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Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

Date post: 03-Jan-2016
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FREQÜEN os INcoRP CONTRIBUIÇÃO A UMA TEORIA DA ARTE CONTEMPORÂNEA propõe um série de respostas tomando por objeto a arte contemporânea e suas modalidades, como a des- materialização, o vazio, o in tem- poral, o conceitual, o conte,..::tual, o virtual, a interface etc., ate o ciberesp ,0, e abordando a não pelas reli iões orienta is do vazio, do silêncio, da sombr- (o beat :::( 11 ou o sqvare :::en, c (Imo foram chamadas nos Es Lriido I as pu algo q COTlh( m c '(Ir a d co P stói s surpr n :i I t er tC quan l romen s ssa • Ia se aJu trn mente as Ma- nifest I o a ti-ticas atuai-s.
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Page 1: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

FREQÜENos INcoRPCONTRIBUIÇÃO A UMA TEORIA

DA ARTE CONTEMPORÂNEA

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série de respostas tomando porobjeto a arte contemporânea e

suas modalidades, como a des­materialização, o vazio, o in tem­poral, o conceitual, o conte,..::tual,

o virtual, a interface etc., ate o

ciberesp ,0, e abordando anão pelas reli iões orienta is do

vazio, do silêncio, da sombr- (o

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Page 2: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

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Page 4: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

o original desta obra foi publicado em francês com o títuloFréquenter lesincorporeIs

© 2006, Presses Universitaires de France© 2008, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo, para a presente edição.

Produção editorialEliane deAbreuSantoro

PreparaçãoHuendel Viana

RevisãoDinarteZorzanelli da Silva

MarianaEchalar

Produção gráficaDemétrio Zanin

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, Sp, Brasil)

Cauquelin, AnneFreqüentar os incorporais: contribuição a uma teoria da arte

contemporânea I Anne Cauquelin; tradução Marcos Marcionilo.­São Paulo: Martins, 2008. - (Coleção Todas as Artes)

Título original: Préquentcr Ics incorporeIs: contribution à une théoricde 1'art contemporain.ISBN 978-85-99102-74-9

1. Arte - Filosofia 2. Arte - Teoria 3. Arte contemporânea4. Arte moderna - Século 20 I. Título

suMÁRIo

PREFÁCIO 9

Nós freqüentamos os incorporais 10

Motivos e expectativas 14

Buscas 16

Como fazer? 17

08-05757

índices para catálogo sistemático:1. Arte contemporânea: Teoria 7012. Arte contemporânea: Filosofia 701

CDD-701PRIMEIRA PARTE

OS INCORPORAIS DOS ESTÓICOS 19

Todos os direitos desta edição parao Brasilreservados àMartins Editora Livraria Ltda.

Rua Pro!Laerte Ramosde Carvalho, 16301325-030 SãoPaulo SPBrasil

Tel. (11) 3116.0000 Fax(11) [email protected]

O uno-todo 23

Lugares dos incorporais 28

O vazio 29

Os dois tudo 30

Como o incorporai salva a diferença 32

O incorporai e o vazio no âmbito da física 33

O lugaré tributário do vazio incorporai 37

O incorporai no âmbito da lógica 39

O incorpora] no âmbito da ética 47

Indiferença e preferíveis 48

Page 5: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

SEGUNDA PARTE

OS INCORPORAIS NA ARTE CONTEMPORÂNEA....... 53

A arte desmaterializada 61

Capítulo do vazio e do lugar 64

The Big Nothing 64

Formas dovazio 1: o buraco 66

Do deslocamento como obra 70

Vazio, lugar e sítio specific 73

Formas dovazio 2: o imaterial sob o signo do branco 76

O zeroforme como matéria-prima 84

Formas dovazio3: a retirada ou o deslocamento 85

Capítulo do tempo e do exprimível:

a arte imaterializada 89

Daintemporalidade do tempo 89

Tempo incorporai e acontecimento 93

Dificuldades: o destino, a repetição 97

Do exprimível 103

O exprimível-linguagem 104

O conceitual 109

O exprimível-extensão 112

Uma opção para a aura 113

O contextual 119

Expressão e exprimível ................................................ 121

TERCEIRA PARTE

OS INCORPORAIS NO CIBERESPAÇO 127

Um vazio teórico 131

Uma tentativa de estabelecimento: os imateriais 136

Um conjunto fragmentável 141

O inseparável 143

Formas do invisível 145

Primeiras recensões 148

Capítulo do tempo, do lugar e do vazio 152

O tempo 152

Nova configuração do tempo 154

Incorporeidade do tempo 156

O lugar 158

A perspectiva digital .................................................... 160

O vazio 162

Capítulo do exprimível e do virtual: a interatividade .... 166

Co-autor ou figurante 172

A ilusão da partilha .. 174

O espaço dovirtual segundo o exprimível 178

Uma gramática de links:a interface 182

Poética da interface 183

Uma poética ampliada 185

O virtual como arte 187

Revisitar a ficção 188

O elo "artista" 191

A arte do virtual como região da arte 194

PROPOSIÇÃO FINAL

PENSAR SEGUNDO OS INCORPORAIS 197

Modelos e miniaturas de mundo 200

O motor 202

A distância 205

O momento estóico 207

A indiferença, o impreferível 208

O momentoestóico na artecontemporânea 211

Page 6: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

PREFÁCIO

o que olha o João Batista de Ticiano na direção es­

querda do quadro, com um ar simultaneamente perplexo e

calmo? Para onde se dirige o olhar do João Batista de Leo­

nardo, enquanto seu dedo aponta, atrás de seu ombro, pa­

ra uma paisagem brumosa de rochedos e colinas? Todos

olham obliquamente, levemente atravessado, ao longe, não

se sabe para onde, ao passo que, em Giorgione, a mulher

que amamenta e o soldado montando guarda olham o va­

zio, um fosso que os deixa congelados, sem emoção .

Os pastores da Arcádia meio que nos dão as costas, o

olhar de viés, o dedo sobre uma inscrição indecifrável - não

se sabe quem é "ego" e a Arcádia é um país mítico -, a estela

- ou a tumba - está fechada, confinada. O grupo atento a sua

decifração parece evocar perfeitamente o momento delicado

em que o sentido, prestes a se dar, vacila, para finalmente se

esvair e escapar definitivamente. Mas ali, à beira da estela,

inclinados para diante, não o sabemos ainda; achamos, co-

Page 7: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

10 ANNE CAUQUELIN I'I~ E<1ÜENTAR os INCORPORAIS 11

mo eles, que o selo vai ceder. E, também como eles, não sa­bemos a língua e, como eles, balbuciamos desvalidamente.

Nós freqüentamos os incorporais

Freqüentamos os incorporais, na maior parte do tem­po, sem o saber. Quando tento me lembrar de um momentode existência, de um fragmento de tempo vivido, misturam­

se nessa reminiscência lugares, pessoas, tempo que passou

e tempo que é, falas trocadas: um tecido frágil, que tende ase desfazer se for auscultado de muito perto e cuja consis­

tência decorre exatamente da fluidez. O que se depreend e

dessa exploração é uma atmosfera, uma aparência, um in­vólucro de odores, de sabores e, aqui e ali, alguns elemen­tos distintos, dotados de uma forma mais nítida .

Peço às crianças para não se afastarem: "Não vão muitolonge". Essa recomendação não quer dizer estritamente nada.

Muito longe de quê? E o que é esse "muito" que não é quan­tificado, e não é quantificável, diríamos, visto que nenhuma

medida que pudesse servir de referência foi explicitada? Nãoobstante, a advertência é compreendida, não segundo as pa­

lavras em si, átomos no meio de um invólucro de sentidos,

mas segundo esse invólucro que "exprime" muito mais queas palavras.As crianças sabem o que significa "muito longe",tanto quanto sabem perfeitamente que devem não ficar mui­

to perto. Elas não levam em conta as palavras em si, simples

indicações em torno das quais se trama a significação. Narecordação de um encontro, dá-se o mesmo: formas - um

rosto, um gesto, uma conversa, o pedaço do jardim onde o

encontro teve lugar - destacam-se como figuras contra um

fundo. O fund o que lhes dá suporte permite-lhes emergir;

de se parece com o invólucro de sentido que dá suporte àspalavras, sobretudo, como átomos distintos. Ele é sua gra­

mática, aquilo que as liga.

Um invólucro que envolve as palavras, mas que não éa soma das palavras, um fund o que envolve os elementos

da lembrança, sem se confundir com eles: trata-se ali, é cla­

ro, dos incorporais familiares; estamos de tal modo acos­

tumados a eles que não os vemos e não iríamos procurarrazões de ser ou definições mais aprofundadas para os sim­

ples: "Ah! Sim? Não me lembro", ou "0 que você quer di­

zer?", ou ainda, "Em que você está pensando? - Em nada ".Tamb ém estamos acostumados ao fato de os retratos mira­

rem o vazio, ao fato de que as incompreensões subsistam

ou que, milagrosamente, desapareçam. Todos esses não­vistos nos cercam, nos solicitam e nos escapam, assim co­

mo os não-ditos, as frases não pronunciadas que, contudo,

entendemos apenas com "meia-palavra", vagamente, ou as

advertências formuladas pela metade e cujo sentido, apesarde tud o, apreendemos.

Geralmente, agiríamos como se nada fora, se fôsse­

mos, de temp os em tempos, apanhados pela imprecisão, ou

pelo vago, ou até mesmo por uma espécie de incompletude,cujo reflexo encontramos nas obras de arte; é nesse camp o

que o invisível é mais visível. E é lá que, no mais das vezes,

nós o buscamos. Por vezes, tentei a aventura por meio dapintu ra, buscando desalojar os anjos invisíveis que, a meu

ver, desde sempre a habitam. Mas a tentativa, muito próxi-

Page 8: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

12ANNE CAUQUELIN fREQÜENTAR os INCO RPORAIS 13

ma da figuração, não podia perseguir a invisibilidade ou aquase-desaparição. Com efeito, havia na pintura verdadei­

ros anjos, se assim se pode dizer, e, além disso, tudo o quepode levar a pensar em anjos - formas que evocam o bater

de asas ou o vôo e a desaparição, olhares perdidos ou ho­

rizontes longínquos. Exageradamente visível esse invisível!

Muito encantador, muito aurático . Cheio de reminiscências,de saberes implícitos . Quase a ponto de solicitar o espírito

ou a alma, ou ao menos o sentimento, quando fosse neces­

sária a nudez da própria matéria, sua total transparência.Essa transparência, o nada e seu momento não po­

diam ser encontrados por meio de sua representação: serianecessário buscá-los noutros lugares, ao preço de um des­vio, corno se se desse um salto no tempo e na teoria.

Esse é o desvio que me proponho a esboçar aqui. Umdesvio? Ainda falta saber por onde começar. Pistas não fal­tam, evários artistas contemporâneos têm em mente a mesma

busca ou exigência, precisamente esta: perseguir o invisível,visar ao inefável, desejar o nada, pretender-se transparente,apagar os próprios rastros, não ser nada. Eles fazem parte de

seus desejos e de seus projetos, de sua filosofia, eles escre­

vem, concedem entrevistas. Trata-se de urna pista relativa­mente fácilde seguir, porque ela mesma indica sua origem e

não teme expor seus ternas. O movimento tem sua fonte no

Oriente, nas religiões do abandono, do vazio, do silêncio e

da sombra; a partir dos anos 1950, nos Estados Unidos, com

o beat zen, um zen um pouco fluido, muito laxista, que privi­legia especialmente a evasão para longe das convenções; ou

um zen mais conseqüente, quadrado (square zen), com pio-

neiros corno[ohn Cage, que realmente inicia um novo modode (não) fazer arte. A negação de si e a renúncia, com hu­

mor também, parecem reinar desde Cage (ede Duchamp, de

passagem) sobre o mundo da arte, se não nos comportamen­tos, ao menos nas obras; a pista, o efêmero, a sombra da som­

bra, a ausência e o vazio são sobretudo senhas, e isso quando

a teologia negativa ou o iconoclasmo não são, eles mesmos,reivindicados. Desse modo, o zen é onipresente, e mesmo

que ele seja conhecido apenas aproximativamente, de ouvir

dizer, ou que não seja expressamente invocado, ele parece

dar todas as espécies de chave. Urnas são efetivamente úteispara a compreensão de algumas obras que reivindicam es­

sas chaves abertamente (corno, por exemplo, as peças de Ro­

bert Filliou), outras abrem qualquer coisa e são triunfalmente

brandidas corno se detivessem o segredo do mundo - pensa­mos, por exemplo, compreender melhor Wittgenstein abrin­

do-o com a chave zen' ...

Não é essa a pista que privilegiarei na caça aos incor­

porais, porque ela me parece artificial, corno se tivesse sidotornada de empréstimo - um disfarce que oculta, ou revela,

o desejo de sacralizar a obra de arte e o recurso a uma mís­

tica. O indizível, o imaterial ou até mesmo o incorporaI sãoaí exaltados corno valores assegurados, automáticos. Pare­

ce até evidente que toda a arte seja movida pelo desejo de

encontrar o invisível e de mostrá-lo, como se o artista tives­

se, de forma inata, o dom (e o dever) de abrir a obra para o

1. Cf. a passagem de A obra aberta, de Umberto Eco, "Le zen et l'Occident ",recentemente tradu zida para °francês pela Revue d'Esth étioue (Paris, n. 44, 2003),pp .49-64.

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14 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAROS INCORPORAIS 15

mundo da mística, ou ainda mais simplesmente, "de abrir

um mundo". Fala de essência que engendra fé.Ora, dado que, para mim, trata-se aqui justamente de

compreender em que consiste essa parte de invisível, de ima­

terial - ou seja lá qual for o nome que lhe seja dado - , pre­firo tentar o desvio por uma filosofia exatamente referente

à questão, nos termos e com uma lógica que conhecemos

bem, visto ser ela um dos alicerces do pensamento ocidental :

trata-se da teoria dos estóicos sobre os incorporais.

Motivos e expectativas

Vários motivos determinam essa escolha .O primeiro é que temos em mãos a caixa de ferra­

mentas apropriada para compreender a lógica dessa teoria

- portanto, o que podem ser os incorporais e como apreen­dê-los, ao passo que só dispomos de poucos ou de nenhum

instrumento para apreend er a filosofia oriental.

O segundo é que o recurso a uma teoria antiga per­mite evitar toda suspeita de misticismo ou de espiritualis­

mo: como havemos de constatar, a teoria dos incorporais é

uma teoria física.O terceiro é que essa teoria parece ser conveniente pa­

ra as obras da arte contemporânea, visto que ela revela os

diversos aspectos, ao mesmo tempo em que permite eluci­dar suas obscuridades, a meu ver, de modo muito melhor

do que o faria o recurso às filosofias místicas do Oriente.

Assim, por exemplo, a exposição, conceito contemporâneo

geralmente pouco entendido, toma uma nova dimensão

quando considerada pelo ângulo de um dos incorporais

estóicos: o "exprimível".Por fim, e talvez esteja aqui o motivo mais estranho,

porém, ao mesmo tempo, o mais indubitável, os incorpo­

rais estóicos nos levam a abordar o ciberespaço em umaperspectiva apropriada, liberada de toda tentação animistaou antropocentrada. Porque o pensamento estóico sobre os

incorporais interroga especificamente as noções que ho­je levantam dificuldades no mundo dos ciberobjetos: o vir­

tual , às vezes chamado de imaterial, o próprio imaterial, a

suposta realidade do tempo e, por fim, a gramática digital,

que define, envolve e transporta esses objetos.Podemos, então, esperar de um empreendimento como

esse que ele nos esclareça não apenas sobre a arte contem­porânea e o ciberespaço, mas sobretudo sobre o conjunto

formado por sua reunião; que ele possa ligar duas regiões

que em geral são tratadas separadamente, que possa, em

síntese, dar uma visão compreensita' de dois mundos que acrítica de arte tende a separar, ao passo que os estetas (pou­

co numerosos) que tentam juntá-los só têm como instru­

mento a noção bastante vaga de "continuidade da arte".E encerro esta exposição de motivos e de minhas ex­

pectativas com uma declaração de fé: a filosofia não é nada

se não ajudar a entender o que está diante de nós justa ­mente agora . Assim como os artistas, os romancistas, os

músicos e os poetas, aos quais não se nega o direito de se

2. Uma representação compreensiva é aquela que, seg undo os próprios es­tóicos, tem um fundamento real no objeto e recebe um assent imento, ou acordo. Elase refere sempre a um conjunto no qual todas as noções se apóiam mutuamente.

Page 10: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

16 ANNE CAUQUELIN I'REQÜENTAR OS INCORPORAIS 17

exprimirem no presente, nem de exprimirem o presente,os filósofos, anti gos ou men os antigos, falam do mundo

deles e do nos so; eles não passariam de múmias boas parao museu de glórias passadas se não fossem postos no real,ou seja, utilizados e até mesmo reinventados. Porque com­preender não é tentar substituir um conceito em seu com­

partimento de origem, mas fazê-lo funcion ar agora paranós. Compreender é fazer andar, é pôr em movimento.

Buscas

Desse modo, comecei este trabalho sobre o incorporaI.

De início, eu via o incorporai em toda parte, depois, passou­se um longo momento sem que eu visse mais nada: con­frontado com termos como imaterial, invisível ou virtual, o

incorporai gradualmente ia se obscurecendo. Foi então quepensei nos estóicos: era preciso ir a eles, e a Diógenes Laér­cio, a Sexto Empírico e aos outros comentadores. Passei

ainda um bom momento sem entender nada, apesar dasexplicações e das didatizações de um Émile Bréhier- (por

exemplo).Eu via, então, que existia não o incorporai - noçãogeral e v~zia -, mas incorporais; qu.~t;~, ·d~ fãto~/ij5?-is qua:­

tro são os incorporais: o tempo, o lugar, o vazio e o exprimi­vel", dizem eles. E esse plural muda tudo. Não se trata maisde uma essência - o incorporai em si - , mas de vários ele­

mentos concretos, nomeadamente designados. Não preci­samos mais buscar out ro mundo, porque esse mundo é o

3. Émil e Br éh íer, La th éorie des incorporels dane l'ancien stoicisme (4. ed .,Paris, Vrin, 1970 [1. ed. 1908]).

nosso, e os incorporais dele fazem parte. O tempo, o lugare o vazio, já os conhecemos, mas quando os pensarmos co­

mo "incorporais", sem dúvida, nós os veremos diversamen­

te; quanto ao exprimível, o último da lista, não sabemos oque ele é, mas imaginamos facilmente - sem dúvida, por

causa do termo grego'lea on - que ele introduz nas zonas

francas essas margen s onde se dá o habitual de nossas con­versas e onde intervêm de modo fantasmático impressões,

aparições e desaparições, leves esquecimentos e memórias;

ele é, sem dúvida, aquele que nos seria o mais familiar, o lu­

gar dos implícitos da linguagem, da interpretação. Mas co­

mo fazer com que ele seja posto no mesmo plano dos outros

três? Qual é a utilidade dessa reuni ão?É, portanto, um dispositivo bem estranho que teremos

de penetrar e ao qual certamente não atribuímos o lugar queele merece, não apenas em filosofia - apesar da tentativa de­

leuziana de reabilitação -, mas sobretudo no campo das ar­

tes, onde no entanto o termo - se não a noção - é reivindicado(Klein ou Barry, entre outros, fazem apelo a ele), e no da práti­

ca, que se tornou habitual, das comunicações cibernéticas.

Como fazer?

Mas como fazer sem se referir à fonte? Sem, já de iní­

cio, reler os estóicos? Teremos de passar por lá, pois é pre­ciso estar certos de não estar cometend o gafe e de não

tomar o incorporai por aquilo que ele não é, sucumbindoà tentação de ver ali o tácito, o ind izível, o misticismo ou

a espiritualidade. O que os estóicos podem nos ensinar é

Page 11: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

18 ANNE CAUQUELIN

justamente não cair no pathos do indizível, é manter os pésna terra, tentando incluir o incorporaI no seio de um dis­

positivo lógico - a representação compreensiva.A primeira coisa a fazer, portanto, é interrogar esse

exprimível e seus três acólitos, unidos na classe dos incor­porais. Quais são eles, que lugar eles têm no sistema estói­

co? Em que medida eles se impõem e por quê? Esse será o

objeto da primeira parte ("Os incorporais dos estóicos").

Na segunda parte, tentarei examinar de que maneira

as obras de arte contemporân eas se apoderam do incorpo ­raI e que lugar elas lhe reservam ("Os incorporais na arte

contemporâ nea").

A terceira parte tenta estabelecer uma passagem entre aminiatura do ciberespaço e o modelo do mundo oferecido pe­

los incorporais estóicos ("Os incorporais no ciberespaço").Por fim, uma última parte tenta ampl iar a compreen­

são dos incorporais aos comportamentos ordinários, que

nã o pertencem esp ecificam ente às atividades artísticas

nem aos requ isitos da cibercultura ("Pens ar segundo osincorporais").

Vê-se, desse modo, que meu propósito é duplo: trata­

se de auscultar esse pensamento segundo as práticas con­' temporâneas, mas também se trata, em contrapartida, eleauscultar essas práticas segundo os incorporais. E 'possí­

vel que os estóicos nos levem por atalhos para ver de ou­

tra form a as coisas de nosso tempo, assim como também épossível que eles se percam de nós ou que nós nos perca­

mos deles sem levar nada em troca. Esse é um desafio que

vou querer encarar.

PRIMEIRA PARTE

OS INCORPORAIS DOS ESTÓICOS

Page 12: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

"Pois quatro são os incorporais: o tempo, o lugar, ovazio e o exprimível."

De partida, essa asserção, seguida ou duplicada por

outra: "Tudo é corpo". Não podemos imaginar uma fun­

damentação mais paradoxal como ponto de partida. Não

apenas as duas proposições estão em contradição, como a

primeira delas é completamente misteriosa: o que vem a ser

esse exprimível (lekton) e o que tem ele a ver com o lugar,

o tempo e o vazio? Fechada sobre si mesma, perfeitamen­

te obscura, a asserção parece tomar sob suas asas um du­

plo campo: o da física (lugar, tempo e vazio) e aquele que

corresponde ao lekton, do qual se pressente, sem muita se­

gurança, que se trata da lógica, da linguagem ou, de modo

mais genérico, do pensamento.

Comparada à primeira, a simplicidade rude da segun­

da afirmação causa admiração, fora até mesmo da oposição

que manifesta com a primeira.

Page 13: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

22 ANNE CAUQUELIN 1'1":,l.)ÜENTAR os INCORPORAIS 23

o que, desse modo, se oculta a nosso entendimento

decorre das duas ligações: a que une o lekton às entidades

físicas que são o lugar, o tempo e o vazio, e a que justa­

põe a primeira proposição e a segunda. A primeira estabe­

lece uma heterogeneidade como um todo, situando-a sob

um a propriedade comum: o incorp oraI. A segunda, de iní ­

cio, estabelece a homogeneidade do tod o, inclusive a do in­

corporaI e do corpo, visto que tud o é corp o.

Desse modo, os incorporais pertenceriam ao uno­

todo, isto é, ao corpo. Mas, ao mesmo temp o, esta riam li­

vres dele. Dizer que tudo é corpo e que o incorporai existe

é defini r que existe um vínculo - quando menos ambíguo

- entre os dois. E dizer que esse víncul o é, precisamente,

incorporal é fechar o circuito sobre si mesmo. Entram os no

paradoxo de mãos e pés atad os.Com efeito, como encontrar na primeira proposição

o que é um incorporaI? Não obstante, isso seria necessá­

rio, dado que de sua definição depende a das quatro enti­

dad es submetidas a seu império. Mas não! Justamente ao

cont rário, devemos deduzir o que é o incorporaI a partir

dos quatro exemplos propo stos. Ora, as quatro entidades

físicas citada s estão bem longe de nos permitir compreen­

dê-lo, sobretudo porque uma entre elas não parece exata ­

mente física. É o que Plutarco observa, na pena de Amyot

(com um quê de humor): "Defendem os estóicos que todas

as causas são corporais, sobretudo se forem espíritos". Di­

remos, então, que tud o é corpo, mas que o incorporaI se

faz presente nos arredores, ao lado, ou mesclado ao cor-

po? E o que sign ifica essa justaposição ou, especialmen­

Il ', essa mistura?

Em busca de uma resp osta nos textos estóicos ou na­

quilo que deles nos resta, deveremos abandonar a op osi­

\'50 - que, de tão familiar, parece um tru ísmo - entre corp o

l ' espírito, entre corp o e não-corpo, para poder avançar um

I)()UCO em uma concepção tão sutil quanto paradoxal de

suas relações.

Deveremos também, e na mesma ocasião, abando ­

nar o espírito de divisão que caracteriza a an álise e pen­

sar "mis tura". Esses dois traços nos serão muito úteis para

ausculta r a arte contemporâ nea e a cibercultura; se, com

os estóicos, não se trata com efeito de hibrida ção, nem de

mestiçagem, eles nos põem, contudo, a caminho de com­

preender melhor o que sign ifica "encadea mento", o concei­

to-chave de nossas culturas atuais.

O uno-todo

o todo, a mistura, a fusão (krasís) é um dos conceitos

do sistema estóico mais facilmente reconhecíveis. Ele reina

sem divisão sobre domínios aparentemente os mais remo­

tos un s dos outros, como a lógica, a física ou a moral.

Se, como dizem os estóicos, o mundo é precisamente

uma totalidade an imada pelo sopro que atravessa todas as

coisas, nenhuma parte pode ser separada dela sem perder

imediatamente seu sentido . Assim como o conhecimento

desse mundo, que deve se manter em harmon ia com ele,

Page 14: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

24 ANNE CAUQUELINI;REQÜENTAR OS INCORPORAIS 25

também deve ser visto como uma totalidade. À forte coe­

são que mantém juntos os elementos do universo corres­

ponde a interpenetração dos elementos do saber. A esse

respeito, as primeiras linhas que Diógenes Laércio consa­

gra aos estóicos são absolutamente claras:

Eles comparam a filosofia a um ser vivo: os ossos e os

nervos são a lógica, a carne é a moral, a alma é a físi­

ca. Eles também a comparam a um ovo: a casca é a ló­

gica, a clara é a moral e a gema, justamente no centro,

é a física. E ainda a uma terra fértil: a sebe que a cer­

ca é a lógica, os frutos são a moral, a terra e a árvore

são a física [... ]. Eles não preferem parte alguma à ou­

tra. Ao contrário, pensam que elas se interpenetram e

as ensinam juntas.'

A comparação da filosofia com um ovo, um ser vivo,

uma terra fértil ou uma cidade retoma o tema do todo in­

dissociável, mesmo que para alguns a lógica seja a gema e,

para outros, a casca, enquanto a física toma o lugar da ge­

ma central. Não importa! O que vale é que o ovo, o ser, o

terreno ou a cidade são seres vivos e crescem a partir do in­

terior graças às trocas entre suas diversas partes.

Em outros termos, o conceito do todo se aplica a ca­

da parte da doutrina, tomada separadamente, mas tam­

bém ao conjunto das partes, que ele une. Acabamos de ver

1. Diógenes Laércio, Vies,doetrines et sentences desphilosophes illustres (trad.Robert Grenaille, Paris, Garnier/Flammarion, 1965), tomo li, livro VII, p. 64.

uma manifestação disso com a proposição liminar dos qua­

tro incorporais. A lógica, com o lekton, e a física, com lugar,

tempo e vazio, formam um todo. À primeira vista, isso po­

de causar impressão.

Com efeito, para os filósofos da Antigüidade, cada par­

te do conhecimento é distinta: em Aristóteles, por exemplo,

os livros da Física são uma coisa, os da Retórica ou do 6r­

ganon, outra. A ciência se divide para ser eficiente e não se

pode sair misturando tudo. Gêneros, categorias: trata-se de

ordenar toda essa desordem em torno de nós, cada qual em

seu lugar. Aqui, o cientista; ali, o artista; e logo adiante o ar­

tesão. As especialidades nos separam, nós vivemos delas.

Ora, com os estóicos, estamos diante de uma mistura

porque, à preocupação da física (o que é o mundo?), vem se

superpor - ou se impor - esse lekton como uma primeira e

quarta entidade que dá nascimento à suspeita: se o lekton per­

tence ao mundo como um desses elementos, então a física

não se distingue de uma lógica, a lógica é um elemento do

mundo, assim como o lugar, o tempo ou o vazio, e isso sob o

mesmo título e na mesma posição. Essa é uma proposição tão

perturbadora que freqüentemente preferimos esquecê-Ia-.

É claro que admitimos, sem maiores dificuldades, ser

a mistura o princípio e que ela está no princípio do estoi­

cismo: uma alma, um sopro que atravessa o universo e

2. É o que faz, por exemplo, Pierre Duhem em sua rigorosíssima exposiçãoda física estóica; mesmo elogiando sua extrema originalidade, não diz uma só pa­lavra ~obre a_quil~ que justamente a funda: o exprimível, situado no mesmo planodas tres noçoes físicas. Cf. Píerre Duhern, Le systémedu monde (Paris, Hermann,1958 [1. ed. 1913]), tomo I, pp. 301-20.

Page 15: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

26 ANNE CAUQUELlN l'I\!':üÜENTAR os INCO RPORAIS 27

nos une a ele, uma harmonia à qual devemos amor e res­

peito, a gota de vinho que se mistura a todo o mar.. . Isso

sim . Contudo, por mais que sejamos plenos de reverência

por essa filosofia inspirada no uno-todo, nós nos apres­

samos a esquecê-la para destacar a lição de moral das te­

ses lógicas e físicas . Pegamos uma, jogamos fora as outras

ou, mais precisamente, ignoramos o vínculo interno que

as constitui, especialmente porque, pensamos nós, as teo­

rias antigas do lugar, do tempo e do vazio seriam obsole­

tas e valeriam unicamente como veneráveis testemunhos

do passado da ciência . Isso seria atribuição de uma histó­

ria da filosofia ou de uma história das ciências. Só resistiria

para todos, universalmente, aquilo que está fora do tempo

e fora da ciência: uma ética, lições de vida, essa moral é, de

longe, o que melhor conhecemos de todo o sistema, mui ­

to bem auxiliados nisso pelos Sêneca, pelos Epicteto e pe­

los Marco Aurélio.

Mesmo assim, a ética estóica tardia não deve levar a

esquecer sua fonte, nem seus vínculos com o conjunto da

doutrina, sobretudo com a física. Ignorar essa coesão inter­

na seria não apenas contrário à doutrina que se pretendia

expor, mas também se impedir a si mesmo de compreen­

der aquilo que ela tem de verdadeiramente original e o

motivo pelo qual, justamente, ela nos ocupa.

Desse modo, na passagem que nos interessa, acerca

do lugar, do tempo, do vazio e do exprimível, essa coesão,

esses vínculos, esses intercâmbios entre física e lógica se

fazem graças à noção comum à qual todos os quatro per-

icncem: os incorporais. O g~~ surpreende é a aproximação

do exprimível, que parece pertencer à lógica, com noções

como o lugar, o tempo e o vazio, que parecem, por sua vez,

ter uma existência sensível. E justamente o acréscimo des­

se exprimível, lekion, e sua fusão com as outras três noções

fazem da tese estóica algo especialmente singular. Sem o

exprimível, ela se situaria na mesma seqüência das teorias

físicas pós-aristotélicas, com os mesmos debates sobre o

vazio, o infinito e o movimento do mundo, isto é, todos os

ingredientes da ciência, tal como concebida na Antigüida­

de. Mas, com o exprimível, o jogo é outro: o acréscimo desse

simples vocábulo impede que nos detenhamos na divisão

clássica e permaneçamos apenas no campo da física. O en­

xerto do lekion, do exprimível, não é um acréscimo externo

que se poderia retirar com um golpe certeiro de escalpelo,

ele está íntima e inteiramente ligado ao conjunto.

Estabelecida como pré-requisito, a unidade-una do

mundo é, portanto, justamente o pano de fundo contra o

qual se exprimem os elementos constitutivos da nature­

za. Não podemos ignorá-la, nem deixá-la de lado, como

um "dogma" à parte. Essa unidade, o mod o como são teci­

dos os vínculos que preservam a harmonia, é isso que de­

vemos ter presente ao espírito se quisermos ent ender algo

dos incorporais.

E vemos logo a confirmação disso assim que come­

çamos a olhar mais de perto as definições dos quatro in­

corporais. Com efeito, não podemos isolá-las para tratá -las

separadamente, pois cada uma delas depende das demais.

Page 16: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

28 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORP ORAIS 29

Isso dificulta sua exposição, pois não podemos seguir um

encadeamento que iria do simples ao composto, com cada

nova etapa apoiando-se sobre a etapa precedente. Assim

como não podemos apresentar tudo ao mesmo tempo, si­

multaneamente: a ordem do discursivo se recusa a isso.

Então, que fazer, senão começar por uma ponta, não

importando qual? É o preço a pagar pelo todo-uno: te­

remos de exprimir a coesão pela fragmentação, a ordem

perfeita e harmoniosa por uma desordem de movimentos

esparsos, a simplicidade original do conjunto pela repeti­

ção dos temas presentes em cada parte.

Épor isso que prefiro, retomando a palavra de Apolo­

doro-, que chama de "lugares" as diversas partes da filoso­

fia e que considera ser necessário tratá-las sobretudo como

pontos de vista reunidos por seus objetivos, mas separados

para o uso prático do ensino ou da exposição, tratar esses

lugares como aspectos, como "ao ladode". Dessa forma, ve­

remos os quatro incorporais, cada vez de um lado: do lado

da física, do lado da lógica e do lado da ética .

Lugares dos incorporais

Se há um tema da física constante entre os antigos,

trata-se exatamente da reflexão em torno do lugar e do va­

zio. Tudo o que se relaciona à posição do mundo, à da ter-

3. Diógenes Laércio, op. cit.: "Apolodoro chama esses diferentes ramosde lugares".

ra e do céu, à dos astros e a seus movimentos, à dos objetos

desse mundo e de sua relação entre si é considerado como

uma etapa indispensável para o conhecimento. Os estói­

cos não escapam a essa necessidade, eles têm uma teoria

do lugar e do vazio.

o vazio

O vazio (to kenon) é uma das três especificações do es­

paço, ao lado do lugar (topos) e da extensão (khora) . Ele pa­

rece ter uma importância de primeiro plano nas discussões

dos filósofos antigos. Em torno dele, com efeito, movem-se

as idéias de existência e de não-existência, de ser e de não­

ser, de existência do nada, ou do vazio.

Existe o não-ser? Que seria isso? Problemas especifi­

camente filosóficos, a partir dos quais compreendemos a

divisão das escolas de pensamento. O vazio evoca, para se

definir, entre os Antigos, não a experiência sensível, mui­

to menos a experimentação, mas uma concepção global do

mundo: limitado e ilimitado, finito e infinito, contínuo e

descontínuo, em outros termos, uma visão do universo, o

que é e o que não pode ser, levadas em consideração as op­

ções tomadas quanto à existência, ao pensamento e à na­

tureza dos corpos.

A única maneira de discutir isso é, portanto, o racio­

cínio, a argumentação. Enquanto elemento de uma física,

o vazio ou a ausência de vazio dependem, pois, da consis­

tência de uma lógica, de um logos.

Page 17: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

30 ANNE CAUQUELIN I'REQÜENTAR OS INCORPORAIS 31

Os dois tudo

Aquilo que é verdadeiro para todo filósofo da Antigüi­

dade - para quem a concepção do mundo é fundamental

em sentido estrito: ela funda todas as análises mais par­

ticulares - está singularmente presente nos estóicos. Sua

concepção do todo, original, intervém de maneira decisiva

na definição do vazio.

O universo é uno, isto é, finito, limitado e pleno. É um

corpo e nele tudo é corpo, onde circula a vida - um fluxo

tenso contínuo, que irriga todas as suas partes. Nele, en­

tão, nenhum vazio que fosse capaz de interromper o fluxo

impediria a tensão interna de se propagar, traria perigo àcoerência do todo. Coerência, unicidade do todo; o céu e a

terra, unidos pela simpatia e pela tensão (sympnoian e syn­tania), não resistiriam ao corte representado pelo vazio-.

Esse todo do universo é chamado de to holon. Contu­

do, e nisso há uma novidade, o universo não é o todo. O

todo é chamado de to pano Ele compreende tanto o corpo

limitado, bem estabelecido, bem acabado do mundo quan­to um espaço sem alto nem baixo, sem limites, sem orien­

tação, que não contém nenhum corpo, um puro incorporai:

o vazio que rodeia o universo. Desse modo, to pan admite,

ao mesmo tempo, o existente, o mundo, e o não-existente,

o incorporaI, no qual se banha o corpo do mundo. Um in­

corporaI, o vazio, é o lado de fora do mundo.

Plutarco, na tradução de Amyot: "Os estóicos dizem

que há diferença entre o todo e o universo, pelo fato de o

4. Ibidem, livro VII, p. 99.

todo (to pan) ser o infinito com o vazio, e o todo sem o va­

zio, o mundo (to holon): de modo que isso ainda não é todo

uno, mas o todo e o mundo">. Ou, dessa vez, nas palavras

de Diógenes Laércio: "0 todo (pan), segundo Apolodoro, é

o mundo (kosmos), ou ainda, em outro sentido, o sistema

composto do mundo e do vazio". E acrescenta: "0 mundo,

portanto, é finito; o vazio, infinito'».

Essa diferença não é assim tão evidente. Com efeito,

se o argumento para excluir o vazio do mundo é admissível

- ele é quase o mesmo que o argumento de Aristóteles, que

o excluía inteiramente do mundo e de seu exterior -, como,

então, um espaço que, por definição, pode conter, mas não

contém corpo algum, pode conter o mundo?

Pois é justamente essa a definição do vazio dada pe­

los comentadores, de Possidônio a Cleomedes: "É chama­

do vazio um espaço que não contém corpo algum, mas

que é capaz de contê-lo"? O próprio Diógenes Laércio faz

a definição do vazio, capaz de conter corpos sem contê-los,

transitar para a noção do incorporai: "Fora do mundo se

difunde o vazio infinito, que é o incorporai; o incorpora] é

aquilo que é capaz de conter corpos ou de não contê-los:".

O incorporai se torna, então, um lugar. "Incorporais, o lu­

gar e o vazio são uma mesma coisa, que é chamada 'vazio'

5. PscudoPlutarco. Desopinionsdesphilosophcs (trad. Amyot, apreso e anol.Éric Dubreucq, <www.abu.cnam.fr».

6. Diógenes Laércio, op. cit., livro VII, p. 98.7. Clcomedcs, Théorie des mouvements circulaires des corps célestc», apud

Pierrc Duhcm, oI'. cit., p. 311.8. Diógenes Laércio, oI'. cit., livro VII, p. 97.

Page 18: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

32 ANNE CAUQUELIN 11''iI)OENTAR os INCORPORAIS 33

quando nenhum corpo a ocupa, e 'lugar' quando é ocupa­

da por algum corpo".

Aquilo que circunda o mundo seria então não um va­

zio, mas um lugar, visto que contém o corpo do mundo. E

se aquilo que circunda o mundo é um lugar, esse lugar, in­

teiramente ocupado pelo mundo, é co-extensível a ele e de­

le não pode se distinguir. Eis, portanto, o vazio reabsorvido

pelo lugar: não podemos mais pretender que exista um va­

zio fora do mundo, e a diferença entre halos e panse anula.

Voltaríamos, portanto, à teoria de Aristóteles: a de que não

existe nenhum vazio nem dentro, nem fora do mundo, teo­

ria recusada pelos estóicos . É preciso, pois, manter a qual ­

quer custo a diferença entre pan e halos, conservar o vazio

em torno do mundo. Isso decorre da coerência, não apenas

da física dos estóicos, mas também de sua lógica e de sua

moral, por mais estranho que isso possa nos parecer hoje.

Como o incorporai salva a diferença

Ora, é possível manter essa diferença entre pan e halosrecorrendo ao auxílio da noção de incorporaI. Com efeito, é

o incorporai que vai servir de passagem, de articulação entre

vazio e lugar, entre mundo e vazio. Se o vazio fora do mundo,

mesmo circundando o corpo do mundo, não pode ser cha­

mado de um "Iugar",mas continua a ser um vazio, isso se de­

ve ao fato de ele ser antes de tudo asomaton, um incorporaI.

Precisamos, então, compreender o que significa "in­

corporal" e como o vazio pode ser chamado de incorpo-

1.11 , mesmo contendo o corpo do mundo, se quisermos, ao

I1 H -srno tempo, não perder de vista a coesão do sistema es­

11 .ico e compreender como as teses lógicas e morais podem

',(' desenvolver a partir da noção de incorporaI.

Se chegarmos a apreendê-lo em sua ambigüidade fun­

.l.unental. o vazio pode nos servir para explorar os outros

incorporais dos quais sabemos que fazem parte o lugar, o

k-rnpo e o exprimível, bem como outras coisas do pensamen­to". O vazio seria, então, uma espécie de peixe-piloto em

nossa pesquisa. O mesmo poderia ter se passado com o ex­

primível (lekton) - essa foi a escolha de Émile Bréhier - ou o

tempo; mas o vazio me parece uma noção mais facilmente

imaginável, uma representação mais naturalmente percep­

tível e, portanto, mais apta que o tempo ou o exprimível a

constituir um paradigma; e specialmente porque o conceito

de vazio nos conduz diretamente às obras contemporâneas

que o reivindicam, ou ao menos jogam com seus diferentes

aspectos ou formas. Apostamos que as duas abordagens,

por mais distantes que estejam no temp o, apresentarão

muitos pontos em comum .

