Date post: | 03-Jan-2016 |
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FREQÜENos INcoRPCONTRIBUIÇÃO A UMA TEORIA
DA ARTE CONTEMPORÂNEA
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série de respostas tomando porobjeto a arte contemporânea e
suas modalidades, como a desmaterialização, o vazio, o in temporal, o conceitual, o conte,..::tual,
o virtual, a interface etc., ate o
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o original desta obra foi publicado em francês com o títuloFréquenter lesincorporeIs
© 2006, Presses Universitaires de France© 2008, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo, para a presente edição.
Produção editorialEliane deAbreuSantoro
PreparaçãoHuendel Viana
RevisãoDinarteZorzanelli da Silva
MarianaEchalar
Produção gráficaDemétrio Zanin
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, Sp, Brasil)
Cauquelin, AnneFreqüentar os incorporais: contribuição a uma teoria da arte
contemporânea I Anne Cauquelin; tradução Marcos Marcionilo.São Paulo: Martins, 2008. - (Coleção Todas as Artes)
Título original: Préquentcr Ics incorporeIs: contribution à une théoricde 1'art contemporain.ISBN 978-85-99102-74-9
1. Arte - Filosofia 2. Arte - Teoria 3. Arte contemporânea4. Arte moderna - Século 20 I. Título
suMÁRIo
PREFÁCIO 9
Nós freqüentamos os incorporais 10
Motivos e expectativas 14
Buscas 16
Como fazer? 17
08-05757
índices para catálogo sistemático:1. Arte contemporânea: Teoria 7012. Arte contemporânea: Filosofia 701
CDD-701PRIMEIRA PARTE
OS INCORPORAIS DOS ESTÓICOS 19
Todos os direitos desta edição parao Brasilreservados àMartins Editora Livraria Ltda.
Rua Pro!Laerte Ramosde Carvalho, 16301325-030 SãoPaulo SPBrasil
Tel. (11) 3116.0000 Fax(11) [email protected]
O uno-todo 23
Lugares dos incorporais 28
O vazio 29
Os dois tudo 30
Como o incorporai salva a diferença 32
O incorporai e o vazio no âmbito da física 33
O lugaré tributário do vazio incorporai 37
O incorporai no âmbito da lógica 39
O incorpora] no âmbito da ética 47
Indiferença e preferíveis 48
SEGUNDA PARTE
OS INCORPORAIS NA ARTE CONTEMPORÂNEA....... 53
A arte desmaterializada 61
Capítulo do vazio e do lugar 64
The Big Nothing 64
Formas dovazio 1: o buraco 66
Do deslocamento como obra 70
Vazio, lugar e sítio specific 73
Formas dovazio 2: o imaterial sob o signo do branco 76
O zeroforme como matéria-prima 84
Formas dovazio3: a retirada ou o deslocamento 85
Capítulo do tempo e do exprimível:
a arte imaterializada 89
Daintemporalidade do tempo 89
Tempo incorporai e acontecimento 93
Dificuldades: o destino, a repetição 97
Do exprimível 103
O exprimível-linguagem 104
O conceitual 109
O exprimível-extensão 112
Uma opção para a aura 113
O contextual 119
Expressão e exprimível ................................................ 121
TERCEIRA PARTE
OS INCORPORAIS NO CIBERESPAÇO 127
Um vazio teórico 131
Uma tentativa de estabelecimento: os imateriais 136
Um conjunto fragmentável 141
O inseparável 143
Formas do invisível 145
Primeiras recensões 148
Capítulo do tempo, do lugar e do vazio 152
O tempo 152
Nova configuração do tempo 154
Incorporeidade do tempo 156
O lugar 158
A perspectiva digital .................................................... 160
O vazio 162
Capítulo do exprimível e do virtual: a interatividade .... 166
Co-autor ou figurante 172
A ilusão da partilha .. 174
O espaço dovirtual segundo o exprimível 178
Uma gramática de links:a interface 182
Poética da interface 183
Uma poética ampliada 185
O virtual como arte 187
Revisitar a ficção 188
O elo "artista" 191
A arte do virtual como região da arte 194
PROPOSIÇÃO FINAL
PENSAR SEGUNDO OS INCORPORAIS 197
Modelos e miniaturas de mundo 200
O motor 202
A distância 205
O momento estóico 207
A indiferença, o impreferível 208
O momentoestóico na artecontemporânea 211
PREFÁCIO
o que olha o João Batista de Ticiano na direção es
querda do quadro, com um ar simultaneamente perplexo e
calmo? Para onde se dirige o olhar do João Batista de Leo
nardo, enquanto seu dedo aponta, atrás de seu ombro, pa
ra uma paisagem brumosa de rochedos e colinas? Todos
olham obliquamente, levemente atravessado, ao longe, não
se sabe para onde, ao passo que, em Giorgione, a mulher
que amamenta e o soldado montando guarda olham o va
zio, um fosso que os deixa congelados, sem emoção .
Os pastores da Arcádia meio que nos dão as costas, o
olhar de viés, o dedo sobre uma inscrição indecifrável - não
se sabe quem é "ego" e a Arcádia é um país mítico -, a estela
- ou a tumba - está fechada, confinada. O grupo atento a sua
decifração parece evocar perfeitamente o momento delicado
em que o sentido, prestes a se dar, vacila, para finalmente se
esvair e escapar definitivamente. Mas ali, à beira da estela,
inclinados para diante, não o sabemos ainda; achamos, co-
10 ANNE CAUQUELIN I'I~ E<1ÜENTAR os INCORPORAIS 11
mo eles, que o selo vai ceder. E, também como eles, não sabemos a língua e, como eles, balbuciamos desvalidamente.
Nós freqüentamos os incorporais
Freqüentamos os incorporais, na maior parte do tempo, sem o saber. Quando tento me lembrar de um momentode existência, de um fragmento de tempo vivido, misturam
se nessa reminiscência lugares, pessoas, tempo que passou
e tempo que é, falas trocadas: um tecido frágil, que tende ase desfazer se for auscultado de muito perto e cuja consis
tência decorre exatamente da fluidez. O que se depreend e
dessa exploração é uma atmosfera, uma aparência, um invólucro de odores, de sabores e, aqui e ali, alguns elementos distintos, dotados de uma forma mais nítida .
Peço às crianças para não se afastarem: "Não vão muitolonge". Essa recomendação não quer dizer estritamente nada.
Muito longe de quê? E o que é esse "muito" que não é quantificado, e não é quantificável, diríamos, visto que nenhuma
medida que pudesse servir de referência foi explicitada? Nãoobstante, a advertência é compreendida, não segundo as pa
lavras em si, átomos no meio de um invólucro de sentidos,
mas segundo esse invólucro que "exprime" muito mais queas palavras.As crianças sabem o que significa "muito longe",tanto quanto sabem perfeitamente que devem não ficar mui
to perto. Elas não levam em conta as palavras em si, simples
indicações em torno das quais se trama a significação. Narecordação de um encontro, dá-se o mesmo: formas - um
rosto, um gesto, uma conversa, o pedaço do jardim onde o
encontro teve lugar - destacam-se como figuras contra um
fundo. O fund o que lhes dá suporte permite-lhes emergir;
de se parece com o invólucro de sentido que dá suporte àspalavras, sobretudo, como átomos distintos. Ele é sua gra
mática, aquilo que as liga.
Um invólucro que envolve as palavras, mas que não éa soma das palavras, um fund o que envolve os elementos
da lembrança, sem se confundir com eles: trata-se ali, é cla
ro, dos incorporais familiares; estamos de tal modo acos
tumados a eles que não os vemos e não iríamos procurarrazões de ser ou definições mais aprofundadas para os sim
ples: "Ah! Sim? Não me lembro", ou "0 que você quer di
zer?", ou ainda, "Em que você está pensando? - Em nada ".Tamb ém estamos acostumados ao fato de os retratos mira
rem o vazio, ao fato de que as incompreensões subsistam
ou que, milagrosamente, desapareçam. Todos esses nãovistos nos cercam, nos solicitam e nos escapam, assim co
mo os não-ditos, as frases não pronunciadas que, contudo,
entendemos apenas com "meia-palavra", vagamente, ou as
advertências formuladas pela metade e cujo sentido, apesarde tud o, apreendemos.
Geralmente, agiríamos como se nada fora, se fôsse
mos, de temp os em tempos, apanhados pela imprecisão, ou
pelo vago, ou até mesmo por uma espécie de incompletude,cujo reflexo encontramos nas obras de arte; é nesse camp o
que o invisível é mais visível. E é lá que, no mais das vezes,
nós o buscamos. Por vezes, tentei a aventura por meio dapintu ra, buscando desalojar os anjos invisíveis que, a meu
ver, desde sempre a habitam. Mas a tentativa, muito próxi-
12ANNE CAUQUELIN fREQÜENTAR os INCO RPORAIS 13
ma da figuração, não podia perseguir a invisibilidade ou aquase-desaparição. Com efeito, havia na pintura verdadei
ros anjos, se assim se pode dizer, e, além disso, tudo o quepode levar a pensar em anjos - formas que evocam o bater
de asas ou o vôo e a desaparição, olhares perdidos ou ho
rizontes longínquos. Exageradamente visível esse invisível!
Muito encantador, muito aurático . Cheio de reminiscências,de saberes implícitos . Quase a ponto de solicitar o espírito
ou a alma, ou ao menos o sentimento, quando fosse neces
sária a nudez da própria matéria, sua total transparência.Essa transparência, o nada e seu momento não po
diam ser encontrados por meio de sua representação: serianecessário buscá-los noutros lugares, ao preço de um desvio, corno se se desse um salto no tempo e na teoria.
Esse é o desvio que me proponho a esboçar aqui. Umdesvio? Ainda falta saber por onde começar. Pistas não faltam, evários artistas contemporâneos têm em mente a mesma
busca ou exigência, precisamente esta: perseguir o invisível,visar ao inefável, desejar o nada, pretender-se transparente,apagar os próprios rastros, não ser nada. Eles fazem parte de
seus desejos e de seus projetos, de sua filosofia, eles escre
vem, concedem entrevistas. Trata-se de urna pista relativamente fácilde seguir, porque ela mesma indica sua origem e
não teme expor seus ternas. O movimento tem sua fonte no
Oriente, nas religiões do abandono, do vazio, do silêncio e
da sombra; a partir dos anos 1950, nos Estados Unidos, com
o beat zen, um zen um pouco fluido, muito laxista, que privilegia especialmente a evasão para longe das convenções; ou
um zen mais conseqüente, quadrado (square zen), com pio-
neiros corno[ohn Cage, que realmente inicia um novo modode (não) fazer arte. A negação de si e a renúncia, com hu
mor também, parecem reinar desde Cage (ede Duchamp, de
passagem) sobre o mundo da arte, se não nos comportamentos, ao menos nas obras; a pista, o efêmero, a sombra da som
bra, a ausência e o vazio são sobretudo senhas, e isso quando
a teologia negativa ou o iconoclasmo não são, eles mesmos,reivindicados. Desse modo, o zen é onipresente, e mesmo
que ele seja conhecido apenas aproximativamente, de ouvir
dizer, ou que não seja expressamente invocado, ele parece
dar todas as espécies de chave. Urnas são efetivamente úteispara a compreensão de algumas obras que reivindicam es
sas chaves abertamente (corno, por exemplo, as peças de Ro
bert Filliou), outras abrem qualquer coisa e são triunfalmente
brandidas corno se detivessem o segredo do mundo - pensamos, por exemplo, compreender melhor Wittgenstein abrin
do-o com a chave zen' ...
Não é essa a pista que privilegiarei na caça aos incor
porais, porque ela me parece artificial, corno se tivesse sidotornada de empréstimo - um disfarce que oculta, ou revela,
o desejo de sacralizar a obra de arte e o recurso a uma mís
tica. O indizível, o imaterial ou até mesmo o incorporaI sãoaí exaltados corno valores assegurados, automáticos. Pare
ce até evidente que toda a arte seja movida pelo desejo de
encontrar o invisível e de mostrá-lo, como se o artista tives
se, de forma inata, o dom (e o dever) de abrir a obra para o
1. Cf. a passagem de A obra aberta, de Umberto Eco, "Le zen et l'Occident ",recentemente tradu zida para °francês pela Revue d'Esth étioue (Paris, n. 44, 2003),pp .49-64.
14 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAROS INCORPORAIS 15
mundo da mística, ou ainda mais simplesmente, "de abrir
um mundo". Fala de essência que engendra fé.Ora, dado que, para mim, trata-se aqui justamente de
compreender em que consiste essa parte de invisível, de ima
terial - ou seja lá qual for o nome que lhe seja dado - , prefiro tentar o desvio por uma filosofia exatamente referente
à questão, nos termos e com uma lógica que conhecemos
bem, visto ser ela um dos alicerces do pensamento ocidental :
trata-se da teoria dos estóicos sobre os incorporais.
Motivos e expectativas
Vários motivos determinam essa escolha .O primeiro é que temos em mãos a caixa de ferra
mentas apropriada para compreender a lógica dessa teoria
- portanto, o que podem ser os incorporais e como apreendê-los, ao passo que só dispomos de poucos ou de nenhum
instrumento para apreend er a filosofia oriental.
O segundo é que o recurso a uma teoria antiga permite evitar toda suspeita de misticismo ou de espiritualis
mo: como havemos de constatar, a teoria dos incorporais é
uma teoria física.O terceiro é que essa teoria parece ser conveniente pa
ra as obras da arte contemporânea, visto que ela revela os
diversos aspectos, ao mesmo tempo em que permite elucidar suas obscuridades, a meu ver, de modo muito melhor
do que o faria o recurso às filosofias místicas do Oriente.
Assim, por exemplo, a exposição, conceito contemporâneo
geralmente pouco entendido, toma uma nova dimensão
quando considerada pelo ângulo de um dos incorporais
estóicos: o "exprimível".Por fim, e talvez esteja aqui o motivo mais estranho,
porém, ao mesmo tempo, o mais indubitável, os incorpo
rais estóicos nos levam a abordar o ciberespaço em umaperspectiva apropriada, liberada de toda tentação animistaou antropocentrada. Porque o pensamento estóico sobre os
incorporais interroga especificamente as noções que hoje levantam dificuldades no mundo dos ciberobjetos: o vir
tual , às vezes chamado de imaterial, o próprio imaterial, a
suposta realidade do tempo e, por fim, a gramática digital,
que define, envolve e transporta esses objetos.Podemos, então, esperar de um empreendimento como
esse que ele nos esclareça não apenas sobre a arte contemporânea e o ciberespaço, mas sobretudo sobre o conjunto
formado por sua reunião; que ele possa ligar duas regiões
que em geral são tratadas separadamente, que possa, em
síntese, dar uma visão compreensita' de dois mundos que acrítica de arte tende a separar, ao passo que os estetas (pou
co numerosos) que tentam juntá-los só têm como instru
mento a noção bastante vaga de "continuidade da arte".E encerro esta exposição de motivos e de minhas ex
pectativas com uma declaração de fé: a filosofia não é nada
se não ajudar a entender o que está diante de nós justa mente agora . Assim como os artistas, os romancistas, os
músicos e os poetas, aos quais não se nega o direito de se
2. Uma representação compreensiva é aquela que, seg undo os próprios estóicos, tem um fundamento real no objeto e recebe um assent imento, ou acordo. Elase refere sempre a um conjunto no qual todas as noções se apóiam mutuamente.
16 ANNE CAUQUELIN I'REQÜENTAR OS INCORPORAIS 17
exprimirem no presente, nem de exprimirem o presente,os filósofos, anti gos ou men os antigos, falam do mundo
deles e do nos so; eles não passariam de múmias boas parao museu de glórias passadas se não fossem postos no real,ou seja, utilizados e até mesmo reinventados. Porque compreender não é tentar substituir um conceito em seu com
partimento de origem, mas fazê-lo funcion ar agora paranós. Compreender é fazer andar, é pôr em movimento.
Buscas
Desse modo, comecei este trabalho sobre o incorporaI.
De início, eu via o incorporai em toda parte, depois, passouse um longo momento sem que eu visse mais nada: confrontado com termos como imaterial, invisível ou virtual, o
incorporai gradualmente ia se obscurecendo. Foi então quepensei nos estóicos: era preciso ir a eles, e a Diógenes Laércio, a Sexto Empírico e aos outros comentadores. Passei
ainda um bom momento sem entender nada, apesar dasexplicações e das didatizações de um Émile Bréhier- (por
exemplo).Eu via, então, que existia não o incorporai - noçãogeral e v~zia -, mas incorporais; qu.~t;~, ·d~ fãto~/ij5?-is qua:
tro são os incorporais: o tempo, o lugar, o vazio e o exprimivel", dizem eles. E esse plural muda tudo. Não se trata maisde uma essência - o incorporai em si - , mas de vários ele
mentos concretos, nomeadamente designados. Não precisamos mais buscar out ro mundo, porque esse mundo é o
3. Émil e Br éh íer, La th éorie des incorporels dane l'ancien stoicisme (4. ed .,Paris, Vrin, 1970 [1. ed. 1908]).
nosso, e os incorporais dele fazem parte. O tempo, o lugare o vazio, já os conhecemos, mas quando os pensarmos co
mo "incorporais", sem dúvida, nós os veremos diversamen
te; quanto ao exprimível, o último da lista, não sabemos oque ele é, mas imaginamos facilmente - sem dúvida, por
causa do termo grego'lea on - que ele introduz nas zonas
francas essas margen s onde se dá o habitual de nossas conversas e onde intervêm de modo fantasmático impressões,
aparições e desaparições, leves esquecimentos e memórias;
ele é, sem dúvida, aquele que nos seria o mais familiar, o lu
gar dos implícitos da linguagem, da interpretação. Mas co
mo fazer com que ele seja posto no mesmo plano dos outros
três? Qual é a utilidade dessa reuni ão?É, portanto, um dispositivo bem estranho que teremos
de penetrar e ao qual certamente não atribuímos o lugar queele merece, não apenas em filosofia - apesar da tentativa de
leuziana de reabilitação -, mas sobretudo no campo das ar
tes, onde no entanto o termo - se não a noção - é reivindicado(Klein ou Barry, entre outros, fazem apelo a ele), e no da práti
ca, que se tornou habitual, das comunicações cibernéticas.
Como fazer?
Mas como fazer sem se referir à fonte? Sem, já de iní
cio, reler os estóicos? Teremos de passar por lá, pois é preciso estar certos de não estar cometend o gafe e de não
tomar o incorporai por aquilo que ele não é, sucumbindoà tentação de ver ali o tácito, o ind izível, o misticismo ou
a espiritualidade. O que os estóicos podem nos ensinar é
18 ANNE CAUQUELIN
justamente não cair no pathos do indizível, é manter os pésna terra, tentando incluir o incorporaI no seio de um dis
positivo lógico - a representação compreensiva.A primeira coisa a fazer, portanto, é interrogar esse
exprimível e seus três acólitos, unidos na classe dos incorporais. Quais são eles, que lugar eles têm no sistema estói
co? Em que medida eles se impõem e por quê? Esse será o
objeto da primeira parte ("Os incorporais dos estóicos").
Na segunda parte, tentarei examinar de que maneira
as obras de arte contemporân eas se apoderam do incorpo raI e que lugar elas lhe reservam ("Os incorporais na arte
contemporâ nea").
A terceira parte tenta estabelecer uma passagem entre aminiatura do ciberespaço e o modelo do mundo oferecido pe
los incorporais estóicos ("Os incorporais no ciberespaço").Por fim, uma última parte tenta ampl iar a compreen
são dos incorporais aos comportamentos ordinários, que
nã o pertencem esp ecificam ente às atividades artísticas
nem aos requ isitos da cibercultura ("Pens ar segundo osincorporais").
Vê-se, desse modo, que meu propósito é duplo: trata
se de auscultar esse pensamento segundo as práticas con' temporâneas, mas também se trata, em contrapartida, eleauscultar essas práticas segundo os incorporais. E 'possí
vel que os estóicos nos levem por atalhos para ver de ou
tra form a as coisas de nosso tempo, assim como também épossível que eles se percam de nós ou que nós nos perca
mos deles sem levar nada em troca. Esse é um desafio que
vou querer encarar.
PRIMEIRA PARTE
OS INCORPORAIS DOS ESTÓICOS
"Pois quatro são os incorporais: o tempo, o lugar, ovazio e o exprimível."
De partida, essa asserção, seguida ou duplicada por
outra: "Tudo é corpo". Não podemos imaginar uma fun
damentação mais paradoxal como ponto de partida. Não
apenas as duas proposições estão em contradição, como a
primeira delas é completamente misteriosa: o que vem a ser
esse exprimível (lekton) e o que tem ele a ver com o lugar,
o tempo e o vazio? Fechada sobre si mesma, perfeitamen
te obscura, a asserção parece tomar sob suas asas um du
plo campo: o da física (lugar, tempo e vazio) e aquele que
corresponde ao lekton, do qual se pressente, sem muita se
gurança, que se trata da lógica, da linguagem ou, de modo
mais genérico, do pensamento.
Comparada à primeira, a simplicidade rude da segun
da afirmação causa admiração, fora até mesmo da oposição
que manifesta com a primeira.
22 ANNE CAUQUELIN 1'1":,l.)ÜENTAR os INCORPORAIS 23
o que, desse modo, se oculta a nosso entendimento
decorre das duas ligações: a que une o lekton às entidades
físicas que são o lugar, o tempo e o vazio, e a que justa
põe a primeira proposição e a segunda. A primeira estabe
lece uma heterogeneidade como um todo, situando-a sob
um a propriedade comum: o incorp oraI. A segunda, de iní
cio, estabelece a homogeneidade do tod o, inclusive a do in
corporaI e do corpo, visto que tud o é corp o.
Desse modo, os incorporais pertenceriam ao uno
todo, isto é, ao corpo. Mas, ao mesmo temp o, esta riam li
vres dele. Dizer que tudo é corpo e que o incorporai existe
é defini r que existe um vínculo - quando menos ambíguo
- entre os dois. E dizer que esse víncul o é, precisamente,
incorporal é fechar o circuito sobre si mesmo. Entram os no
paradoxo de mãos e pés atad os.Com efeito, como encontrar na primeira proposição
o que é um incorporaI? Não obstante, isso seria necessá
rio, dado que de sua definição depende a das quatro enti
dad es submetidas a seu império. Mas não! Justamente ao
cont rário, devemos deduzir o que é o incorporaI a partir
dos quatro exemplos propo stos. Ora, as quatro entidades
físicas citada s estão bem longe de nos permitir compreen
dê-lo, sobretudo porque uma entre elas não parece exata
mente física. É o que Plutarco observa, na pena de Amyot
(com um quê de humor): "Defendem os estóicos que todas
as causas são corporais, sobretudo se forem espíritos". Di
remos, então, que tud o é corpo, mas que o incorporaI se
faz presente nos arredores, ao lado, ou mesclado ao cor-
po? E o que sign ifica essa justaposição ou, especialmen
Il ', essa mistura?
Em busca de uma resp osta nos textos estóicos ou na
quilo que deles nos resta, deveremos abandonar a op osi
\'50 - que, de tão familiar, parece um tru ísmo - entre corp o
l ' espírito, entre corp o e não-corpo, para poder avançar um
I)()UCO em uma concepção tão sutil quanto paradoxal de
suas relações.
Deveremos também, e na mesma ocasião, abando
nar o espírito de divisão que caracteriza a an álise e pen
sar "mis tura". Esses dois traços nos serão muito úteis para
ausculta r a arte contemporâ nea e a cibercultura; se, com
os estóicos, não se trata com efeito de hibrida ção, nem de
mestiçagem, eles nos põem, contudo, a caminho de com
preender melhor o que sign ifica "encadea mento", o concei
to-chave de nossas culturas atuais.
O uno-todo
o todo, a mistura, a fusão (krasís) é um dos conceitos
do sistema estóico mais facilmente reconhecíveis. Ele reina
sem divisão sobre domínios aparentemente os mais remo
tos un s dos outros, como a lógica, a física ou a moral.
Se, como dizem os estóicos, o mundo é precisamente
uma totalidade an imada pelo sopro que atravessa todas as
coisas, nenhuma parte pode ser separada dela sem perder
imediatamente seu sentido . Assim como o conhecimento
desse mundo, que deve se manter em harmon ia com ele,
24 ANNE CAUQUELINI;REQÜENTAR OS INCORPORAIS 25
também deve ser visto como uma totalidade. À forte coe
são que mantém juntos os elementos do universo corres
ponde a interpenetração dos elementos do saber. A esse
respeito, as primeiras linhas que Diógenes Laércio consa
gra aos estóicos são absolutamente claras:
Eles comparam a filosofia a um ser vivo: os ossos e os
nervos são a lógica, a carne é a moral, a alma é a físi
ca. Eles também a comparam a um ovo: a casca é a ló
gica, a clara é a moral e a gema, justamente no centro,
é a física. E ainda a uma terra fértil: a sebe que a cer
ca é a lógica, os frutos são a moral, a terra e a árvore
são a física [... ]. Eles não preferem parte alguma à ou
tra. Ao contrário, pensam que elas se interpenetram e
as ensinam juntas.'
A comparação da filosofia com um ovo, um ser vivo,
uma terra fértil ou uma cidade retoma o tema do todo in
dissociável, mesmo que para alguns a lógica seja a gema e,
para outros, a casca, enquanto a física toma o lugar da ge
ma central. Não importa! O que vale é que o ovo, o ser, o
terreno ou a cidade são seres vivos e crescem a partir do in
terior graças às trocas entre suas diversas partes.
Em outros termos, o conceito do todo se aplica a ca
da parte da doutrina, tomada separadamente, mas tam
bém ao conjunto das partes, que ele une. Acabamos de ver
1. Diógenes Laércio, Vies,doetrines et sentences desphilosophes illustres (trad.Robert Grenaille, Paris, Garnier/Flammarion, 1965), tomo li, livro VII, p. 64.
uma manifestação disso com a proposição liminar dos qua
tro incorporais. A lógica, com o lekton, e a física, com lugar,
tempo e vazio, formam um todo. À primeira vista, isso po
de causar impressão.
Com efeito, para os filósofos da Antigüidade, cada par
te do conhecimento é distinta: em Aristóteles, por exemplo,
os livros da Física são uma coisa, os da Retórica ou do 6r
ganon, outra. A ciência se divide para ser eficiente e não se
pode sair misturando tudo. Gêneros, categorias: trata-se de
ordenar toda essa desordem em torno de nós, cada qual em
seu lugar. Aqui, o cientista; ali, o artista; e logo adiante o ar
tesão. As especialidades nos separam, nós vivemos delas.
Ora, com os estóicos, estamos diante de uma mistura
porque, à preocupação da física (o que é o mundo?), vem se
superpor - ou se impor - esse lekton como uma primeira e
quarta entidade que dá nascimento à suspeita: se o lekton per
tence ao mundo como um desses elementos, então a física
não se distingue de uma lógica, a lógica é um elemento do
mundo, assim como o lugar, o tempo ou o vazio, e isso sob o
mesmo título e na mesma posição. Essa é uma proposição tão
perturbadora que freqüentemente preferimos esquecê-Ia-.
É claro que admitimos, sem maiores dificuldades, ser
a mistura o princípio e que ela está no princípio do estoi
cismo: uma alma, um sopro que atravessa o universo e
2. É o que faz, por exemplo, Pierre Duhem em sua rigorosíssima exposiçãoda física estóica; mesmo elogiando sua extrema originalidade, não diz uma só palavra ~obre a_quil~ que justamente a funda: o exprimível, situado no mesmo planodas tres noçoes físicas. Cf. Píerre Duhern, Le systémedu monde (Paris, Hermann,1958 [1. ed. 1913]), tomo I, pp. 301-20.
26 ANNE CAUQUELlN l'I\!':üÜENTAR os INCO RPORAIS 27
nos une a ele, uma harmonia à qual devemos amor e res
peito, a gota de vinho que se mistura a todo o mar.. . Isso
sim . Contudo, por mais que sejamos plenos de reverência
por essa filosofia inspirada no uno-todo, nós nos apres
samos a esquecê-la para destacar a lição de moral das te
ses lógicas e físicas . Pegamos uma, jogamos fora as outras
ou, mais precisamente, ignoramos o vínculo interno que
as constitui, especialmente porque, pensamos nós, as teo
rias antigas do lugar, do tempo e do vazio seriam obsole
tas e valeriam unicamente como veneráveis testemunhos
do passado da ciência . Isso seria atribuição de uma histó
ria da filosofia ou de uma história das ciências. Só resistiria
para todos, universalmente, aquilo que está fora do tempo
e fora da ciência: uma ética, lições de vida, essa moral é, de
longe, o que melhor conhecemos de todo o sistema, mui
to bem auxiliados nisso pelos Sêneca, pelos Epicteto e pe
los Marco Aurélio.
Mesmo assim, a ética estóica tardia não deve levar a
esquecer sua fonte, nem seus vínculos com o conjunto da
doutrina, sobretudo com a física. Ignorar essa coesão inter
na seria não apenas contrário à doutrina que se pretendia
expor, mas também se impedir a si mesmo de compreen
der aquilo que ela tem de verdadeiramente original e o
motivo pelo qual, justamente, ela nos ocupa.
