desde o momento em que é impetrada a ação até o seu momento final: a decisão.

Chegamos a esse resultado, porque, ao analisarmos os recortes em nosso corpus, percebemos,

que nas partes retiradas de discursos como: o relatório do delegado, emitido ainda em fase

policial, primeiro procedimento processual criminal, depoimentos testemunhais, que

cronologicamente podemos enquadrá-los nas ações realizadas no meio da tramitação

processual e decisão do juiz, que, como podemos perceber, é o discurso responsável pelo

desfecho do processo, encontramos a participação de outros sujeitos nas construções

discursivas, com a referência direta ou indireta da participação desses sujeitos nos discursos,

além de haver a influência do contexto em que viviam os sujeitos participantes da ação nos

discursos por eles transmitidos.

Sobre a generalidade da questão, em compreender as relações dialógicas dos processos

judiciais como um todo, seja de natureza penal ou não, e não apenas as relações dialógicas do

processo em questão, há a presença do outro, bem como a influência do contexto sócio-

histórico-ideológico, em que se se situam os sujeitos envolvidos nas relações discursivas. São

advogados, promotores de justiça, vítimas, testemunhas, depoentes, réus, fatos, lugares,

contextos e outros que participam efetivamente da construção dos discursos; são vozes que

incidem direta ou indiretamente no discurso de quem fala.

É comum, por exemplo, os advogados e promotores de justiça tomarem como base,

para sustentação de suas teses, os discursos das testemunhas, que, para o direito, podem servir

de prova para suas alegações. Da mesma forma é comum, nos discursos jurídicos, os sujeitos

78

justificarem suas alegações com os fatos e circunstâncias advindas do contexto sócio-

histórico-ideológico, como quando, por exemplo, os advogados justificam as ações dos réus

com as circunstâncias as quais levaram ao acontecimento. Portanto, tanto a presença do outro

como a presença do contexto sócio-histórico-ideológico são situações que se apresentam de

maneira semelhante nos discursos jurídicos e que nos revelam as relações dialógicas dos

sujeitos envolvidos nas relações discursivas.

Para responder a segunda questão, na qual perguntamos quais seriam as técnicas

argumentativas utilizadas pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública, em processo

contra Lampião e seu bando, analisamos os discursos correspondentes às alegações finais,

momento em que tanto o Defensor Público quanto o representante do Ministério Público

levantam seus argumentos para convencer o seu auditório, o juiz, de que os réus devem ser

pronunciados e, consequentemente, submetidos ao julgamento da justiça, por terem de fato

realizado os crimes alegados pelas vítimas (tese de autoria do crime utilizada pela acusação)

ou de que os réus não devem ser pronunciados por não existirem provas de que a autoria foi

de fato de Lampião e seus comparsas (tese de negativa de autoria utilizada pela defesa).

No discurso da acusação, identificamos as técnicas argumentativas baseadas na

estrutura do real: com os argumentos de autoridade e a fortiori e as técnicas de ligação quase

lógicas: com argumentos da comparação e da transitividade; e, no discurso da defesa,

identificamos a técnica de ligação quase lógica, com o argumento da retorsão.

Ao responder a esta questão, pudemos perceber a importância dos estudos da

linguagem no campo da argumentação, a partir da Nova Retórica, para a área do Direito, pois

esses conhecimentos podem permitir aos representantes da defesa e da acusação de processos

judiciais um embate em que os discursos poderão se constituir na desconstrução da

argumentação do outro pelo domínio da técnica. E isso deverá repercutir na decisão final do

processo.

Correspondendo à terceira questão, na qual indagamos quais efeitos de sentidos sobre

o cangaço emergem do processo, verificamos que são dois os sentidos: 1) o cangaço é um

sinônimo de banditismo e 2) o cangaço é, na verdade, uma vítima da sociedade. Quanto ao

sentido de cangaço como banditismo, é forte a presença desse sentido em quase todos os

discursos que fazem o processo (discursos das vítimas, do delegado, das testemunhas e do

Ministério Público); no entanto, fizemos recortes de dois desses discursos, que consideramos

ser de grande relevância para a conquista da adesão do juiz e, portanto, importantes para a

decisão final do processo; são eles: o discurso de uma das testemunhas e o discurso do

Ministério Público, em suas alegações finais. Quanto ao sentido de cangaço como vítima da

79

sociedade, este pertence ao discurso da defesa, que, buscando sustentar a sua tese de negação

de autoria do crime, levantou argumentos para fortalecer esse sentido.