O incorporal e o vazio no âmbito da física

O fluxo que atraves sa o mundo e o mantém coeso é

chamado de pneuma, sopro ou ar, ou ainda alma. Esse so-

9. Porque há outros incorporais como os pensamentos, as idé ias, a mern ó­ria: "05 incorpo rais e outras coisas percebidas pela razão (.. .1o sentido das pala­vras é incorp orai" (Dióge nes Laércio. op. cit.).

Page 19: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

10. Ibidem, livro VII, pp. 156-7.

A terra e a água conservam sua unidade participando

da essência espiritual e como efeito da potência qUl'

pro é corporal, ele é quente, é um fogo criador, em ação, que

gera o que existe. Esse sopro também é chamado "alma"

(psykhê), que é capaz de sensação, e percebe: isso se deve ao

fato de a alma ser corporal e, enquanto tal, suportar e agir,

viver e sobreviver para além da morte. E somos, nós os hu­

manos, uma parte dessa alma, do universo, sopro cáIido.

Desse modo, partilhamos os oito elementos que com­

põem essa alma, esse sopro: primeiramente, os cinco sen­

tidos, depois o poder gerador (spermatikous, seminal) e as

capacidades da fala e do raciocínio. Aquivemos que a capaci­

dade de falar e a de raciocinar são corporais, visto que fazem

parte da alma, ela mesma corporal. Comose fosse um ospíri­

to que nos é inerente, a alma é, com efeito, um corpo",

Essa alma anima nossos corpos humanos e tuckl () que

vive, e se move no mundo e move o própriomundo. I)l'ssa for­

ma, o mundo pode se expandir e se contrair ao ritmo do so­

pro criador, à semelhança de um coração batendo. Temos aqui

um ~specto da física, aquele que se refere à natureza dos ele­

mentos: a matéria, a massa, o peso, a tensãoe a pulsão, os flu­

xos gasosos. A massa da terra está submetida a duas forças

opostas, uma que faz pressão desde fora, outraque impõ« uma

coerência interior pressionando os corposuns contra <lS out n is,

Temos testemunho disso em dois textos. Um é de Plutnrco:

35

pertence ao fogo. São o ar e o fogo que, por efeito desua elasticidade, mantêm em seu estado esses dois pri­

meiros elementos e que, misturando-se com eles, lhes

fornecem a pressão (tonos), a estabilidade e a consis­tência substancial."

Há em torno dos corpos certo movimento gerador depressão, movimento que é dirigido, ao mesmo tem­

po, do exterior (eis to exo) e do interior para o exterior.

O movimento do interior para o exteriordetermina as

grandezas e as qualidades dos corpos,o que é dirigidodo exteriorpara o interior produz a coesão e a consis­tência substancial.v

o outro, de Nemésio:

FREQÜENTAR OS INCORPORAIS

Dessas tensões alternadas provêm dilatação e contra­

ção; simpatia, isto é, acordo-coesão, e tensão, ou seja, fluxo.

Mas para que esse movimento de dilatação/contração

do universo possa ser executado, é ainda necessário que

um espaço sem corpo, um asomaton - um incorporal -, se­

ja associado a ele; um espaço que não represente obstácu­

lo, que não oponha nenhuma resistência, nem tenha forma

alguma capaz de incomodar sua respiração, não exerça ne­

nhuma atração, não oriente minimamente a dilatação para

11. Plutarco, "Des notions com munes, contre les Stoiciens", em Pierre­Maxime Schuhl (org.), Les Stoiciens (trad. Émile Bréhier, Paris, Gallimard, 1962),p.182.

12. Nemésio, De l'homme, apud Pierre Duhem, op. cit., p. 303.

1•

ANNI<: CJ\LJ<.1LJELlN34

Page 20: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

o alto ou pa ra baixo, porque, no vazio, orientação alguma

prevalece, não há alto nem baixo; em suma, um espaço que

não exerça nenhuma ação constritora e que permaneça in­

tacto no caso de o mundo se contrair: o lugar que ele ocu­

pou em cert o momento volta a ficar livre de qualquer pista.

Assim é o vazio incorporai que cerca o mundo: um espaço

de indiferença, de microgravidade, de impassibilidade.

Com efeito, a natureza do vaz io (ou sua substância,

seg undo Cleomedes) é tal que não possu i absolutamen­

te nenhum caráter além do de ser apta a conter corpos. O

próprio Cleomedes acrescenta que essa substância do va­

zio é incorporai e intangível, "ela não pode receber nenhu­

ma figura, ela é simplesmente tal, de modo a poder admitir

um corpo em si mesma". Definiç ão completa, mesmo que

pareça sumária, e que nos mostra o pap el atribuído ao va­

zio incorp orai no sistema do mundo.

Porque há realmente um papel a ser desempenhado

pelo vazio, que tem a ver com a vida do universo, dando­

lhe o espaço suficiente para que, ora se contraindo, ora se

dilatando, ele possa viver até a conflag ração final , ou seja,

até o fim do ciclo de anos que o universo deve cumprir an ­

tes de recomeçar outro.

Com efeito, o tempo está suspenso em sua própria

realização: assim como o lugar, sua natu reza é incorporaI;

invisível e intangível, ele só é corpo em um momento: o pre­

sente; antes do presente e dep ois do presente - no passado

e no futuro -, ele absolutamente não é, um inexistente, um

incorporai apto apenas a acolher corpos, só então tomando

corp o ele próprio, no m~mento oportuno. Algo nessa natu-13. Edmund Husscr l, Leçons pour une phénom énologie de la consdence intime

du temps (trad . Hem; Dussor t, Par is, I'tlF, 1964).

37FREQ ÜENTAR OS INCORPORAIS

Com efeito, o que éválido para o mundo e para a pos­

sibilid ade de sua extensão graças ao vazio incorpora i tam ­

bém é plenam ente válido para o lugar terrestre: existe lugar

quando há corp o ali onde antes havia nada; mas se o cor­

po se retirar, o lugar retoma ao vazio.

É imp ossível pensar o lugar (topos) sepa radamente do

vazio: acabamos de ver que o vazio só se torna lugar se um

corpo o ocupar. O lugar emerge do vazio como aquilo que

repentinamente é ocupado por um corpo, mas esse mes ­

mo lugar volta a se r vazio se esse corpo lhe for subtraído.

reza incorporal do tempo leva a pensar nas lições husser­

lianas sobre a consciência íntima do tempo». O antes e o

dep ois, protensão e retenção, dissolvem- se simultaneamen­

te em um traço imperceptível e rapidamente extinto, dei­

xando a descoberto a fragilidade do instante sem futuro .

Em resumo, o jogo entre espaço com corp o e espaço

sem corpo, entre mundo e vazio, caracteriza a marcha do

mundo es tóico, e esse jogo só é possível graças ao incor­

poral . Mas não se limita a isso o pap el do vazio incorporaI.

No interior do mundo propriamente, e não ma is no siste ­

ma -universo, existe uma alternân cia semelhante: lugar e

vazio se substituem um ao outro pe rmanentemente.

o lugaré tributário do vazio incorporai".i .·I

'r ~

ANNE CAUQ UELIN36

Page 21: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

De alguma maneira, o lugar também é intangível, sempre

prestes a se esvanecer na medida do movimento dos cor­

pos, de suas idas e vindas. Efêmeros, imponderáveis, os lu­

gares são também incorporais, assim como sua antítese, o

vazio. Eles surgem e se dissolvem, segundo as determina­

ções dos corpos que eles se contentam em enquadrar.

Essa é a razão pela qual, ao lado do lugar e do vazio,

não há o mínimo espaço no dispositivo estóico para a exten­

são, designada pelo termo khora e da qual Zenão diz que não

é nem isso, nem aquilo: "Em parte ocupada por um corpo e

em parte não ocupada". Definida dessa forma, a khora não

pode ser de utilidade alguma nem ter papel algum a desem­

penhar no mundo pleno dos estóicos, percorrido por um so­

pro inteligente e criador que o atravessa. Crisipo, por sinal,

recusa-se a dar-lhe um nome: "Se uma parte é ocupada e

outra parte é não ocupada, o conjunto não será nem um lu­

gar nem um vazio, mas algo que não recebeu nome", e pros­

segue: "Talvez se trate de um espaço intermediário ou de

um espaço intermediário que cedeu seu lugar". De toda ma­

neira, um espaço desses, sem nome, sem característica de

vazio nem de lugar, só pode servir para designar uma ma­

téria sem forma, inanimada, em todo caso, nada que possa

servir de referência ao pan e ao halos. Talvez uma extensão

dessas seja simplesmente um espaço de trânsito, da ordem

da prática. O que equivale a dizer que ela é insignificante.

O único espaço onde o vazio e o lugar poderiam encon­

trar-se juntos e misturados seria o chaos, que não seria incor­

poraI, porque é, ao contrário, todo pleno de corpos lançados

'Ü incorporal no âmbito da lógica

39

O que ocorre no âmbito da linguagem, do pensamen­

to verbal - expressão e significação -, e como pensar o fa-

FREQÜENTAR os INCORPORAIS

em grande desordem, sem que continuidade alguma os li­

gue entre si. Receptáculo de todas as coisas, e desde o prin­

cípio dos tempos, o caos não teria nenhuma forma definida,

nenhuma orientação interna, nenhuma força que a massa

tivesse lhe conferido. A idéia de mistura que tal amontoa­

do poderia oferecer está muito distante da mescla na qual os

estóicos pensam, que é compenetração (krasis) da matéria e

do sopro e que assegura a ordem e a coesão do conjunto.

O fato de só podermos pensar o lugar contra um fundo

de vazio incorporaI dá ao lugar, mesmo estando ele repleto

de corpos, o toque de incerteza e de indefinição necessário a

sua entrada na quadriga dos incorporais. E é apenas quando

fazemos o desvio pela natureza do vazio estóico que pode­

mos compreender a incorporeidade desse lugar que nos pa­

rece a nós, modernos e sem dúvida aristotélicos mesmo sem

o saber, tão fundamente ancorado nas profundezas da terra.

A impermanência do lugar como entidade física é algo

que nos impressiona, a ponto de, muitas vezes, nos parecer

absurda. Mas uma vez aceita a idéia dessa impermanência

e do papel atribuído ao vazio, podemos compreender que

um mesmo dispositivo rege outros territórios: o da lógica

e o da ética. Começamos a duvidar da solidez da gramática e

da constância da moral.

ANNE CAUQUELIN38

Page 22: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

40 AN NE CAUQUELlN

,FREQüENTAR OS INCO RPORAIS 41

moso lekton, que Émile Bréhier traduz por "exprimível" e

Robert Drew Hicks por "meaning?>, enquanto Agostinho

o nomeava como "dicibile"? Mesmo aqui, o vazio incorpo­

rai ainda nos servirá de piloto.

Sexto Empírico afirma e reafirma, ao longo de seu Con­traos matem áticos», que o lekton, aquilo que pode ser dito,

o "linguajável", é incorporaI. Mas ele é incorporai porque,

assim como o vazio em torno do mundo, ele envolve um

corpo finito, determinado, limitado, ao qual ele opõe sua

ilimitabilidade, sua natureza indefinida e sem atração par­

ticular. Só podemo s pen sar esse incorporai a partir do cor­

po que ele envolve, assim como não poderíamos pensar o

vazio senão a partir do corpo do mundo.

Mas qual é, então, esse corpo que cerca o lekton, o ex­

primível? Crisipo nos diz que é o som vocal, a voz, a pala­

vra: todos corpos, pois eles agem; a voz, o som emitido pela

boca, toca meus sentidos, penetra o ouvido . "A voz é ar que

recebe um choque, é um corpo, pois todo agente ativo é um

corpo." Assim como a palavra (lexis), que é formada de sons

vocais, é um corpo . Éum som articulado, bem redondo, bem

pleno, com sua textura, seu peso, sua densidade, mas "difere

da linguagem, porque a linguagem [logos] tem um sentido

[semantikos], mas existem palavras desprovidas de sentido

rasemos] como blituri, o que não é o caso da linguagem'w.

14. Émile Bréh íer, La théorie des incorporels dans l'ancien stoi'cisme (4. ed ., Pa­ris, Vrin, 1970 [1. ed . 1908]); e Robert Drew Hicks, Diogenes Laertills (Camb ridge,Harvard University Press, 1991).

15. Sexto Empírico, Against the logicians (trad . R. G. Bur y, Cambridge, LoebClassical Libra ry, 1983), livros I e 11.

16. Diógenes Laércio, op. cit., livro VII, pp. 69-70.

Por isso a linguagem é parcialmente feita de sons

trazidos pela voz, de sons articulados em palavras, que,

enquanto corporais, são definidos, limitados; podemos des­

crevê-los, dividi-los, soletrá-los, recompô-los. Porque são

matéria, eles se prestam aos exercícios aos quais os subme­

temos. Agentes quando ferem o ar, pacientes quando são

dispostos em diver sos arranjos, esses elementos correspon­

dem pontualmente à definição dos corpos. Mas em sua ou­

tra parte, a linguagem escapa às defin ições e às limitações.

Trata-se da parte "incorporal" da linguagem. O sentido das

palavras pronunciadas, aquil o que compreendemos quan­

do as ouvimos, abre para o domínio das significações.

Entre o termo significante (semaion), que é um cor­

po, e o objeto designado pela palavra, que também é um

corpo, uma ponte liga a pala vra à coisa, trata-se do semai­nomenon, do sentido. Ele pode ser classificado como incor­

porai e é, sem dúvida, o lugar do lekton, do exprimível.

Que faz o exprimível , o lekton? Ele insere um esp aço

entre pal avras e coisas. É exatamente o espaço da ligação,

aquilo que torna possível a passagem do um ao outro. En­

tão, mesmo que o termo significante permaneça como cor­

poral, em estado bruto (é um som articulado), o sentido é

o resultado de uma elaboração do pen samento c, nesse as­

pecto, provindo de um trabalho invisível, int angível (ade­

lon). Feito de lembranças, de costumes, de classificações

convencion adas, de ordenações, o sentido advém à pala­

vra por um caminho de pensamento. Esse cam inho é uma

passagem, como o lugar e, assim com o ele, é incorporaI.

Page 23: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

42 ANNE CAUQ UELIN FREQÜENTAR OS INCO RPO RAIS 43

"Há pensamentos que se fazem por passagens [metabasis]como os exprimíveis [lekta] e o lugar'v,

Dessa forma, o exprimível incorporai não é toda a lin­

gua gem, nem tampouco tudo o que cai sob o domínio da

significação (as diferentes espécies de proposições, os silo­

gismos, os diversos mod os de dizer); ele é, antes de mais, o

que possibilita a ocorrência de uma sign ificação, seu acon­

tecimento, na medida em que o que é dicibile ou exprimível

pode ser dito ou expresso sem obrigatoriamente dever ser.

Nenhuma determinação, nada além do espaço livre da apti­

dão. Se ele tem um destino, esse destino é, ao oferecer esse

espaço vazio, ser aniquilado pela forma que o discurso toma

ao ocupá-lo. Como toda condição, depoi s de ter cumprido

seu papel de condição, nada subsiste além de uma presença

invisível que só uma aten ção constante pode desalojar.

Portanto, se uma parte da linguagem é corporal e, por

isso mesmo, finita, limitada e definida, a parte da linguagem

que é incorporai, aquela que aqui me interessa, é ilimitada,

infin ita, sem orientação, sem atração particular, indiferente,

à semelhança do que se passa com o vazio no caso da física.

Ao dar ao exprimível e ao lugar a mesma função de pas sa­

gem, Diógenes Laércio assegura a comparação.

Da mesma forma como o mundo se cerca de vaz io,

de modo a poder respirar, estender- se ou contrair- se, as­

sim também a fala se cerca de um espaço de silêncio, de

uma neutralidade e de uma indiferença que permitem ao

17. Ibidem, p. 69.

sentido existi r. Um espaço sem coerção determinada, ade­lon, nã o evidente, invisível e sem dúvida intangível, cuja

presença é simultânea ao discurso manifesto. Simultânea,

porque o vaz io não é posterior ao que é dito, como podería­

mos crer ao pensar no silêncio que se segue a tod o discur­

so ou nos esp aços "brancos" que pontuam a fala. Ele está

presente com e ao mesmo tempo que toda palavra pronun­

ciada, que toda enunciação, seja ela qual for, pois é a con ­

dição mesma dessa enunciação.

No mundo plen o e ínt egro do estoicismo, tudo está

ali, perfeitamente síncrono e não em sucessão, como se se­

guiria m, por exemplo, a condição e dep ois a realização, ou

de in ício o vazio e, em seguida, o mundo. Não. A cond i­

ção est á compreendida naquilo que ela condicion á. como

se fosse seu núcle o e seu fim: se o vazio é a condição do lu­

gar, ele permanece presente com e no lugar quando o lugar

emerge, visto que ele rep resenta sua dest inação final. O

mesmo se dá com a linguagem, quando as palavras priva ­

das de sentido (asemos) se apresentam em um a seqüência

de enunciações composta s, entrando no jogo da s signifi­

cações , desse mod o adquirind o o sentido de que carecem;

seu não-sentido permanece presente nas enunciações mais

eruditas e mai s bem referenciadas como a condição de seu

sentido e (quiçá) seu fim últ imo .

Essa disposição particular, que gera simultaneamen­

te dois momentos que estamos analisando separadamente

como uma condição e sua realização, não significa, contu­

do, que o tempo seja abolido. Com efeito, aqui se rep ete o

Page 24: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

44 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 45

mesmo jogo do lugar e do vazio, onde, como vimos, o vazio

está presente no lugar, fazendo-o render-se a sua imper­

manência incorporaI. Naquilo que se refere à sucessão e à

simultaneidade, dá-se o mesmo: com efeito, o tempo, que

pensamos como próximo da impermanência, de cuja fu­

ga nos ressentimos e cujo encaminhamento tememos, nos

escapa, mas não, ao menos é o que achamos, em sua mar­

cha contínua para um futuro pressentido ou nas pegadas

de um passado que vai se apagando, e sim na própria cons­

tituição de um presente que cremos reter.

Porque essa constituição do presente é aquela, para­

doxal, de uma "sucessão simultânea": é assim que Hus­

serI a nomeia!". Longe de abolir o desenrolar do tempo,

essa disposição que dá, ao mesmo tempo e conjuntamen­

te, o presente e sua desaparição, revela sua natureza de

intervalo; realmente, segundo Crisipo, "o tempo é o inter­

valo do mundo". Intervalo: em outras palavras, uma es­

pécie de suspensão do movimento do tempo, uma pausa,

uma parada em seu contínuo desenrolar-se. Mas suspen­

são ilusória, parada que vacila. A simultaneidade detém a

sucessão para ser reabsorvida logo depois e como que en­

golida por ela.

Esse é o presente da fala, do dizer, um enunciado que

detém a seqüência de outros enunciados possíveis, uma

sucessão suspensa pelo tempo exato de se pôr no espaço

vazio do exprimível para cumulá-lo e dele fazer um lugar,

18. Edmund Husserl, op. cit.. seção 3, § 36, p. 101.

mesmo que esse lugar seja imediatamente varrido, engoli­

do pelo movimento vindouro.

Então, o tempo aceitaria o vazio em sua própria consti­

tuição, ele que se apresenta como ininterrupto, sempre flu­

tuante, fiando sua linha imperturbável? É certo que ele não

admite vazio no curso de seu movimento, porque ele se

sucede a si mesmo na seqüência de instantes; da mesma

forma como o fluxo animado - esse sopro cálido, a alma

- que atravessa o mundo e o mantém em tensão, o movi­

mento contraído do tempo mantém unida uma sucessão

de instantes independentes, frágeis, sempre vacilantes.

Poderíamos até dizer que o tempo é uma das figuras, uma

das manifestações desse fluxo cujas características ele

possui.

Contudo, o papel do vazio é patente, claro que não

como forma interveniente na integralidade plena do tem­

po, mas como mecanismo que permite seu funcionamento.

Com efeito, dá-se com o temporal o mesmo que se dá com

o lugar e com o exprimível: eles emergem contra um fundo

de vazio que os contamina, sua existência é minada pela

incorporeidade do vazio à qual eles pertencem. Em outros

termos, o vazio (to kenon) acompanha o fluxo temporal, as­

sim como o exprimível incorporai acompanha a lingua­

gem. Dessa forma, uma oscilação entre vazio e lugar, entre

corpos de palavras que se sucedem e espaço do sentido in­

corporai, rege a fala. E esta não é a menor das curiosidades

da tese estóica: que o campo da linguagem é aquele onde

mais nitidamente aparece o que se passa com o tempo; não

Page 25: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

46 ANNE CAUQUELIN FREQüENTAR OS INCORPORAIS 47

que a disc ursividade da linguagem seja a metáfora do tem­

po que passa e, de algum mod o, sirva de exemplificação

do duplo movimento do tempo, mas que o "linguajável"

intemporal tem a mesma estrutura do temporiz âoel, per­

m itindo então apreendê-lo concretamente, objetivamente,

fora da subjetiv idade que afeta os estados de consciência

ligad os às in stân cias temporais. O instante cada vez úni­

co, incessantemente recomeçado, no qual apreendemos em

um só movimento a aparição e a des aparição do tempo, é

justame nte aquele no qual a enunciação adquire sentido

em meio e no movimento de uma sucessão de enunciados

que imediatamente o anulam como enunciação.

Uma das grandes originalidades da teoria estóica e seu

ponto alto é o cruzamento dos "lugares" da física com os

da lógica, de tal modo que a ordenação dos elementos em

um dos campos explique e seja explicado, isto é, desdobra­

do, evidenciado pela ordenação do outro. Com base nes ­

sa concep ção que liga os elementos da física aos da lógica,

a ponto de eles se interpenetrarem intimamente, os estói­

cos não descuidaram de fazer a ética entrar no jogo global

de suas definições. Descobrir o vazio incorporal, o lugar e

o tempo desempenhando seu papel na doutrina moral dos

estóicos nã o nos surpreenderá, pois.

É verdade que a estranheza de suas sentenças acerca

da melh or conduta humana e das regras de vida a respeitar

pareciam tão provocantes a seus concidadãos e a seus co­

mentadores que os debates se concentraram sobre o con ­

teúdo das proposições mais que - como seria necessár io

ter feito - sobre aquilo que as mo tiva: o esquema subja­

cente que as relaciona entre si e, sobretudo, aquilo que as

relac iona à visão geral do mundo que a lógica e a física

oferecem ao mesmo tempo. Ora, é justamente o papel dos

incorporais, a natureza de suas ord enações, que possibilita

compreen der a maior parte da s prescriçõe s éticas preten­

same nte contrad itórias ou escandalosas.

O incorporai no âmbito da ética

Realmente escandalosa é a questão (e a resolução) da

indiferença (to adiaphoron) e dos preferíveis (proegmena),

que até hoje continua a desafiar o bom senso.

Trata-se de prescrever ao sábio a indiferença diante de

tud o o que poderia afetá-lo, tanto pa ra o bem quanto para o

mal, de preservar um estado de ata raxia, que o torna indife­

rent e às tribul ações do mundo externo . Inabalável, impassí­

vel, ele deve atravessar a própria vida sem se deixar enredar.

Uma atitude dessas atrai imediatame nte críticas, mas, mai s

grave ainda, essa indiferença não exclui que o sábio prefira

algumas coisas a outras, o bem ao mal, a saúde à dor, e re­

jeite os "irnpreferíveis" (aproegmena). Em que nível as dua s

atitudes podem ser compatíveis? Como, ind agam os comen­

tad ores, perman ecer ao mesmo tempo em uma perfeita indi ­

ferença para com os objetos do mundo externo e, ao mesmo

tempo, reconhecer que há coisas preferíveis a outras?

Ao aborda r o suicídio judicioso do sábio, Plutarco não

deixa de assinalar a estranheza - a absurd idade - da situação

Page 26: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

48 ANNE CAUQUELlN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 49

à qual conduz a contradição entre preferível e indiferença :

"Pode haver maior contradição para pessoas que alcança­

ram o ápice da felicidade do que deixar os bens que elas pos ­

suem atualmente porque lhes faltam coisas indiferentesr?».

Cícero, por sua vez, tenta esvaziar a contradição remetendo

à questão dos fins: é preferível que o dado que eu jogo caia

para me fazer ganhar do que perder. Mas esse preferível não

é preferível em si, mas apenas em vista de um fim escolhi­

do: ganhar a partida». O dado mesmo cai indiferentemente

de um lado ou do outro. É um modelo de indiferença. Devo,

então, ser como o dado? Mas se eu fosse constituído de mo­

do semelhante ao dado e para mim tanto fizesse ganhar ou

perder, por que eu jogaria?

Indiferença e preferíveis

"Prefere o que amas", dizia Aristóteles. Sentença for­

te, que faz apelo à decisão e ao desejo, linha de força pa­

ra uma conduta de vida. Nesse sentido, a ação de preferir

é voluntária, afirmada. É tomada por uma pessoa certa da

própria escolha e determinada a fazer valer seu desejo.

Aqui, "amar" é uma afirmação que não se pode subesti­

mar. A preferência só faz acentuar o sentimento do prazer

que o amor pode proporcionar, concedendo-lhe o primeiro

19. Plutarco, "Des contradictions des Stoiciens", em Pierre-Maxime Schuhl(org.), op. cit., p. 108.

20. Cícero, Les académiques: des biens et des mallx (trad. Cha rles Aphun,Pari s, Garn ier, 1935), 1Il, XV/XVI, pp. 290, 281.

lugar entre os outros sentimentos. É que nós estamos em

uma ética, aquela chamada "a Nicômaco", na qual a inves­

tigação visa à felicidade .

Mesmo assim, a ação de preferir não tem essa resso­

nância entre os estóicos, nem se situa no mesmo terreno.

Entre eles, não se visa à felicidade, mas à sabedoria: então,

estamos no terreno do conhecimento. História completa­

mente outra! Com efeito, deixamos os territórios incertos

da subjetividade - um prefere isso, outro aquilo; para sicra­

no, vale mais isso, para beltrano aquilo; alguém encontra

sua felicidade enquanto o outro ainda a busca , tantos juí­

zos relativos, pouco seguros e indignos do sábio.

Contudo, mais uma vez, o que imp orta aqui não é tan­

to a impassibilidade do sábio e a condução de seu raciocí­

nio que estão em jogo, mas, antes de mais, a natureza e o

papel de uma noção como a indiferença no jogo das outras

noções . Porque existem bens e males, paixões e ações, co­

mo corpos formando mundo (halos), no seio de um uni­

verso (pan) que compreende esse mundo e o vazio que o

cerca. Essa comparação, que, a meu ver, é sobretudo uma

verdadeira equivalência, ajuda-nos a resolver a contradição

desvelada por Plutarco e registrada por Cícero entre a in­

diferença afirmada e as preferências exibidas .

Com essa contradição, estamos com efeito na mesma

situação desconfortável de antes com a contradição susci­

tada pelo lugar do mundo no vazio: enquanto situado no

vazio, o mundo deveria aniquilá-lo como vazio e transfor­

má-Ia em Iugar. .. No caso dos preferíveis e da indiferença,

Page 27: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

50 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 51

a indiferença também deveria ser aniquilada pelos preferí­

veis, porque o que é preferido traz consigo a distinção e a

diferença; de um lado, com efeito, o preferido exibe sua di­

ferença, por outro lado, aquele que prefere sai de seu esta ­

do de indiferença.

Mais do que rodear o problema, acumulando exemplos

artificiais, tentemos pensar a indiferença como se se tratas­

se do vazio incorporaI. Teríamos ali um espaço de senti­

mentos sem nenhuma inclinação, nenhuma orientação, um

espaço indefinido, sem limites, sem alto nem baixo: tudo ali

é igual e igualmente sem peso; nada de atração, nem ten­

são, nem pressão, um estado de microgravidade. Da pura

indiferenciação, um estado de impreferibilidade total, como

aquele que Bartleby apresenta humildemente diante de to­

da pressão ou apelo da parte de seu patrão, mesmo quando

se trata de algo completamente a seu favor».

Não obstante, há uma diferença entre a indiferença es­

tóica e a impreferibilidade de Bartleby: é a extrema mobi­

lidade da primeira e a rigidez da segunda. Bartleby jamais

abandona uma impreferibilidade que é também uma impe­

netrabilidade : ele está surdo ao mundo que o cerca e não

sente nenhuma afeição por ele, até morrer. Por sua vez, a

indiferença estóica é um estado "apto a acolher corpos" e, Io­

ga, a se aniquilar como indiferença ... o tempo de uma pre­

ferência, de uma distinção. Assim como o vazio incorporaI,

21. Herman Melville, Bartlebv, lhe Scrioener, 1853 [ed, br.: Bartleby, o escri­vão (São Pau lo, Cosac & Naify, 2005)].

que aceita um corpo durante o tempo de se tornar um lu­

gar e depois recua a seu estado primeiro, ou como a lingua­

gem, cuja parte incorporaI, o exprimível, aceita conter um

corpo de palavras para logo depois substituí-lo por um sen­

tido incorporaI e, enfim, assim como o tempo, que é capaz

de conter um corpo: o presente, mas se fecha sobre ele, en­

golindo-o na sucessão, a indiferença acolhe a diferença, mas

permanece implicitamente contida no ato dessa acolhida .

Dessa forma, os preferíveis formam corpos, ilhotas

corporais bem definidas, de contornos nítidos, que emer­

gem contra o fundo indiferenciado do espaço mental, fun­

do que permite, que possibilita sua emergência, assim

como torna perfeitamente possível sua desaparição. A in­

diferença se encerra sobre si mesma e retoma à substância

do vazio, não sem antes ter deixado sua marca sobre o ob­

jeto preferido: a sombra de um acontecimento.

Assim como o lugar vacila nos limites do vazio, apare­

ce e desaparece segundo o movimento dos corpos, os pre­

feríveis nascem e se desvanecem ao menor sopro da alma

que os leva ora à distinçã o, ora ao apagamento. Portanto,

em torn o do vazio incorp oraI também se articulam tanto

elementos lógicos como o exprimível, como elementos éti­

cos como o ind iferente e os prefer íveis. Aqui, assim como

vimos que ocorria com a física do mundo ou a natureza da

linguagem, o vazio incorporaI permite apreender o que, ao

senso comum, parece contradição.

No espaço da doutrina estóica, o vazio incorporaI tam­

bém desempenha o papel do quadrado vazio no jogo de

Page 28: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

paciência: ele permite mover os peões, inserindo um espa­

ço neutro, indiferente, por onde podem tran sitar as peças

do jogo sem que por isso elas percam suas característi cas

próprias . Zero essencial, espaço hesitante de uma sombra,

o incorporai permite respirar fora, mas muito perto do cor­

po que ele acompanha.

Para admitir essa figura de pensamento estranha a

nossa lógica ordinária, não há dúvida de que é necessário

renunciar a vários princípios ou idéias que nos são costu ­

meiros: por exemplo, à idéia de uma sepa ração entre espí­

rito e matéria, visível e invisível, e, paralelamente, à idéia

de uma equ ivalência entre invisibilidade e imaterialidade,

assim como entre imaterialidade e espiritualidade. Assim

como é preciso renunciar à idéia que geralmente se faz do

virtual como recobrindo os campos do invisível e do ima­

terial, a isso acrescentando uma pitada de mistério: a idéia

de uma força oculta, de um a potência obscura que tende a

se realizar segundo as ocasiões que se lhe apresentam.

É todo esse conjunto de pré-conceitos que devemos

passar pelo crivo do incorporai estóico, não porque fosse ne­

cessário conceder-lhe mais crédito que às noções comuns

de hoje, mas porque ele aparece como um excelente instru­

mento crítico diante de nossas práticas contemporâneas.

52 ANNE CAUQUELlN

' .,.;~l. ,

SEGUNDA PARTE

OS INCORPORAIS NA ARTE CONTEMPORÂNEA

Page 29: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

,..,' .

..,'1

..

. ,

o camp o onde podemos examinar a questão do incor­

poraI e, ao mesmo tempo, testar sua utiliz ação e sua eficá­

cia hoje não é mais o da física, nem o sistema do mundo

- os físicos, os astrônomos, os matemáticos ocupam-se de­

le e fazem malabarismos com as partículas, os fluxos, os

quanta - , um terreno no qual não me atreveria a segui-los.

É, cur iosamente, em uma região que os estóicos não abor­

da ram, a região da arte, que se põe a questão do incorp o­

rai ou, mais exatamente, a ques tão do corpo. Com efeito, é

nesse campo que o incorpora I é evocado. Mesmo que ape­

nas indiretamen te e como por inversão porque, em vez de

fazer a pergunta diretamente, a li mesmo: "O que é um in­

corporal?",a pergunta é feita de revés: "Por que o corpo es­

tá ausente da arte contemporâ nea?".

Isso pode sur pree nder, mas é fato que a demanda de

corpo no domínio artístico é um a exigência atual, repetiti­

va, obstinada, lancinante. Com efeito, tornou- se um tema

Page 30: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

56 ANNE CAUQUELIN FREQÜENfARos INCORPORAIS 57

quase inevitável nos debates sobre a arte contemporânea,

especialmente a partir do momento em que se passa a tra­

tar da art e chamada digital. O corpo ainda existe? Não

existe mais corpo, o corpo próprio do artista se ausentou,

são as máquina s que operam ou que pintam, calculam, in­

ventam. Mas elas inventam precisamente? Aliás, que má­

quinas? Existem máqu inas e máquinas, e se tomarmos

esse caminh o, é preciso reconhecer que o próprio corpo

tamb ém é uma máquina. E agora? Não se consegue pa­

rar de revirar e requentar essas questões em todas as con­

versações e ocasiões mundanas. Pré-conceitos e bordões

convencionais são constantemente repetidos: obra "feita

a mão" contra técnica, concreto contra abst rato, emoção

contra frieza. Ah! A emoção... o indizível, justamente . É

ela, a emoção, que nos transporta. Como? Para onde? Ru­

mo a quem? Na direção de quê? Não se sabe . Não obri­

gatoriamente na direção do belo, mas rumo à arte : out ro

mundo, ma is longínquo, remoto. Porque isso transcende,

isso deve transcender. Como, então? É o corpo que serve

de plataforma para a outra margem, lá onde precisamente

não há mais corpo, apena s espírito, ou o espiritual, como

se diz? Já podemos ver que as coisas se complicam. Nad a

parece realmente claro nessa reclamação.

Queremos o corpo. Mas o corpo, na arte, é tudo o que

se quer: a mão do arti sta, que tensiona o corpo todo pa­

ra a ação; essa tensão é também, evidentemente, o espíri­

to, cosa mentale, que dir ige a mão; corporal é a prática, que

provoca o exercício, mas corporais são também a medita-

. i

ção, a inteligência sem a qual prática alguma existe. Corpo

é tamb ém a obra, que é material: tela, pigmento ou pedra,

mármore, mad eira, cimento; corpo também são todos os

tipos de instrumento, e os suportes; depois, os instrumen­

tos e as máqu inas - porque são necessários, para misturar,

carregar, tran sportar, suspender, depositar, instalar. Ao

corpo próprio do artista, juntam-se também os elementos

de seu meio. Em suma, chama-se corpo tudo o que se rela­

ciona ao criador, trate- se de espírito ou matéria. Digamos,

então, que esse corpo tão altam ente reivindicad o é pura e

simplesmente o ind ivíduo, cuja presença "por trás" da obra

se quer sentir. Mas essa presença é, ela mesma, corporal?

Não se trata, ao contrário, de um incorp oral. inapreensí­

vel, impalpável? E esse "por trás da obra" não é, ele tam­bém, intangível?

Eis-nos reconduzidos, sem ter avançado em nada, à

questão inicial: que queremos dizer com corpo quando rei­

vindicamos o corpo, ou quando pretendemos que () corpo

esteja presente, a despeito das aparências, como no caso do

digital, por exemplo?

É preciso decidir-se a pensar que essa reclamação é

desprovida de sentido, que ela não significa, ao fim de tu­

do, nada além de certo mal-estar diante do estado "gasoso"

da arte contemporânea'? Ou antes, e de modo mais geral,

tratar-se-ia precisam ente do sentimento de inquietude que

1. Constatado e denu nciado, não sem vervc, por Yves Michaud em Lar! àl'état gazellx (Paris, Stock/H achetle Littératures , 2003).

Page 31: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

58 ANNE CAUQUELIN FREQ üENTAR O S INCO RPORAIS 59

acompanha uma desaparição, a do corpo, que se torna ob­

jeto de manipulações tecnobiológicas? Então, compreen­

deríamos melhor a verdadeira proliferação atual de textos

sobre a importância do sexo, sobre a erotomania ou a por­

nografia-. Tudo se passa como se o sexo passasse a ser o

ponto focal da resistência às máquinas abstratas, à preten­

sa imaterialidade da matéria. Fechados em torno de sua se­

xualidade, os humanos, enfim, só teriam uma prova de sua

identidade: o prazer do coito e a capacidade de se repro­

duzirem. Dessa forma, a peça de acusação contra todas as

formas de arte que parec em quest ionar a corporalidade da

obra e a corporeidade do artista não perde sua intensidade,

justamente o contrário.Ora, e isso pode parecer bem estranho, nunca existiu

mais corpo nas atividades artísticas do que na arte atual: a

maioria das obras que nos são mostradas são plenamente

corporais; entendamos com isso que elas se ocupam, ante s

de mais, do corpo: a dança, que ocupa um lugar de primei­

ro plano, ao mesmo tempo, nos espetáculos e na literatura

- teórica e crítica - , depois as instalações de objetos cotidia­

nos, bana is, Íntimos - ou seja, escolhidos nas cercania s do

corpo do autor - , ações triviais, repetitivas, freqüentemente

domésticas, reconstituição de apartamentos ou de hotéis; ou

ainda as intervenções que oferecem mutilações, tatuagens,

posturas forçadas, bifurcações protéticas diversas e trans­

formam o corpo humano, a ponto de às vezes transformá-

2. Excetuando os livros , um jornal como o Libération pub licou co tidiana­mente, em julho e agosto de 2005, um volum oso caderno sobre sexo .

. !

,I

lo em algo irreconhecível. Ao lado dessas obras expostas de

maneira definitivamente tradicional, atualmente uma arte

biotech se instala, utilizando os recursos da cirurgia do en­

xerto, da clonagem e as pesquisas genéticas. A arte biotechvisa a uma reconciliação corpo/máquina por meio de mani­

pulações das culturas de tecidos, do capital genético, crian ­

do então, não a tran sformação de corpos já constituídos,

mas procriando, por assim dizer, novos tecnocorpos.

O rlan, o artista expon encial das operações cirúrgi­

cas e das manipulações dig itais que lhe permitem tran s­

formaç ões fisionômicas, abandona-as hoje para se dedicar

a experiências biotecnológicas. Seu projeto: assar em bior­

reatores culturas de sua própria pele hibridizada com a de

um doador negro para dar continu idade a sua série de au­

to -retratos africanos feita com mat éria viva. Martha de

Menezes expõe auto-retratos que representam seu cérebro

em atividade ut ilizando a resson ância magnética, que per­

mite visua lizar em tempo real o funcionamento do cére ­

bro. Oron Catts e lona Zurr implementam culturas vivas

a partir de sua própria pele, visando fazer com elas bo­

necas híbr idas e semivivas, que eles alim entam em úteros

artificiais; Art Orienté Objet também propõe aos colecio­

nadores auto -retratos biotech para serem enxertados; Dalia

Chauveau (L'agence pour le clonage) e Cath erine Ikam tra­

balham, por sua vez, sobre e com a clonage m'.

3. Cf. o ca tá logo da expos ição L'Art Biotc ch (Nantcs, f'iligm nes , 2(03). Cf.tam bém a revis ta ETC (Mon trea l, n . 68, " Portrait de soi", 2004 -2llllS), especia lmen­te o artigo de Ch ristinc Pa lmicri, " De l'expression de soi à l'exprcss íon de la ma -

Page 32: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

60 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 61

Portanto, temos corpo, e bastante, na arte contemporâ­nea, e a reivind icação de que falávamos parece, diante dis­

so, ainda mais intrigante. Em contrapartida, não deixa deser verdade que as obras desse tipo não são percebidas pe­lo público como arte, quando, aliás, ele chega a conhecê-Ias

- o que é raro. Acontece, então, que ao lado de obras perce­bidas como realmente "corporais", outras são percebidas co­mo sem corpo, isto é, "sem arte". Parece, contudo, que não

se trata, de modo algum, de reclamar corpos representados,nem de figuração; seja com a escultura, a pintura, o vídeoou a fotografia, a questão da abstração parece ter sido en­

tendida, assim como a da art e conceitual. Se isso incomo ­da, é, pelo menos, suportável e, aliás, admitido: é assim. Nãose trataria, portanto, dos corpos nasobras, mas do corpo daobra e o corpo do artista como objeto de reivindicação.