Desse modo, na passagem que nos interessa, acerca
do lugar, do tempo, do vazio e do exprimível, essa coesão,
esses vínculos, esses intercâmbios entre física e lógica se
fazem graças à noção comum à qual todos os quatro per-
icncem: os incorporais. O g~~ surpreende é a aproximação
do exprimível, que parece pertencer à lógica, com noções
como o lugar, o tempo e o vazio, que parecem, por sua vez,
ter uma existência sensível. E justamente o acréscimo des
se exprimível, lekion, e sua fusão com as outras três noções
fazem da tese estóica algo especialmente singular. Sem o
exprimível, ela se situaria na mesma seqüência das teorias
físicas pós-aristotélicas, com os mesmos debates sobre o
vazio, o infinito e o movimento do mundo, isto é, todos os
ingredientes da ciência, tal como concebida na Antigüida
de. Mas, com o exprimível, o jogo é outro: o acréscimo desse
simples vocábulo impede que nos detenhamos na divisão
clássica e permaneçamos apenas no campo da física. O en
xerto do lekion, do exprimível, não é um acréscimo externo
que se poderia retirar com um golpe certeiro de escalpelo,
ele está íntima e inteiramente ligado ao conjunto.
Estabelecida como pré-requisito, a unidade-una do
mundo é, portanto, justamente o pano de fundo contra o
qual se exprimem os elementos constitutivos da nature
za. Não podemos ignorá-la, nem deixá-la de lado, como
um "dogma" à parte. Essa unidade, o mod o como são teci
dos os vínculos que preservam a harmonia, é isso que de
vemos ter presente ao espírito se quisermos ent ender algo
dos incorporais.
E vemos logo a confirmação disso assim que come
çamos a olhar mais de perto as definições dos quatro in
corporais. Com efeito, não podemos isolá-las para tratá -las
separadamente, pois cada uma delas depende das demais.
28 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORP ORAIS 29
Isso dificulta sua exposição, pois não podemos seguir um
encadeamento que iria do simples ao composto, com cada
nova etapa apoiando-se sobre a etapa precedente. Assim
como não podemos apresentar tudo ao mesmo tempo, si
multaneamente: a ordem do discursivo se recusa a isso.
Então, que fazer, senão começar por uma ponta, não
importando qual? É o preço a pagar pelo todo-uno: te
remos de exprimir a coesão pela fragmentação, a ordem
perfeita e harmoniosa por uma desordem de movimentos
esparsos, a simplicidade original do conjunto pela repeti
ção dos temas presentes em cada parte.
Épor isso que prefiro, retomando a palavra de Apolo
doro-, que chama de "lugares" as diversas partes da filoso
fia e que considera ser necessário tratá-las sobretudo como
pontos de vista reunidos por seus objetivos, mas separados
para o uso prático do ensino ou da exposição, tratar esses
lugares como aspectos, como "ao ladode". Dessa forma, ve
remos os quatro incorporais, cada vez de um lado: do lado
da física, do lado da lógica e do lado da ética .
Lugares dos incorporais
Se há um tema da física constante entre os antigos,
trata-se exatamente da reflexão em torno do lugar e do va
zio. Tudo o que se relaciona à posição do mundo, à da ter-
3. Diógenes Laércio, op. cit.: "Apolodoro chama esses diferentes ramosde lugares".
ra e do céu, à dos astros e a seus movimentos, à dos objetos
desse mundo e de sua relação entre si é considerado como
uma etapa indispensável para o conhecimento. Os estói
cos não escapam a essa necessidade, eles têm uma teoria
do lugar e do vazio.
o vazio
O vazio (to kenon) é uma das três especificações do es
paço, ao lado do lugar (topos) e da extensão (khora) . Ele pa
rece ter uma importância de primeiro plano nas discussões
dos filósofos antigos. Em torno dele, com efeito, movem-se
as idéias de existência e de não-existência, de ser e de não
ser, de existência do nada, ou do vazio.
Existe o não-ser? Que seria isso? Problemas especifi
camente filosóficos, a partir dos quais compreendemos a
divisão das escolas de pensamento. O vazio evoca, para se
definir, entre os Antigos, não a experiência sensível, mui
to menos a experimentação, mas uma concepção global do
mundo: limitado e ilimitado, finito e infinito, contínuo e
descontínuo, em outros termos, uma visão do universo, o
que é e o que não pode ser, levadas em consideração as op
ções tomadas quanto à existência, ao pensamento e à na
tureza dos corpos.
A única maneira de discutir isso é, portanto, o racio
cínio, a argumentação. Enquanto elemento de uma física,
o vazio ou a ausência de vazio dependem, pois, da consis
tência de uma lógica, de um logos.
30 ANNE CAUQUELIN I'REQÜENTAR OS INCORPORAIS 31
Os dois tudo
Aquilo que é verdadeiro para todo filósofo da Antigüi
dade - para quem a concepção do mundo é fundamental
em sentido estrito: ela funda todas as análises mais par
ticulares - está singularmente presente nos estóicos. Sua
concepção do todo, original, intervém de maneira decisiva
na definição do vazio.
O universo é uno, isto é, finito, limitado e pleno. É um
corpo e nele tudo é corpo, onde circula a vida - um fluxo
tenso contínuo, que irriga todas as suas partes. Nele, en
tão, nenhum vazio que fosse capaz de interromper o fluxo
impediria a tensão interna de se propagar, traria perigo àcoerência do todo. Coerência, unicidade do todo; o céu e a
terra, unidos pela simpatia e pela tensão (sympnoian e syntania), não resistiriam ao corte representado pelo vazio-.
Esse todo do universo é chamado de to holon. Contu
do, e nisso há uma novidade, o universo não é o todo. O
todo é chamado de to pano Ele compreende tanto o corpo
limitado, bem estabelecido, bem acabado do mundo quanto um espaço sem alto nem baixo, sem limites, sem orien
tação, que não contém nenhum corpo, um puro incorporai:
o vazio que rodeia o universo. Desse modo, to pan admite,
ao mesmo tempo, o existente, o mundo, e o não-existente,
o incorporaI, no qual se banha o corpo do mundo. Um in
corporaI, o vazio, é o lado de fora do mundo.
Plutarco, na tradução de Amyot: "Os estóicos dizem
que há diferença entre o todo e o universo, pelo fato de o
4. Ibidem, livro VII, p. 99.
todo (to pan) ser o infinito com o vazio, e o todo sem o va
zio, o mundo (to holon): de modo que isso ainda não é todo
uno, mas o todo e o mundo">. Ou, dessa vez, nas palavras
de Diógenes Laércio: "0 todo (pan), segundo Apolodoro, é
o mundo (kosmos), ou ainda, em outro sentido, o sistema
composto do mundo e do vazio". E acrescenta: "0 mundo,
portanto, é finito; o vazio, infinito'».
Essa diferença não é assim tão evidente. Com efeito,
se o argumento para excluir o vazio do mundo é admissível
- ele é quase o mesmo que o argumento de Aristóteles, que
o excluía inteiramente do mundo e de seu exterior -, como,
então, um espaço que, por definição, pode conter, mas não
contém corpo algum, pode conter o mundo?
Pois é justamente essa a definição do vazio dada pe
los comentadores, de Possidônio a Cleomedes: "É chama
do vazio um espaço que não contém corpo algum, mas
que é capaz de contê-lo"? O próprio Diógenes Laércio faz
a definição do vazio, capaz de conter corpos sem contê-los,
transitar para a noção do incorporai: "Fora do mundo se
difunde o vazio infinito, que é o incorporai; o incorpora] é
aquilo que é capaz de conter corpos ou de não contê-los:".
O incorporai se torna, então, um lugar. "Incorporais, o lu
gar e o vazio são uma mesma coisa, que é chamada 'vazio'
5. PscudoPlutarco. Desopinionsdesphilosophcs (trad. Amyot, apreso e anol.Éric Dubreucq, <www.abu.cnam.fr».
6. Diógenes Laércio, op. cit., livro VII, p. 98.7. Clcomedcs, Théorie des mouvements circulaires des corps célestc», apud
Pierrc Duhcm, oI'. cit., p. 311.8. Diógenes Laércio, oI'. cit., livro VII, p. 97.
32 ANNE CAUQUELIN 11''iI)OENTAR os INCORPORAIS 33
quando nenhum corpo a ocupa, e 'lugar' quando é ocupa
da por algum corpo".
Aquilo que circunda o mundo seria então não um va
zio, mas um lugar, visto que contém o corpo do mundo. E
se aquilo que circunda o mundo é um lugar, esse lugar, in
teiramente ocupado pelo mundo, é co-extensível a ele e de
le não pode se distinguir. Eis, portanto, o vazio reabsorvido
pelo lugar: não podemos mais pretender que exista um va
zio fora do mundo, e a diferença entre halos e panse anula.
Voltaríamos, portanto, à teoria de Aristóteles: a de que não
existe nenhum vazio nem dentro, nem fora do mundo, teo
ria recusada pelos estóicos . É preciso, pois, manter a qual
quer custo a diferença entre pan e halos, conservar o vazio
em torno do mundo. Isso decorre da coerência, não apenas
da física dos estóicos, mas também de sua lógica e de sua
moral, por mais estranho que isso possa nos parecer hoje.
Como o incorporai salva a diferença
Ora, é possível manter essa diferença entre pan e halosrecorrendo ao auxílio da noção de incorporaI. Com efeito, é
o incorporai que vai servir de passagem, de articulação entre
vazio e lugar, entre mundo e vazio. Se o vazio fora do mundo,
mesmo circundando o corpo do mundo, não pode ser cha
mado de um "Iugar",mas continua a ser um vazio, isso se de
ve ao fato de ele ser antes de tudo asomaton, um incorporaI.
Precisamos, então, compreender o que significa "in
corporal" e como o vazio pode ser chamado de incorpo-
1.11 , mesmo contendo o corpo do mundo, se quisermos, ao
I1 H -srno tempo, não perder de vista a coesão do sistema es
11 .ico e compreender como as teses lógicas e morais podem
',(' desenvolver a partir da noção de incorporaI.
Se chegarmos a apreendê-lo em sua ambigüidade fun
.l.unental. o vazio pode nos servir para explorar os outros
incorporais dos quais sabemos que fazem parte o lugar, o
k-rnpo e o exprimível, bem como outras coisas do pensamento". O vazio seria, então, uma espécie de peixe-piloto em
nossa pesquisa. O mesmo poderia ter se passado com o ex
primível (lekton) - essa foi a escolha de Émile Bréhier - ou o
tempo; mas o vazio me parece uma noção mais facilmente
imaginável, uma representação mais naturalmente percep
tível e, portanto, mais apta que o tempo ou o exprimível a
constituir um paradigma; e specialmente porque o conceito
de vazio nos conduz diretamente às obras contemporâneas
que o reivindicam, ou ao menos jogam com seus diferentes
aspectos ou formas. Apostamos que as duas abordagens,
por mais distantes que estejam no temp o, apresentarão
muitos pontos em comum .
O incorporal e o vazio no âmbito da física
O fluxo que atraves sa o mundo e o mantém coeso é
chamado de pneuma, sopro ou ar, ou ainda alma. Esse so-
9. Porque há outros incorporais como os pensamentos, as idé ias, a mern ória: "05 incorpo rais e outras coisas percebidas pela razão (.. .1o sentido das palavras é incorp orai" (Dióge nes Laércio. op. cit.).
10. Ibidem, livro VII, pp. 156-7.
A terra e a água conservam sua unidade participando
da essência espiritual e como efeito da potência qUl'
pro é corporal, ele é quente, é um fogo criador, em ação, que
gera o que existe. Esse sopro também é chamado "alma"
(psykhê), que é capaz de sensação, e percebe: isso se deve ao
fato de a alma ser corporal e, enquanto tal, suportar e agir,
viver e sobreviver para além da morte. E somos, nós os hu
manos, uma parte dessa alma, do universo, sopro cáIido.
Desse modo, partilhamos os oito elementos que com
põem essa alma, esse sopro: primeiramente, os cinco sen
tidos, depois o poder gerador (spermatikous, seminal) e as
capacidades da fala e do raciocínio. Aquivemos que a capaci
dade de falar e a de raciocinar são corporais, visto que fazem
parte da alma, ela mesma corporal. Comose fosse um ospíri
to que nos é inerente, a alma é, com efeito, um corpo",
Essa alma anima nossos corpos humanos e tuckl () que
vive, e se move no mundo e move o própriomundo. I)l'ssa for
ma, o mundo pode se expandir e se contrair ao ritmo do so
pro criador, à semelhança de um coração batendo. Temos aqui
um ~specto da física, aquele que se refere à natureza dos ele
mentos: a matéria, a massa, o peso, a tensãoe a pulsão, os flu
xos gasosos. A massa da terra está submetida a duas forças
opostas, uma que faz pressão desde fora, outraque impõ« uma
coerência interior pressionando os corposuns contra <lS out n is,
Temos testemunho disso em dois textos. Um é de Plutnrco:
35
pertence ao fogo. São o ar e o fogo que, por efeito desua elasticidade, mantêm em seu estado esses dois pri
meiros elementos e que, misturando-se com eles, lhes
fornecem a pressão (tonos), a estabilidade e a consistência substancial."
Há em torno dos corpos certo movimento gerador depressão, movimento que é dirigido, ao mesmo tem
po, do exterior (eis to exo) e do interior para o exterior.
O movimento do interior para o exteriordetermina as
grandezas e as qualidades dos corpos,o que é dirigidodo exteriorpara o interior produz a coesão e a consistência substancial.v
o outro, de Nemésio:
FREQÜENTAR OS INCORPORAIS
Dessas tensões alternadas provêm dilatação e contra
ção; simpatia, isto é, acordo-coesão, e tensão, ou seja, fluxo.
Mas para que esse movimento de dilatação/contração
do universo possa ser executado, é ainda necessário que
um espaço sem corpo, um asomaton - um incorporal -, se
ja associado a ele; um espaço que não represente obstácu
lo, que não oponha nenhuma resistência, nem tenha forma
alguma capaz de incomodar sua respiração, não exerça ne
nhuma atração, não oriente minimamente a dilatação para
11. Plutarco, "Des notions com munes, contre les Stoiciens", em PierreMaxime Schuhl (org.), Les Stoiciens (trad. Émile Bréhier, Paris, Gallimard, 1962),p.182.
12. Nemésio, De l'homme, apud Pierre Duhem, op. cit., p. 303.
1•
ANNI<: CJ\LJ<.1LJELlN34
o alto ou pa ra baixo, porque, no vazio, orientação alguma
prevalece, não há alto nem baixo; em suma, um espaço que
não exerça nenhuma ação constritora e que permaneça in
tacto no caso de o mundo se contrair: o lugar que ele ocu
pou em cert o momento volta a ficar livre de qualquer pista.
Assim é o vazio incorporai que cerca o mundo: um espaço
de indiferença, de microgravidade, de impassibilidade.
Com efeito, a natureza do vaz io (ou sua substância,
seg undo Cleomedes) é tal que não possu i absolutamen
te nenhum caráter além do de ser apta a conter corpos. O
próprio Cleomedes acrescenta que essa substância do va
zio é incorporai e intangível, "ela não pode receber nenhu
ma figura, ela é simplesmente tal, de modo a poder admitir
um corpo em si mesma". Definiç ão completa, mesmo que
pareça sumária, e que nos mostra o pap el atribuído ao va
zio incorp orai no sistema do mundo.
Porque há realmente um papel a ser desempenhado
pelo vazio, que tem a ver com a vida do universo, dando
lhe o espaço suficiente para que, ora se contraindo, ora se
dilatando, ele possa viver até a conflag ração final , ou seja,
até o fim do ciclo de anos que o universo deve cumprir an
tes de recomeçar outro.
Com efeito, o tempo está suspenso em sua própria
realização: assim como o lugar, sua natu reza é incorporaI;
invisível e intangível, ele só é corpo em um momento: o pre
sente; antes do presente e dep ois do presente - no passado
e no futuro -, ele absolutamente não é, um inexistente, um
incorporai apto apenas a acolher corpos, só então tomando
corp o ele próprio, no m~mento oportuno. Algo nessa natu-13. Edmund Husscr l, Leçons pour une phénom énologie de la consdence intime
du temps (trad . Hem; Dussor t, Par is, I'tlF, 1964).
37FREQ ÜENTAR OS INCORPORAIS
Com efeito, o que éválido para o mundo e para a pos
sibilid ade de sua extensão graças ao vazio incorpora i tam
bém é plenam ente válido para o lugar terrestre: existe lugar
quando há corp o ali onde antes havia nada; mas se o cor
po se retirar, o lugar retoma ao vazio.
É imp ossível pensar o lugar (topos) sepa radamente do
vazio: acabamos de ver que o vazio só se torna lugar se um
corpo o ocupar. O lugar emerge do vazio como aquilo que
repentinamente é ocupado por um corpo, mas esse mes
mo lugar volta a se r vazio se esse corpo lhe for subtraído.
reza incorporal do tempo leva a pensar nas lições husser
lianas sobre a consciência íntima do tempo». O antes e o
dep ois, protensão e retenção, dissolvem- se simultaneamen
te em um traço imperceptível e rapidamente extinto, dei
xando a descoberto a fragilidade do instante sem futuro .
Em resumo, o jogo entre espaço com corp o e espaço
sem corpo, entre mundo e vazio, caracteriza a marcha do
mundo es tóico, e esse jogo só é possível graças ao incor
poral . Mas não se limita a isso o pap el do vazio incorporaI.
No interior do mundo propriamente, e não ma is no siste
ma -universo, existe uma alternân cia semelhante: lugar e
vazio se substituem um ao outro pe rmanentemente.
o lugaré tributário do vazio incorporai".i .·I
'r ~
ANNE CAUQ UELIN36
De alguma maneira, o lugar também é intangível, sempre
prestes a se esvanecer na medida do movimento dos cor
pos, de suas idas e vindas. Efêmeros, imponderáveis, os lu
gares são também incorporais, assim como sua antítese, o
vazio. Eles surgem e se dissolvem, segundo as determina
ções dos corpos que eles se contentam em enquadrar.
Essa é a razão pela qual, ao lado do lugar e do vazio,
não há o mínimo espaço no dispositivo estóico para a exten
são, designada pelo termo khora e da qual Zenão diz que não
é nem isso, nem aquilo: "Em parte ocupada por um corpo e
em parte não ocupada". Definida dessa forma, a khora não
pode ser de utilidade alguma nem ter papel algum a desem
penhar no mundo pleno dos estóicos, percorrido por um so
pro inteligente e criador que o atravessa. Crisipo, por sinal,
recusa-se a dar-lhe um nome: "Se uma parte é ocupada e
outra parte é não ocupada, o conjunto não será nem um lu
gar nem um vazio, mas algo que não recebeu nome", e pros
segue: "Talvez se trate de um espaço intermediário ou de
um espaço intermediário que cedeu seu lugar". De toda ma
neira, um espaço desses, sem nome, sem característica de
vazio nem de lugar, só pode servir para designar uma ma
téria sem forma, inanimada, em todo caso, nada que possa
servir de referência ao pan e ao halos. Talvez uma extensão
dessas seja simplesmente um espaço de trânsito, da ordem
da prática. O que equivale a dizer que ela é insignificante.
O único espaço onde o vazio e o lugar poderiam encon
trar-se juntos e misturados seria o chaos, que não seria incor
poraI, porque é, ao contrário, todo pleno de corpos lançados
'Ü incorporal no âmbito da lógica
39
O que ocorre no âmbito da linguagem, do pensamen
to verbal - expressão e significação -, e como pensar o fa-
FREQÜENTAR os INCORPORAIS
em grande desordem, sem que continuidade alguma os li
gue entre si. Receptáculo de todas as coisas, e desde o prin
cípio dos tempos, o caos não teria nenhuma forma definida,
nenhuma orientação interna, nenhuma força que a massa
tivesse lhe conferido. A idéia de mistura que tal amontoa
do poderia oferecer está muito distante da mescla na qual os
estóicos pensam, que é compenetração (krasis) da matéria e
do sopro e que assegura a ordem e a coesão do conjunto.
O fato de só podermos pensar o lugar contra um fundo
de vazio incorporaI dá ao lugar, mesmo estando ele repleto
de corpos, o toque de incerteza e de indefinição necessário a
sua entrada na quadriga dos incorporais. E é apenas quando
fazemos o desvio pela natureza do vazio estóico que pode
mos compreender a incorporeidade desse lugar que nos pa
rece a nós, modernos e sem dúvida aristotélicos mesmo sem
o saber, tão fundamente ancorado nas profundezas da terra.
A impermanência do lugar como entidade física é algo
que nos impressiona, a ponto de, muitas vezes, nos parecer
absurda. Mas uma vez aceita a idéia dessa impermanência
e do papel atribuído ao vazio, podemos compreender que
um mesmo dispositivo rege outros territórios: o da lógica
e o da ética. Começamos a duvidar da solidez da gramática e
da constância da moral.
ANNE CAUQUELIN38
40 AN NE CAUQUELlN
,FREQüENTAR OS INCO RPORAIS 41
moso lekton, que Émile Bréhier traduz por "exprimível" e
Robert Drew Hicks por "meaning?>, enquanto Agostinho
o nomeava como "dicibile"? Mesmo aqui, o vazio incorpo
rai ainda nos servirá de piloto.
Sexto Empírico afirma e reafirma, ao longo de seu Contraos matem áticos», que o lekton, aquilo que pode ser dito,
o "linguajável", é incorporaI. Mas ele é incorporai porque,
assim como o vazio em torno do mundo, ele envolve um
corpo finito, determinado, limitado, ao qual ele opõe sua
ilimitabilidade, sua natureza indefinida e sem atração par
ticular. Só podemo s pen sar esse incorporai a partir do cor
po que ele envolve, assim como não poderíamos pensar o
vazio senão a partir do corpo do mundo.
Mas qual é, então, esse corpo que cerca o lekton, o ex
primível? Crisipo nos diz que é o som vocal, a voz, a pala
vra: todos corpos, pois eles agem; a voz, o som emitido pela
boca, toca meus sentidos, penetra o ouvido . "A voz é ar que
recebe um choque, é um corpo, pois todo agente ativo é um
corpo." Assim como a palavra (lexis), que é formada de sons
vocais, é um corpo . Éum som articulado, bem redondo, bem
pleno, com sua textura, seu peso, sua densidade, mas "difere
da linguagem, porque a linguagem [logos] tem um sentido
[semantikos], mas existem palavras desprovidas de sentido
rasemos] como blituri, o que não é o caso da linguagem'w.
14. Émile Bréh íer, La théorie des incorporels dans l'ancien stoi'cisme (4. ed ., Paris, Vrin, 1970 [1. ed . 1908]); e Robert Drew Hicks, Diogenes Laertills (Camb ridge,Harvard University Press, 1991).
15. Sexto Empírico, Against the logicians (trad . R. G. Bur y, Cambridge, LoebClassical Libra ry, 1983), livros I e 11.
16. Diógenes Laércio, op. cit., livro VII, pp. 69-70.
Por isso a linguagem é parcialmente feita de sons
trazidos pela voz, de sons articulados em palavras, que,
enquanto corporais, são definidos, limitados; podemos des
crevê-los, dividi-los, soletrá-los, recompô-los. Porque são
matéria, eles se prestam aos exercícios aos quais os subme
temos. Agentes quando ferem o ar, pacientes quando são
dispostos em diver sos arranjos, esses elementos correspon
dem pontualmente à definição dos corpos. Mas em sua ou
tra parte, a linguagem escapa às defin ições e às limitações.
Trata-se da parte "incorporal" da linguagem. O sentido das
palavras pronunciadas, aquil o que compreendemos quan
do as ouvimos, abre para o domínio das significações.
Entre o termo significante (semaion), que é um cor
po, e o objeto designado pela palavra, que também é um
corpo, uma ponte liga a pala vra à coisa, trata-se do semainomenon, do sentido. Ele pode ser classificado como incor
porai e é, sem dúvida, o lugar do lekton, do exprimível.
Que faz o exprimível , o lekton? Ele insere um esp aço
entre pal avras e coisas. É exatamente o espaço da ligação,
aquilo que torna possível a passagem do um ao outro. En
tão, mesmo que o termo significante permaneça como cor
poral, em estado bruto (é um som articulado), o sentido é
o resultado de uma elaboração do pen samento c, nesse as
pecto, provindo de um trabalho invisível, int angível (ade
lon). Feito de lembranças, de costumes, de classificações
convencion adas, de ordenações, o sentido advém à pala
vra por um caminho de pensamento. Esse cam inho é uma
passagem, como o lugar e, assim com o ele, é incorporaI.
42 ANNE CAUQ UELIN FREQÜENTAR OS INCO RPO RAIS 43
"Há pensamentos que se fazem por passagens [metabasis]como os exprimíveis [lekta] e o lugar'v,
Dessa forma, o exprimível incorporai não é toda a lin
gua gem, nem tampouco tudo o que cai sob o domínio da
significação (as diferentes espécies de proposições, os silo
gismos, os diversos mod os de dizer); ele é, antes de mais, o
que possibilita a ocorrência de uma sign ificação, seu acon
tecimento, na medida em que o que é dicibile ou exprimível
pode ser dito ou expresso sem obrigatoriamente dever ser.
Nenhuma determinação, nada além do espaço livre da apti
dão. Se ele tem um destino, esse destino é, ao oferecer esse
espaço vazio, ser aniquilado pela forma que o discurso toma
ao ocupá-lo. Como toda condição, depoi s de ter cumprido
seu papel de condição, nada subsiste além de uma presença
invisível que só uma aten ção constante pode desalojar.
Portanto, se uma parte da linguagem é corporal e, por
isso mesmo, finita, limitada e definida, a parte da linguagem
que é incorporai, aquela que aqui me interessa, é ilimitada,
infin ita, sem orientação, sem atração particular, indiferente,
à semelhança do que se passa com o vazio no caso da física.
Ao dar ao exprimível e ao lugar a mesma função de pas sa
gem, Diógenes Laércio assegura a comparação.
Da mesma forma como o mundo se cerca de vaz io,
de modo a poder respirar, estender- se ou contrair- se, as
sim também a fala se cerca de um espaço de silêncio, de
uma neutralidade e de uma indiferença que permitem ao
17. Ibidem, p. 69.
sentido existi r. Um espaço sem coerção determinada, adelon, nã o evidente, invisível e sem dúvida intangível, cuja
presença é simultânea ao discurso manifesto. Simultânea,
porque o vaz io não é posterior ao que é dito, como podería
mos crer ao pensar no silêncio que se segue a tod o discur
so ou nos esp aços "brancos" que pontuam a fala. Ele está
presente com e ao mesmo tempo que toda palavra pronun
ciada, que toda enunciação, seja ela qual for, pois é a con
dição mesma dessa enunciação.
No mundo plen o e ínt egro do estoicismo, tudo está
ali, perfeitamente síncrono e não em sucessão, como se se
guiria m, por exemplo, a condição e dep ois a realização, ou
de in ício o vazio e, em seguida, o mundo. Não. A cond i
ção est á compreendida naquilo que ela condicion á. como
se fosse seu núcle o e seu fim: se o vazio é a condição do lu
gar, ele permanece presente com e no lugar quando o lugar
emerge, visto que ele rep resenta sua dest inação final. O
mesmo se dá com a linguagem, quando as palavras priva
das de sentido (asemos) se apresentam em um a seqüência
de enunciações composta s, entrando no jogo da s signifi
cações , desse mod o adquirind o o sentido de que carecem;
seu não-sentido permanece presente nas enunciações mais
eruditas e mai s bem referenciadas como a condição de seu
sentido e (quiçá) seu fim últ imo .
Essa disposição particular, que gera simultaneamen
te dois momentos que estamos analisando separadamente
como uma condição e sua realização, não significa, contu
do, que o tempo seja abolido. Com efeito, aqui se rep ete o
44 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 45
mesmo jogo do lugar e do vazio, onde, como vimos, o vazio
está presente no lugar, fazendo-o render-se a sua imper
manência incorporaI. Naquilo que se refere à sucessão e à
simultaneidade, dá-se o mesmo: com efeito, o tempo, que
pensamos como próximo da impermanência, de cuja fu
ga nos ressentimos e cujo encaminhamento tememos, nos
escapa, mas não, ao menos é o que achamos, em sua mar
cha contínua para um futuro pressentido ou nas pegadas
de um passado que vai se apagando, e sim na própria cons
tituição de um presente que cremos reter.
Porque essa constituição do presente é aquela, para
doxal, de uma "sucessão simultânea": é assim que Hus
serI a nomeia!". Longe de abolir o desenrolar do tempo,
essa disposição que dá, ao mesmo tempo e conjuntamen
te, o presente e sua desaparição, revela sua natureza de
intervalo; realmente, segundo Crisipo, "o tempo é o inter
valo do mundo". Intervalo: em outras palavras, uma es
pécie de suspensão do movimento do tempo, uma pausa,
uma parada em seu contínuo desenrolar-se. Mas suspen
são ilusória, parada que vacila. A simultaneidade detém a
sucessão para ser reabsorvida logo depois e como que en
golida por ela.
Esse é o presente da fala, do dizer, um enunciado que
detém a seqüência de outros enunciados possíveis, uma
sucessão suspensa pelo tempo exato de se pôr no espaço
vazio do exprimível para cumulá-lo e dele fazer um lugar,
18. Edmund Husserl, op. cit.. seção 3, § 36, p. 101.
mesmo que esse lugar seja imediatamente varrido, engoli
do pelo movimento vindouro.
