Date post: | 08-Jan-2016 |
Category: |
Documents |
Upload: | heraclito-fontaine |
View: | 229 times |
Download: | 2 times |
of 59
Biblioteca de Cincias Humanas
CarI Schmitt
CATOLICISMO ROMANO
E
FORMA POLTICA
Prefcio, traduo e notasdeAlexandre Franco de S
1998
RamischerKatholizismus undpolitsche Form.Carl Schmtt
- 19H5-
Editor: Hugin Editores, Lda.Apartada 1336 - 1OC3 Lisboa CodexTel.: (01)813 OI 39-Fax: (OI) 8144H 13
Email: [email protected]
Traduo: Alexandre Franco de 5
Capa: Jlio Prata Sequeira
Maquetagem: Hugin Editores, Lda.
Impresso, montagem e acabamento: Sociedade Astria, Lda.
ISB1U: 37a-B31O-77-3
Depsito Legal: 123066/98
Primeira edio: Novembro de 1998
S> 19B4, Kletc-Cotta, Stuttgart
El 199B, Hugin Editores, para a edio portuguesa
Reservados tndos os direitos de acorda com a legislao em vigor
PREFCIOEDIO PORTUGUESA
considerado por Carl Schmitt como uma das suas obras centrais,_ Catolicismo Romano e Forma Poltica constitui um texto passvel demltiplas interpretaes. Ele , ao mesmo tempo, uma apologia retrica
da Igreja catlica romana, um elogium, como o prprio Carl Schmittreconhece no seguimento do comentrio de Hans Barion1, e um ensaio
onde se podem ver esboados os conceitos fundamentais do seupensamento poltico, os quais estaro presentes nas obras escritas en
tre os anos 20 e 30, a fase mais fecunda da sua actividade em obrascomo A Ditadura, Teologia Poltica, A Situao Histrico-Espiritual doParlamentarismo Hodierno, Doutrina da Constituio, O Conceito do Poltico ou A
poca da Neutralizao e da Despoliti^ao.O tema central do pequeno livro de Carl Schmitt , no entanto,claro, a partir do enunciado explcito do ttulo: Catolicismo Romano e
Forma Poltica. O catolicismo romano no tem a sua essncia no planodo poltico. Contudo, embora a sua essncia pertena a uma outra
dimenso, ele pode assumir no plano do poltico um papel especficoque essa mesma essncia lhe assinala. a determinao do papel docatolicismo romano no plano do poltico, e a tentativa de encontrar,
partindo dessa determinao, as posies polticas que ao catolicismo,diante da situao poltica contempornea, so exigidas, que constitui
o ponto nuclear das anlises desenvolvidas por Schmitt neste livro.O desenvolvimento do presente escrito pode ento sercompreendido sob a articulao de trs questes fundamentais, as quais,
embora no explicitamente elaboradas, lhe esto estruturalmentesubjacentes. na formulao implcita destas questes, e na tentativa
Ca ri Schmitt
de lhes esboar uma resposta, que todo o texto encontra a unidade doseu desdobramento. A primeira questo fundamental consiste natentativa de compreender a essncia do catolicismo romano. Procurando o
que caracteriza essencialmente o catolicismo romano, o texto progridetambm negativamente, fazendo ver o que o catolicismo romano
essencialmente no , ou seja, mostrando o erro de posies que, dentroe fora da confisso catlica, se propunham atribuir ao catolicismo
romano uma essncia que no era a sua. A segunda questo funda-mental consiste na pergunta acerca da situao poca/ em que o catolicismo
contemporaneamente se insere. Identificado o catolicismo na sua essncia,importa ento caracterizar os traos essenciais da situao poltica,
histrica e espiritual contempornea, de modo a compreender comoa essncia do catolicismo romano se pode articular com tal situao.
A terceira questo fundamental consiste na pergunta por essa mesmaarticulao, ou seja, na tentativa de tematizar opapelque o catolicismo romano,
uma ve^ identificado na sua essncia, pode desempenhar numa poca histrica com ascaractersticas da contempornea. E se o presente livro se desenvolve em funoda formulao implcita das trs questes fundamentais referidas, a
articulao entre os dois termos conjugados no seu ttulo catolicismoromano e forma poltica encerra j implicitamente tambm a respostaque a cada uma assinalada.
Considerando a primeira questo, Schmitt caracteriza ocatolicismo romano como uma compkxio oppositorum. O livro comea
alis como uma descrio irnica das oposies possveis no seio doprprio catolicismo, e das vrias alianas^estabelecidas pelo catolicismo
romano com o poder poltico vigente, seja esse de que natureza for,concluindo que com cada mudana da situao poltica, so mudados
aparentemente todos os princpios, fora um nico: o poder docatolicismo2. Contudo, se o catolicismo pode ser determinado por
Schmitt como uma compkxio oppositorum, a compkxio oppositorum que oconstitui no pode ser confundida com uma sntese de antteses, no
sentido hegeliano, com uma sntese em cuja imediatidade se conjugariaa oposio de vrios momentos ou mediaes antitticos. Schmitt
apressa-se a esclarecer que Igreja catlica no se adequa nem odesespero das antteses nem a altivez ilusria da sua sntese3. Deste
Catolicismo Romano e Forma Poltica
modo, a compreenso schmittiana do catolicismo romano, acompreenso que o leva a determin-lo como uma complexio oppositorum,
no pode ser confundida com uma compreenso dialctica. Por umlado, o catolicismo romano, na medida em que um complexo dasmais extremas oposies, na medida em que as posies mais dspares
encontram lugar no seu seio, no pode ser identificado com nenhummomento dialctico, com nenhum ponto ttico ou antittico. Por
outro lado, ele no pode ser confundido com o "terceiro mais elevado",com a sntese das oposies. Como a sntese dialctica, o catolicismo
romano conjuga em si as mais extremas oposies. Mas, ao contrariodesta sntese, a unidade constitutiva da complexio oppositorum catlica
romana surge, no a partir da mediao dos vrios opostos, no apartir da integrao e negao no sentido da Aufljebung hegeliana destes opostos como momentos ou passos de um progresso dialctico,
mas a partir de uma vontade que constrange a uma unidade formaluma realidade em si mesma informe e irredutvel a mediaes, ou seja,
a partir de uma fora agregadora que, determinada como uma vontadede deciso (Wille %ur De^ision), como se lhe refere Schmitt no presente
texto4, se concretiza na doutrina catlica romana da infalibilidadepapal. Por outras palavras, o catolicismo romano, na medida em que uma complexio oppositorum, na medida em que abarca no seu seio as mais
extremas oposies, tem uma dimenso universal. Mas a universalidadedo catolicismo romano distingue-se da totalidade prpria da sntesedialctica. Se, numa perspectiva dialctica, a realidade intrinsecamente
racional, e se, na medida em que o , a realidade se articula numasucesso progressiva de mediaes necessrias, as quais surgem comomomentos de uma totalidade, a realidade , na perspectiva catlicaromana, algo informe e disperso, capaz de receber uma ordem racional,uma forma e com ela uma orientao5 , apenas pela vontade de
deciso que o dogmatismo catlico romano privilegiadamente expressa.O catolicismo romano assume assim a realidade como ela , ou seja,como algo obscuro e informe; deste modo, ele, como escreve Schmitt,
permanece na existncia concreta, algo vivo6. E assumindo arealidade tal como , na obscuridade que essencialmente lhe pertence,que o catolicismo romano configura, atravs daquilo a que poderamos
Cari Schmitt
chamar a sua vontade de deciso enformadora, a sua racionalidadeespecfica; assim que Schmitt acrescenta ser o catolicismo, para alm de algo vivo, racional na medida mais elevada7.
Schmitt caracteriza a racionalidade especfica do catolicismo *romano, ou seja, a capacidade de se constituir como uma compltxio
oppositorum, a capacidade de unir sob uma forma agregadora uma ,realidade em si mesma marcada por uma opacidade dispersa deoposies, como uma racionalidade institucional e jurdica8. E a
racionalidade jurdica ou institucional prpria do catolicismo romanodetermina-se, segundo Schmitt, por assentar no desempenho rigoroso ^
do princpio da representao9. O conceito de representao, na sua *distino do conceito de delegao, constitui um dos pontos centrais do )pensamento poltico de Schmitt. Para Schmitt, a representao >
(Reprsentation) distingue-se essencialmente da delegao (Verfretutig) em jfuno do elemento que nelas se substitui: na delegao, a realidade t
que delega poder-se-ia expressar a si mesma, sendo apenas porconvenincia substituda por uma outra que, no obstante ser do ^
mesmo plano em que ela se integra, se expressa no seu lugar; narepresentao, pelo contrrio, a realidade representada no , segundo >a expresso de Carl Schmitt em 1928, na Doutrina da Constituio, visvel !e presente, no podendo ser seno na medida mesma em que e )
representada. Como escreve Schmitt: Representar quer dizer tornar )visvel e presentificar um ser invisvel atravs de um ser publicamente >
presente. A dialctica do conceito est em que o invisvel seja }pressuposto como ausente e, no entanto, ao mesmo tempo, seja tor- ,.
nado presente10. Assim, se a delegao acidental, exercida circunstancialmente por convenincia do seu exerccio, a representao
necessria, na medida em que o representado apenas no e pelorepresentante, ou seja, na medida em que o representado depende do '
representante para ser. A realidade invisvel e ausente que o catolicismo -1romano representa , segundo Schmitt, o prprio Cristo,pessoalmente, o Deus que se tornou homem na realidade histrica'1. .
Cristo, a realidade invisvel e ausente, torna-se visvel e presente na #Igreja catlica romana; melhor dizendo: a sua invisibilidade e a sua
ausncia, nunca superadas, tornam-se visveis e presentes na e pela10
Catolicismo Romano e Forma Poltica
Igreja catlica romana. A Igreja catlica romana ento Cristo, namedida em que Cristo no no se torna presente ou visvel
seno atravs da sua representao pela Igreja catlica romana. E Cristo,o Deus tornado homem, a Igreja catlica romana, na medida em quea Igreja catlica romana no constituda na sua essncia seno comoa representao de Cristo.