Mas, e aqui temos outra curiosidade, se o corpo é reivin­dicado, o incorporai não está excluído. Para dizê-lo em outrostermos, a arte é um lugar onde se manifesta uma exigência de

"imaterialidade",ao mesmo tempo que uma exigência de cor­poralidade.A transcendência é exigida: qual, como, de que es­pécie é essa imaterialidade, transcendência, invisibilidade ou

incorporeidade? Temosaqui um assunto bem misterioso.Além de uma questão de terminologia, de uma distin­

ção entre os termos, é evidente que essa parte de incorpo­

rai é um elemento importante na percepção que o públicotem das obras e que esse elemento tem parte e papel tantona atividade do artista como na do espectador. Tentar elu-

tiêre", a revista Cit és (Paris, PUF, n. 21, "Refaire son corp s; corps sexué et identit és",2005); e o Dictionnairedu corps (Paris , PUF, 2006).

cidar os termo s, apreender qual é essa parte é justamentemeu propósito aqui, mas meu intento será também dizer

que as questões do nada e do vazio não coincidem neces­sariamente com as questões do invisível ou do indizível,que a desmateriali zação não responde aos mesmos requi ­

sitos respondidos pelo imaterialismo e que o imaterialis­mo não está obrigatoriamente ligado ao espiritualismo eao misticismo. É nesse ponto que a teoria dos estóicos so­

bre os incorpora is pode ser útil, até mesmo indispensável,para resolver as confusões.

Esses termo s têm claramente certo ar de parentesco

entre si, o que facilita os mal-entendidos. Mas, assim co­

mo em uma família, na qual os diversos membros puxam

a um ou outro lado, também aqui os termos se aproximam

para melh or se distinguirem; não há nenhuma regra que

prescreva que invisível signifique religioso, ou que o "na­

da" seja obrigatoriamente o nirvana, ou ainda que seja ne­

cessário ader ir à filosofia zen para falar do vazio ou dá-lo

como exemplo. Não há dúvida de que é por falta de recor­

rer às obras em si e de seguir suas pistas que muita s vezes

se teoriza "no vácuo".

Portanto, tentarei convocar as obras a partir de agora,

e isso sob o regime dos quatro incorporais estóicos.

A arte desmaterializada

Comecemos pela primeira das causas geralmente evo­

cadas quand o falamos da perda do corpo:adesmaterialização

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62 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAROS INCORPORAIS 63

daarte, título do livro de Lucy Lippard-. Desmaterialização:

é como Lippard qualifica o movimento que leva os arti s­

tas americanos dos anos 1960 a renunciar ao objeto de ar­

te único, classificado por gênero autônomo e valendo por

si mesmo, segundo a tradição modernista, e a se interessar

por sua minimização, por seu relacionamento com outras

atividades artísticas como a dança, o teatro, as performan­

ces, a música, tudo isso acompanhado por um gosto pelo

comum, pelo cotidiano; em suma, a trabalhar para fazer

desaparecer todas as marcas de "grande arte", de arte mo­

numental, de identificação possível dos autores, dos gêne­

ros e dos objetos enquanto arte em si. Limpa-se a cena da

arte, abre-se espaço. Vista dessa forma, a desmaterializaçãoé um empreendimento que tem suas próprias regras, seus

conceitos, suas práticas, poderíamos dizer: sua ideologia. A

art e deve se libertar de seus vínculos com o sistema da arte;

é uma crise de independência que se apodera dos artistas

durante os six years descritos por Lucy Lippard . E, como to­

da ideologia, ela tem seus santos padroeiros, os padres fun­

dadores dessa nova prática.

Não é nosso objetivo tentar fazer aqui uma hierarqui­

zação, nem um histórico das entradas dos artistas no ce­

nário da arte - saber se elas são inaugurais ou não -, nem

ainda comparar sua influência recíproca, mas testar a rela­

ção de suas obras com o incorporaI; com efeito, se os auto-

4. Lucy Líppard, 5ix Years:TIle dematerialization of theArt Object f rom1966to 1972 (Londres, Stud i Vista, 1973).

res ut ilizam os termos "desmaterialização" ou "imaterial",

o que é que isso significa, e em que medida suas obras são

conse qüentemente "incorporais"?

Com efeito, uma ambigüidade ma ior pesa sobre o ter­

mo "desmaterialização": não se trata minimamente de pra­

ticar uma atividade artística que disp ensaria os materiais;

os materiais estão lá, e bem lá: toneladas de terra , de aço,

de madeira, de suportes os mais diversos. Chega até a ha­

ver no minimali smo rebuscado uma espécie de gigantis­

mo, dado que minimizar e desmaterializar são operações

políticas, culturais, decorrentes da exploração das obras e

do sistema de vendas, bem como do princípio de separa­

ção dos gêneros, mas não das matéria s utilizadas no traba­

lho artístico. Trata-se de uma relação metafórica que a arte

desmaterializada mantém com a desmaterialização.

Contudo, por mais metafórico que tudo isso seja, ele não

deixa de ter um efeito sobre o conjunto das práticas da época,

às qua is se põe a questão do "como". Como se desembara­

çar de formas de fazer habituais, como perseverar na prática

da arte escapando às convenções? Curiosamente, as respos­

tas à pergunta pelo "como" encontram -se no âmbito de uma

reflexão sobre conceitos com os qua is já deparamos: são os

quatro incorporais dos estóicos: o vazio, o tempo, o lugar e o

exprimível, que vão estar no centro das diversas "desmate­

rializações", e isso desde os anos 1960 até hoje.

Proponho-me a estudar cada uma dessas noções em

relação com o que ocorre e com o que ocorreu no camp o da

arte: cada uma delas é, com efeito, ut ilizada tanto nas pr á-

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THE BIG N OTHING

Capítulo do vazio e do lugar

ticas como nos discursos que as acompanham - e eu acres­

centaria: no mais das vezes, sem o saber.

65FREQüENTAR os INCO RPORAIS

da do vazio, que tem na scimento nas primeiras décadas

do século xx, não foi invalid ada depois, e o vazio - sejam

quais forem os aspectos pelos quais ele se manifestou ­

não abandonou facilmente a cena da arte. Várias geraç ões

de artistas se filiam ao pensamento do vazi o segundo mo­

dalidades particulares, mas a preocupação é comum: a land

art, com Smithson sobretudo, mas também Oldenburg e

Roshenbach, e de Klein a Robert Barry, passando por

FiIloux e [ohn Cage, enquanto Barthes e Blanchot (e até

mesmo Wittgenstein!) são cham ado s em seu socorro .

A exposição The Big Nothing do In st itute of Con­

temporary Art (ICA) , Filadélfia (maio-agosto de 2004), reú­

ne os artistas do "grande nada", e a lista é impressionante:

lá estão Bas [an Ader, Ayreen Anastas, Richard Artschwager,

Michael Asher, Michel Aude r, [o Baer, Robert Barry, Lar­

ry Bell, Bernadette Corporation, [ames Lee Byars, Maurizio

Cattelan, Thom as Chimes, Bruce Conner, Day Without

Art, Jessica Diamond, Roe Ethridge, Lili Fleury, René Gabri,

[ack Goldstein, Kath arina Fritsch, Dominique Gonzalez­

Foerster, Nicolas Guagnini, Heavy Indu stries, Richard Hook,

Roni Horn, Pierre Huyghe, Gareth [ames , Ray [ohnson,

Yves Klein, [oachim Koester, [utta Koether, Yayoi Kusama,

Loui se Lawler, Gordon Matta-Clark, Allan McCollum, Pa­

trick McMullen , [ohn Miller, Matt Mullican, Eileen Neff,

Gabriel O rozco, Raphael Ortiz, Charlemagne Palestine,

Philippe Parren o, WiIliam Pope L., Doris Salcedo, Karin

Schneider, Allan Sekula, Arlene Shechet, Santiago Sier­

ra, [ohn Smith, Robert Smithson, Paul Swenbeck, Rirkrit

ANN E CAUQUELlN

A forma do vazio, ou o vazio, é uma tentação e um de­

safio para o pintor, o escritor, o poeta, o alpinista, o arqui­

teto, sei lá eu para quem ma is. Toda construção é um jogo

de equilíbrio entre o vaz io e o cheio, fala e silêncio, repou ­

so e movimento, até o ma is simples gesto que alie o cheio

e o solto.

Constatação banal, mas que assume um relevo parti­

cular com alguns trabalhos de artistas. Para alguns, o va­

zio não é apenas um componente na geometria de uma

obra, que entra em relação com as formas cheias, a ten ­

são e o peso, mas é encarado como valor em si, se não for

considerado o valor final, a meta, o completamento. A mo-

"Desenhe a forma do vazio", dizia o professor de

desenho na época do liceu . Dito dessa forma, isso me pa­

recia absurdo, mas, na realidade, tratava-se apenas do in ­

tervalo entre o vaso e sua asa: um espaço que, a meu ver,

fazia parte do vaso, isto é, do cheio. Pois, sem esse espaço,

não haveria asa, e o vaso teria sido um pote. Isso porque ­

dizia eu - o cheio e o vazio são a mesma coisa, esforçando­

me em vão para explicar isso ao professor.

64

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66 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 67

Tíravaniia, Andy Warhol, James Welling, [ohn Wesley, Steve

Wolfe, David Hammons e Sharon Lockhart (The Fabric

Workshop and Museum, Filadélfia). ..

O ICA tenta organizar esse conjunto classificando seus

temas, motivos, influências e intenções, sem explicar, po­

rém, o que impulsiona os artistas para o grande nada e co­

mo eles entendem e exploram esse chamado.

Pouco importa que seja a influência do pensamen­

to oriental, a moda da filosofia tao ísta, a moda do zen re­

transmitida pelos escritores, porque a busca das causas

não deve nos levar a procurar a causa das causas, à inves­

tigação do primeiro quem... Na realidade, o que importa

é que o amor ao vazio atinge a arte contemporânea de di­

ferentes maneiras e que é isso, a maneira como esse amor

se manifesta e o que então é posto em jogo, que interessa

a nossa proposta: de que vazio, de que sem corpo se trata?

O que é que se sub tende pela palavra "vazio"? Poderíamos

tentar iluminar esse nada recorrendo ao que sabemos so­

bre os incorporais?

Formas do vazio 1: o buraco

É uma idéia comum que, em dado dispositivo, o vazio

é um buraco. Há algo de negativo lá dentro, há uma falta

(um buraco no caixote), um defeito de fabricação, um er­

ro em algum lugar. Nesse caso, o vazio sempre sobrevém

em um dispositivo que já está aí, já está formado, e que

o vazio vem interromper, enviesar, ou até mesmo aniqui-

lar. Ele pode ser decorrência de uma falta de vigilância, de

uma falha humana ou de um erro da natureza, da degra­

dação das coisas ou da deficiência de um sistema (o bran­

co na memória).

Mas quando executado conscientemente, segundo um

projeto bem definido, ele põe em risco uma estrutura exis­

tente e se torna provocador; é praticamente uma manifesto:

é o caso do Placid Civic Monument (1967), de Claes Olden­

burg, que consiste, por ocasião de uma exposição de escul­

tura, em um buraco escavado no Central Park e enchido

com um volume de terra equivalente àquele que foi retira­

do. Buraco concreto, bem real, praticado na terra com uma

pá, mas também buraco como metáfora de uma desmate­

rialização e destruição do sistema de exposição existente,

bem como do monumentalismo: um monumento oco co­

mo ilustração da forma do vazio.

Operação semelhante no deserto com os artistas da

land art, eles também desmaterialistas. Exemplo: DoubleNegatioe, de Michael Heizer, para o qual ele desloca duzen­

tas toneladas de terra . Aqui, o jogo de ir e vir entre vazio

"plano" (o deserto, horizontal) e vazio profundo (o buraco

cavado, vertical) é duplicado com um jogo entre o longín­

quo, situado fora do alcance do espectador, e o documento

(foto) exposto em uma galeria: de algum modo, um des­

mente o outro, e o conjunto da operação "desmaterializa"

ao mesmo tempo a galeria (que não expõe a obra), o docu ­

mento (dado que não se trata de um original) e a própria

obra, que se mantém invisível. Mas essa desmaterializa-

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5. Ibidem, p. 263.6. Mesmo que se recomende o acontecimento efêmero, incompleto ou não

gravado.

ção existe apenas com uma condição, a de se atribuir ao

termo "desmaterialização" o sentido de uma rejeição da

instituição da arte, de sua realidade mercadológica, encar­

nada pelos museus e pelas galerias. "Parecia que os artis­

tas seriam libertados da tirania do mercado da arte e do

aspecto comercial das obras."> Quanto à desmaterialização

que consistiria em se desembaraçar da matéria concreta da

obra, ela está completamente fora de questão'. Ora, essa

interpretação restringe a desmaterialização a sua dimen­

são política, sociocultural, com isso fragilizando sua pró­

pria realização. Excluir-se da instituição não gera o efeito

desejado, pois o objeto (a obra) exportado deve, por fim, ser

repatriado ao seio do sistema do qual desertou, sob pena

de permanecer no estado de uma tentativa não transfor­

mada, isto é, não reconhecida, até mesmo não conhecida.

A exportação é um ato que isola a obra no não-reconhe­

cimento, e será necessário então recorrer a um sistema de

mediações, por sinal bastante complicado, para que a ga­

leria desempenhe seu indispensável papel de indicador. A

galeria ou o museu permanecem como o pivô do movi­

mento de exportação das obras e recolhem piedosamen­

te as pistas documentadas do exílio. As revistas (Artforumpara Incidents of Mirror Travei in the Yucatan, de Smithson,

ou Sun Tunnel, de Nancy Holt), os filmes (a Galerie iéléui­

suelle apresentou em 1969 as obras de Smithson, De Maria,7. Paul Toncr, "Interview with Robert Smithson" (1'170), em [ack Piam

(org.), Robert Smithson: the collected writings (Bcrkeley, University of CaliforniaPress, 19'16),pp. 234-41. Cf. ainda o artigo de Suzanne Paquet, "Une nouvclle to­pographie, l'art de la périphérie", Revue d'Esthétiquc (Paris, n. 46, 2005).

8. Lucy Lippard, op. cit., p. 223.

Heizer, Dennis Oppenheim, Barry Flanagan, Ian Dibbets

ou Richard Long) se encarregam de retransmitir a informa­

ção da qual são os amplificadores, como esclarece Smith­

son: "Por mais longe que você vá na periferia, a arte é

sempre retransmitida de uma maneira ou de outra, existe

um retorno de informação'".

Não. A arte desmaterializada não terá lugar, conclui

Lucy Lippards,

O movimento que pretendia rejeitar a arte das gale­

rias e das exposições tradicionais, situar-se externamente,

em todos os sentidos da palavra, não conseguiu impor sua

regra, e a cena da arte continua não só a utilizar os ingre­

dientes habituais, como ainda sofre uma nítida inflação das

mediações culturais. Ficou demonstrado que elas são indis­

pensáveis, até mesmo - e sobretudo - no caso em que se

pretenda negá-las. Apesar desse semifracasso da desmate­

rialização no sentido em que a ela aspiravam críticos e artis­

tas dos anos 1970, algo aconteceu que deslocou as apostas,

subverteu os papéis, revirou a paisagem. "Não há nada pa­

ra se ver" ou "busquem em outros lugares" tornam-se pa­

lavras de ordem das próprias galerias. Desse modo, elas

entram no diapasão dos artistas, pretendendo elas mesmas

se esvaziarem de seus sentidos, de modo a poder continuar

a desempenhar seu papel de lugar incontornável.

69FREQÜENTAR OS INCORPORAIS,fI'

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ANNE CAUQUELIN68

Page 37: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

70 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR os INCORPORAIS 71

Leitmotiv que insiste que essa passagem do vazio ao

lugar e do lugar ao vazio, com as inversões constantes de

posição no seio de um espaço que não pára de registrar es­

sas idas e vindas, esses revezamentos-junções, e sem que

se possa realmente saber que posição crítica adotar em ca­

ráter definitivo. Em contrapartida, o que se deve escavar,

nesse dispositivo, é a noção de deslocamento, o movimen­

to que também leva a pôr o que se quer depor, a posicio­

nar permanentemente o desposicionamento. É preciso ver

nisso uma manifestação ligada ao estatuto incorporal das

duas entidades do lugar e do vazio? Para sabê-lo, tentemos

ver em funcionamento o movimento de deslocamento.

Do DESLOCAMENTO COMO OBRA

As operações "in-site/ex-sites" desorientam o olhar

- sempre suposto como o órgão de transmissão predomi­

nante para as artes plásticas -, quando não escapam intei­

ramente a ele.

Com efeito, sabemos que os sítios da landart america­

na são de acesso extremamente difícil, ou categoricamente

invisíveis, como o Spiral Jetty, de Robert Smithson, reco­

berto de água a maior parte do tempo. Se, para os espec­

tadores, o deslocamento para o "lugar da obra" se faz em

raríssimas ocasiões, quando não é desnecessário, se o des­

locamento do artista é sugerido e suposto, mas não é certo

- só se tem como prova os documentos que o próprio artis­

ta apresentou -, de que deslocamento se trata, então? Com

a obra permanecendo fora de visão, entramos no campo da

ficção, da incerteza: o que vejo aqui (na galeria) é crível? O

objeto - indicado como ausente - existe realmente? O des­

locamento que se exibe como tal não oculta muito simples­

mente a desaparição ou a inexistência?

Com o deslocamento - que é, aliás, o título de uma

obra de Smithson -, a questão do lugar da obra é perma­

nentemente suscitada: onde está ela, e se está em alguma

parte, de que natureza ela é? É a landart que suscita com

mais intensidade a questão do jogo de equilíbrio entre o

vazio e o lugar. Qual é o lugar dos "não-sítios" de Robert

Smithson? Dessa forma, fragmentos de rochas extraídos

de um sítio supostamente real e expostos em uma gale­

ria, onde um documento pregado na parede "completa" a

obra. Junção de fragmentos do sítio e de alguns documen­

tos, portanto. Outro exemplo, Non-site, Franklin, New [er­

sey é composto de um recipiente com minerais que toma

a forma trapezóide de um ponto de fuga truncado e seg­

mentado, de um mapa aéreo de Franklin rasgado segun­

do a mesma forma, de 25 fotografias do sítio e de um texto

explicando em pormenores o formato do recipiente e a es­

cala do mapa.

Um buraco foi escavado em um sítio para dali extrair

fragmentos, depois esses fragmentos foram deslocados pa­

ra um "lugar", ou seja, para uma galeria - pertencente ao

sistema de galerias. Os cacos de materiais encontrados no

fundo do buraco são então instalados na galeria, que passa

a ser por isso um lugar, mas um lugar trabalhado por seu

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72 ANNE CAUQUELIN t FREQÜENTAR os INCORPORAIS 73

negativo, o vazio; vazio que, nessa circunstância, subsiste

no interior do lugar como aquilo que o ameaça, e cujo ras­

tro se expõe concretamente no paralelepípedo preenchido

por fragmentos.

Aqui, estamos verdadeiramente no jogo do vazio e do

lugar, mas aquilo que, a um primeiro olhar, parece dia­

lético revela-se completamente diverso, pois em nenhum

momento os dois contrários se encontram sob um concei­

to mais amplo que os englobaria negando todos os dois:

a contradição permanece aberta, movente, em incessante

alerta, nunca cumulada. Dessa forma, o empreendimento

que consiste em esvaziar os lugares equivale a permutar

lugar e vazio em uma espécie de dança circular, na qual,

quando um está vazio, o outro está cheio, com o vazio pa­

recendo escapar a toda apreensão intencional.

Contudo, se essa maneira de fazer o vazio não dá os

frutos que se poderia esperar, ela apresenta o interesse

de chamar a atenção para a fragilidade dos lugares e pa­

ra a presunção de uma abordagem de tipo espacial, ou de

uma aproximação em termos de crítica sociopolítica, que

era justamente a norma e o motivo das proposições críticas

dos artistas dos anos 1970. Essa dança contrastada pode

ser compreendida como crítica ao sistema existente, como

vontade de retorno ao natural, se não à natureza (a grande

natureza selvagem americana), como contestação ao arti­

fício museológico (o movimento de revolta contra a insti­

tuição faz parte da cultura dos anos 1960), como culto à

mobilidade e à rapidez (a culture car), e, desse modo, todas

If

I

as espécies de razões pertencentes à história da arte e à so­

ciologia podem ser apresentadas.Nenhuma delas é verdadeiramente satisfatória, mes­

mo que, no que se refere à land art, por exemplo, todas elas

tenham sido aceitas, até mesmo sustentadas e comentadas

pelos próprios artistas; em todo caso, nenhuma delas corres­

ponde à situação atual. Com efeito, o debate sempre ardoro­

so entre partidários do sítio specific e do context, ou place site,

abandonou parcialmente a cena político-ética e se deslocou

para o urbano em geral. Não são mais os "lugares" como os

museus, galerias ou lugares predeterminados na cidade ou

os desertos que estão em causa, mas o deslocamento em si,

portador, com as novas tecnologias, de outra concepção dos

lugares e do vazio, concepção que só pode ser abordada em

termos de suportes móveis e de incorporeidade.

VAZIO, LUGAR E SITIO SPEClFIC

É o mesmo jogo, mais aberto porque referente à ques­

tão do global e do local, da globalização e de seus efeitos,

que está na base do debate em torno do in situ e do sitespe­

cific, ainda hoje atual. Não se trata mais, nesse debate, de

abandonar a instituição, de ali fazer o vazio e de exportar o

"lugar" das obras para um alhures mítico. Esse empreen­

dimento mostrou sua fraqueza, e a instituição saiu forta­

lecida disso.O que acontece, então, de semelhante e ao mesmo

tempo de diferente com o site specific? O sítio onde se en-

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74 ANNE CAUQUELlN FREQüENTAR OS INCORPO RAIS 75

contra uma obra que lhe é manifesta e intencionalmente

consa grada é, de acordo com o que nós sabemos dos incor­

porais, um lugar. Ele contém um objeto, um corpo, a obra.

Enqu anto tal, ele é para si mesmo sua própr ia galeria ou

museu. Uma obra "i11 situ " produz o lugar que ela mesma

ocupa e se confunde com ele. Essa vinculação a define en­

quanto "obra site specific". Portanto, o que imp orta para a

definição não é o sítio que teria uma especificidade notá­

vel, nem tampouco a obra, mas o vínculo entre os dois. O

vazio parece ausente desse dispositivo, no qual só apare­

cem o fixo, o propósito confesso, a finalidade programada,

o lugar ocupado por um corpo. Então, onde está o debate?

Por que e a partir de que ele é travado? Será que é a ausên­

cia de vazio que o provoca? Porque esse lugar-obra fechado

sobre si mesmo, tão completamente vinculado a sua pró­

pria ident idade espec ífica, proclama mesmo assim sua in­

completude; ele clam a por aquilo que lhe falta, reclam a um

invólucro, um amb iente, um espaço no qual se estender,

um espa ço não ocupado por corpos: simplesmente um in­

corporal, o vazio.

O site specific torna-se, pois, um lugar a part ir do mo­

mento em que contém um corpo (a obra), ma s, mesmo as­

sim, esse lugar carece daquilo que, em contrapart ida, é o

apanágio de uma galeria, de um museu ou de qualquer ou­

tro espaço de exposição: a possibilidade, por assim dizer,

"nua", de acolher corpos, isto é, de ser fundamentalmen­

te vazios. A galeria ou o museu são, com efeito, vazios, na

medida em que podem acolher qualquer corpo, a qualquer

momento, sem nunca ficar vinculados àquilo que expõem,

a não ser pelo renome mutuamente alcançado, as obras

deixando uma parte delas mesmas - a fama, o renome - in­

corporalmente vinculada às galerias que as acolheram, re­

cebendo em troca a fama da galeria pelo efeito "mídia".

Se a ação de fazer o vazio foi durante um temp o, e para

certas práticas, considerada como um meio de desmateria ­

lizar a art e, parece que essa tentativa se perdeu e que uma

desmaterialização - porque parece que é isso o que preten­

de a atividade art íst ica contemporânea - deve ser buscada

por out ros meios. As tent ativas contemporâneas de faze r

o vazio devem ser con sideradas sobretudo como paródia s,

senão palinódias: elas trazem à cena a ação de esvaziar,

assinalando simultaneamente a impossibilidade classifica­

da por Perec como "esgotamento de um luga r", reduzin­

do-a então a seus efeitos cômicos. É o que se pode ver na

peça de Cornelia Parker, Soi! Remoued[rom Underneaih the

Lea11i11g Tower of Pisa to Preoent it [rom Failing (2003) . Ou

ainda Sp0011 Excavated Itseif(1992). O utra maneira de fazer

o vazio é a destruição das obras por parte do próprio au­

tor. Encontramos exemplos dessa atitude iconoclasta, bre­

ves e irôn icos, em um livro de artista começado em agosto

de 1999, redigido por Éric Watier, e inacabado por defini­

ção: L'i11ventaire des destructions".Parece, então, que o vazio não se manifesta, de mo­

do algum, apenas por um buraco, uma fi ssura em um dis -

9. Éric Walier, L'inventaire des dcstruct íons (Ren ncs , íncc rtai n Scns, 2000).

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76 ANNE CAUQUELI N FREQÜENTAR OS INCO RPORAIS 77

positivo, mas, sobretudo, pelo espaço de acolhida que ele

abre - tornando possíveis todas as espécies de arranjos en ­

tre mobilidade e estabilidade -, o que inverte a situação de

maneira perturbadora. Qual é esse espaço de acolhida? A

galeria, tão desacreditada pelos desrnateríalistas, não seria

definitivamente a forma concreta desse espaço, na medida

em que ela desempenha a função de "vazio" para as obra s

que vêm se alojar temporariamente nela?

Formas do vazio 2: o imaterialsob o signodo branco

Essa hipótese desconcertante foi explorada pelos mo­

nocromistas com tudo o que ela comporta de paradoxal e

com tudo o que essa mudança pode ter de suspeito no quese refere a uma crít ica do sistema.

A desmaterialização que os monocrom os operam não

incidirá mais sobre o merc ado nem sobre o sítio excessiva­

mente fixo das obras que museus e galerias representam,

mas sobre o objeto em si. É a obra que deve ser desmate­

rializada: isso significa que ela deverá renunciar ao exces­

so de formas e de cores que obstru i seu espaço: ela deverá

renunciar a esse excesso de forma s e de cores que atu­

lham seu espaço: ela deverá fazer o vazio em si mesma. Es­

se princípio de desmaterialização tomará então a forma da

tela branca ou de cor sólida e única, como o azul ou o preto,

manifestando a rejeição de toda forma e cor que viessem

perturbar a virgindade essencial da pintura. Desse modo,

o branco se torna a palavra de ordem de uma nova des -

materialização: a do fazer artístico, e não mais a do cons­

purcado sistema das galerias e do mercado. Tal reviravolta

devolve a posição de honra aos lugares dos quais se fugira .

O desmaterial precisa de um lugar material para se mos­

trar. A negação deve poder se afirmar: a tela em branco de­

ve ser exposta "em algum lugar".

Esse requisito transforma o princípio de desmateriali­

zação em princípio de imaterialização. A palavra é pronun­

ciada . Entramos - pelo menos, a pintura entra - na era do

imaterial. Privada de sua matéria própria (desenho, for­

mas, cores, tramas), a pintura é purificada: sua essência se

mostra só, assim como a nudez a transforma nela mesma.

É essa purificação que a conduz, então, ao limiar da

imaterialidade ou da vida espiritual. De certo modo, ela

se sublimou em um sacrifício consentido. Nenhuma carne

mai s, nenhum ape go sens ua l a ret ém; ela pode, então, ser

toda "sensibilidade", o que inclui bastante "sentido", ma s

sentido espiritual, mental, e não sentido orgânico. Vere­

mos, contudo, que essa espiritualidade à qual pretende a

arte do vazio - desmaterializada ou imaterializada - repre­

senta obstáculo ao incorporaI a que deveria visar.

Por que o monocromo, por que o branco? Éque o bran­

co, sob todas as suas formas, é o signo do nada, do vazio: o

branco em um texto, um espaço "em branco", o branco co­

mo não-cor ou, o que vem a dar no mesmo, como fusão de

todas as cores . O branco est á ali para ser preenchido, ass im

como o buraco estava para ser tap ado a qualquer momen­

to. Uma página branca, uma tela branca esperam ser escri-

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78 ANNE CAUQUELlN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 79

tas ou pintadas. Apresentar, então, essa página ou essa tela

vazia dos signos que se sup õe devam elas oferecer ao lei­

tor ou ao espectador é um ato crítico, uma negação daqui­

lo que existe (telas cheias de signos coloridos, de forma s) e

não uma falta. O branco é, então, bem mais que uma me­

táfora do vazio, sua própria expressão, sua "forma" sob o

aspecto de uma não-forma. Essa dupla natureza do bran­

co: "ausência de cor e, ao mesmo tempo, profunda mescla

de todas as cores", como escreve Melville, leva às interro­

gações metafísicas, à constatação de nossa pequenez in­

finita diante das "brancas profundezas da Via Láctea [...]

Mistério encantatório dessa brancura [.. .] o mais signifi­

cativo símbolo das coisas espirituais, o verdadeiro véu do

Deus cristão e, ao mesmo tempo, o agente que torna mais

intenso o horror das coisas que apavoram o homem [.. .]

essa coisa sem cor ou colorida pela ausência de Deus quenos faz recuar de pavor"10.

Nessa visão, o branco assinala a ausência de Deus e, pa­

ralelamente, sua busca; o acento espiritual da brancura, sua

imaterialidade vazia ("oprincípio da luz para sempre branca,

sem cor?»), torna-o um suporte privilegiado para essa bus­

ca quando ela se exprime na arte . É a arte - a pintura - a en­

carregada de apresentar essa ausência, esse vazio, de pôr em

presença a busca que torna necessária a ausência de Deus.

10. Herman Melville, M oby Dick (trad . Lucien [acques, [oan Srníth & JeanGiono, Par is, Ga llima rd, 1996), pp. 275-6 fedo bras.: Irad . Alexandre Barbosa deSouza & Irene Hirsch, São Paulo, Cosac & Na ífy, 2008].

11. Ibidem.

Reside justamente aqui todo o paradoxo dos monocro­

mos: apresentar de maneira sensível aquilo que escapa à

percepçã o - o vazio, o nada. Porque vemos o branco, vemos a

tela branca, assim como vemos a galeria vazia: vazio e bran­

co expõem de maneira sensível a presença de uma ausência

deliberada. E, sem dúvida , temos nisso uma superioridade

dessa forma do vazio que é o branco sobre a forma do "bu­

raco": com efeito, a forma do buraco faz referência ao cheio

que ele cavou e que permanece dependente de suas bordas.

Já o branco se apaga e apaga seu contexto em um "não": não

preench er, não fazer referência àquilo que o limita, desapa­

recer e fazer desapa recer, esse é o ideal da pura presença .

Aqu i, vemos perfeitamente qual é a tent ação que vem

fazer cócegas nos teóricos do iconocla smo. Sem falar ain­

da de teologia negativa (termo que talvez fosse mais adap­

tado à prática do monocromo), toda a questão da presença

na ausência e o modo de contornar o obstáculo da invisibi­

lidade, tornando visível a ausência de visibilidade, parece

contida nesse jogo de esconde-esconde ao qual convida o

monoc romo. Ela evoca, bem entendido, o desvio pelo qual

o ícone bizantino convida a contemplar o divino torn ando

obscura, impenetrável, sua fi gura. Temos o mesmo impul­

so para a espiritua lidade imaterial em Klein, o mesmo des­

vio pelo invisível para fazer sentir a espiritualidade de uma

presença emanando do corpo, mas fora dele.

A origem religiosa, mística, da questão parece convir à

"sensibilidade pictórica imaterial", tal como vivida ou des­

crita por Yves Klein ou Rothko. Contudo, o esquema con-

Page 42: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

80 ANNE CAUQUELIN FREQüENTAR OS INC ORPORAIS 81

ceitual sofisticado ao qual se submete o ícone na tradição

bizantina realmente não ressoa em uníssono com a práti­

ca pictórica dos monocromistas. O avançar (excessivamen­

te publicitário, se formos ver bem) do aspecto místico dos

monocrom os oculta o fato de que os pintores pintam (1) e de

que existe um júbilo, na própria pintura, que nada tem a ver

nem com a glória de Deus nem com a busca do divino. É evi­

dente que existe em Klein uma contrapartida carnal a suas

obras invisíveis, a essas "antropometrias" - corpos femini ­

nos exaltados por seu mergulho na cor azul-, é essa exalta­

ção diretamente proveniente da matéria pictórica enquanto

sensualidade mesmo, à flor da pele, e isso a despe ito de tudo

o que se poss a dizer do aspecto ritual de ressonância religio­

sa do acontecimento e da interpretação crística que dela se

possa fazer: as mulheres pintadas seriam a matéria de uma

tran substanciação eucarística que transforma o pão e o vi­

nho da celebração no corpo e no sangue de Cristo.

Outro elemento que vem bloquear toda interpretação

abusiva dessa desmaterialização ou imaterialização: o retor­

no obrigatório ao mercado, às mídias, aos signos ostensivos

de pertinência, como a assinatura. Paradoxalmente, então,

se a ação de não pintar se torna a essência da pintura, se

a ação reside na não-ação e a pintura, na não-pintura, é o

meio, o contexto verbal ou textual, que será o suporte dos

signos ausentes da tela ou da página. Desse modo, não obs­

tante a vontade de apagamento, retornamos, por um desv io,

ao signo e à assinatura. E mais : voltamos também à galeria,

ao museu com uma exposição situada e circunscrita.

Vemos perfeitamente, então, que a galeria e o museu

devem ser reabilitados, porque é imperioso "expor" a nega­

ção, o zeroforme; o "não" deve pod er ser visto como tal. O

"não" não significa minimamente que a pintura tenha de­

saparecido, e o vazio da galeria não significa minimamente

que a galeria tenha se apagado da paisagem da arte. Bem ao

contrário, ela é tanto mais visível quanto mais expõe o invi­

sível. Para se tornar imaterial, a art e não renuncia por causa

disso a um suporte material. Ao contrário, ela o reivindica

intensamente. Eventos, publicidades, passagem obrigatória

pelas mídias... Se o objeto pintado desap arece, o que resta

de disponível à vista é o próprio acontecimento de sua de­

saparição. Desse modo, a galeria vazia se exibe como vazio

e, ao fazer isso, torn a-se um lugar estável, que contém um

corpo: o seu mesmo, quando não é o do autor.

"O verdadeiro pintor do futuro será um poeta mu­

do que não escreverá nada, ma s que narrará, sem arti ­

cular, em silêncio, um quadro imenso e sem limites'< (a

propósito de sua exposiçã o em Antuérpia, "I"). Declara ­

ções drásticas, que mesmo ass im só podem ser percebidas

se forem exposta s em algum lugar. Como indic a, com ra­

zão, Denys Riout:

Mesmo quando não passa pelo canal do visível, a in­

tenção do arti sta deve ser comun icada, de uma manei ­

ra ou de outra , a seu destinatário, o público. O modo

12. Yves Klein. apud Denys Riout, Yvcs Klein: manifester t'immot érieí(Paris, C allírnard. 2004).

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82 AN NE CAUQUELIN FREQÜENfAR OS INCORPORAIS 83

de existência das obras invisíveis requer um a apreen­

são periférica. Ela é possibilitada por um sistema de

designações: lugares de inscrições, imagens da ausên­

cia, declarações e textos,"

Essa voz muda e essa não-presença, para serem co­

nhecidas como tais, têm necessidade de uma encenação, de

uma periferia que envolva a ausência e a submeta a avalia­

ção. Com efeito, se as praias "vazias" de signos dos mono­

cromos de Malevitch e de Yves Klein, desembaraçadas dos

epifenômenos que são as variações coloridas e as formas ,

exprimem segundo eles a plen itude da essên cia pictórica,

é necessário ainda encontrar para elas um lugar adequado,

que permita a suas expressões se exprimirem.

Branco, preto ou azul, o monocromo transforma a au­

sência (de formas ou de variações coloridas) em presença,

e a mostra como essência da pintura, seu espírito, seu pró­

prio ser. Dessa maneira, passamos de uma reivindicação

apre sentada ao sistema das art es, reivindicação que po­

demos qualificar de social e, por isso mesmo, de objeti­

va, exterior à criação artística, para uma afirmação de sua

esp iritualidade, qualidade interna da pintura e quase se­

creta, que é prec iso exp or para que ela seja reconhecida.

É todo um sistema de retornos, de negações de negações,

que se estabelece e cujos efeitos jogam entre si em um in­

terminável jogo de esconde-esconde. Resta a sensibilidade

13. Ibidem .

pictórica imaterial transferível, como núcleo pleno de um

espaço vazio.

O s críticos não se furtarão a estigmatizar a venalida­

de desse imaterial : pois ele não é vendido como uma mer­

cadoria qualquer? Mas, ao fazer isso, eles se enganam de

objeto ou ao menos não o localizam , no mercado, onde se

encon tra a verdadeira crítica a ser formulada . Porque não é

tanto o mercado em geral , a mercantilização, que está em

causa, mas a contradição - não resolvida porque ela se põe

em termos que se excluem: a ação se abole em um não e,

mesm o assim, gera ações sucessivas - e com ela suas con­

seqüências. Ao se esforçarem para justificar os dois contrá­

rios, os artistas do monocromo e das sensibilidades pura

e imaterial mente pictórica s passam ao largo daquilo que

constitui a força e o interesse dos incorporais: sua perfei­

ta equivalência e sua mútua substituição no seio do vazio.

Nos termos da sen sibilidad e imater ial, essa equivalência é

impossível de ser realizada porque a obra e o artista atuam

em um espaço de distinções, o espaço do primado do au­

tor, da obra única e do nome. Nem mesmo a radicalidade

de Malevit ch pode vencer esse obstáculo. Como a visibi­

lidade da ob ra não depende mais dela, que se tornou in­

visível, toda a visibilidade se volta para a perifer ia, que se

torna então uma área de sobrevisibilidade e pas sa para o

prime iro plan o, torn ando-se o próprio centro da obra . A

partir daí, a galeria adquire uma dimensão artística, ela

se torna obra e reivindica um estatuto de autor à parte c,

quando men os, igual ao estatuto do artista.

Page 44: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

Transfigurar-se emformas zero, corno o quer Malevitch,

serve em princípio para negar o que existe antes dele, a fa­

zer tábula rasa, mas, não obstante, também implica outra

exigência, a de fazer desse zeroforme não algo de informe,

mas o ponto de partida para urna renovação das concep­

ções habituais. Dessa forma, estamos, com o zeroforme, na

esfera do vazio. Apagamos as distinções de estilo, de for­

mas e de épocas. As classificações tradicionais são obsole­

tas, inadequadas à nova situação.

Aforma zero é a primeira etapa daquilo que, em segui­

da, vai poder acolher outras não-formas. Com efeito, o ze­

ro é urna condição para que a seqüência dos números se

estabeleça. O mesmo acontece no jogo do solitário, no qual

o quadrado vazio permite o deslocamento dos peões. Que

a matéria-prima da pintura seja doravante o zeroforme é

um evento considerável, que gera todas as espécies de con­

seqüências do ponto de vista da imaterialização da arte.

"Estamos em um novo planeta sobre a abóbada azul do sol

extinto, estamos nos confins de um mundo absolutamente

novo, declaramos inconsistentes todos os objetos.?> Esta­

mos, pois, não mais no mundo dos lugares, corno as ga­

lerias e o mercado, nem por nem contra, nem dentro nem

fora, mas em um espaço neutro onde o apagamento das

formas é a fonte de formas inéditas de arte. Formas dovazio 3: a retirada ou o deslocamento

Eu me demorei no monocromo e no zeroforme para dar

dois exemplos, já bem conhecidos, de abstenção. Duas aulas

de nudez: urna para glorificar o espiritual na arte ou da arte,

a outra, mais leiga e mais política, para desencadear a reno­

vação de velhos quadros. Curiosamente, a mais política das

duas (a de Malevitch) consolida urna definição pictórica da

pintura, ao passo que a outra - que prima por urna essência

espiritual- retoma a urna posição política (liberal) da arte.

Nesse sentido, a recente exposição The Big Nothing

é muito ilustrativa. Para urna centena de artistas, de vá­

rias gerações misturadas, trata-se de mostrar que se faz o

vazio, urna espécie de tábula rasa da arte do passado, ex­

pondo o vazio no próprio interior do lugar que se preten­

deu esvaziar. O quadro vazio, a galeria vazia, o não-sítio,

o quadro branco articulam assim a realidade de uma arte

existente (o quadro, a galeria, a paisagem) a sua destruição

ou, pior ainda, à ameaça de sua extinção.

Contudo, aí não estão todas as formas assumidas pe­

lo vazio para se manifestar, e, sobretudo, as formas acaba­

das - enquanto quadros, espaços, lugares, monumentos ou

sítios -, que sempre se mantêm corno objetos, geralmen­

te não têm, não obstante a declaração de Malevitch, nada

de imaterial e são ainda menos incorporais, no sentido em

que os entendemos com os estóicos.

84 ANNE CAUQUELIN

o ZEROFORME COMO MATÉRIA-PRIMA I1,

FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 85

14. Kazimir Malevitch, "Anarchie" (mar. 1918), em Le miroir sur;ré­matiste (trad. Jean-Claude Marcadé & Valentine Marcadé, Lausanne, L'AgedHomrne, 1977).