Sempre denotando o sentido de que o cangaço é sinônimo de banditismo, a acusação e

as testemunhas, em suas palavras, com base em outros discursos, desqualificaram

contundentemente os cangaceiros. Já a defesa, aproveitando-se da falta de conhecimento das

vítimas e das testemunhas sobre quem de fato era Lampião e os demais que compunham seu

grupo, por afirmarem apenas “por suposição”, defendeu a ideia de que qualquer outra pessoa

poderia ter cometido os crimes, fazendo-se passar por Lampião e seu grupo, quando os

cangaceiros poderiam estar muito longe do Distrito de Vitória, local onde ocorreu o fato.

Assim argumenta que Lampião e seu grupo podem estar sendo, portanto, vítimas de uma

acusação injusta.

Levando em consideração que os objetivos específicos da pesquisa eram: compreender

as relações dialógicas que se manifestam em processos judiciais; identificar e analisar as

técnicas argumentativas utilizadas pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública, em

processo contra Lampião e seu bando, e verificar os efeitos de sentido atribuídos ao cangaço

no processo criminal em questão, podemos constatar, assim, que todos eles foram alcançados.

No entanto, é decisão nossa não parar; pretendemos aproveitar o corpus da pesquisa para

outros estudos, seja sob a ótica da linguagem seja sob o olhar do Direito, sempre buscando

aprofundar a convergência entre o Direito e a linguagem.

Através dos estudos realizados, constatamos que agir, conscientemente, na construção

dos discursos jurídicos, considerando as relações intersubjetivas e as marcas do contexto

sócio-histórico e ideológico que perpassam essas relações, e compreendendo os efeitos de

sentido que podem ser atribuídos aos discursos e as diferentes possibilidades de sustentar as

suas teses, com argumentos que busquem consolidá-las, traz ao profissional do Direito, nas

diferentes categorias, maior possibilidade de conquistar a adesão do auditório. Dominar com

maestria a linguagem, pela consciência de sua existência enquanto instrumento capaz de

estabelecer vínculos, compromissos, marcas entre os sujeitos e entre estes e suas realidades

objetivas, é condição imprescindível a esses profissionais da área das ciências jurídicas, que

tão intensamente usam a linguagem na sua essência discursiva.

Portanto, hoje, ao vermos esse trabalho concluído, nos sentimos renovados de espírito,

sedentos de conhecimentos e, portanto, estimulados a suscitar novos questionamentos sobre a

cultura do cangaço, o Direito e a Linguagem em estudos futuros.

80

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82

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83

ANEXOS

84

ANEXO A

- DENÚNCIA -

Manoel Augusto Abath (Promotor Público)

85

Illmo Snr. Dr. Juiz de Districto da Comarca (incompreensível) pelo Escrivªº do 2º Cartorio. Recebo a denuncia. Designo o dia

(incompreensível) do corrente, ás 11hs, no 2º cartório, (incompreensível) a formação da culpa,

citados, na forma e sob as penas da lei, os denunciados e as testemunhas, e notificado o

Ministerio Público. Pfs _ 3-10-1927.

(incompreensível)

O Promotor público da comarca, usando das suas atribuições que lhe (são) conferidas, e,

baseado no inquérito policial e auto de declarações juntos, (vem) perante V. S. offerecer

denuncia contra os bandoleiros Virgolino Ferreira, vulgo Lampeão, Sabino Gomes de Goes,

Antônio Leite, conhecido também por Massilon e Benevides e seus comparsas, Francisco

Ramos, vulgo Mormaço, de 18 anos de idade, solteiro, sem profissão natural e residente no

logar Baxio do Ramos município de Araripe Estado do Ceará, Navieiro, Delfino, primo de

Lampião (incompreensível) no Pajehú, Coqueiro, Ezequiel irmão de Lampião, Luiz Pedro,

Virginio cunhado de Lampião, Mergulhão, natural do Pajehú, José Roque [incomprensível],

Pernambuco, Benedicto, Jatobá, Pinhão da Serra do Matto, Trovão, Miguel, de Cabrobró,

Euclides, Rio-Prêto, Pinga-Fôgo, da Parahyba, Lua-Branca, Pai Velho, Jararaca, natural do

Rio Manço, Antônio Farol, Valatão de Tal, Zé Latão, natural da Bahia, Luiz Sabino, filho de

criação de Sabino Gomes, Casca Grossa, Balão, Portuguez, primo de Jararaca, Relâmpago,

Bemtivi, Manoel Mauricio, João Vinte e Dois Jurema, As de ouro, Candieiro,

(incompreensível), Caiçara, Gato, Palmeira, Manoel Antônio, Cocada, Jurity do município de

Princeza Romeiro, natural do Piauhy, Tenente do Riacho do Navio, Sabiá do Ceará, André

Marinheiro e José Marinheiro Pernambucanos, José Roco, Manoel Leite e outros, pelos factos

criminosos que [incompreensível].