Então, o tempo aceitaria o vazio em sua própria consti
tuição, ele que se apresenta como ininterrupto, sempre flu
tuante, fiando sua linha imperturbável? É certo que ele não
admite vazio no curso de seu movimento, porque ele se
sucede a si mesmo na seqüência de instantes; da mesma
forma como o fluxo animado - esse sopro cálido, a alma
- que atravessa o mundo e o mantém em tensão, o movi
mento contraído do tempo mantém unida uma sucessão
de instantes independentes, frágeis, sempre vacilantes.
Poderíamos até dizer que o tempo é uma das figuras, uma
das manifestações desse fluxo cujas características ele
possui.
Contudo, o papel do vazio é patente, claro que não
como forma interveniente na integralidade plena do tem
po, mas como mecanismo que permite seu funcionamento.
Com efeito, dá-se com o temporal o mesmo que se dá com
o lugar e com o exprimível: eles emergem contra um fundo
de vazio que os contamina, sua existência é minada pela
incorporeidade do vazio à qual eles pertencem. Em outros
termos, o vazio (to kenon) acompanha o fluxo temporal, as
sim como o exprimível incorporai acompanha a lingua
gem. Dessa forma, uma oscilação entre vazio e lugar, entre
corpos de palavras que se sucedem e espaço do sentido in
corporai, rege a fala. E esta não é a menor das curiosidades
da tese estóica: que o campo da linguagem é aquele onde
mais nitidamente aparece o que se passa com o tempo; não
46 ANNE CAUQUELIN FREQüENTAR OS INCORPORAIS 47
que a disc ursividade da linguagem seja a metáfora do tem
po que passa e, de algum mod o, sirva de exemplificação
do duplo movimento do tempo, mas que o "linguajável"
intemporal tem a mesma estrutura do temporiz âoel, per
m itindo então apreendê-lo concretamente, objetivamente,
fora da subjetiv idade que afeta os estados de consciência
ligad os às in stân cias temporais. O instante cada vez úni
co, incessantemente recomeçado, no qual apreendemos em
um só movimento a aparição e a des aparição do tempo, é
justame nte aquele no qual a enunciação adquire sentido
em meio e no movimento de uma sucessão de enunciados
que imediatamente o anulam como enunciação.
Uma das grandes originalidades da teoria estóica e seu
ponto alto é o cruzamento dos "lugares" da física com os
da lógica, de tal modo que a ordenação dos elementos em
um dos campos explique e seja explicado, isto é, desdobra
do, evidenciado pela ordenação do outro. Com base nes
sa concep ção que liga os elementos da física aos da lógica,
a ponto de eles se interpenetrarem intimamente, os estói
cos não descuidaram de fazer a ética entrar no jogo global
de suas definições. Descobrir o vazio incorporal, o lugar e
o tempo desempenhando seu papel na doutrina moral dos
estóicos nã o nos surpreenderá, pois.
É verdade que a estranheza de suas sentenças acerca
da melh or conduta humana e das regras de vida a respeitar
pareciam tão provocantes a seus concidadãos e a seus co
mentadores que os debates se concentraram sobre o con
teúdo das proposições mais que - como seria necessár io
ter feito - sobre aquilo que as mo tiva: o esquema subja
cente que as relaciona entre si e, sobretudo, aquilo que as
relac iona à visão geral do mundo que a lógica e a física
oferecem ao mesmo tempo. Ora, é justamente o papel dos
incorporais, a natureza de suas ord enações, que possibilita
compreen der a maior parte da s prescriçõe s éticas preten
same nte contrad itórias ou escandalosas.
O incorporai no âmbito da ética
Realmente escandalosa é a questão (e a resolução) da
indiferença (to adiaphoron) e dos preferíveis (proegmena),
que até hoje continua a desafiar o bom senso.
Trata-se de prescrever ao sábio a indiferença diante de
tud o o que poderia afetá-lo, tanto pa ra o bem quanto para o
mal, de preservar um estado de ata raxia, que o torna indife
rent e às tribul ações do mundo externo . Inabalável, impassí
vel, ele deve atravessar a própria vida sem se deixar enredar.
Uma atitude dessas atrai imediatame nte críticas, mas, mai s
grave ainda, essa indiferença não exclui que o sábio prefira
algumas coisas a outras, o bem ao mal, a saúde à dor, e re
jeite os "irnpreferíveis" (aproegmena). Em que nível as dua s
atitudes podem ser compatíveis? Como, ind agam os comen
tad ores, perman ecer ao mesmo tempo em uma perfeita indi
ferença para com os objetos do mundo externo e, ao mesmo
tempo, reconhecer que há coisas preferíveis a outras?
Ao aborda r o suicídio judicioso do sábio, Plutarco não
deixa de assinalar a estranheza - a absurd idade - da situação
48 ANNE CAUQUELlN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 49
à qual conduz a contradição entre preferível e indiferença :
"Pode haver maior contradição para pessoas que alcança
ram o ápice da felicidade do que deixar os bens que elas pos
suem atualmente porque lhes faltam coisas indiferentesr?».
Cícero, por sua vez, tenta esvaziar a contradição remetendo
à questão dos fins: é preferível que o dado que eu jogo caia
para me fazer ganhar do que perder. Mas esse preferível não
é preferível em si, mas apenas em vista de um fim escolhi
do: ganhar a partida». O dado mesmo cai indiferentemente
de um lado ou do outro. É um modelo de indiferença. Devo,
então, ser como o dado? Mas se eu fosse constituído de mo
do semelhante ao dado e para mim tanto fizesse ganhar ou
perder, por que eu jogaria?
Indiferença e preferíveis
"Prefere o que amas", dizia Aristóteles. Sentença for
te, que faz apelo à decisão e ao desejo, linha de força pa
ra uma conduta de vida. Nesse sentido, a ação de preferir
é voluntária, afirmada. É tomada por uma pessoa certa da
própria escolha e determinada a fazer valer seu desejo.
Aqui, "amar" é uma afirmação que não se pode subesti
mar. A preferência só faz acentuar o sentimento do prazer
que o amor pode proporcionar, concedendo-lhe o primeiro
19. Plutarco, "Des contradictions des Stoiciens", em Pierre-Maxime Schuhl(org.), op. cit., p. 108.
20. Cícero, Les académiques: des biens et des mallx (trad. Cha rles Aphun,Pari s, Garn ier, 1935), 1Il, XV/XVI, pp. 290, 281.
lugar entre os outros sentimentos. É que nós estamos em
uma ética, aquela chamada "a Nicômaco", na qual a inves
tigação visa à felicidade .
Mesmo assim, a ação de preferir não tem essa resso
nância entre os estóicos, nem se situa no mesmo terreno.
Entre eles, não se visa à felicidade, mas à sabedoria: então,
estamos no terreno do conhecimento. História completa
mente outra! Com efeito, deixamos os territórios incertos
da subjetividade - um prefere isso, outro aquilo; para sicra
no, vale mais isso, para beltrano aquilo; alguém encontra
sua felicidade enquanto o outro ainda a busca , tantos juí
zos relativos, pouco seguros e indignos do sábio.
Contudo, mais uma vez, o que imp orta aqui não é tan
to a impassibilidade do sábio e a condução de seu raciocí
nio que estão em jogo, mas, antes de mais, a natureza e o
papel de uma noção como a indiferença no jogo das outras
noções . Porque existem bens e males, paixões e ações, co
mo corpos formando mundo (halos), no seio de um uni
verso (pan) que compreende esse mundo e o vazio que o
cerca. Essa comparação, que, a meu ver, é sobretudo uma
verdadeira equivalência, ajuda-nos a resolver a contradição
desvelada por Plutarco e registrada por Cícero entre a in
diferença afirmada e as preferências exibidas .
Com essa contradição, estamos com efeito na mesma
situação desconfortável de antes com a contradição susci
tada pelo lugar do mundo no vazio: enquanto situado no
vazio, o mundo deveria aniquilá-lo como vazio e transfor
má-Ia em Iugar. .. No caso dos preferíveis e da indiferença,
50 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 51
a indiferença também deveria ser aniquilada pelos preferí
veis, porque o que é preferido traz consigo a distinção e a
diferença; de um lado, com efeito, o preferido exibe sua di
ferença, por outro lado, aquele que prefere sai de seu esta
do de indiferença.
Mais do que rodear o problema, acumulando exemplos
artificiais, tentemos pensar a indiferença como se se tratas
se do vazio incorporaI. Teríamos ali um espaço de senti
mentos sem nenhuma inclinação, nenhuma orientação, um
espaço indefinido, sem limites, sem alto nem baixo: tudo ali
é igual e igualmente sem peso; nada de atração, nem ten
são, nem pressão, um estado de microgravidade. Da pura
indiferenciação, um estado de impreferibilidade total, como
aquele que Bartleby apresenta humildemente diante de to
da pressão ou apelo da parte de seu patrão, mesmo quando
se trata de algo completamente a seu favor».
Não obstante, há uma diferença entre a indiferença es
tóica e a impreferibilidade de Bartleby: é a extrema mobi
lidade da primeira e a rigidez da segunda. Bartleby jamais
abandona uma impreferibilidade que é também uma impe
netrabilidade : ele está surdo ao mundo que o cerca e não
sente nenhuma afeição por ele, até morrer. Por sua vez, a
indiferença estóica é um estado "apto a acolher corpos" e, Io
ga, a se aniquilar como indiferença ... o tempo de uma pre
ferência, de uma distinção. Assim como o vazio incorporaI,
21. Herman Melville, Bartlebv, lhe Scrioener, 1853 [ed, br.: Bartleby, o escrivão (São Pau lo, Cosac & Naify, 2005)].
que aceita um corpo durante o tempo de se tornar um lu
gar e depois recua a seu estado primeiro, ou como a lingua
gem, cuja parte incorporaI, o exprimível, aceita conter um
corpo de palavras para logo depois substituí-lo por um sen
tido incorporaI e, enfim, assim como o tempo, que é capaz
de conter um corpo: o presente, mas se fecha sobre ele, en
golindo-o na sucessão, a indiferença acolhe a diferença, mas
permanece implicitamente contida no ato dessa acolhida .
Dessa forma, os preferíveis formam corpos, ilhotas
corporais bem definidas, de contornos nítidos, que emer
gem contra o fundo indiferenciado do espaço mental, fun
do que permite, que possibilita sua emergência, assim
como torna perfeitamente possível sua desaparição. A in
diferença se encerra sobre si mesma e retoma à substância
do vazio, não sem antes ter deixado sua marca sobre o ob
jeto preferido: a sombra de um acontecimento.
Assim como o lugar vacila nos limites do vazio, apare
ce e desaparece segundo o movimento dos corpos, os pre
feríveis nascem e se desvanecem ao menor sopro da alma
que os leva ora à distinçã o, ora ao apagamento. Portanto,
em torn o do vazio incorp oraI também se articulam tanto
elementos lógicos como o exprimível, como elementos éti
cos como o ind iferente e os prefer íveis. Aqui, assim como
vimos que ocorria com a física do mundo ou a natureza da
linguagem, o vazio incorporaI permite apreender o que, ao
senso comum, parece contradição.
No espaço da doutrina estóica, o vazio incorporaI tam
bém desempenha o papel do quadrado vazio no jogo de
paciência: ele permite mover os peões, inserindo um espa
ço neutro, indiferente, por onde podem tran sitar as peças
do jogo sem que por isso elas percam suas característi cas
próprias . Zero essencial, espaço hesitante de uma sombra,
o incorporai permite respirar fora, mas muito perto do cor
po que ele acompanha.
Para admitir essa figura de pensamento estranha a
nossa lógica ordinária, não há dúvida de que é necessário
renunciar a vários princípios ou idéias que nos são costu
meiros: por exemplo, à idéia de uma sepa ração entre espí
rito e matéria, visível e invisível, e, paralelamente, à idéia
de uma equ ivalência entre invisibilidade e imaterialidade,
assim como entre imaterialidade e espiritualidade. Assim
como é preciso renunciar à idéia que geralmente se faz do
virtual como recobrindo os campos do invisível e do ima
terial, a isso acrescentando uma pitada de mistério: a idéia
de uma força oculta, de um a potência obscura que tende a
se realizar segundo as ocasiões que se lhe apresentam.
É todo esse conjunto de pré-conceitos que devemos
passar pelo crivo do incorporai estóico, não porque fosse ne
cessário conceder-lhe mais crédito que às noções comuns
de hoje, mas porque ele aparece como um excelente instru
mento crítico diante de nossas práticas contemporâneas.
52 ANNE CAUQUELlN
' .,.;~l. ,
SEGUNDA PARTE
OS INCORPORAIS NA ARTE CONTEMPORÂNEA
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o camp o onde podemos examinar a questão do incor
poraI e, ao mesmo tempo, testar sua utiliz ação e sua eficá
cia hoje não é mais o da física, nem o sistema do mundo
- os físicos, os astrônomos, os matemáticos ocupam-se de
le e fazem malabarismos com as partículas, os fluxos, os
quanta - , um terreno no qual não me atreveria a segui-los.
É, cur iosamente, em uma região que os estóicos não abor
da ram, a região da arte, que se põe a questão do incorp o
rai ou, mais exatamente, a ques tão do corpo. Com efeito, é
nesse campo que o incorpora I é evocado. Mesmo que ape
nas indiretamen te e como por inversão porque, em vez de
fazer a pergunta diretamente, a li mesmo: "O que é um in
corporal?",a pergunta é feita de revés: "Por que o corpo es
tá ausente da arte contemporâ nea?".
Isso pode sur pree nder, mas é fato que a demanda de
corpo no domínio artístico é um a exigência atual, repetiti
va, obstinada, lancinante. Com efeito, tornou- se um tema
56 ANNE CAUQUELIN FREQÜENfARos INCORPORAIS 57
quase inevitável nos debates sobre a arte contemporânea,
especialmente a partir do momento em que se passa a tra
tar da art e chamada digital. O corpo ainda existe? Não
existe mais corpo, o corpo próprio do artista se ausentou,
são as máquina s que operam ou que pintam, calculam, in
ventam. Mas elas inventam precisamente? Aliás, que má
quinas? Existem máqu inas e máquinas, e se tomarmos
esse caminh o, é preciso reconhecer que o próprio corpo
tamb ém é uma máquina. E agora? Não se consegue pa
rar de revirar e requentar essas questões em todas as con
versações e ocasiões mundanas. Pré-conceitos e bordões
convencionais são constantemente repetidos: obra "feita
a mão" contra técnica, concreto contra abst rato, emoção
contra frieza. Ah! A emoção... o indizível, justamente . É
ela, a emoção, que nos transporta. Como? Para onde? Ru
mo a quem? Na direção de quê? Não se sabe . Não obri
gatoriamente na direção do belo, mas rumo à arte : out ro
mundo, ma is longínquo, remoto. Porque isso transcende,
isso deve transcender. Como, então? É o corpo que serve
de plataforma para a outra margem, lá onde precisamente
não há mais corpo, apena s espírito, ou o espiritual, como
se diz? Já podemos ver que as coisas se complicam. Nad a
parece realmente claro nessa reclamação.
Queremos o corpo. Mas o corpo, na arte, é tudo o que
se quer: a mão do arti sta, que tensiona o corpo todo pa
ra a ação; essa tensão é também, evidentemente, o espíri
to, cosa mentale, que dir ige a mão; corporal é a prática, que
provoca o exercício, mas corporais são também a medita-
. i
ção, a inteligência sem a qual prática alguma existe. Corpo
é tamb ém a obra, que é material: tela, pigmento ou pedra,
mármore, mad eira, cimento; corpo também são todos os
tipos de instrumento, e os suportes; depois, os instrumen
tos e as máqu inas - porque são necessários, para misturar,
carregar, tran sportar, suspender, depositar, instalar. Ao
corpo próprio do artista, juntam-se também os elementos
de seu meio. Em suma, chama-se corpo tudo o que se rela
ciona ao criador, trate- se de espírito ou matéria. Digamos,
então, que esse corpo tão altam ente reivindicad o é pura e
simplesmente o ind ivíduo, cuja presença "por trás" da obra
se quer sentir. Mas essa presença é, ela mesma, corporal?
Não se trata, ao contrário, de um incorp oral. inapreensí
vel, impalpável? E esse "por trás da obra" não é, ele também, intangível?
Eis-nos reconduzidos, sem ter avançado em nada, à
questão inicial: que queremos dizer com corpo quando rei
vindicamos o corpo, ou quando pretendemos que () corpo
esteja presente, a despeito das aparências, como no caso do
digital, por exemplo?
É preciso decidir-se a pensar que essa reclamação é
desprovida de sentido, que ela não significa, ao fim de tu
do, nada além de certo mal-estar diante do estado "gasoso"
da arte contemporânea'? Ou antes, e de modo mais geral,
tratar-se-ia precisam ente do sentimento de inquietude que
1. Constatado e denu nciado, não sem vervc, por Yves Michaud em Lar! àl'état gazellx (Paris, Stock/H achetle Littératures , 2003).
58 ANNE CAUQUELIN FREQ üENTAR O S INCO RPORAIS 59
acompanha uma desaparição, a do corpo, que se torna ob
jeto de manipulações tecnobiológicas? Então, compreen
deríamos melhor a verdadeira proliferação atual de textos
sobre a importância do sexo, sobre a erotomania ou a por
nografia-. Tudo se passa como se o sexo passasse a ser o
ponto focal da resistência às máquinas abstratas, à preten
sa imaterialidade da matéria. Fechados em torno de sua se
xualidade, os humanos, enfim, só teriam uma prova de sua
identidade: o prazer do coito e a capacidade de se repro
duzirem. Dessa forma, a peça de acusação contra todas as
formas de arte que parec em quest ionar a corporalidade da
obra e a corporeidade do artista não perde sua intensidade,
justamente o contrário.Ora, e isso pode parecer bem estranho, nunca existiu
mais corpo nas atividades artísticas do que na arte atual: a
maioria das obras que nos são mostradas são plenamente
corporais; entendamos com isso que elas se ocupam, ante s
de mais, do corpo: a dança, que ocupa um lugar de primei
ro plano, ao mesmo tempo, nos espetáculos e na literatura
- teórica e crítica - , depois as instalações de objetos cotidia
nos, bana is, Íntimos - ou seja, escolhidos nas cercania s do
corpo do autor - , ações triviais, repetitivas, freqüentemente
domésticas, reconstituição de apartamentos ou de hotéis; ou
ainda as intervenções que oferecem mutilações, tatuagens,
posturas forçadas, bifurcações protéticas diversas e trans
formam o corpo humano, a ponto de às vezes transformá-
2. Excetuando os livros , um jornal como o Libération pub licou co tidianamente, em julho e agosto de 2005, um volum oso caderno sobre sexo .
. !
,I
lo em algo irreconhecível. Ao lado dessas obras expostas de
maneira definitivamente tradicional, atualmente uma arte
biotech se instala, utilizando os recursos da cirurgia do en
xerto, da clonagem e as pesquisas genéticas. A arte biotechvisa a uma reconciliação corpo/máquina por meio de mani
pulações das culturas de tecidos, do capital genético, crian
do então, não a tran sformação de corpos já constituídos,
mas procriando, por assim dizer, novos tecnocorpos.
O rlan, o artista expon encial das operações cirúrgi
cas e das manipulações dig itais que lhe permitem tran s
formaç ões fisionômicas, abandona-as hoje para se dedicar
a experiências biotecnológicas. Seu projeto: assar em bior
reatores culturas de sua própria pele hibridizada com a de
um doador negro para dar continu idade a sua série de au
to -retratos africanos feita com mat éria viva. Martha de
Menezes expõe auto-retratos que representam seu cérebro
em atividade ut ilizando a resson ância magnética, que per
mite visua lizar em tempo real o funcionamento do cére
bro. Oron Catts e lona Zurr implementam culturas vivas
a partir de sua própria pele, visando fazer com elas bo
necas híbr idas e semivivas, que eles alim entam em úteros
artificiais; Art Orienté Objet também propõe aos colecio
nadores auto -retratos biotech para serem enxertados; Dalia
Chauveau (L'agence pour le clonage) e Cath erine Ikam tra
balham, por sua vez, sobre e com a clonage m'.
3. Cf. o ca tá logo da expos ição L'Art Biotc ch (Nantcs, f'iligm nes , 2(03). Cf.tam bém a revis ta ETC (Mon trea l, n . 68, " Portrait de soi", 2004 -2llllS), especia lmente o artigo de Ch ristinc Pa lmicri, " De l'expression de soi à l'exprcss íon de la ma -
60 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 61
Portanto, temos corpo, e bastante, na arte contemporânea, e a reivind icação de que falávamos parece, diante dis
so, ainda mais intrigante. Em contrapartida, não deixa deser verdade que as obras desse tipo não são percebidas pelo público como arte, quando, aliás, ele chega a conhecê-Ias
- o que é raro. Acontece, então, que ao lado de obras percebidas como realmente "corporais", outras são percebidas como sem corpo, isto é, "sem arte". Parece, contudo, que não
se trata, de modo algum, de reclamar corpos representados,nem de figuração; seja com a escultura, a pintura, o vídeoou a fotografia, a questão da abstração parece ter sido en
tendida, assim como a da art e conceitual. Se isso incomo da, é, pelo menos, suportável e, aliás, admitido: é assim. Nãose trataria, portanto, dos corpos nasobras, mas do corpo daobra e o corpo do artista como objeto de reivindicação.
Mas, e aqui temos outra curiosidade, se o corpo é reivindicado, o incorporai não está excluído. Para dizê-lo em outrostermos, a arte é um lugar onde se manifesta uma exigência de
"imaterialidade",ao mesmo tempo que uma exigência de corporalidade.A transcendência é exigida: qual, como, de que espécie é essa imaterialidade, transcendência, invisibilidade ou
incorporeidade? Temosaqui um assunto bem misterioso.Além de uma questão de terminologia, de uma distin
ção entre os termos, é evidente que essa parte de incorpo
rai é um elemento importante na percepção que o públicotem das obras e que esse elemento tem parte e papel tantona atividade do artista como na do espectador. Tentar elu-
tiêre", a revista Cit és (Paris, PUF, n. 21, "Refaire son corp s; corps sexué et identit és",2005); e o Dictionnairedu corps (Paris , PUF, 2006).
cidar os termo s, apreender qual é essa parte é justamentemeu propósito aqui, mas meu intento será também dizer
que as questões do nada e do vazio não coincidem necessariamente com as questões do invisível ou do indizível,que a desmateriali zação não responde aos mesmos requi
sitos respondidos pelo imaterialismo e que o imaterialismo não está obrigatoriamente ligado ao espiritualismo eao misticismo. É nesse ponto que a teoria dos estóicos so
bre os incorpora is pode ser útil, até mesmo indispensável,para resolver as confusões.
Esses termo s têm claramente certo ar de parentesco
entre si, o que facilita os mal-entendidos. Mas, assim co
mo em uma família, na qual os diversos membros puxam
a um ou outro lado, também aqui os termos se aproximam
para melh or se distinguirem; não há nenhuma regra que
prescreva que invisível signifique religioso, ou que o "na
da" seja obrigatoriamente o nirvana, ou ainda que seja ne
cessário ader ir à filosofia zen para falar do vazio ou dá-lo
como exemplo. Não há dúvida de que é por falta de recor
rer às obras em si e de seguir suas pistas que muita s vezes
se teoriza "no vácuo".
Portanto, tentarei convocar as obras a partir de agora,
e isso sob o regime dos quatro incorporais estóicos.
A arte desmaterializada
Comecemos pela primeira das causas geralmente evo
cadas quand o falamos da perda do corpo:adesmaterialização
62 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAROS INCORPORAIS 63
daarte, título do livro de Lucy Lippard-. Desmaterialização:
é como Lippard qualifica o movimento que leva os arti s
tas americanos dos anos 1960 a renunciar ao objeto de ar
te único, classificado por gênero autônomo e valendo por
si mesmo, segundo a tradição modernista, e a se interessar
por sua minimização, por seu relacionamento com outras
atividades artísticas como a dança, o teatro, as performan
ces, a música, tudo isso acompanhado por um gosto pelo
comum, pelo cotidiano; em suma, a trabalhar para fazer
desaparecer todas as marcas de "grande arte", de arte mo
numental, de identificação possível dos autores, dos gêne
ros e dos objetos enquanto arte em si. Limpa-se a cena da
arte, abre-se espaço. Vista dessa forma, a desmaterializaçãoé um empreendimento que tem suas próprias regras, seus
conceitos, suas práticas, poderíamos dizer: sua ideologia. A
art e deve se libertar de seus vínculos com o sistema da arte;
é uma crise de independência que se apodera dos artistas
durante os six years descritos por Lucy Lippard . E, como to
da ideologia, ela tem seus santos padroeiros, os padres fun
dadores dessa nova prática.
Não é nosso objetivo tentar fazer aqui uma hierarqui
zação, nem um histórico das entradas dos artistas no ce
nário da arte - saber se elas são inaugurais ou não -, nem
ainda comparar sua influência recíproca, mas testar a rela
ção de suas obras com o incorporaI; com efeito, se os auto-
4. Lucy Líppard, 5ix Years:TIle dematerialization of theArt Object f rom1966to 1972 (Londres, Stud i Vista, 1973).
res ut ilizam os termos "desmaterialização" ou "imaterial",
o que é que isso significa, e em que medida suas obras são
conse qüentemente "incorporais"?
Com efeito, uma ambigüidade ma ior pesa sobre o ter
mo "desmaterialização": não se trata minimamente de pra
ticar uma atividade artística que disp ensaria os materiais;
os materiais estão lá, e bem lá: toneladas de terra , de aço,
de madeira, de suportes os mais diversos. Chega até a ha
ver no minimali smo rebuscado uma espécie de gigantis
mo, dado que minimizar e desmaterializar são operações
políticas, culturais, decorrentes da exploração das obras e
do sistema de vendas, bem como do princípio de separa
ção dos gêneros, mas não das matéria s utilizadas no traba
lho artístico. Trata-se de uma relação metafórica que a arte
desmaterializada mantém com a desmaterialização.
Contudo, por mais metafórico que tudo isso seja, ele não
deixa de ter um efeito sobre o conjunto das práticas da época,
às qua is se põe a questão do "como". Como se desembara
çar de formas de fazer habituais, como perseverar na prática
da arte escapando às convenções? Curiosamente, as respos
tas à pergunta pelo "como" encontram -se no âmbito de uma
reflexão sobre conceitos com os qua is já deparamos: são os
quatro incorporais dos estóicos: o vazio, o tempo, o lugar e o
exprimível, que vão estar no centro das diversas "desmate
rializações", e isso desde os anos 1960 até hoje.
Proponho-me a estudar cada uma dessas noções em
relação com o que ocorre e com o que ocorreu no camp o da
arte: cada uma delas é, com efeito, ut ilizada tanto nas pr á-
THE BIG N OTHING
Capítulo do vazio e do lugar
ticas como nos discursos que as acompanham - e eu acres
centaria: no mais das vezes, sem o saber.
65FREQüENTAR os INCO RPORAIS
da do vazio, que tem na scimento nas primeiras décadas
do século xx, não foi invalid ada depois, e o vazio - sejam
quais forem os aspectos pelos quais ele se manifestou
não abandonou facilmente a cena da arte. Várias geraç ões
de artistas se filiam ao pensamento do vazi o segundo mo
dalidades particulares, mas a preocupação é comum: a land
art, com Smithson sobretudo, mas também Oldenburg e
Roshenbach, e de Klein a Robert Barry, passando por
FiIloux e [ohn Cage, enquanto Barthes e Blanchot (e até
mesmo Wittgenstein!) são cham ado s em seu socorro .
A exposição The Big Nothing do In st itute of Con
temporary Art (ICA) , Filadélfia (maio-agosto de 2004), reú
ne os artistas do "grande nada", e a lista é impressionante:
lá estão Bas [an Ader, Ayreen Anastas, Richard Artschwager,
Michael Asher, Michel Aude r, [o Baer, Robert Barry, Lar
ry Bell, Bernadette Corporation, [ames Lee Byars, Maurizio
Cattelan, Thom as Chimes, Bruce Conner, Day Without
Art, Jessica Diamond, Roe Ethridge, Lili Fleury, René Gabri,
[ack Goldstein, Kath arina Fritsch, Dominique Gonzalez
Foerster, Nicolas Guagnini, Heavy Indu stries, Richard Hook,
Roni Horn, Pierre Huyghe, Gareth [ames , Ray [ohnson,
Yves Klein, [oachim Koester, [utta Koether, Yayoi Kusama,
Loui se Lawler, Gordon Matta-Clark, Allan McCollum, Pa
trick McMullen , [ohn Miller, Matt Mullican, Eileen Neff,
Gabriel O rozco, Raphael Ortiz, Charlemagne Palestine,
Philippe Parren o, WiIliam Pope L., Doris Salcedo, Karin
Schneider, Allan Sekula, Arlene Shechet, Santiago Sier
ra, [ohn Smith, Robert Smithson, Paul Swenbeck, Rirkrit
ANN E CAUQUELlN
A forma do vazio, ou o vazio, é uma tentação e um de
safio para o pintor, o escritor, o poeta, o alpinista, o arqui
teto, sei lá eu para quem ma is. Toda construção é um jogo
de equilíbrio entre o vaz io e o cheio, fala e silêncio, repou
so e movimento, até o ma is simples gesto que alie o cheio
e o solto.