Segundo os desmaterialistas, o movimento de báscu­

la que faz aparecer um em vez do outro - o lugar em vez do

Page 45: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

86 ANNE CAUQUELlN FREQÜENTAR os INCORPORAIS 87

vazio e retorno - é constante na art e moderna. Ali onde es­

tá tradicionalmente o lugar da obra, seu sítio, não há mais

nada . Contudo, esse luga r agora vazio é out ra vez rein­

vestido, não pela obra, mas por seu duplo. Ao se retirar, a

obra deixou sua pegada ou até envia uma cópia (um seme ­

lhante) do lugar onde se considera que ela se encontra en­

quanto original. Isso é o mesmo que dizer que ela só existe

separada, retirada, de algu m modo invisível.

As variações sobre o duplo, sob re o não-original e a

cópia fazem entrar na roda dos conceitos que tratam da

imaterialidade a reti rada, o desdobra mento, o apagamen­

to e, em todos os casos, uma noção com que já deparamos

e que parece cru cial: o deslocamento.

Esse deslocamento incessante é, sem dúvida, a cha­

ve, o eixo em torn o do qual gira m as ten tativas imaterialis­

tas de que acabamos de falar. Mas só quando é tomado em

si, por si mesmo, é que o deslocamento parece mais próxi­

mo de realizar o projeto moderno de desmaterialização em

uma forma contemporânea.Desse modo, qua ndo Maur izio Cattelan afixa uma de­

claração de rou bo de um a obra invisível (no lugar da obra

propriamente d ita) ou qua ndo Robert Morris declara ter re­

tirado as qua lidades estéticas da obra expos ta, Statement of

Esthetic Withdrawal (1963), ficamos sem meio de saber - no

primeiro caso - se essa obra existe ou não: ela foi roubada,

é o que nos dizem, deslocada, sem que se saiba para onde

nem por quem, a não ser por seu próprio autor; resta ape ­

nas o nome do autor, exatamente, e o lugar da obra ocupado

pelo signo de sua reti rada. No seg undo caso, não sabemos

quais qualidades - geralmente pensadas como incorpora­

das à obra - pod eriam ter sido "retiradas" sem que a pró­

pria obra fosse des truída. A retirada demonstra o nada da

obra, que uma simp les declaração pode anular. Passamos,

então, a duvidar, não apenas da possibilidade de uma ope­

ração dessas, mas também, mais ainda , da possibilidade de

alguma existência para as obras, para além da obra efetiva­

mente presente, cujas qualidades estão ause ntes.

No que diz respeito ao deslocam ento e à ret irada,

podemos ainda incorporar as pseudo-assina turas que se

apresentam como obras, ou as listas do material que te­

ria sido uti lizado para pintar o que, justamente, não se dá a

ver», Todos esses desvios e falsas saíd as responde m à vaci­

lação do lugar e do vazio, a sua hesitação e à possibilidade

de sua recípro ca substituição.

Arquivemos esse ponto na memória, porque a chave de

abóbada de toda incorporeidade é essa disponibilidade de

um espaço dado, sua neutralid ade, o fato de ser sem qualida­

de e de, desse modo, prestar-se a todas as espécies de corpo

que nele vêm se alojar, para dali par tir imediatamente. Para

chegar a esse ponto, foi necessário operar subseqüe ntes des­

pojamentos, isto é, abandonar as posições fixas, uma a uma.

O movi mento de despojamento inves te primeiramen­

te contra o mercado - digamos, cont ra o sistema tradicio-

15. Permito- me remeter, no que se refere a esse s pontos, a meu Petit trait éd'art contemporain (2. ed ., Paris, Le Scu il, 2003).

Page 46: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

88 ANNE CAUQ UELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 89

nal de exposição - , depois, do mercado, desloca-se para a

obra e, da obra, para o próprio gesto de despojamento; des­

se modo, a arte se vê como que esvaziada desde o interior,

em busca de sua própria desmistificação. E o paradoxo me­

nor de toda essa questão não é ser ela percebida como uma

vasta mistificação, quando é a própria mistificação da ar­

te que está em causa e que é refutada. Nessa s condições, o

fato de dizer, como muito s espectadores: "Isso não é arte",

bem poderia ser considerado como um elogio, como o jus­

to reconheciment o do bem-fundado do empreendimento

todo. Com efeito, não é a arte no sentido que é dado a essa

atividade, mas em outro, que não vemos porque ela é sem

obra nem autor, ou ao menos é o que se tenta fazer com to­

dos os tipos de manipulações, mutações e invenções.

A invisibilidade daquilo que é indicado como retirado

ou deslocado dá pleno sentido à anopticidade ducharnpia­

na: a atividade artística torna-se mental e o olho, um órgão

fanta sma, opera agora enquanto simples porteiro de re­

giões imaginári as. Operações mentais que podem, é claro,

encontrar correspondências no domínio do visual ao abri­

go de metáforas - como o branco, o buraco ou o silêncio ­

que remetem todas ao vazio, que é ele mesm o metáfora do

invisível: esse é o regime ao qual a arte contemporânea se

submete em sua grande maioria .

É desse modo - pela adesão ao regime de operações

mentais de frágil incidência visual - que dois outros incor­

porais estóicos, o tempo e o exprimível, vão entrar no jogo

da arte contemporânea a título de conceitos dominantes.

Capítulo do tempo e do exprimível:

a arte imaterializada

Da intemporalidade do tempo

Com o apagamento, a pegada mínima, a retirada, a

prolongação, pa rece que é o tempo que governa as ativida­

des artísticas contemporâneas; mesmo com elas se desdo­

brando no espaço, as experi ência s estéticas abandonaram

a cena do espacial ao deixarem a cena do visível. Isso sign i­

fica que não são mais as qualidades ou atributos do espaço

que são chamados a servir de parceiros do jogo da arte. Até

mesmo os jogos sobre os lugares específicos, os lugares de

contexto ou os lugares vazios são abandonados; o invisível

que ocupa tantos artistas, como Barry (e freqüentemente

os art istas do big notlzing), não pode assumir lugar no es­

paço, nem em nenhuma outra forma de manifestação que

tenha o espaço como alicerce. Assumir posição queria di­

zer lançar raiz, ou tomar lugar, e ter o espaço como a Iicerce

signi ficaria dele tirar a própria substância e forma. Nenhu­

ma dessas duas vias é possível quando se trata de manifes­

tar o invisível: já constatamos isso em noss o "Capítulo do

vazio e do lugar" com as diversas maneiras, toda s imper­

feitas, de querer fazer o vazio. Aqui, a contradição pare cia

insuperável entre o "nada do tudo, em parte alguma" e o

"mas pelo men os algo, em algum lugar ", onde reconhece­

mos a figura da denegação.

Page 47: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

90 AN NE CAUQ UELIN FREQ ÜENTAR OS INCO RPORAIS 91

Desse modo, para dar um exemplo, as obras de vapor,

os stream de Robert Morris ou de Robert Bar ry», têm pre­

tensão de invis ibilidade - a dissolução de gás na atmosfe­

ra não é exat amente algo que possamos ver em condições

"no rmais" de visão - e contudo são muito bem localizadas

no espaço, seu ponto de partida é bastante visível, ocupa o

que vem a ser um lugar por meio da projeção de corpúscu­

los no vazio do ar que subsiste como seu alicerce. Em con­

trap artida, podem os di zer que essas obras faze m apelo,

sobretudo, a uma caracterís tica do tempo: sua incorpora­

lidad e. Porque não é a inv isibili da de qu e é alcançada, vis ­

to que o acontecimento se dá em espetáculo, mas antes a

intemporalida de do tempo, na medida em qu e o desapare­

cime nto do gás no ar mimetiza o momento - quase imper­

ceptível - no qua l o tempo desvela sua frágil cons titu ição:

assi m que é lan çado, o gás se torna um objeto no tempo

e con strói em torno de si a temporalidade fugidia que é o

instante, para em seguida desap arecer imediatamente.

Se geralmente pen samos que os objetos fun cion am

no espaço segu ndo uma dupla entrada, com sua posição

recortando ali um exterior, aquilo que os cerca, e com sua

solidez tridimensional envolvendo um espaço chamado

"interior", alguns objetos cham ados de obras de arte privi­

legiam a dimensão interior, o conteúdo, em det rimento do

exterior, ou então faze m um jogo de remeter de um a ou-

16. Cf. a entrevista de Robe rt Barry com [ochen Matthies na Rev llcd'Esth étioue (Pari s, n. 44, 2003).

tro , em um intercâmbio incessante. Mas esse jogo se torna

impossível com as telas "vaz ias" e os objetos apagados ou

subtraídos: a dist inção interior/exterior desaparece. O con­

tinente não contém mais nada, e o conteúdo se encontra do

lado de fora; ou, segundo outra formulação, o exterior é o

conteúdo. Contudo, como o conteúdo preci sa de um conti­

nente, o exterior se recorta entre continente e conteúdo e a

fuga se repete, em uma sé rie de efusõ es fora de si.

Despoj ado de sua visibilidade, da s características pro­

pr iame nte plásticas de sua exposição, o conteúdo da obra

é exporta do para seus arredores mais ou men os imed ia­

tos. A bu sca desse conteúdo, que se tornou necessária, re­

quer tempo para ser reali zada; a (suposta) imediatida de

do olhar não tem mais lugar de ser. O tempo se torna um

ator ess encial para o processo. Poder-se-ia objeta r que to­

da obra plástica exige tempo para que o olha r var ra sua su ­

pe rfície e tome consciência daquil o que é mostrado; para

que a legenda gera lme nte apos ta em seu ca nto inferi or de­

se mpenhe o papel de notícia e também exija tempo de se r

lida. Mas no caso da obra invisível, não se trata mais de

um compleme nto facultativo para saciar uma curiosidade

sad ia, mas de um instrumento ind ispensável para quem

queira apreender algo que não es tá lá.

E ainda mais, o tempo é um ator a títul o pleno quan­

do a obra revela um programa, uma lista de ações a cumprir.

Os cartões-convite de Robert Barryv, as "definições/méto -

17. Invi/ation Pieces (1'172-1'173) é um a seqüência de doze ca rtões -conviteenviados todos os meses no período de um ano a diversas person alidades do mun­do da arte. Cada cartão representava um ga lc rísta que convidava para uma expo-

Page 48: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

92 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 93

dos" de Claude Rutault ou seu "intercambiável generaliza­

do" são obras temporais, partituras a executar. Veja-se, por

exemplo, o teor da carta enviada por Claude Rutault a un s

15 art istas e galeristas:

A exposição será a realização de peças que os destina­

tár ios desta carta escolherão entre os 1.908 trabalhos

reunidos no livro D éfinitions et méthodes. Não os con­

vido apenas a escolher um número, mas a se encarre­

garem do trabalho de realização, quer dizer, escolher

a parede sobre a qua l vão querer ver figurar a pintura,

sua cor, o número de elementos, suas dimensões, os

suportes, a fixação [...].

o temp o, em dispositivos como a reti rada, o apaga­

mento ou a desaparição, não é mais um tema, nem um as­

sunto, é a verdadeira matéria da obra, sua forma zero, sua

substâ ncia. Ese nós o cons idera rmos por meio da teor ia dos

antigos estóicos, podemos considerá-lo como um incorpo­

ral, quer dizer, uma entidade sem corpo, não existente, o

que lhe permite acolher diferente s tempos heterogêneos

sucessivamente ou até mesmo simultaneamente, sem por

isso ser afetado pelo corpo que ele recebe. Digamos que

ele é "apenas" uma permissão: e é justamente enquanto

permissão que ele é experimentado nas obras da retirada.

Com efeito, nada obriga os artistas convocados por Clau-

sição de Rober t Barry a ser realizada no mês seguinte no espaço de outro galeris ta.Ao fina l dos doze meses, o último cartão era um convite a visitar uma exposiçãono espaço do primeiro gale rista da série.

de Rutault a seguir as instruç ões, eles podem perfeitamen­

te fazê-lo ou não.

Temp o aberto, tempo vazio, que podemos ou não en­

cher de ações como podemos ou não encher o vazio incor­

poraI de corpos e transformá-lo com isso em "lugar".

T EMPO INCORPORAL E ACONTECIMENTO

Quando aplicado ao lugar, o incorp oraI é, ao mesmo

temp o, inexistente e ilimitado, sem alto nem baixo, sem

orientação decis iva: em uma palavra, neut ro em todas as

suas partes. Nessa configuração, o tempo é também sem

orientação, nem antes nem depoi s, ilimitado e neutro. Ora,

se o vazio incorporaI vem a ser lugar a partir do momento

em que ele recebe corpos, o tempo, ele também e pela mes ­

ma operação, vem a ser temporal desde quando momentos

lhe são fixados em sucessão. Dizer que o tempo é aiemporal

e que ele se conserva na possibilidade de vir a ser temp oral

é, confesso, uma proposição para lá de enigmática; mas, ao

menos por uma vez, a comparação com o espaço é vantajo­

sa: com efeito, se podemos dizer com os estóicos que o es­

paço só vem a ser lugar quando um objeto toma lugar nele,

e que sem isso ele não é nada ou "vazio", que é um incor­

porai sem existência, podemos avançar que o tempo tam­

bém é um incorporai e só assume corpo - isto é, só se torna

temp o realm ente - quando uma ação se dá nele.

Na configuração dos incorporais que nos ocupa, os mo­

mentos do tempo não estão alinhados seg undo uma suces-

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94 ANNE CAUQ UELlN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 95

são cont ínua da qual recortaríamos instantes como passado,

presente e futuro; essa sucessão preestabelecida não exis­

te e nós não estamos correndo para o futu ro como em uma

estrada cujo fim e cujo propósito são incertos, mesmo que

sejam pressentidos, e o começo, determinável e, em certa

medida, mais certo . A orientação linear não tem espaço de

ser no tempo incorporal, Ele ignora a sucessão dos fatos pas ­

sados, assim como não prejulga - dando-lhes uma forma a

priori - os fatos que o preencherão. O que existe é apenas o

presente, o momento - ou o instante, como se queira -, que

dá um corpo ao atemporal e o faz vir a ser tempo. Nesse ins­

tante, encontram-se cristalizados os fatos de uma vida ge­

ralmente pensada em sucessão, mas que podemos imaginar

sob a forma de uma carga, dando um som pleno, um corpo

pleno, agrupado sobre si mesmo, em um todo.

Husserl aproximou-se de um a concepção desse tipo

nas Leçons pourune phénom énologie delaconscienceintimedu

temps: temp o retrotendido e protendido em um só ponto«. A

contração do tempo é percebida como presente; como a di­

visão entre antes e depoi s não é percebida, ela permanece

nos limites da consciência, flutuando em torn o do presen­

te sem justificá-lo, nem se desdobrar, isto é, sem se explicar.

"A apreen são perceptiva é constituída pela multiplicidade de

fases - do agora e das retenções (.. .] ela obtém sua unida­

de, graças à un idade de apreensão temporal'w, Isso sign ífi-

18. Edmund Husserl, Leçons pOlir II ne phénoménotcgie de laconscience intimedu temps (trad , Henri Dussort, Paris, r UF, 1964).

19. Ibidem, § 16, pp. 54ss.

ca que o ato de perceber que se realiza no presente constrói

o temp o como unidade, e isso a partir de diferente s estratos,

dos qua is esse ato é uma condensação; uma mult iplicidade

de ecos "retencionais", cujo ápice, cuja ponta extrema, cujo

limite é o presente percebido.Desse modo, o tempo se constrói de maneira repe­

titiva, em pontos distintos de teIllporalidades bre ves que

podemos cha mar de "acontecimentos". Eles aparecem e

desaparecem, heterogêneos, singulares, freqüentemente

imp erceptíveis, ou quando menos imperceptíveis em sua

comp osição estratificada.Algumas características dessetempo atemporal: a repe­

tição, a indiferenciação entre antes e depois, a remissão ou

dilação que são constitutivos dessa mesma temporalidade,

a partir do momento em que ela sedá em um ato, fazem-se

presentes nos trabalhos de vários artistas contemporâneos.

Telephone Piece, de Walter de Maria (expos ta na ex­

posição de Herald Szeemann, Quando as atitudes vêm a

ser formas, de 1969), é um exemplo disso; o telefone esta­

va posto no meio de uma sala, e a legenda dizia: "Se esse

telefone tocar, você pode atender. Walter de Maria está na

outra ponta e gosta ria de falar corn você".

O "se" isola um momento determina do, aquele no

qual o telefone poderia tocar, concentrando ass im a expec­

tativa do espectador sobre o acontecimento possível, mas

não provável, de a campainha tocar. Um tempo "vazio".

Nada sugere que algo vai acontecer, assim como nada diz

que algo nã o acontecerá. Dess e modo, o atemporal - aquilo

Page 50: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

96 ANNE CAUQUELIN FREQ ÜENTAR os INCORPORAIS 97

que está submetido à condição do "se" - só virá a ser tem­

po no momento em que o "se" se apagar para deixar lugar

a um "quando". Antes desse momento e depois desse mo­

mento, não há nada. Se o telefone toca, então a comunica­

ção está estabelecida. Só conta a ação presente, e isso em

todos os sentidos da palavra, porque ela também conta o

tempo, ela lhe fornece uma baliza a partir da qual é possí­

vel atribuir um sentido, uma orientação. É o ato - mesmo

se só ele é possível- que constrói a temporalidade do tem­

po e lhe dá um corpo . A percepção presente revela uma su­

cessão temporal que só pode se manifestar a partir dessa

percepção do presente. Estabelecem-se, então, simultanea­

mente, uma anterioridade e uma posterioridade, que en­

volvem o instante presente com um halo incorporai.

A anterioridade, que se constitui no presente, perde

então seu caráter determinante: ela não é mais "causa" do

presente, mas apenas uma de suas componentes. Ela ocu­

pa um lugar hipotético: se o telefone toca, é sem dúvida

porque alguém está chamando; então, e só então, o ante­

rior se manifesta. Quanto ao futuro, essa extensão do pre­

sente que desempenha o papel de perspectiva, ele tem sua

originalidade paradoxal: mesmo sendo apenas um esboço,

um projeto, uma elaboração fantasmática, ele se mantém

contudo para além do ato de constituição temporal presen­

te, não como seu limite, mas como um todo que engloba o

conjunto dos momentos.

Para exprimir isso em uma fórmula tão paradoxal

quanto o próprio tempo em devir: o futuro é nossa memó-

ria, é aquilo que os estóicos chamam de "destino". Esse tra­

ço enigmático é posto em evidência nas obras-listas ou nas

obras-programas que já citamos: a obra reside em sua rea­

lização futura, mesmo que essa realização não advenha ne­

cessariamente. A obra, que estabelece o tempo como sua

própria matéria, pois ela o projeta diante de si em termos de

etapas a percorrer, realiza a façanha de subtrair toda tem­

poralidade ao tempo, visto que, situando-se toda inteira em

seu vir a ser, ela estabelece, ao mesmo tempo, sua existên­

cia incerta: a obra pode não ser concluída . O futuro contém

um conjunto, o todo da obra, mesmo que ele não tenha ti­

do espaço para ser e possa permanecer vazio de objeto: pu­

ro incorporai.

DIFICULDADES: O DESTINO , A REPETIÇÃO

O futuro, a seqüência dos tempos, não é uma dest ina­

ção, e sim um vazio que talvez seja preenchido, e que não

poderemos, portanto, considerar como "seqüência", exce­

to quando ocorrido. Impo ssível de prever e, justamente por

isso, "destino". Para nós, paradoxalmente, o destino não

pode ser "lido", ser concebido, a não ser quando o aconte­

cimento se tiver realizado, dito de outro modo, a posteriori:

em suma, na repetição.

Mas como é que a repetição pode ter lugar em tal dis­

positivo? Para que haja repetição, é preciso que haja me­

mória e que se possa extrair daí o que representar daquilo

que uma vez já esteve presente. Ora, ao fazer do passado

Page 51: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

98 ANNE CAUQ UELlN FREQÜENTAR OS INCO RPORAIS

um estrato simultâneo à percepção do presente, proibimos

a nós mesmos de ter acesso a um "estoque" separado da

apreensão presente do tempo.

Essa dificuldade aparece nitidamente com as come­

morações - as representações daquilo que foi outrora, ou,

para dizê-lo em outros termos, com as reexposições e as

interpretações. Como, por exemplo, reexpor alhures a ga­

leria vazia de Iris Clerc fora do momento em que ela foi

efetivamente inaugurada no dia tal, a tal hora, e na pre­

sença de Yves Klein? Que resta de um momento como es­

se se nós o deslocamos em nosso presente aqu i e agora?

Porque a representação está fixada na postura desconfor­

tável de ser, simultaneamente, presente em sua apreensão

e ausente: o objeto representado não está mais lá "em pes­

soa", mas apenas em sua dupla objetividade, despojado do

caráter de ato que tivera em sua primeira aparição.

Reexpor a zona de sensibilidade imaterial sem a pre­

sença e a consagração do próprio Klein seria , é o que nos

diz Denys Riout, "um plágio, uma faticidade privada de to­

da aura , e seria conseqüência da par ódia">. Ora, expor é se

pôr em situação de ter de reexpor, logo, de delegar pres en­

ça àquilo que não pode tê-la por si mesmo. Reinterpretar a

cena da presen ça».

20. Denys Ríout. op. cit., p. 145.21. Daí decorre toda a discussão em torno do binômio auto gráfico/alográ­

fico, de Nelson Good man, e a par tir da qua l Gérard Genelle propõe uma equ i­valência ent re os dois regimes de imanência e de transcendência das obra s de ar te.Cf. Géra rd Cen ette, L'CElIvrede l'art (Paris, Éditions du Seuil, 1994), tomo I, Immn­nenceet transcendance.

Mas não é desse modo que podemos preservar, ao

mesmo tempo, o frescor do presente e a possibilidade da

repetição. Para conservar a intemporalidade do tempo que

confere todo seu frescor ao presente e o confirma em seu

papel de criador de temporalidades, é preciso então que a

repetição, necessária, ao menos para sobreviver no tempo,

não seja dada no modo da representação.

Isso equivale a dizer que a lembrança se dá no pre ­

sente e que essa forma temporal tem a primazia sobre (I

conteúdo; o conteúdo da lembrança, aquilo de que nos rc

cordames, só é "representado" na apreensão presente, ele

não tem realidade separada do momento em que se atuo

liza em uma percepção original, e quando parece "vo\

tar", ele é, de algum modo, percebido como presente. Sl',

portanto, pensamos o tempo como intemporal, isto é, in­

corporaI, a atenção incidirá, não sobre o conteúdo repre ­

sentado - um objeto de memória - , mas sobre a forma na

qual ele se dá - o presente - , até fazer desaparecer gran­

de parte (ou, mais radicalmente, o todo) do conteúdo para

preservar apenas seu signo.Os artistas contemporâneos são os virtuoses desse

paradoxo vinculado à intemporalidade do tempo: quando

o vernissage tem o estatuto de obra, como foi o caso de Ro­

bert Morris com Closed Galeries Pieces, ou ma is perto de

nós com Philippe Parreno, o conteúdo realmente desa­

pareceu, restando apenas a apresentação de um momen­

to vazio de todo corpo, que poderia temporalizar o tempo

ocupando-o. Desse modo, a apresentação pode se repetir

Page 52: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

100 ANNE CAUQUELl N FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 101

indefinidamente, com cada momento sendo um verníssage

novo e original, limp o de todo objeto a re-mos trar. Lição

renovada, dessa vez com Rirkrit Tiravanija, em Cordeliers

(2005), onde guias "livres" conduzem a visita r sua "expo­

sição", ou seja, sa las inteiramente vazias, mimetizando as

explicações dos guias oficiais de museu . Os guias, então,

estavam livres para recitar textos, dar nome s a peças que

nunca existira m, para comentá-las, inventar um a história

para elas: em suma, para fazer o relato da ausência e, nes­

sa mesma circuns tância, tornarem-se os autores das obras

que fantasiam. Podemos, portanto, concluir: o vazio é a

garantia de uma repetição ilimitada, isto é, de um presen­

te ilim itado.. .

E é isso que nem Denys Riout nem Paul Ardenne per­

cebem, um quando pensa, em term os de aura perdida, no

plágio de uma obra não santificada pela presença daquele

que concebeu o origina l, o outro quando avalia que Parre­

no (por exemplo, porque ele acusa vár ios artistas contem­

porâneos do mesmo defeito) repete sem saber uma obra

original (nesse caso, a de Robert Morr is) e que, assim sen­

do, ele não passa de um "pseudo" produzindo pseudos>.

Mas é que se trata, nesses dois autor es, da ressurgência

ou da persistência de uma das característ icas mais reniten­

tes no habitue do historiador ou do estético: a característica

da originalidade, da unicidade, da primeira vez inovado­

ra caracterizando a obra de arte. Um trabalho artístico que

22. Paul Arde nne, Un art coniextuel (Paris, Flammarion. 2004), pp. 201ss.

repete ou imita é considerado falso ou malfeito. É bem ver­

dade que é muito difícil não fazer referência à definição

tradicional de obra quando comentamos as obras contem­

porâneas, mesm o que, por outro lado, bem saibamos que

são justamente essas características as que são postas em

dúvida ou claramente torp edeadas pelos artistas dos dias

de hoje.

Reexposição, falsificação, plágio são as man ifestações

artísticas atuais de incorporalidade do temp o. O mesmo se

pode dizer das repetições ou das redupl icações, ou aind a

da famosa reprodutíbílídade benjaminiana, que nunca se

cessa de comentar nem de estigmatiza r>.

Aparecer de maneira repetida, insistente, para aca­

bar aniquilando-se na própria repetição, é um dos traços

do tempo intemporal apreendido por reprodutibilidade por

arti stas como Roman Opalka ou Om Kawara. Os números

que se sucedem nas telas de Opalka dão ritmo a uma vida

cujos conteúdos todos desapareceram, deixando lugar, não

a pegadas que sejam ainda a sombra de um a realidade que

teria tido lugar no tempo, mas simplesmente a signos que

caem, um depois do outro, no vazio íncorporal». O signo faz

sina l indi ferentemente para o antes e o depois; o dia passa­

do e o dia por vir são indistintos, só o movimento que leva a

inscrição (para a direita) constitui uma orientação ritual.

23. Mais adia nte, surg irá a questão, junto com o exprimível, da reprod uti­bilídade e da allra, apreendi das segundo o incorporal ,

24. Não é indiferen te que Husserl fale de "recaída no vazio", de retençõesque se tornaram "imperceptíveis".

Page 53: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

102 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 103

Os escritores de diários íntimos conhecem bem es­

sa vertigem do tempo que os mantém em alerta, fazen­

do de sua vida os signos de uma intemporalidade radical.

Com menor obstinação e sem ter realmente essa intenção

consciente, eles perse guem a mesma imaterialização dos

conteúdos de sua vida cotidiana, por acreditarem poder

preservá-los na memória com as mesma s técnicas rituais

dos artistas>. Tanto o rito como a repetição mostram a fra­

gilidade do tempo que essas dua s operações têm a missão

de manter em sua vacuidade. Esvaz iado de todo objeto de

mem ória, o ritual gira no vazio, e sua persistência só faz

aumentar o movimento pendular - o deslocamento - que

já constatamos com o lugar e com o vazio; aqui, é o tempo

que um gesto, um signo repetido, segura à beira do vazio

onde ele cai e de onde se reergue incessantemente.

O efeito (o signo inscrito) se mantém só, sem que ha­

ja necessidade de ir buscar causas ou prolongamentos: o

temp o não é causa, muito meno s propósito. Ele é, propria­

mente dizendo, "nada". Então, não se trata de mostrar a

presença do invisível, tornando visível o invisível, mas de

assinalar a intemp oralidade do tempo com o auxílio de sig­

nos visíveis, levados ao limite do apagamento.

Desse modo, as obras buscam seu própr io encaminha­

mento para o imaterial e buscam abandonar o regime do

25. Cf. Ann e Cauquelin, L'exposition de sai: du journal intime aux webcams(Paris. Eschel, 2DD4).

objeto preservando a ambigüidade entre o corpo (é o corpo

que, ao se esvanecer, const itui signo) e o incorporaI do va­

zio e do tempo.

Do exprimível

Essa concep ção do tempo incorpora I como submeti­

do ao signo para aparecer e assumir corpo nos leva dire­

tamente à teoria do exprimível, ao lekton. Uma submissão

dessas à aparê ncia faz de todo acontecimento temporal um

"caso" entre todos os casos possíveis de existência. Todo

acontecimento que deixa um signo part icipou da nature­

za atemp oral/temporal do tempo: ele a exprimiu, ou, para

ser mais precisa, ele o exprim e no momento em que apa­

rece. Entendo que ele exprime, simultanea mente, a inexis­

tência do temp o e sua breve ocupação momentânea que

lhe confere existência. Em outras palavras, o tempo é "ex­

primível", não mais que isso. Ele permanece no indefini­

do intemporal e incorporaI até o miniacontecimento que o

faz sair de sua indife rença e, ao mesmo tempo, exprime-o

apaga ndo-se imed iatamente depois. Desse modo, o temp o

e o exprimível estão ligados, assim como estavam o lugar

e o vazio. A mesma vacilação, a mesma passagem do vazio

ao lugar, pensada em termos de tempo, e a mesma repet i­

ção desse movimento que vale como "natureza" das coisas.

Como é que esse movimento é levado em conta e explora­

do na art e contemporânea e em que ele manifesta a potên­

cia do incorporaI?

Page 54: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

104 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTARos INCORPORAIS 105

Uma interpretação habitual do termo "exprimível"

chega a fazer dele um sinônimo de "linguagem", ou seja,

de "palavras". Trata-se de uma interpretação laxista, que os

próprios Ant igos introduziram, tanto que o termo lekton le­

va a associar a si lagos. Mas, se se tratar mesmo da região do

lagos, da região do sentido, não se tratará, portanto, de pala­

vras. Com efeito, as palavras são corpos, não incorporais, e o

meio de onde elas nascem, de onde vêm à luz e que vêm pre­

encher é o espaço do exprimível, um espaço de possibilidade

para as palavras encontrarem um lugar e serem expressas;

mas é tamb ém e simultaneamente um espaço de possibili­

dade vazia, que não é necessário preencher. Por assim dizer,

o exprimível é um espaço de proposições; proposições de di­

zer, proposições de exprimir, prop osições de vir a ser corpos.

Tais proposições podem permanecer sem resposta, assim

como também podem ser tomadas literalmente.

Há, entre essas duas interpretações do termo "expri­

mível" - aquela que faz o peso do exprimível incid ir so­

bre as palavras, ou sobr e a linguagem considerada como

seqü ência de palavras ligadas por uma gramática lógica,

e a opçã o que consiste em ass inalar ao exprimível um es­

paço de possibilidades, uma ár ea de extensão para o sen­

tido - , uma divergência cujos efeitos podem ser vistos naarte contemporânea.

o EXPRIMÍVEL-LINGUAGEM

A pintura, que foi desde o Renascimento o lugar das

experimentações artísticas - antes que elas desertassem da

pintura para buscar outros suportes - , está vinculada de

modo mu ito íntimo à linguagem, e isso de uma manei­

ra muit o concreta: o título, formado por uma seqüência de

palavra s, indica o tema representado, ao passo que a as­

sinatura - que é uma palavra - serve de referência ao afi­

cionado ou ao historiador, assim como a data - que pode

ser inscrita com todas as letras. A narração, que é solicita­

da para explicitar o assunto pintado, serve-lhe de pano de

fundo, de uma espécie de subtexto. É impossível ver A fugapara o Egito, de Poussin, sem conhecer o episódio do Novo

Testamento que narr a o acontecimento, o mesmo valendo

para todas as cenas religiosas. Desvinculado da narração,

o quadro suscita um enigma, como A tempestade, de Gior­

gione, do qual temos 28 interpretações e o mesmo tanto

de perguntas>. Os comentários tent am ligar a narração ao

que é representado, e os críticos visam à boa apresentação

da imagem com relação ao texto, a sua credibilidade. A lin­

guagem, seja ela narração, texto sacro ou poesia, envolve e

até mesmo cerca estreitamente as obras como o lugar onde

elas adquirem sentido. "Leia a história e o quadro, a fim de

saber se cada coisa é apropriada ao tema ", escreve Poussin

em uma carta a Chantelou" , Já evocamo s suficient emen­

te o ut pictura poesis, em todas as suas reversões possíveis

(quem imita quem? Não há vínculo reversível?), para que

26. Cf. Sa lvato re Se ttis, l.i nuention d'un tableau: La Tem pête, de Giorgione(Paris, Édil ion s de Minuit, 1'187).

27. Nicolas Pou ssin . Lettres et propos sI/r l'art (Paris, Herrnann, 1964);an a lisa do por Lou is Mari n em Suolime POIIS S;II (Paris, Éditions du Seuil, 19'1~),

pp . 11 ~34 .

Page 55: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

106 ANN E CAUQU ELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS107

haja necessidade de voltar ao assunto: o fato é que a lin ­

guagem está lá, com sua carga de interpretações diversas:

sua exprimibilidade.

Mas, enquanto título e assinatura, narração e poesia

permanecem fisicamente exteriores à obra pintada, outros

vínculos, dessa vez internos, desempenham um papel que

não se pode negligenciar: a linguagem, sob a forma de pa­

lavras ou de simples letras, é introduzida na materialidade

da pintura, em sua massa, e isso abertamente ou de ma­

neira oculta>. Aqui, a linguagem deixa de ser um auxílio

para compreender o assunto representado, para se tornar

um desafio para a própria representação.

Louis Marin perseguiu durante muito tempo, e sutil­

mente, essa contradição que habita a pintura e anula sua

picturalidade por meio da própria pintura, pintando pala­

vras nela. Citemos Poussin: "ei in Arcadia ego.. .", palavras

gravadas em um túmulo - ou em uma estela -, enquanto

são interrogados os pastores e os comentadores (os pastores

da Arcádia). Esses termos que permanecem suspensos indi­

cam ao espectador pistas divergentes, a ponto de perturbar

o comentário de Panofsky e de obrigá-lo a se corrigir duas

vezes antes de chegar a uma leitura satisfatória. Recusando,

de início, o superficial "e eu também vivi na Arc ádia" (o que

não interessa, na verdade, a ninguém), ele propõe: "A morte

está até mesmo na Arc ádia", Mas e esse ego gravado no tú­

mulo? Trata-se do pintor, da pintura ou da morte? Ou ain-

28. Cf. Michel Butor, Les mots dans la peinture (Pari s, Flarnmarion, 1%9).

da do espectador, que é encarado pela palavra gravada, ego?Não será esse espectador (vocês, eu, agora), que está na si­

tuação dos pastores, tentando decifrar a frase inscrita, que

ressoa sob as frondes dos carvalhos e para os quais esse egoé um irmão? Ou bem interpretando esse "ei" que introduz o

verso como um "até" (até mesmo no túmulo, ego está na Ar­

c ádia), pensando então na promessa de um acordo elegíaco

entre a pintura e a morte nesse país mítico, ou utópico, da

Arcádia? O que equivale a dizer em parte alguma, com o to­

do - ego, a morte, a pintura e o pintor - aniquilando-se com

graça em uma paisagem serena, alheio a todo pathos?O mesmo pode ser dito dos dois auto-retratos de

Poussin, nos quais a assinatura - o nome, com suas qua­

lificações - é redundante quando comparada à represen­

tação dos instrumentos de sua profissão - lápis, livro em

que se pode ler o título, De lumineet colore, e telas viradas,

não pintadas, onde estão escritas as palavras-efígie: Nícolaí

Poussini andelyensís píctorís.. . Como se o pintor assinasse

enquanto auto-retrato o vazio de sua pintura, seu próprio

aniquilamento no traço deixado sobre o quadro" .

Porque as palavras inscritas na pintura estão ali para

denunciá-la: o sentido deve ser buscado noutro lugar, di­

zem elas, em uma no man's land onde as negações se suce­

dem vertiginosamente. Isso não é um cachimbo. A pintura

mente. Mas ela diz a verdade quando diz que mente. De

todo modo, é bom não confiar muito nela .

29. Cf. Lou is Marin, op. cil. Cf. tamb ém Louis Marin, Détruire la peinture

(Paris, Galiléc, 1977).

Page 56: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

108 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 109

Contudo, o paradoxo das palavras escondidas na pin­

tura não é percebido pelo público como uma contradição: é

algo normal ao qual quase não se dá atenção. É preciso es­

perar sinais mais fortes - por exemplo, as telas de [aspers

Jones - para que tomemos consciência de que a pintura é

algo diferente do que está pintado, de que ela é tecida de

linguagem. É quando vemos o que até então não tínhamos

visto, mas que, contudo, existia: as palavras tecidas na ma­

téria pictórica. Nós nos apercebemos de que uma parte da

pintura escapa ao pintado, que até mesmo em sua materia­

lidade se encontra aquilo que aqu i chamamos o exprimí­

vel (isto é, o incorporaI) sob a forma de um espaço pa ra as

palavras: espaço de palavras que põem em risco o que elas

nomeiam, fazend o desse modo vacilar todo o aparato pre­

ciso, concreto, do material a ser pintado no espaço vago,

indeterminado, indefinido, do interp retável.

Tudo aqui se passa como se as obras dos artistas mais

próximos de nós no tempo trouxessem à luz, diante de um

grande público, os implícitos de um a disciplina antiga, que

só os sábios críticos tivessem até então desvendado.

Um mesmo fenômeno se passa com a ar te cha ma­

da "conceitual". É certo que não tivemos de esperar a ar­

te conceitual para saber que a arte pictórica é cosa mentaleao mesmo temp o que uma superfície pintada e de cores as ­

sociad as. Mas não resta dúvida de que é a visão das obras

conceituais que nos revela mais adiante a parte do concei­

to nos empre endimentos da ar te.

Com efeito, cosa mentale é um term o tão vago que po­

~emos encaixar nele, um por vez ou até mesmo simultanea -

mente, o espírito, a alma, o sentimento, a memória ou a

inteligência. Só quando esclarecemos e definimos o termo

mentale como aquilo que deriva, na compreensão das coi­

sas, de seus aspectos proposiciona is é que a art e conceitua l

se dá a conhecer como tal.

o CONCEITUAL

Destruindo-se umas à outra, palavras e pintura se

mantêm em um enfrentamento irresoluto, mas justamen­

te por isso comparáveis em sua presença e força. Com a arte

conceitual, os dois antagonis tas mudam, ao mesmo temp o,

de funç ão e de conteúdo. Suas relações são perturbadas, a

ponto de se poder supor que um dos termos foi aniquila­

do pelo outro.Não se trat a mais de semâ ntica, não se trata mais de

interpreta r as palavras, ou até mesmo o relato, incluídas

na textu ra do que é pintado, mas de operações intelectuais

distintas de toda opticidade . De certa forma, o visível é ex­

cluído da antiga dupla legível/visível, sem que, contudo, o

legível fique sozinho: uma dupla se reconstitui em torn o da

linguagem, compreendendo dessa vez o legível-visível em

uma ún ica entidade - porque sempre há palavras a ser li­

das, isto é, a ser vistas - e o gramatical.

Entenda-se por "gramática" o conjunto de ligações

dispon íveis para con struir proposições. Trata-se de uma

gramática ampliada, ou lógica, a gra mática dos encadea ­

mentos válidos . Tudo está vinculado. Como é que tal ló-

Page 57: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

110 ANNE CAUQU ELIN l 'I{ \'(.,lÜENTAR os INCORPORAIS 111

g íca, livre do peso das palavras, portanto, dos corpos, da

própria materialidade do sentido das palavras, pode con­

duzir à obra de arte?

Não resta dúvida de que é um artista como [oseph

Kossuth que nos ensina o que significa tal gênero de ati­

vidad e artística. Um quadro, uma peça, uma obra só são

tais , afirma ele, porque levam em si a definiç ão com a qual

se identificam. Eles são o que dizem ser : definição como

identificação de si consigo mesmo. Ao retomar a propo­

sição estóica: "Se está claro, então é dia", Kossuth diz (e

mostra): "Se há uma cadeira, então se trata de uma cadei ­

ra"; onde uma cadeira é uma cadeira é uma cadeira, por­

tanto. Não se sai disso: a proposição gramatical constrói o

objeto satisfazendo à proposição que o enuncia como ob­

jeto. Geralmente se diz de Kossuth (ele mesmo chegou a

dizer de si mesm o) que ele se inspirava em Wittgens tein.

Contudo, parece que muitas das caracter íst icas de sua

concepção de arte estariam especialmente vinculadas ao

lekton estóico, ao expr imível incorporai tal qual apre sen ­

tado por Zen ão.

É necessário compreender que as palavras e as pala­

vra s de objetos, os títulos ou as palavras tecidas no que

é pintado permanecem como corpos. Sua interpretação,

seu sentido, mesmo múltiplo, depende ainda mu ito inti­

mamente do que é apresentado à visão para ter uma vi­

da aut ônoma. É claro que eles dão testemunho de uma

extensão do objeto, de sua propensão a passar dos limi ­

tes físicos da obra indo buscar o sentido fora, reenviando

i1 história ou até mesmo às grandes narrativas, instalan­

do um a não-pintura na pintura, um a não-obra na própria

obra, mas eles convocam , justamente por isso, saberes,

fantasias, até mesmo sentimentos que não são puramen­

te "ar tísticos".