A determinao do catolicismo romano atravs do desempenhodo princpio da representao, ou seja, atravs de uma racionalidadeespecfica que lhe permite constituir-se como uma complexio oppositorum,unida e orientada e, nessa medida, enformada sob a unidade da
forma de umavontade dogmtica de deciso, conduz segunda questofundamental referida como central no desdobramento do texto: acaracterizao da situao epocal contempornea. Segundo Schmitt, a
situao poltica e espiritual contempornea determina-se precisamentepela sua incapacidade de forma e, consequentemente, pela impotncia
da vontade de deciso que essa mesma forma exige. Por outras palavras,a poca contempornea caracteriza-se, segundo Schmitt, pela carnciado princpio da representao. A racionalidade contempornea, a
racionalidade de uma poca caracterizada por aquilo a que Schmittchama um pensar econmico e tcnico, ope-se directamente racionalidade catlica romana, na medida em que a primeira se constitui
enquanto tal, na sua especificidade, na prpria medida em que lhefalta aquilo cuja presena caracteriza a segunda o princpio da
representao ou, o que o mesmo, a capacidade de forma. Contudo,a oposio entre o catolicismo romano e a poca moderna no podeser encarada como uma contraposio dialctica. Escrevendo que paraum catlico, se algum quisesse fazer da sua Igreja um plo contrrio
poca mecanicista, isso teria de surgir como um elogio duvidoso12,pois ela tornar-se-ia no desejado complemento do capitalismo, num
instituto higinico para os sofrimentos dos combates da concorrncia,num passeio de Domingo ou numa estncia de Vero do citadino13,Schmitt aponta para a natureza dessa oposio. A Igreja catlica romana
no pode ser compreendida, na sua natureza, como o contrapontodialctico do mecanicismo e da racionalidade econmica, pois, se ofosse, ela pertenceria a esta mesma racionalidade. Longe de ser
Carl Schmitt
compreensvel sob a determinao do pensar econmico e tcnico,como uma compensao irracional e emocional do excesso de
racionalidade desse mesmo pensar, longe de ser compreensvel comocontraponto do mecanicismo e da racionalidade econmica e tcnica,
contraponto esse que seria apenas pensvel a partir desta mesmaracionalidade, o catolicismo romano tem um outro modo de pensar caracterizvel como jurdico ou institucional , uma outra
racionalidade caracterizvel como representativa , que pelo pensareconmico e tcnico no pode ser abarcado nem compreendido.
A tematizao de uma poca da racionalidade econmica e tcnicano exclusiva de Schmitt. Ela perpassa por textos de escritores seus
contemporneos, como o caso de Spengler, de Jnger ou deHeidegger. Considerando-se a caracterizao por Schmitt da poca dopensar econmico e tcnico pela sua incapacidade de representao,
ou seja, pela sua incapacidade de considerao de uma realidade que,sendo em si mesma intangvel e invisvel, apenas pode ser tangvel evisvel num e atravs de um representante que tenha essas
caractersticas, seria particularmente frutfero o estabelecimento deum paralelo entre o pensamento de Schmitt e Heidegger no tratamento
da questo da tcnica. Para Heidegger, particularmente na sua obrapstuma mais relevante, publicada apenas em 1989, nos Contributospara
aFilosofia, escritos entre 1936 e 193814, a poca da tcnica determinadapor aquilo a que ele chama o abandono do ente pelo ser (Seinsierlassenbeit)
e pelo conseqente esquecimento do ser pelo homem {Seinsvergessenheii).E a relao entre o ser e o ente considerada por Heidegger numa
perspectiva caracterizvel, utilizando uma terminologia schmittiana,como representativa. O ser no (ist) em si mesmo; e, para ser (no
sentido do verbo wesen), o ser s no e pelo ente, ou seja, para utilizaruma terminologia schmittiana, o ser s como representado num ente
constitudo enquanto tal como representante. A histria determina-se noseu percurso, segundo Heidegger, pelos vrios modos de o ser se
representar no ente, de o ser se tornar ser no ente (pelos vrios modosdaquilo a que Heidegger chama lVesm$, e pelos vrios modos de o
homem, de acordo com este tornar-se ser do ser no ente, compreendero prprio ser. Dir-se-ia ento que a caracterizao por Heidegger da
Catolicismo Romano e Forma Poltica
poca da tcnica como a poca em que o ser abandonou o ente, ouseja, em que o ser no ente pela sua retirada, pela sua ausncia,
corresponde caracterizao da poca da tcnica por Schmitt atravsda sua carncia de representao. Nesta poca, o ente por si s, semreferncia ao ser. Por outras palavras, o ente concebido fora doprocesso de representao. O ente aqui apenas aquilo que nele
ntico, visvel, tangvel; ele no pode representar. E o ser, o qual spode ser se for representado no ente, no havendo o ente enquanto
representante, no pode deixar de ser reduzido a um puro nada.O pensar econmico e tcnico caracteriza-se ento pelaradicalidade do seu caracter redutor. S do que visvel e tangvel,segundo o critrio deste pensar, se pode dizer que seja. O representado,
ou seja, a realidade invisvel e intangvel que necessita do processorepresentativo para se tornar, no representante, visvel e tangvel, no agora nada seno um "reflexo", uma "emanao" ou um
"espelhamento"15 da realidade material. E a realidade material, aquiloque visvel e tangvel, no seno aquilo que na sua visibilidade etangibilidade, no se podendo considerar o representante de uma
realidade de outra dimenso por ela representada. Considerado a partirda sua ligao com a esfera do poltico, dir-se-ia que o pensar econmico
e tcnico conduz mecanizao e automatizao das relaes polticas,e das relaes humanas em geral, ou seja, desumanizao dessasmesmas relaes. Escrevendo que diante de autmatos e de mquinasno se pode representar16, e que os financeiros americanos e os
bolchevistas russos encontram-se juntos no combate pelo pensareconmico, isto , no combate contra os polticos e os juristas17,Schmitt esclarece que em causa est, na poca do pensar econmico etcnico, no combate do pensar econmico e tcnico contra o pensar
representativo, a prpria sobrevivncia do poltico. Sem a refernciaquilo que Schmitt chama um etbos de convico, isto , sem a
autoridade legitimada pela remisso a uma idia, a uma realidade que,sendo invisvel, representvel, ou seja, passvel de ser tornada visvel
apenas mediante um processo de representao, no possvel apermanncia do poltico e da ordem que o sustenta. Como escreve
Schmitt: Nenhum sistema poltico pode sobreviver sequer a uma
13
Carl Schmitt
gerao com simples tcnica e afirmao de poder. Ao poltico pertencea idia, pois no h nenhuma poltica sem autoridade e nenhuma
autoridade sem um ethos da convico18. Se a realidade no tem umaestrutura racional que lhe seja intrnseca, o poltico no faz, para
Schmitt, necessariamente parte da realidade, isto , na faz parte darealidade como uma exigncia de uma sua essncia hipottica. Falando
sobre a possibilidade de o pensar econmico e tcnico ganhar o seucombate contra o pensar representativo, e de o poltico desaparecer
da prpria realidade, Schmitt admite: Se e quando surgir este estadoda terra e da humanidade, no sei. Por agora ele no est c19. Mas a
derrota do poltico por um pensar redutor, econmico e tcnico,encontra-se presente como possibilidade. A despolitizao uma
possibilidade em aberto e ela que, na situao contempornea, estpara deciso. Assim, justamente neste ponto que pode ser abordada
a terceira questo fundamental orientadora do texto de Schmitt: quepapel reservado ao catolicismo romano, considerando-se a sua essncia
e as caractersticas fundamentais do pensar econmico e tcnicodeterminantes da poca contempornea? Que papel dever estar
reservado Igreja catlica romana, numa poca caracterizada pelacarncia do princpio da representao, e pelo perigo para a
permanncia e conservao da esfera do poltico que desse mesmoprincpio depende?
A Igreja catlica romana, enquanto complexio oppositorum, constitudaatravs da unidade formal possibilitada pela fora agregadora de umavontade dogmtica de deciso, surge como o modelo paradigmtico
do Estado enquanto forma da sociedade poltica. A Igreja catlicaromana, no sendo confundvel com um Estado, com a forma dasociedade poltica, fornece, no entanto, o exemplo das estruturas que
o determinam enquanto Estado. Do mesmo modo que a Igreja catlicaromana, o Estado poltico moderno uma complexio oppositonm.Nele
entram em conflito diferentes interesses, perspectivas e mundividnciasdistintas, culturas e sensibilidades diversas. Mas o Estado s se constitui
como Estado se multiplicidade dispersa das oposies for justapostauma fora agregadora, um princpio formal de unidade, expresso na
deciso originria de criao e manuteno dessa mesma unidade. EU
Catolicismo Romano e Forma Poltica
ao sujeito que detm esta deciso que Schmitt chama, na sua Teologia'Poltica, soberano: Todo o direito "direito de situao". O soberanocria e garante a situao como um todo na sua totalidade. Ele tem omonoplio desta ltima deciso20. O soberano poltico representa opovo que num Estado se constitui. Contudo, o povo que por ele
representado, longe de consistir numa realidade emprica, no conjuntodisperso dos indivduos que pertencem ao povo, antes a idia da suaunidade, ou seja, algo meramente ideal, invisvel e intangvel, algo
exclusivamente representvel, cuja visibilidade dependenecessariamente do processo representativo Se o povo, enquantounidade ideal e no enquanto sujeito emprico, se constitui enquantopovo apenas ao ser representado pelo seu soberano identifique-se
esse soberano com o povo emprico (de acordo com o que Schmittcaracteriza, na Doutrina da Constituio^ como o "princpio democrticoda identidade"21) ou no , justamente a permanncia do povoenquanto tal que posta em causa ao serem ameaados, na pocacontempornea, o exerccio da soberania, o princpio da representaoe a sobrevivncia da esfera do poltico dele dependente. A Igreja catlicaromana, na medida em que a sua autoridade assenta no exerccioinconfundvel do princpio da representao, na medida em que ela
representa algo que no pode ser confundido com nada deimediatamente emprico e visvel, algo cuja realidade depende daprpria realidade da Igreja, dever ento entrar na luta contra o pensar
econmico e tcnico, esforando-se por devolver ao Estadocontemporneo o princpio da representao que nele, devido propagao deste mesmo pensar, se arrisca a ser esquecido. Da que
Schmitt possa escrever acerca da Igreja que ela quer viver com o Estadoem comunidade particular, estar diante dele como parceira em duas
representaes22. Combatendo abertamente um socialismo ateu eexplicitamente materialista, para o qual a realidade no seno o quese encontra no plano da visibilidade, representado sobretudo pelo
anarquismo de Bakunine, a Igreja catlica romana ter de se esforarpor devolver ao Estado moderno ocidental a capacidade da
representao que originariamente lhe pertencia. Diante doparlamentarismo contemporneo, que confunde j a delegao
15
Carl Schmitt
(Vertnto com a representao i^prsentation), tomando o deputadoparlamentar como um "representante de interesses e de pessoas
concretas, e no da totalidade do povo na sua unidade ideal -confusoessa que aprofundada pelo sistema de "representao" sovitico, no
qual os "representantes" no so seno comissrios dos produtores,expressando, no uma idia, mas a coisa real" que o processo de
produo" constitui -, cabe Igreja catlica romana chamar o Estadomoderno ocidental assuno do princpio representativo, o qual,
embora constituindo-o na sua essncia, se encontra nele obscurecido.