Constatação banal, mas que assume um relevo parti
cular com alguns trabalhos de artistas. Para alguns, o va
zio não é apenas um componente na geometria de uma
obra, que entra em relação com as formas cheias, a ten
são e o peso, mas é encarado como valor em si, se não for
considerado o valor final, a meta, o completamento. A mo-
"Desenhe a forma do vazio", dizia o professor de
desenho na época do liceu . Dito dessa forma, isso me pa
recia absurdo, mas, na realidade, tratava-se apenas do in
tervalo entre o vaso e sua asa: um espaço que, a meu ver,
fazia parte do vaso, isto é, do cheio. Pois, sem esse espaço,
não haveria asa, e o vaso teria sido um pote. Isso porque
dizia eu - o cheio e o vazio são a mesma coisa, esforçando
me em vão para explicar isso ao professor.
64
66 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 67
Tíravaniia, Andy Warhol, James Welling, [ohn Wesley, Steve
Wolfe, David Hammons e Sharon Lockhart (The Fabric
Workshop and Museum, Filadélfia). ..
O ICA tenta organizar esse conjunto classificando seus
temas, motivos, influências e intenções, sem explicar, po
rém, o que impulsiona os artistas para o grande nada e co
mo eles entendem e exploram esse chamado.
Pouco importa que seja a influência do pensamen
to oriental, a moda da filosofia tao ísta, a moda do zen re
transmitida pelos escritores, porque a busca das causas
não deve nos levar a procurar a causa das causas, à inves
tigação do primeiro quem... Na realidade, o que importa
é que o amor ao vazio atinge a arte contemporânea de di
ferentes maneiras e que é isso, a maneira como esse amor
se manifesta e o que então é posto em jogo, que interessa
a nossa proposta: de que vazio, de que sem corpo se trata?
O que é que se sub tende pela palavra "vazio"? Poderíamos
tentar iluminar esse nada recorrendo ao que sabemos so
bre os incorporais?
Formas do vazio 1: o buraco
É uma idéia comum que, em dado dispositivo, o vazio
é um buraco. Há algo de negativo lá dentro, há uma falta
(um buraco no caixote), um defeito de fabricação, um er
ro em algum lugar. Nesse caso, o vazio sempre sobrevém
em um dispositivo que já está aí, já está formado, e que
o vazio vem interromper, enviesar, ou até mesmo aniqui-
lar. Ele pode ser decorrência de uma falta de vigilância, de
uma falha humana ou de um erro da natureza, da degra
dação das coisas ou da deficiência de um sistema (o bran
co na memória).
Mas quando executado conscientemente, segundo um
projeto bem definido, ele põe em risco uma estrutura exis
tente e se torna provocador; é praticamente uma manifesto:
é o caso do Placid Civic Monument (1967), de Claes Olden
burg, que consiste, por ocasião de uma exposição de escul
tura, em um buraco escavado no Central Park e enchido
com um volume de terra equivalente àquele que foi retira
do. Buraco concreto, bem real, praticado na terra com uma
pá, mas também buraco como metáfora de uma desmate
rialização e destruição do sistema de exposição existente,
bem como do monumentalismo: um monumento oco co
mo ilustração da forma do vazio.
Operação semelhante no deserto com os artistas da
land art, eles também desmaterialistas. Exemplo: DoubleNegatioe, de Michael Heizer, para o qual ele desloca duzen
tas toneladas de terra . Aqui, o jogo de ir e vir entre vazio
"plano" (o deserto, horizontal) e vazio profundo (o buraco
cavado, vertical) é duplicado com um jogo entre o longín
quo, situado fora do alcance do espectador, e o documento
(foto) exposto em uma galeria: de algum modo, um des
mente o outro, e o conjunto da operação "desmaterializa"
ao mesmo tempo a galeria (que não expõe a obra), o docu
mento (dado que não se trata de um original) e a própria
obra, que se mantém invisível. Mas essa desmaterializa-
5. Ibidem, p. 263.6. Mesmo que se recomende o acontecimento efêmero, incompleto ou não
gravado.
ção existe apenas com uma condição, a de se atribuir ao
termo "desmaterialização" o sentido de uma rejeição da
instituição da arte, de sua realidade mercadológica, encar
nada pelos museus e pelas galerias. "Parecia que os artis
tas seriam libertados da tirania do mercado da arte e do
aspecto comercial das obras."> Quanto à desmaterialização
que consistiria em se desembaraçar da matéria concreta da
obra, ela está completamente fora de questão'. Ora, essa
interpretação restringe a desmaterialização a sua dimen
são política, sociocultural, com isso fragilizando sua pró
pria realização. Excluir-se da instituição não gera o efeito
desejado, pois o objeto (a obra) exportado deve, por fim, ser
repatriado ao seio do sistema do qual desertou, sob pena
de permanecer no estado de uma tentativa não transfor
mada, isto é, não reconhecida, até mesmo não conhecida.
A exportação é um ato que isola a obra no não-reconhe
cimento, e será necessário então recorrer a um sistema de
mediações, por sinal bastante complicado, para que a ga
leria desempenhe seu indispensável papel de indicador. A
galeria ou o museu permanecem como o pivô do movi
mento de exportação das obras e recolhem piedosamen
te as pistas documentadas do exílio. As revistas (Artforumpara Incidents of Mirror Travei in the Yucatan, de Smithson,
ou Sun Tunnel, de Nancy Holt), os filmes (a Galerie iéléui
suelle apresentou em 1969 as obras de Smithson, De Maria,7. Paul Toncr, "Interview with Robert Smithson" (1'170), em [ack Piam
(org.), Robert Smithson: the collected writings (Bcrkeley, University of CaliforniaPress, 19'16),pp. 234-41. Cf. ainda o artigo de Suzanne Paquet, "Une nouvclle topographie, l'art de la périphérie", Revue d'Esthétiquc (Paris, n. 46, 2005).
8. Lucy Lippard, op. cit., p. 223.
Heizer, Dennis Oppenheim, Barry Flanagan, Ian Dibbets
ou Richard Long) se encarregam de retransmitir a informa
ção da qual são os amplificadores, como esclarece Smith
son: "Por mais longe que você vá na periferia, a arte é
sempre retransmitida de uma maneira ou de outra, existe
um retorno de informação'".
Não. A arte desmaterializada não terá lugar, conclui
Lucy Lippards,
O movimento que pretendia rejeitar a arte das gale
rias e das exposições tradicionais, situar-se externamente,
em todos os sentidos da palavra, não conseguiu impor sua
regra, e a cena da arte continua não só a utilizar os ingre
dientes habituais, como ainda sofre uma nítida inflação das
mediações culturais. Ficou demonstrado que elas são indis
pensáveis, até mesmo - e sobretudo - no caso em que se
pretenda negá-las. Apesar desse semifracasso da desmate
rialização no sentido em que a ela aspiravam críticos e artis
tas dos anos 1970, algo aconteceu que deslocou as apostas,
subverteu os papéis, revirou a paisagem. "Não há nada pa
ra se ver" ou "busquem em outros lugares" tornam-se pa
lavras de ordem das próprias galerias. Desse modo, elas
entram no diapasão dos artistas, pretendendo elas mesmas
se esvaziarem de seus sentidos, de modo a poder continuar
a desempenhar seu papel de lugar incontornável.
69FREQÜENTAR OS INCORPORAIS,fI'
I
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I
ANNE CAUQUELIN68
70 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR os INCORPORAIS 71
Leitmotiv que insiste que essa passagem do vazio ao
lugar e do lugar ao vazio, com as inversões constantes de
posição no seio de um espaço que não pára de registrar es
sas idas e vindas, esses revezamentos-junções, e sem que
se possa realmente saber que posição crítica adotar em ca
ráter definitivo. Em contrapartida, o que se deve escavar,
nesse dispositivo, é a noção de deslocamento, o movimen
to que também leva a pôr o que se quer depor, a posicio
nar permanentemente o desposicionamento. É preciso ver
nisso uma manifestação ligada ao estatuto incorporal das
duas entidades do lugar e do vazio? Para sabê-lo, tentemos
ver em funcionamento o movimento de deslocamento.
Do DESLOCAMENTO COMO OBRA
As operações "in-site/ex-sites" desorientam o olhar
- sempre suposto como o órgão de transmissão predomi
nante para as artes plásticas -, quando não escapam intei
ramente a ele.
Com efeito, sabemos que os sítios da landart america
na são de acesso extremamente difícil, ou categoricamente
invisíveis, como o Spiral Jetty, de Robert Smithson, reco
berto de água a maior parte do tempo. Se, para os espec
tadores, o deslocamento para o "lugar da obra" se faz em
raríssimas ocasiões, quando não é desnecessário, se o des
locamento do artista é sugerido e suposto, mas não é certo
- só se tem como prova os documentos que o próprio artis
ta apresentou -, de que deslocamento se trata, então? Com
a obra permanecendo fora de visão, entramos no campo da
ficção, da incerteza: o que vejo aqui (na galeria) é crível? O
objeto - indicado como ausente - existe realmente? O des
locamento que se exibe como tal não oculta muito simples
mente a desaparição ou a inexistência?
Com o deslocamento - que é, aliás, o título de uma
obra de Smithson -, a questão do lugar da obra é perma
nentemente suscitada: onde está ela, e se está em alguma
parte, de que natureza ela é? É a landart que suscita com
mais intensidade a questão do jogo de equilíbrio entre o
vazio e o lugar. Qual é o lugar dos "não-sítios" de Robert
Smithson? Dessa forma, fragmentos de rochas extraídos
de um sítio supostamente real e expostos em uma gale
ria, onde um documento pregado na parede "completa" a
obra. Junção de fragmentos do sítio e de alguns documen
tos, portanto. Outro exemplo, Non-site, Franklin, New [er
sey é composto de um recipiente com minerais que toma
a forma trapezóide de um ponto de fuga truncado e seg
mentado, de um mapa aéreo de Franklin rasgado segun
do a mesma forma, de 25 fotografias do sítio e de um texto
explicando em pormenores o formato do recipiente e a es
cala do mapa.
Um buraco foi escavado em um sítio para dali extrair
fragmentos, depois esses fragmentos foram deslocados pa
ra um "lugar", ou seja, para uma galeria - pertencente ao
sistema de galerias. Os cacos de materiais encontrados no
fundo do buraco são então instalados na galeria, que passa
a ser por isso um lugar, mas um lugar trabalhado por seu
72 ANNE CAUQUELIN t FREQÜENTAR os INCORPORAIS 73
negativo, o vazio; vazio que, nessa circunstância, subsiste
no interior do lugar como aquilo que o ameaça, e cujo ras
tro se expõe concretamente no paralelepípedo preenchido
por fragmentos.
Aqui, estamos verdadeiramente no jogo do vazio e do
lugar, mas aquilo que, a um primeiro olhar, parece dia
lético revela-se completamente diverso, pois em nenhum
momento os dois contrários se encontram sob um concei
to mais amplo que os englobaria negando todos os dois:
a contradição permanece aberta, movente, em incessante
alerta, nunca cumulada. Dessa forma, o empreendimento
que consiste em esvaziar os lugares equivale a permutar
lugar e vazio em uma espécie de dança circular, na qual,
quando um está vazio, o outro está cheio, com o vazio pa
recendo escapar a toda apreensão intencional.
Contudo, se essa maneira de fazer o vazio não dá os
frutos que se poderia esperar, ela apresenta o interesse
de chamar a atenção para a fragilidade dos lugares e pa
ra a presunção de uma abordagem de tipo espacial, ou de
uma aproximação em termos de crítica sociopolítica, que
era justamente a norma e o motivo das proposições críticas
dos artistas dos anos 1970. Essa dança contrastada pode
ser compreendida como crítica ao sistema existente, como
vontade de retorno ao natural, se não à natureza (a grande
natureza selvagem americana), como contestação ao arti
fício museológico (o movimento de revolta contra a insti
tuição faz parte da cultura dos anos 1960), como culto à
mobilidade e à rapidez (a culture car), e, desse modo, todas
If
I
as espécies de razões pertencentes à história da arte e à so
ciologia podem ser apresentadas.Nenhuma delas é verdadeiramente satisfatória, mes
mo que, no que se refere à land art, por exemplo, todas elas
tenham sido aceitas, até mesmo sustentadas e comentadas
pelos próprios artistas; em todo caso, nenhuma delas corres
ponde à situação atual. Com efeito, o debate sempre ardoro
so entre partidários do sítio specific e do context, ou place site,
abandonou parcialmente a cena político-ética e se deslocou
para o urbano em geral. Não são mais os "lugares" como os
museus, galerias ou lugares predeterminados na cidade ou
os desertos que estão em causa, mas o deslocamento em si,
portador, com as novas tecnologias, de outra concepção dos
lugares e do vazio, concepção que só pode ser abordada em
termos de suportes móveis e de incorporeidade.
VAZIO, LUGAR E SITIO SPEClFIC
É o mesmo jogo, mais aberto porque referente à ques
tão do global e do local, da globalização e de seus efeitos,
que está na base do debate em torno do in situ e do sitespe
cific, ainda hoje atual. Não se trata mais, nesse debate, de
abandonar a instituição, de ali fazer o vazio e de exportar o
"lugar" das obras para um alhures mítico. Esse empreen
dimento mostrou sua fraqueza, e a instituição saiu forta
lecida disso.O que acontece, então, de semelhante e ao mesmo
tempo de diferente com o site specific? O sítio onde se en-
74 ANNE CAUQUELlN FREQüENTAR OS INCORPO RAIS 75
contra uma obra que lhe é manifesta e intencionalmente
consa grada é, de acordo com o que nós sabemos dos incor
porais, um lugar. Ele contém um objeto, um corpo, a obra.
Enqu anto tal, ele é para si mesmo sua própr ia galeria ou
museu. Uma obra "i11 situ " produz o lugar que ela mesma
ocupa e se confunde com ele. Essa vinculação a define en
quanto "obra site specific". Portanto, o que imp orta para a
definição não é o sítio que teria uma especificidade notá
vel, nem tampouco a obra, mas o vínculo entre os dois. O
vazio parece ausente desse dispositivo, no qual só apare
cem o fixo, o propósito confesso, a finalidade programada,
o lugar ocupado por um corpo. Então, onde está o debate?
Por que e a partir de que ele é travado? Será que é a ausên
cia de vazio que o provoca? Porque esse lugar-obra fechado
sobre si mesmo, tão completamente vinculado a sua pró
pria ident idade espec ífica, proclama mesmo assim sua in
completude; ele clam a por aquilo que lhe falta, reclam a um
invólucro, um amb iente, um espaço no qual se estender,
um espa ço não ocupado por corpos: simplesmente um in
corporal, o vazio.
O site specific torna-se, pois, um lugar a part ir do mo
mento em que contém um corpo (a obra), ma s, mesmo as
sim, esse lugar carece daquilo que, em contrapart ida, é o
apanágio de uma galeria, de um museu ou de qualquer ou
tro espaço de exposição: a possibilidade, por assim dizer,
"nua", de acolher corpos, isto é, de ser fundamentalmen
te vazios. A galeria ou o museu são, com efeito, vazios, na
medida em que podem acolher qualquer corpo, a qualquer
momento, sem nunca ficar vinculados àquilo que expõem,
a não ser pelo renome mutuamente alcançado, as obras
deixando uma parte delas mesmas - a fama, o renome - in
corporalmente vinculada às galerias que as acolheram, re
cebendo em troca a fama da galeria pelo efeito "mídia".
Se a ação de fazer o vazio foi durante um temp o, e para
certas práticas, considerada como um meio de desmateria
lizar a art e, parece que essa tentativa se perdeu e que uma
desmaterialização - porque parece que é isso o que preten
de a atividade art íst ica contemporânea - deve ser buscada
por out ros meios. As tent ativas contemporâneas de faze r
o vazio devem ser con sideradas sobretudo como paródia s,
senão palinódias: elas trazem à cena a ação de esvaziar,
assinalando simultaneamente a impossibilidade classifica
da por Perec como "esgotamento de um luga r", reduzin
do-a então a seus efeitos cômicos. É o que se pode ver na
peça de Cornelia Parker, Soi! Remoued[rom Underneaih the
Lea11i11g Tower of Pisa to Preoent it [rom Failing (2003) . Ou
ainda Sp0011 Excavated Itseif(1992). O utra maneira de fazer
o vazio é a destruição das obras por parte do próprio au
tor. Encontramos exemplos dessa atitude iconoclasta, bre
ves e irôn icos, em um livro de artista começado em agosto
de 1999, redigido por Éric Watier, e inacabado por defini
ção: L'i11ventaire des destructions".Parece, então, que o vazio não se manifesta, de mo
do algum, apenas por um buraco, uma fi ssura em um dis -
9. Éric Walier, L'inventaire des dcstruct íons (Ren ncs , íncc rtai n Scns, 2000).
76 ANNE CAUQUELI N FREQÜENTAR OS INCO RPORAIS 77
positivo, mas, sobretudo, pelo espaço de acolhida que ele
abre - tornando possíveis todas as espécies de arranjos en
tre mobilidade e estabilidade -, o que inverte a situação de
maneira perturbadora. Qual é esse espaço de acolhida? A
galeria, tão desacreditada pelos desrnateríalistas, não seria
definitivamente a forma concreta desse espaço, na medida
em que ela desempenha a função de "vazio" para as obra s
que vêm se alojar temporariamente nela?
Formas do vazio 2: o imaterialsob o signodo branco
Essa hipótese desconcertante foi explorada pelos mo
nocromistas com tudo o que ela comporta de paradoxal e
com tudo o que essa mudança pode ter de suspeito no quese refere a uma crít ica do sistema.
A desmaterialização que os monocrom os operam não
incidirá mais sobre o merc ado nem sobre o sítio excessiva
mente fixo das obras que museus e galerias representam,
mas sobre o objeto em si. É a obra que deve ser desmate
rializada: isso significa que ela deverá renunciar ao exces
so de formas e de cores que obstru i seu espaço: ela deverá
renunciar a esse excesso de forma s e de cores que atu
lham seu espaço: ela deverá fazer o vazio em si mesma. Es
se princípio de desmaterialização tomará então a forma da
tela branca ou de cor sólida e única, como o azul ou o preto,
manifestando a rejeição de toda forma e cor que viessem
perturbar a virgindade essencial da pintura. Desse modo,
o branco se torna a palavra de ordem de uma nova des -
materialização: a do fazer artístico, e não mais a do cons
purcado sistema das galerias e do mercado. Tal reviravolta
devolve a posição de honra aos lugares dos quais se fugira .
O desmaterial precisa de um lugar material para se mos
trar. A negação deve poder se afirmar: a tela em branco de
ve ser exposta "em algum lugar".
Esse requisito transforma o princípio de desmateriali
zação em princípio de imaterialização. A palavra é pronun
ciada . Entramos - pelo menos, a pintura entra - na era do
imaterial. Privada de sua matéria própria (desenho, for
mas, cores, tramas), a pintura é purificada: sua essência se
mostra só, assim como a nudez a transforma nela mesma.
É essa purificação que a conduz, então, ao limiar da
imaterialidade ou da vida espiritual. De certo modo, ela
se sublimou em um sacrifício consentido. Nenhuma carne
mai s, nenhum ape go sens ua l a ret ém; ela pode, então, ser
toda "sensibilidade", o que inclui bastante "sentido", ma s
sentido espiritual, mental, e não sentido orgânico. Vere
mos, contudo, que essa espiritualidade à qual pretende a
arte do vazio - desmaterializada ou imaterializada - repre
senta obstáculo ao incorporaI a que deveria visar.
Por que o monocromo, por que o branco? Éque o bran
co, sob todas as suas formas, é o signo do nada, do vazio: o
branco em um texto, um espaço "em branco", o branco co
mo não-cor ou, o que vem a dar no mesmo, como fusão de
todas as cores . O branco est á ali para ser preenchido, ass im
como o buraco estava para ser tap ado a qualquer momen
to. Uma página branca, uma tela branca esperam ser escri-
78 ANNE CAUQUELlN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 79
tas ou pintadas. Apresentar, então, essa página ou essa tela
vazia dos signos que se sup õe devam elas oferecer ao lei
tor ou ao espectador é um ato crítico, uma negação daqui
lo que existe (telas cheias de signos coloridos, de forma s) e
não uma falta. O branco é, então, bem mais que uma me
táfora do vazio, sua própria expressão, sua "forma" sob o
aspecto de uma não-forma. Essa dupla natureza do bran
co: "ausência de cor e, ao mesmo tempo, profunda mescla
de todas as cores", como escreve Melville, leva às interro
gações metafísicas, à constatação de nossa pequenez in
finita diante das "brancas profundezas da Via Láctea [...]
Mistério encantatório dessa brancura [.. .] o mais signifi
cativo símbolo das coisas espirituais, o verdadeiro véu do
Deus cristão e, ao mesmo tempo, o agente que torna mais
intenso o horror das coisas que apavoram o homem [.. .]
essa coisa sem cor ou colorida pela ausência de Deus quenos faz recuar de pavor"10.
Nessa visão, o branco assinala a ausência de Deus e, pa
ralelamente, sua busca; o acento espiritual da brancura, sua
imaterialidade vazia ("oprincípio da luz para sempre branca,
sem cor?»), torna-o um suporte privilegiado para essa bus
ca quando ela se exprime na arte . É a arte - a pintura - a en
carregada de apresentar essa ausência, esse vazio, de pôr em
presença a busca que torna necessária a ausência de Deus.
10. Herman Melville, M oby Dick (trad . Lucien [acques, [oan Srníth & JeanGiono, Par is, Ga llima rd, 1996), pp. 275-6 fedo bras.: Irad . Alexandre Barbosa deSouza & Irene Hirsch, São Paulo, Cosac & Na ífy, 2008].
11. Ibidem.
Reside justamente aqui todo o paradoxo dos monocro
mos: apresentar de maneira sensível aquilo que escapa à
percepçã o - o vazio, o nada. Porque vemos o branco, vemos a
tela branca, assim como vemos a galeria vazia: vazio e bran
co expõem de maneira sensível a presença de uma ausência
deliberada. E, sem dúvida , temos nisso uma superioridade
dessa forma do vazio que é o branco sobre a forma do "bu
raco": com efeito, a forma do buraco faz referência ao cheio
que ele cavou e que permanece dependente de suas bordas.
Já o branco se apaga e apaga seu contexto em um "não": não
preench er, não fazer referência àquilo que o limita, desapa
recer e fazer desapa recer, esse é o ideal da pura presença .
Aqu i, vemos perfeitamente qual é a tent ação que vem
fazer cócegas nos teóricos do iconocla smo. Sem falar ain
da de teologia negativa (termo que talvez fosse mais adap
tado à prática do monocromo), toda a questão da presença
na ausência e o modo de contornar o obstáculo da invisibi
lidade, tornando visível a ausência de visibilidade, parece
contida nesse jogo de esconde-esconde ao qual convida o
monoc romo. Ela evoca, bem entendido, o desvio pelo qual
o ícone bizantino convida a contemplar o divino torn ando
obscura, impenetrável, sua fi gura. Temos o mesmo impul
so para a espiritua lidade imaterial em Klein, o mesmo des
vio pelo invisível para fazer sentir a espiritualidade de uma
presença emanando do corpo, mas fora dele.
A origem religiosa, mística, da questão parece convir à
"sensibilidade pictórica imaterial", tal como vivida ou des
crita por Yves Klein ou Rothko. Contudo, o esquema con-
80 ANNE CAUQUELIN FREQüENTAR OS INC ORPORAIS 81
ceitual sofisticado ao qual se submete o ícone na tradição
bizantina realmente não ressoa em uníssono com a práti
ca pictórica dos monocromistas. O avançar (excessivamen
te publicitário, se formos ver bem) do aspecto místico dos
monocrom os oculta o fato de que os pintores pintam (1) e de
que existe um júbilo, na própria pintura, que nada tem a ver
nem com a glória de Deus nem com a busca do divino. É evi
dente que existe em Klein uma contrapartida carnal a suas
obras invisíveis, a essas "antropometrias" - corpos femini
nos exaltados por seu mergulho na cor azul-, é essa exalta
ção diretamente proveniente da matéria pictórica enquanto
sensualidade mesmo, à flor da pele, e isso a despe ito de tudo
o que se poss a dizer do aspecto ritual de ressonância religio
sa do acontecimento e da interpretação crística que dela se
possa fazer: as mulheres pintadas seriam a matéria de uma
tran substanciação eucarística que transforma o pão e o vi
nho da celebração no corpo e no sangue de Cristo.
Outro elemento que vem bloquear toda interpretação
abusiva dessa desmaterialização ou imaterialização: o retor
no obrigatório ao mercado, às mídias, aos signos ostensivos
de pertinência, como a assinatura. Paradoxalmente, então,
se a ação de não pintar se torna a essência da pintura, se
a ação reside na não-ação e a pintura, na não-pintura, é o
meio, o contexto verbal ou textual, que será o suporte dos
signos ausentes da tela ou da página. Desse modo, não obs
tante a vontade de apagamento, retornamos, por um desv io,
ao signo e à assinatura. E mais : voltamos também à galeria,
ao museu com uma exposição situada e circunscrita.
Vemos perfeitamente, então, que a galeria e o museu
devem ser reabilitados, porque é imperioso "expor" a nega
ção, o zeroforme; o "não" deve pod er ser visto como tal. O
"não" não significa minimamente que a pintura tenha de
saparecido, e o vazio da galeria não significa minimamente
que a galeria tenha se apagado da paisagem da arte. Bem ao
contrário, ela é tanto mais visível quanto mais expõe o invi
sível. Para se tornar imaterial, a art e não renuncia por causa
disso a um suporte material. Ao contrário, ela o reivindica
intensamente. Eventos, publicidades, passagem obrigatória
pelas mídias... Se o objeto pintado desap arece, o que resta
de disponível à vista é o próprio acontecimento de sua de
saparição. Desse modo, a galeria vazia se exibe como vazio
e, ao fazer isso, torn a-se um lugar estável, que contém um
corpo: o seu mesmo, quando não é o do autor.
"O verdadeiro pintor do futuro será um poeta mu
do que não escreverá nada, ma s que narrará, sem arti
cular, em silêncio, um quadro imenso e sem limites'< (a
propósito de sua exposiçã o em Antuérpia, "I"). Declara
ções drásticas, que mesmo ass im só podem ser percebidas
se forem exposta s em algum lugar. Como indic a, com ra
zão, Denys Riout:
Mesmo quando não passa pelo canal do visível, a in
tenção do arti sta deve ser comun icada, de uma manei
ra ou de outra , a seu destinatário, o público. O modo
12. Yves Klein. apud Denys Riout, Yvcs Klein: manifester t'immot érieí(Paris, C allírnard. 2004).
82 AN NE CAUQUELIN FREQÜENfAR OS INCORPORAIS 83
de existência das obras invisíveis requer um a apreen
são periférica. Ela é possibilitada por um sistema de
designações: lugares de inscrições, imagens da ausên
cia, declarações e textos,"
Essa voz muda e essa não-presença, para serem co
nhecidas como tais, têm necessidade de uma encenação, de
uma periferia que envolva a ausência e a submeta a avalia
ção. Com efeito, se as praias "vazias" de signos dos mono
cromos de Malevitch e de Yves Klein, desembaraçadas dos
epifenômenos que são as variações coloridas e as formas ,
exprimem segundo eles a plen itude da essên cia pictórica,
é necessário ainda encontrar para elas um lugar adequado,
que permita a suas expressões se exprimirem.
Branco, preto ou azul, o monocromo transforma a au
sência (de formas ou de variações coloridas) em presença,
e a mostra como essência da pintura, seu espírito, seu pró
prio ser. Dessa maneira, passamos de uma reivindicação
apre sentada ao sistema das art es, reivindicação que po
demos qualificar de social e, por isso mesmo, de objeti
va, exterior à criação artística, para uma afirmação de sua
esp iritualidade, qualidade interna da pintura e quase se
creta, que é prec iso exp or para que ela seja reconhecida.
É todo um sistema de retornos, de negações de negações,
que se estabelece e cujos efeitos jogam entre si em um in
terminável jogo de esconde-esconde. Resta a sensibilidade
13. Ibidem .
pictórica imaterial transferível, como núcleo pleno de um
espaço vazio.
O s críticos não se furtarão a estigmatizar a venalida
de desse imaterial : pois ele não é vendido como uma mer
cadoria qualquer? Mas, ao fazer isso, eles se enganam de
objeto ou ao menos não o localizam , no mercado, onde se
encon tra a verdadeira crítica a ser formulada . Porque não é
tanto o mercado em geral , a mercantilização, que está em
causa, mas a contradição - não resolvida porque ela se põe
em termos que se excluem: a ação se abole em um não e,
mesm o assim, gera ações sucessivas - e com ela suas con
seqüências. Ao se esforçarem para justificar os dois contrá
rios, os artistas do monocromo e das sensibilidades pura
e imaterial mente pictórica s passam ao largo daquilo que
constitui a força e o interesse dos incorporais: sua perfei
ta equivalência e sua mútua substituição no seio do vazio.
Nos termos da sen sibilidad e imater ial, essa equivalência é
impossível de ser realizada porque a obra e o artista atuam
em um espaço de distinções, o espaço do primado do au
tor, da obra única e do nome. Nem mesmo a radicalidade
de Malevit ch pode vencer esse obstáculo. Como a visibi
lidade da ob ra não depende mais dela, que se tornou in
visível, toda a visibilidade se volta para a perifer ia, que se
torna então uma área de sobrevisibilidade e pas sa para o
prime iro plan o, torn ando-se o próprio centro da obra . A
partir daí, a galeria adquire uma dimensão artística, ela
se torna obra e reivindica um estatuto de autor à parte c,
quando men os, igual ao estatuto do artista.