Apenas as sentenças tautológicas, que se resolvem

em si mesmas, como "x. é uma cadeira é uma cadeira",

e que não levam nem aos sentimentos nem às emoções,

nem a subjetividade superior alguma, assim como certa­

mente não levam a nenhuma sens ibilidade pictórica, nem

que ela fosse imaterial, podem ter pretensão ao concei­

tual. E ao conceitual em sua nudez porque, em vez de

se ocultar, à maneira de um esboço que se põe de lado

quando vem o dia (uma vez acabada a obra), a elaboração

conceitua l, a forma lização de uma prop osição ar tís tica, é

exibida como totalid ade, sem que haja necessidade de rea­

lização. A atividade propo sicional se define como a capa­

cidade de se cons titu ir em obra por si mesm a; é, como diz

Kossuth, "uma ver ificação da ar te por si mesma". Ou seja,

um a tautologia.

Não obstante, o fato de ter de mostrar essa elabora ­

ção proposicional como um objeto, afixando-o em um lu­

gar, enfraquece bastante, chega até mesmo a des naturar

seu caráter de incorporeidade. É como se, apesa r de todas

as atenuações conferidas a sua materialidade, a atividade

artística parec esse ter de supor ta r decididamente um resto

de corporalidade - parecesse não poder escapar dele.

Page 58: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

112 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 113

o EXPRIMÍVEL-EXTENSÃO

Com o conceitual e as "palavras na pintura", conti­

nuamos no regime do objeto, do corpo. A partir de agora,

tentarei propor uma versão completamente distinta. Repor­

tando-me ao espaço que cerca o mundo e que não existe, a

menos que seja preenchido por um corpo, ou ao tempo in­

temporal que só vem a ser tem po com a condição de ser

ocupado durante um momento, eu gostaria de examinar o

invólucro do corpo da obra como um espaço possível pa ­

ra uma extensão, ela mesma possível, mas não necess aria­

mente ligad a à obra. Ao permanecer no campo do sentido,

poderíamos então dizer que se trata de um campo de inter­

pretações; tud o o que cerca a obra de um halo de comentá­

rios - d izeres, escritos, ilust rações ou imagens, publicidades

de quaisquer tipos, da ordem da comunicação e de seus di­

versos canais - participa do esp aço em que a obra se esten­

de tão longe quanto possa, ou se esforça para tanto». Em

suma, a obra tenta ocupa r um espaço para fazer dele um

lugar, ela tenta preencher esse espaço, até então vazio e in­

corporaI, para ali se exprimir. Nessa tentativa, a periferia da

obra, tud o aquilo que a cerca, adquire um novo estatuto: é

aquilo que leva a carga do sentido e permite à obra tomar

corpo, mesmo sendo invisível, incorporaI.

30. O esforço para perseverar em seu ser spinozista passa por essa extensãodo campo de existência. Cf. Spinoza, Ética, livro rn, proposição VI : "Cada coisa, se­gundo sua potência de ser, esforça-se para perseverar em seu ser"; e, mais ad ian­te, na proposição VII I: "O esforço pelo qual toda coisa se esforça para perseverarem seu ser não envolve nenhum tempo finito, mas um tempo indefinido". Spino­za, CElIl'res completes (trad. Rolland Caillois, MadeIeine Francês & Robe rt Misrahi,Par is, Ga llima rd, 1954), p. 421.

}

Nesse sentido, a exposição se torna um fenômeno pri­

mordial, o próprio acontecimento da existência da obra, de

sua instalação - breve, mas rep et ível- no incorporaI invi­

sível do tempo e do vazio. A proposição de extensão fez­

se seguir por uma realização: a obra se expõe no espaço de

possibilid ade oferecido. E essa possibilidade se renova du­

rante um tempo indefinido.

U MA orcxo PARA A AURA

Desse modo, é fora dela, de sua circunscrição est rita,

que a obra adquire sua existência: ela se põe do lado de fo­

ra, posic iona-se. Pod emos imaginar que quanto mais ela se

repetir, mais freqü entemente se mostrará e mais terá "cor­

po". Sendo assim, exposição e reexposição, repetição - até

mesm o imitação - atuam na área de extensão de uma pre­

sença: de um presente que se sabe ilimitado.

Qu e se passa, então, com a fam osa aura da obra de ar­

te, cara aos aficion ados de obras que se emoc iona m com a

un icidade de uma obra rara?

A aura, no se ntido qu e geralmente lhe dam os, é () halo

lum inoso que envolve um corpo, exprime seu poder, afir­

ma sua existência no seio do mundo e se oferece à contem­

plação. Tomada no sentido de ut1na presen ça inefável, aura

é outra palavra para charisma e sb aproxima de auréola , al­

go de místico e, portanto, de inexplicável, de irraciona l ­

uma efu são de luz, ga rantia de uma integridade pura e de

autenticida de.

Page 59: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

114 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 115

Contudo, mesmo que a aura, a presença, permaneça

para muitos como um traço característico da obra, na "era de

sua reprodução técnica", essa autenticidade e essa integrida­

de parecem ter sido varridas e, com elas, a interpretação ca­

rismática da aura. O declínio da aura existe, é o que assegura

Benjamin em seu texto célebre», e esse enunciado assume

valor de verdade indi scutível, com as conseqüências que dele

podemos tirar para o comentário e a prática da arte.

Não obs ta nte, essa afirmação sofre o destino daqui­

lo que é muito conhecido: ela é interpretada a contra-senso

ou, mais exa tamente, no sentido convencionado por aque­

les que dela se apoderam. É de sse mod o que o declínio da

aura serve de escudo contra a arte tecnológica (ou simples­

mente mecanizada, tecnicizada), ao passo que, de outro la­

do, ele ser ve de constatação de base pa ra uma arte liberada

da unicidade, da originalidade e da raridade de uma pre ­

sença e desencadeia a virada de uma arte para si, não mui ­

to distanciad a de uma arte pela arte (que Walter Benjamin

trata de "teologia negativa"), rumo a um a arte para os ou ­

tros, voltada para a comunicação.

A primeira opção se declara em favor de uma arte tradi­

cionalmente apegada à pess oa, no caso, ao gênio do artista e

ao caráter sagrado da obra. Trata -se de uma interpretação ri­

tual, que confe re ao rito um valor de culto e que vemos ain­

da hoje implicitamente apoiada (e, algumas vezes, bastante

31. Walter Benjamin, L'CEuvre d'art à l' êre de sa reproduction iechnique (t rad ,Maurice de Gandillac, Rainer Rach litz & Pierr e Rusch, Pari s, Gallimard, 2000),toma m.

explicitamente, como é o caso de Jean Clair) tanto por crít i­

cos e aficionados -colecionadores como por críticos de arte.

Essa opção, algumas vezes, desponta mesmo em meio a tex­

tos resolutamente modernistas. Então, o declínio da aura é

interpretado como um fenômeno negativo, como uma perda

irreparável, decorrente da tecnici zação cada vez mai s efetiva

da arte, bem como da sociedade em seu todos,

A outra opção - que leva em conta o texto de Benja­

min, e não un icamente o trecho de proposição relativo ao

declín io da aur a - faz desse declínio um fenô meno positi­

vo, porque ele libera a obra de seu s vínculos cultuais e per­

mit e sua disseminação entre um públic o popular. O valor

de exposição ocupa o lugar do valor cultuaI, e a função ar­

tístic a passa para segundo plano: "A partir do momento

em que a autenticidade não é mais aplicável à produção ar­

tística, tod a a função da arte se encontra alterada. Em vez

de repousa r sobre o ritual, ela passa a se fundar sobre ou ­

tra prática : o pol ítico">.

O declín io da aura é também a abolição da distância

- completam ente elitista - que afastava o público da obra

sacra; ele favorece a apro ximaç ão da arte e do cotidiano

das pessoas. A utopia política de um a arte de massas faz

o restante, e, a seg uir, vem a desilus ão. A constatação des­

se declín io deriva de outra constataç ão, a da mudança das

modal idades de produção da obra, ou seja, da s técnicas de

32. Essa opção é representada por, entre outros, [acques Ellul em su a criti ­ca contra a técn ica, Eempire du non-sens (Par is, f'UF, 1980).

33. Walter Benjamin, L'CEuvrcd'art, op. cit., p. 282.

Page 60: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

116 ANNE CAUQ UELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 117

sua valorização, que repousam sobre a produção do origi­

nal, sua exposição e disseminação.Como é que podemos compreender isso hoje? E, por

nossa vez, como interpretar que haja simultaneamente uma

aura, ou seja, uma presença em pessoa da obra, com seu pe­

so de carisma, e, na ponta oposta, sua repetição quase inde­

finidamente reprodutível? Um vapor, um véu irradiante para

um a concepção da arte tradicional, que ali encontra sua es­

piritualidade, seu imaterialismo e, de outro lado, condições

completamente técnicas de fabricação, "que emancipam a

obra do ritual e lhe fornecem ocasiões mais numerosas de

se expor">?Com a primeira opção, a da interpretação da aura co­

mo halo místico, invisível, vem o-nos diante das tentativas

art ísticas de alcançar o imaterial e de manifestar o invisí­

vel: é justamente uma aura a sens ibilidade pictórica ima­

terial de Klein . Um aposento vazio é sens ibilizado pela

presença em pessoa do arti sta entre suas paredes. É es­

sa presença que perceberã o, ou que se pensa qu e percebe­

rão, os visitantes da galeria vazia. A sensibilidade pictór ica

imaterial de Klein pode ser traduzida em termos de aura

(versão que é, aliás, a sustentada por Denys Riout). Nes­

se caso, é a exportação para o exterior de uma qualidade

inerente (e invisível) da obra, sua qualidade estética , que é

avaliada. Também podemos defender, para mati za r a rad i­

calidade dessa posição e fazer justiça à mudança das prá­

ticas de produção, que essa qualidade está pre sente toda

34. Ibidem, p. 284.

.~

vez que o esp ectad or se encontra diante da obra, que ela é

novamente percebida a cada vez, apesar da repetição, me­

cân ica ou não, e ape sar de sua exposição externa e de sua

reexposição; desse modo, encontram-se ligadas a aura em

presença e a aura em repetição, mas ainda estamos mais

no dispositivo tradicional, só que ligeiramente perturba­

do. É um comp romi sso árduo, que torna o entendimento e,

portanto, a discussão difíceis.

Um trabalho - texto e ima gem - de [ulien Audebert e

Sandr ine Bernard joga ironicamente com essas confusões

e ques tiona um resultado no mínimo paradoxal:

Para Walter Benjamin, a obra de arte na época de sua

reprodução mecanizada é a reescrita integral desse fa­

moso texto em uma única página. Se esse trabalho

questiona a reprodutibilidade, empurrando os meios de

impressão para seus limites (tanto a fotogravura quanto

a utilização de papel fotográfico), ele também transfor­

ma o texto em "signo". Sem a limitação da paginação, o

texto é proposto em sua forma "orgânica", respeitando

pontuações e parágrafos. A estrutura da escrita é, desde

então, visível, como se tivesse sido "desdobrada" [... ].

Os caracteres, da ordem de alguns mícron s, situam-se

no limite da visibilidade, e a leitura exige um a "prótese"

do olhar. Essa prática remete evidentemente à tradição

de micrografia, comum na Idade Média, ut ilizada para

a retranscrição de várias passagens da Bíblia."

35. <www.vasistas.orgiaudeberLhtm>.

Page 61: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

118 ANNE CAUQUELIN FREQ üE NTAR OS INCORPORAIS 119

Temos então, juntos em uma mesma obra, o anúncio

do decl ín io da aura e a própria obra a reivindicar a origina ­

lidade - portanto, sua aura -, ao mesmo tempo em que ela

reproduz mecan icamente (e aqui, até mesmo digit almente)

o texto que anuncia seu declínio e promove a rep rodução.

À sombra desse declín io da aura, a situação da obra é, com

efeito, completame nte clara.

Contudo, outra interpretaç ão da aura conflui para o in­

corporai segundo outro regime. Com efeito, a aura bem que

poder ia consist ir na superfície de possibilidade que cerca,

qu e envolve a obra, assim como o espaço de sentido envol­

ve tod a fala. A fala é corporal - as palavras são realm ente

corpos, segundo Zen ã036 - ; ora lmente enunciad a ou trans­

crita em um sistema de signos como a escrita alfab ética , ela

subsiste como corpo . Mas ela se banha em um mundo que

é incorporai, o mundo da significação ou das significações,

um mundo sem limites, sem orientação, infinito. O mesmo

vale para a obra: trata-se de um corpo estri ta mente defini­

do, circunscrito, cercado por um invólucro: um espaço va­

zio que pode assumir sentido e que podemos traduzir como

aura , só que aqui a aura não tem nada de sagrado, nada de

ritual: trata -se simplesmente da ma nifestação de uma lei fí­

sica que diz respeito a tod os os corpos e, em primei ro lugar,

ao corpo do mundo e a seu invólucro. É um espaço de ex­

posição e de disseminação possíveis.

Desse modo, o declíni o da aura espiritual coincide com

o estabelecime nto de outra espécie de aura: destacad a do

36. Dióge nes Laércio, Vies, doetrines et sentences des phiJosophes illustres(trad. Robert Grena ille, Paris, Ga rnier/Flam mari on, 1965), livro VII, p. 67.

conteúdo da obra, e da própria obra enquanto objeto, en­

qu an to corpo, trata-se de uma aura da qu al se pode dizerque é "comunicacion al?»,

Com esse espaço, tão próximo da supe rfície quanto do

ar e que Benjamin anunciou magistralmente, nós entra­

mos em um universo que podem os chamar "sem objeto", o

espaço dos fluxos e dos cana is de transmi ssão de info rma­

ções : o mundo da s redes. Aqui, nós freqüentamos diutu r­

namente os incorporais e aquilo que até então os esco ndia

de nós: os cor pos - as obras e sua aura sagrada - se dissol­vem bruscamente no vapor atmos férico.

Periferia ou contexto: essas são as novas palavras de

ordem da atividade artística - que excluem o corpo circuns ­

crito, delimitado, da obra, para promover o espaço que ela

habita, suas cercanias . Como qu alificar e defin ir esse mo­

vimen to de passagem dos corpos para sua habitação, essa

transmissão da aura em presença a um a area em extensão cdisseminação?

O CON TEXTUAL

A expressão artecontextual, avançada por Paul Ardenne»,

poderia ser muito conveniente para o tran sporte da obra para

seu exterior, quando a arte abandona sua pretensão de produ-

37. Mesmo assi m, não se tra ta de um a "arte comun icacional", como a des ­crevem Mario Cos ta ou Frcd Forest, mas simplesmente de um a atividade art ís ticacuja ma ior parte se passa no exterior, nas relações ma ntidas em torno da obra, emsuma, na periferia. Para a arte comunicacional propriamente d ita, é preciso sair datécni ca, ou da mecani zação, e tomar o rumo da tecnologia.

38. Paul Ardenne, op. cit.

Page 62: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

120 ANNE CAUQUELIN FREQüENTAROS INCORPORAIS 121

zir objetos específicos, definidos por critérios internos que os

tornam consistentes; em suma, quando ela renuncia a produ­

zir corpos e se recompõe no ar ambiente segundo os diversos

elementos com os qua is a atividade artística se confronta. Mes­

mo assim, é preciso dizer, com Ardenne, que se trata de retor­

no à realidade? Que essa arte contextua l busca se introduzir

na realidade para subvertê-la ou transformá-la? Ser inciden­

te t'personalidade incidente", como esclarece [ohn Latham»)

também é ser acidente, acontecimento entre outros incidentes

ou acontecimentos. Mas também equ ivale a dizer que a rea­

lidade não consiste, que ela não pod e ser um suporte estável,

que ela é propriamente um composto instável de elementos

em mutações contínuas, tanto no eixo espaciotemporal quanto

no eixo dos corpos que são suas constelações efêmeras. Quem

quiser pôr sob um mesmo anteparo a preocupação com a rea­

lidade, ou seja, a grande diversidade de atividades que ocupam

o campo artístico da arte contemporânea, arrisca-se a dizer

nada do tudo e, sobretudo, a esquecer aquilo que o termo pro­

missor de contextualidade encerra.

Com efeito, contextua l é a ativ idade viva da arte de

hoje, não porque ela se aprox imaria de uma rea lidade da

qual não se sabe gra nde coisa (exceto em que ela nã o "con­

siste"), mas porque ela assume tod o o seu sentido fora da­

quilo em que ela consiste. Poderíamos dizer, então, que o

contextual envolve o que Gérard Gen ette cham ava de ar-

39. [oh n Lath arn, Event struc!ure: approach to a basic contmdiction (Calga ry,Scartissue, 1981), apud Paul Arde nne, op. cit., p. 20.

te "alogr áfica", ou ainda "transcendente". Existi r fora de si,

assumir corpo fora de seu próprio corpo, exportar- se, equi­

vale a se ex-por. Com efeito, a não-consistência interna da

obra exige o exterior para tomar corpo . A arte contextual é

uma arte que se expõe, que se transporta, que se situa fo­

ra, em uma palavra , que se exprime.

E XPRESSÃO E EXPRIMÍVEL

Contrariamente à idéia comumente aceita de que a ex­

pressão man ifesta a interioridade de um sujeito, seu ponto

de vista sobre o mundo a partir de sua exper iência pessoal e

segundo os meios de que ele dispõe - e, desse modo, a obra

exprimiria o "ser" profundo do artista - , uma tradi ção filo­

sófica refletid a por Giorg io Colli assinala à expressão o cam­

po das interpretações, o da multiplicidade dos possíveis". A

partir desse ponto, trata -se de deixar a psicologia dos ind i­

víduos, seus modos de recepção dos objetos visíveis ou le­

gíveis, assim como o campo das emoções - sentimentos ou

paixões -, da vontade e da intenção, para abarcar um espaço

indiferente. A expressão, termo cuja form ação parece ind icar

que algo foi ou está para ser espremido para dali ser extraí­

da sua qu intessência, é um conceito insatisfatório, para não

dizer decepcionante, a partir do momento em que se bus­

ca circunscrevê-lo um pouco melhor. Sua própria expres-

40. Em l'h ilosoph ie de l'expression (trad. Marie-José Tramuta, Paris, Éditionsde l'Éclat, 1988). Giorgio Colli define a expressão como uma hipótese, em relaçãoà represe ntação, que é um dado.

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122 ANNE CAUQU ELIN FREQ ÜENTAR OS INCORPO RAIS 123

sividade o desvia do campo - o das hipót eses, das idéias,das proposições - onde ele deve - segundo alguns - desem­

penhar seu papel, opondo-se à representação. Essa própria

oposição lhe causa prejuízo, na medida em que a oposiçãopõe a expressão na mesma superfície de inscrição que sua

rival e, então, a define negativamente. Diríamos que a me­

táfora de objeto vinculado ao termo (o gesto de espremer osuco de uma fruta) faz a expressão deslizar incessantemente

para o mimético, põe incessantemente a expressão na obri­

gação de "representar" o gesto que seu termo evoca.Ora, se seguirmos a pista do exprimível, do lekton es­

tóico, como o fez Gilles Deleuze«, a expressão é de natureza

conjuntural, não substantiva. Nem substrato, nem supor­te, de nenhum modo qualificada, ela também não qualifi­

ca uma ação, um gesto, um pen samento, nem se vincula a

eles de modo algum; sendo assim, um objeto, uma obra,um pen samento não são mais ou menos expressivos que

outros. Eles não possuem um caráter, mais ou menos mar­

cado, de exprimibilidade. Só se diz que um pen samento é"expressivo" unicamente quando ele foi expresso; antes de

ele ser expresso, não se pode dizer que um pensamento é

"exprimível", ele só o é na breve passagem do não-expres­so ao expresso. Unicamente nesse instante, percebemos

que aquilo que acaba de ser express o era exprimível e queo pensamento expresso é realmente uma expressão, mas

uma expressão sem outro sujeito além de si mesma como

41. Gilles Deleuze, Logique du sens (Pa ris, Éditio ns de Min uit, 1969), espe­cialme nte pp . 11-34 fedobr.: Lógica do sentido (São Paulo, Perspect iva, 2000)].

pensamento, e não a expressão de algo ou de algu ém quelhe seria exterior. Da mesma maneira, antes de ser ocu­

pado por um corpo, o vazio não é nem um lugar, nem um

"exprimível". Ele só o é na ação de se tornar vazio.Vista desse modo, segundo o lekion estóico, a expres­

são de uma obra é sua extensão para fora de si mesma e não

a expressão de seu autor querendo "significar algo". Contu­do, essa interpretação da obra como exposição de si, se ela

corresponder parcialmente ao conceito de exprimível, apre ­senta paradoxalmente a falha de encerrar a obra no círcu­

lo restrito da arte pela arte: a obra se diz a si mesma e só se

diz a si, enquanto faz sua definição depender daquilo que acerca. A vizinhança de uma obra é, ao mesmo tempo, aqui­

lo que a exprim e e aquilo que a condena ao isolamento. É

aqui que se vê o paradoxo no qual se fecham deliberada­mente os artist as conceituai s.

Se se qu iser manter a idéia de uma expressão como

exterioridade, de uma exposição que se nega a si mes­ma e, desse modo, faz obra, sem dúvida, é preciso aban ­

donar a idéia de obra tal qual era considerada até então

e se inte ressar pelos meios que ela teria para ser apenasuma exterioridade: momento do "princípio extensão", is­

to é, do "princípio comunicação". Nesse princípi o, inscre­

ve-se uma estética da comunicação, tal como a apresentame defendem Mario Costa e Fred Forestv. Ao levar em con-

42. De Mario Costa, cf. especia lmente Le sublime iechnologiquc (Lausa n­ne, lderive, 1994) e seu último ensaio , Dimenticare farte (Nápoles, Franco An geli,2005). De Fred Forest, cf. "L'esth étique de la comrnuni cation", RevlIe +0 (Bruxe­las, n. 43, 1985) e seu último livro, Uceuore, systeme inoisibíe (Paris, L' Harrn att an,2005). Nessas obras, é a ar te tradiciona l, com suas caracterís ticas clássica s (obra

Page 64: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

124 ANNE CAUQUELIN FI<E<.)ÜENTAR OS INCORPORAIS 125

ta a transformação tecnológica dos meios de comunicação,

de seus modos de ação, os defensores dessa "nova estética"

tentam domesticar a relação da arte com a sociedade, fazer

dela o terreno, movediço, das trocas artísticas.

As técnicas elétricas, eletrônicas, informáticas nos in­troduziram a partir de então na sociedade da comu­nicação. Essas técnicas estão no centro das mudançasocorridas na vida social de um século para cá, modifi­cando nosso meio físico, mas também nossas repre­sentações mentais.Hoje, a eletricidade, a eletrônicae ainformática fornecem aos artistas novos instrumentosde criação [.. .l. Freqüentemente, os suportes dessa es­téticasão imateriais, sua substânciaderivade materiaisintangíveis que pertencem às tecnologiasda informa­ção. Informação cujos sinais elétricos riscam acima denossas cabeças, no céu, configurações invisíveis, fulgu­rantes e mágicas."

Trata-se justamente de uma estética "em que a noção

de relação antecede o conceito de objeto, cuja linha de hori­

zonte se situa além do visível, não fabrica objetos e não tra­

balha a partir das formas, mas tematiza o espaço-tempo?".

Estamos precisamente no mundo da extensão; a obra

se deslocou, ela se tornou troca, ligação. Apesar disso, se

original, peça única, mercado de arte ), que é criticada. Mas o estabelecimento deuma estética de subst ituição enfrenta dificuldades para se constituir.

43. Fred Foresj, Manifeste pour une esthétique de la communication (1984);texto disponível no site do autor: <www.fredforest.com>.

44. Mario Cos ta, Le sublime technologique, op. cito

ela transforma o objeto da atividade artística, de algum

mod o o desmaterializa, sendo bem-sucedida exatamente

onde os primeiros desmaterialistas fracassaram, ainda está

longe de explorar, menos ainda de assumir, todas as pos­

sibilidades de uma extensão pura, isto é, de uma atividade

tal que possamos chamá-la de incorporaI.

Éevidente que, em tal estética, o sentido está desligado

do objeto; ele passeia, erra ou flutua entre diferentes pólos

de emissão e de recepção, e os canais ou o conjunto dos di­

versos canais pelos qua is ele passa são considerados como

obra em sua totalidade. Mas essa definição não o torna um

incorporaI, apenas um "invisível ". Precisamos ir buscar os

incorporais alhures, sem dúvida, na mesma direção que a

estética da comunicação, mas estudando mais detidamen­

te os modos daquilo que se convencion ou chamar o esp aço

virtual ou, de maneira mais apropriada, o ciberespaço.

Page 65: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

TERCEIRA PARTE

OS INCORPORAIS NO CIBERESPAÇO

Page 66: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

Mesmo que os incorporais não sejam evocados pe­

la estética da comunicação, termos como "invisível", "ima­

terial" e "desmaterialízado" são freqüentemente utilizados

por ela. Estamos situados justamente no movimento críti­

co que seguimos desde o início deste trabalho sobre a ar­

te contemporânea. Não que seja essa a corrente mais bem

afirmada ou que se apresenta como o futuro inapelável da

atividade artística: há muitas outras maneiras de praticar

a arte atualmente, e o visível, o corpo, aquilo que evoca os

sentidos não foram renegados. Longe disso. De um lado,

esclarecemos na introdução, há uma inflação de arte cor­

poral com todos os complementos, adições, embelezamen­

tos e complicações que a tecnologia pode trazer à body art.Por outro lado, vários artistas contemporâneos seguem em

seus trabalhos a via traçada pelas lógicas da retirada, da de­

negação, da falta ou falha, do deslocamento, e nesse caso as

novas tecnologias, chamadas como reforço pela estética da

Page 67: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

130 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 131

comunicação, trazem seu auxílio sem nem por isso passar

a ser o principal instrumento, nem o suporte, nem o mate ­rial conceitual.

Desse modo, quando esses mesmos artistas utilizam

sites da internet para apresentar seus trabalhos, nem por

isso estão entrando no espaço cibernético. Falar de obra

virtual ou de galeria virtual quando se expõem na inter­

net obras já realizadas é um abuso de linguagem. Aliás, a

maior parte dos museus chamados virtuais nada tem de

virtual: eles apenas permitem visualizar uma seqüência de

fotografias e de visões panorâmicas; nesse caso, o que se

chama de "virtual" é a possibilidade que tem o visitante de

escolher o que ver clicando um nome em um menu:

Aliás, a atividade artística que tem por instrumento

de concepção e de difusão o mesmo suporte - a rede, ou

net - e que, por conta disso, é produtora de arte como a net

art, não é a única a se situar no espaço eletrônico; inúme­

ras obras utilizam esse espaço para se constituir enquan­

to tais, fora da tela. É esse espaço, cujas propriedades são

ainda bem pouco compreendidas pelo grande público, que

me pareceu que o conceito de incorporaI, tal como o vie­

mos apresentando até aqui, pode esclarecer.

1. O utros projetos de museu virtual, que são realment e virtuais, estãoprontos ou em preparação. O mai s recente, de Claude C1osky, é a i-galerie, no sitedo Mundam ; cf. <hll p://www.mundam.lu/ igalerie>. Sobre essa questão, cf. o a r­tigo de Simon Larnuniere, "Le mu sée dilat é", no catá logo da exposição louable:art. jeu et interactivité (Genebra /Par is, Haute École Appliquée/École Nationale desArts Décorali fs/Ciren - Université Paris vnr/Saint-Gervais-Ceneve, Cen tre pou rI'Ima ge Contemporai ne, 2004).

UM VAZIO TEÓRICO

A quem encara esse espaço se propõe, já desde o iní­

cio, algo como um vazio de referências, de história, de defi­

nições coerentes. O espaço das ações cibernéticas não tem

muito mais que vinte anos, o que não é o bastante para a

acumulação de estratos históricos como temos para a cul­

tura artística, nem o suficiente para que o enunciado de um

nome de artista, de uma obra, faça surgir imediatamente

uma imagem, um nome e, se não uma referência exata, ao

menos uma vaga lembrança no espírito do leitor ou do es­

pectador ocidental. Sem competência particular, ele geral­

mente possui a competência cultural mínima, que o torna

apto a entender todos os tipos de discurso; por exemplo, ele

sabe ao menos o nome de um museu, sabe onde encontrar

uma exposição, o que são uma obra de arte e um artista, ele

distingue uma escultura de um quadro, uma orquestra sin­

fônica de uma dança popular. .. Nada parecido na esfera da

cyberart. Nem nomes de autores, nem obras são conhecidos

pelo público. Os lugares de exposição ou de informações são

ignorados ou resgatados ao acaso na web. A própria idéia de

uma arte de computador parece remota . Aliás, devemos di­

zer net art, computer art ou cyberart? Ou ainda : arte eletrô­

nica ou digital? Com que termo designar essa atividade? O

que é preciso saber para ser um computer artist? É preciso

ser, prioritariamente, especialista em informática ou artista

plástico? É possível ser completamente analfabeto em infor­

mática, sem especialização alguma? Difícil dizer. Aliás, vá-

Page 68: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

132 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 133

rios artistas do digital se declaram autodidatas. E, a partir

do momento em que se conhecem mais ou menos o cami­

nho-padrão de um artista plástico e o nome das escolas pe­

las quais ele deve passar: belas -artes, artes decorativas, artes

e ofícios, bem como as galerias onde, se tem alguma ambi­

ção, ele deve expor, é preciso entrar no campo especializado

da atividade própria aos computer artists para recolher infor­

mações . Segue-se um procedimento aleatório, porque cada

um tem seu percurso e nenhuma formação predeterminadae padrão predomina.

Os realizadores costumam lamentar a inexistência de

uma verdadeira crítica de arte que possa falar de seu tra­

balho, mas quem se arriscaria a isso? Alguns críticos, co­

mentadores ou teóricos tentam pôr ordem nessa dispersão,

mas a desordem se reinstala. Nada parece unir o que se

faz aqui e ali, além da boa vontade dos comentadores que

abordam esse campo. E eles, ainda por cima, são limitados

pelo círculo de pessoas que conhecem nesse campo, círcu­

lo na realidade muito fechado. Por outro lado, as peças es­

tão freqüentemente indisponíveis: ou estão em projeto, ou

então desaparecidas por não serem corretamente conser­

vadas; é o que acontece quando os meios de acesso não

estão mais disponíveis, pois como os instrumentos tecno­

lógicos evoluem sem cessar, eles tornam obsoletos os an­

tigos, os que foram utilizados para criar a peça. Ê como o

diz Valery Granger: "Naquilo que me diz respeito, as peças

que são compradas pelos museus não estão mais on-line .

Na fundação Cartier, eles refizeram o site sem ao menos

perceber que tinham destruído as duas peças que tinhamcomprado, sem sab er. . . Sempre trabalhei em âefautt'».

Do mesmo modo, Claude Closky: "Eu me dei conta de

que, ao mudar de servidor, uma parte de minha obra para

a internet (da exposição Médiascape) se perdeu. Para a ex­

posição La salle de bain, em Lyon, minha peça não funcio ­na : 'Erro 404' aparece">,

Paradoxalmente, para uma mídia cuja caracterís­tica principal é uma memória quase infinita, o título NoMemory da peça de Valery Granger parece se aplicar a um

grande número de obras digitais.Há ali um estilo de arte efêmera bastante involuntário,

que, não obstante, parece vinculado desde seu interior, por

razões verdadeiramente materiais, à própria condição de

obras digitais. Esses desaparecimentos não parecem afetar

em alto grau os artistas, mesmo que eles não estejam todo s

obrigatoriamente nas mesmas posições que os arti stas daretirada ou da destruição, dos quai s falamos em nossa se­

gunda parte, nem como aqueles que trabalham na internetna via do apagamento, como Sawad Brooks, Christa Som­

merer e Laurent Mignonneau-,ou até mesmo Mark Napier.

Contudo, para eles, o apagamento de seu esforço de apaga­

mento não é de modo algum desejado.

2. Entrevistado em janeiro de 2005 por Anolga Rod ianoff, no quadro de umestudo sobre as ar tes digitais do laboratório da Maison des Sciences de I'H omm ede Paris Nord.

3. Ibidem.4. Entre esses últimos, " Phototropy" joga com criaturas cha madas "efême­

ras", que morrem qua ndo são ilumin adas por uma tocha. Mark Napier, imedia­tamente segu ido por outros ar tistas, como Stéphane Baron com seus estru mes,apaga as mensagens mistur and o-as e voltan do a dar-lhes visibilidade de um mo­do que parece aleatório.

Page 69: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

134 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 135

Na falta de obras que poderíamos apreender, na fal­

ta de uma linguagem para criticá-Ias, na falta de conheci­

mentos suficientes para apreciar seu sabor tecnológico, é

preciso então buscar as críticas entre os próprios artistas e

deixá-los falar daquilo que fazem e daquilo que fazem os

outros. Círculo fechado, restrito, que a pedagogia e a teo­

ria tentam abrir, sem grande resultados. Porque cada um

deles, além de seu percurso singular, tem suas práticas de

difusão, suas entradas no mundo dos patrocinadores, tão

difíceis de encontrar que elas ocupam praticamente qua­

tro quintos de seu tempo, e sua linguagem, à qual cada um

deles se apega . No isolamento de uma prática artística que

ainda não encontrou seu lugar real no mundo da arte, ou

seja, no mercado, o computer artist não sabe se é realmente

um artista e se deve ou não reclamar esse estatuto.

Mas não me estenderei muito mais sobre esse iso­

lamento, porque outros, como Edmond Couchot e Mario

Costa já o fizeram, empenhando-se para remediá-lo com

suas obras e com suas atividades na instituição. Graças a

eles, mas também graças à maré montante de obras sobre

a internet e as diversas formas que elas tomam, esse iso­

lamento tende a se reduzir, mas também é verdade que a

dispersão e o aumento também são uma forma capciosa de

isolamento. É preciso se resignar com o fato de que o es-

5. Annick Bureaud com Annick Bureaud & Nathalie Magn an (orgs.), Con­nexions: art. réseaux, médias (Paris, EN5BA, 2002); Edm ond Couc ho! & Norb ertHilla ire com Uart num érioue: comment la technologie vient au monde de l'ari (Paris,Flam marion, 2003).

paço a investir ainda está vazio; e mais, trata-se de um va­

zio cindido...E isso é algo que não devia nos perturbar, dado que

também perseguimos juntos o vazio incorporai que os es­

tóicos nos prometem, Evidentemente, o vazio que cerca o

campo da ciberarte é uma metáfora, mas, enquanto metá ­

fora, ela parece indicar outras espécies de vazios - e dessa

forma um vazio jurídico, do qual voltaremos a falar -, co­

mo se tal espaço, ao incluir o vazio incorporai em sua defi­

nição estrutural interna, desse visibilidade exterior à noção

por todos os tipos de manifestações concretas.Não vou tentar aqui, mais uma vez, preencher esse va­

zio com um histórico e um apelo aos pais fundadores, nem

classificar em rubricas mutáveis a diversidade dos proces­

sos e dos suportes, e só evocarei algumas práticas e algu­

mas obras (na verdade, bem poucas) exclusivamente para

esclarecer as noções às quais elas parecem se referir, assim

como para compreendê-Ias em si mesmas.Em contrapartida, o que posso tentar é revisitar as prin­

cipais noções que a ciberarte pôs em jogodesde que ela existe,

e ver se os conceitosque tomamos de empréstimo aos incor­

porais podem redistribuir seus princípios de uma maneira

que corresponda às práticas. Essas noções são conhecidas,

ao menos na esfera íntima que compreende os cibernautas e

aqueles que se preocupam com ela, mas algumas delas ultra­

passam essas fronteiras e são amplamente utilizadas na vi­

da cotidiana - por exemplo, "virtual" ou "interativo" -, o que

contribui bastante para torná-las obscuras.

Page 70: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

Uma tentativa de estabelecimento: os imateriais

Proponho-me, portanto, retomar os quatro incorpo­

rais: lugar, tempo, vazio e exprimível, como já fiz no caso

da arte contemporânea, para ver em que medida eles en­

tram na composição desse novo espaço.

6. o catálo~? é apresen,t~do ~,a seguinte maneira; Ouvragepubliéà l'occasion~~ l~ manifesiaiion LesImmaiériaux , présentée parleCentredeCréation Industrielle

8 marsau 15 JUllld1985, dans la Grande Galerie du Centre nationalde l'ariet decultu:~,Georges-Pompldou [Obra publicada por ocasião da manifestação "05 Ima­teriais , apresentada pelo Centro de Criação Industrial de 28 de março a 15 deJulho de 1985, na grande Galeria do Centro Nacional de Arte e Cultura Georges­Pompidou].

Eis um belo título para começar a investigação. Já de

início, "imateriais" soa como um credo. Passamos para o

outro lado da matéria, nós nos aventuramos, lançamo-nos

inteiramente em um espaço desconhecido, a explorá-lo.

Contudo, atenção: "imateriais" não é o mesmo que ima­

terial, mas designa sobretudo a materialidade daquilo que

reputamos ser imaterial; materiais que não são exatamente

~ateriais, porém que servem para construir, invisíveis que,

nao obstante, trabalham como operários da cultura do in­

tercâmbio. O termo "imateriais" pode, então, enganar e ­

conhecendo Lyotard - eu diria até que ele é feito para isso.

A "manifestação" organizada por Jean-François Lyo­

tard no Beaubourg, em 1985, no Centro de Criação Indus­

trial, serve de programas. "Manifestação" não é "exposição",

mas "manifesto por" um novo tipo de relação com a arte, a

filosofia, a prática, a técnica e a indústria. Tudo isso ao mes-

137

mo tempo. Ao evitar o termo exposição, os autores se situam

deliberadamente fora da tradição museológica e galerista da

arte, pretendendo dar uma abertura mais ampla ao que é

proposto, mostrado e até mesmo demonstrado. Não se tra­

ta de expor um material- pinturas, esculturas, desenhos, li­

vros, máquinas - que primeiro seria estocado para depois

ser mostrado, mas de revelar um núcleo de práticas a des­

dobrar, a experimentar no lugar. Também não se trata de

um conjunto de obras in situ, nem de um happening - é is­

so que a participação solicitada ao público poderia sugerir.

Não! Trata-se especialmente de uma manifestação conce­

bida como operação de lançamento de um produto, sendo

aqui o produto um dispositivo complexo de pensamentos,

de técnicas, de relações, uma plataforma de ações possíveis,

em suma, de um modo "outro" de pensar e de agir.

Jean-François Lyotard desmantela esse dispositivo e

o reconstitui à medida que vai desenvolvendo as entradas;

não se trata de entradas físicas, o Beaubourg não tem mi­

lhares de entradas praticáveis, mas entradas para as idéias,

nesse caso, as palavras. Entramos nas idéias pelas pala­

vras. Entramos em um espaço "outro" pela linguagem.

Vários elementos entram em jogo nesse manifesto

por uma heterotopia; com efeito, um "outro" espaço socio­

técnico se desenha, marcado por uma virada lingüística e

uma virada comunicacional, com os novos instrumentos

de transmissão da informação.Virada lingüística: a linguagem assume cada vez mais

importância no pensamento contemporâneo. Baseado nessa

1'1~I'.VOENTAROS INCORPORAISANNE CAUQUELIN136

Page 71: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

138 ANNE CAUQUELIN FREQüENTAR OS INCORPORAIS 139

constatação, Lyotard admite que nós não conhecemos nada

sem a intermediação de uma informação. O objeto em sua

suposta materialidade desaparece por trás de sua cobertura

lingüística: "A cobertura do acontecimento confundida com

o acontecimento'", Um mundo envolvido em linguagem,

que oculta a nossos sentidos qual é o objeto dessa lingua­

gem, esse é o mundo que [ean-François Lyotard apreende.

Desse modo, as mensagens trocadas entre os indivíduos

que falam e pensam são as únicas realidades perceptíveis de

um universo tecido em nós lingüísticos. Em outras palavras,

uma sociedade comunicacional se estabelece, e Lyotard pre ­

tende dar, se não sua descrição completa, ao menos seu gos­

to e sua filosofia.

O campo da pesquisa é, desde então, quase infinito:

se tudo é linguagem, todas as linguagens são requisitadas

para dizer o que é, ao passo que aquilo que é é apenas lin­

guagem. O que aqui se desenha é simplesmente o universo

tal qual aparece em certo momento, convocando os desen­

volvimentos futuros; tudo o que é veiculado, sem omissão,

a todo instante e que cresce a partir de si mesmo.

Nessas condições, a manifestação assume feições en ­

ciclopédicas; uma enciclopédia heterotópica, que tenta

criar em torno de numerosos saberes de todas as línguas

um espaço de extensão que não está em conformidade com

a geometria demarcada que geralmente regula os campos;

um espaço que se constrói à medida que é utilizado e cuja

definição é, então, indefinidamente reportada.

7. "Matiere", Catalogue des Immatériaux (Paris, 1985).

,..',

A questão em seguida suscitada é, então, como tor­

nar visível essa filosofia heterotópica, como expô -la. Ta­

refa para o artista: representar o irrepresentável; pegar o

touro pelos chifres e o irrepresentável por si mesmo; ins­

crevê-lo como objeto para uma ou várias representações.