Lisboa, Maro de 1998
Alexandre Franco de S
CATOLICISMO ROMANOE
FORMA POLTICA24
Hum sentimento anti-romano. Dele alimenta-se aquele combatecontra o papismo, o jesuitismo e o clericalismo que movimentaalguns sculos da histria europia, com uma mobilizao gigantesca
de energias religiosas e polticas. No foram apenas sectrios fanticos,mas geraes inteiras de protestantes e de cristos greco-ortodoxospiedosos que viram em Roma o Anti-Cristo ou a mulher babilnica
do Apocalipse. Esta imagem actuou, na sua fora mtica, mais profunda e poderosamente do que qualquer clculo econmico. As suas
repercurses perduram desde h muito: em Gladstone ou nos Gedankenund Erinnerungen de Bismarck ainda se mostra uma inquietao nervosa
quando surgem jesutas ou prelados secretamente intriguistas. Mas oarsenal sentimental ou mesmo, s.e assim posso dizer, o arsenal mtico
do combate cultural e de todo o combate contra o Vaticano, assimcomo o da separao francesa entre a Igreja e o Estado, incuo em
comparao com a clera demonaca de Cromwell. Desde o sculoXVIII25, a argumentao torna-se cada vez mais racionalista ou
humanitria, utilitarista e superficial. S num ortodoxo russo, emDostoiewski, se ergue uma vez mais o pavor anti-romano grandeza
secular da sua descrio do Grande Inquisidor.Em todos os diferentes matizes e graduaes, permanece sempreo medo diante do incompreensvel poder poltico do catolicismoromano. Posso perceber muito bem que um anglo-saxo protestante
sinta diante da "mquina papista" todas as antipatias que lhe sopossveis, quando se lhe torna claro que h um aparelho administrativo
hierrquico imenso que quer controlar a vida religiosa e que dirigidopor homens que por princpio recusam ter uma famlia. Quer dizer,
19
Ca ri Schmitt
uma burocracia celibatria. Isso tem de aterroriz-lo, no seu tipo desentido de famlia e na sua repulsa contra qualquer controlo
burocrtico. Contudo, tal sempre mais um sentimento noproclamado. C\que mais se ouve a reprovao, repetida em todo o
sculo XEX parlamentar e democrtico, segundo a qual a polticacatlica no nada seno um oportunismo ilimitado. A sua elasticidade
, de facto, espantosa. Ela liga-se com correntes e grupos opostos, emil vezes se enumerou com que diferentes governos e partidos ela fez
coligaes nas diferentes terras; como ela, sempre de acordo com aconstelao poltica, vai com absolutistas ou com monarcmacos;durante a Santa Aliana, depois de 1815, um refgio da reaco e
inimigo de todas as liberdades liberais, e reclamando noutras terraspara si, em oposio encarniada, estas mesmas liberdades,
particularmente a liberdade de imprensa e a liberdade de educar; comoela prega nas monarquias europias a aliana entre o Trono e o Altar
e sabe estar, nas democracias camponesas dos cantes suos ou naAmrica do Norte, completamente do lado de uma democracia
convicta. Homens de grande significado como Montalembert,Tocqueville, Lacordaire defenderam j um catolicismo liberal, quando
muitos dos seus irmos na f viam ainda no liberalismo o Anti-Cristoou, pelo menos, a seu percursor; realistas e legitimistas catlicos
aparecem lado a lado com defensores catlicos da repblica; socatlicos os aliados tcticos de um socialismo que outros catlicos
tomam pelo diabo, e eles negociaram j de facto com bolchevistas,enquanto defensores burgueses da santidade da propriedade privada
ainda viam neles um bando de criminosos permanecendo hors Ia loi.Com cada mudana da situao poltica, so mudados aparentemente
todos os princpios, fora um nico: o poder do catolicismo. "Reclama-se dos opositores todas as liberdades em nome dos princpios dos
opositores e recusa-se-lhes estas em nome dos prprios princpioscatlicos". Quo freqentemente se v a imagem apresentada por
pacifistas burgueses, socialistas e anarquistas: os altos prelados da Igrejaabenoam os canhes de todas as terras em guerra; ou literatos
"neocatlicos", os quais so parte monrquicos e parte comunistas;ou, finalmente, para falar de um outro tipo de impresses sociolgicas:
20
Catolicismo Romano e Forma Poltica
o abade mimado pela dama da corte junto do franciscano irlands queencoraja os trabalhadores em greve a preserverar. Sempre de novonos surgiro diante dos olhos figuras e ligaes contraditrias
semelhantes.Alguma coisa nesta multilateralidade e ambigidade o duplorosto, a cabea de Jano, o hermafrodtico (como Byron se expressousobre Roma) deixa-se explicar simplesmente atravs de paralelospolticos ou sociolgicos. Qualquer partido que tenha uma
mundividncia slida pode, na tctica do combate poltico, fazercoligaes com os mais diferenciados agrupamentos. Tal no vale
menos para o socialismo convicto, na medida em que ele tem umprincpio radical, do que para o catolicismo. Tambm o movimento
nacional fez uma aliana, sempre de acordo com a situao singular decada terra, quer com a monarquia legtima, quer com a repblicademocrtica. Sob o ponto de vista de uma mundividncia, todas asformas e possibilidades polticas se tornam num simples instrumento
da idia a realizar. Alm disso, muito do que aparece comocontraditrio apenas conseqncia e sintoma de um universalismopoltico. confirmado por uma surpreendente concordncia de todas
as partes que a Igreja catlica romana, enquanto complexo histrico eaparelho administrativo, continua o universalismo do imprio romano.Nacionalistas franceses, como cujo caracterstico representante26 pode
ser referido Charles Maurras, tericos da raa germnica como H. St.Chamberlain, professores alemes de provenincia liberal como MaxWeber, um poeta e visionrio paneslavista como Dostoiewski, todosfundam as suas construes nesta continuidade da Igreja catlica e do
imprio romano. Ora, a cada imprio mundial pertence um certorelativismo relativamente enorme variedade de vises possveis, umasupremacia arrogante sobre as peculiaridades locais e, ao mesmo tempo,uma tolerncia oportunista em coisas que no tm qualquer significado
central. O imprio mundial romano e o ingls mostram aqui suficientessemelhanas. Qualquer imperialismo que seja mais do que simples
alarido esconde em si opostos, conservadorismo e liberalismo, tradioe progresso mesmo militarismo e pacifismo. Na histria da poltica
inglesa, desde a oposio entre Burke e Warren Hastings at oposio
21
Carl Schmit
entre Lloyd George e Churchill ou Lord Curzon, isso comprovadoquase em cada gerao. No entanto, com a referncia s propriedadesdo universalismo, ainda de modo nenhum se definiu a idia poltica
do catolicismo. Ele s tem de ser mencionado porque o sentimento demedo diante do aparelho administrativo universal se esclarece
freqentemente a partir de uma reaco legtima de sentimentosnacionais e locais. No fortemente centralizado sistema romano, em
particular, alguns tm de se sentir postos de lado e defraudados no seupatriotismo nacional. Um irlands, na exasperao da sua conscincia
nacional galica, fez uma declarao segundo a qual a Irlanda apenas"apincb of snuff in the Ronan snuff-box" (muito melhor teria dito se dissesse:
a cbicken theprelate woulddrop into the caldron which be was boilingfor ihe cosmopoh-tan restauram). Por outro lado, precisamente naes catlicas - tiroleses,
espanhis, polacos, irlandeses - devem ao catolicismo uma parteimportante da sua fora de resistncia nacional, e no apenas quando
o opressor era um inimigo da Igreja. O cardeal Mercier de Malines,assim como o bispo Korum de Trier, representaram a dignidade e a
auto-conscincia nacionais de um modo maior e mais impressionantedo que o fizeram o comrcio e a indstria, e isso diante de um opositor
que de modo nenhum surgia como um inimigo da Igreja, mas ateprocurava uma aliana com ela. Com simples explicaes polticas ou
sociolgicas a partir da natureza do universalismo no se poderexplicar tais manifestaes, tanto quanto no se pode explicar aquele
sentimento anti-romano a partir de uma reaco nacional ou localcontra o universalismo e o centralismo, se bem que na histona univer
sal qualquer imprio mundial suscitou tais reaces.Penso que o sentimento ainda se aprofundaria infinitamente se seconcebesse, na sua inteira profundidade, at que ponto a Igreja catlica
uma completo oppositorum. Parece no haver oposio que ela naoabarque. Desde h muito que ela se glorifica por unir em si todas as
formas de Estado e de governo, por ser uma monarquia autocraticacujo chefe escolhido pela aristocracia dos cardeais, e na qual ha, no
entanto, tanta democracia que, sem considerar ao estado e aprovenincia, o ltimo pastor de Abruzos, tal como Dupanloup o
formulou, tem a possibilidade de se tornar neste soberano autocratico.
22
Catolicismo Romano e Forma Poltica
A sua histria conhece exemplos de adaptao espantosa, mas tambmde rgida intransigncia, de capacidade da mais viril resistncia e de
condescendncia feminina, misturadas de modo estranho a altivez e asubmisso. Quase no compreensvel que um filsofo rigoroso daditadura autoritria, o diplomata espanhol Donoso Cortes, e um
rebelde entregue em bondade franciscana ao pobre povo irlands, umrebelde ligado com sindicalistas, como Padraic Pearse, fossem amboscatlicos piedosos. Mas tambm teologicamente domina em todo o
lado a complexio oppositorum. O Antigo e o Novo Testamento valem umao lado do outro, o ou-um-ou-outro de Marcio tambm aqui
respondido com um tanto-um-como-outro. Ao monotesmo judaicoe sua transcendncia absoluta so acrescentados, na doutrina daTrindade, tantos elementos de uma imanncia de Deus, que tambm
aqui so pensveis algumas mediaes; e, por causa da sua veneraopelos santos, os ateus franceses e os metafsicos alemes, que
redescobriram o politesmo no sculo XIX, louvaram a Igreja, poisjulgavam descobrir nela um paganismo saudvel. A tese fundamental
qual todas as doutrinas de uma filosofia consequentemente anarquistado Estado ou da sociedade se deixam reconduzir, a oposio do homem
"mau por natureza" e do homem "bom por natureza", esta questodecisiva para a teoria poltica, de modo nenhum respondida no dogma
tridentino com um simples sim ou no; o dogma fala antes,diferenciando-se da doutrina protestante de uma completa corrupo
do homem natural, apenas de um ferimento, de um enfraquecimentoou de uma perturbao da natureza humana e, atravs disso, permitena aplicao algumas graduaes e adequaes. A ligao das oposiesestende-se at s ltimas razes sociais e psicolgicas dos motivos e
representaes humanos. O Papa tem o seu nome como pai e a Igreja a me dos crentes e a noiva de Cristo uma admirvel ligao dopatriarcal com o matriarcal, a qual consegue dar a direco de Roma a
ambas as correntes dos complexos e instintos mais simples, ao respeitodiante do pai e ao amor para com a me ; h alguma rebelio contra
a me? E, finalmente, o mais importante: esta ambigidade infinitaliga-se com o mais preciso dogmatismo e com uma vontade de deciso,tal como culmina na doutrina da infalibilidade papal.