Transfigurar-se emformas zero, corno o quer Malevitch,
serve em princípio para negar o que existe antes dele, a fa
zer tábula rasa, mas, não obstante, também implica outra
exigência, a de fazer desse zeroforme não algo de informe,
mas o ponto de partida para urna renovação das concep
ções habituais. Dessa forma, estamos, com o zeroforme, na
esfera do vazio. Apagamos as distinções de estilo, de for
mas e de épocas. As classificações tradicionais são obsole
tas, inadequadas à nova situação.
Aforma zero é a primeira etapa daquilo que, em segui
da, vai poder acolher outras não-formas. Com efeito, o ze
ro é urna condição para que a seqüência dos números se
estabeleça. O mesmo acontece no jogo do solitário, no qual
o quadrado vazio permite o deslocamento dos peões. Que
a matéria-prima da pintura seja doravante o zeroforme é
um evento considerável, que gera todas as espécies de con
seqüências do ponto de vista da imaterialização da arte.
"Estamos em um novo planeta sobre a abóbada azul do sol
extinto, estamos nos confins de um mundo absolutamente
novo, declaramos inconsistentes todos os objetos.?> Esta
mos, pois, não mais no mundo dos lugares, corno as ga
lerias e o mercado, nem por nem contra, nem dentro nem
fora, mas em um espaço neutro onde o apagamento das
formas é a fonte de formas inéditas de arte. Formas dovazio 3: a retirada ou o deslocamento
Eu me demorei no monocromo e no zeroforme para dar
dois exemplos, já bem conhecidos, de abstenção. Duas aulas
de nudez: urna para glorificar o espiritual na arte ou da arte,
a outra, mais leiga e mais política, para desencadear a reno
vação de velhos quadros. Curiosamente, a mais política das
duas (a de Malevitch) consolida urna definição pictórica da
pintura, ao passo que a outra - que prima por urna essência
espiritual- retoma a urna posição política (liberal) da arte.
Nesse sentido, a recente exposição The Big Nothing
é muito ilustrativa. Para urna centena de artistas, de vá
rias gerações misturadas, trata-se de mostrar que se faz o
vazio, urna espécie de tábula rasa da arte do passado, ex
pondo o vazio no próprio interior do lugar que se preten
deu esvaziar. O quadro vazio, a galeria vazia, o não-sítio,
o quadro branco articulam assim a realidade de uma arte
existente (o quadro, a galeria, a paisagem) a sua destruição
ou, pior ainda, à ameaça de sua extinção.
Contudo, aí não estão todas as formas assumidas pe
lo vazio para se manifestar, e, sobretudo, as formas acaba
das - enquanto quadros, espaços, lugares, monumentos ou
sítios -, que sempre se mantêm corno objetos, geralmen
te não têm, não obstante a declaração de Malevitch, nada
de imaterial e são ainda menos incorporais, no sentido em
que os entendemos com os estóicos.
84 ANNE CAUQUELIN
o ZEROFORME COMO MATÉRIA-PRIMA I1,
FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 85
14. Kazimir Malevitch, "Anarchie" (mar. 1918), em Le miroir sur;rématiste (trad. Jean-Claude Marcadé & Valentine Marcadé, Lausanne, L'AgedHomrne, 1977).
Segundo os desmaterialistas, o movimento de báscu
la que faz aparecer um em vez do outro - o lugar em vez do
86 ANNE CAUQUELlN FREQÜENTAR os INCORPORAIS 87
vazio e retorno - é constante na art e moderna. Ali onde es
tá tradicionalmente o lugar da obra, seu sítio, não há mais
nada . Contudo, esse luga r agora vazio é out ra vez rein
vestido, não pela obra, mas por seu duplo. Ao se retirar, a
obra deixou sua pegada ou até envia uma cópia (um seme
lhante) do lugar onde se considera que ela se encontra en
quanto original. Isso é o mesmo que dizer que ela só existe
separada, retirada, de algu m modo invisível.
As variações sobre o duplo, sob re o não-original e a
cópia fazem entrar na roda dos conceitos que tratam da
imaterialidade a reti rada, o desdobra mento, o apagamen
to e, em todos os casos, uma noção com que já deparamos
e que parece cru cial: o deslocamento.
Esse deslocamento incessante é, sem dúvida, a cha
ve, o eixo em torn o do qual gira m as ten tativas imaterialis
tas de que acabamos de falar. Mas só quando é tomado em
si, por si mesmo, é que o deslocamento parece mais próxi
mo de realizar o projeto moderno de desmaterialização em
uma forma contemporânea.Desse modo, qua ndo Maur izio Cattelan afixa uma de
claração de rou bo de um a obra invisível (no lugar da obra
propriamente d ita) ou qua ndo Robert Morris declara ter re
tirado as qua lidades estéticas da obra expos ta, Statement of
Esthetic Withdrawal (1963), ficamos sem meio de saber - no
primeiro caso - se essa obra existe ou não: ela foi roubada,
é o que nos dizem, deslocada, sem que se saiba para onde
nem por quem, a não ser por seu próprio autor; resta ape
nas o nome do autor, exatamente, e o lugar da obra ocupado
pelo signo de sua reti rada. No seg undo caso, não sabemos
quais qualidades - geralmente pensadas como incorpora
das à obra - pod eriam ter sido "retiradas" sem que a pró
pria obra fosse des truída. A retirada demonstra o nada da
obra, que uma simp les declaração pode anular. Passamos,
então, a duvidar, não apenas da possibilidade de uma ope
ração dessas, mas também, mais ainda , da possibilidade de
alguma existência para as obras, para além da obra efetiva
mente presente, cujas qualidades estão ause ntes.
No que diz respeito ao deslocam ento e à ret irada,
podemos ainda incorporar as pseudo-assina turas que se
apresentam como obras, ou as listas do material que te
ria sido uti lizado para pintar o que, justamente, não se dá a
ver», Todos esses desvios e falsas saíd as responde m à vaci
lação do lugar e do vazio, a sua hesitação e à possibilidade
de sua recípro ca substituição.
Arquivemos esse ponto na memória, porque a chave de
abóbada de toda incorporeidade é essa disponibilidade de
um espaço dado, sua neutralid ade, o fato de ser sem qualida
de e de, desse modo, prestar-se a todas as espécies de corpo
que nele vêm se alojar, para dali par tir imediatamente. Para
chegar a esse ponto, foi necessário operar subseqüe ntes des
pojamentos, isto é, abandonar as posições fixas, uma a uma.
O movi mento de despojamento inves te primeiramen
te contra o mercado - digamos, cont ra o sistema tradicio-
15. Permito- me remeter, no que se refere a esse s pontos, a meu Petit trait éd'art contemporain (2. ed ., Paris, Le Scu il, 2003).
88 ANNE CAUQ UELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 89
nal de exposição - , depois, do mercado, desloca-se para a
obra e, da obra, para o próprio gesto de despojamento; des
se modo, a arte se vê como que esvaziada desde o interior,
em busca de sua própria desmistificação. E o paradoxo me
nor de toda essa questão não é ser ela percebida como uma
vasta mistificação, quando é a própria mistificação da ar
te que está em causa e que é refutada. Nessa s condições, o
fato de dizer, como muito s espectadores: "Isso não é arte",
bem poderia ser considerado como um elogio, como o jus
to reconheciment o do bem-fundado do empreendimento
todo. Com efeito, não é a arte no sentido que é dado a essa
atividade, mas em outro, que não vemos porque ela é sem
obra nem autor, ou ao menos é o que se tenta fazer com to
dos os tipos de manipulações, mutações e invenções.
A invisibilidade daquilo que é indicado como retirado
ou deslocado dá pleno sentido à anopticidade ducharnpia
na: a atividade artística torna-se mental e o olho, um órgão
fanta sma, opera agora enquanto simples porteiro de re
giões imaginári as. Operações mentais que podem, é claro,
encontrar correspondências no domínio do visual ao abri
go de metáforas - como o branco, o buraco ou o silêncio
que remetem todas ao vazio, que é ele mesm o metáfora do
invisível: esse é o regime ao qual a arte contemporânea se
submete em sua grande maioria .
É desse modo - pela adesão ao regime de operações
mentais de frágil incidência visual - que dois outros incor
porais estóicos, o tempo e o exprimível, vão entrar no jogo
da arte contemporânea a título de conceitos dominantes.
Capítulo do tempo e do exprimível:
a arte imaterializada
Da intemporalidade do tempo
Com o apagamento, a pegada mínima, a retirada, a
prolongação, pa rece que é o tempo que governa as ativida
des artísticas contemporâneas; mesmo com elas se desdo
brando no espaço, as experi ência s estéticas abandonaram
a cena do espacial ao deixarem a cena do visível. Isso sign i
fica que não são mais as qualidades ou atributos do espaço
que são chamados a servir de parceiros do jogo da arte. Até
mesmo os jogos sobre os lugares específicos, os lugares de
contexto ou os lugares vazios são abandonados; o invisível
que ocupa tantos artistas, como Barry (e freqüentemente
os art istas do big notlzing), não pode assumir lugar no es
paço, nem em nenhuma outra forma de manifestação que
tenha o espaço como alicerce. Assumir posição queria di
zer lançar raiz, ou tomar lugar, e ter o espaço como a Iicerce
signi ficaria dele tirar a própria substância e forma. Nenhu
ma dessas duas vias é possível quando se trata de manifes
tar o invisível: já constatamos isso em noss o "Capítulo do
vazio e do lugar" com as diversas maneiras, toda s imper
feitas, de querer fazer o vazio. Aqui, a contradição pare cia
insuperável entre o "nada do tudo, em parte alguma" e o
"mas pelo men os algo, em algum lugar ", onde reconhece
mos a figura da denegação.
90 AN NE CAUQ UELIN FREQ ÜENTAR OS INCO RPORAIS 91
Desse modo, para dar um exemplo, as obras de vapor,
os stream de Robert Morris ou de Robert Bar ry», têm pre
tensão de invis ibilidade - a dissolução de gás na atmosfe
ra não é exat amente algo que possamos ver em condições
"no rmais" de visão - e contudo são muito bem localizadas
no espaço, seu ponto de partida é bastante visível, ocupa o
que vem a ser um lugar por meio da projeção de corpúscu
los no vazio do ar que subsiste como seu alicerce. Em con
trap artida, podem os di zer que essas obras faze m apelo,
sobretudo, a uma caracterís tica do tempo: sua incorpora
lidad e. Porque não é a inv isibili da de qu e é alcançada, vis
to que o acontecimento se dá em espetáculo, mas antes a
intemporalida de do tempo, na medida em qu e o desapare
cime nto do gás no ar mimetiza o momento - quase imper
ceptível - no qua l o tempo desvela sua frágil cons titu ição:
assi m que é lan çado, o gás se torna um objeto no tempo
e con strói em torno de si a temporalidade fugidia que é o
instante, para em seguida desap arecer imediatamente.
Se geralmente pen samos que os objetos fun cion am
no espaço segu ndo uma dupla entrada, com sua posição
recortando ali um exterior, aquilo que os cerca, e com sua
solidez tridimensional envolvendo um espaço chamado
"interior", alguns objetos cham ados de obras de arte privi
legiam a dimensão interior, o conteúdo, em det rimento do
exterior, ou então faze m um jogo de remeter de um a ou-
16. Cf. a entrevista de Robe rt Barry com [ochen Matthies na Rev llcd'Esth étioue (Pari s, n. 44, 2003).
tro , em um intercâmbio incessante. Mas esse jogo se torna
impossível com as telas "vaz ias" e os objetos apagados ou
subtraídos: a dist inção interior/exterior desaparece. O con
tinente não contém mais nada, e o conteúdo se encontra do
lado de fora; ou, segundo outra formulação, o exterior é o
conteúdo. Contudo, como o conteúdo preci sa de um conti
nente, o exterior se recorta entre continente e conteúdo e a
fuga se repete, em uma sé rie de efusõ es fora de si.
Despoj ado de sua visibilidade, da s características pro
pr iame nte plásticas de sua exposição, o conteúdo da obra
é exporta do para seus arredores mais ou men os imed ia
tos. A bu sca desse conteúdo, que se tornou necessária, re
quer tempo para ser reali zada; a (suposta) imediatida de
do olhar não tem mais lugar de ser. O tempo se torna um
ator ess encial para o processo. Poder-se-ia objeta r que to
da obra plástica exige tempo para que o olha r var ra sua su
pe rfície e tome consciência daquil o que é mostrado; para
que a legenda gera lme nte apos ta em seu ca nto inferi or de
se mpenhe o papel de notícia e também exija tempo de se r
lida. Mas no caso da obra invisível, não se trata mais de
um compleme nto facultativo para saciar uma curiosidade
sad ia, mas de um instrumento ind ispensável para quem
queira apreender algo que não es tá lá.
E ainda mais, o tempo é um ator a títul o pleno quan
do a obra revela um programa, uma lista de ações a cumprir.
Os cartões-convite de Robert Barryv, as "definições/méto -
17. Invi/ation Pieces (1'172-1'173) é um a seqüência de doze ca rtões -conviteenviados todos os meses no período de um ano a diversas person alidades do mundo da arte. Cada cartão representava um ga lc rísta que convidava para uma expo-
92 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 93
dos" de Claude Rutault ou seu "intercambiável generaliza
do" são obras temporais, partituras a executar. Veja-se, por
exemplo, o teor da carta enviada por Claude Rutault a un s
15 art istas e galeristas:
A exposição será a realização de peças que os destina
tár ios desta carta escolherão entre os 1.908 trabalhos
reunidos no livro D éfinitions et méthodes. Não os con
vido apenas a escolher um número, mas a se encarre
garem do trabalho de realização, quer dizer, escolher
a parede sobre a qua l vão querer ver figurar a pintura,
sua cor, o número de elementos, suas dimensões, os
suportes, a fixação [...].
o temp o, em dispositivos como a reti rada, o apaga
mento ou a desaparição, não é mais um tema, nem um as
sunto, é a verdadeira matéria da obra, sua forma zero, sua
substâ ncia. Ese nós o cons idera rmos por meio da teor ia dos
antigos estóicos, podemos considerá-lo como um incorpo
ral, quer dizer, uma entidade sem corpo, não existente, o
que lhe permite acolher diferente s tempos heterogêneos
sucessivamente ou até mesmo simultaneamente, sem por
isso ser afetado pelo corpo que ele recebe. Digamos que
ele é "apenas" uma permissão: e é justamente enquanto
permissão que ele é experimentado nas obras da retirada.
Com efeito, nada obriga os artistas convocados por Clau-
sição de Rober t Barry a ser realizada no mês seguinte no espaço de outro galeris ta.Ao fina l dos doze meses, o último cartão era um convite a visitar uma exposiçãono espaço do primeiro gale rista da série.
de Rutault a seguir as instruç ões, eles podem perfeitamen
te fazê-lo ou não.
Temp o aberto, tempo vazio, que podemos ou não en
cher de ações como podemos ou não encher o vazio incor
poraI de corpos e transformá-lo com isso em "lugar".
T EMPO INCORPORAL E ACONTECIMENTO
Quando aplicado ao lugar, o incorp oraI é, ao mesmo
temp o, inexistente e ilimitado, sem alto nem baixo, sem
orientação decis iva: em uma palavra, neut ro em todas as
suas partes. Nessa configuração, o tempo é também sem
orientação, nem antes nem depoi s, ilimitado e neutro. Ora,
se o vazio incorporaI vem a ser lugar a partir do momento
em que ele recebe corpos, o tempo, ele também e pela mes
ma operação, vem a ser temporal desde quando momentos
lhe são fixados em sucessão. Dizer que o tempo é aiemporal
e que ele se conserva na possibilidade de vir a ser temp oral
é, confesso, uma proposição para lá de enigmática; mas, ao
menos por uma vez, a comparação com o espaço é vantajo
sa: com efeito, se podemos dizer com os estóicos que o es
paço só vem a ser lugar quando um objeto toma lugar nele,
e que sem isso ele não é nada ou "vazio", que é um incor
porai sem existência, podemos avançar que o tempo tam
bém é um incorporai e só assume corpo - isto é, só se torna
temp o realm ente - quando uma ação se dá nele.
Na configuração dos incorporais que nos ocupa, os mo
mentos do tempo não estão alinhados seg undo uma suces-
94 ANNE CAUQ UELlN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 95
são cont ínua da qual recortaríamos instantes como passado,
presente e futuro; essa sucessão preestabelecida não exis
te e nós não estamos correndo para o futu ro como em uma
estrada cujo fim e cujo propósito são incertos, mesmo que
sejam pressentidos, e o começo, determinável e, em certa
medida, mais certo . A orientação linear não tem espaço de
ser no tempo incorporal, Ele ignora a sucessão dos fatos pas
sados, assim como não prejulga - dando-lhes uma forma a
priori - os fatos que o preencherão. O que existe é apenas o
presente, o momento - ou o instante, como se queira -, que
dá um corpo ao atemporal e o faz vir a ser tempo. Nesse ins
tante, encontram-se cristalizados os fatos de uma vida ge
ralmente pensada em sucessão, mas que podemos imaginar
sob a forma de uma carga, dando um som pleno, um corpo
pleno, agrupado sobre si mesmo, em um todo.
Husserl aproximou-se de um a concepção desse tipo
nas Leçons pourune phénom énologie delaconscienceintimedu
temps: temp o retrotendido e protendido em um só ponto«. A
contração do tempo é percebida como presente; como a di
visão entre antes e depoi s não é percebida, ela permanece
nos limites da consciência, flutuando em torn o do presen
te sem justificá-lo, nem se desdobrar, isto é, sem se explicar.
"A apreen são perceptiva é constituída pela multiplicidade de
fases - do agora e das retenções (.. .] ela obtém sua unida
de, graças à un idade de apreensão temporal'w, Isso sign ífi-
18. Edmund Husserl, Leçons pOlir II ne phénoménotcgie de laconscience intimedu temps (trad , Henri Dussort, Paris, r UF, 1964).
19. Ibidem, § 16, pp. 54ss.
ca que o ato de perceber que se realiza no presente constrói
o temp o como unidade, e isso a partir de diferente s estratos,
dos qua is esse ato é uma condensação; uma mult iplicidade
de ecos "retencionais", cujo ápice, cuja ponta extrema, cujo
limite é o presente percebido.Desse modo, o tempo se constrói de maneira repe
titiva, em pontos distintos de teIllporalidades bre ves que
podemos cha mar de "acontecimentos". Eles aparecem e
desaparecem, heterogêneos, singulares, freqüentemente
imp erceptíveis, ou quando menos imperceptíveis em sua
comp osição estratificada.Algumas características dessetempo atemporal: a repe
tição, a indiferenciação entre antes e depois, a remissão ou
dilação que são constitutivos dessa mesma temporalidade,
a partir do momento em que ela sedá em um ato, fazem-se
presentes nos trabalhos de vários artistas contemporâneos.
Telephone Piece, de Walter de Maria (expos ta na ex
posição de Herald Szeemann, Quando as atitudes vêm a
ser formas, de 1969), é um exemplo disso; o telefone esta
va posto no meio de uma sala, e a legenda dizia: "Se esse
telefone tocar, você pode atender. Walter de Maria está na
outra ponta e gosta ria de falar corn você".
O "se" isola um momento determina do, aquele no
qual o telefone poderia tocar, concentrando ass im a expec
tativa do espectador sobre o acontecimento possível, mas
não provável, de a campainha tocar. Um tempo "vazio".
Nada sugere que algo vai acontecer, assim como nada diz
que algo nã o acontecerá. Dess e modo, o atemporal - aquilo
96 ANNE CAUQUELIN FREQ ÜENTAR os INCORPORAIS 97
que está submetido à condição do "se" - só virá a ser tem
po no momento em que o "se" se apagar para deixar lugar
a um "quando". Antes desse momento e depois desse mo
mento, não há nada. Se o telefone toca, então a comunica
ção está estabelecida. Só conta a ação presente, e isso em
todos os sentidos da palavra, porque ela também conta o
tempo, ela lhe fornece uma baliza a partir da qual é possí
vel atribuir um sentido, uma orientação. É o ato - mesmo
se só ele é possível- que constrói a temporalidade do tem
po e lhe dá um corpo . A percepção presente revela uma su
cessão temporal que só pode se manifestar a partir dessa
percepção do presente. Estabelecem-se, então, simultanea
mente, uma anterioridade e uma posterioridade, que en
volvem o instante presente com um halo incorporai.
A anterioridade, que se constitui no presente, perde
então seu caráter determinante: ela não é mais "causa" do
presente, mas apenas uma de suas componentes. Ela ocu
pa um lugar hipotético: se o telefone toca, é sem dúvida
porque alguém está chamando; então, e só então, o ante
rior se manifesta. Quanto ao futuro, essa extensão do pre
sente que desempenha o papel de perspectiva, ele tem sua
originalidade paradoxal: mesmo sendo apenas um esboço,
um projeto, uma elaboração fantasmática, ele se mantém
contudo para além do ato de constituição temporal presen
te, não como seu limite, mas como um todo que engloba o
conjunto dos momentos.
Para exprimir isso em uma fórmula tão paradoxal
quanto o próprio tempo em devir: o futuro é nossa memó-
ria, é aquilo que os estóicos chamam de "destino". Esse tra
ço enigmático é posto em evidência nas obras-listas ou nas
obras-programas que já citamos: a obra reside em sua rea
lização futura, mesmo que essa realização não advenha ne
cessariamente. A obra, que estabelece o tempo como sua
própria matéria, pois ela o projeta diante de si em termos de
etapas a percorrer, realiza a façanha de subtrair toda tem
poralidade ao tempo, visto que, situando-se toda inteira em
seu vir a ser, ela estabelece, ao mesmo tempo, sua existên
cia incerta: a obra pode não ser concluída . O futuro contém
um conjunto, o todo da obra, mesmo que ele não tenha ti
do espaço para ser e possa permanecer vazio de objeto: pu
ro incorporai.
DIFICULDADES: O DESTINO , A REPETIÇÃO
O futuro, a seqüência dos tempos, não é uma dest ina
ção, e sim um vazio que talvez seja preenchido, e que não
poderemos, portanto, considerar como "seqüência", exce
to quando ocorrido. Impo ssível de prever e, justamente por
isso, "destino". Para nós, paradoxalmente, o destino não
pode ser "lido", ser concebido, a não ser quando o aconte
cimento se tiver realizado, dito de outro modo, a posteriori:
em suma, na repetição.
Mas como é que a repetição pode ter lugar em tal dis
positivo? Para que haja repetição, é preciso que haja me
mória e que se possa extrair daí o que representar daquilo
que uma vez já esteve presente. Ora, ao fazer do passado
98 ANNE CAUQ UELlN FREQÜENTAR OS INCO RPORAIS
um estrato simultâneo à percepção do presente, proibimos
a nós mesmos de ter acesso a um "estoque" separado da
apreensão presente do tempo.
Essa dificuldade aparece nitidamente com as come
morações - as representações daquilo que foi outrora, ou,
para dizê-lo em outros termos, com as reexposições e as
interpretações. Como, por exemplo, reexpor alhures a ga
leria vazia de Iris Clerc fora do momento em que ela foi
efetivamente inaugurada no dia tal, a tal hora, e na pre
sença de Yves Klein? Que resta de um momento como es
se se nós o deslocamos em nosso presente aqu i e agora?
Porque a representação está fixada na postura desconfor
tável de ser, simultaneamente, presente em sua apreensão
e ausente: o objeto representado não está mais lá "em pes
soa", mas apenas em sua dupla objetividade, despojado do
caráter de ato que tivera em sua primeira aparição.
Reexpor a zona de sensibilidade imaterial sem a pre
sença e a consagração do próprio Klein seria , é o que nos
diz Denys Riout, "um plágio, uma faticidade privada de to
da aura , e seria conseqüência da par ódia">. Ora, expor é se
pôr em situação de ter de reexpor, logo, de delegar pres en
ça àquilo que não pode tê-la por si mesmo. Reinterpretar a
cena da presen ça».
20. Denys Ríout. op. cit., p. 145.21. Daí decorre toda a discussão em torno do binômio auto gráfico/alográ
fico, de Nelson Good man, e a par tir da qua l Gérard Genelle propõe uma equ ivalência ent re os dois regimes de imanência e de transcendência das obra s de ar te.Cf. Géra rd Cen ette, L'CElIvrede l'art (Paris, Éditions du Seuil, 1994), tomo I, Immnnenceet transcendance.
Mas não é desse modo que podemos preservar, ao
mesmo tempo, o frescor do presente e a possibilidade da
repetição. Para conservar a intemporalidade do tempo que
confere todo seu frescor ao presente e o confirma em seu
papel de criador de temporalidades, é preciso então que a
repetição, necessária, ao menos para sobreviver no tempo,
não seja dada no modo da representação.
Isso equivale a dizer que a lembrança se dá no pre
sente e que essa forma temporal tem a primazia sobre (I
conteúdo; o conteúdo da lembrança, aquilo de que nos rc
cordames, só é "representado" na apreensão presente, ele
não tem realidade separada do momento em que se atuo
liza em uma percepção original, e quando parece "vo\
tar", ele é, de algum modo, percebido como presente. Sl',
portanto, pensamos o tempo como intemporal, isto é, in
corporaI, a atenção incidirá, não sobre o conteúdo repre
sentado - um objeto de memória - , mas sobre a forma na
qual ele se dá - o presente - , até fazer desaparecer gran
de parte (ou, mais radicalmente, o todo) do conteúdo para
preservar apenas seu signo.Os artistas contemporâneos são os virtuoses desse
paradoxo vinculado à intemporalidade do tempo: quando
o vernissage tem o estatuto de obra, como foi o caso de Ro
bert Morris com Closed Galeries Pieces, ou ma is perto de
nós com Philippe Parreno, o conteúdo realmente desa
pareceu, restando apenas a apresentação de um momen
to vazio de todo corpo, que poderia temporalizar o tempo
ocupando-o. Desse modo, a apresentação pode se repetir
100 ANNE CAUQUELl N FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 101
indefinidamente, com cada momento sendo um verníssage
novo e original, limp o de todo objeto a re-mos trar. Lição
renovada, dessa vez com Rirkrit Tiravanija, em Cordeliers
(2005), onde guias "livres" conduzem a visita r sua "expo
sição", ou seja, sa las inteiramente vazias, mimetizando as
explicações dos guias oficiais de museu . Os guias, então,
estavam livres para recitar textos, dar nome s a peças que
nunca existira m, para comentá-las, inventar um a história
para elas: em suma, para fazer o relato da ausência e, nes
sa mesma circuns tância, tornarem-se os autores das obras
que fantasiam. Podemos, portanto, concluir: o vazio é a
garantia de uma repetição ilimitada, isto é, de um presen
te ilim itado.. .
E é isso que nem Denys Riout nem Paul Ardenne per
cebem, um quando pensa, em term os de aura perdida, no
plágio de uma obra não santificada pela presença daquele
que concebeu o origina l, o outro quando avalia que Parre
no (por exemplo, porque ele acusa vár ios artistas contem
porâneos do mesmo defeito) repete sem saber uma obra
original (nesse caso, a de Robert Morr is) e que, assim sen
do, ele não passa de um "pseudo" produzindo pseudos>.
Mas é que se trata, nesses dois autor es, da ressurgência
ou da persistência de uma das característ icas mais reniten
tes no habitue do historiador ou do estético: a característica
da originalidade, da unicidade, da primeira vez inovado
ra caracterizando a obra de arte. Um trabalho artístico que
22. Paul Arde nne, Un art coniextuel (Paris, Flammarion. 2004), pp. 201ss.
repete ou imita é considerado falso ou malfeito. É bem ver
dade que é muito difícil não fazer referência à definição
tradicional de obra quando comentamos as obras contem
porâneas, mesm o que, por outro lado, bem saibamos que
são justamente essas características as que são postas em
dúvida ou claramente torp edeadas pelos artistas dos dias
de hoje.
Reexposição, falsificação, plágio são as man ifestações
artísticas atuais de incorporalidade do temp o. O mesmo se
pode dizer das repetições ou das redupl icações, ou aind a
da famosa reprodutíbílídade benjaminiana, que nunca se
cessa de comentar nem de estigmatiza r>.
Aparecer de maneira repetida, insistente, para aca
bar aniquilando-se na própria repetição, é um dos traços
do tempo intemporal apreendido por reprodutibilidade por
arti stas como Roman Opalka ou Om Kawara. Os números
que se sucedem nas telas de Opalka dão ritmo a uma vida
cujos conteúdos todos desapareceram, deixando lugar, não
a pegadas que sejam ainda a sombra de um a realidade que
teria tido lugar no tempo, mas simplesmente a signos que
caem, um depois do outro, no vazio íncorporal». O signo faz
sina l indi ferentemente para o antes e o depois; o dia passa
do e o dia por vir são indistintos, só o movimento que leva a
inscrição (para a direita) constitui uma orientação ritual.
23. Mais adia nte, surg irá a questão, junto com o exprimível, da reprod utibilídade e da allra, apreendi das segundo o incorporal ,
24. Não é indiferen te que Husserl fale de "recaída no vazio", de retençõesque se tornaram "imperceptíveis".
102 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 103
Os escritores de diários íntimos conhecem bem es
sa vertigem do tempo que os mantém em alerta, fazen
do de sua vida os signos de uma intemporalidade radical.