[incompreensível] onde praticaram toda sorte de depredações e roubos conforme se verifica

(incompreensível) de autos de queixa e depoimentos das testemunhas de fls a fls.

E como os denunciados assim (incompreensível) tinham comettido os crimes

previstos nos arts 294 §1º e 356 do Cd. Offerece esta promotoria a presente denuncia, para o

fim de julgada provada serem os denunciados punidos com as penas dos referidos arts. Pôr

86

concorrência as aggravantes dos §§ 2,4,5,7,11,12, [incompreensível] do art. 39 do referido

Codigo.

Por V. Sª que autoada esta, instaure a formação da culpa, inquirindo as

testemunhas arroladas as quais devem ser citadas para audiência no mesmo dia hora e logar

que forem designados (neste) os denunciados e sciente esta Promotoria.

Atrazado pôr (incompreensível) de serviço.

Rol de Testemunhas

José Pereira Umbelino Theotonio José do Nascimento Avelino Moreira do Nascimento João Porfirio da Silva Venancio Ferreira Alencar Todos residentes neste município.

Pau dos Ferros, 15 de setembro de 1927 Manoel Augusto Abath Promotor Público

87

ANEXO B

- RELATÓRIO DE CONCLUSÃO –

Jacintto Tavares Ferreira (Delegado)

88

Conclusão

Aos quatro dias do mês de agosto de mil novecentos vinte e sete, nesta cidade de Pau dos

Ferros, de meu cartório, faço estes autos conclusos ao Capitão Jacintto Tavares Ferreira,

muito digno Delegado Especial de Policia destas zonas; do que fiz este termo. Eu, Abílio

Deodato do Nascimento, escrivão, que, o escrevi.

Conclusos

Verifica-se dos presentes autos que no dia 10 de junho ultimo, foi a população deste

município sobresaltada com a incursão inesperada de um numeroso grupo de cangaceiros que

superando em perversidades os antigos (incompreensível) de Attila, depredaram, roubaram e

atentaram contra o recato da família, deixando o terror e a desolação por onde passavam.

Constata-se pelo depoimento das testemunhas de fls a fls, que esses bandidos

assaltaram e roubaram neste município as propriedades dos citados Aprizio Bernardino da

Silva, Vicente Ferreira de Lima, Antonio Roza, Francisco Thomaz de Aquino, José Moyses,

Manuel Ferreira de Lima, João Fernandes da Silva, Manuel José da Silva, Manuel Joaquim de

Queiróz, José Bellarmino da Silva, João Vicente da Silva, Coronel Marcelino Vieira e outros

causando-lhes um prejuiso de muitos contos de reis; que no logar Caiçara esse grupo de

bandidos atacou um contingente da força publica matando o soldado José Monteiro de Mattos

em quem os bandidos (incompreensível) seu ódio, apunhalando-o depois de morto e

esmagando parte da cabeça, conforme se verifica do auto de exame cadavérico de fls; que

essa horda de bandidos era chefiada pelo scelerado Virgulino Ferreira Lampeão tendo por

auxiliares Sabino Gomes de Góes e Antonio Massilon Leite também conhecido por Antonio

Leite e Massilon Benevides e della faziam parte os cangaceiros Navieiro, Delfino, Mormaço,

Ezequiel, Luiz Pedro, Virginio, Valatão, Mergulhão, Coqueiro, José Roque, Felix, Miúdo,

Serra Dumam, José Côco, José Pretinho, Mourão, Benedicto, Jatobá, Alagoano, Pinhão,

Trovão, Miguel, Euclides, Rio Preto, Pinga Fogo, Lua Branca Pae Velho, Antonio Farol,

Jararaca e outros cujos nomes não foi possivel saber; que uma parte da força atacada ia de

automóvel, sendo que dois desses carros ficaram no logar do ataque e foram incendiados

pelos bandidos; que esse grupo seguia montado em animaes que roubara e agia com rapidez,

uma ânsia (vandálica) de praticar o mal.