23
Corl Schmitt
Considerada a partir da idia poltica do catolicismo, a essncia dacomplexio oppositorum catlica romana assenta numa supremacia
especificamente formal sobre as matrias da vida humana, tal comoat agora nenhum imprio conheceu. Aqui consegue-se umaconfigurao substancial da realidade histrica e social que, apesar do
seu caracter formal, permanece na existncia concreta, que algo devivo e, no entanto, na medida mais elevada, racional. Esta peculiaridade
formal do catolicismo romano assenta no desempenho rigoroso doprincpio da representao. Na sua particularidade, este d-se muito
claramente na oposio ao pensar econmico-tcnico hoje dominante.Mas antes h ainda um equvoco a afastar.
A partir de uma promiscuidade espiritual que, assim como commuitos outros, tambm com o catolicismo procura uma irmandade
romntica ou hegeliana, qualquer um poderia tornar a complexio catlicanuma das suas muitas snteses e julgar precipitadamente ter construdo
a essncia do catolicismo. Para os metafsicos da filosofia especulativaps-kantiana era corrente compreender a vida orgnica e histrica
como um processo que decorre em antteses e snteses eternas. Aqui,os papis podem ser distribudos de qualquer modo. Quando Grres
apresenta o catolicismo como princpio masculino e o protestantismocomo feminino, ele torna o catolicismo num membro simplesmente, antittico e v a sntese num "terceiro mais elevado". E bvio que
tambm, pelo contrrio, o catolicismo pode surgir como o feminino eo protestantismo como o masculino. Tambm se pode pensar que os
construtores especulativos consideraram ocasionalmente o catolicismocomo o "terceiro mais elevado". Tal est particularmente prximo
dos romnticos catologizantes, se bem que eles no renunciam de boavontade a instruir a Igreja sobre ela se ter de libertar do jesuitismo e da
escolstica, para se tornar em algo "orgnico" mais elevado, a partir daexterioridade esquemtica do formal e da interioridade invisvel doprotestantismo. Nisto assenta o equvoco aparentemente tpico. Apesar
disso, tais construes so mais do que fantasias ao ar livre. Elas soat se bem que tal soa improvvel tempestivas no mais alto grau,pois a sua estrutura espiritual corresponde a uma realidade. O seu
ponto de partida , de facto, uma dada ciso e ramificao, uma
24
Catolicismo Romano e Forma Poltica
antittica que necessita de uma sntese ou uma polaridade que tem um"ponto de indiferena", um estado de dilacerao problemtica e damais profunda indeciso, ao qual no possvel nenhum outro
desenvolvimento seno negar-se a si mesmo, para, negando-se, chegara posies. Um dualismo radical domina realmente em cada mbitoda poca presente; no prosseguimento desta discusso, ele ter ainda
de ser mencionado mais freqentemente nas suas diferentesconfiguraes. O seu fundamento universal um conceito de natureza
que encontrou a sua realizao na terra hodierna, transformada pelatcnica e pela indstria. Hoje, a natureza aparece como o plo oposto
ao mundo mecnico das grandes cidades, as quais, com os seus cristaisde pedra, de ferro e de vidro, repousam sobre a terra como cubismos
gigantescos. A anttese deste imprio da tcnica a natureza selvageme brbara, no tocada por nenhuma civilizao, uma reserva na qual
"o homem no entra com o seu tormento". Ao conceito de naturezacatlico romano, uma tal ciso entre um mundo do trabalho humano,
racionalista e penetrado pela tcnica, e uma natureza romnticaintocada completamente estranha. Parece que os povos catlicos tmuma outra relao com o solo do que os protestantes; talvez por eles
serem freqentemente, em oposio aos protestantes, povoscamponeses que no conhecem qualquer grande indstria. Seja como
for, em geral, este facto permanece. Porque razo no h qualqueremigrao catlica, pelo menos nenhuma do tipo grandioso dos
huguenotes ou mesmo dos puritanos? Houve incontveis emigrantescatlicos, irlandeses, polacos, italianos, croatas; a maior parte dos
emigrantes podiam ser catlicos, pois o povo catlico^ erafreqentemente mais pobre do que o protestante. A pobreza, a carncia
e a perseguio impulsionaram os emigrantes catlicos, mas eles noperdem a sua saudade. O huguenote e o puritano tm, em comparao
com estes pobres desalojados, uma fora e um orgulho que sofreqentemente de uma grandeza inumana. Ele consegue viver em
qualquer solo. Seria, no entanto, uma imagem incorrecta, dizer queele cria razes em qualquer solo. Ele pode construir a sua indstria em
todo o lado, tornar qualquer solo no campo do seu trabalho e da sua"ascese intramundana" e, finalmente, ter em todo o lado um lar
25
Carl Schmitt
confortvel tudo, na medida em que ele se torna senhor da naturezae a subjuga. O seu tipo de domnio permanece inacessvel ao conceito
de natureza catlico romano. Os povos catlicos romanos parecemamar o solo, a me terra, de outro modo; todos eles tm o seu 'terrisme".Para eles, a natureza no significa o oposto da arte e da obra humana,
nem o oposto do entendimento e do sentimento ou do corao, mas otrabalho humano e o crescimento orgnico, a natureza e a ratio so
uma mesma coisa. A viticultura o mais belo smbolo desta unio,mas tambm as cidades que so construdas a partir de tal tipo espiritual
aparecem como produtos que cresceram naturalmente do solo, os quaisse introduzem na paisagem e permanecem fieis sua terra. No conceito
de "urbano" que lhes essencial, elas tm uma humanidade tal quepermanece eternamente inacessvel ao mecanismo de preciso de uma
cidade industrial moderna. Do mesmo modo que o dogma tridentinono conhece a ruptura protestante entre a natureza e a graa, tambm
o catolicismo romano no compreende todos aqueles dualismos denatureza e esprito, natureza e entendimento, natureza e arte, natureza
e mquina e o seu mtuo pathos. Tal como a oposio entre a formavazia e a matria sem forma, permanece-lhe estranha a sntese de tais
antteses, e a Igreja catlica algo completamente diferente daquele"terceiro mais elevado" (alis sempre ausente) da filosofia da naturezae da filosofia da histria alems. No se lhe adequa nem o desespero
das antteses nem a altivez ilusria da sua sntese.Da que, para um catlico, se algum quisesse fazer da sua Igrejaum plo contrrio poca mecanicista, isso teria de surgir como um
elogio duvidoso. uma manifesta contradio, a qual aponta de novopara a surpreendente complexio oppositorum, que um dos sentimentosprotestantes mais fortes veja no catolicismo romano uma degenerao
e um abuso do cristianismo, porque ele ter mecanizado a religionuma formalidade sem alma, enquanto, ao mesmo tempo, precisamente
alguns protestantes regressam numa fuga romntica Igreja catlica,porque procuram nela a salvao da ausncia de alma de uma poca
racionalista e mecanicista. Se a Igreja consentisse aqui em no ser maisdo que a polaridade, plena de alma, da ausncia de alma, ek ter-se-ia
esquecido de si mesma. Ela tornar-se-ia no desejado complemento do28
Catolicismo Romano e Forma Poltica
capitalismo, num instituto higinico para os sofrimentos dos combatesda concorrncia, num passeio de Domingo ou numa estncia de Vero
do citadino. Existe naturalmente um significativo efeito teraputicoda Igreja, mas a essncia de uma tal instituio no pode consistir nisso.
O rousseaunianismo e o romantismo podem, como muitas outrascoisas, fruir tambm o catolicismo como uma runa grandiosa ouuma antigidade indubitavelmente genuna e podem, "na poltrona
dos avanos de 1789", tornar tambm esta coisa num artigo de consumode uma burguesia relativista. Muitos, particularmente os catlicos
alemes, esto aparentemente orgulhosos por serem descobertos porhistoriadores da arte. A sua alegria, em si insignificante, no precisaria
aqui de ser mencionada se um pensador poltico original e rico deidias, Georges Sorel, no tivesse procurado na nova ligao da Igrejacom o irracionalismo a crise do pensamento catlico. Na sua opinio,
enquanto at ao sculo XVIII a argumentao da apologtica eclesisticaqueria demonstrar a f racionalmente, mostra-se no sculo XIX que
so precisamente as correntes irracionalistas da Igreja que so bemsucedidas. , de facto, correcto que, no sculo XIX, todos os tipospossveis de uma oposio contra o iluminismo e o racionalismo
reanimam o catolicismo. As tendncias tradicionalistas, misticistas eromnticas fizeram muitos convertidos. Tambm hoje domina entre
os catlicos, tanto quanto o posso julgar, uma forte insatisfao com aapologtica produzida, a qual sentida por alguns como uma
argumentao aparente e um esquema vazio. Mas nada disso toca oessencial, porque identifica o racionalismo e o pensar das cincias
naturais e no repara que na base da argumentao catlica est ummodo de pensar particular, interessado na direco normativa da vida
social humana, e que se demonstra com uma lgica especificamentejurdica.
Quase em cada conversa se pode observar quo profundamente omtodo das cincias naturais e da tcnica domina hoje o pensar, como,por exemplo, nas provas usuais da existncia de Deus, o Deus que rege
o mundo como o Rei o Estado se torna inconscientemente no motorque impulsiona a mquina csmica. A imaginao do habitantemoderno da grande cidade est, at aos seus ltimos tomos, cheia de
27
Caii Sdtmitt
representaes tcnicas e industriais, e projecta-as no csmico ou nometafsico. O mundo torna-se, para esta ingnua mitologia mecanicista
e matemtica, num dnamo gigantesco. Aqui no h tambm qualquerdiferena de classes. A imagem do mundo do patro industrial moderno
igual do proletrio industrial como um gmeo ao outro. Da queeles se compreendam bem um ao outro, quando combatem
conjuntamente pelo pensar econmico. O socialismo, na medida emque se tornou na religio do proletrio industrial das grandes cidades,
contrape ao grande mecanismo do mundo capitalista um anti-mecanismo fabuloso, e o proletariado dotado de conscincia de classe
considera-se como o senhor legtimo deste aparelho, ou seja, apenascomo o senhor que lhe apropriado, e considera a propriedade privadado patro capitalista como um resduo inadequado de um tempo
tecnicamente ultrapassado. O grande patro no tem nenhum outroideal seno o de Lenine: o de uma "terra electrifiada". No fundo, eles
s lutam pelo mtodo correcto da electrificao. Os financeirosamericanos e os bolchevistas russos encontram-se juntos no combatepelo pensar econmico, isto , no combate contra os polticos e os
juristas. Na camaradagem desta aliana est tambm Georges Sorel, eaqui, no pensar econmico, encontra-se uma oposio essencial dotempo hodierno contra a idia poltica do catolicismo. .