Com menor obstinação e sem ter realmente essa intenção
consciente, eles perse guem a mesma imaterialização dos
conteúdos de sua vida cotidiana, por acreditarem poder
preservá-los na memória com as mesma s técnicas rituais
dos artistas>. Tanto o rito como a repetição mostram a fra
gilidade do tempo que essas dua s operações têm a missão
de manter em sua vacuidade. Esvaz iado de todo objeto de
mem ória, o ritual gira no vazio, e sua persistência só faz
aumentar o movimento pendular - o deslocamento - que
já constatamos com o lugar e com o vazio; aqui, é o tempo
que um gesto, um signo repetido, segura à beira do vazio
onde ele cai e de onde se reergue incessantemente.
O efeito (o signo inscrito) se mantém só, sem que ha
ja necessidade de ir buscar causas ou prolongamentos: o
temp o não é causa, muito meno s propósito. Ele é, propria
mente dizendo, "nada". Então, não se trata de mostrar a
presença do invisível, tornando visível o invisível, mas de
assinalar a intemp oralidade do tempo com o auxílio de sig
nos visíveis, levados ao limite do apagamento.
Desse modo, as obras buscam seu própr io encaminha
mento para o imaterial e buscam abandonar o regime do
25. Cf. Ann e Cauquelin, L'exposition de sai: du journal intime aux webcams(Paris. Eschel, 2DD4).
objeto preservando a ambigüidade entre o corpo (é o corpo
que, ao se esvanecer, const itui signo) e o incorporaI do va
zio e do tempo.
Do exprimível
Essa concep ção do tempo incorpora I como submeti
do ao signo para aparecer e assumir corpo nos leva dire
tamente à teoria do exprimível, ao lekton. Uma submissão
dessas à aparê ncia faz de todo acontecimento temporal um
"caso" entre todos os casos possíveis de existência. Todo
acontecimento que deixa um signo part icipou da nature
za atemp oral/temporal do tempo: ele a exprimiu, ou, para
ser mais precisa, ele o exprim e no momento em que apa
rece. Entendo que ele exprime, simultanea mente, a inexis
tência do temp o e sua breve ocupação momentânea que
lhe confere existência. Em outras palavras, o tempo é "ex
primível", não mais que isso. Ele permanece no indefini
do intemporal e incorporaI até o miniacontecimento que o
faz sair de sua indife rença e, ao mesmo tempo, exprime-o
apaga ndo-se imed iatamente depois. Desse modo, o temp o
e o exprimível estão ligados, assim como estavam o lugar
e o vazio. A mesma vacilação, a mesma passagem do vazio
ao lugar, pensada em termos de tempo, e a mesma repet i
ção desse movimento que vale como "natureza" das coisas.
Como é que esse movimento é levado em conta e explora
do na art e contemporânea e em que ele manifesta a potên
cia do incorporaI?
104 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTARos INCORPORAIS 105
Uma interpretação habitual do termo "exprimível"
chega a fazer dele um sinônimo de "linguagem", ou seja,
de "palavras". Trata-se de uma interpretação laxista, que os
próprios Ant igos introduziram, tanto que o termo lekton le
va a associar a si lagos. Mas, se se tratar mesmo da região do
lagos, da região do sentido, não se tratará, portanto, de pala
vras. Com efeito, as palavras são corpos, não incorporais, e o
meio de onde elas nascem, de onde vêm à luz e que vêm pre
encher é o espaço do exprimível, um espaço de possibilidade
para as palavras encontrarem um lugar e serem expressas;
mas é tamb ém e simultaneamente um espaço de possibili
dade vazia, que não é necessário preencher. Por assim dizer,
o exprimível é um espaço de proposições; proposições de di
zer, proposições de exprimir, prop osições de vir a ser corpos.
Tais proposições podem permanecer sem resposta, assim
como também podem ser tomadas literalmente.
Há, entre essas duas interpretações do termo "expri
mível" - aquela que faz o peso do exprimível incid ir so
bre as palavras, ou sobr e a linguagem considerada como
seqü ência de palavras ligadas por uma gramática lógica,
e a opçã o que consiste em ass inalar ao exprimível um es
paço de possibilidades, uma ár ea de extensão para o sen
tido - , uma divergência cujos efeitos podem ser vistos naarte contemporânea.
o EXPRIMÍVEL-LINGUAGEM
A pintura, que foi desde o Renascimento o lugar das
experimentações artísticas - antes que elas desertassem da
pintura para buscar outros suportes - , está vinculada de
modo mu ito íntimo à linguagem, e isso de uma manei
ra muit o concreta: o título, formado por uma seqüência de
palavra s, indica o tema representado, ao passo que a as
sinatura - que é uma palavra - serve de referência ao afi
cionado ou ao historiador, assim como a data - que pode
ser inscrita com todas as letras. A narração, que é solicita
da para explicitar o assunto pintado, serve-lhe de pano de
fundo, de uma espécie de subtexto. É impossível ver A fugapara o Egito, de Poussin, sem conhecer o episódio do Novo
Testamento que narr a o acontecimento, o mesmo valendo
para todas as cenas religiosas. Desvinculado da narração,
o quadro suscita um enigma, como A tempestade, de Gior
gione, do qual temos 28 interpretações e o mesmo tanto
de perguntas>. Os comentários tent am ligar a narração ao
que é representado, e os críticos visam à boa apresentação
da imagem com relação ao texto, a sua credibilidade. A lin
guagem, seja ela narração, texto sacro ou poesia, envolve e
até mesmo cerca estreitamente as obras como o lugar onde
elas adquirem sentido. "Leia a história e o quadro, a fim de
saber se cada coisa é apropriada ao tema ", escreve Poussin
em uma carta a Chantelou" , Já evocamo s suficient emen
te o ut pictura poesis, em todas as suas reversões possíveis
(quem imita quem? Não há vínculo reversível?), para que
26. Cf. Sa lvato re Se ttis, l.i nuention d'un tableau: La Tem pête, de Giorgione(Paris, Édil ion s de Minuit, 1'187).
27. Nicolas Pou ssin . Lettres et propos sI/r l'art (Paris, Herrnann, 1964);an a lisa do por Lou is Mari n em Suolime POIIS S;II (Paris, Éditions du Seuil, 19'1~),
pp . 11 ~34 .
106 ANN E CAUQU ELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS107
haja necessidade de voltar ao assunto: o fato é que a lin
guagem está lá, com sua carga de interpretações diversas:
sua exprimibilidade.
Mas, enquanto título e assinatura, narração e poesia
permanecem fisicamente exteriores à obra pintada, outros
vínculos, dessa vez internos, desempenham um papel que
não se pode negligenciar: a linguagem, sob a forma de pa
lavras ou de simples letras, é introduzida na materialidade
da pintura, em sua massa, e isso abertamente ou de ma
neira oculta>. Aqui, a linguagem deixa de ser um auxílio
para compreender o assunto representado, para se tornar
um desafio para a própria representação.
Louis Marin perseguiu durante muito tempo, e sutil
mente, essa contradição que habita a pintura e anula sua
picturalidade por meio da própria pintura, pintando pala
vras nela. Citemos Poussin: "ei in Arcadia ego.. .", palavras
gravadas em um túmulo - ou em uma estela -, enquanto
são interrogados os pastores e os comentadores (os pastores
da Arcádia). Esses termos que permanecem suspensos indi
cam ao espectador pistas divergentes, a ponto de perturbar
o comentário de Panofsky e de obrigá-lo a se corrigir duas
vezes antes de chegar a uma leitura satisfatória. Recusando,
de início, o superficial "e eu também vivi na Arc ádia" (o que
não interessa, na verdade, a ninguém), ele propõe: "A morte
está até mesmo na Arc ádia", Mas e esse ego gravado no tú
mulo? Trata-se do pintor, da pintura ou da morte? Ou ain-
28. Cf. Michel Butor, Les mots dans la peinture (Pari s, Flarnmarion, 1%9).
da do espectador, que é encarado pela palavra gravada, ego?Não será esse espectador (vocês, eu, agora), que está na si
tuação dos pastores, tentando decifrar a frase inscrita, que
ressoa sob as frondes dos carvalhos e para os quais esse egoé um irmão? Ou bem interpretando esse "ei" que introduz o
verso como um "até" (até mesmo no túmulo, ego está na Ar
c ádia), pensando então na promessa de um acordo elegíaco
entre a pintura e a morte nesse país mítico, ou utópico, da
Arcádia? O que equivale a dizer em parte alguma, com o to
do - ego, a morte, a pintura e o pintor - aniquilando-se com
graça em uma paisagem serena, alheio a todo pathos?O mesmo pode ser dito dos dois auto-retratos de
Poussin, nos quais a assinatura - o nome, com suas qua
lificações - é redundante quando comparada à represen
tação dos instrumentos de sua profissão - lápis, livro em
que se pode ler o título, De lumineet colore, e telas viradas,
não pintadas, onde estão escritas as palavras-efígie: Nícolaí
Poussini andelyensís píctorís.. . Como se o pintor assinasse
enquanto auto-retrato o vazio de sua pintura, seu próprio
aniquilamento no traço deixado sobre o quadro" .
Porque as palavras inscritas na pintura estão ali para
denunciá-la: o sentido deve ser buscado noutro lugar, di
zem elas, em uma no man's land onde as negações se suce
dem vertiginosamente. Isso não é um cachimbo. A pintura
mente. Mas ela diz a verdade quando diz que mente. De
todo modo, é bom não confiar muito nela .
29. Cf. Lou is Marin, op. cil. Cf. tamb ém Louis Marin, Détruire la peinture
(Paris, Galiléc, 1977).
108 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 109
Contudo, o paradoxo das palavras escondidas na pin
tura não é percebido pelo público como uma contradição: é
algo normal ao qual quase não se dá atenção. É preciso es
perar sinais mais fortes - por exemplo, as telas de [aspers
Jones - para que tomemos consciência de que a pintura é
algo diferente do que está pintado, de que ela é tecida de
linguagem. É quando vemos o que até então não tínhamos
visto, mas que, contudo, existia: as palavras tecidas na ma
téria pictórica. Nós nos apercebemos de que uma parte da
pintura escapa ao pintado, que até mesmo em sua materia
lidade se encontra aquilo que aqu i chamamos o exprimí
vel (isto é, o incorporaI) sob a forma de um espaço pa ra as
palavras: espaço de palavras que põem em risco o que elas
nomeiam, fazend o desse modo vacilar todo o aparato pre
ciso, concreto, do material a ser pintado no espaço vago,
indeterminado, indefinido, do interp retável.
Tudo aqui se passa como se as obras dos artistas mais
próximos de nós no tempo trouxessem à luz, diante de um
grande público, os implícitos de um a disciplina antiga, que
só os sábios críticos tivessem até então desvendado.
Um mesmo fenômeno se passa com a ar te cha ma
da "conceitual". É certo que não tivemos de esperar a ar
te conceitual para saber que a arte pictórica é cosa mentaleao mesmo temp o que uma superfície pintada e de cores as
sociad as. Mas não resta dúvida de que é a visão das obras
conceituais que nos revela mais adiante a parte do concei
to nos empre endimentos da ar te.
Com efeito, cosa mentale é um term o tão vago que po
~emos encaixar nele, um por vez ou até mesmo simultanea -
mente, o espírito, a alma, o sentimento, a memória ou a
inteligência. Só quando esclarecemos e definimos o termo
mentale como aquilo que deriva, na compreensão das coi
sas, de seus aspectos proposiciona is é que a art e conceitua l
se dá a conhecer como tal.
o CONCEITUAL
Destruindo-se umas à outra, palavras e pintura se
mantêm em um enfrentamento irresoluto, mas justamen
te por isso comparáveis em sua presença e força. Com a arte
conceitual, os dois antagonis tas mudam, ao mesmo temp o,
de funç ão e de conteúdo. Suas relações são perturbadas, a
ponto de se poder supor que um dos termos foi aniquila
do pelo outro.Não se trat a mais de semâ ntica, não se trata mais de
interpreta r as palavras, ou até mesmo o relato, incluídas
na textu ra do que é pintado, mas de operações intelectuais
distintas de toda opticidade . De certa forma, o visível é ex
cluído da antiga dupla legível/visível, sem que, contudo, o
legível fique sozinho: uma dupla se reconstitui em torn o da
linguagem, compreendendo dessa vez o legível-visível em
uma ún ica entidade - porque sempre há palavras a ser li
das, isto é, a ser vistas - e o gramatical.
Entenda-se por "gramática" o conjunto de ligações
dispon íveis para con struir proposições. Trata-se de uma
gramática ampliada, ou lógica, a gra mática dos encadea
mentos válidos . Tudo está vinculado. Como é que tal ló-
110 ANNE CAUQU ELIN l 'I{ \'(.,lÜENTAR os INCORPORAIS 111
g íca, livre do peso das palavras, portanto, dos corpos, da
própria materialidade do sentido das palavras, pode con
duzir à obra de arte?
Não resta dúvida de que é um artista como [oseph
Kossuth que nos ensina o que significa tal gênero de ati
vidad e artística. Um quadro, uma peça, uma obra só são
tais , afirma ele, porque levam em si a definiç ão com a qual
se identificam. Eles são o que dizem ser : definição como
identificação de si consigo mesmo. Ao retomar a propo
sição estóica: "Se está claro, então é dia", Kossuth diz (e
mostra): "Se há uma cadeira, então se trata de uma cadei
ra"; onde uma cadeira é uma cadeira é uma cadeira, por
tanto. Não se sai disso: a proposição gramatical constrói o
objeto satisfazendo à proposição que o enuncia como ob
jeto. Geralmente se diz de Kossuth (ele mesmo chegou a
dizer de si mesm o) que ele se inspirava em Wittgens tein.
Contudo, parece que muitas das caracter íst icas de sua
concepção de arte estariam especialmente vinculadas ao
lekton estóico, ao expr imível incorporai tal qual apre sen
tado por Zen ão.
É necessário compreender que as palavras e as pala
vra s de objetos, os títulos ou as palavras tecidas no que
é pintado permanecem como corpos. Sua interpretação,
seu sentido, mesmo múltiplo, depende ainda mu ito inti
mamente do que é apresentado à visão para ter uma vi
da aut ônoma. É claro que eles dão testemunho de uma
extensão do objeto, de sua propensão a passar dos limi
tes físicos da obra indo buscar o sentido fora, reenviando
i1 história ou até mesmo às grandes narrativas, instalan
do um a não-pintura na pintura, um a não-obra na própria
obra, mas eles convocam , justamente por isso, saberes,
fantasias, até mesmo sentimentos que não são puramen
te "ar tísticos".
Apenas as sentenças tautológicas, que se resolvem
em si mesmas, como "x. é uma cadeira é uma cadeira",
e que não levam nem aos sentimentos nem às emoções,
nem a subjetividade superior alguma, assim como certa
mente não levam a nenhuma sens ibilidade pictórica, nem
que ela fosse imaterial, podem ter pretensão ao concei
tual. E ao conceitual em sua nudez porque, em vez de
se ocultar, à maneira de um esboço que se põe de lado
quando vem o dia (uma vez acabada a obra), a elaboração
conceitua l, a forma lização de uma prop osição ar tís tica, é
exibida como totalid ade, sem que haja necessidade de rea
lização. A atividade propo sicional se define como a capa
cidade de se cons titu ir em obra por si mesm a; é, como diz
Kossuth, "uma ver ificação da ar te por si mesma". Ou seja,
um a tautologia.
Não obstante, o fato de ter de mostrar essa elabora
ção proposicional como um objeto, afixando-o em um lu
gar, enfraquece bastante, chega até mesmo a des naturar
seu caráter de incorporeidade. É como se, apesa r de todas
as atenuações conferidas a sua materialidade, a atividade
artística parec esse ter de supor ta r decididamente um resto
de corporalidade - parecesse não poder escapar dele.
112 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 113
o EXPRIMÍVEL-EXTENSÃO
Com o conceitual e as "palavras na pintura", conti
nuamos no regime do objeto, do corpo. A partir de agora,
tentarei propor uma versão completamente distinta. Repor
tando-me ao espaço que cerca o mundo e que não existe, a
menos que seja preenchido por um corpo, ou ao tempo in
temporal que só vem a ser tem po com a condição de ser
ocupado durante um momento, eu gostaria de examinar o
invólucro do corpo da obra como um espaço possível pa
ra uma extensão, ela mesma possível, mas não necess aria
mente ligad a à obra. Ao permanecer no campo do sentido,
poderíamos então dizer que se trata de um campo de inter
pretações; tud o o que cerca a obra de um halo de comentá
rios - d izeres, escritos, ilust rações ou imagens, publicidades
de quaisquer tipos, da ordem da comunicação e de seus di
versos canais - participa do esp aço em que a obra se esten
de tão longe quanto possa, ou se esforça para tanto». Em
suma, a obra tenta ocupa r um espaço para fazer dele um
lugar, ela tenta preencher esse espaço, até então vazio e in
corporaI, para ali se exprimir. Nessa tentativa, a periferia da
obra, tud o aquilo que a cerca, adquire um novo estatuto: é
aquilo que leva a carga do sentido e permite à obra tomar
corpo, mesmo sendo invisível, incorporaI.
30. O esforço para perseverar em seu ser spinozista passa por essa extensãodo campo de existência. Cf. Spinoza, Ética, livro rn, proposição VI : "Cada coisa, segundo sua potência de ser, esforça-se para perseverar em seu ser"; e, mais ad iante, na proposição VII I: "O esforço pelo qual toda coisa se esforça para perseverarem seu ser não envolve nenhum tempo finito, mas um tempo indefinido". Spinoza, CElIl'res completes (trad. Rolland Caillois, MadeIeine Francês & Robe rt Misrahi,Par is, Ga llima rd, 1954), p. 421.
}
Nesse sentido, a exposição se torna um fenômeno pri
mordial, o próprio acontecimento da existência da obra, de
sua instalação - breve, mas rep et ível- no incorporaI invi
sível do tempo e do vazio. A proposição de extensão fez
se seguir por uma realização: a obra se expõe no espaço de
possibilid ade oferecido. E essa possibilidade se renova du
rante um tempo indefinido.
U MA orcxo PARA A AURA
Desse modo, é fora dela, de sua circunscrição est rita,
que a obra adquire sua existência: ela se põe do lado de fo
ra, posic iona-se. Pod emos imaginar que quanto mais ela se
repetir, mais freqü entemente se mostrará e mais terá "cor
po". Sendo assim, exposição e reexposição, repetição - até
mesm o imitação - atuam na área de extensão de uma pre
sença: de um presente que se sabe ilimitado.
Qu e se passa, então, com a fam osa aura da obra de ar
te, cara aos aficion ados de obras que se emoc iona m com a
un icidade de uma obra rara?
A aura, no se ntido qu e geralmente lhe dam os, é () halo
lum inoso que envolve um corpo, exprime seu poder, afir
ma sua existência no seio do mundo e se oferece à contem
plação. Tomada no sentido de ut1na presen ça inefável, aura
é outra palavra para charisma e sb aproxima de auréola , al
go de místico e, portanto, de inexplicável, de irraciona l
uma efu são de luz, ga rantia de uma integridade pura e de
autenticida de.
114 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 115
Contudo, mesmo que a aura, a presença, permaneça
para muitos como um traço característico da obra, na "era de
sua reprodução técnica", essa autenticidade e essa integrida
de parecem ter sido varridas e, com elas, a interpretação ca
rismática da aura. O declínio da aura existe, é o que assegura
Benjamin em seu texto célebre», e esse enunciado assume
valor de verdade indi scutível, com as conseqüências que dele
podemos tirar para o comentário e a prática da arte.
Não obs ta nte, essa afirmação sofre o destino daqui
lo que é muito conhecido: ela é interpretada a contra-senso
ou, mais exa tamente, no sentido convencionado por aque
les que dela se apoderam. É de sse mod o que o declínio da
aura serve de escudo contra a arte tecnológica (ou simples
mente mecanizada, tecnicizada), ao passo que, de outro la
do, ele ser ve de constatação de base pa ra uma arte liberada
da unicidade, da originalidade e da raridade de uma pre
sença e desencadeia a virada de uma arte para si, não mui
to distanciad a de uma arte pela arte (que Walter Benjamin
trata de "teologia negativa"), rumo a um a arte para os ou
tros, voltada para a comunicação.
A primeira opção se declara em favor de uma arte tradi
cionalmente apegada à pess oa, no caso, ao gênio do artista e
ao caráter sagrado da obra. Trata -se de uma interpretação ri
tual, que confe re ao rito um valor de culto e que vemos ain
da hoje implicitamente apoiada (e, algumas vezes, bastante
31. Walter Benjamin, L'CEuvre d'art à l' êre de sa reproduction iechnique (t rad ,Maurice de Gandillac, Rainer Rach litz & Pierr e Rusch, Pari s, Gallimard, 2000),toma m.
explicitamente, como é o caso de Jean Clair) tanto por crít i
cos e aficionados -colecionadores como por críticos de arte.
Essa opção, algumas vezes, desponta mesmo em meio a tex
tos resolutamente modernistas. Então, o declínio da aura é
interpretado como um fenômeno negativo, como uma perda
irreparável, decorrente da tecnici zação cada vez mai s efetiva
da arte, bem como da sociedade em seu todos,
A outra opção - que leva em conta o texto de Benja
min, e não un icamente o trecho de proposição relativo ao
declín io da aur a - faz desse declínio um fenô meno positi
vo, porque ele libera a obra de seu s vínculos cultuais e per
mit e sua disseminação entre um públic o popular. O valor
de exposição ocupa o lugar do valor cultuaI, e a função ar
tístic a passa para segundo plano: "A partir do momento
em que a autenticidade não é mais aplicável à produção ar
tística, tod a a função da arte se encontra alterada. Em vez
de repousa r sobre o ritual, ela passa a se fundar sobre ou
tra prática : o pol ítico">.
O declín io da aura é também a abolição da distância
- completam ente elitista - que afastava o público da obra
sacra; ele favorece a apro ximaç ão da arte e do cotidiano
das pessoas. A utopia política de um a arte de massas faz
o restante, e, a seg uir, vem a desilus ão. A constatação des
se declín io deriva de outra constataç ão, a da mudança das
modal idades de produção da obra, ou seja, da s técnicas de
32. Essa opção é representada por, entre outros, [acques Ellul em su a criti ca contra a técn ica, Eempire du non-sens (Par is, f'UF, 1980).
33. Walter Benjamin, L'CEuvrcd'art, op. cit., p. 282.
116 ANNE CAUQ UELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 117
sua valorização, que repousam sobre a produção do origi
nal, sua exposição e disseminação.Como é que podemos compreender isso hoje? E, por
nossa vez, como interpretar que haja simultaneamente uma
aura, ou seja, uma presença em pessoa da obra, com seu pe
so de carisma, e, na ponta oposta, sua repetição quase inde
finidamente reprodutível? Um vapor, um véu irradiante para
um a concepção da arte tradicional, que ali encontra sua es
piritualidade, seu imaterialismo e, de outro lado, condições
completamente técnicas de fabricação, "que emancipam a
obra do ritual e lhe fornecem ocasiões mais numerosas de
se expor">?Com a primeira opção, a da interpretação da aura co
mo halo místico, invisível, vem o-nos diante das tentativas
art ísticas de alcançar o imaterial e de manifestar o invisí
vel: é justamente uma aura a sens ibilidade pictórica ima
terial de Klein . Um aposento vazio é sens ibilizado pela
presença em pessoa do arti sta entre suas paredes. É es
sa presença que perceberã o, ou que se pensa qu e percebe
rão, os visitantes da galeria vazia. A sensibilidade pictór ica
imaterial de Klein pode ser traduzida em termos de aura
(versão que é, aliás, a sustentada por Denys Riout). Nes
se caso, é a exportação para o exterior de uma qualidade
inerente (e invisível) da obra, sua qualidade estética , que é
avaliada. Também podemos defender, para mati za r a rad i
calidade dessa posição e fazer justiça à mudança das prá
ticas de produção, que essa qualidade está pre sente toda
34. Ibidem, p. 284.
.~
vez que o esp ectad or se encontra diante da obra, que ela é
novamente percebida a cada vez, apesar da repetição, me
cân ica ou não, e ape sar de sua exposição externa e de sua
reexposição; desse modo, encontram-se ligadas a aura em
presença e a aura em repetição, mas ainda estamos mais
no dispositivo tradicional, só que ligeiramente perturba
do. É um comp romi sso árduo, que torna o entendimento e,
portanto, a discussão difíceis.
Um trabalho - texto e ima gem - de [ulien Audebert e
Sandr ine Bernard joga ironicamente com essas confusões
e ques tiona um resultado no mínimo paradoxal:
Para Walter Benjamin, a obra de arte na época de sua
reprodução mecanizada é a reescrita integral desse fa
moso texto em uma única página. Se esse trabalho
questiona a reprodutibilidade, empurrando os meios de
impressão para seus limites (tanto a fotogravura quanto
a utilização de papel fotográfico), ele também transfor
ma o texto em "signo". Sem a limitação da paginação, o
texto é proposto em sua forma "orgânica", respeitando
pontuações e parágrafos. A estrutura da escrita é, desde
então, visível, como se tivesse sido "desdobrada" [... ].
Os caracteres, da ordem de alguns mícron s, situam-se
no limite da visibilidade, e a leitura exige um a "prótese"
do olhar. Essa prática remete evidentemente à tradição
de micrografia, comum na Idade Média, ut ilizada para
a retranscrição de várias passagens da Bíblia."
35. <www.vasistas.orgiaudeberLhtm>.
118 ANNE CAUQUELIN FREQ üE NTAR OS INCORPORAIS 119
Temos então, juntos em uma mesma obra, o anúncio
do decl ín io da aura e a própria obra a reivindicar a origina
lidade - portanto, sua aura -, ao mesmo tempo em que ela
reproduz mecan icamente (e aqui, até mesmo digit almente)
o texto que anuncia seu declínio e promove a rep rodução.
À sombra desse declín io da aura, a situação da obra é, com
efeito, completame nte clara.
Contudo, outra interpretaç ão da aura conflui para o in
corporai segundo outro regime. Com efeito, a aura bem que
poder ia consist ir na superfície de possibilidade que cerca,
qu e envolve a obra, assim como o espaço de sentido envol
ve tod a fala. A fala é corporal - as palavras são realm ente
corpos, segundo Zen ã036 - ; ora lmente enunciad a ou trans
crita em um sistema de signos como a escrita alfab ética , ela
subsiste como corpo . Mas ela se banha em um mundo que
é incorporai, o mundo da significação ou das significações,
um mundo sem limites, sem orientação, infinito. O mesmo
vale para a obra: trata-se de um corpo estri ta mente defini
do, circunscrito, cercado por um invólucro: um espaço va
zio que pode assumir sentido e que podemos traduzir como
aura , só que aqui a aura não tem nada de sagrado, nada de
ritual: trata -se simplesmente da ma nifestação de uma lei fí
sica que diz respeito a tod os os corpos e, em primei ro lugar,
ao corpo do mundo e a seu invólucro. É um espaço de ex
posição e de disseminação possíveis.
Desse modo, o declíni o da aura espiritual coincide com
o estabelecime nto de outra espécie de aura: destacad a do
36. Dióge nes Laércio, Vies, doetrines et sentences des phiJosophes illustres(trad. Robert Grena ille, Paris, Ga rnier/Flam mari on, 1965), livro VII, p. 67.
conteúdo da obra, e da própria obra enquanto objeto, en
qu an to corpo, trata-se de uma aura da qu al se pode dizerque é "comunicacion al?»,
Com esse espaço, tão próximo da supe rfície quanto do
ar e que Benjamin anunciou magistralmente, nós entra
mos em um universo que podem os chamar "sem objeto", o
espaço dos fluxos e dos cana is de transmi ssão de info rma
ções : o mundo da s redes. Aqui, nós freqüentamos diutu r
namente os incorporais e aquilo que até então os esco ndia
de nós: os cor pos - as obras e sua aura sagrada - se dissolvem bruscamente no vapor atmos férico.
Periferia ou contexto: essas são as novas palavras de
ordem da atividade artística - que excluem o corpo circuns
crito, delimitado, da obra, para promover o espaço que ela
habita, suas cercanias . Como qu alificar e defin ir esse mo
vimen to de passagem dos corpos para sua habitação, essa
transmissão da aura em presença a um a area em extensão cdisseminação?
O CON TEXTUAL
A expressão artecontextual, avançada por Paul Ardenne»,
poderia ser muito conveniente para o tran sporte da obra para
seu exterior, quando a arte abandona sua pretensão de produ-
37. Mesmo assi m, não se tra ta de um a "arte comun icacional", como a des crevem Mario Cos ta ou Frcd Forest, mas simplesmente de um a atividade art ís ticacuja ma ior parte se passa no exterior, nas relações ma ntidas em torno da obra, emsuma, na periferia. Para a arte comunicacional propriamente d ita, é preciso sair datécni ca, ou da mecani zação, e tomar o rumo da tecnologia.
38. Paul Ardenne, op. cit.
120 ANNE CAUQUELIN FREQüENTAROS INCORPORAIS 121
zir objetos específicos, definidos por critérios internos que os
tornam consistentes; em suma, quando ela renuncia a produ
zir corpos e se recompõe no ar ambiente segundo os diversos
elementos com os qua is a atividade artística se confronta. Mes
mo assim, é preciso dizer, com Ardenne, que se trata de retor
no à realidade? Que essa arte contextua l busca se introduzir
na realidade para subvertê-la ou transformá-la? Ser inciden
te t'personalidade incidente", como esclarece [ohn Latham»)
também é ser acidente, acontecimento entre outros incidentes
ou acontecimentos. Mas também equ ivale a dizer que a rea
lidade não consiste, que ela não pod e ser um suporte estável,
que ela é propriamente um composto instável de elementos
em mutações contínuas, tanto no eixo espaciotemporal quanto
no eixo dos corpos que são suas constelações efêmeras. Quem
quiser pôr sob um mesmo anteparo a preocupação com a rea
lidade, ou seja, a grande diversidade de atividades que ocupam
o campo artístico da arte contemporânea, arrisca-se a dizer
nada do tudo e, sobretudo, a esquecer aquilo que o termo pro
missor de contextualidade encerra.