Os factos narrados pelos queixosos e testemunhas são do dominio publico,

nenhuma (incompreensível) havendo sobre seus autores e, assim:

Considerando que os indiciados commetteram crimes inafiansaveis;

89

Considerando que há prova plena dos delictos praticados;

Considerando mais que esses indivíduos vivem ambulantes pelos sertões na

pratica continua de crimes, requeiro ao Exmº Dr. Juiz de Direito da comarca, de acordo com o

numero 2º do artigo 71 do Cod. Do Processo Penal do Estado a prisão preventiva dos

referidos indiciados Virgolino Ferreira Lampeão, Sabino Gomes de Góes, Antonio Massilon

Leite, Navieiro, Delfino, Mormaço, Ezequiel, Luiz Pedro, Virginio, Valatão, Mergulhão,

Coqueiro, José Roque, Felix, Miúdo, Serra Dumam, José Côco, José Pretinho, Mourão,

Benedicto, Jatobá, Alagoano, Pinhão, Trovão, Miguel, Euclydes, Rio Preto, Pinga Fogo, Lua

Branca Pae Velho, Antonio Farol, Jararaca, deixando de fase-lo quanto aos demais

cangaceiros pertencentes ao citado grupo, por não ter sido possível até agora saber-lhes os

nomes ou apellidos.

O escrivão depois de juntar o retrato do grupo tirado em Limoeiro, o Estado do

Ceará, onde figura grande parte da horda de bandidos que commetteu os crimes narrados nos

presentes autos, neste município, para (incompreensível) reconhecimento dos culpados,

remetta o presente inquérito ao Meretissimo Dr. Juiz de Direito para os fins do requerimento

contido neste relatório e demais tramites legaes.

Pau dos Ferros, 5 de Agosto de 1927

Jacintto Tavares Ferreira

90

ANEXO C

- ALEGAÇÕES FINAIS –

Claudionor Telógio de Andrade (Promotor de Justiça)

91

Meretissimo e Douto Julgador!

Dos presentes autos, vê-se resultar (grave) evidentemente a responsabilidade dos

denunciados Virgolino Ferreira (vulgo Lampeão) e outros, que faziam parte do seu bando

sinistro. A nossa historia politica, literária, nunca registrou fatos tão horripilantes, como os

que tem praticado Lampeão e o seu grupo. É uma cousa verdadeiramente dolorosa, que

constrange e comove a alma de todos. Lampeão, como é notoriamente, sabido, tem sido e

continua, sendo o terror dos sertões nordestinos, tem sido um verdadeiro (incompreensível),

um fiel da infâmia, da desgraça e da infelicidade, sorrateiro e levianamente (incompreensível)

das famílias sertanejas do nordeste!

A imaginação humana jamais descreveu typos destes maiz, que além de roubar, matar,

deflorar, etc..., praticam todos os actos de crueldade, repelidas, pelos próprios irracionais.

Infelismente os poderes públicos ainda não tomaram uma medida seria, para a

capturação do chefe do banditismo e seus negrejados comparsas.

Em quase todos os Estados do nordeste Lampeão está pronunciado, restava no Rio

Grande do Norte. Os atos de crueldade praticados por Lampeão, tendo sido os mais horríveis

possíveis, desafiando a mais ardil e astuta curiosidade humana.

Portanto em primeiro logar quero de acôrdo com o oficio e certidão de fls 104 a 106

verso de conformidade com o artº (incompreensível) nº 1º do Codigo Penal Brasileiro, requer

a extinção da ação penal, quanto aos bandidos de nomes José Leite de Sant’ana (vulgo

Jararaca) e de Francisco Ramos (vulgo Mormaço), visto que os mesmos morreram na cidade

de Mossoró, conforme a certidão e oficio de fls citadas.

E quanto aos demais bandidos, opino pela pronuncia dos mesmos em virtude dos

depoimentos testemunhaes afirmarem que eles, quando passaram por este município,

cometeram as depredações, roubos e toda sorte de abusos. Assim sendo espero que sejam os

mesmo pronunciados na forma e rigor da lei, por ser um acto de (incompreensível) e

(incompreensível).

Justiça!

Pau dos Ferros, 21 de janeiro de (incompreensível)

Claudionor Telogio de Andrade.

92

ANEXO D

- JULGAMETO DA DENÚNCIA -

Janúncio Gorgônio de Nóbrega (Juiz)

93

Vistos e examinados estes autos, etc.