Pois tudo aquilo que o pensar econmico sente como a suaobjectividade, a sua glria e a sua racionalidade contradiz esta idia. Oracionalismo da Igreja catlica compreende moralmente a naturezapsicolgica e sociolgica do homem e no diiespeitorcomo a indstria
e a tcnica, ao domnio e utilizao da matria. A Igreja tem a suaracionalidade particular. Conhece-se a afirmao de Renan: toute victoire
de Rome estune victoire de Ia raison. No combate contra o fanatismo sectrio,ela esteve sempre do lado do bom senso humano, em toda a IdadeMdia ela reprimiu, como Duhem muito bem mostrou, a superstio
e a feitiaria. Mesmo Max Weber verifica que o racionalismo romanocontinua a viver nela, que ela soube superar grandiosamente os cultos
da embriagues dionisaca, os xtases e a imerso na contemplao. Esteracionalismo repousa no institucional e essencialmente jurdico; a
sua grande realizao consiste em tornar o sacerdcio num ofcio, mas
23
Catolicismo Romano e Forma Poltica
isso tambm de um modo particular. O Papa no o profeta, mas ovigrio de Cristo. Qualquer selvajaria fantica de um profetismo
desenfreado mantida afastada por uma tal formao. Por o ofcio serindependente do carisma, o sacerdote recebe uma dignidade que parece
abstrair completamente da sua pessoa concreta. Apesar disso, ele no o funcionrio e o comissrio do pensar republicano e a sua dignidade
no impessoal como a do funcionrio moderno, mas o seu ofcioremete, numa cadeia ininterrupta, para o encargo pessoal e para a pessoade Cristo. Tal a mais espantosa compkxio oppositorum. Em tais distines,
repousa a fora criadora racional e, ao mesmo tempo, a humanidadedo catolicismo. Ela permanece no humano-espiritual; sem arrastar para
a luz a escurido irracional da alma humana, ela d-lhe uma orientao.Ela no d, como o racionalismo econmico-tcnico, receitas para a
manipulao da matria.O racionalismo econmico est to longe do racionalismo catlicoque ele consegue suscitar contra si um medo especificamente catlico.A tcnica moderna torna-se simplesmente servidora de quaisquer
carncias. Na economia moderna, corresponde a uma produoextremamente racionalizada um consumo completamente irracional.Um mecanismo racional admirvel serve uma procura qualquer,
sempre com a mesma seriedade e preciso, diga a procura respeito ablusas de seda ou a gases venenosos ou a qualquer outra coisa. O
racionalismo do pensar econmico habituou-se a contar com certascarncias e a ver apenas aquilo que ele pode "satisfazer". Na grande
cidade moderna, ele ergueu um edifcio no qual tudo decorre de ummodo calculado. Este sistema de objectividade infalvel pode aterrorizarum catlico piedoso, e isto precisamente pela racionalidade. Pode-se
hoje dizer que talvez sejam mais os catlicos nos quais a imagem doAnti-Cristo ainda est viva, e que, quando Sorel v a prova da fora
vital na capacidade de tais "mitos", ele comete uma injustia contra ocatolicismo com a sua afirmao de que os catlicos j no acreditamna sua escatologia e de que nenhum deles ainda espera o juzo final.
Tal , de facto, incorrecto, embora j nas soires de So Petersburgo DeMaistre faa o senador russo dizer algo semelhante. Num espanhol
como Donoso Corts, em catlicos franceses como Louis Veuillot e23
Corl Sthmttt
Lon Bloy, num convertido ingls como Robert Hugh Benson, aexpectativa do juzo final est to imediatamente viva como em
qualquer protestante do sculo XVI e XVII que via em Roma o Anti-Cristo. Deve-se, no entanto, reparar que precisamente o aparelho
econmico-tcnico moderno que prepara para um sentimento catlicomuito difuso um tal horror e um tal pavor.
O medo genuinamente catlico corresponde ao reconhecimentode que aqui, de um modo fantstico para o sentimento catlico, o
conceito de racional deturpado, porque um mecanismo de produoque serve a satisfao de quaisquer carncias materiais chamado
"racional" sem que seja perguntado pela racionalidade do fim a nicacoisa essencial , fim esse ordem do qual est o mecanismosuperiormente racional. O pensar econmico no consegue perceber
de todo este medo catlico; ele est de acordo com tudo, desde que sedeixe abastecer com os meios da sua tcnica. Ele no sabe nada acerca
de um sentimento anti-romano, nem nada acerca do Anti-Cristo e doApocalipse. A Igreja para ele um aparecimento estranho, mas no
mais estranho do que outras coisas "irracionais". H homens que tmcarncias religiosas bem, ento trata-se de satisfazer realmente estas
carncias. Tal parece no ser mais irracional do que alguns caprichossem sentido da moda, os quais, no entanto, tambm so satisfeitos.
Quando as eternas lmpadas diante de todos os altares catlicos foremalimentadas pela mesma central elctrica que abastece os teatros e os
locais de dana da cidade, ento o catolicismo ter-se- tornado para opensar econmico numa coisa, relativamente ao sentimento, tambm
conceptualizvel e evidente.Este pensar tem a sua realidade e a sua glria prprias, na medidaem que ele permanece absolutamente objectivo, isto , na medida em
que ele permanece junto das coisas. O poltico no para ele objectivo,porque ele se tem de referir a outros valores que no os meramente
econmicos. Mas o catolicismo poltico em sentido eminente,diferenciando-se desta objectividade econmica absoluta.Nomeadamente, o poltico no significa aqui o tratamento e o domnio
de certos factores de poder sociais e internacionais, tal como quer oconceito maquiavlico de poltica, o qual faz dela uma simples tcnica,
30
Catolicismo Romano e Forma Poltico
na medida em que isola um momento singular e exterior da vidapoltica. A mecnica poltica tem as suas leis prprias, e o catolicismo,
tanto quanto qualquer outra grandeza histrica que entra na poltica, por elas abarcado. Que desde o sculo XVI o "aparelho" da Igreja setenha tornado mais rgido, que ela (apesar do romantismo, ou talvezpara o tornar incuo) seja mais do que na Idade Mdia uma burocracia
e uma organizao centralizada, tudo aquilo que se caracterizasociologicamente como "jesuitismo", esclarece-se no apenas a partir
do combate com os protestantes, mas tambm a partir da reaco contra o mecanismo do tempo. O prncipe absoluto e o seu
"mercantilismo" foram os percursores do tipo de pensar econmicomoderno e de um estado poltico que est mais ou menos num pontode indiferena entre a ditadura e a anarquia. Com a imagem da naturezamecanicista do sculo XVII, desenvolve-se um aparelho de poder estatal
e a j freqentemente descrita "objectivao" de todas as relaes sociais,e, neste milieu, a organizao eclesistica torna-se tambm, como uma
couraa protectora, mais slida e mais rgida. Tal no em si aindanenhuma prova de fraqueza e de velhice poltica; a questo apenas se
ainda vive nele uma idia. Nenhum sistema poltico pode sobreviversequer a uma gerao com simples tcnica e afirmao de poder. Aopoltico pertence a idia, pois no h nenhuma poltica sem autoridade.
e nenhuma autoridade sem um etbos da convico.A partir da pretenso de ser mais do que o econmico, cresce parao poltico a necessidade de se referir a outras categorias alm daproduo e do consumo. E estranho, para diz-lo mais uma vez, que
os patres capitalistas e os proletrios socialistas consideremunanimemente a pretenso do poltico como uma usurpao e, a partir
do seu pensar econmico, sintam o poder dominante dos polticoscomo "no objectivo". Visto de um modo politicamente conseqente,isso significa alis apenas que determinados agrupamentos sociais depoderos poderosos patres privados ou os trabalhadores organizados
de determinadas fbricas ou ramos da indstria utilizam a sua posiono processo de produo para tomar nas mos o poder estatal. Se eles
se voltam contra os polticos e a poltica enquanto tais, eles referem-sea um poder poltico concreto, a um poder poltico que por enquanto
ainda est no seu caminho. Se eles conseguirem p-lo de lado, ento31
Cari Schmitt
tambm a construo da oposio de um pensar econmico e de umpensar poltico perder o seu interesse, e surge um novo tipo de poltica
do novo poder, estabelecido sobre uma base econmica. Mas aquiloque eles fizerem ser poltica, e isso significa a exigncia de um tipo ?especfico de validade e de autoridade. Eles referir-se-o suaindispensabilidade social, ao salut public, e assim esto j na idia. [Nenhuma grande oposio social se deixa resolver economicamente.
Se o patro disser aos trabalhadores: "eu alimento-vos", respondem-lhe os trabalhadores: "ns alimentamos-te", e isto no nenhuma luta
em torno da produo e do consumo, no de todo algo econmico, mas surge a partir de um dierenxepatbos da convico moral ou'jurdica.Isto diz respeito imputao moral ou jurdica de quem
autenticamente o produtor, o criador e, em conseqncia disso, osenhor da riqueza moderna. No momento em que a produo se torna *totalmente annima e umvu de sociedades annimas e outras pessoas >
"jurdicas" torna impossvel a imputao de homens concretos, a )propriedade privada dos que no so seno capitalistas, como um \
apndice inexplicvel, tem de ser repelida. Tal ir surgir, apesar de, mpelo menos hoje, ainda haver patres que se sabem impor com a
reivindicao da sua indispensabilidade pessoal.Numa tal luta, o catolicismo poderia passar quase despercebido, .enquanto ambos os partidos pensarem economicamente. O seu poderno assenta em meios econmicos, mesmo que a Igreja possa ter
tambm propriedades fundirias e diversas "participaes". Tais so 'incuas e idlicas junto dos grandes interesses industriais nas matrias- )primas e nos mercados. A posse das fontes de petrleo da terra pode e
talvez decidir o combate em torno do domnio mundial, mas neste )combate no participar o governador de Cristo sobre as terras. O |Papa consiste em ser o soberano do Estado da Igreja o que significa -t
isso na grande confuso da economia mundial e dos imperialismos? Opoder poltico do catolicismo no assenta nem em meios de podereconmico nem em meios de poder militar. Independentemente destes,
a Igreja tem aqaelepatbos da autoridade em toda a sua pureza. Tambma Igreja uma "pessoa jurdica", mas de um modo diferente de umasociedade annima. Esta, o produto tpico da poca da produo,
32
Catolicismo Romano e Forma Poltica
um modo de clculo, mas a Igreja uma representao concreta, umarepresentao pessoal de uma personalidade concreta. Todo aquele
que a conheceu reconheceu que ela, num estilo supremo, a portadorado esprito jurdico e a verdadeira herdeira da jurisprudncia romana.