Construímos uma lista dos termos que assinalam em ne ­

gativo as concepções antigas. Fazemos dela a aposta de um

jogo. Um programa para pensamentos vindouros.

Com efeito, encontramos na entrada "Matéria": som­

bra da sombra, vest ígio do vestígio, espaço recíproco (vemos

a interação apontar), luz subtraída, irrepresentável (ei-Io!),

imagens calculadas (antepassados do digital?), odor pinta­

do, aroma simulado, visitas simuladas, profundidade simu­

lada (a grande queixa da simulação.. .), referência invertida.

As entradas "Material", "Matriz" e "Matéria" determi­

nam cada uma das listas de subentradas. São (não vamos

retomá-las todas aqui) palavras de ordem como: matéria,

desmaterializado, superfície inencontrável, indiscernível,

infrafino, segunda pele, homem invisível, variáveis ocultas,

tempo diferido.Já estamos nos menus rolantes de nossas telas atuais,

com entradas cruzadas, programas que se entrecruzam en­

tre si, em suma: links. Em uma experiência chamada Prova

de escritas», o entrecruzamento assume dessa vez o pretex­

to de respostas cruzadas a palavras que solicitam uma defi­

nição ou um comentário. Respostas de autores às respostas

8. Em uma brochura à par te, qu e é a terceira parte do catálogo.

Page 72: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

140 ANNE CAUQUE LIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 141

de outros autores, em um jogo de espelhos assimétricos,

com os escritores se juntando em computadores (micro­

computadores M20 e M24 cedidos pela Olivetti).

Volta mos a encontrar aqui algo com que estamos agora

acostumados na arte contemporânea-e que aparenta estar

unido à problemática dos incorporais: a lista - programa de

coisas a fazer que valem como obra. Os autores sondados

recebem uma regra do jogo enunciada como segue:

Você está recebendo uma lista de cinqüenta palavras.

Dê-lhes uma definição de duas a dez linhas; essas defi­

nições serão salvas em computador e armazenadas em

uma mem ória central à qual você terá acesso por meio

de uma máquina de processamento de texto, ligada em

rede às dos demais autores. Você tem a opção de res­

ponder a eles, completando ou refutando suas defini­ções; o importante é dar seq üência.

Parece-nos que esse protocolo saiu de um depósito de

cenários ou de um celeiro mágico do teatro dos anos 1930,

o que nos faz lembrar dos primeiros telefones dest inados a

escutar árias de ópera. . . tanto mais que, no local (eu estava

lá), as máquinas se recusavam obstinadamente a funcio­

nar, como ainda é o caso hoje em apresentações, é verdade,

mais sofisticadas. Não obstante, tudo já estava lá, em ger­

me, antes que os computadores da Olivetti cedessem lugaraos rcs e aos Mac .. .

9. Cf., na segunda par te: "Tempo incorporaI e acontecimen to".

Mas isso não é tudo. A essas "provas" se acrescentam

as referências conceituais indispensáveis: um envelope com

falas extraídas do campo da literatura (em grande parte filo­

sófica), que o visitante, munido de um rádio portátil, vai ou­

vindo enquanto pas sa de uma sala para outra; desse modo,

ele é imerso no discurso e, ao mesmo tempo, mergulhado

no próprio núcle o dos dispositivos que ilustram os temas.

Imagens e sons, falas, músicas, ações; Nietzsche, Wittgen­

stein, Barthes, Freud, Habermas, Borges, Baudrillard, Bec­

kett, Artaud, Michaux, Blanchot. . .

São esses os quadros de referência da operação, um ca­

tecismo para a jovem geração comunicacional. E, de fato,

voltamos a deparar essas font es citadas e exploradas prati­

camente por todos os artistas do ciberespaço, quando eles

explicam suas ações". Trata -se de uma ópera, com vári as

orquestras, polifônica, cujos visitantes são, eles próprios, si­

multânea ou sucessivamente, trechos e cantores. Eles são

sua "variável oculta".

U M CO NJUNTO FRAGMENTÁVEL

Ao analisar, peça por peça, esse conjunto imponen­

te, encontramos todos os ingredientes que identificamos

quando tentamos decifrar as obras contemporâneas. As

mesmas referências, o mesmo gosto por uma lógica do ne-

10. Éo caso de quase todos os artistas contem porâneos:cf. Revue d'Esthétique(Par is, n. 44, "Les ar tistes contemporains et la phi losophie", erg . Arme Moeglin­Delcroix, 2003).

Page 73: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

142 ANNE CAUQUELIN FREQüENTAR OS INCORPORAIS 143

gativo: sombra da sombra e variável oculta, a mesma atra­

ção pelo irrepresentável, pelo indizível, pelo tempo diferido,

pelo invisível, pelo vestígio do vestígio.

Mas acrescenta-se a isso uma dimensão que liga es­

ses elementos a uma variável, que não está oculta, mas exi­

bida: a ordem da informação, a ordem comunicacional. A

manifestação é reagrupada em torno desse tema central:

as práticas, as teorias, os textos. Nesse sentido, é significa­

tiva a bibliografia que encerra o inventário (primeira par­

te do catálogo); ali são agrupadas várias obras sob o título

"Linguagens". Trata-se de pesquisas sobre a informática,

a cibernética, a telemática, o computador, a síntese de fala.

Mas é entre os aspectos diversos das referências literárias,

artísticas e científicas que surge uma confusão, ali onde se

esperava uma seqüência. O mundo comunicacional que,

achava-se, devia ligar esses elementos entre si age especial­

mente por adições e sucessões, com uma informação ex­

pulsando a outra e com o amontoamento delas tornando-as

em última análise iguais a zero, e assim o visitante submer­

so fica à deriva em um universo de ruídos. Viemos a saber

depois: o excesso de informações mata a informação.

Por que não se faz a mistura? O que é que falta a essa

manifestação para convencer o visitante de que um mun­

do (isto é, um conjunto amarrado) está em vias de nascer?

Parâmetros como o tempo, o lugar e a troca são utiliza­

dos, mas cada um deles é tratado separadamente. Assim

como agora sabemos que as informações se anulam umas

às outras, sabemos também que o espaço da comunicação,

aquele que chamamos de ciberespaço, é indivisível. Os ele­

mentos que o constroem são inseparáveis uns dos outros.

O INSEPARÁVEL

Em contrapartida e por negação, os Imateriais se refe­

rem ao mundo da matéria, dos corpos, ou ainda da exten­

são, cuja principal característica é ser divisível, segundo a

definição cartesiana. Enquanto tais, eles estão submetidos

ao caráter separatista da matéria, à separação. O imaterial,

aquilo que é visado pela ordem comunicacional que se de­

seja mostrar, só pode, portanto, ser uma entidade à parte,

uma força oculta, claro, mas pelo fato de ser inatingível pe­

los meios da matéria , ela foi negada . Por exemplo, a signi­

ficação das palavras da troca pertence às palavras, que são

corpos; desse modo, não é a significação que é "imaterial",

é o modo da troca e o suporte que ele convoca enquanto es­

paço da troca que poderiam ser qualificados de imateriais,

ou, mais exatamente, de incorporais; se nós nos reportamos

ao exprimível estóico, com efeito, as palavras são objetos,

corpos, e só se pode chamar "incorporaI" o espaço de ex­

tensão ainda vazio que permitirá ao sentido advir. Esse es­

paço para a significação não é um espaço da significação. Ele

ainda não foiseparado, razão pela qual não é visível. Buscar

o invisível por trás do visível, passar para além da matéria

dividida, é buscar o inseparado, logo, o inseparável.

Quando tentamos compreender os deslocamentos que

os artistas "desmaterialistas" operavam, pudemos recortar

Page 74: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

144 ANNE CAUQUELlN FREQüENTAR OS INCORPO RAIS 145

sem muita dificuldade os elementos sobre os quais eles ha­

viam trabalhado, como o lugar, o vazio, o tempo e o expri­

mível. Mesmo supondo que esses elementos tivessem tido

vínculos, um entre eles se encontrava sempre em uma po­

sição dominante com relação aos outros e podia servir pa­

ra caracterizar o trabalho de cada um: o lugar/não-lugar para

Smithson, o vazio para Klein, o tempo para Opalka ou Om

Kawara, o exprim ível para Kossuth. Em suma, pudemos

tratar separadamente os quat ro incorporais, mesmo que o

exprim ível parecesse oferecer grande resistência à dissec­

ção. Sem dúvida, é esse o motivo pelo qual o estatuto de

incorporaI nos fugia e fugia das obras que o visavam.

A grande diferença entre o espaço tradicional das obras

e o espaço cibernético é a impossibilidade de tratar o espaço

cibernético segundo a análise, isto é, segundo a possibilida­

de de distingu ir suas partes, como o recomend aria o espírito

geométrico. Essa mesma característica tamb ém nos permite

compreender melhor por que as práticas cyber são tão difí­

ceis de classificar e por que as classificações, quando tentam

dividir as obras, são tão diversas, coincidem tão pouco, não

podendo recorrer nem aos próprios autores, nem às próprias

obras, nem aos próprios suportes. Contudo, o caráter total,o "todo-em-urn?», da mídia eletrônica é reconhecido, mas

parece que esse reconhecimento se detém nesse ponto e que

o método clássico de distinção tem a primazia a partir do

momento em que se trata de comentá-lo.

11. "Todo-em-um", porque a emissão e a recepção são simultâneas, e o au­tor é também o próprio encarregado de exposição.

,"

'./'

É O mesmo método, analítico, discursivo, que foi uti­lizado em Os Imateriais para apresentar os diferentes as­pectos da nova filosofia da comunicação, e é sem dúvidaesse cuidado com a classificação, com distinções, que faz o

empreendimento fracassar.Contudo, esses mesmos Imateriais - que permanecem

injustamente quas e ignorados pelos ensaios sobre a histó­ria da arte ciberné tica, pelas recens õesv, pelas obras queabordam a arte na era do virtua l", ou ainda são expedi­dos em dois temp os em uma anál ise da arte digitalv- sãouma introdução interessantíssima à questão de que aqu inos ocupamos, a questão dos incorporais: eles mais ou me­nos "farejaram" sua natureza" enfatizando as tecnologia scapazes de esclarecê -los, mas sem ter os meios de explorartodas as suas possibilidades. Além disso, os Imateriais pre­figuram muitas práticas que atualmente conhecemos, en ­quanto o ciberespaço é ali esboçado como o lugar utópicoda união - ou da reunião - do diverso.

F O RMAS DO INVISívEL

Somos vítimas de um imaginário comum que quer que

o espaço seja neutro, indiferente, e que nele possamos es-

12. Ann ick Bureaud & Nathalie Magnan (orgs.), op. cit.13. Ch ris t íne Buci-Glucksma n (org.), Ean à l'époque du inrtuel (Paris,

L'Harmattan, 2003).14. Edmond Couchot & Norbert Hillaire, op. cit. Lyotard é aqu i objeto de

três linha s que o condena m por ter menosprezado as tecnologias (p. 123) e de cin­co linh as (p. 152) que, ao contrário, louvam seu empreendimento, que provocou aad missão da arte tecnológica no Beaubourg.

15. "As almas farejam no invisível", diz Heráclito, em H éraclite, ou la s épara­tion (trad, K. Bollack, Paris , Êditions de Minu it, 1972), fragmen to 98.

Page 75: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

tabelecer objetos independentes dele: como se fosse possí­

vel separar os objetos de sua situação e de seu suporte... e

até mesmo de nós. Desse modo, vemos objetos distintos, de

contornos definidos. Aquilo que é distinguido, circunscrito,

é também o que chamamos de visível. O que é visível tem

uma forma, e nós percebemos um objeto na medida em que

ele tem uma forma. O informe e o indistinto nos escapam.

poderíamos dizer, então, que o invisível é aquilo que não

tem forma, que é indistinto, não-separado. A caça ao invi­

sível, à qual tantos artistas parecem se dedicar, seria uma

tentativa de dar uma forma àquilo que não tem forma, ou

de fazer sair algo de indistinto do domínio nebuloso onde

isso jaz para disponibilizá-lo para nosso mundo, para pô-lo

ao alcance da visão. Temos aqui um ponto de vista clássi­

co desde as fórmulas de Klee e os trabalhos de Merleau­

Ponty: mas nem por isso ele é muito claro.Com efeito, é mesmo dessa operação que se trata no

caso dos Imateriais (por exemplo) ou do espaço cibernéti­

co? Parece que o espaço da troca, a relação que se estabe­

leceentre dois pontos - espaço de que se trata na ordem da

comunicação - é de natureza tal que não se pode fazer de­

le um objeto distinto, ou seja, que apresente uma forma de

objeto.Por trás do visível, por trás daquilo que é objeto para

nós, geralmente imaginamos algo de imperceptível de on­

de esses mesmos objetos emergiriam. Algo que não teria

forma e ao qual nos apressaríamos a dar uma imagem pa­

ra tentar representá-lo: fluxos, o ar, vapores, vibrações. Um

fundo de quadro, de certa maneira.

Mas se esse espaço invisível for concebido como parte

integrante do visível, isto é, do objeto visto, com o qual ele

se tornaria exatamente um, nosso imaginário ficaria em má

situação. Contudo, é justamente isso o que se passa com o

espaço eletrônico e a tecnologia de internet. Quando visua­

lizamos um objeto na tela de computador, apreendemos a

tela e o objeto com, ao mesmo tempo, o processo de sua

produção. O invisível, enquanto aquilo que permanece­

ria oculto por trás, como fundo imperceptível e inatingível

das coisas, desapareceu; ele subiu à superfície e, nesse mes­

mo movimento, priva o visível de profundidade e de todo

questionamento mais ou menos místico sobre sua nature­

za espiritual. Passamos da metafísica do invisível primor­

dial à mera física. Ora, também encontramos nos estóicos

um mundo feito de corpos que se mantêm unidos graças a

um fogo interior ou sopro corporal, material: o que une os

corpos entre si é da ordem da física, mesmo que não se pos­

sa vê-lo. O invisível é corporal. Se quisermos exprimi-lo em

outros termos: existem corpos invisíveis, tal como o sopro

cálido, o "fogo artista" técnico, isto é, engenhosamente fa­

bricado,que atravessa todos os seres, reunindo-os por sim­

patia e tensão (sendo os dois fenômenos físicos também). E

justamente parece que esse modelo convém ao espaço do

invisível/visíveldo espaço eletrônico.

Então, ultrapassar a pretensa invisibilidade ou criticar

seu uso parece desejável, o que, aliás, significa buscar os

outros atributos capazes de dar conta de um espaço tal qual

aqueleque nos é oferecido pelas tecnologias cibernéticas.

146 ANNE CAUQUELIN

1FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 147

Page 76: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

148 ANNE CAUQ UELIN FREQüENTAR O S INCORPORAIS 149

PRIMEIRAS RECENSOES16

Conhecemos as características atribuídas ao espaço ele­

trônico. Elas evoluíram em várias obras e continuam a ser

descritas e discutidas em numerosos artigos; eu as enumera­

rei aqui resumidamente. Muitas delas estão longe de ser uní­

vocas e quase todas são de uso muito diverso, segundo os

autores. Eu me contentarei aqui em descrevê-las segundo seu

uso ma is freqüente, ressaltando apenas sua ambigüidade e

me reservando o direito de criticá-las na seqüência.

Tempo: tempo real, emis são-recepção/emissão-imersão.

A velocidade dos processos digitais, nos quais a respos­

ta se segue imediatamente à pergunta, leva a crer em uma

simultaneidade curiosamente batizada de "tempo real". Su­

pondo-se aqui que o real é aquilo que está presente em da­

do momento diante de alguém, "tempo real" significaria a

presença do objeto hicet nunc diante do sujeito que o perce ­

be. Desse modo, tempo "real" remete à ligação instantânea

de uma emissão e de uma recepção. No caso da obra de arte

e segundo os defensores desse tempo "real", trata-se de su­

primir a distância entre a obra e o público, geralmente man­

tido a distância pelo sistema de mu seu s e outras instituições

da arte. O conceito de tempo real es tá ligado à interativida ­

de, da qu al ele é parte essencial: interagir com uma obra di­

gital é nela intervir em "tempo real ".

16. Pode -se enco ntrar um glossá rio de termos com definições cons isten­tes. ilustrações e comen tários no Dictionnaire des arls médiatiques (Montreal. Uni­versité du Québec à Montreal, <htt p://www.comm.uqam.ca>). Outra fonte deinformações úteis , mais precisas e mais contemporân eas, encontra-se no sitedI' Leonardo: <htt p://www.olats.org.basiques>, proposto por Annick Bureaud .

A imersão, que é uma das formas que a interativida­

de assume, é requerida pelos procedimentos que permitem

ao visitante entrar de maneira multissensorial no universo

proposto. Um equipamento especial mai s ou menos com­

pleto é com grande freqüência necessário para esse tipo de

apreensão, como a captação e a ação em retorno exigidas

pela peça em que stão.

Ação: autor-ator, coação-interação, aleatório, interati­

vidade, captura, imersão, movimento.

Todas essas ações fazem parte da série de conceitos em

uso no mundo da arte digital. Interação rima com intera­

tividade e as duas são freqüentemente tomadas uma pela

outra, quando na verdade um espaço (o próprio espaço da

cibernética) as separa. Com efeito, diferentemente da in­

teração, que é simplesmente uma ação cruzada e que va­

le em qualquer que seja a situação, a interatividade entre

uma obra e seu visitante é específica do mundo digital, com

a possibilidade que tem o espectador de se tornar ator, is­

to é, de intervir sobre os elementos da obra. Isso faz do es­

pectador, no dizer de alguns, um "co-autor" não apenas em

pensamento ou por meio do olhar, ma s em ação, dado que

ele contribui com uma ou várias modificações para o objeto

apresentado", A obra permanece, então, suspensa, inaca­

bada, e seu estado último (mas não final) tem algo de im­

previsto - que é freqüentemente chamado "aleatório", uma

palavra que agrada, mas que nes se caso não é justificada,

pois o projeto do autor evocava essas intervenções, se não

17. Essa noção de co-autor, como veremos, é muito criticada pelos art istas.

Page 77: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

150 ANNE CAUQUELIN FREQüENTAR OS INCORPORAIS 151

em seu detalhe, ao menos como modus operandi. "Aleató­

rio", assim como "nomadismo", "inacabamento" e "efême­

ro" são termos de múltiplo uso, uma sólida superfície de

termos comuns que desempenha o papel de doxa e, pratica­

mente, de palavras de ordem.

Lugar: ubiqüidade, links/extensão de links, rizomas,

infinito, nomadismo.

Os links entre sites da web, que representam as ma­

lhas da rede, podem se multiplicar ao infinito. Eles indicam

as conexões possíveis, percursos múltiplos e reversíveis: o

termo "rizoma" é utilizado para caracterizar essas espécies

de linkse suas extensões. Por serem multipólo e por agirem

em tempo real, os links parecem indicar que o internauta

pode alcançar vários nós da rede simultaneamente e com

um único gesto. Nessas condições, o termo "nômade" é lo­

go suscitado e ninguém se priva de utilizá-lo para designar

o gesto do internauta que busca fixar um objeto. Mas não

é o internauta que se nomadiza, como ele gostaria de acre­

ditar, é o objeto que deriva em um espaço fluido, é o lugar

que perde sua qualidade de estabilização e de enraizamen­

to para se tornar errante.

Dessa maneira, o sujeito pode estar, ao mesmo tem­

po, aqui e lá, o que representa uma espécie de ubiqüidade.

Várias obras permitem "ver" essa ubiqüidade; são as obras

classificadas como de "telepresença". Um exemplo: Ornitor­rinco, de Eduardo Kac1B• Outro exemplo: Telematic Dreaming,

18. Criado em 1989, Ornitorrinco é um telerrobô autônomo e unreless, ma­nipulado a distância por meio de um teclado de telefone. O "retorno de imagens"é assegurado por um videofone. O público percebe o ambiente do telerrobô na es-

I

de Paul Sermon, dispositivo constituído de duas camas, em

dois lugares diferentes, em que a imagem dos participantes

em um lugar é projetada na cama do outro lugar. Exemplo

de uma telepresença "desencarnada", ou seja, sem corpo de

substituição.

Exprimível: virtualidades, virtual, possíveis, infinito.

Virtual e virtualidade são, sem dúvida, os termos que,

com interatividade, fazem os maiores estragos. Geralmente

se diz que a virtualidade contém uma realidade na expectati­

va de ser realizada e que a virtualidade é uma força que tende

a se exprimir, sem por isso depender de sua realização.

Contudo, o sentido do termo pode ser circunscrito no

campo do digital, no qual passa a designar um ambien­

te simulado, que tem as características do mundo natu­

ral e no qual o visitante pode intervir. Nesse caso, nada de

realidade virtual nem de virtualidade fora de um progra­

ma interativo atraente; em outros termos, nada de virtual,

nesse sentido circunscrito, sem uma aparelhagem compu­

tacional e física.

Vazio: o vazio só é evocado em uma perspectiva comple­

mentar, associada à filosofia do zen, sem relação com os atri­

butos do espaço tal qual oferecido na prática cibernética.

Já estamos vendo, nesse rápido resumo, os cruzamen­

tos capazes de serem produzidos entre os atributos de um

espaço assim. O tempo e o lugar formam um composto

cala própria dele e não em escala "humana". Eduardo Kac tem ainda outras peçasem seu repertório. Cf. seu siie:<http://ekac.org>.

Page 78: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

152 ANNE CAUQUEU NFREQÜENTAR OS INCORPORAIS

singular, no qual não se sabe qual dos dois protagonistas

vem antes. A ação e o exprimível estão ligados pela virtua­

lidade que os dois supõem e que depende, ela própria, das

características do lugar-tempo cibernético.

Numa tentativa de respeitar os encadeamentos neces­

sá rios, tentarei rev isitar essa construção provisória a par­

tir dos dois primeiros componentes: o lugar e o tempo, ao

qual acrescentarei aquele que, nas recen sões atuais, está

ausente da lista: o vazio, cuja presença no seio do sistema

dos incorporais, no entanto, é essencial. Vazio não é, por­

tanto, via de conhecimento, peça do jogo mental do zen,

mas componente físico do universo ("Capítulo do tempo,

do lugar e do vazio"). Em seguida, será precis o rever, sob

o regime do exprimível, aquilo que diz respeito à ação e à

virtualidade, uma não sendo possível sem a outra ("Capí­

tulo do exprimível e do virtual: a interatividade" ).

Capítulo do tempo, do lugar e do vazio

o tempo

Estamos acostumados a "ver" o tempo sob a forma do

lugar. A perspectiva espacial nos oferece o longínquo co­

mo aquilo que vem ao termo de um cam inho, de uma li­

nha. Entre esse longínquo - lá - e o próximo onde estamos

- aqui - , uma distância medida pelo tempo, Se o longínquo

se torna próximo, a medida do tempo de que precisamos

para alcançá-lo se abrevia prop orcionalmente. Chegado ao

II

\

153

ponto de contato, quando o longe é aqui t '' o empo e abo-

lido. O tempo da distância admite, pois t ,, ...ma perspectiva

espacial e acompanha as suas transformaç- A "oes. n stoteles

cham ava o tempo de "medida do moviment " A 1o. ta pon-

to que, na ausência de movimento, a con s"l'eA • d'- ncia o tempo

desaparece, "Quando não sofremos mudan -ça, nao nos pa-

rece que o tempo tenha passado. É o caso d' . as pe ssoas que,

segundo a fabula, dormiram em Sardes J'Unt h "o aos erOlS."19

Desse modo, o tempo é algo do movimento '. , ' sem ser o pro-

pno movimento. Ele depende estreitamente d .o movImen-

to, pois se ele é medida do movimento o ', mOVImento em

contrapartida, também o computa. '

Essa faculdade de ser um e diferente d, e aparecer e de

desaparecer, aproxima o tempo aristotélic d t, . o o empo dos

est óicos, contudo, com uma pequena difer . Z _ença. enao no-

meia o tempo "número do mundo". Não se t t .ra a mais de

consciência nem de sensação, nem mes"'o d " id'" e sentI o". O

tempo é uma das condições físicas da e);I'st A • dencia o mun-do : ele é incorpo ral e não pode, portanto

, nem nos tocarnem ser tocado por uma condição corpOral I '

qua quer comoo movimento de um corpo. Que nós os' t _

In amos ou naoque durmamos em Sardes junto dos hero'I's _ '

ou nao, nadaconseguiria perturbá-lo em sua incorpore'd dE 'I a e. essa In-di ferença aos atributos pel os quais o ilha .

... gInarnos geral-mente o desembaraça da persp ect iva habl'tu I . Ia , espacía .

19. Aristóteles, Physique (trad . Henr i Carteron p .1926), livro IV, 11, 218b. . arrs, Les Belles Let res,

Page 79: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

154 ANNE CAUQUELIN FREQÜENfAR os INCORPORAIS 155

Projetado no universo como um elemento de sua con­

sistência, o tempo incorporaI não tem mais vínculo com adistância entre dois pontos, medida pelo movimento local.

Não importa mais se o fim está próximo ou longe, não hámais fim visado, apenas uma "realização simultânea" per­

feita colada à marcha do universo circular.

Se tomarmos o tempo que oficia no espaço cibernéti­

co, acharemos que ele se parece com o tempo incorporaI.

Ele também abandonou a perspectiva espacial pela qual te­mos o costume de interpelá-lo. Assim como o tempo cíclico

da esfera superior em Aristóteles, ele não mede nosso tem­

po humano, vivido.

NOVA CONFIGURAÇÃO DO TEMPO

Desse modo, se temos de abandonar o esquema tem­

poral perspectivista, isso se deve em parte, só em parte,

à rapidez de transferência, porque o movimento - logo, adistância entre duas posições de um objeto no espaço - não

pode mais ser "computado" pelo tempo; o contato entre os

dois pontos é quase instantâneo. O efeito de encurtamentoage da mesma maneira que o sono evocado por Aristóte­

les: ele abole o tempo para a consciência. Os dois aconteci­

mentos que são emissão e recepção parecem se passar no

mesmo instante. Com o cibertempo, estaríamos então, deimediato, no tempo perfeito da esfera celeste, cujas partes

coincidem todas entre si, mantendo, segundo a expressão

corrente, os pés na terra, presos como estamos no ciclo me­dido e sucessivo do movimento local.

Se, no vocabulário do digital, chamamos esse tem­

po de "real", é apenas por contágio entre as duas caracte­

rísticas do instante presente e da realidade. A realidade é

definida como aquilo que está ali presentemente; é real o

que está instantaneamente presente, diante de mim : rea­

lidade e instantaneidade são homotéticas. É assim que se

deve entender "tempo real". Desse modo, o encurtamento

operado pela transmissão eletrônica em grande velocida­

de perturba a apreensão da realidade dos objetos e de sua

temporalidade. A essa instantaneidade, que dá o obje­

to longínquo como próximo, aplicamos a qualificação de

"real". Mas o estranho é que esse "real" é concebido como

uma propriedade do virtual, ao qual , não obstante, nós

o opomos...

Com efeito, o encurtamento só pode ser feito pela in­

tervenção de um processo complexo, de uma verdadeira

organização de programas cruzados, subjacentes à apari­

ção do objeto. Sob essa aparição instantânea, estende-se

uma área de cálculos impenetráveis à percepção, a área do

virtual, da qual vemos apenas o efeito de superfície. Desse

modo, o tempo que vivemos, o tempo da aparição do obje­

to no dispositivo cibernético, não é o nosso; ele não perten­

ce a nossa consciência íntima do tempo, ele não tem nada

de profundo. É um tempo exterior, saído de um sistema

organizado, arranjado em vista desse efeito de superfície .

Aparecido e desaparecido no mesmo instante - basta um

gesto: o clique, por exemplo, para devolver o tempo cha­

mado de "real" à sua ausência, à sua intemporalidade.

Page 80: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

156 ANNE CAUQ UELIN FREQüENTAR OS INCORP ORAIS 157

I NCORPOREIDADE DO TEMPO

Nesse caso, falar de incorporal não é desprovido de

interesse; a teoria dos estóicos nos permite extrair alguns

ens inamentos úteis. Se o tempo é para eles um incorporal,

isso significa que ele não tem conteúdo algum, é pura va­

cuidade e só adquire "corpo" quando episodicamente se

carrega de uma percepção ou sensação; passado esse epi­

sódio, ele volta a ser vazio. Tudo se passa, então, para o in­

corporaI como equilíbrio entre o vazio e o cheio. O tempo

não foge em uma linha que diminui para a frent e ou pa­

ra trás do próximo ao distante, rumo ao passad o ou ao fu­

tu ro. Não. Ele está todo no único movimento de aparição e

de desaparição de uma "era" temporal>.

Por que tentar uma aproximação entre essa concepção

do tempo incorporal e o que se pas sa com o tempo do sis­

tema eletrônico?

Porque encontramos o mesmo equilíbrio entre apari­

ção e desaparição, e até mesmo ausência de conteúdo fora

da era temporal que acompanha a percepção de um obje­

to. Com efeito, o sistema estóico esvazia todo conteúdo do

tempo incorporal, dele fazendo um fenômeno físico consti­

tutivo do mundo tal qual ele cam inha, sem nenhum antro­

pomorfismo. Bela lição de indiferença no sentido próprio:

20. Utilizo deliberada ment e o termo "era" para não classificar essa unida­de temporal como momen to ou instan te, termos muito usados na imagem espac ialde uma psicologia do tempo. Além do mais, uma "era" não tem extensão delimi­tada; ela se aplica tanto a grandes ciclos (como o grande ano platôn ico) quanto aperíodos mais cur tos.

diferença só há no momento em que um objeto se apre­

senta. Ele emerge de um fundo de neutralidade, mostra-se

e se vira para o mundo dos corpos de onde um sinal aca­

ba de tirá-lo .

Outro ensinamento: o que há de virtual no disposi­

tivo digital não são os dados, gravados em alguma parte

no sistema central e que, chamados pelo buscador, tornar­

se-ão reais - isto é, apresentar-se-ão instantaneamente na

tela - , é o próprio dispositivo. E esse disp ositivo não é vir­

tual porque abriria possibilidades infinitas, mas porque ele

é íncorporal, sem cont eúdo latente, intemporal. O disposi­

tivo virtual provindo do cálculo não tem absolutamente o

caráter do possível, mas o caráter do necessário.

Os incorp orais estóicos nos ensinam que o virtual é

da ordem da necessidade e que ele vai ao encontro das teo ­

rias sobre os possíveis, que caracterizariam, segundo al­

guns, os dispo sitivos eletrônicos em rede .

Porque o possível é da ordem de uma psicologia da

ação». Ele atua na perspecti va temporal habitual: a espera, a

distância, o longínquo, a aproximação. Ora, se há justamen­

te uma temporalidade do virtual, ela se dá exatamente no

evitamentoda perspectiva, tanto espacial quanto temporal.

A necessidade, o que acontece sem falha, pode ser

chamada: destino, se abandonamos, contudo, o caráter

"destinai" do destino, porque nada nos espera na chega-

21. A esse respe ito, cf. Gilles-Gaston Grang er, Le probable, le possible et levirlue1 (Paris, üdile [acob, 1995) e aquilo que desenvolvi em Le si/e el le paysage(Paris, PUf , 2002), pp. 111-34.

Page 81: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

158 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTARos INCORPORAIS 159

da; a própria chegada faz parte de um imaginário perspec­

tivista, como o ponto de fuga da vida . Trata-se justamente

de uma necessidade completamente nua, sem perspectiva,

tanto sem passado quanto sem futuro. Incondicional.

o lugar

No esquema de uma percepção em tempo "real", uma

perspectiva espacial, de ponto a ponto, é tocada pelo inter­

dito. Ela não tem mais "lugar" de ser. O aquie o lá confun­

didos, a distância abolida, a famosa linha construída por

nós permite rearranjar o mundo segundo um ponto de vis­

ta, e um ponto de fuga é repudiado. Vemos e sentimos em

tempo aproximado; o olhar, em vez de estar em suspensão,

em expectativa, é cumulado. Como se o objeto evocado não

entrasse em contato direto com o olho e não se apoderasse

do conjunto dos órgãos de percepção para monopolizá-los.

Quer dizer que o lugar também desaparece na nova

configuração do espaço cibernético?

Do lugar, sabe-se que ele é raiz, inserção, arraiga­

mento . E mais: limite, circunscrição, território, quando não

terreno. Vertical, ele sugere a profundidade e serve de con­

traponto à horizontalidade do espaço que está todo na su­

perfície e é homogêneo. De fato, nada estaria em maior

oposição com a concepção do dispositivo em rede ofereci­

do pelo espaço cibernético, onde os pontos de inserção são

apenas nós que dão acesso a outros nós por uma multipli ­

cidade de links.

o lugar seria reabsorvido, então, num espaço desse ti­po? Ou sobreviveria na constância efêmera, ocasional, que

liga o objeto aparecido em "tempo real" a seu lugar de apa­

rição? Nada conseguiria aproximar suficientemente a físicado incorporaI, senão esse lugar sempre a ponto de apare­

cer para desaparecer em seguida. Com efeito, o lugar, para

os estóicos, só se dá enquanto circunscreve um corpo. Sem

corpo, ele não é mais que vazio.Ora, o espaço neutro do dispositivo é "sem lugar" en­

quanto não aparece objeto sobre sua superfície . Ao objeto

pertence seu próprio lugar. Portanto, o lugar sempre es­tá em hesitação constante entre existência e aniquilamen­

to. Ele leva uma existência partilhada, dependente da era

temporal durante a qual o objeto se mostra. Ele não impli­ca, pois, nenhuma particularidade, nenhuma propriedade,

além da capacidade de acolher corpos e de a eles se confor­

mar, isto é, de se formar em redor, de envolvê-los. O lugar

se torna um invólucro ocasional que não designa raiz algu­

ma, nem arraigamento particular.Uma obra digital de Claude Closkypõe esse novo dispo­

sitivo do lugar e do tempo em evidência e revela o que acon­

tece com seu equilíbrio recíproco, fornecendo assim umaalegoria do espaço cibernético (ou seja, uma apresentação

figurada de seu traço essencial) completamente pertinente.

Trata-se de Click Herev: duas faixas coloridas aparecem na te­la, piscam alguns segundos e desaparecem em um ritmo tão

rápido que não se tem tempo de ler nem de ver claramente

22. Cf. <http://www.sittes.net>.

Page 82: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

160 ANNE CAUQUELlN FREQüENTAROS INCORPORAIS 161

seu conteúdo. Só esse gesto basta para esclarecer o dispositi­

vo simultaneamente tecnológico e teórico que se opera no ci­

berespaço; a indiferença ao conteúdo, o vaivém do lugar e do

tempo (um comandando o outro), a indiferença a toda pers­

pectiva de tempo ou de espaço, enfim, uma indiferença do

princípio ao fim (ele não tem fim) de tal movimento.

Reconheço que tenho uma queda por esse tipo de obra

que põe a nu as características do suporte que utiliza; assim

como o fez em seu tempo Support/Surface [Suporte/Super­

fície], trata -se de despojar a peça de um ornamento literário

que viria ocultar a simplicidade da ferramenta e faria a atenção

se concentrar em um conteúdo pouco necessário. A meu ver,

a poesia está contida nessa nudez, assim como também está

contida - dado que se trata de linguagem - na rapidez deslo­

cada das palavras entrecortadas e redistribuídas de Napier, na

captação do sopro (Edmond Couchot) ou do batimento do co­

ração (Valery Granger); cada característica do espaço da rede

tem assim sua obra-tipo, que funciona corno sua alegoria.

Eis-nos, pois, com uma reformulação das duas pers­

pectivas espacial e temporal: lugar e tempo, para o disposi­

tivo eletrônico, são incorporais. Eles só assumem corpo em

determinadas circunstâncias e retornam a sua neutralida­

de, a sua indiferença, a partir do momento em que a oca­

sião - um sinal ou um impulso - se extingue.

A PERSPECTIVA DIGITAL

o abandono da perspectiva é algo difícil, pelo muito

que estamos presos nas redes de nossos modos de ver. Qua-

se sempre, nós nos esforçamos para encontrar um substituti­

vo para a idéia de horizonte, para aquilo que dá respiração ao

desejo . Se não há mais ou menos perspectiva espacial nem

temporal, existe algum outro tipo de perspectiva aplicável

e até mesmo recomendável para o mundo do ciberespaço?

Por exemplo, uma perspectiva "digital"? Olivier Auber pro­

põe conceber essa perspectiva como "um código partilhado

por certo número de participantes atuando em um projeto.

Nada mais de servidor central ao qual cada um se conectá,

mas um código chamado 'senha de grupo', sob cuja prote­

ção eles podem todos emitir e receber simultaneamente in­

formações relativas a uma aplicação particular">, Se o ponto

de vista central, o ponto de fuga, estava ligado ao ponto de

vista particular por urna trajetória, fixando às duas pontas da

cadeia o presente (aqui) e o futuro (lá), essa figura antropo­

mórfica não convém ao computador. O ponto de fuga deve

poder corresponder a uma multiplicidade de pontos de vista.

Ele não pode ser unificado, nem fixo. Pelo fato de ter de in­

tervir em tempo real, a perspectiva temporal deve ser parti­

lhada em tantas perspectivas particulares quantos sejam os

pontos de vista diferentes (isto é, de participantes).

Olivier Auber dá como exemplo o protocolo Multicast,

que permite esse partilhamento, ou ainda o modo de fun­

cionamento do vírus que infecta um grande número de

computadores ao mesmo tempo. Esse exemplo é convenien-

23. Olivier Auber, "Du générateur poí étiquc à la perspective num érique",Revue d'Esth éiique (Paris, n. 43, 2003), pp. 127-36.

Page 83: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

162 ANNE CAUQUELIN FREQüENTAR OS INCORPORAIS 163

te para seu projeto de gerador poiético"; mas não há dúvida

de que seria necessário conceber uma pesquisa mais apro­

fundada para concretizar a idéia de uma perspectiva digital

que não esteja ligada apenas a determinado projeto na in­

ternet, mas que seja válido para o espaço cibernético como

um todo. Em suma, a questão então seria: existe uma pers­

pectiva própria desse espaço? Mas pode existir uma perspec­

tiva, ou o que poderia assumir o lugar de uma perspectiva,

em um espaço infinito sempre presente a si mesmo, onde

lugar algum é definido como estável e admite o vazio como

elemento constitutivo?

o vazío

Incorporal, o vazio está ligado ao lugar e ao tempo: ele

é sua condição. Para os estóicos, como vimos, o vazio é in­

corporal por definição, não contém corpo algum. Mesmo

assim, ele não é nada. Sua maneira de existir é claramen­

te desconcertante, porque é descontínua; o vazio existe nos

intervalos temporais entre a partida dos corpos que o ocu­

pavam e a nova onda de corpos que chegam. Não há vazio

sem essa escansão de tempos. Assim como o lugar, do qual

é a contrapartida, o vazio está sob a dependência do tempo.

24. Le générateur potétique foi concebido por Auber como um jogo coletivoinspirado no "jogo da vida", de Conway (1976), que tentava modelizar a evoluçãode uma população de micróbios. Trata-se de um desenho e de um desígnio coleti­vo, que emerge a partir da contribuição dos participantes, que se representam a simesmos por uma tecla colorida. Eles podem intervir a qualquer momento sobre aforma e a disposição do conjunto mudando a própria posição.

Ele perfaz o ciclo das repetições e, assim como o lugar, não

abre perspectivas>,

Contudo, é porque ele existe, mesmo em se tratando

de uma existência alternada, que é possível o modo de exis­

tência dos objetos no espaço cibernético. Os objetos que

transitam no ciberespaço são, com efeito, fugazes, evoluti­

vos, instáveis. Trata-se de impulsos, mensagens em forma­

ção ou em vias de se decompor para se recompor. O vazio

não lhes impõe nenhuma limitação, porque é sem forma,

desprovido de corpo e incapaz de admitir algum grau no

preenchimento. Sejam poucos ou muitos os objetos, isso

não faz diferença. Não podemos dizer, por exemplo, que

o espaço cibernético está meio vazio ou meio cheio, como

dizemos de uma garrafa que está meio vazia e, ao mesmo

tempo, meio cheia. Isso porque, no vazio infinito, sem al­

to nem baixo, nem horizontal- como é o caso do espaço da

geometria -, nem vertical- como é o caso do espaço "vivi­

do" do lugar, com suas raízes lançadas em profundidade -,

é impossível introduzir medidas. Mesmo assim, quando

falamos das infinitas possibilidades de conexões que se en­

trelaçam no seio desse espaço, é ao vazio infinito que ele

faz referência. A incorporeidade do vazio torna possível a

infinidade de ligações que ele acolhe.

O vazio surge, então, não como uma perspectiva nega­

tiva (o nada ou o infinito como espaço onde se perder), mas

25. Não podemos falar de perspectiva nos estóicos, porque ela dá - a nós, ago­ra - a imagem de uma direção rumo ao longínquo e ao desconhecido, dado que se tra­ta de um tempo cíclicoque retoma sobre si mesmo, voltando sobre os próprios passos,renovando paradoxalmente o mesmo mundo, uma vez completado o "grande ano".