Julgo, em parte, procedente a denuncia de fls, quanto aos denunciados Virgolino

Ferreira, vulgo Lampeão, Sabino Gomes, Antônio Leite, tambem conhecido por Massilon e

Benevides, se ainda quanto aos seus comparsas Navieiro, Delfino, residente em Pajeú,

Coqueiro, Ezequiel, Luiz Pedro, Virginio, Mergulhão, natural de Pajeú, José Roque Oliveira,

vulgo Alagoano, natural de Palmeira dos Indios, Feliz, Miúdo, Serra d’ Uman, José Côco,

José Pretinho, de Pajeú, Mourão, de Pernambuco, Benedito, Jatobá, Pinhão da Serra do Mato,

Trovão, Miguel, natural de Cabrobró, Euclides, Rio Prêto, Pinga Fogo, da Parahyba, Lua

Branca, Pae Velho, Antonio Farol, Valatão de tal, Zé Latão, natural da Baía, Luiz Sabino,

Casca Grossa, Balão, Portuguez, (primo de Jararaca), Relambago, Bentiví, Manoel Mauricio,

João Vicente, Dois Jurema, Az de ouro, Candieiro, Capão, Caiçara, Gato, Palmeira, Manoel

Antonio, Cocada, Jurití, natural de Princeza, Romeiro, natural de Piauí, Tenente do Riacho do

Navio, Sabiá, do Ceará, André Marinheiro e José Marinheiro, de Pernambuco, José Bóco e

Manoel Leite, para pronunciar, como os pronuncio, incurso cada um nas penas do art. 294 §

1º da Consol. Das Leis Penaes, e do art. 356 da cit. Consolidação, visto como se acham

provados os fatos argüidos na denuncia de fls, sujeitando-os à prisão e livramento.

Com efeito, resaltam dos depoimentos das testemunhas, tanto do inquérito, como

da formação da culpa, que, no dia 10 de junho de 1927, no logar “Caiçara”, do município de

Pau dos Ferros, os denunciados, chefiados por Lampeão, atacaram inexperadamente o

destacamento do então Te. Napoleão Agra, produzindo na pessoa do soldado José Monteiro

de Matos, os ferimentos descritos no auto de exame cadavérico de fls. 29, dos quaes lhe

adveio morte instantânea.

A subtração dos objetos, animais e dinheiro, de que tratam os autos, feita pelos

referidos denunciados, empregando violência, acha-se igualmente provzada dentro dos

mesmos autos. O presente processo, que teve marcha por demais demorada, por motivos

diversos, teve ainda grande e inexplicável, demora em chegar as minhas mãos, para os

competentes fins, e só por reclamação deste juízo foi dado por sua existência na Agencia dos

Correios, sendo de (incompreensível) que tal demora tenha sido motivada pela mudança que

se deu da dita Agencia, de um para outro prédio, passando assim por desapercebida a

existência, ali, do dito processo.

Julgo, porém, improcedente a denuncia, quanto aos denunciados Francisco

Ramos, vulgo “Mormaço”, e quanto a Jararaca e Colchete, para julgar extinta a ação, como o

94

faço, de vez que consta dos autos a morte dos mesmos, conforme se vê das certidões e

documento de fls. 104 e 105.

Aos denunciados, segundo se observa dos autos, foi, na formação, em acordo com

o art. 279 do Cod. Do Proce. Pen. Do Estado, de 1918, que rege a espécie, dado um defensor,

o qual assistiu a todos os termos do processo.

O escrivão lance os nomes dos réos no rol dos culpados e contra eles expeça os

competentes mandados de prisão.

P. intime-se, e, tornada irrevogável, transcreva-se, depois

do que se remetam os autos ao Superior Tribunal de Justiça, para quem recorro deste

despacho, na parte em que julguei prescrita a ação, na forma legal – voltem os autos.

S. Miguel, 21 – Dezembro – 933.

Januncio Gorgonio da Nobrega

95

ANEXO E

- DEPOIMENTO –

Testemunha João Porfírio da Silva

96

Quarta testemunha: João Porphirio da Silva, de trinta anos de idade, militar, cazado, natural

deste estado, destacado neste povoado, sabendo ler e escrever e aos costumes disse nada,

Testemunha que prestou o compromisso legal e sendo inquirido sobre os factos acima

declarados, disse que no dia dez de junho ultimo sahiu deste povoado fazendo frente da força

commandada pelo tenente Napoleão Agra para socorrer a fazenda Aroeira de José Lopes, que

se soube ter sido atacado por um grande grupo de cangaceiros chefiado por Virgulino Ferreira

Lampeão, Antonio Massilon Leite e Sabino Gomes; que o depoente seguiu a pé e o tenente