Um dos seus mistrios sociolgicos consiste em ela ter a capacidade daforma jurdica. Mas ela s tem a fora para esta forma, como para
qualquer forma, porque ela tem a fora da representao. Ela representaa datas humana, ela apresenta a cada instante a unio histrica entre o
devir humano e o sacrifcio de Cristo na cruz, ela representa o prprioCristo, pessoalmente, o Deus que se tornou homem na realidadehistrica. No representativo assenta a sua supremacia sobre uma poca
do pensar econmico.Ela no presente o ltimo exemplo isolado da capacidade medieval de formao de figuras representativas o Papa, o imperador, omonge, o cavaleiro, o comerciante , seguramente o ltimo dos quatroltimos pilares que um acadmico27 pde um dia contar (Cmara dos
Lordes inglesa, Estado-Maior prussiano, Academia francesa e Vaticano);to isolado que quem v nela apenas a forma exterior tem de dizer,
com um epigrama de escrnio, que ela representa em geral apenas aindaa representao. O sculo XVIII teve ainda algumas figuras clssicas,como a do "lgislateur"; at a deusa da razo aparece como representativa,
se se recordar da improdutividade do sculo XIX. Para ver at queponto a faculdade representativa terminou, precisa-se apenas de
recordar a tentativa de contrapor Igreja catlica uma empresaconcorrente, formada a partir do esprito cientfico moderno: Auguste
Comte queria fundar uma Igreja "positivista". Aquilo que surgiu doseu esforo uma imitao de efeitos lamentveis. Nele apenas se pode
admirar a disposio nobre deste homem, e mesmo a sua imitao ainda grandiosa em comparao com outras tentativas semelhantes.Este grande socilogo reconheceu os tipos representativos da Idade
Mdia, o clrigo e o cavaleiro, e comparou-os com os tipos da sociedademoderna, com o erudito e com o comerciante industrial. Mas era um
erro tomar por tipos representativos o erudito moderno e ocomerciante moderno. O erudito s era representativo no tempo dapassagem, no combate com a Igreja, e o comerciante s era uma
33
Ca ri Schmiit
grandeza espiritual enquanto individualista puritano. Desde que correa mquina da vida econmica moderna, ambos se tornaram cada vez
mais servos da grande mquina, e difcil dizer o que elesautenticamente representam. J no h estados. A burguesia francesa
do sculo XVIII, o terceiro estado, declarou de si que era "a nao". Afamosa frase "k tiers Etat c'est Ia Nation" era mais profundamente
revolucionria do que se suspeitava, pois se um nico estado seidentifica com a nao, ele supera a idia de estado, a qual exige uma
multiplicidade de estados para uma ordem social. Da que a sociedadeburguesa j no fosse capaz de mais nenhuma representao e tenha
cado no destino do dualismo universal que, nesta poca, por todo olado se repete, isto , da que ela desdobre as suas "polaridades": de um
lado o burgus, do outro o bomio que, na melhor das hipteses, norepresenta nada seno ele mesmo. A resposta conseqente foi o
conceito de classe do proletariado. Ele agrupa a sociedadeobjectivamente, ou seja, segundo a posio no processo de produo,e corresponde por isso ao pensar econmico. Assim, ele prova que
pertence sua mentalidade renunciar a toda e qualquer representao.O erudito e o comerciante tornaram-se abastecedores ou trabalhadores
dirigentes. O comerciante senta-se no seu escritrio e o erudito na suasala ou no laboratrio. Ambos servem, se so realmente modernos,um ofcio. Ambos so annimos. No tem sentido requerer que eles
representem algo. Eles so ou gente privada ou expoentes, norepresentantes.
O pensar econmico conhece apenas umtipo de forma: a precisotcnica; e tal o maior afastamento da idia do representativo. O
econmico, na sua relao com o tcnico a diferena interna deambos ainda tem de ser referida , requer uma presena real das coisas.A ele correspondem representaes como "reflexo", "emanao" ou
"espelhamento", expresses que caracterizam um conjunto material,diferentes estados de agregao da mesma matria. Com tais imagens,
o ideal tornado claro, a fim de ser incorporado na pragmaticidade.Segundo, por exemplo, a famosa verso "econmica" da histria, asvises polticas e religiosas so o "reflexo" ideolgico das relaes de
produo, o que no significa outra coisa se se pode tratar esta
34
Catolicismo Romano e Forma Poltica
doutrina segundo a sua prpria medida seno que, na sua hierarquiasocial, os produtores econmicos devem estar acima dos "intelectuais";
e, nas interpretaes psicolgicas, ouve-se com agrado uma palavracomo "projeco". Metforas como projeco, reflexo, espelhamento,
emanao, transferncia procuram a base objectiva "imanente". A idiada representao, pelo contrrio, to dominada pelo pensamento da
autoridade pessoal, que tanto o representante como o representadotm de afirmar uma dignidade pessoal. Ela no nenhum conceito
pragmtico. Num sentido eminente, s uma pessoa pode representar- diferenciando-se da simples "delegao do lugar" - e representar
uma pessoa autoritria ou uma idia que, na medida em que representada, precisamente se personifica. Deus ou, na ideologia
democrtica, o povo, ou idias abstractas como liberdade e igualdade,so o contedo pensvel de uma representao, mas no a produo e
o consumo. A representao d pessoa do representante umadignidade prpria, porque o representante de um valor elevado nopode no ter valor. Contudo, no apenas o representante e o
representado requerem um valor, mas tambm o terceiro, o destinatriopara o qual eles se voltam. Diante de autmatos e de mquinas no se
pode representar, to pouco quanto eles mesmos podem representarou ser representados, e quando o Estado se tornou no Leviat, eledesapareceu do mundo do representativo. Este mundo tem a sua
hierarquia de valores e a sua humanidade. Nele vive a idia poltica docatolicismo e a sua fora para a grande forma tridica: para a forma
esttica do artstico, para a forma jurdica do direito e, finalmente,para o brilho glorioso de uma forma de poder histrico-universal.
Aquilo que o ltimo no crescimento natural e histrico, aquiloque o ltimo florescimento e o ltimo acrscimo, a beleza esttica da
forma, o que mais ressalta aos olhos para uma poca pensada combase na fruio artstica. Da grande representao, do-se por si mesmas
a configurao, a figura e o smbolo visvel. O caracter no figurativo,carente de representao, da fbrica moderna recebe os seus smbolosa partir de um outro tempo, porque a mquina carente de tradio,
to pouco figurvel que a prpria repblica sovitica russa noencontrou nenhum outro smbolo para as suas armas alm da foice e
35
Carl Schmitt
do martelo, o que corresponde ao estado da tcnica h mil anos, masno expressa o mundo do proletariado industrial. Pode-se ver
satiricamente estas armas como uma aluso a que a propriedade privadados camponeses economicamente reaccionrios triunfou sobre ocomunismo dos trabalhadores industriais, e a pequena economia agrriasobre a grande fbrica mecnica, tecnicamente mais perfeita. Mas,
apesar disso, esta simblica primitiva tem algo que falta mais elevadatcnica mecnica, algo humano: uma linguagem. No de admirar
que as belas manifestaes exteriores recaiam sobretudo no tempo doeconmico, pois tudo isso o que principalmente lhe falta. No entanto,tambm no esttico ele permanece habitualmente no superficial. Pois
a capacidade da forma a que aqui se chega tem o seu ncleo nacapacidade da linguagem de uma grande retrica. Deve-se aqui pensar,no nos trajes dos cardeais, admirados snobisticamente, ou na pompa
exterior de uma bela procisso, com tudo o que lhes pertence de belezapotica. Tambm a grande arquitectura, a pintura e a msica sacras ou
as obras poticas significativas no so o critrio da capacidade de formade que aqui se fala. Hoje h inquestionavelmente uma separao entre
a Igreja e a arte criadora. Um dos poucos grandes poetas catlicos dasltimas geraes, Francis Thompson, anunciou-o no admirvel ensaiosobre Shelley: a Igreja, outrora no menos a me dos poetas do que
dos santos, de Dante no menos do que de So Domingos, conservaagora para si ainda apenas a glria da santidade e abandona a arte a
estranhos. "Tbe separation has been illforpoetry; it bas not been wellfor religion".Tal verdade, e ningum o poderia formular de um modo mais belo ecorrecto; o estado presente no bom para a religio, mas para a Igreja
no nenhuma doena mortal.A fora da palavra e do discurso, a retrica no seu sentido grande,, pelo contrrio, um sinal da vida humana. Talvez seja hoje perigoso
falar assim. O desconhecimento do retrico pertence aos efeitos daqueledualismo polar do tempo, o qual se manifesta aqui em ele ter, de um
lado, uma msica que canta de um modo exaltado e, de outro lado,uma objectividade muda, e que tenta tornar a arte "genuna" em algo
romntico-musical-irracional. Sabe-se que h uma estreita relao doretrico ao "espritc/assique"; t-la reconhecido e descrito permanece um
Catolicismo Romano e Forma Poltica
dos maiores mritos de Taine. S que ele matou o conceito vivo doclssico atravs da anttese com o romntico e, sem que ele prprio
nisso autenticamente acreditasse, esforou-se por mostrar o clssicocomo o retrico e, deste modo, como ele julgava, como aftificialidade,como simetria vazia e como completa falta de vida. Um inteiro jogode antittica! Na contraposio do racionalismo e de um qualquer
"irracional", o clssico atribudo ao racionalstico e o romntico aoirracional, e o retrico vem para o clssico-racionalstico. E, no entanto,
precisamente o discurso que no se discute e sobre o qual no seraciocina, mas o discurso representativo, se assim se lhe pode chamar,
que decisivo. Ele movimenta-se em antteses, mas estas so, nooposies, mas os diferentes elementos que so configurados nacomp/exiopara que o discurso tenha vida. Pode-se abarcar Bossuet com as
categorias de Taine? Ele tem mais entendimento do que muitosracionalistas e mais fora intuitiva do que todos os romnticos. Mas oseu discurso s possvel tendo como pano de fundo uma autoridadeimpressionante. Na sua arquitectura, ele no se movimenta nem
decaindo numa discursividade, nem decaindo numa sentena, nemdecaindo na dialctica. A sua grande dico mais do que msica; uma dignidade humana que se torna visvel na racionalidade do falar
que se forma a si mesmo. Tudo isso pressupe uma hierarquia, pois aressonncia espiritual da grande retrica surge a partir da crena narepresentao que o orador requer. Nele se mostra que, para a histriauniversal, o sacerdote pertence ao soldado e ao poltico. Ele pode estarjunto deles como figura representativa, pois eles mesmos so tais figuras,
e no junto do mercador e do tcnico que pensam economicamente,os quais apenas lhe do esmolas e confundem a sua representao comuma decorao.