Com efeito, contextua l é a ativ idade viva da arte de
hoje, não porque ela se aprox imaria de uma rea lidade da
qual não se sabe gra nde coisa (exceto em que ela nã o "con
siste"), mas porque ela assume tod o o seu sentido fora da
quilo em que ela consiste. Poderíamos dizer, então, que o
contextual envolve o que Gérard Gen ette cham ava de ar-
39. [oh n Lath arn, Event struc!ure: approach to a basic contmdiction (Calga ry,Scartissue, 1981), apud Paul Arde nne, op. cit., p. 20.
te "alogr áfica", ou ainda "transcendente". Existi r fora de si,
assumir corpo fora de seu próprio corpo, exportar- se, equi
vale a se ex-por. Com efeito, a não-consistência interna da
obra exige o exterior para tomar corpo . A arte contextual é
uma arte que se expõe, que se transporta, que se situa fo
ra, em uma palavra , que se exprime.
E XPRESSÃO E EXPRIMÍVEL
Contrariamente à idéia comumente aceita de que a ex
pressão man ifesta a interioridade de um sujeito, seu ponto
de vista sobre o mundo a partir de sua exper iência pessoal e
segundo os meios de que ele dispõe - e, desse modo, a obra
exprimiria o "ser" profundo do artista - , uma tradi ção filo
sófica refletid a por Giorg io Colli assinala à expressão o cam
po das interpretações, o da multiplicidade dos possíveis". A
partir desse ponto, trata -se de deixar a psicologia dos ind i
víduos, seus modos de recepção dos objetos visíveis ou le
gíveis, assim como o campo das emoções - sentimentos ou
paixões -, da vontade e da intenção, para abarcar um espaço
indiferente. A expressão, termo cuja form ação parece ind icar
que algo foi ou está para ser espremido para dali ser extraí
da sua qu intessência, é um conceito insatisfatório, para não
dizer decepcionante, a partir do momento em que se bus
ca circunscrevê-lo um pouco melhor. Sua própria expres-
40. Em l'h ilosoph ie de l'expression (trad. Marie-José Tramuta, Paris, Éditionsde l'Éclat, 1988). Giorgio Colli define a expressão como uma hipótese, em relaçãoà represe ntação, que é um dado.
122 ANNE CAUQU ELIN FREQ ÜENTAR OS INCORPO RAIS 123
sividade o desvia do campo - o das hipót eses, das idéias,das proposições - onde ele deve - segundo alguns - desem
penhar seu papel, opondo-se à representação. Essa própria
oposição lhe causa prejuízo, na medida em que a oposiçãopõe a expressão na mesma superfície de inscrição que sua
rival e, então, a define negativamente. Diríamos que a me
táfora de objeto vinculado ao termo (o gesto de espremer osuco de uma fruta) faz a expressão deslizar incessantemente
para o mimético, põe incessantemente a expressão na obri
gação de "representar" o gesto que seu termo evoca.Ora, se seguirmos a pista do exprimível, do lekton es
tóico, como o fez Gilles Deleuze«, a expressão é de natureza
conjuntural, não substantiva. Nem substrato, nem suporte, de nenhum modo qualificada, ela também não qualifi
ca uma ação, um gesto, um pen samento, nem se vincula a
eles de modo algum; sendo assim, um objeto, uma obra,um pen samento não são mais ou menos expressivos que
outros. Eles não possuem um caráter, mais ou menos mar
cado, de exprimibilidade. Só se diz que um pen samento é"expressivo" unicamente quando ele foi expresso; antes de
ele ser expresso, não se pode dizer que um pensamento é
"exprimível", ele só o é na breve passagem do não-expresso ao expresso. Unicamente nesse instante, percebemos
que aquilo que acaba de ser express o era exprimível e queo pensamento expresso é realmente uma expressão, mas
uma expressão sem outro sujeito além de si mesma como
41. Gilles Deleuze, Logique du sens (Pa ris, Éditio ns de Min uit, 1969), especialme nte pp . 11-34 fedobr.: Lógica do sentido (São Paulo, Perspect iva, 2000)].
pensamento, e não a expressão de algo ou de algu ém quelhe seria exterior. Da mesma maneira, antes de ser ocu
pado por um corpo, o vazio não é nem um lugar, nem um
"exprimível". Ele só o é na ação de se tornar vazio.Vista desse modo, segundo o lekion estóico, a expres
são de uma obra é sua extensão para fora de si mesma e não
a expressão de seu autor querendo "significar algo". Contudo, essa interpretação da obra como exposição de si, se ela
corresponder parcialmente ao conceito de exprimível, apre senta paradoxalmente a falha de encerrar a obra no círcu
lo restrito da arte pela arte: a obra se diz a si mesma e só se
diz a si, enquanto faz sua definição depender daquilo que acerca. A vizinhança de uma obra é, ao mesmo tempo, aqui
lo que a exprim e e aquilo que a condena ao isolamento. É
aqui que se vê o paradoxo no qual se fecham deliberadamente os artist as conceituai s.
Se se qu iser manter a idéia de uma expressão como
exterioridade, de uma exposição que se nega a si mesma e, desse modo, faz obra, sem dúvida, é preciso aban
donar a idéia de obra tal qual era considerada até então
e se inte ressar pelos meios que ela teria para ser apenasuma exterioridade: momento do "princípio extensão", is
to é, do "princípio comunicação". Nesse princípi o, inscre
ve-se uma estética da comunicação, tal como a apresentame defendem Mario Costa e Fred Forestv. Ao levar em con-
42. De Mario Costa, cf. especia lmente Le sublime iechnologiquc (Lausa nne, lderive, 1994) e seu último ensaio , Dimenticare farte (Nápoles, Franco An geli,2005). De Fred Forest, cf. "L'esth étique de la comrnuni cation", RevlIe +0 (Bruxelas, n. 43, 1985) e seu último livro, Uceuore, systeme inoisibíe (Paris, L' Harrn att an,2005). Nessas obras, é a ar te tradiciona l, com suas caracterís ticas clássica s (obra
124 ANNE CAUQUELIN FI<E<.)ÜENTAR OS INCORPORAIS 125
ta a transformação tecnológica dos meios de comunicação,
de seus modos de ação, os defensores dessa "nova estética"
tentam domesticar a relação da arte com a sociedade, fazer
dela o terreno, movediço, das trocas artísticas.
As técnicas elétricas, eletrônicas, informáticas nos introduziram a partir de então na sociedade da comunicação. Essas técnicas estão no centro das mudançasocorridas na vida social de um século para cá, modificando nosso meio físico, mas também nossas representações mentais.Hoje, a eletricidade, a eletrônicae ainformática fornecem aos artistas novos instrumentosde criação [.. .l. Freqüentemente, os suportes dessa estéticasão imateriais, sua substânciaderivade materiaisintangíveis que pertencem às tecnologiasda informação. Informação cujos sinais elétricos riscam acima denossas cabeças, no céu, configurações invisíveis, fulgurantes e mágicas."
Trata-se justamente de uma estética "em que a noção
de relação antecede o conceito de objeto, cuja linha de hori
zonte se situa além do visível, não fabrica objetos e não tra
balha a partir das formas, mas tematiza o espaço-tempo?".
Estamos precisamente no mundo da extensão; a obra
se deslocou, ela se tornou troca, ligação. Apesar disso, se
original, peça única, mercado de arte ), que é criticada. Mas o estabelecimento deuma estética de subst ituição enfrenta dificuldades para se constituir.
43. Fred Foresj, Manifeste pour une esthétique de la communication (1984);texto disponível no site do autor: <www.fredforest.com>.
44. Mario Cos ta, Le sublime technologique, op. cito
ela transforma o objeto da atividade artística, de algum
mod o o desmaterializa, sendo bem-sucedida exatamente
onde os primeiros desmaterialistas fracassaram, ainda está
longe de explorar, menos ainda de assumir, todas as pos
sibilidades de uma extensão pura, isto é, de uma atividade
tal que possamos chamá-la de incorporaI.
Éevidente que, em tal estética, o sentido está desligado
do objeto; ele passeia, erra ou flutua entre diferentes pólos
de emissão e de recepção, e os canais ou o conjunto dos di
versos canais pelos qua is ele passa são considerados como
obra em sua totalidade. Mas essa definição não o torna um
incorporaI, apenas um "invisível ". Precisamos ir buscar os
incorporais alhures, sem dúvida, na mesma direção que a
estética da comunicação, mas estudando mais detidamen
te os modos daquilo que se convencion ou chamar o esp aço
virtual ou, de maneira mais apropriada, o ciberespaço.
TERCEIRA PARTE
OS INCORPORAIS NO CIBERESPAÇO
Mesmo que os incorporais não sejam evocados pe
la estética da comunicação, termos como "invisível", "ima
terial" e "desmaterialízado" são freqüentemente utilizados
por ela. Estamos situados justamente no movimento críti
co que seguimos desde o início deste trabalho sobre a ar
te contemporânea. Não que seja essa a corrente mais bem
afirmada ou que se apresenta como o futuro inapelável da
atividade artística: há muitas outras maneiras de praticar
a arte atualmente, e o visível, o corpo, aquilo que evoca os
sentidos não foram renegados. Longe disso. De um lado,
esclarecemos na introdução, há uma inflação de arte cor
poral com todos os complementos, adições, embelezamen
tos e complicações que a tecnologia pode trazer à body art.Por outro lado, vários artistas contemporâneos seguem em
seus trabalhos a via traçada pelas lógicas da retirada, da de
negação, da falta ou falha, do deslocamento, e nesse caso as
novas tecnologias, chamadas como reforço pela estética da
130 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 131
comunicação, trazem seu auxílio sem nem por isso passar
a ser o principal instrumento, nem o suporte, nem o mate rial conceitual.
Desse modo, quando esses mesmos artistas utilizam
sites da internet para apresentar seus trabalhos, nem por
isso estão entrando no espaço cibernético. Falar de obra
virtual ou de galeria virtual quando se expõem na inter
net obras já realizadas é um abuso de linguagem. Aliás, a
maior parte dos museus chamados virtuais nada tem de
virtual: eles apenas permitem visualizar uma seqüência de
fotografias e de visões panorâmicas; nesse caso, o que se
chama de "virtual" é a possibilidade que tem o visitante de
escolher o que ver clicando um nome em um menu:
Aliás, a atividade artística que tem por instrumento
de concepção e de difusão o mesmo suporte - a rede, ou
net - e que, por conta disso, é produtora de arte como a net
art, não é a única a se situar no espaço eletrônico; inúme
ras obras utilizam esse espaço para se constituir enquan
to tais, fora da tela. É esse espaço, cujas propriedades são
ainda bem pouco compreendidas pelo grande público, que
me pareceu que o conceito de incorporaI, tal como o vie
mos apresentando até aqui, pode esclarecer.
1. O utros projetos de museu virtual, que são realment e virtuais, estãoprontos ou em preparação. O mai s recente, de Claude C1osky, é a i-galerie, no sitedo Mundam ; cf. <hll p://www.mundam.lu/ igalerie>. Sobre essa questão, cf. o a rtigo de Simon Larnuniere, "Le mu sée dilat é", no catá logo da exposição louable:art. jeu et interactivité (Genebra /Par is, Haute École Appliquée/École Nationale desArts Décorali fs/Ciren - Université Paris vnr/Saint-Gervais-Ceneve, Cen tre pou rI'Ima ge Contemporai ne, 2004).
UM VAZIO TEÓRICO
A quem encara esse espaço se propõe, já desde o iní
cio, algo como um vazio de referências, de história, de defi
nições coerentes. O espaço das ações cibernéticas não tem
muito mais que vinte anos, o que não é o bastante para a
acumulação de estratos históricos como temos para a cul
tura artística, nem o suficiente para que o enunciado de um
nome de artista, de uma obra, faça surgir imediatamente
uma imagem, um nome e, se não uma referência exata, ao
menos uma vaga lembrança no espírito do leitor ou do es
pectador ocidental. Sem competência particular, ele geral
mente possui a competência cultural mínima, que o torna
apto a entender todos os tipos de discurso; por exemplo, ele
sabe ao menos o nome de um museu, sabe onde encontrar
uma exposição, o que são uma obra de arte e um artista, ele
distingue uma escultura de um quadro, uma orquestra sin
fônica de uma dança popular. .. Nada parecido na esfera da
cyberart. Nem nomes de autores, nem obras são conhecidos
pelo público. Os lugares de exposição ou de informações são
ignorados ou resgatados ao acaso na web. A própria idéia de
uma arte de computador parece remota . Aliás, devemos di
zer net art, computer art ou cyberart? Ou ainda : arte eletrô
nica ou digital? Com que termo designar essa atividade? O
que é preciso saber para ser um computer artist? É preciso
ser, prioritariamente, especialista em informática ou artista
plástico? É possível ser completamente analfabeto em infor
mática, sem especialização alguma? Difícil dizer. Aliás, vá-
132 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 133
rios artistas do digital se declaram autodidatas. E, a partir
do momento em que se conhecem mais ou menos o cami
nho-padrão de um artista plástico e o nome das escolas pe
las quais ele deve passar: belas -artes, artes decorativas, artes
e ofícios, bem como as galerias onde, se tem alguma ambi
ção, ele deve expor, é preciso entrar no campo especializado
da atividade própria aos computer artists para recolher infor
mações . Segue-se um procedimento aleatório, porque cada
um tem seu percurso e nenhuma formação predeterminadae padrão predomina.
Os realizadores costumam lamentar a inexistência de
uma verdadeira crítica de arte que possa falar de seu tra
balho, mas quem se arriscaria a isso? Alguns críticos, co
mentadores ou teóricos tentam pôr ordem nessa dispersão,
mas a desordem se reinstala. Nada parece unir o que se
faz aqui e ali, além da boa vontade dos comentadores que
abordam esse campo. E eles, ainda por cima, são limitados
pelo círculo de pessoas que conhecem nesse campo, círcu
lo na realidade muito fechado. Por outro lado, as peças es
tão freqüentemente indisponíveis: ou estão em projeto, ou
então desaparecidas por não serem corretamente conser
vadas; é o que acontece quando os meios de acesso não
estão mais disponíveis, pois como os instrumentos tecno
lógicos evoluem sem cessar, eles tornam obsoletos os an
tigos, os que foram utilizados para criar a peça. Ê como o
diz Valery Granger: "Naquilo que me diz respeito, as peças
que são compradas pelos museus não estão mais on-line .
Na fundação Cartier, eles refizeram o site sem ao menos
perceber que tinham destruído as duas peças que tinhamcomprado, sem sab er. . . Sempre trabalhei em âefautt'».
Do mesmo modo, Claude Closky: "Eu me dei conta de
que, ao mudar de servidor, uma parte de minha obra para
a internet (da exposição Médiascape) se perdeu. Para a ex
posição La salle de bain, em Lyon, minha peça não funcio na : 'Erro 404' aparece">,
Paradoxalmente, para uma mídia cuja característica principal é uma memória quase infinita, o título NoMemory da peça de Valery Granger parece se aplicar a um
grande número de obras digitais.Há ali um estilo de arte efêmera bastante involuntário,
que, não obstante, parece vinculado desde seu interior, por
razões verdadeiramente materiais, à própria condição de
obras digitais. Esses desaparecimentos não parecem afetar
em alto grau os artistas, mesmo que eles não estejam todo s
obrigatoriamente nas mesmas posições que os arti stas daretirada ou da destruição, dos quai s falamos em nossa se
gunda parte, nem como aqueles que trabalham na internetna via do apagamento, como Sawad Brooks, Christa Som
merer e Laurent Mignonneau-,ou até mesmo Mark Napier.
Contudo, para eles, o apagamento de seu esforço de apaga
mento não é de modo algum desejado.
2. Entrevistado em janeiro de 2005 por Anolga Rod ianoff, no quadro de umestudo sobre as ar tes digitais do laboratório da Maison des Sciences de I'H omm ede Paris Nord.
3. Ibidem.4. Entre esses últimos, " Phototropy" joga com criaturas cha madas "efême
ras", que morrem qua ndo são ilumin adas por uma tocha. Mark Napier, imediatamente segu ido por outros ar tistas, como Stéphane Baron com seus estru mes,apaga as mensagens mistur and o-as e voltan do a dar-lhes visibilidade de um modo que parece aleatório.
134 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 135
Na falta de obras que poderíamos apreender, na fal
ta de uma linguagem para criticá-Ias, na falta de conheci
mentos suficientes para apreciar seu sabor tecnológico, é
preciso então buscar as críticas entre os próprios artistas e
deixá-los falar daquilo que fazem e daquilo que fazem os
outros. Círculo fechado, restrito, que a pedagogia e a teo
ria tentam abrir, sem grande resultados. Porque cada um
deles, além de seu percurso singular, tem suas práticas de
difusão, suas entradas no mundo dos patrocinadores, tão
difíceis de encontrar que elas ocupam praticamente qua
tro quintos de seu tempo, e sua linguagem, à qual cada um
deles se apega . No isolamento de uma prática artística que
ainda não encontrou seu lugar real no mundo da arte, ou
seja, no mercado, o computer artist não sabe se é realmente
um artista e se deve ou não reclamar esse estatuto.
Mas não me estenderei muito mais sobre esse iso
lamento, porque outros, como Edmond Couchot e Mario
Costa já o fizeram, empenhando-se para remediá-lo com
suas obras e com suas atividades na instituição. Graças a
eles, mas também graças à maré montante de obras sobre
a internet e as diversas formas que elas tomam, esse iso
lamento tende a se reduzir, mas também é verdade que a
dispersão e o aumento também são uma forma capciosa de
isolamento. É preciso se resignar com o fato de que o es-
5. Annick Bureaud com Annick Bureaud & Nathalie Magn an (orgs.), Connexions: art. réseaux, médias (Paris, EN5BA, 2002); Edm ond Couc ho! & Norb ertHilla ire com Uart num érioue: comment la technologie vient au monde de l'ari (Paris,Flam marion, 2003).
paço a investir ainda está vazio; e mais, trata-se de um va
zio cindido...E isso é algo que não devia nos perturbar, dado que
também perseguimos juntos o vazio incorporai que os es
tóicos nos prometem, Evidentemente, o vazio que cerca o
campo da ciberarte é uma metáfora, mas, enquanto metá
fora, ela parece indicar outras espécies de vazios - e dessa
forma um vazio jurídico, do qual voltaremos a falar -, co
mo se tal espaço, ao incluir o vazio incorporai em sua defi
nição estrutural interna, desse visibilidade exterior à noção
por todos os tipos de manifestações concretas.Não vou tentar aqui, mais uma vez, preencher esse va
zio com um histórico e um apelo aos pais fundadores, nem
classificar em rubricas mutáveis a diversidade dos proces
sos e dos suportes, e só evocarei algumas práticas e algu
mas obras (na verdade, bem poucas) exclusivamente para
esclarecer as noções às quais elas parecem se referir, assim
como para compreendê-Ias em si mesmas.Em contrapartida, o que posso tentar é revisitar as prin
cipais noções que a ciberarte pôs em jogodesde que ela existe,
e ver se os conceitosque tomamos de empréstimo aos incor
porais podem redistribuir seus princípios de uma maneira
que corresponda às práticas. Essas noções são conhecidas,
ao menos na esfera íntima que compreende os cibernautas e
aqueles que se preocupam com ela, mas algumas delas ultra
passam essas fronteiras e são amplamente utilizadas na vi
da cotidiana - por exemplo, "virtual" ou "interativo" -, o que
contribui bastante para torná-las obscuras.
Uma tentativa de estabelecimento: os imateriais
Proponho-me, portanto, retomar os quatro incorpo
rais: lugar, tempo, vazio e exprimível, como já fiz no caso
da arte contemporânea, para ver em que medida eles en
tram na composição desse novo espaço.
6. o catálo~? é apresen,t~do ~,a seguinte maneira; Ouvragepubliéà l'occasion~~ l~ manifesiaiion LesImmaiériaux , présentée parleCentredeCréation Industrielle
8 marsau 15 JUllld1985, dans la Grande Galerie du Centre nationalde l'ariet decultu:~,Georges-Pompldou [Obra publicada por ocasião da manifestação "05 Imateriais , apresentada pelo Centro de Criação Industrial de 28 de março a 15 deJulho de 1985, na grande Galeria do Centro Nacional de Arte e Cultura GeorgesPompidou].
Eis um belo título para começar a investigação. Já de
início, "imateriais" soa como um credo. Passamos para o
outro lado da matéria, nós nos aventuramos, lançamo-nos
inteiramente em um espaço desconhecido, a explorá-lo.
Contudo, atenção: "imateriais" não é o mesmo que ima
terial, mas designa sobretudo a materialidade daquilo que
reputamos ser imaterial; materiais que não são exatamente
~ateriais, porém que servem para construir, invisíveis que,
nao obstante, trabalham como operários da cultura do in
tercâmbio. O termo "imateriais" pode, então, enganar e
conhecendo Lyotard - eu diria até que ele é feito para isso.
A "manifestação" organizada por Jean-François Lyo
tard no Beaubourg, em 1985, no Centro de Criação Indus
trial, serve de programas. "Manifestação" não é "exposição",
mas "manifesto por" um novo tipo de relação com a arte, a
filosofia, a prática, a técnica e a indústria. Tudo isso ao mes-
137
mo tempo. Ao evitar o termo exposição, os autores se situam
deliberadamente fora da tradição museológica e galerista da
arte, pretendendo dar uma abertura mais ampla ao que é
proposto, mostrado e até mesmo demonstrado. Não se tra
ta de expor um material- pinturas, esculturas, desenhos, li
vros, máquinas - que primeiro seria estocado para depois
ser mostrado, mas de revelar um núcleo de práticas a des
dobrar, a experimentar no lugar. Também não se trata de
um conjunto de obras in situ, nem de um happening - é is
so que a participação solicitada ao público poderia sugerir.
Não! Trata-se especialmente de uma manifestação conce
bida como operação de lançamento de um produto, sendo
aqui o produto um dispositivo complexo de pensamentos,
de técnicas, de relações, uma plataforma de ações possíveis,
em suma, de um modo "outro" de pensar e de agir.
Jean-François Lyotard desmantela esse dispositivo e
o reconstitui à medida que vai desenvolvendo as entradas;
não se trata de entradas físicas, o Beaubourg não tem mi
lhares de entradas praticáveis, mas entradas para as idéias,
nesse caso, as palavras. Entramos nas idéias pelas pala
vras. Entramos em um espaço "outro" pela linguagem.
Vários elementos entram em jogo nesse manifesto
por uma heterotopia; com efeito, um "outro" espaço socio
técnico se desenha, marcado por uma virada lingüística e
uma virada comunicacional, com os novos instrumentos
de transmissão da informação.Virada lingüística: a linguagem assume cada vez mais
importância no pensamento contemporâneo. Baseado nessa
1'1~I'.VOENTAROS INCORPORAISANNE CAUQUELIN136
138 ANNE CAUQUELIN FREQüENTAR OS INCORPORAIS 139
constatação, Lyotard admite que nós não conhecemos nada
sem a intermediação de uma informação. O objeto em sua
suposta materialidade desaparece por trás de sua cobertura
lingüística: "A cobertura do acontecimento confundida com
o acontecimento'", Um mundo envolvido em linguagem,
que oculta a nossos sentidos qual é o objeto dessa lingua
gem, esse é o mundo que [ean-François Lyotard apreende.
Desse modo, as mensagens trocadas entre os indivíduos
que falam e pensam são as únicas realidades perceptíveis de
um universo tecido em nós lingüísticos. Em outras palavras,
uma sociedade comunicacional se estabelece, e Lyotard pre
tende dar, se não sua descrição completa, ao menos seu gos
to e sua filosofia.
O campo da pesquisa é, desde então, quase infinito:
se tudo é linguagem, todas as linguagens são requisitadas
para dizer o que é, ao passo que aquilo que é é apenas lin
guagem. O que aqui se desenha é simplesmente o universo
tal qual aparece em certo momento, convocando os desen
volvimentos futuros; tudo o que é veiculado, sem omissão,
a todo instante e que cresce a partir de si mesmo.
Nessas condições, a manifestação assume feições en
ciclopédicas; uma enciclopédia heterotópica, que tenta
criar em torno de numerosos saberes de todas as línguas
um espaço de extensão que não está em conformidade com
a geometria demarcada que geralmente regula os campos;
um espaço que se constrói à medida que é utilizado e cuja
definição é, então, indefinidamente reportada.
7. "Matiere", Catalogue des Immatériaux (Paris, 1985).
,..',
A questão em seguida suscitada é, então, como tor
nar visível essa filosofia heterotópica, como expô -la. Ta
refa para o artista: representar o irrepresentável; pegar o
touro pelos chifres e o irrepresentável por si mesmo; ins
crevê-lo como objeto para uma ou várias representações.
Construímos uma lista dos termos que assinalam em ne
gativo as concepções antigas. Fazemos dela a aposta de um
jogo. Um programa para pensamentos vindouros.
Com efeito, encontramos na entrada "Matéria": som
bra da sombra, vest ígio do vestígio, espaço recíproco (vemos
a interação apontar), luz subtraída, irrepresentável (ei-Io!),
imagens calculadas (antepassados do digital?), odor pinta
do, aroma simulado, visitas simuladas, profundidade simu
lada (a grande queixa da simulação.. .), referência invertida.
As entradas "Material", "Matriz" e "Matéria" determi
nam cada uma das listas de subentradas. São (não vamos
retomá-las todas aqui) palavras de ordem como: matéria,
desmaterializado, superfície inencontrável, indiscernível,
infrafino, segunda pele, homem invisível, variáveis ocultas,
tempo diferido.Já estamos nos menus rolantes de nossas telas atuais,
com entradas cruzadas, programas que se entrecruzam en
tre si, em suma: links. Em uma experiência chamada Prova
de escritas», o entrecruzamento assume dessa vez o pretex
to de respostas cruzadas a palavras que solicitam uma defi
nição ou um comentário. Respostas de autores às respostas
8. Em uma brochura à par te, qu e é a terceira parte do catálogo.
140 ANNE CAUQUE LIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 141
de outros autores, em um jogo de espelhos assimétricos,
com os escritores se juntando em computadores (micro
computadores M20 e M24 cedidos pela Olivetti).
Volta mos a encontrar aqui algo com que estamos agora
acostumados na arte contemporânea-e que aparenta estar
unido à problemática dos incorporais: a lista - programa de
coisas a fazer que valem como obra. Os autores sondados
recebem uma regra do jogo enunciada como segue:
Você está recebendo uma lista de cinqüenta palavras.
Dê-lhes uma definição de duas a dez linhas; essas defi
nições serão salvas em computador e armazenadas em
uma mem ória central à qual você terá acesso por meio
de uma máquina de processamento de texto, ligada em
rede às dos demais autores. Você tem a opção de res
ponder a eles, completando ou refutando suas definições; o importante é dar seq üência.
Parece-nos que esse protocolo saiu de um depósito de
cenários ou de um celeiro mágico do teatro dos anos 1930,
o que nos faz lembrar dos primeiros telefones dest inados a
escutar árias de ópera. . . tanto mais que, no local (eu estava
lá), as máquinas se recusavam obstinadamente a funcio
nar, como ainda é o caso hoje em apresentações, é verdade,
mais sofisticadas. Não obstante, tudo já estava lá, em ger
me, antes que os computadores da Olivetti cedessem lugaraos rcs e aos Mac .. .
9. Cf., na segunda par te: "Tempo incorporaI e acontecimen to".
Mas isso não é tudo. A essas "provas" se acrescentam
as referências conceituais indispensáveis: um envelope com
falas extraídas do campo da literatura (em grande parte filo
sófica), que o visitante, munido de um rádio portátil, vai ou
vindo enquanto pas sa de uma sala para outra; desse modo,
ele é imerso no discurso e, ao mesmo tempo, mergulhado
no próprio núcle o dos dispositivos que ilustram os temas.
Imagens e sons, falas, músicas, ações; Nietzsche, Wittgen
stein, Barthes, Freud, Habermas, Borges, Baudrillard, Bec
kett, Artaud, Michaux, Blanchot. . .
São esses os quadros de referência da operação, um ca
tecismo para a jovem geração comunicacional. E, de fato,
voltamos a deparar essas font es citadas e exploradas prati
camente por todos os artistas do ciberespaço, quando eles
explicam suas ações". Trata -se de uma ópera, com vári as
orquestras, polifônica, cujos visitantes são, eles próprios, si
multânea ou sucessivamente, trechos e cantores. Eles são
sua "variável oculta".
U M CO NJUNTO FRAGMENTÁVEL
Ao analisar, peça por peça, esse conjunto imponen
te, encontramos todos os ingredientes que identificamos
quando tentamos decifrar as obras contemporâneas. As
mesmas referências, o mesmo gosto por uma lógica do ne-
10. Éo caso de quase todos os artistas contem porâneos:cf. Revue d'Esthétique(Par is, n. 44, "Les ar tistes contemporains et la phi losophie", erg . Arme MoeglinDelcroix, 2003).