Napoleão ficou aguardando carros que vinham de Alexandria para ajudar a levar a força; que

chegada a força a Caiçara, foi ahi alcançada pelo referido official que vinha com os

automoveis e outras praças; que na ocazião em que chegaram os automóveis, uma saraivada

de balas varreu o campo, onde a força se encontrava; que o tenente com as outras praças já

saltou sob forte tiroteio, pois, que, o grupo de cangaceiros viajando a Cavallo já havia

deixado a fazenda Aroeira, vindo pela mesma entrada (incompreensível) a força; que

estabeleceu-se o combate e depois de uma hora de fogo, a força teve de recuar por ter si

exgotado sua munição; que ficaram no campo dois automóveis que não puderam ser retirados

devido a vehemencia do fogo inimmigo; que retirada a força para esta povoação onde veio

intrincheirar-se os cangaceiros ficaram livres no campo e incendiaram os dois automoveis alli

deixados; que esses automóveis pertenciam aos cidadãos Antonio de Almeida e a Antonio

Caetano, residentes em Alexandria e ficaram inteiramente inutilisados; que morreu nesse

combate o soldado José Monteiro de Mattos, notando-se que depois a tiros, na lucta, os

bandidos (incompreensível)-lhe desenas punhaladas, cortaram-lhe uma orelha e lhe

esmagaram-lhe um lado da cabeça, a (incompreensível) de armas; que esse bando de

scelerados, por onde passava, saqueava, depredava e até violentava moças e senhoras; que não

se sabia no momento os nomes dos bandidos que constituiam essa numeroza horda de

malfeitores; depois, porém, foi se sabendo que entre outros, faziam parte os cangaceiros

Mormaço, Ezequiel, Navieiro, Luiz Pedro, Antonio Massilon Leite, também conhecido como

Antonio leite, por Massilon e ainda (incompreensível), por Massilon Benevides, Virginio,

Valatão, Mergulhão, Coqueiro, José Roque, Felipe, Miúdo, que tendo parte no assalto a

Apody, Serra do Uman, José Côco, José Pretinho, Mourão, Jatobá, Alagoano, Trovão, Pinhão,

Rio Preto, Luiz Sabino e mais muitos outros, cujos os nomes não foi possível obter-se; que no

dia seguinte ao combate o tenente Napoleão mandou uma patrulha verificar o que os bandidos

haviam deixado no campo da lucta, e então alli, além do soldado morto já descripto, foi

97

encontrado enterrado na areia do riacho um cangaceiro também morto no combate, a quem os

parceiros haviam sepultado juntamente com a carona de sua montada; que esse cangaceiro era

preto alto, de cabellos carapinhos, desdentado, de barba e bigode raspados, nariz chato, de

(incompreensível) forte e musculoza, contando que se chamava José Relampago ou Patrício –

98

ANEXO F

- ALEGAÇÕES FINAIS -

Francisco de Assis Moraes (Defensor)

99

Emerito julgador

Quando no termo de defesa oral eu basiei a defesa dos meus constituintes na negativa do

crime, é porque eu poderia fazer com toda (incompreensível). Somando se alardiou

(incompreensível) a passagem de Lampeão e seu bando, todo e qualquer elemento se

aproveitava daquela oportunidade para cometer toda sorte de roubos, degloriamentos,

estupros, violencias brutaes, com a mascara Lampeonesca, quando talvez Lampeão estivesse

muito distante deste estado.

Lampeão, estou certo, tem sido uma vitima dos exploradores do momento, tanto assim, que

a policia em combate renhido que dera na Caiçara não reconhecera os inimigos. Apenas por

suposição e esta não merece prova para uma condenação ou pronuncia, porque destarte nada

merecia os depoimentos testemunhaes, e pela analyse jurídicas dos factos, os autos são o

acento legal e probante da clarividência da prova material dos factos.

Quanto a morte do soldado José Monteiro de Mattos não se poderá provar que fora o

inimigo na luta, de vez que os seis próprios companheiros se devoravam como feras bravias,

na ancia e desejo de fugir do combate. Portanto e antes das considerações acima, prço a V. S.

a impronuncia da denuncia de fls 2, para impronunciar os denunciados por ser de direito e de

justiça.

Pau dos Ferros 24 de janeiro de 1932

Francisco d’Assis Moraes

Defensor nomeado

100

ANEXO G

- SENTENÇA-

João Afonso da Silva Pordeus (Juiz)

101

102

103

104

105

106


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