Uma unio da Igreja catlica com a forma hodierna doindustrialismo capitalista no possvel. A aliana do trono e do altarno se seguir nenhuma aliana do escritrio e do altar, nem nenhuma
aliana da fbrica e do altar. Pode haver conseqncias imprevisveisquando o clero catlico romano da Europa j no se recrutarprincipalmente a partir da populao camponesa, mas a grande massa
dos religiosos forem citadinos. Em relao quela impossibilidade, isso
37
Co ri Schmitt
no alterar nada. certo que permanece fixo que o catolicismo seadequar a qualquer ordem da sociedade e do Estado, e tambm quelaem que dominam os empresrios capitalistas ou os sindicatos e os
conselhos de operrios. Mas ele s se lhe pode adequar se o poder quese baseia na situao econmica se tornou poltico, ou seja, se os
capitalistas ou os trabalhadores que chegaram ao poder dominantetomaram sobre si, em toda a forma, a representao estatal com a sua
responsabilidade. Ento, o novo poder dominante ser forado a tornarvlida uma outra situao alm da apenas econmica e jurdico-privada;
a nova ordem no se pode esgotar no funcionamento do processo deproduo e de consumo, porque ela tem de ser formal; pois cada ordem
uma ordem jurdica e cada Estado um Estado de direito. No momentoem que tal introduzido, a Igreja pode-se ligar a ele, tal como se ligou
a qualquer ordem. Ela no est de todo limitada a Estados nos quais anobreza fundiria ou os camponeses so a classe dominante. Ela precisa
de uma forma estatal, pois seno nada est presente que corresponda sua atitude essencialmente representativa. O domnio do "capital",
exercido nos bastidores, ainda no nenhuma forma, embora ele possacertamente minar uma forma poltica existente e torn-la numa fachadavazia. Se ele o conseguir, ele "despolitizou" completamente o Estado,
e se o pensar econmico conseguisse realizar o seu objectivo utpicode introduzir um estado absolutamente no poltico da sociedade
humana, ento a Igreja permaneceria a nica portadora do pensarpoltico e da forma poltica; ela teria um monoplio imenso, e a sua
hierarquia estaria mais prxima do domnio poltico mundial do quejamais estivera na Idade Mdia. Segundo a teoria e estrutura ideal que
lhe prpria, ela no poderia certamente desejar um tal estado, poisela pressupe junto dela o Estado poltico, uma "societasperfecta" e noum trust de interesses. Ela quer viver com o Estado em comunidade
particular, estar diante dele como parceira em duas representaes.Pode-se observar como com a propagao do pensar econmicotambm desaparece a compreenso de cada tipo de representao. No
entanto, o parlamentarismo hodierno contm, pelo menos segundo oseu fundamento ideal e teortico, o pensamento da representao. Ele
at repousa sobre o assim chamado, com uma expresso tcnica,
38
Catolicismo Romano e Forma Poltica
"princpio representativo". Na medida em que neste nada enunciadoseno a designao de uma delegao a delegao dos indivduos
eleitores , tal princpio no significaria nada de caracterstico. Naliteratura de direito constitucional e na literatura poltica do ltimo
sculo pensada, nesta palavra, uma delegao do povo, umarepresentao do povo diante de um outro representante, o rei; mas
ambos ou, quando a constituio republicana, s o parlamento representam "a nao". Da que se diga da Igreja que ela "no tem
quaisquer instituies representativas", porque no tem nenhumparlamento e os seus representantes no derivam do povo a autorizao
dos seus poderes. Ela representa, consequentemente, "a partir de cima".Durante o sculo XIX, no combate das delegaes do povo^ com a
realeza, a jurisprudncia perdeu o sentido e o conceito especfico derepresentao. A doutrina do Estado alem, em particular, desenvolveu
aqui uma mitologia erudita que ao mesmo tempo monstruosa ecomplicada: o parlamento representa, enquanto rgo de Estado
secundrio, um outro rgo, um rgo primrio (o povo), mas estergo primrio no tem nenhuma outra vontade alm do rgosecundrio, enquanto isso no lhe for "particularmente reservado";
ambas as pessoas so apenas uma nica pessoa, formando dois rgose, no entanto, apenas uma pessoa, e assim por diante. Leia-se a propsito
apenas o estranho captulo da doutrina geral do Estado de GeorgJellinek Rfprsentation und reprsentatire Organe. O sentido simples do
princpio representativo o de que os deputados so delegados dopovo inteiro e, desse modo, tm uma dignidade autnoma em relao
aos eleitores, sem que a dignidade deixe de derivar do povo (no doseleitores singulares). "O deputado no est ligado a encargos e a ordens
e responsvel apenas diante da sua conscincia". Tal significa, napersonificao do povo e na unidade do parlamento enquanto seu
representante, pelo menos segundo a idia, uma compkxio oppositomm:uma compkxio oppositommda multiplicidade dos interesses e dos partidos
numa unidade; e tal pensado representativamente e noeconomicamente. Da que o sistema sovitico proletrio procure
aniquilar este rudimento de um tempo que pensa de um modo noeconmico, e acentue que os delegados apenas so emissrios e agentes,
39
Carl Schmitt
comissrios dos produtores com um "mandat impratif e exonerveisem qualquer momento, servidores administrativos do processo deproduo. A "totalidade" do povo apenas uma idia; a totalidade do
processo econmico uma coisa real. O que incontornvel aconseqncia espiritual do anti-espiritual, com a qual, na mar viva
do socialismo, os jovens bolchevistas fizeram do combate pelo pensareconmico-tcnico um combate contra a idia, contra qualquer idia
em geral. Enquanto persistir um resto de idia, domina tambm arepresentao de que algo preexistente antes da realidade dada domaterial, de que algo transcendente, e tal significa sempre uma
autoridade vinda de cima. Para um pensar que quer derivar as suasnormas da imanncia do econmico-tcnico, tal aparece como uma
interveno a partir de fora, como uma perturbao da mquina quecorre por si mesma, e um homem de esprito com instinto poltico
que combata contra os polticos v logo no apelo idia a reivindicaoda representao e, assim, da autoridade, uma arrogncia que no
permanece na ausncia de forma proletria e no permanece na massacompacta da realidade "corprea", na qual os homens no precisam
de nenhum governo e tambm "as coisas se governam a si mesmas''.Diante da conseqncia do pensar econmico, as formas polticae jurdica so igualmente secundrias e perturbadoras, mas s ondesurgiu o paradoxo de haver fanticos deste pensar tal paradoxo s
possvel na Rssia que se manifesta a sua total inimizade contra aidia e contra todo o intelecto no econmico e no tcnico.
Sociologicamente, isso significa o instinto correcto da revoluo. Ainteligncia e o racionalismo no so em si revolucionrios; nada o
tanto quanto o pensar tcnico: ele estranho a todas as tradies sociais.A mquina carente de tradio. Pertence s intuies sociolgicas
bem sucedidas de Karl Marx ter reconhecido que a tcnica efectivamente o princpio revolucionrio e que, ao lado dela, toda a
revoluo jusnaturalista um jogo arcaico. Uma sociedade^que nofosse edificada seno sobre a tcnica que progride no seria,
consequentemente, seno revolucionria. Mas ela ter-se-ia destrudo asi mesma, a si e sua tcnica. O pensar econmico no to
absolutamente radical e, apesar da sua ligao hodierna, pode estar em
Catolicismo Romano e Forma Poltica
oposio ao tecnicismo absoluto. Pois ao econmico pertencem aindacertos conceitos jurdicos como posse e contrato. Contudo, ele
restringe-os a um mnimo e sobretudo ao direito privado.A impressionante contradio entre o objectivo de tornar oeconmico num princpio social e o esforo de permanecer, apesar
disso, no direito privado, particulamente na propriedade privada,apenas pode, neste contexto, ser mencionada. Interessa aqui que atendncia do econmico para o direito privado significa uma limitao
da formao jurdica. Espera-se que a vida pblica se governe a simesma; ela deve ser dominada pela opinio pblica do pblico, isto e,
de pessoas privadas; e a opinio pblica, por seu lado, deve ser dominadapor uma imprensa que se mantm na propriedade privada. Nada neste
sistema representativo, tudo uma coisa privada. Consideradahistoricamente, a "privatizao" inicia-se no fundamento, na religio.
O primeiro direito individual, no sentido da ordem social burguesa,foi a liberdade de religio; no desenvolvimento histrico daquele
catlogo de direitos liberdade - liberdade de f e de conscincia,liberdade de associao e de reunio, liberdade de imprensa, liberdade
de aco e de profisso -, ela incio e princpio. Mas onde quer quese ponha o religioso, em toda a parte ele mostra o seu efeito absorvente
e absolutizador, e se o religioso o privado, ento, pelo contrrio, oprivado que, em conseqncia disso, sacralizado religiosamente.Nenhum deles se pode separar do outro. A propriedade privada e
ento sagrada precisamente porque uma coisa privada. Esta unio,que at agora quase no se tornou consciente, esclarece odesenvolvimento sociolgico da sociedade moderna europia. Tambm
nela h uma religio: a religio do privado; sem ela, o edifcio destaordem social ruiria. A religio ser uma coisa privada d ao privadouma sano religiosa; a garantia absoluta de que a propriedade privada
est acima de qualquer risco s existe no sentido autntico onde areligio uma coisa privada. Na sociedade moderna europia, mastambm em qualquer parte. Se o princpio da religio como coisa
privada est freqentemente citado no programa de Erfurt da social-democracia alem, tal um desvio interessante na direco do
liberalismo. Da que no telogo deste programa, em Karl Kautsky, se
encontre (no seu escrito sobre a Igreja catlica e o cristianismo, 1906 )a correco, to sintomtica na sua inofensiva casualidade, segundo a
qual a religio seria menos uma coisa privada do que, no fundo, apenasuma'coisa do corao.