Page 84: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

164 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR os INCORPORAIS 165

como condição de possibilidade para o apagamento de to­da perspectiva. O vazio assume um papel positivo, porque

permite renunciar à idéia de lugar tal qual a utilizamos ha­

bitualmente: lugares de lembranças enraizadas, da profun­

didade do tempo e das culturas, lugares indeslocáveis, aos

quais estamos presos, territórios reivindicados como singu­

lares e portadores de identidade. Se renunciamos a tal lu­

gar, a tal ancoragem, essa renúncia leva então a redefinir o

que é o tempo e a introduzir um tipo de infinito que não de­ve nada à extensão.

No que diz respeito ao vazio, percebemos que os possí­veis não lhe convêm: o mundo que ele dispõe é um mundo

do infinito inteiramente presente a si mesmo, sem vetor.

Com efeito, a perspectiva temporal que freqüentemen­

te imaginamos faz o infinito surgir como uma interminável

adição de momentos disjuntos. Ora, o espaço cibernético,

que compreende o vazio como seu lugar natural, oferece­nos outra versão do infinito, a de uma presença a si mesma.

Os momentos do vazio não são adicionados nem adicioná­

veis em sucessão, mas estão simplesmente todos presentesao mesmo tempo.

É o modo de existência do vazio que permite essa apre­sentaçãoou presentificação. Pornão privilegiardireçãoalguma,

por não impor nenhum vetor, por sua própria indiferença, o

vazio deixa àquele que age no espaço cibernético o cuidado

de introduzir um objeto ou - como é o caso mais freqüente ­

um programa. Aqui não se tem nem a escolha entre possí­veis que já estariam no espaço vazio - o que é contraditório

em si -, nem o acaso de uma disponibilização de um entre

os possíveis; apesar de a idéia de um acaso mestre do jogo

ser muito tentadora, ela em nada corresponde à construção

desse espaço: o vazio apresenta todas as direções ao mesmo

tempo, isto é, nenhuma em particular, assim como não pri­

vilegia nenhuma delas, mesmo que elas sejam tomadas ao

acaso! Não há nenhuma definição outra a acolher.Em outras

palavras, trata-se de um exprimível, de um lekton.Desse modo, o vazio exemplifica o elo que une todos

os incorporais entre si: sua indiferença, sua não-determina­

ção, que os faz existir unicamente no instante em que eles

tomam corpo, na ação de acolher um corpo. Por isso os pos­

síveis não preexistem às escolhas que se possam fazer: eles

se desenham apenas como o pano de fundo de uma ação

em vias de se fazer, no momento exato em que a ação se

realiza, como se, ao fazer um gesto, imaginássemos ou pro­

jetássemos, como num filme, os outros gestos que podería­

mos ter feito. Sua sombra>. E a sombra, seja o que for que se

faça dela, não é uma virtualidade, ela é projeção mental do

não-advindo que circunda o ato com um halo. Ao encontrar

um caminho, no momento de bifurcação, podemos pensar

em todos os caminhos pelos quais não enveredamos. Es­

sas projeções não são em número infinito; elas desapare­

cem tão logo o ato seja executado, porque são exprimíveis

incorporais: sem consistência, sonhos evanescentes.

Certamente, é difícil contornar o termo e a noção de

"possíveis". Nossa vida cotidiana está revestida pelo verbo

26. Ken Goldberg serviu sombras aos internautas com seu Shadow Serverem 1997.

Page 85: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

166 ANNECAUQUELIN FREQüENTAR OS INCORPORAIS 167

"poder" e suas declinações; com efeito, uma moral da esco­

lha governa nossas atitudes na vida, e nós medimos nossas

capacidades pelo metro do possível: temos de tentar tudo o

que seja possível, o possível é o que devemos e podemos po­

der. Nada de semelhante há na concepção antiga do mundo

e dos incorporais. O vazio subsiste vazio, ele persiste no va­

zio, e o infinito que o acompanha não é uma propriedade que

lhe seria anexada enquanto atributo, mas um verbo: o vazio

não finda de se infinitizar, furtando-se assim a toda deter­

minação, mesmo que ela estivesse em germe nos possíveis.

Capítulo do exprimível e do virtual: a interatividade

Se estou juntando o exprimível e o virtual neste capítu­

lo, é para entender como a interatividade - noção eminente­

mente computacional - pode se unir, simultaneamente, ao

exprimível incorp oral e às artes do virtual. É sempre uma

dificuldad e passar do regime das noções ao das práticas, so­

bretudo quando os dois se prevalecem de uma noção comum

e a interpretam, cada qual a sua maneira. A desconfiança se

impõe, tanto ma is que o vocabulário comum usa e abusa do

termo "virtual" assim como do termo "interatividade",

O primeiro serve, nas conversas comuns, para desig­

nar tudo o que é fictício, imaginário, ou da ordem da ausên­

cia: desse modo, alguém que esteja aus ente a uma reunião

para a qual foi convidado é chamado de "virtualmente"

presente. Em uma língua um pouc o mais precisa, "virtual"

design a o que ainda não se realizou, ma s que bem pode-

ria ter se realizado; um livro está virtualmente concluído,

um projeto também está, de momento, em estado ou na

etapa virtual. Por fim, na linguagem dos internautas e da ­

queles que teorizam as práticas computaciona is, o termo

"virtual" quase sempre sofre o contragolpe da utili zação

comum, mesmo que designe mai s precis amente um modo

de operação próprio da informática. Desse modo, "virtual"

é, no mais das vezes , tomado como sinônimo de "possível",

formando então uma dupla com "realização" ou "atualiza­

ção", que lhe são cont rár ios e carregam sempre a noção de

ausência, de fictício, que parece vinculada a ele.

Quanto à "ínteratividade", apesar de ser ela uma no­

ção recente - ela tem a idade dos computadores e não car­

rega o peso de sucessivos usos em outros campos -, ela

sofre, contudo, o contragolpe do termo "interação", que lhe

é bem próximo e remete à conversação, ou à reciprocid ade

de uma causa à qual Schopenhauer se referia dizendo que

ela não passava de uma dupla causalidade sem proprieda­

de particular, uma falsa boa id éia",

27. Esse tipo de dificuldade não é t ípico do conf ronto atual de dois universos.um, costum eiro, cotidiano, o universo do "vivido", e o outro, especializado, técni­co, que requer outras comp etências . Embaraço semelhant e também acompanhavao emprego do exprimível (lekton) entre os es t óicos, Trata -se, sem dúvida , da mes­ma ques tão - a dis tinção do real e do fictício - que causa problema no nível da lin­guagem, refletindo a dificuldade de distinguir os dois regimes, e a realidade de suaproximidade . O lekton era, para os estóicos, o sentido incorporai de palavras queeram corporais - a mais comum das soluções - ou aind a uma espécie de vazio quepermitia ao sentido instalar -se (momen taneamente), uma espécie de medi llm - oque os alqu imistas chamariam, na seqüência, de "veículo"? O segundo sentido dotermo parece se conjuga r melhor com a teoria dos incorporais, e sobretudo com umentre eles, o vazio; contudo, os textos não esclarecem se havia uma preferência de ­terminada por um ou outro .

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168 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORP ORAIS 169

A conversação é a relação reivindicada pela estética da

comunicação como seu protótipo. Presença real dos inter­

locutores, rapidez da troca e valor do vínculo estabelecido,

posteriormente negociado e sempre aberto, caracterizam a

conversação ("entre pessoas de boa fé", acrescentaria Aris­

tóteles). Mas há interatividade nisso? Não, porque o que fal­

ta é o espaço de transação artificial do computador, que não

pertence aos indivíduos em presença e subverte a noção de

sujeito, tão valorizada pelos que conversam. Do mesmo mo­

do, "interação" não é suficiente o bastante para caracteri­

zar a operação que a interatividade supõe. A interação é algo

próprio de todo indivíduo vivo que reage a seu meio e age

em retorno sobre ele. Aqui também faz falta a especificidade

computacional que tornaria essa interação interativa: uma

mediação digital tecnicamente programada. Desse modo, se

a relação é justamente um traço comum à conversação, à in­

teração e à interatividade, é um traço genérico demais para

poder servir de guia à compreensão dos links singulares que

se dão no espaço cibernético. A conversação e a interação

são, efetivamente, desses tipos de imagem que, para facili­

tar a abordagem de uma noção, dão dela um sucedâneo de

tal modo simplificado que acabam por representar obstácu­

lo a sua apreensão. Precisamos, então, contornar, ao mesmo

tempo, a imagem da conversação e a da interação para en­

tender o que pode ser a interatividade. Assim como, a todo

momento, precisamos contornar a imagem da perspectiva.

Comecemos, então, por situar a interatividade ali on­

de ela adquire sentido, no espaço cibernético. O espaço ci-

bernético é um espaço de ligações, atravessado de fluxos

que transportam mensagens, palavras, imagens e sons

com a rapidez cujo nome em linguagem computacional é

"tempo real ". Ligações instantâneas, nunca estáveis, evo­

luindo sem parar, projetadas em uma espécie de vazio, do

qual elas seriam, de algum modo, a textura.

O que é preciso compreender, então, é que "virtual"

não é um adjetivo que viria se acrescentar a um objeto ­

como a dizer, por exemplo, "um corpo virtual" -, mas um

substantivo: o virtual, fazendo referência a um sistema.

Desse modo, "realidade virtual", que parece ser uma con­

tradição em termos se não se tomar a precaução de de­

finir virtual como um sistema, torna-se perfeitamente

compreensível quando designamos com isso um objeto

produzido no e pelo sistema virtual. A realidade virtual é o

tipo de realidade produzida pelo sistema digital.

Se voltarmos ao vazio incorporal, fica certo, então, que

as mensagens que transitam no espaço que compreende­

mos como "vazio" não são propriamente virtuais: é o mo­

do de transmissão próprio a esse espaço e que o constitui

enquanto tal que é virtual.

É verdade que a tendência ao realismo é particular­

mente renitente, é verdade que temos dificuldade em pensar

a não ser por objetos e imagens de objetos e que, por isso,

dificilmente pensamos que a realidade não é feita de obje­

tos, mas das relações que os conectam e os produzem. Fazer

o esforço de despojar os objetos percebidos de sua realidade

para transpô-la ao espaço que os liga, essa é a tarefa reser-

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170 ANNE CAUQUELIN FREQüENTAR OS INCORPORAIS 171

vada àquele que freqüenta os incorporais, aos artistas da ci­

berarte e, em certa medida, aos internautas. Esforço mais

sonhado que efetivamente realizado. . . Continuamos a dizer

comumente que os corpos, o do internauta ou o de seu ava­

tar, são corpos virtuais, que os museus apresentados na web

são museus virtuais etc., ignorando com constância e deter­

minação que se trata de corpos apreendidos pelo virtual>.

Mas se chegarmos a conceber que o virtua l é um siste­

ma ou caracter iza um sistema como produtor de conexões,

pod emos imaginar mais facilmente e, sobretudo, mais cor­

retamente, a interatividade. Uma definição aproximada se­

ria a seguinte: é chamado interativo o trab alho efetuado

pa ra captar, formalizar essas relações, modificá-las, de sfru­

tá-las e lhes dar uma presença sensível. Em suma, nesse ca­

so, a interatividad e revela as relações virtuais que ocupam o

es paço cibernético e que não são perceptíveis se m um tra ­

balho de formalizaç ão>.

A interatividade, ou trabalho entre e sobrerelações que

são elas mesmas "entrevários", é portanto um trabalho de

fundo. Ela se dist ingue daquilo que, parad oxalmente, se

poderia chamar de um trabalho de superfície: a imersão.

"Imersão" designa a entrada de um visitante no es­

paço virtual que constitui uma obra interativa e a ação que

ele pode reali zar nesse espaço. Em geral, a ime rsão tem ne -

28. A "apreensão" é a noção - e a ação - esse ncial de toda operação em­preendida no espaço ciberné tico. [ean-Lou is Boissier insiste nisso em todos osseus textos .

29. É assim que [ean-Lou is Boissier a define em La relatlon comme forme:l'interactioiteen art (Genebra, Ma rnco, 2004).

cess idade de um quadro bastante amplo, de um ambiente

que permita ao visitante se de slocar em diversas direções

e de slocar objetos. Ninguém imerge em um menu rolan­

te, nem em uma obra qualquer de ciberartista. Há neces­

sidade da imagem de uma realidade natural, ou que tenha

su a aparência, como aquela que encontramo s nos oideo­

games: paisagem, animais e, inclusive, inacreditáveis dra­

gões, monstros de tod os os tipos. Antes de tudo, tem -se ne ­

cessidade do ambiente 3-D. Se a impressão de mergulhar e

de ser engolido acompanha as experiências dos visitantes,

ela deriva sobretudo da estranheza da visita, de sua raridade,

talvez também do efeito "boião", típico de recipientes boju­

dos, que esses ambientes manifestam, por serem freqüente ­

mente verdes e marrons, muitas vezes glaucos. As metáforas

aquát icas invo cadas como exemplo das operações na rede

são, aliás, numerosas, elas domesticam o desconhecido, cor­

relato da cor famili ar das féria s, exóticas apen as o suficien­

te para marcar a diferença. Desse modo, o termo "imersão"

evoca o batismo, a in iciação no novo mundo subaquá tico e

su rreal que é o cibermundo da interatividade .

Considerar a imersão com o o elemento mais sign ifica­

tivo e praticamente determinante do que é a interatividade

é um en 030, ainda mais porque, além desses aspectos pro-

30. Contudo, trata-se de um erro com força de lei. Desse modo. Louise Pas­sant (org.), Dictionnaire des arts médiatiques (Montreal, Presses Universitaires duQu ébec, 1997), remet e o termo "imersão" a "realidade virtual" e "realidade vir­tual" reme te a.. . "imersão". Tem-se, entã o, a seguinte definiçã o: "a KV [real idadevirtual] é uma experiência de imersão na qual os usu ár ios usam capacetes de rea ­lidad e virtua l munidos de sensores de posição, vêem imagens etc.".

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vocadores, a imersão traz cons igo dois efeitos perturbado­

res: primeiro, ela introduz no campo da prática a tem ível

noção de co-autor; dep ois, ela restab elece a noção de pers­

pectiva espaciotemporaI, mesmo tend o sido visto que o ci­

berespaço é desprovido de tal noção. Abordaremos esses

dois exemplos na seqüência.

C O-AUTOR OU FIGURANTE

A noção de co-autor transformou -se em um lugar-co­

mum na arte contemporânea. No teat ro da arte contempo­

rânea, espectador e expositor (gale rista, agente, curador)

reclamam para si esse estatuto. Produzir, expor obras faz

parte do trabalho de criação, portanto, merece o mesmo

estatuto que o do artista expo sto e produzido. É claro que

um esp aço de relações necessária s envolve a criação, ou,

como o descreve muito bem [ érôme Clicens tein-', um dis­

positivo fora do qual nenhuma obra pode nem ao men os

ser concebida. Paralelamente a essa reivindicação de esta­

tuto por parte dos produtores, os artistas contemporâne ­

os, já vimos isso, têm uma atitude de recuo, um gosto pelo

an on imato, uma vontade de desaparecer, praticando com

isso um a crítica interna do sistema da ar te e de seus atri­

butos tais como peça única, autor ún ico e or iginal. Temos,

então, todas as condições de um lado e de outro para o em­

basamento da idéia de co-autor.

31. [ érôrne Glicenstein, "D ispos itif(s)", em Michela Marzano (org.), Dictio­nnaire du corps (Par is, r UF, 2006).

Mas esse será o caso da obra interativa, na qual o in­

ternauta imerge? Parece que não. Ao sus tentar a idéia de

co-autor no caso de uma peça interativa, cometer-se-ia o

mesmo erro de quando se comp ara a interatividade à con­

versação e a interação à interatividade . Claro que, nos dois

casos, conversação ou interação, pode- se defend er a idéia

de que há co-autor, porque os protagonistas reagem mu ­

tuamen te e se encarregam da relação, um por vez. Mas o

fato de o internauta entrar no mundo qu e sua interven­

ção pode - ou não - transformar não faz dele um co-autor,

porque a obra é construída de modo a compreender es­

sa entrada (e o efeito que ela pod e ter) como um elemen­

to de seu dispositivo. Nesse sentido, o internauta se torna

uma parte da criação continuada que constitui a obra, que

de algum modo aumenta com as contribuições que lhe são

feitas. Olivier Auber, para retomar esse exemplo, é, portan­

to, o verdadeiro autor do Génerateur potétique, mesmo que

os pa rticipantes do jogo contribuam para rea lizar o estado

momentân eo no qual a obra se encontra no ins tante x.

Contudo, como o esclarece Maurice Ben ayoun, "dizer

que os participantes são co-autores não é compreender o

que é a obra. Trata-se de 'visitantes "', acrescenta ele. "A

obra é o conjunto do dispositivo, incluindo a participação

das pessoas, as regras que determinam o processo de evo­

lução [.. .] O lance do espectador co-autor é um a mist ifica­

ção pseudodemagógica lament ável.">

32. Ent revista realizada em 25 de junho de 2004 por Anolga Rodia noff.

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Tendo eu mesma consentido, e várias vezes>, nessa

mistificação "libertária", eu me dou perfeitamente conta,

ao trabalhar com o espaço cibernético, de que ela é válida

exclusivamente (e talvez ocorra aqui também uma espécie

de mistificação) para as obras não-digitais. Desse modo,

não há co-autor no espaço de liberdade que a obra interati­

va representa para a maioria. Visitantes, participantes, jo­

gadores talvez. Mas é unicamente o autor que tece os fios

onde os visitantes se enredam.

A ILUSÃO DA PARTILHA

Quanto à perspectiva aberta pela imersão no mundo

criado por uma obra digital, ela é freqüentemente conside­

rada como visão compreensiva de um horizonte, no seio da

qual o visitante se inclui, se incorpora e, poderíamos dizer,

interage. Imaginamos, então, que ao se deslocar, ao agir de

uma ou de outra maneira, ele é causa dos acontecimentos

que se produzem. Mais uma vez, mostra-se a ideologia da

igualdade e da partilha da authorshíp. Talvez estejam fazendo

falta aqui os esclarecimentos teológicos que os filósofos

do século XVII (Malebranche, por exemplo) introduziam em

suas reflexões sobre a causa primeira e as causas adjacentes,

ou ocasionais... Na realidade, o programa do autor faz o pa­

pel de providência, ele tece o desígnio geral e as variações de

que o visitante se serve ou não, a depender do caso.

33. Cf.• entre outros, os meus Petit traité d'art contemporain (2. ed., Paris,Éditions du Seuil, 1998) e Eart contemporain (6. ed., Paris, rUF, 2001).

A imersão que se pretende compartilhadora ilude, e

essa ilusão oculta a verdadeira natureza da relação do usuá­

rio com a obra.

É desse modo que o horizonte proposto, o ambiente

no qual se situa a ação empreendida pelo internauta, é se­

melhante à perspectiva espacial habitual que ele simula. A

perspectiva espacial e o horizonte da expectativa temporal

continuam sendo a imagem principal pela qual convocamos

uma resposta, sempre pensada e sentida como remota, mes­

mo que ela seja instantaneamente entregue. Ao emprestar

som e imagem à perspectiva espacial e temporal habitual

valendo-se das imagens 3-D dos vídeogames, a perspectiva

proposta nas peças interativas trava a compreensão de uma

perspectiva digital, inteiramente situada na ação formal das

relações virtuais. Ao se encontrar em um espaço que lhe

parece natural, o visitante também assume de modo com­

pletamente natural seu modo de proceder habitual - por

causalidades sucessivas. Ele pensa que um gesto de sua par­

te vai realmente causar o movimento de um objeto no espaço

cibernético, como é o caso no espaço comum. Ao fazer isso,

ele restitui uma perspectiva temporal e causal ali onde jus­

tamente isso não existe e deixa de lado a verdadeira nature­

za da obra interativa. Mas a ilusão está ali e parece que tudo

é feito para desviar a atenção, provocar erros, disfarçar a na­

tureza hierárquica, autoritária, do espaço cibernético. A re­

presentação da distância e da sucessão está ali para dar ao

visitante a impressão de uma continuidade sem falha com

seu mundo familiar: ele é sempre, acredita, o dono do jogo.

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Uma das falhas de nosso sistema cultur al, legado

muito antigo, é a de reduzir todas as coisas à visão e de

não poder pensar a abstração sem recur so a imagens. O

próprio Descartes já notava essa deficiência comum", uti­

lizando ele mesmo aquilo que condenava - o mesmo, aliás,

que Platão fazia usando mitos. Pensar diretamente a rela­

ção enquanto tal, sem lhe acrescentar a imagem dos obje­

tos que ela conecta, não é algo de espontâneo. Para tanto,

é preciso aplicação, isto é, aprendizagem.

Éverdade que adotar o ponto de vista impessoal do com­

putador e do digital não é exatamente um empreendimento

fácil: como representar mentalmente uma "perspectiva tem­

poral" sem recorrer a uma visada? O que é uma perspe cti­

va da qual o lugar está ausente?» É extremamente difícilabrir

mão da metáfora do lugar, da distância e, paralelamente, da

intenção ou do desejo:em uma palavra, de uma subjetividade

trabalhada e formalizada por séculos de cultura européia.

Para chegar a dispen sar esses costumes, precisam os fa­

zer o desvio por sua crítica e nos lembrar bem de que nos ­

sos sensedata estão longe de ser "dados". Precisamos pen sar,

então, na percepção chamada "natural" como em um dispo­

sitivo extremamente construído e engenhoso, que formaliz a

o mundo e seus objetos.Três dimensões no espaço isomorfo,

34. Desca rtes, Regulae ad directionem ingeníi (trad . Georges Ler oy, Pari s,Gallimard, 1952), regra XII.

35. São qu estões das quais se ocupam, por exemplo, jean -Lou is Boissier ea livier Auber em textos que estão em int erlocu ção: jean-Lo uis Boiss ier, La rela­tion commeforme, op. cit., pp . 26355; e O livier Aub er, "Ou gén érateur poi ét ique à laperspective nu rn érique", op. cit.

horizonte reto e não curvo, distinção de volumes, distinção

de planos e de pan os de fund o, enquadramento, retificação

das paralela s verticais, tudo isso se deve ao trabalho dos ar­

quitetos e dos matemáticos, mas tamb ém do pensamento

"reto", que analisa e compõe utilmente. Vemos, sentimos e

experimentamos através dessas mediações e graças a elas.

A percepção natural é, portanto, bem formada - se é

que não se deveria dize r formatada, na linguagem ciber -,

mesmo se acreditamos que ela é natura!. E se nós nos lem­

brarmos disso, poderemos considerar os dispositivos ele­

trôn icos como formadores de percepção de outro tipo>,

eles nos dão a combinação de um mundo que não é mais o

do movimento local que percorremos etapa por etapa, em

uma perspectiva dada. Eles nos dão um tempo encur tado

e um lugar revisto pela simultaneidade. A diferença entre

os dispositivos que formaram nossas percepções habituais

e nos pare cem naturais e os dispositivos ciberné ticos é que

un s são tomados na consciência interior dos seres, como

se fossem inatos e imediatos nos cérebros, e os outros es­

tão no exterior e mostram com evidência, de maneira mar­

cante, o que eles são e como funcionam. Eles nos parecem,

portanto, estrangeiros, para não dizer estranhos.

Contudo, o obstáculo que opõe o realismo à justa per­

cepção do espaço virtual e do que ali se trama poderia ser le-

36. Assim como, no Renascime nto, a invenção da perspect iva legítima lite ral­mente "inventou" a paisagem e formou nossa maneira de percebera dis tância, a suces­são de planos, o enquadramento, isto é, um a maneira de ver que aind a hoje é a nossa.Cf. Annc Cauquclin, Eimxntion du paysage (4. cd ., Pa ris, I'UP, 2002, col. Qu ad rige)IA inixnção da paisagem (trad . Marcos Marcion ilo, São Pau lo, Martins. 2007)).

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o espaço do virtual segundo o exprimível

vantado se se tentasse o desvio pela noção de exprimível tal

qual a encontramos nos estóicos e tal como tentei apresentá-la

aqui. Para tanto, é preciso abandonar todo um modo de pen­

samento que conecta a realidade à presença, as men sagens às

palavras, o espaço e o tempo à visão e à perspectiva visual.

Vimos que o exprimível não é nem as palavras que pro­

nunciamos, nem mesmo a significação que a elas se atribu i.

Porque as palavras, "carregadas de sentido", não podem

entrar na classe dos incorporais, e as significações, mesmo

invisíveis e freqüentemente mutantes, afetam os corpos e

são afetadas por eles . Ora, o incorporai não padece nem age

sobre os corpos. O exprimíve l, o lekton, é, portanto, uma es­

pécie de vazio e só sai desse vazio quando é expresso; em

outros termos, ele não preexiste a sua expres são.

A preexistência: eis a noção que serve de bas e às defi­

nições mais comuns do virtual. Ela é também o obstáculo

maior a sua compreensão. Com essa idéia de preexistência,

imaginamos o virtual como uma espécie de reservatório ple­

no de possíveis ainda não atu alizad os que aguardaria, ador­

mecido, que um acontecime nto o despertasse, tirando-o de

seu torpor e elegesse um entre os possíveis que ele contém .

Trata- se de uma idéia ancorada na metafísica que ali­

menta essa imagem do virtua l: uma potência ou força (a

virtus lat ina) esta ria oculta nas profundezas das coisas:

plantas, animais, pedras, seres humanos. Daí decorre que o

179

37. Cf. Philippe Qu éau, La ptanête des espriis (Paris, Odile [aco b, 2(J(J1); eAlai n Milon, La réaliténirtuelle:avec011 sans corps? (Paris, Aut rernent, 2005).

FREQüENTAR os INCO RPO RAIS

homem, vir, tem mais virtus do que qualquer outro ser vivo

- plantas ou animais - , visto que ele partilha a raiz etimo­

lógica de seu nome com a virtude, isto é, a força interior. O

recur so à etimologia, mesmo que poét ico, afirma, contudo,

a opinião em sua crença, mais do que explicita os seus fun­

damentos. Contudo, trata-se do argumento comumente in­

vocado e que estabelece que a natureza essencial das coisas

precede sua existência. Argumento que o exist encialismo

acreditava ter erradicado, ma s que, não obstante, retoma

fôlego por meio das novas tecnologias e esp ecificam ente

por meio do virtual. Contudo, trata-se de um argumento,

ou, melhor dizendo, crença, um pouc o m ágica" , Existi riam

forças (ou potências) invisíveis, fontes de movim entos que

são sua expressão manifesta. Compartilhamento entre vi­

sível e invisível; a alma, ou força, ou virtude. Ao aproximar

o virtual dessa s potência s, che gamos mu ito rapid amente a

fazer da tecnologia digital- pois é disso que se trata - um

avatar da teologia ou do mist icism o. As tribos de internau­

tas glorificam uma força da qual nada se sabe, uma potên­

cia que permanece subterrâ nea, a virtude do virtual - por

sinal, vir tude de que se zomba quando ela toma a form a de

uma propriedade como a da "virtude dormitiva" de algu ­

mas plantas e out ras fantasias aristotélico-medievais.

É desse modo que, pa radoxalmente, o instrumento

mais racional, o mais calculado, o mais engenhosamente

..••.~... "•.,..~.,: t

ANNE CAUQUELIN178

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180 ANNE CAUQUELIN FREQÜ ENrAR os INCORPORAIS 181

disposto, leva, se não se tomar o devido cuidado, a um es­

piritualismo ampliado, ou seja, ao animismo.. . O mesmo

surpreendente paradoxo de quando vemos um pensamento

bas eado na cultura do efêmero, da ficção, dos mundos para­

lelos, do nomadismo e do acaso, como o pensamento dos in­

ternautas, vincular-se a um a filosofia essencialista. ..

Mas se nós nos fiarmos nos incorporais físicos dos es­

tóicos, evitaremos esses desvios: com efeito, com o expri­

mível, não se trata nem de alma, nem de força, nem de

potência oculta . Sua única propriedade é poder acolher o

sentido, logo, estar aberto a todas as interpretações. Não

que elas sejam programadas como se fossem de antemão

"possíveis" nos quais o intérprete escolheria o melhor se­

gundo sua própria opinião, como se estivesse no supermer­

cad o (impr essão que, às vezes, se tem na internet). Tamb ém

nã o que o exprimível esteja carregado da realidade expres­

siva que advirá, nem que o virtual, nesse me smo esque­

ma, esteja carregado de uma realização quase instantânea.

Essas duas imagens destinadas a fazer entender o que são

o exprimível ou o virtual são engodos. Eles repetem pela

en ésima vez as mesmas divisões: para um, o exprimível, a

divisão se faria en tre fictício e rea l; para o segundo, acres­

centar-se -ia a divi são entre natureza e artifício. O virtual

seria fictício porque, ao mesmo tempo, conteria promessas

ainda não realizadas e porque ele derivaria do ar tifício (su­

bentendido: o que é natural é real).

Ora, o real nã o está em oposição com o virtual. Eles

não têm por que se confrontar um com o outro. Não se tra-

ta de um par. O virtual é tão vazio de oposição quanto de

semelhança, sem nenhuma afinidade nem contato com o

real. A realidade con siste, desde o início, em distinção, di­

ferença, e diferenças, semelhanças, relações de quantida­

des e de qualidades . Orientações mentais e físicas, um alto

e um baixo, o superior e o inferior. Preferências. Uma for­

ma. O individual. O concreto. Corpos, que sofrem e agem.

O virtual, por sua vez, é "a atualização furtiva na consulta,

na programação e na memorização na concepção, memo­

rização do efêmero, dissolução das formas em suas reitera­

ções e variações infinitas, pegada de um inatual, simulação,

temporalidades múl tiplas e variáveis, inst áveis">.

Quanto à "realidade virtual" ("RV", para os iniciados),

casamento improvável de duas entidades contrárias, sua

definição é um verda deiro quebra- cabeças, e ela só pode

ser considerada de maneira mais ou men os estável, pela

mediação daquilo que a ela conduz: a interface.

Com efeito, a cibe rlinguagem batizou com o interfa­

ce o línk que une realidade e virtua lidade . O substantivo já

deu até um verbo: "interfaciar". Que se quer dizer com in­

terface e interfaciar? Trata-se de uma ponte, de uma porta,

de uma peneira? O que é que interface acrescenta à idéia de

uma ponte entre duas entidades heterogêneas? O termo,

com seu prefixo inter, remete muito naturalmente a intera-

38. Odile Blin, "I nt roduction à la matiêrc numériqu e: la product ion etJ'in ven tion des formes. Uno nouvelle csth étiquc ", Solaris (Grupo Inte runi vcrsit á­rio de Pesquis a em Ciências da Documen tação e da Informação, <www.info.uni­caen.fr/jeJec/So laris/d07/b lin .ht rnl>, n. 7, dez . 2000).

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tividade. É, pois, com os instrumentos lógicos do sistema

virtual que é preciso apreendê-lo, é nesse universo que ele

é eficiente, que ele tem seu lugar e significa algo . Ao se fa­

zer dele um substantivo comum, válido para tudo o que é

da ordem da pas sagem, como é freqüente, arriscamo-nos a

mascarar sua especificidade.

Uma gramática de links:a interface

É necessário comp reender o tempo, o lugar, o vazio e

agora o virtual e o exprimível como ligados entre si, porque

eles são, cada qual, condição para os outros. Desse modo,

o exprimível não pode ser pensado exteriormente ao va­

zio, que permite a extensão. O virtual, se nos ativermos ao

sentido que lhe é atribuído no universo cibernético, só po­

de existir em um espaço sem lugares, sem perspectiva e em

um tempo abolido, como aquele que acabamos de descre­

ver. Essa coerência pertence, de pleno direito, aos incorpo­

rais. Aquilo que os vincula entre si é um link abstrato, que a

gramática traduz por um modo: a condição. Se cada qual é

condição de possibilidade do outro, estamos em um siste­

ma entrelaçado; ora, essas condições entrelaçadas não são

da ordem da realidade, onde reinam a ocasião, a mudança,

o movimento descontínuo. Ao constituírem sistema, elas

passam a pertencer à ordem da necessidade, que as tolhe .

Vincular os incorporais - submetidos ao regime do neces­

sário - às realidades que vivemos passa então a parecer

uma verdadeira aposta. É a invenção da interface que res-

ponde a esse desafio». E isso, de diversas maneiras, em di­

ferentes níveis, segundo diferentes planos.

No campo da s artes midiáticas, geralmente definimos

a interface como um instrumento - computacional ou mate­

rial- que estabelece o contato entre o usuário e o computa­

dor ou entre dois ou vários computadores. É o instrumento

de passagem, que favorece a tradução de um sistema para

outro . Toda obra interativa utiliza interfaces, por exemplo,

capacetes de visão, luvas, ou um traje completo para captar

os movimentos de um corpo e traduzi-los para a máquina,

que os processa e os retransmite, seja di retamente para os

sensores corporais, seja para uma tela . A captura e a tradu­

ção são as etapas técnicas da interatividade, e a interface é

um momento delicado disso, do qual depende o resultado:

não apenas o resultado bruto (o fato de que isso funciona) ,

o que seria o primeiro grau da utilidade, mas também sua

poética, que se situa em um outro nível.

Pomo, DA INTERFACE

Ora, existem várias maneiras de considerar uma poética.

Inicialmente, enquanto atributo: um texto é chamado poéti ­

co quando evoca imagens poéticas: a flor, a neve, o amor, a

morte ... e existe todo um léxico dessas imagens, por perío ­

dos literários; o atributo "poético " é concebido, então, como

39. Cf., nesse sen tido. Louise Poissant (org.), Interfaces et sensorialité (Mon­treal, Presses de l'Universit é du Québec, 2003).

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adorno, complemento ou acréscimo. Desse modo, a interface

pode ser considerada como poética quando, por seu intermé­

dio, a obra interativa evoca tais imagens. A pena de Couchot

é poética em si, poderíamos dizer, mesmo sem que o sopro

do visitante a faça flutuar. A dançarina em equilíbri o sobre

um fio que o movimento do visitante faz balançar perigosa­

mente evoca o funâmbulo que sempre e de todos os modos

faz sonhar. Contudo, essa interpretação do poético prioriza

nossos hábito s culturais, as imagens convencionadas de um

léxico já estabelecido, muito mais do que leva a pensar uma

nova relação entre realidade e ficção, relação que seria, a meu

ver, o que há de próprio em uma poética. Eu me atrever ia a

dizer que os atributos poéticos, com seu poder de evocação,

ocultam a estrutura de uma obra e representam um obstá­

culo para sua compreensão. Nesse nível, a simulação digital ,

longe de inverter a relação do real com a ficção, desempenha

o mesmo tradicional papel da semelhança ou da representa­

ção em pintura: ela repete o que já foi visto.

Outra maneira de conceber, não mais o que é poé­

tico, mas uma poética: a arte poética, isto é, um conjunto

de regras que circunscrevem um território sing ular, cujos

princípios estão postos e devem ser seguidos. Essa poética

const rói e revela a estrutura do campo considerado. Desse

modo, para retomar um exemplo já utilizado, o G én érateur

poiétique (o termo poiético indi ca justamente uma arte do

fazer) produz claramente as reg ras de seu próprio funcio ­

namento, sem recorrer minimamente a imagens pretensa­

mente poéticas. O mesmo se pode dizer do Click de Closky

ou de seu +1. O simples fato de entrar em contato com seu

programa me faz entrar no universo dos visitantes; dessa

vez, cada clique acrescenta um número à lista. Só isso .

Podemos, então, conceber desde logo que a interfa­

ce revela muito mais que uma subjetividade criadora: uma

prática que subverte as prioridades, uma poética. Ainda se

faz necessário precisamente que essa transformação seja

mostrada, que ela não seja ocultada atrás de histórias, e é

por isso que eu acabei de dizer que prefiro as obras nuas,

que se aplicam unicamente ao desvelamento da interface

in processo A interface está aqui , agora, de imediato. É exa­

tamente no momento em que eu entro em contato com a

obra virtual que o tempo, o vazio e o lugar oscilam, porque,

de repente, eles se tornam corporais. Mas essa oscilação

não acres centa nem subtrai nada a sua natureza incorpo­

ral. Bem ao contrário, essa inversão ou oscilação é o seu

sign o; é pelo fato de o tempo, o lugar, o vazio e o expri­

mível serem incorporais que eles podem admitir corpos e

colocá-los à disposição do internauta quando ele "se inter­

faceia". Em síntese, a interface faz o corp oral oscilar para o

incorporai e é nisso que se situa sua poética própria.

UMA PornCA AMPLIADA

Aquil o que, então, poderíamos chamar de "poética do

espaço virtual", ou de "arte" do virtual, compreenderia re­

gras de composição para que uma obra fosse - se podemos

assim nos exprimir - realmente virtual, ou seja, para que

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186 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAROS INCORPORAIS 187

usufruísse plenamente as características da virtualidade e

apresentasse as suas características. Ela também deveria

ao menos esboçar os princípios elementares sobre os quais

repousam essas regras, isto é, a natureza e as característi­

cas do ciberespaço e do cybertime.Ora, uma "arte do virtual" assim começa a se estabe­

lecer a partir dos trabalhos teóricos e práticos dos artistas.

Com efeito, parece que a apresentação de listas e de classi­

ficações de obras interativas - mesmo que ela seja necessá ­

ria para permitir vir a se saber que essa arte existe e mesmo

que as obras sejam descritas com entusiasmo - não basta

para formar o núcleo de uma verdadeira estética do virtual.

Uma estética do virtual exige muito mais, ela convoca uma

reflexão que não seja nem preditiva e autoritária, como po­

de sê-lo a estética clássica, nem, por outro lado, isenta de

certa visão de conjunto do mundo da arte, melhor dizendo,

do mundo como tal. Tal estética se dedicaria a iluminar os

dados essenciais que entram em jogo no ciberespaço, que é

o espaço de trabalho deuma artedovirtual. Isso só é possível

quando alguém está pessoalmente envolvido em um tra­

balho nesse espaço. Aqui, mais que nunca, os autores são

levados a teorizar no processo de seus trabalhos". É do in-

40. Em história da arte, geralmen te esquecemos a impor tância da reflexão teó­rica dos artistas. Trata -se de um ponto que vem sendo contem plado pelos recentes es­tudos sobre os diários, as cadernetas e os d iferen tes escritos dos pintores. Veja-se oCentre d'Études d'Arl Contemporain (Paris )- Sorbonne), dirigido por Ann e Moeglin,cujos trabalhos se concentram sobre as leorias de artista. Cf. tamb ém o ~Itimo capílulode Anne Cauquelin, Théories derart (Paris, rUF, 2001) [Teo:ws daarte, Sao Paulo, Mar­tins, 2005]. E mais, trata-se de um pont o que não pode mais ser neghgencmdo ne~ re­legado ao silêncio quando nos ocupamos de arte digital"dad o que o t:a~alho art ísticonesse campo consiste exatamente em pôr à prova um a sene de proposiçoes abstratas.

terior de uma espécie de laboratório de obras virtuais que

se constroem e se afinam as condições de sua existência, e

não desde o exterior do campo, com não sei que conside­

rações gerais sobre o estado da sociedade na era das multi­

mídias e da globalização.

Essa maneira de ir construindo gradualmente a lógica

das interpretações para um campo, lógica sempre retoma­

da, inacabada por essência , corresponde à composição de

obras que reivindicam pertencer ao aberto, ao inacabado,

ao processo em vias de se realizar. O que se configura, en­

tão, pedaço por pedaço, parece uma miniatura cujas peças

se juntam ao sabor dos acontecimentos que são, a cada ins­

tante, as novas criações digitais, e o que elas acrescentam

à tela já esboçada. Não se trata mais de introduzir atribu­

tos poéticos (da arte!) nas obras virtuais, mas de legitimar

a expressão do virtual como arte.

o virtual como arte

É claro que há uma estética em formação no mundo

das comunicações cibernéticas. Já o desvelamos: há uma

poética da interface, uma ação estética e sobre a estética da

virtualidade digital. Mas como ela se posiciona em relação

às definições habituais da arte e qual é o papel reservado

à atividade artística nesse espaço? Quaisquer que sejam as

diferentes maneiras de apresentar a arte, de lhe dar um con­

teúdo ou de teorizar a partir dela - e vejam que elas são nu­

merosas - , uma característica permanece constante nessas

Page 96: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

188 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR os INCORPORAIS 189

tentativas de definição: a arte é uma atividade que se situa

entre realidade e ficção. Definição mínima, que está aí para

ser reconsiderada. Com efeito, trata-se da divisão entre real

e imaginário, entre virtual e real, entre realidade e abstra­

ção? Parece que, à luz da arte do virtual, essa definição pre­

cisa ser reformulada.