Em oposio fundamentao liberal com base no privado, aformao jurdica da Igreja catlica publicista. Tambm isso pertence
sua essncia representativa e lhe torna possvel abarcar o religiosonessa medida, juridicamente. Da que um nobre protestante, Rudoli
Sohm, pudesse definir a Igreja catlica como algo essencialmentejurdico, com o que considerava a religiosidade crista como
essencialmente no jurdica. A sua penetrao por elementos jurdicosestende-se, de facto, extraordinariamente longe, e algum
comportamento poltico do catolicismo, aparentemente contraditrioe utilizado freqentemente para reprovaes, encontra a sua explicao
na peculiaridade formal e jurdica. Tambm a jurisprudncia mundanamanifesta, na realidade social, uma certa compkxio de interesses e
tendncias contrapostos. Tambm nela se encontra uma mistura peculiar da capacidade de conservadorismo tradicional e de resistncia
jusnaturalista-revolucionria, de um modo semelhante ao catolicismo.Em cada movimento revolucionrio se pode verificar que ele ve nos' juristas, nos telogos da ordem vigente", os seus inimigos particulares
e que, ao mesmo tempo, so precisamente juristas que, pelo contrario,esto ao lado da revoluo e lhe do um patbos do direito oprimido e
ofendido. A partir da sua supremacia formal, a jurisprudncia podeassumir facilmente, diante de formas polticas que se sucedem, uma
atitude semelhante do catolicismo, na medida em que ela se relacionapositivamente com diferentes complexos de poder, sob o umco
pressuposto de que basta que uma ordem seja produzida para ummnimo de forma. Namedida em que a nova situao deixa reconheceruma autoridade, ela oferece a base para uma jurisprudncia, o
fundamento concreto para uma forma substancial.Contudo, apesar de todo este parentesco no formal, o catolicismovai mais alm, e isto porque representa uma outra coisa e representa
mais do que a jurisprudncia mundana, ou seja, representa nao apenasa idia da justia, mas tambm a pessoa de Cristo. Ele chega assim a
42
Cotocismo Romano e Formo Poltica
1
sua reivindicao de ter um poder e uma honra prprios. Ele podenegociar com o Estado como um partido com os mesmos direitos e,
deste modo, criar novo direito, enquanto a jurisprudncia apenas uma mediao do direito j em vigor. Dentro do Estado, a lei que ojuiz tem de aplicar -lhe mediada pela sua colectividade nacional; en
tre a idia da justia e o caso singular, introduz-se, consequentemente,uma norma mais ou menos formada. Um tribunal internacional quefosse independente, isto , que estivesse ligado, no a instruespolticas, mas apenas a princpios de direito, estaria imediatamente
mais prximo da idia da justia. Por causa do seu desprendimentoem relao ao Estado singular, ele contrapor-se-ia, de um mododiferente do de um tribunal estatal, tambm ao Estado, com a
reivindicao de representar algo autonomamente: a idia da justia,independente das preferncias e dos pareceres dos Estados singulares.A sua autoridade basear-se-ia ento na representao imediata desta
idia, no na sua delegao pelos Estados singulares, mesmo que elesurgisse atravs de um acordo destes Estados. Ele teria de surgir,
consequentemente, como uma instncia originria e, por isso, tambmuniversal. Tal seria a expanso natural da conseqncia lgica e,
psicologicamente, uma decorrncia da posio originria do poder, aqual est como fundamento na posio originria do direito. Pode-secompreender muito bem os pensamentos que foram manifestados pelos
publicistas dos Estados poderosos contra um tal tribunal. Todos elescorrespondem ao conceito de soberania. O poder de deciso sobrequem soberano significaria uma nova soberania, e um tribunal quetivesse tal autorizao seria um super-Estado e um super-soberano quepoderia ele mesmo criar uma nova ordem, se fosse ele, por exemplo,
que tivesse de decidir competentemente sobre o reconhecimento deum novo Estado. uma sociedade das naes, e no um tribunal, que
pode ter pretenses deste tipo. Mas ela torna-se deste modo um sujeitoautnomo, e isso quer dizer que ela, juntamente com a sua funo desentenciar, de tratar com uma administrao, e assim por diante
funes que talvez levem consigo uma autonomia patrimonial, o direitode um oramento prprio e outras manifestaes exteriores , tambm
significa algo para si mesma. A sua actividade no estaria limitada 43
aplicao de normas de direito vintes, corno a actividade de um tri-bunal, o qual um servio. Ela tambm sem ma,s do que um arbitro
porque ek teria em todos os conflitos decisivos um._ propr orio-afirmao. Ela deixaria ento de dar valide exlusivamer< e
justia - falando politicamente, de dar validade ao st**, ? Se elaZX na base dl situao poltica que constantemente se alteraenquanto princpio determinante, ela teria de decidir, a pamr do pode
aue lhe prprio, aquilo que ou no para reconhecer como umaZl ordeL ePum novo Eado. Tal no se deixa denvar por s. mesmoda situao do direito vigente at agora, pois a maior parte: dnovo
Estados surgiram contra a vontade daqueles que foram ate ento os^ senhofes soberanos. Mas atravs do momento"-aoprpria, dar-se-ia a possibilidade de um antagonismo do direito daauto-afirmao, e uma tal instncia representaria tambm ainda, fora
Na grande histria da Igreja romana, )unto do ,lhos da justia estatambm o to do poder prprio. Ele ainda intensificado ate ao*,
da Slria do esplendor e da honra. A Igreja quer ser a noiva real deCrrVo a representa o Cristo regente, dominador e vencedor. A suaSSLco de #na e de honra assenta, em sentido eminente, no
pensamen o da representao. Ele cria a eterna oposio da justia edoesplendor glorioso. O antagonismo est no universalmente humano
apes de cristos piedosos verem freqentemente ai uma forma departicular maldade. A grande traio que se reprova a Igreja romana e
que ela no compreende Cristo como um homem privado eocristianismo como uma coisa privada e como uma pura intenondade2. configurauma instituio visvel. RudolfSohmjulgava reconhece
o oecado original no jurdico; outros viram-no, mais grandiosaPro ulmente, na vontade de domnio mundial. AI^quaUTKr imperialismo de alcanc mundial quando este alcan a o^seu
obiectivo de dar ao mundo a paz, mas nisso que uma angustia hostil&v a vitria do diabo. O Grande Inquisidor de Dosto.ewsbconfia com plena conscincia ter cedido is tentaes *&**sabe que o homem por natureza mau e pequeno, um rebelde cobarde
que precisa de um senhor, e porque s o sacerdote romano encontra a
U,
Catolicismo Romano e Forma Poltica
coragem de tomar sobre si toda a maldio que pertence a tal poder.Dostoiewski projectou aqui, com grande violncia, na Igreja romana
o seu prprio atesmo potencial. Para o seu instinto, que, no fundo, anarquista e tal sempre ateu , qualquer poder era algo mau edesumano29. No quadro do temporal, a tentao do mal, a qual se
encontra em qualquer poder, certamente eterna, e s em Deus estsuperada completamente a oposio do poder e do bem; mas querer
escapar oposio atravs da recusa de qualquer poder terreno seria apior desumanidade. Um sentimento obscuro e muito difuso sente como
m a frieza institucional do catolicismo, e a vastido informe deDostoiewski como o verdadeiro cristianismo. Tal to superficial
como tudo o que permanece acanhado no sentimento e no sentir, eno v sequer quo pouco crist a representao segundo a qual
Cristo poderia aparecer ainda uma ou mais vezes entre os homens,como que experimentalmente, entre a sua existncia terrena e o seu
regresso glorioso no Dia do Juzo30. Com mais conciso do queDostoiewski e, apesar disso, indo infinitamente mais alm no
horizonte, o esprito de um catlico francs encontrou uma imagemque abarca toda a tenso do antagonismo e que, ao mesmo tempo
(atravs da formulao de uma apelao dirigida contra a justia deDeus), leva a justia dialecticamente at ao extremo, na medida em
que conserva a categoria jurdica com as formas julgamento e apelao uma cena inaudita do Dia do Juzo que Ernest Hello teve a coragem
de retratar: quando se tiver pronunciado o juzo do juiz dos mundos,um maldito coberto de crimes ficar imvel e, para pavor do universo,
dir ao juiz: fen appelle. "Com esta palavra apagam-se as estrelas".Segundo a idia do Juzo Final, a sua sentena , no entanto,
infinitamente definitiva, effrojabkment satts appel. A quem apelas tu domeu juzo? pergunta o juiz Jesus Cristo; e numa calma temvel, omaldito responde. ]'en appelle de tajustice tagloire.
Em cada uma destas trs grandes formas do representar, a complextoda vida contraditria configurada na unidade da representao pessoal.
Cada uma das trs formas pode ento tambm suscitar uma inquietude e uma confuso particulares e vivificar de novo o sentimento
anti-romano. Nenhum sectrio e nenhum hertico quis ver quanto o
Ceri Sdimitt
pensamento da representao, no seu personalismo, humano no maisprofundo sentido. Da que fosse um novo e particular tipo de combate,
quando, no sculo XVIII, a Igreja catlica encontrou um opositor quelhe contrapunha precisamente a idia de humanidade. O seu entusiasmo
tinha um fogo nobre. Mas onde ele alcanou um significado histrico,ele mesmo decaiu novamente no destino daquele antagonismo cuja
contemplao tantas energias despertou contra a Igreja. Enquanto aidia de humanidade conservou uma fora original, os seus defensores
encontraram tambm a coragem de a levar a cabo com uma grandezadesumana. Os filsofos humanitrios do sculo XVIII pregaram o
despotismo iluminado e a ditadura da razo31. So aristocratas auto-conscientes. Eles fundam a sua autoridade e as suas sociedades secretas,
ligaes rigorosamente esotricas", em eles representarem a idia dehumanidade. Neste como em qualquer esoterismo h uma supremacia
desumana sobre os que no so iniciados, sobre os homens medianose sobre a democracia de massas" universal. Quem sente ainda hoje
esta cora^-m? Seria extraordinariamente instrutivo reparar no destinoque reservado a um monumento particularmente alemo da grande
mentalidade humanitria, a uma obra como a Flauta Mgica de Mozart.Ela hoje alguma coisa mais do que uma msica alem agradave , um
idlio e uma precursora da opereta vienense? Ela tambm - qualquerum o assegura - uma cano do iluminismo, do combate do Soi con
tra a noite, da luz contra as trevas. At aqui, tambm para o sentir deuma poca democrtica tudo estaria naturalmente na melhor ordem
Se se pensar melhor, j poderia ser que a rainha da noite, contra a qualcombate o sacerdote manico, seja, num sentido particular, a mae.
Mas finalmente: que virilidade da auto-conscincia e da aut'cer^;aautoritria, aterrorizadora para o homem dos sculos XIX e AA,
domina nestes sacerdotes e que diablica ironia contra o homemmediano, contra o pai de famlia Papagueno, pensado com base na
satisfao das suas carncias econmicas, o qual despachado aopreecherem-lhe os seus desejos e ao satisfazerem-lhe as suas carncias.Nada h mais temvel do que esta pera to amada, desde que se faa o
esforo de a ver sob um aspecto que abranja a histria das idias. Deve-se compar-la com a Tempestade de Shakespeare e reconhecer como surgiu
Catolicismo Romano e Forma Poltica
de Prspero um sacerdote manico e de Caliban um Papagueno. Osculo XVm ousava ainda ser muito seguro de si e ter o conceito
aristocrtico do secreto. Numa sociedade que j no tem tal coragem,j no haver mais nenhuns "arcana", mais nenhuma hierarquia, mais
nenhuma diplomacia secreta e, em geral, mais nenhuma poltica, poisa qualquer grande poltica pertence o "arcanum". Tudo se jogar atrsdos bastidores (diante de uma platia de Papaguenos). Poder-se- ter
ainda segredos de negcios e segredos industriais? Este tipo de segredosparece encontrar uma compreenso particular rto pensar econmico-tcnico, e poderia estar j a novamente o incio de um novo poder
incontrolado. Por agora, isto permanece ainda totalmente noeconmico, pensvel de um modo pouco representativo, e s os
conselhos proletrios que chegaram at agora ao pensamento de seescandalizar contra tais segredos. Ouvir-se- falar sempre s de
humanidade e, por isso, no se ver que tambm a idia de humanidade,logo que se realiza, subjaz dialctica de qualquer realizao e,
desumanamente, tem de deixar de no ser nada seno humana.A Igreja catlica no tem hoje na Europa nenhum opositor que selhe contraponha abertamente, enquanto sua inimiga, com tanto
entusiasmo como aquele esprito do sculo XVIII. O pacifismohumanitrio no capaz de uma inimizade, pois o seu ideal decai najustia e na paz; em muitos pacifistas, seno nos melhores, trata-se,
alm disso, apenas do clculo plausvel segundo o qual a guerra significafreqentemente um mau negcio, trata-se do sentimento racionalista,
que no se consegue acalmar, segundo o qual na guerra sodesperdiados tanta energia e tanto material. A sociedade das naes,
tal como hoje existe, pode ser uma instituio til, mas no surgecomo opositora da Igreja universal nem sequer, em geral, como o guia
ideal da humanidade. O ltimo opositor europeu foi a maonaria. Seo fogo da sua poca herica ainda vive nela, no o consigo saber.
Contudo, naquilo que ela tambm tem de pretenses ideais, ela poderiaser, para o pensar econmico conseqente, to indiferente quanto o
catolicismo e a sociedade das naes. Para este pensar, tudo isso soapenas s