REVISITAR A FICÇÃO

Separamos ficção e realidade, geralmente pondo de um

lado o que é próprio da ficção: imagens, imaginário, apresen­

tação inabsentia, verossímil e inverossímil, possíveis, e, do ou­

tro lado, o que é próprio da realidade; realidades pertinentes

ao vivido, à presença, à trama do cotidiano, ao que é rotineiro

e não configura objeto nem de dúvida, nem de incerteza, ao

menos naquele momento. Nesse esquema, a fantasia e a leve­

za são o apanágio da ficção, ao passo que a densidade, o peso,

a certeza afligem a realidade; a atividade artística, que lança

raízes no modo da ficção, viria aliviar o peso das realidades,

em um jogo de distanciamento e de ilusões.Mas , nesse caso, que fazer das idéias que são chama­

das abstrações e que decidem a trama das realidades co­

tidianas? Quero falar da estrutura do espaço e do tempo,

por exemplo, da relatividade geral, da composição dos áto­

mos: trata-se de hipóteses, de expressões ideais, em suma,

de ficções. Porque o campo da ficção, contrariamente aos

lugares-comuns que o transformam em um mundo de so­

nhos, é também o mundo dos modelos, dos cálculos, das

formas que escapam à apreensão direta - isto é, sensorial.

Sendo assim, o fato de a terra ser redonda escapa a nossa

experiência presente, ele não é dado pelos nossos sentidos.

Para nós, a terra é plana porque caminhamos sobre o so­

lo sem que ele escorregue. Husserl fazia a distinção entre a

evidência presente da planura e a crença verificada, hauri­

da no estoque dos conhecimentos apreendidos, de sua es­

feric ídade-'. Nesse exemplo, o real vivido no erro está em

contradição com a ficção verdadeira. E agora? Onde se si­

tua o fictício? O exemplo é banal, mas se aplica a outras

evidências sensoriais contrariadas pela abstração científi­

ca ou "ficção". A realidade da ficção e a realidade vivida se

mantêm assim, lado a lado, em uma espécie de mútua in­

diferença. Isso também nos indica que vivemos simultanea­

mente em dois mundos separados, aquele que chamamos

de realidade vivida, presente, concreta, e o das realidades,

não presentes e não concretas para nós, das ficções nacio­

nais. Geralmente, lidamos muito bem com esses dois mun­

dos mais apostos que opostos, e vivemos essa justaposição

sem problemas. Sabemos utilizar máquinas das quais não

conhecemos nem a estrutura, nem o modo de alimentação.

Andamos de bicicleta sem conhecer as leis do equilíbrio e

escrevemos nossos e-mails sem pensar na rede planetária.

Tudo aquilo que se refere à estrutura do espaço e do

tempo atuante em nossas comunicações eletrônicas faz

parte do mundo ficcional: não há dúvida de que esse mun­

do é presente, contudo, ele nos parece remoto, como um

41. Edmund Husserl, "L'arche originaire: La Terre ne se meul pas ' (trad,Didier Franck , Philosophie, Paris, Éditions de Minuit , n. 1. 1~84) .

Page 97: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

190 AJ\JNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 191

invólucro cuja textura é desconhecida, mas sem o qual não

se pode passar. Mesmo que nos suponhamos capazes de

levantar a hipótese do dispositivo de um tempo sem pers­

pectiva, de um espaço sem lugares e do vazio exprimível,

ele continua a escapar da percepção corrente.

Utilizamos apenas os dispositivos gerados por essas

estruturas em certas condições, para determinadas tarefas

especializadas, sem nos questionar do que eles são feitos;

vagamente conscientes de que eles dependem de princí­

pios diferentes daqueles aos quais concedemos nossa fé,

continuamos a lançar mão, comumente e sem resistência

de alma, de imagens espaciais do tempo, da distância en­

tre os objetos do mundo e das intenções que nos levam a

agir em vista de metas. Com efeito, há uma distância con­

siderável entre aquilo que nós vivemos - nossas crenças e

meias-certezas - e os modelos científicos que tomamos por

verdadeiros. Essa distância aumenta sem cessar com o de­

senvolvimento das especializações e de suas linguagens,

que vão se tornando cada vez mais esotéricas. A compreen­

são dos fenômenos físicos escapa à boa vontade comum.

Mesmo uma coisa tão banal quanto a situação do tempo,

traduzida na linguagem dos meteorologistas, torna-se um

enigma para o espectador comum diante da previsão do

tempo do noticiário da tevê. E assim vamos nós, como ce­

gos, em meio a blocos técnicos intransponíveis, aferrados a

nossos modos de ver e de pensar, que, mesmo anacrônicos,

têm ao menos a vantagem de existirem para nós .

Nessa divisão entre uma prática singular, tecnicamen­

te aparelhada e cuja fundamentação nos parece estranha, e

outra prática familiar e que classificamos como natural, se­

guimos um princípio estabelecido: o familiar, o íntimo, o

natural é o sentimento profundo, a consciência, é o "inte­

rior", ao passo que a técnica, o artificial, o aparelhado está

no exterior. O interior é também o imaginário, o sonho, a

fantasia, a interpretação, ao passo que o exterior é o cálcu­

lo frio da matéria programada, as deduções sem surpresa.

É desse modo que encaramos, na maior parte do tempo, os

campos respectivos das máquinas e de nossa sensibilidade

de todo humana. Nesse esquema, a ficção, essa aura sim­

pática que cerca os objetos sensíveis e os desvia levemente

para o mundo do sonho e da imagem, é um atributo espe­

cificamente humano. Nós fazemos ficção naturalmente, e

nisso estaria nossa superioridade sobre os outros seres vi­

vos, presos a seus instintos. Em contrapartida, o espírito

geométrico animaria certo número de dispositivos mais oumenos maquínicos e rígidos.

Ora, disso se conclui que, se algo pode ser invocado

em favor do modelo cibernético, trata-se do desvelamentadesse esquema, de sua crítica.

O ELO "ARTISTA"

Com efeito, com a interatividade e a entrada em cena dainterface, os dois campos, realidade e ficção, deixam de po­

der ser nitidamente separados. E, ainda mais, eles se inter­

penetram, e a ficção - a capacidade de imaginar na ausência

do objeto - talvez já não se situe no lugar em que se espe­

rava que ela estivesse. Ela não está mais do lado do sujeito,

Page 98: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

192 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR os INCORPORAIS 193

que se acreditava autorizado a criar formas (quando artista)

ou a interpretar (quando espectador) segundo sua própria

subjetividade, e a comunicação entre o criador e o especta­

dor não se faz mais de sujeito a sujeito. Com a interface que

liga o mundo das realidades vividas pelo sujeito ao mundo

do ciberespaço, a capacidade de fazer ficção passa para o lado

do abstrato, do dispositivo calculado. Do lado do artista, é o

programa que carrega a função poética - abstração e simpli­

cidade são seus atributos. Do lado do visitante, ao entrar no

espaço virtual por uma interface, ele é levado a abandonar

sua pretensão à interpretação poética, para seguir as injun­

ções ficcionais do dispositivo abstrato do sistema. Porque,

uma vez mais, trata-se de uma transformação derivada do

dispositivo, não das disposições particulares dos sujeitos.

O espaço interior do sujeito - íntimo, natural, real-, com

suas percepções particulares, é então reportado ao interior

de outro espaço - o espaço virtual- no qual ele se converte, e

a função verdadeiramente poética da interface é revelar essa

conversão dando acesso a seu próprio funcionamento.

Percebemos então que, no espaço digital, a interface

provoca a reversão da relação entre realidade e ficção. Uma

realidade fictícia ... é sem dúvida nisso que desemboca o dis­

positivo, a meio caminho entre o programa (e seus parâme­

tros calculados, que permanecem invisíveis) e sua aplicação

por meio das interfaces. O visitante faz parte daquele dispo­

sitivo enquanto ajuda a materializar a ficção, a fazê-la passar

para o lado de um concreto sensível. Desse modo, o ficcio­

nal está sempre em estado de passagem, e nossa realidade

(o íntimo, o interior, a subjetividade) é apenas uma parte do

mecanismo dessa passagem - penso no parteiro da verda­

de que Sócrates dá como exemplo. O mestre em sua maiêu­

tica é apenas o instrumento de passagem entre o oculto e o

descoberto; a dialética é concebida, não como interface en­

tre o mestre e o discípulo, mas entre o oculto, o in-sabido,

e o trazer à luz. O desconhecimento do discípulo atua co­

mo o vazio, quando ele acolhe um corpo; ele acolhe o saber

que emerge, dando-lhe lugar. Ao incorporá-lo, ele mesmo

se torna corporal. No sistema computacional, quando o vi­

sitante procede a uma interface, não se trata nem de saber,

nem de verdade, como é o caso da maiêutica, mas da realiza­

ção. Prevalece aqui outra espécie de parto: a interface do vi­

sitante conclui a artev, ele faz a ficção entrar no real.

Porque, para o visitante, não se trata de "fazer o qua­

dro", segundo a celebérrima fórmula de Duchamp, que pu­

nha o visitante completamente à vontade ao inquietá-lo um

pouco, nem, para o artista, de tornar visível o invisível, se­

gundo outra fórmula também muito célebre. O invisível aqui

não é da ordem do espiritual, que uma epifania viria revelar,\

ele simplesmente caracteriza o estado de um sistema em de-

terminado momento de seu desenvolvimento. E o visitante é

a passagem obrigatória para outra etapa: sua realização.

Desse modo, o espaço que se estende entre realidade

e ficção é percorrido em todos os sentidos por uma ativida­

de de artista que joga com os dois, mistura-os, inverte-os e

os põe em movimento. A ilusão de um é a verdade do outro.

42. Assim como a arte, em Aristóteles, "completa" a natureza.

Page 99: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

194ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 195

o artista que propõe o programa e o visitante que pratica a

interface estão ligados em um espaço que mescla realidades

vividas e ficção abstrata. Eu veria tranqüilamente esse link

como a réplica do fogo artista que percorre o mundo, segun­

do os estóicos, instruindo a ligação por simpatia e tensão.

Com efeito, o que precisamos reter desse fogo artista não é a

espiritualidade de um fogo que proviria da alma, mas a ma­

terialidade desse fogo, indicada pelo adjetivo technikon. No

texto de Diógenes Laércio, o acréscimo da seguinte frase : "É

um sopro capaz de sensação [aisthetiken]" marca a passa­

gem do técnico, que parece pertencer ao artifício, ao sentir

que pertence ao ser vivo». Essa mescla impressionante situa

a arte sob o duplo regime do técnico e da sensação«.

A ARTE DO VIRTIJAL CO MO REGIÃ O DA ARTE

Havíamos visto, na segunda parte, que alvos tinham si­

do visados pelos artistas contemporâneos: a rejeição do sis­

tema das galerias, do mercado, da museificacão, e havíamos

visto também que destino estava reservado a essa atitude.

Ao se dobrar ao mercado, alguns artistas haviam tentado su­

primir o seu conteúdo e jogar com o espaço oferecido abor­

tando-o. Klein expõe o vazio, ou a invisibilidade tornada

espírito. Mas aqui também o jogo zombador vira celebração.

43. Diógenes Laércio, Vies, doctrines et senterzces des philosophes iIIustres(trad. RobertGrena ille,.Paris, Garnier/Flam marion, 1~65), livro VII, pp. 156-8.

. 44. Ibidem fedomgl.: trad. Robert Drew Hicks , Cambridge, Har vard Uni­versíty Pressl Loeb Classical Library].A tradução inglesa leva em conta essas duascaracterísticas e prop õe: "artistically working fire".

Outro alvo: o partilhar de um domínio cultural quase sem­

pre elitista com um público ampliado. É o abandono da au­

ra e a reprodução generalizada. Mais uma vez, essa tentativa

está destinada ao fracasso porque o público se prende, jus­

tamente, à inacessibilidade da arte e não adere a sua versão

cheap: "Isso não é mais arte", é o que se diz .Tanto de um lado

como de outro, invisível ou excessivamente visível, a ativida­

de artística gira em torno de suas próprias marcas.

Ora, a miniatura digital parece oferecer uma resposta à

maioria dessas aspirações: o não-mercado, a desmateriali­

zação versão americana anos 1960 e o partilhar. Livre aces­

so e disseminação em todas as direções estão no programa

da interatividade e, com ele, a ação do espectador sobre o

espetáculo, sua entrada livre no mundo dos criadores. A mi­

niatura, ou dispositivo digital, parece atender às demandas­

ela chegou até a suscitar o entusiasmo em seus inícios - ,

mesmo que essa liberdade de acesso seja ilusória, mesmo

que, ao final das contas, suscite-se sempre a questão do re­

conhecimento dos autores e de seus direitos, mesmo que as

questões de mercado, de divisão (copyright ou "copyieft"?)

estejam longe de ser regulamentadas. A despeito também

das questões de pirataria e de manipulações diversas, da

falta de recursos para a compra e conservação das peças,

da dificuldade de reconhecimento e de exposição.

Para além dos primeiros atrativos, muito conhecidos,

que continuam a ser apregoados, também é preciso pensar

que o imaterial ou o que assume seu lugar atrai os artistas

para a miniatura digital? Fazer o invisível advir à visibilida-

Page 100: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

196 ANNE CAUQUELIN

de, mostrar o que se esconde, evocar o que não pode ser di­

to, tentar o indizível ou calá-lo: essas são dimensões da arte

freqüentemente reivindicadas e vinculadas às noções mais

ou menos obscuras de mistério, de profundidade, de inte­

rioridade, de espiritualidade. Podemos imaginar que essa

busca está parcialmente esgotada quando o suporte artís­

tico se torna ciberespacial, isto é, "imaterial"; esse material

imaterial pode ser pensado, então, como espiritual - essa

é uma alternativa que agrada a alguns - a menos que, ou­

tra alternativa, ele seja tomado exatamente por aquilo que é:

um suporte físico, um vazio atravessado por impulsos, sem

nenhuma conotação humanista. O que importa é que, nos

dois casos, o caráter de eloestá no centro do trabalho. É so­

bre esse elo e com elos que o ciberartista trabalha: ativida­

de de ligação, não apenas entre os objetos que circulam no

mundo artificial, entre sites e internautas, mas também en­

tre realidade e ficção, entre vários modelos de mundo, entre

artifício e natureza.

E talvez seja por esse traço que o caracteriza que a arte

do virtual, longe de ser o parente pobre da arte com A maiús­

culo, possa ser pensada como uma espécie de modelo pa­

ra a atividade artística em geral. Poderíamos até mesmo nos

arriscar a levantar a hipótese de que a atividade que se de­

senvolve no ciberespaço é, ela própria, uma atividade artista,

qualquer que seja o conteúdo daquilo que é conectado».

45. A estetização da sociedade, da qual atualmente tanto se fala, de manei­ra tão ambígua, não teria sua fonte na extensão dos links, no trabalho sobre esseslinks, trabalho que se revelaria, finalmente, como verdadeiramente artista?

PROPOSIÇÃO FINAL

PENSAR SEGUNDO OS INCORPORAIS

Page 101: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

Teríamos, então, freqüentado os incorporais dos estói­cos ao longo deste trabalho... Os incorporais? Não fantas­mas, sombras fugazes, nem mesmo as memórias vacilantesdaquilo que nunca foi: todas as imagens que poderíamosesboçar, e que nos encantariam, cedem diante da dura con­dição que eles impõem ao pensamento. De nada adiantaexemplificá-los, eles não têm imagem; de nada adianta des­crevê-los, eles não têm forma - e nisso eles são exatamen­te invisíveis; inútil estabelecer-lhes residência, eles não têmnada que possa fixá-los.

Mesmo assim, tendo aqui acompanhado seus movi­mentos e interceptado suas manifestações fugazes - e issoespecialmente na arte contemporânea -, poderíamos ter aimpressão de ter passado a conhecê-los melhor; conhecer, is­to é, usá-los, pô-los a trabalhar, deles nos utilizar. Claro quea filosofia é justamente uma atualização de concepções rece­bidas; recompor o quadro, pintá-lo de novo, mesmo que comcores antigas, essa é sua tarefa.

Page 102: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

Modelos e miniaturas de mundo

Se eu questionar o conjunto de traços que pareciam cor­

responder à antiga definição dos quatro incorporais, acho

que posso indicar duas direções nas quais poderíamos en­

contrar ensinamentos.

A primeira é a das expressões artísticas contemporâ­

neas que, como vimos, apoderam-se do incorporal para o

pôr à prova de sua atividade, a das artes do virtual, que re­

convertem noções usuais do espaço e do tempo e convocam

novas definições. O modelo de universo oferecido pelos in­

corporais estóicos e a miniatura do oferecem dialogariam,

dessa forma, no decorrer dos séculos, interpretando-se mu­

tuamente. Trataremos de juntá-los uma vez mais aqui, em

um primeiro tempo ("Modelos e miniaturas de mundo").

A segunda via, mais meditativa, levar-nos-ia a uma

reflexão sobre o impessoal e a indiferença. Eis aí um in­

corporal com nossa dimensão, que freqüentamos assidua­

mente sem, contudo, apreendê-lo como tal. Implícito e

fragmento são nosso quinhão cotidiano, que cingem com

suas franjas nossas palavras mínimas e os mais ordinários

de nossos gestos; em seus interstícios, percebem-se os in­

corporais sob a forma do vazio, da perda, para não falar da

desordem. Um simples esboço me permitirá evocar a sua

presença ("0 momento estóico").

que, em mais de uma correspondência, haja uma espécie

de desdobramento ou de explicação que a miniatura digital

opera: a visualização de um cosmos antigo, que teríamos

esquecido desde muito tempo, aquele que é sugerido pela

teoria dos incorporais. Nesse sentido, se a hipótese que ve­

nho defendendo é confiável, o ciberespaço e o cosmos es­

tóico se analisam mutuamente. Enquanto o modelo antigo

permite compreender melhor a miniatura digital, a minia­

tura digital lança luz sobre o modelo do universo antigo;

ela o revela, não como uma antigüidade saborosa, fanta­

siosa e levemente ridícula, mas como um padrão (pattern)

talhado quase sob medida para as operações virtuais das

quais nossa modernidade se orgulha.

Desse modo, para garantir a coesão do conjunto-mun­

do, os estóicos haviam recorrido a um princípio de fusão in­

terna que percorria a totalidade dos seres, um fogo artista

que punha os seres vivos em simpatia. Os vínculos entre

humanos (por exemplo) não dependem de sua boa ou má

vontade, mas da energia que os atravessa. Uma espécie de

vontade anônima - muito próxima da de Schopenhauer' ­

limita as subjetividades, em um desígnio comum de ligação.

A ligação está no centro do sistema, é seu princípio fundador.

Não, uma vez mais, vínculos de sujeito a sujeito, mas víncu­

los entre os elementos de um dispositivo, apesar de que tal­

vez fosse melhor falar de uma gramática ou de uma lógica,

200 ANNE CAUQUELIN f~ ·,'""."

\FREQüENTAR os INCORPORAIS 201

Parecem múltiplas as correspondências entre os ele­

mentos da física estóica e a miniatura digital. Parece até

1. Cf. Arthur Schopenhauer, "L'objectivation de la volonté", em Lemondecom­mevolonté et comme représentation (trad. Auguste Burdeau, Paris, PUF, 1966). [O mundocomo vontade ecomo representação, trad. Jair Barboza, São Paulo, Unesp, 2005].

Page 103: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

o MOTOR

mais que de uma moral. A abstração está no centro do siste­

ma, ela é disposição, vínculo entre os signos, sem lugar al­

gum para os sentimentos ou emoções: o fogo artista suscita

uma única paixão, a admiração, para a ordem do mundo.

A miniatura do sistema ciberespaço produz o mesmo

desenho produzido pelo modelo do mundo estóico, quase

a ponto de, por ser puramente artificial, o ciberespaço não

ter necessidade do primeiro motor - isto é, de Deus - para

funcionar. Trata-se de um sistema perfeitamente leigo, no

qual a engenharia substitui o papel reservado, pelos Anti­

gos, ao princípio divino. Desse modo, a miniatura do digital

completa o modelo; ela o finaliza, até mesmo na medida em

que, pondo de lado o divino, ela realiza e mantém os para­

doxos que representavam dificuldade para os estóicos: por

exemplo, aliar a necessidade incontornável do vínculo à in­

diferença dos sujeitos, ou ainda a materialidade hardde um

mundo pleno de corpos com a necessidade de situar os in­

corporais ao lado desse corpo pleno.Realmente, ao se situar ao lado daquilo que chamamos

"realidade", o modelo computacional faz justiça à separa­

ção antiga entre mundo e vazio, entre corpo e incorporais,

e mesmo assim mantendo sua unidade. Corpo real e incor­

porais ficções são inseparáveis nas operações digitais. Para

as duas versões, antiga e contemporânea, do esquema cós­

mico, o mundo é Uno e um só. Tanto para a ciência contem­

porânea como para o pensamento antigo, apenas os graus

203FREQüENTAR os INCORPORAIS

de percepção é que são diferentes. A vida humana biológica

mede o tempo segundo uma escala brevíssima em compa­

ração com os dois extremos: os ato-segundos, que medem a

estrutura do átomo, e os bilhões de anos, que medem a es­

trutura do universo. O mesmo se daria na Antigüidade com

a separação do movimento sublunar, aquele que mede e de ­

fine a duração de nossas vidas e nos permite apreender tanto

as distâncias temporais quanto as espaciais, do movimen­

to da esfera celeste, eterno, cíclico, sempre reiniciado (teoria

que encontramos em Arist óteles'), ou do "grande ano" es­

tóico, que explode em uma conflagração final (ekpyrosis) an­

tes do retorno do ciclo.

Separados desse modo, como podemos fazer a jun­

ção entre os mundos eternamente em movimento, situados

para além dos dados sensoriais, e aqueles cujo movimento

podemos perceber? Se a ciência e a arte permitem essa jun­

ção, nos Antigos', a teoria dos incorporais pode descrever

a passagem entre os dois mundos de maneira mais preci ­

sa: é a oscilação pontual, instantânea, do vaz io para o lugar

quando um corpo entra nele, ou do tempo incorporal para

2. O movimento local é o primeiro entre os movimentos que percebem os.Seu modelo é o movimen to de rotação un iforme, que imita o movime nto circu­lar uniforme da esfera das estrelas fixas . Os orbes se enca ixam uns nos outros, ca­da qual sendo definit ivamente medido pelo movimento que serve de mode lo, o doprimeiro motor. Desse modo, diz o filósofo (Aristó teles, Physique, trad . Henri Car­teron, Paris, Les BeIJes Letres, 1926, IV, XIV): "O tempo parece ser o movimento daesfera, é por esse movimento que são medidos todos os outros movimentos".

3. Por isso podemos ler na Metafísica, na tradu ção de Jean Tricot para ofrancês (Paris, Librair ie Ph ilosophique Vrin, 1940), as proposições ar istotélicas so ­bre o inteligível: a ciência forma um vínculo entre aquilo que podem os compreen­der e viver e aquilo que a int eligência suprema vive e compre ende (livro L, 7 e 8).

ANNE CAUQUELlN202

Page 104: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

204AJ"lNE CAUQUELlN FREQüENTAROS INCORPORAIS 205

o tempo vivido quando ele é percebido como momento, que

desempenha a ligação necessária entre os tempos disjuntos

dos movimentos locais e celestes.Os dispositivos de ligação situados no ciberespaço

respondem à mesma questão de maneira mais precisa: o

vínculo entre as diferentes escalas e modelos de mundo é

muito mais explícito porque, no nível do tempo local, a in­

terface é um ato que vincula as duas escalas de tempo, a

escala do que é vivido pelo internauta e a escala do tempo

micro do sistema eletrônico.Situamo-nos na física do universo e não vamos pro­

curar o ciclo do eterno retorno: a ligação é um ato pontual,

que põe os dois tempos em contato - todos os dois reais ­

mas em escalas diferentes - tempo local e tempo atomiza­

do - e os faz existir simultaneamente.A freqüentação dos incorporais - porque não podemos

fazer nada além de freqüentá-los - nos levou a rever o que se

passa nessas ligações e fusões - como a de um real fictício:

tempo intemporal, ou lugar sem lugar, cuja réplica concre­

ta temos nos sites eletrônicos ' . Mesmo que seja uma simu-

4. Diant e disso, só posso apoia r as definições que Edm ond Couchot avançaem um ar tigo de 1985 na revista Traverses: "O tempo digital é um tempo simu l~ ­do, sintet izado a part ir de microdurações, assim como a imagem dIgItal ~o ~oraçaoda qual ele bate e cujas matrizes ele ordena é co~nposta de elementos at<:mlcos (ospixels), cuja associa ção cria formas e cores. Ele nao segue mai s a orientação do pas­sado para o futu ro, como o temp o crônico do calendário que conta os dias, ou otemp o dos relógios ast ronômicos que repres enta os movimentos do sol e dos p~a­net as, das mar és e de outros fenômenos. Ele não é mais escoament o, mas vib ra ção.Ele não representa nada, não mede nada; ele repete indefinidamente o mesm o rru­croinstante, ele marca a simultaneidade, ele sincroniza, ele opera" (revis ta Traver­ses, Par is, n. 35, 1985, pp. 41-5).

lação do modelo estóico, o dispositivo computacional não é

menos concreto, real. Eu diria até que essa simulação é mais

real que o modelo. O dispositivo cibernético traça o modelo,

o aperfeiçoa e permanece no campo do pensamento, ideal.

Paradoxalmente, a simulação realiza o projeto, ela o com­

pleta. O tempo simulado é mais "real" que o tempo conta­

do, e a duração bergsoniana encontra sua justa expressão no

tempo intemporal da simulação. O modelo cibernético cer­

tamente oferece novos esclarecimentos, não apenas sobre os

incorporais e a visão estóica do mundo, mas também sobre

as noções filosóficas de tempo e de duração.

A DISTÂNCIA

Existem, contudo, pontos em que esse modelo se afas­

ta substancialmente do modelo e chega, até mesmo, a con­

tradizê-lo. É o que ocorre com a problemática dos possíveis,

que, no cibersistema, está ligada à liberdade de escolha.

Com efeito, o modelo computacional transgride o

modelo dos incorporais porque ele produz e mantém a ilu­

são da escolha. O visitante tem a pretensa liberdade de es­

colher entre uma infinidade de possíveis. A cibercultura

adula essa liberdade, multiplicando-a na escala da infini­

dade das conexões planetárias. Ela também adula a indi­

vidualidade da escolha e, desse modo, justifica a diferença,

pois cada qual pode se afirmar diferente ao preferir um

dos possíveis entre todos os outros. Sem dúvida, a moral

cristã passou por lá, e seria insupor tável para nós não ser

Page 105: Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

206 ANNE CAUQUELl N FREQüENTARos INCORPORAIS 207

senhores de nossas decisões, livres em nossas escolhas. Se

esse ponto for anulado, não haverá mais responsabilida­

de pessoal, logo, não vai haver mais pecado, assim como

também não haverá mais redenção. A ideologia da escolha

entre os possíveis tem um forte matiz religioso, algo que

não é lá muito de se esperar quando se freqüentam os ci­

bermundos e algo também que não é lá muito ressaltado

pelos críticos... Contudo, essa liberdade não é pré-requisi­

to para que o cibermundo funcione . Assim como também

não é pré-requisito no sistema antigo. Ora, ao deixar esses

possíveis disponíveis para escolhas voluntárias, intencio ­

nais e individualizadas, a cibercultura cai na contradição

inversa daquela na qual os estóicos se deixaram ser pegos

por seus contraditores. A esses últimos foi oposta a idéia

de que eles não podiam escolher o preferível ou os prefe­

ríveis na indiferença na qual os mantinha o destino e que,

portanto, era inútil considerar alguns bens preferíveis a

outros. Contrariamente, podem-se censurar os cibernau­

tas pela contradição que existe entre o vínculo comunitá­

rio querido, reclamado, profetizado, vínculo fusional que

deve fazer da humanidade uma totalidade responsável, e

a liberdade individual da escolha, que tende a provocar e a

afirmar a diferença.Desse modo, pode-se claramente produzir na física do

virtual uma correspondência bastante esclarecedora com

os incorporais, mas nos comportamentos individuais ou

sociais que esses sistemas evocam a distância aumenta; po­

demos até avançar que eles são diametralmente opostos.

O momento estóico

Com efeito, é no terreno dos comportamentos cotidia­

nos que a distância entre modelo e miniatura se faz notar.

Afora os modelos da física estóica e das simulações con­

temporâneas, dos quais venho falando até aqui, podemos

encontrar, por assim dizer, incorporais familiares em nosso

círculo imediato e em nossas próprias atitudes de vida e de

arte. Desse modo, naquilo que se refere à linguagem, todo

um setor da comunicação está voltado para a incompreen­

são, para o vazio de sentido; não raro investigamos aquilo

que tal proposição, tal pergunta querem exatamente dizer;

nós mesmos, quando falamos, não temos total segurança

de ter expressado o que pensamos (ou talvez devêssemos

dizer inversamente: pensado o que nós dizemos?). De to­

do modo, esse vazio de sentido é rapidamente preenchido

por múltiplas interpretações, tanto da parte do locutor co­

mo da parte do interlocutor: "Na verdade, eu queria dizer

que... - Ah! É? Eu tinha entendido que...".

Interpretação, este é o termo dado ao preenchimento

desse buraco do sentido. Interpretar, segundo o incorporal,

significa preencher esse vazio com certo número de "cor­

pos" para fazer dele um lugar, fixar sua inconsistência.

Tomar consciência da fragilidade dessa passagem na

qual o não-sentido, o vazio, de repente abre lugar para o

sentido pela oscilação do exprimível em expressão é o que

eu chamo de momento estóico. Um momento no qual se equi­

libram as duas vertentes do sentido e do vazio de sentido

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208 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 209

sem que se dê prioridade a um ou a outro'. Furtivo é o ins­

tante da indiferença, suspenso todo o sentido, com chances

iguais para que a incompreensão subsista ou para que a in­

terpretação tome a dianteira. O acontecimento do sentido é

condensado sobre si mesmo, pronto a desaparecer, se não ti­

ver tido lugar, ou então a tomar corpo. Momento silencioso,

pausa que permite à respiração do mundo vir ao interior da

linguagem. Ligeiro tremor, vacilo: a indiferença ou a incer­

teza. Porque, é isso o que os incorporais nos ensinam, a in­

diferença é o ponto morto no movimento do fielde balança,

antes que ele caia para um lado ou para o outros.Essa oscila­

ção se produz sem que a vontade, a escolha ou a preferência

se manifestem. Porque a indiferença é naturalmente contrá­

ria às preferências. Portanto, é sobre esse ponto que diver­

gem modelo estóico e ciberminiatura.

A INDIFERENÇA, o IMPREFERíVEL

Para os estóicos, o acontecimento é sempre exterior, as­

sim como é exterior a física, a natureza. Não decidimos, não

escolhemos a ordem das causas, nem seu encadeamento,

nem a cor de nossos olhos, nem a ordenação de nossos ge-

5. É difícil encon tra r um equivalente para "privado de sentido", o asemosgrego ou o sinnlo s alemão; temos de imedi ato "não-sentido", o que naturalmentefaz sentido de imedi ato... "Incerto sentido", o título dado por Leszek Brogoswski asuas edições de livros de art istas aproxima-se mais do moment o estóico.

6. No artigo já citado, Edmond Coucho t, faland o da ciberlinguagem, afir­ma: "Há como que uma dobra funda escavada na supe rfície da linguagem, algoque simula uma espécie de toma da de consciência (sem consciência) da linguagempor si mesma", e ressalta justamente a indiferença da escolha subjetiva e a autono ­mia de uma linguagem que decide por si mesma .

nes. Essas são coisas que não temos como preferir; elas se

fazem sem nós. Vêm de fora. Podemos chamar como qui­

sermos - acaso, providência ou destino - a gestão desses ti­

pos de acontecimentos. Mas sejam quais forem seu nome,

quando se trata deles, a indiferença é a regra: a ordem do

mundo não se inquieta por indivíduos, nem nos pequenos,

nem nos grandes acontecimentos. Nós os padeceríamos,

portanto, indiferentemente.

Como pode ser isso? Tudo em nós se recusa à depen­

dência passiva . A liberdade (de escolha), a dignidade (do

ser humano), a singularidade de nossos gostos, o senso de

iniciativa e o poder de decisão, tudo isso faz parte da baga­

gem cultural imprescritível que nós também chamamos de

"direitos humanos".

Mas, talvez, não estejamos compreendendo bem o que

significam indiferença e indiferentemente. Indiferença existe

quando não podemos escolher entre dois objetos: "Dá no

mesmo", diremos. Um não é preferível ao outro; é indiferen­

temente que escolherei um ou outro - seria até mais exato

dizer: é indiferentemente que efetuarei uma não-escolha.

A partir dessa situação, duas explicações são possíveis.

A primeira se refere à física estóica: tomar as coisas indife­

rentemente é se comportar como o vazio com relação aos

corpos que ele pode acolher. Não lhes dar nenhuma orien­

tação, nenhuma prioridade umas sobre as outras . É, por­

tanto, manter-se muito próximo do próprio princípio do

cosmos: o mundo é pleno e o vazio o cerca e, entre os dois,

ocorre o equilíbrio ínfimo ou a vacilação do tempo, do lugar

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210 ANNE CAUQUEUN FREQüENfAR os INCORPORAIS 211

e do exprimível. Sendo indiferentes, como o é o vazio com

relação aos corpos que o ocupam por um momento, nós

imitaríamos a natureza, a physis, ou até mesmo lhe daría­

mos acabamento, assim como a arte completa a natureza.

O que advém encontraria em nós um vazio não-orientado,

sem vetor, ilimitado, em suma, uma indiferença maior.

A segunda se refere à lógica dos estóicos, especifica­

mente à definição do exprimível, o lekton.A indiferença não

é um estado, nem substantivo nem adjetivo, é um lekton,

um exprimível; e, segundo o exprimível, não podemos falar

de algo de indiferente como se se tratasse de uma de suas

qualidades: também não podemos falar de uma indiferen­

ça como de um estado do ser, mas apenas de determinado

momento de indiferença, inserido entre o momento no qual

o sentido está vazio e aquele no qual ele se enche, e isso se

dá em um instante sem duração.

Se essa definição da indiferença segundo os incorpo­

rais não estiver equivocada, então as críticas dirigidas à

teoria estóica não se aplicam mais; com efeito, lembramos

que essas críticas visavam à contradição entre a indiferen­

ça exaltada pelo Pórtico e a escolha que se devia fazer de

alguns bens, preferíveis a outros.

A indiferença não é um estado psicológico, como ten ­

taram fazer crer os moralistas dos séculos [ e II d.e. Nas

duas interpretações, uma física, outra lógica, trata-se de

uma ação efêmera, evanescente, que exprime uma passa­

gem, um movimento do vazio para o cheio, do vazio de

sentido à interpretação. E, para falar exatamente segundo o

incorporal, deveríamos dizer de um acontecimento (de falaou de coisas) que se indiferenta.

o momento estóico na artecontemporânea

Já encontramos essas características da indiferença

estóica quando analisamos as diferentes maneiras pelas

quais os artistas contemporâneos freqüentam os incorpo­

rais. O que é chocante é, ao mesmo tempo, o número e a

diversidade das manifestações pelas quais os incorporais

se exprimem. Ora são convocados separadamente: o tem­

po, por exemplo, é evocado diretamente - trata-se de mos­

trar sua repetição monótona e, portanto, sua inanidade, sua

irrealidade; ora é o vazio sob todas as suas formas: as formas

do buraco, do branco ou da ausência, sendo, aliás, essa úl­

tima expressão do vazio a mais próxima de se assemelhar

ao exprimível, ao lekton. Por fim, os incidentes dos percur­

sos, o encontro inesperado, o acaso -rei evocam ou convo­

cam o momento estóico do impreferível e da indiferença queacabo de descrever.

Essas características estão bem presentes no mundo

da arte contemporânea, mas ela não é o único espaço onde

os incorporais se manifestam. Os artistas não têm o privi­

légio de revelar o incorporai: nós os freqüentamos mui­

to mais vezes do que pensamos e em circunstâncias não

especificamente artísticas. Porque existem outras formas,

mais subterrâneas, menos notadas: aquelas que semeiam

a perturbação na continuidade do rio tranqüilo do tempo

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212 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 213

com o qual achamos que nossas vidas são tecidas e na es­

trutura firme, ao menos é o que achamos, do espaço.

Trata-se de dois franco -atiradores, marginais: o implí­

cito e o fragmento. São eles que nos põem em contato com

os incorporais e são eles que, curiosamente, estão o mais

próximos de nós na vida corrente.O implícito é essa forma de memória sem memória

que está o mais perto de corresponder ao que pensamos

ser o exprimível incorporal: sabemos algo que não sabe­

mos que sabemos, e só a ocasião certa permite acolher es­

se acolher não-sabido, permite trazê-lo ao real. O implícito

seria, desse modo, a forma familiar do virtual e do expri­

mível. Para retomar o exemplo que dei no prefácio: crianças

que estão na praia sabem perfeitamente bem , sem que es­

se saber seja verdadeiramente sabido de maneira ordena­

da, o que significa a men sagem: "Não ir muito longe!". Não

porque elas tenham uma intuiçã o fulgurant e do sentido,

mas por uma espécie de automatismo derivado da apren­

dizagem, sem que seja necessário solicitá-lo compulsando

os estratos complexos da memória. O momento estóico es­

tá ali: no processo de transformação de um incorporal em

corpo e no instante em que o próprio tempo incorp orai se

torn a temporal, o aviso é entendido como tal.Contudo, esse saber emergente, apesar de parecer evi­

dente (de não apresentar uma única dobra, como se diz), não

se apresenta como um conhecimento disciplinado e coerente.

A harmônica conivência entre partes bem ajustadas não tem a

ver com o implícito; quando aquilo que ele retém em suas do-

bras vem à luz e preenche o buraco do sentido, são rudimen­

tos esparsos de saber que surgem. Com efeito, o fragmento é

a forma mais comum pela qual o implícito se manifesta.

Daí decorre seu uso freqüente em poesia, quando a im­

posição discursiva, o corpo fixo e estrito da linguagem estão

suspensos . Daí também decorre seu uso não menos fre­

qüente em pintura: o detalhe incongruente, insignificante

em si, surge não se sabe de onde, e até mesmo as interpreta­

ções mais aguçadas, como as de Daniel Arrasse', não conse­

guem enquadrá-lo inteiramente.

O paradoxo do fragmento deriva do fato de ele ser ao

mesmo tempo ún ico, fechado em si mesmo como um por­

co-espinhos, e reflexo do conjunto que ele condensa e traz àluz. De certo modo, ligado e desligado; nisso, ele atua no li­

mite entre aparição e desaparição - aparição enquanto cor­

po bem definido, desapari ção enquanto se deixa reabsorver

pelo conjunto de que é signo. Ao marcar o interstício imper­

ceptível entre um todo - o mundo - e aquilo que o acom­

panha sem ruído nem existência - o vazio -, o fragmento

deriva do corpo e do incorp orai, sempre no limite de voltar

a ser sem consistência, ou de apresentar em um único pon­

to e em um só momento, estóico, a consistência do todo.

7. Dan iel Arrasse, Le d étail eIl peinture: pour une histoire rapprochée de lapeinture (Paris, Flammarion, 1996).

8. Os românticos alemães, em sua pretensão de totalidade da arte e, ao mes ­mo tempo, de unicidade da obra, bem reconheceram o fragmento como uma con­ereção, um cristal, frio, quase anônimo em seu brilho indiferente. A esse respeito, cf.Philippe Lacoue-Labarth e & [ean -Luc Nancy, Eabsolu littéraire: th éoric de la litt ératu­re du romantisme allemand (Paris, Éditions du Seuil, 1978). Cf. ainda Anne Cauquclin,Court traitéd/lfragment (Paris, Aubier, 1986).

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214 ANNE CAUQUEUN FREQÜENTAR OS INCORPO RAIS 215

Ao final deste percurso, eu gostaria de voltar, ainda

uma vez, à pintura. Não se trataria mais do dedo que apon­

ta para o céu, do índex que aponta para um lugar do corpo

ou para as Tábuas da Lei, do olhar que mira um alvo ausen­

te, mas da extensão, imóvel, das paisagens pintadas. Por­

que há na pintura de paisagem várias características que

podem sugerir o mundo dos incorporais. Geralmente, ima­

ginamos a linha do horizonte como a indicação de que há

um além, outra parte, mais longe, bem para lá; também o

olhar do espectador vai se perder atrás da cortina de vege­

tação, sonhando; mas essa invisibilidade tão presente e tão

visível, eu diria, não é nada mais que a ilusão permanente

da pintura. Mesmo assim, podemos considerar que a ilusão

está, sobretudo, do lado de cá, o nosso, e que o famoso lá é

aquionde nós estamos.

Há em toda paisagem uma espécie de vazio que la­

deia as coisas a ponto de desorientá-las; ao mesmo tem­

po, o espaço horizontal parece acolher todo acontecimento

corporal que nele venha se inscrever. Diferentemente do

retrato, que força o exprimível em uma direção determi­

nada, o vazio paisagístico, o anonimato de uma nature­

za contra a qual nada podemos, que desautoriza, em sua

objetividade nua, toda veleidade de inefável, deixam aber­

tas as possibilidades do sentido sem imprimir a elas movi­

mentos obrigatórios.

Sem dúvida, aquilo que chamo de momento estóico

afIora aqui, a nosso alcance, com a condição de haver uma

inversão ou uma abolição da perspectiva - aquilo que o ci-

berespaço, mas também o bignothing, nos ensinou a fazer.

Desse modo, assim como o fragmento é a forma literária

por meio da qual o implícito se manifesta, e assim como

o implícito é a forma familiar do virtual e do exprimível,

a paisagem é, para nós, a figura familiar do incorporai, dolugar e do vazio.


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