142 ANNE CAUQUELIN FREQüENTAR OS INCORPORAIS 143
gativo: sombra da sombra e variável oculta, a mesma atra
ção pelo irrepresentável, pelo indizível, pelo tempo diferido,
pelo invisível, pelo vestígio do vestígio.
Mas acrescenta-se a isso uma dimensão que liga es
ses elementos a uma variável, que não está oculta, mas exi
bida: a ordem da informação, a ordem comunicacional. A
manifestação é reagrupada em torno desse tema central:
as práticas, as teorias, os textos. Nesse sentido, é significa
tiva a bibliografia que encerra o inventário (primeira par
te do catálogo); ali são agrupadas várias obras sob o título
"Linguagens". Trata-se de pesquisas sobre a informática,
a cibernética, a telemática, o computador, a síntese de fala.
Mas é entre os aspectos diversos das referências literárias,
artísticas e científicas que surge uma confusão, ali onde se
esperava uma seqüência. O mundo comunicacional que,
achava-se, devia ligar esses elementos entre si age especial
mente por adições e sucessões, com uma informação ex
pulsando a outra e com o amontoamento delas tornando-as
em última análise iguais a zero, e assim o visitante submer
so fica à deriva em um universo de ruídos. Viemos a saber
depois: o excesso de informações mata a informação.
Por que não se faz a mistura? O que é que falta a essa
manifestação para convencer o visitante de que um mun
do (isto é, um conjunto amarrado) está em vias de nascer?
Parâmetros como o tempo, o lugar e a troca são utiliza
dos, mas cada um deles é tratado separadamente. Assim
como agora sabemos que as informações se anulam umas
às outras, sabemos também que o espaço da comunicação,
aquele que chamamos de ciberespaço, é indivisível. Os ele
mentos que o constroem são inseparáveis uns dos outros.
O INSEPARÁVEL
Em contrapartida e por negação, os Imateriais se refe
rem ao mundo da matéria, dos corpos, ou ainda da exten
são, cuja principal característica é ser divisível, segundo a
definição cartesiana. Enquanto tais, eles estão submetidos
ao caráter separatista da matéria, à separação. O imaterial,
aquilo que é visado pela ordem comunicacional que se de
seja mostrar, só pode, portanto, ser uma entidade à parte,
uma força oculta, claro, mas pelo fato de ser inatingível pe
los meios da matéria , ela foi negada . Por exemplo, a signi
ficação das palavras da troca pertence às palavras, que são
corpos; desse modo, não é a significação que é "imaterial",
é o modo da troca e o suporte que ele convoca enquanto es
paço da troca que poderiam ser qualificados de imateriais,
ou, mais exatamente, de incorporais; se nós nos reportamos
ao exprimível estóico, com efeito, as palavras são objetos,
corpos, e só se pode chamar "incorporaI" o espaço de ex
tensão ainda vazio que permitirá ao sentido advir. Esse es
paço para a significação não é um espaço da significação. Ele
ainda não foiseparado, razão pela qual não é visível. Buscar
o invisível por trás do visível, passar para além da matéria
dividida, é buscar o inseparado, logo, o inseparável.
Quando tentamos compreender os deslocamentos que
os artistas "desmaterialistas" operavam, pudemos recortar
144 ANNE CAUQUELlN FREQüENTAR OS INCORPO RAIS 145
sem muita dificuldade os elementos sobre os quais eles ha
viam trabalhado, como o lugar, o vazio, o tempo e o expri
mível. Mesmo supondo que esses elementos tivessem tido
vínculos, um entre eles se encontrava sempre em uma po
sição dominante com relação aos outros e podia servir pa
ra caracterizar o trabalho de cada um: o lugar/não-lugar para
Smithson, o vazio para Klein, o tempo para Opalka ou Om
Kawara, o exprim ível para Kossuth. Em suma, pudemos
tratar separadamente os quat ro incorporais, mesmo que o
exprim ível parecesse oferecer grande resistência à dissec
ção. Sem dúvida, é esse o motivo pelo qual o estatuto de
incorporaI nos fugia e fugia das obras que o visavam.
A grande diferença entre o espaço tradicional das obras
e o espaço cibernético é a impossibilidade de tratar o espaço
cibernético segundo a análise, isto é, segundo a possibilida
de de distingu ir suas partes, como o recomend aria o espírito
geométrico. Essa mesma característica tamb ém nos permite
compreender melhor por que as práticas cyber são tão difí
ceis de classificar e por que as classificações, quando tentam
dividir as obras, são tão diversas, coincidem tão pouco, não
podendo recorrer nem aos próprios autores, nem às próprias
obras, nem aos próprios suportes. Contudo, o caráter total,o "todo-em-urn?», da mídia eletrônica é reconhecido, mas
parece que esse reconhecimento se detém nesse ponto e que
o método clássico de distinção tem a primazia a partir do
momento em que se trata de comentá-lo.
11. "Todo-em-um", porque a emissão e a recepção são simultâneas, e o autor é também o próprio encarregado de exposição.
,"
'./'
É O mesmo método, analítico, discursivo, que foi utilizado em Os Imateriais para apresentar os diferentes aspectos da nova filosofia da comunicação, e é sem dúvidaesse cuidado com a classificação, com distinções, que faz o
empreendimento fracassar.Contudo, esses mesmos Imateriais - que permanecem
injustamente quas e ignorados pelos ensaios sobre a história da arte ciberné tica, pelas recens õesv, pelas obras queabordam a arte na era do virtua l", ou ainda são expedidos em dois temp os em uma anál ise da arte digitalv- sãouma introdução interessantíssima à questão de que aqu inos ocupamos, a questão dos incorporais: eles mais ou menos "farejaram" sua natureza" enfatizando as tecnologia scapazes de esclarecê -los, mas sem ter os meios de explorartodas as suas possibilidades. Além disso, os Imateriais prefiguram muitas práticas que atualmente conhecemos, en quanto o ciberespaço é ali esboçado como o lugar utópicoda união - ou da reunião - do diverso.
F O RMAS DO INVISívEL
Somos vítimas de um imaginário comum que quer que
o espaço seja neutro, indiferente, e que nele possamos es-
12. Ann ick Bureaud & Nathalie Magnan (orgs.), op. cit.13. Ch ris t íne Buci-Glucksma n (org.), Ean à l'époque du inrtuel (Paris,
L'Harmattan, 2003).14. Edmond Couchot & Norbert Hillaire, op. cit. Lyotard é aqu i objeto de
três linha s que o condena m por ter menosprezado as tecnologias (p. 123) e de cinco linh as (p. 152) que, ao contrário, louvam seu empreendimento, que provocou aad missão da arte tecnológica no Beaubourg.
15. "As almas farejam no invisível", diz Heráclito, em H éraclite, ou la s éparation (trad, K. Bollack, Paris , Êditions de Minu it, 1972), fragmen to 98.
tabelecer objetos independentes dele: como se fosse possí
vel separar os objetos de sua situação e de seu suporte... e
até mesmo de nós. Desse modo, vemos objetos distintos, de
contornos definidos. Aquilo que é distinguido, circunscrito,
é também o que chamamos de visível. O que é visível tem
uma forma, e nós percebemos um objeto na medida em que
ele tem uma forma. O informe e o indistinto nos escapam.
poderíamos dizer, então, que o invisível é aquilo que não
tem forma, que é indistinto, não-separado. A caça ao invi
sível, à qual tantos artistas parecem se dedicar, seria uma
tentativa de dar uma forma àquilo que não tem forma, ou
de fazer sair algo de indistinto do domínio nebuloso onde
isso jaz para disponibilizá-lo para nosso mundo, para pô-lo
ao alcance da visão. Temos aqui um ponto de vista clássi
co desde as fórmulas de Klee e os trabalhos de Merleau
Ponty: mas nem por isso ele é muito claro.Com efeito, é mesmo dessa operação que se trata no
caso dos Imateriais (por exemplo) ou do espaço cibernéti
co? Parece que o espaço da troca, a relação que se estabe
leceentre dois pontos - espaço de que se trata na ordem da
comunicação - é de natureza tal que não se pode fazer de
le um objeto distinto, ou seja, que apresente uma forma de
objeto.Por trás do visível, por trás daquilo que é objeto para
nós, geralmente imaginamos algo de imperceptível de on
de esses mesmos objetos emergiriam. Algo que não teria
forma e ao qual nos apressaríamos a dar uma imagem pa
ra tentar representá-lo: fluxos, o ar, vapores, vibrações. Um
fundo de quadro, de certa maneira.
Mas se esse espaço invisível for concebido como parte
integrante do visível, isto é, do objeto visto, com o qual ele
se tornaria exatamente um, nosso imaginário ficaria em má
situação. Contudo, é justamente isso o que se passa com o
espaço eletrônico e a tecnologia de internet. Quando visua
lizamos um objeto na tela de computador, apreendemos a
tela e o objeto com, ao mesmo tempo, o processo de sua
produção. O invisível, enquanto aquilo que permanece
ria oculto por trás, como fundo imperceptível e inatingível
das coisas, desapareceu; ele subiu à superfície e, nesse mes
mo movimento, priva o visível de profundidade e de todo
questionamento mais ou menos místico sobre sua nature
za espiritual. Passamos da metafísica do invisível primor
dial à mera física. Ora, também encontramos nos estóicos
um mundo feito de corpos que se mantêm unidos graças a
um fogo interior ou sopro corporal, material: o que une os
corpos entre si é da ordem da física, mesmo que não se pos
sa vê-lo. O invisível é corporal. Se quisermos exprimi-lo em
outros termos: existem corpos invisíveis, tal como o sopro
cálido, o "fogo artista" técnico, isto é, engenhosamente fa
bricado,que atravessa todos os seres, reunindo-os por sim
patia e tensão (sendo os dois fenômenos físicos também). E
justamente parece que esse modelo convém ao espaço do
invisível/visíveldo espaço eletrônico.
Então, ultrapassar a pretensa invisibilidade ou criticar
seu uso parece desejável, o que, aliás, significa buscar os
outros atributos capazes de dar conta de um espaço tal qual
aqueleque nos é oferecido pelas tecnologias cibernéticas.
146 ANNE CAUQUELIN
1FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 147
148 ANNE CAUQ UELIN FREQüENTAR O S INCORPORAIS 149
PRIMEIRAS RECENSOES16
Conhecemos as características atribuídas ao espaço ele
trônico. Elas evoluíram em várias obras e continuam a ser
descritas e discutidas em numerosos artigos; eu as enumera
rei aqui resumidamente. Muitas delas estão longe de ser uní
vocas e quase todas são de uso muito diverso, segundo os
autores. Eu me contentarei aqui em descrevê-las segundo seu
uso ma is freqüente, ressaltando apenas sua ambigüidade e
me reservando o direito de criticá-las na seqüência.
Tempo: tempo real, emis são-recepção/emissão-imersão.
A velocidade dos processos digitais, nos quais a respos
ta se segue imediatamente à pergunta, leva a crer em uma
simultaneidade curiosamente batizada de "tempo real". Su
pondo-se aqui que o real é aquilo que está presente em da
do momento diante de alguém, "tempo real" significaria a
presença do objeto hicet nunc diante do sujeito que o perce
be. Desse modo, tempo "real" remete à ligação instantânea
de uma emissão e de uma recepção. No caso da obra de arte
e segundo os defensores desse tempo "real", trata-se de su
primir a distância entre a obra e o público, geralmente man
tido a distância pelo sistema de mu seu s e outras instituições
da arte. O conceito de tempo real es tá ligado à interativida
de, da qu al ele é parte essencial: interagir com uma obra di
gital é nela intervir em "tempo real ".
16. Pode -se enco ntrar um glossá rio de termos com definições cons istentes. ilustrações e comen tários no Dictionnaire des arls médiatiques (Montreal. Université du Québec à Montreal, <htt p://www.comm.uqam.ca>). Outra fonte deinformações úteis , mais precisas e mais contemporân eas, encontra-se no sitedI' Leonardo: <htt p://www.olats.org.basiques>, proposto por Annick Bureaud .
A imersão, que é uma das formas que a interativida
de assume, é requerida pelos procedimentos que permitem
ao visitante entrar de maneira multissensorial no universo
proposto. Um equipamento especial mai s ou menos com
pleto é com grande freqüência necessário para esse tipo de
apreensão, como a captação e a ação em retorno exigidas
pela peça em que stão.
Ação: autor-ator, coação-interação, aleatório, interati
vidade, captura, imersão, movimento.
Todas essas ações fazem parte da série de conceitos em
uso no mundo da arte digital. Interação rima com intera
tividade e as duas são freqüentemente tomadas uma pela
outra, quando na verdade um espaço (o próprio espaço da
cibernética) as separa. Com efeito, diferentemente da in
teração, que é simplesmente uma ação cruzada e que va
le em qualquer que seja a situação, a interatividade entre
uma obra e seu visitante é específica do mundo digital, com
a possibilidade que tem o espectador de se tornar ator, is
to é, de intervir sobre os elementos da obra. Isso faz do es
pectador, no dizer de alguns, um "co-autor" não apenas em
pensamento ou por meio do olhar, ma s em ação, dado que
ele contribui com uma ou várias modificações para o objeto
apresentado", A obra permanece, então, suspensa, inaca
bada, e seu estado último (mas não final) tem algo de im
previsto - que é freqüentemente chamado "aleatório", uma
palavra que agrada, mas que nes se caso não é justificada,
pois o projeto do autor evocava essas intervenções, se não
17. Essa noção de co-autor, como veremos, é muito criticada pelos art istas.
150 ANNE CAUQUELIN FREQüENTAR OS INCORPORAIS 151
em seu detalhe, ao menos como modus operandi. "Aleató
rio", assim como "nomadismo", "inacabamento" e "efême
ro" são termos de múltiplo uso, uma sólida superfície de
termos comuns que desempenha o papel de doxa e, pratica
mente, de palavras de ordem.
Lugar: ubiqüidade, links/extensão de links, rizomas,
infinito, nomadismo.
Os links entre sites da web, que representam as ma
lhas da rede, podem se multiplicar ao infinito. Eles indicam
as conexões possíveis, percursos múltiplos e reversíveis: o
termo "rizoma" é utilizado para caracterizar essas espécies
de linkse suas extensões. Por serem multipólo e por agirem
em tempo real, os links parecem indicar que o internauta
pode alcançar vários nós da rede simultaneamente e com
um único gesto. Nessas condições, o termo "nômade" é lo
go suscitado e ninguém se priva de utilizá-lo para designar
o gesto do internauta que busca fixar um objeto. Mas não
é o internauta que se nomadiza, como ele gostaria de acre
ditar, é o objeto que deriva em um espaço fluido, é o lugar
que perde sua qualidade de estabilização e de enraizamen
to para se tornar errante.
Dessa maneira, o sujeito pode estar, ao mesmo tem
po, aqui e lá, o que representa uma espécie de ubiqüidade.
Várias obras permitem "ver" essa ubiqüidade; são as obras
classificadas como de "telepresença". Um exemplo: Ornitorrinco, de Eduardo Kac1B• Outro exemplo: Telematic Dreaming,
18. Criado em 1989, Ornitorrinco é um telerrobô autônomo e unreless, manipulado a distância por meio de um teclado de telefone. O "retorno de imagens"é assegurado por um videofone. O público percebe o ambiente do telerrobô na es-
I
de Paul Sermon, dispositivo constituído de duas camas, em
dois lugares diferentes, em que a imagem dos participantes
em um lugar é projetada na cama do outro lugar. Exemplo
de uma telepresença "desencarnada", ou seja, sem corpo de
substituição.
Exprimível: virtualidades, virtual, possíveis, infinito.
Virtual e virtualidade são, sem dúvida, os termos que,
com interatividade, fazem os maiores estragos. Geralmente
se diz que a virtualidade contém uma realidade na expectati
va de ser realizada e que a virtualidade é uma força que tende
a se exprimir, sem por isso depender de sua realização.
Contudo, o sentido do termo pode ser circunscrito no
campo do digital, no qual passa a designar um ambien
te simulado, que tem as características do mundo natu
ral e no qual o visitante pode intervir. Nesse caso, nada de
realidade virtual nem de virtualidade fora de um progra
ma interativo atraente; em outros termos, nada de virtual,
nesse sentido circunscrito, sem uma aparelhagem compu
tacional e física.
Vazio: o vazio só é evocado em uma perspectiva comple
mentar, associada à filosofia do zen, sem relação com os atri
butos do espaço tal qual oferecido na prática cibernética.
Já estamos vendo, nesse rápido resumo, os cruzamen
tos capazes de serem produzidos entre os atributos de um
espaço assim. O tempo e o lugar formam um composto
cala própria dele e não em escala "humana". Eduardo Kac tem ainda outras peçasem seu repertório. Cf. seu siie:<http://ekac.org>.
152 ANNE CAUQUEU NFREQÜENTAR OS INCORPORAIS
singular, no qual não se sabe qual dos dois protagonistas
vem antes. A ação e o exprimível estão ligados pela virtua
lidade que os dois supõem e que depende, ela própria, das
características do lugar-tempo cibernético.
Numa tentativa de respeitar os encadeamentos neces
sá rios, tentarei rev isitar essa construção provisória a par
tir dos dois primeiros componentes: o lugar e o tempo, ao
qual acrescentarei aquele que, nas recen sões atuais, está
ausente da lista: o vazio, cuja presença no seio do sistema
dos incorporais, no entanto, é essencial. Vazio não é, por
tanto, via de conhecimento, peça do jogo mental do zen,
mas componente físico do universo ("Capítulo do tempo,
do lugar e do vazio"). Em seguida, será precis o rever, sob
o regime do exprimível, aquilo que diz respeito à ação e à
virtualidade, uma não sendo possível sem a outra ("Capí
tulo do exprimível e do virtual: a interatividade" ).
Capítulo do tempo, do lugar e do vazio
o tempo
Estamos acostumados a "ver" o tempo sob a forma do
lugar. A perspectiva espacial nos oferece o longínquo co
mo aquilo que vem ao termo de um cam inho, de uma li
nha. Entre esse longínquo - lá - e o próximo onde estamos
- aqui - , uma distância medida pelo tempo, Se o longínquo
se torna próximo, a medida do tempo de que precisamos
para alcançá-lo se abrevia prop orcionalmente. Chegado ao
II
\
153
ponto de contato, quando o longe é aqui t '' o empo e abo-
lido. O tempo da distância admite, pois t ,, ...ma perspectiva
espacial e acompanha as suas transformaç- A "oes. n stoteles
cham ava o tempo de "medida do moviment " A 1o. ta pon-
to que, na ausência de movimento, a con s"l'eA • d'- ncia o tempo
desaparece, "Quando não sofremos mudan -ça, nao nos pa-
rece que o tempo tenha passado. É o caso d' . as pe ssoas que,
segundo a fabula, dormiram em Sardes J'Unt h "o aos erOlS."19
Desse modo, o tempo é algo do movimento '. , ' sem ser o pro-
pno movimento. Ele depende estreitamente d .o movImen-
to, pois se ele é medida do movimento o ', mOVImento em
contrapartida, também o computa. '
Essa faculdade de ser um e diferente d, e aparecer e de
desaparecer, aproxima o tempo aristotélic d t, . o o empo dos
est óicos, contudo, com uma pequena difer . Z _ença. enao no-
meia o tempo "número do mundo". Não se t t .ra a mais de
consciência nem de sensação, nem mes"'o d " id'" e sentI o". O
tempo é uma das condições físicas da e);I'st A • dencia o mun-do : ele é incorpo ral e não pode, portanto
, nem nos tocarnem ser tocado por uma condição corpOral I '
qua quer comoo movimento de um corpo. Que nós os' t _
In amos ou naoque durmamos em Sardes junto dos hero'I's _ '
ou nao, nadaconseguiria perturbá-lo em sua incorpore'd dE 'I a e. essa In-di ferença aos atributos pel os quais o ilha .
... gInarnos geral-mente o desembaraça da persp ect iva habl'tu I . Ia , espacía .
19. Aristóteles, Physique (trad . Henr i Carteron p .1926), livro IV, 11, 218b. . arrs, Les Belles Let res,
154 ANNE CAUQUELIN FREQÜENfAR os INCORPORAIS 155
Projetado no universo como um elemento de sua con
sistência, o tempo incorporaI não tem mais vínculo com adistância entre dois pontos, medida pelo movimento local.
Não importa mais se o fim está próximo ou longe, não hámais fim visado, apenas uma "realização simultânea" per
feita colada à marcha do universo circular.
Se tomarmos o tempo que oficia no espaço cibernéti
co, acharemos que ele se parece com o tempo incorporaI.
Ele também abandonou a perspectiva espacial pela qual temos o costume de interpelá-lo. Assim como o tempo cíclico
da esfera superior em Aristóteles, ele não mede nosso tem
po humano, vivido.
NOVA CONFIGURAÇÃO DO TEMPO
Desse modo, se temos de abandonar o esquema tem
poral perspectivista, isso se deve em parte, só em parte,
à rapidez de transferência, porque o movimento - logo, adistância entre duas posições de um objeto no espaço - não
pode mais ser "computado" pelo tempo; o contato entre os
dois pontos é quase instantâneo. O efeito de encurtamentoage da mesma maneira que o sono evocado por Aristóte
les: ele abole o tempo para a consciência. Os dois aconteci
mentos que são emissão e recepção parecem se passar no
mesmo instante. Com o cibertempo, estaríamos então, deimediato, no tempo perfeito da esfera celeste, cujas partes
coincidem todas entre si, mantendo, segundo a expressão
corrente, os pés na terra, presos como estamos no ciclo medido e sucessivo do movimento local.
Se, no vocabulário do digital, chamamos esse tem
po de "real", é apenas por contágio entre as duas caracte
rísticas do instante presente e da realidade. A realidade é
definida como aquilo que está ali presentemente; é real o
que está instantaneamente presente, diante de mim : rea
lidade e instantaneidade são homotéticas. É assim que se
deve entender "tempo real". Desse modo, o encurtamento
operado pela transmissão eletrônica em grande velocida
de perturba a apreensão da realidade dos objetos e de sua
temporalidade. A essa instantaneidade, que dá o obje
to longínquo como próximo, aplicamos a qualificação de
"real". Mas o estranho é que esse "real" é concebido como
uma propriedade do virtual, ao qual , não obstante, nós
o opomos...
Com efeito, o encurtamento só pode ser feito pela in
tervenção de um processo complexo, de uma verdadeira
organização de programas cruzados, subjacentes à apari
ção do objeto. Sob essa aparição instantânea, estende-se
uma área de cálculos impenetráveis à percepção, a área do
virtual, da qual vemos apenas o efeito de superfície. Desse
modo, o tempo que vivemos, o tempo da aparição do obje
to no dispositivo cibernético, não é o nosso; ele não perten
ce a nossa consciência íntima do tempo, ele não tem nada
de profundo. É um tempo exterior, saído de um sistema
organizado, arranjado em vista desse efeito de superfície .
Aparecido e desaparecido no mesmo instante - basta um
gesto: o clique, por exemplo, para devolver o tempo cha
mado de "real" à sua ausência, à sua intemporalidade.
156 ANNE CAUQ UELIN FREQüENTAR OS INCORP ORAIS 157
I NCORPOREIDADE DO TEMPO
Nesse caso, falar de incorporal não é desprovido de
interesse; a teoria dos estóicos nos permite extrair alguns
ens inamentos úteis. Se o tempo é para eles um incorporal,
isso significa que ele não tem conteúdo algum, é pura va
cuidade e só adquire "corpo" quando episodicamente se
carrega de uma percepção ou sensação; passado esse epi
sódio, ele volta a ser vazio. Tudo se passa, então, para o in
corporaI como equilíbrio entre o vazio e o cheio. O tempo
não foge em uma linha que diminui para a frent e ou pa
ra trás do próximo ao distante, rumo ao passad o ou ao fu
tu ro. Não. Ele está todo no único movimento de aparição e
de desaparição de uma "era" temporal>.
Por que tentar uma aproximação entre essa concepção
do tempo incorporal e o que se pas sa com o tempo do sis
tema eletrônico?
Porque encontramos o mesmo equilíbrio entre apari
ção e desaparição, e até mesmo ausência de conteúdo fora
da era temporal que acompanha a percepção de um obje
to. Com efeito, o sistema estóico esvazia todo conteúdo do
tempo incorporal, dele fazendo um fenômeno físico consti
tutivo do mundo tal qual ele cam inha, sem nenhum antro
pomorfismo. Bela lição de indiferença no sentido próprio:
20. Utilizo deliberada ment e o termo "era" para não classificar essa unidade temporal como momen to ou instan te, termos muito usados na imagem espac ialde uma psicologia do tempo. Além do mais, uma "era" não tem extensão delimitada; ela se aplica tanto a grandes ciclos (como o grande ano platôn ico) quanto aperíodos mais cur tos.
diferença só há no momento em que um objeto se apre
senta. Ele emerge de um fundo de neutralidade, mostra-se
e se vira para o mundo dos corpos de onde um sinal aca
ba de tirá-lo .
Outro ensinamento: o que há de virtual no disposi
tivo digital não são os dados, gravados em alguma parte
no sistema central e que, chamados pelo buscador, tornar
se-ão reais - isto é, apresentar-se-ão instantaneamente na
tela - , é o próprio dispositivo. E esse disp ositivo não é vir
tual porque abriria possibilidades infinitas, mas porque ele
é íncorporal, sem cont eúdo latente, intemporal. O disposi
tivo virtual provindo do cálculo não tem absolutamente o
caráter do possível, mas o caráter do necessário.
Os incorp orais estóicos nos ensinam que o virtual é
da ordem da necessidade e que ele vai ao encontro das teo
rias sobre os possíveis, que caracterizariam, segundo al
guns, os dispo sitivos eletrônicos em rede .
Porque o possível é da ordem de uma psicologia da
ação». Ele atua na perspecti va temporal habitual: a espera, a
distância, o longínquo, a aproximação. Ora, se há justamen
te uma temporalidade do virtual, ela se dá exatamente no
evitamentoda perspectiva, tanto espacial quanto temporal.
A necessidade, o que acontece sem falha, pode ser
chamada: destino, se abandonamos, contudo, o caráter
"destinai" do destino, porque nada nos espera na chega-
21. A esse respe ito, cf. Gilles-Gaston Grang er, Le probable, le possible et levirlue1 (Paris, üdile [acob, 1995) e aquilo que desenvolvi em Le si/e el le paysage(Paris, PUf , 2002), pp. 111-34.
158 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTARos INCORPORAIS 159
da; a própria chegada faz parte de um imaginário perspec
tivista, como o ponto de fuga da vida . Trata-se justamente
de uma necessidade completamente nua, sem perspectiva,
tanto sem passado quanto sem futuro. Incondicional.
o lugar
No esquema de uma percepção em tempo "real", uma
perspectiva espacial, de ponto a ponto, é tocada pelo inter
dito. Ela não tem mais "lugar" de ser. O aquie o lá confun
didos, a distância abolida, a famosa linha construída por
nós permite rearranjar o mundo segundo um ponto de vis
ta, e um ponto de fuga é repudiado. Vemos e sentimos em
tempo aproximado; o olhar, em vez de estar em suspensão,
em expectativa, é cumulado. Como se o objeto evocado não
entrasse em contato direto com o olho e não se apoderasse
do conjunto dos órgãos de percepção para monopolizá-los.
Quer dizer que o lugar também desaparece na nova
configuração do espaço cibernético?
Do lugar, sabe-se que ele é raiz, inserção, arraiga
mento . E mais: limite, circunscrição, território, quando não
terreno. Vertical, ele sugere a profundidade e serve de con
traponto à horizontalidade do espaço que está todo na su
perfície e é homogêneo. De fato, nada estaria em maior
oposição com a concepção do dispositivo em rede ofereci
do pelo espaço cibernético, onde os pontos de inserção são
apenas nós que dão acesso a outros nós por uma multipli
cidade de links.
o lugar seria reabsorvido, então, num espaço desse tipo? Ou sobreviveria na constância efêmera, ocasional, que
liga o objeto aparecido em "tempo real" a seu lugar de apa
rição? Nada conseguiria aproximar suficientemente a físicado incorporaI, senão esse lugar sempre a ponto de apare
cer para desaparecer em seguida. Com efeito, o lugar, para
os estóicos, só se dá enquanto circunscreve um corpo. Sem
corpo, ele não é mais que vazio.Ora, o espaço neutro do dispositivo é "sem lugar" en
quanto não aparece objeto sobre sua superfície . Ao objeto
pertence seu próprio lugar. Portanto, o lugar sempre está em hesitação constante entre existência e aniquilamen
to. Ele leva uma existência partilhada, dependente da era
temporal durante a qual o objeto se mostra. Ele não implica, pois, nenhuma particularidade, nenhuma propriedade,
além da capacidade de acolher corpos e de a eles se confor
mar, isto é, de se formar em redor, de envolvê-los. O lugar
se torna um invólucro ocasional que não designa raiz algu
ma, nem arraigamento particular.Uma obra digital de Claude Closkypõe esse novo dispo
sitivo do lugar e do tempo em evidência e revela o que acon
tece com seu equilíbrio recíproco, fornecendo assim umaalegoria do espaço cibernético (ou seja, uma apresentação
figurada de seu traço essencial) completamente pertinente.
Trata-se de Click Herev: duas faixas coloridas aparecem na tela, piscam alguns segundos e desaparecem em um ritmo tão
rápido que não se tem tempo de ler nem de ver claramente
22. Cf. <http://www.sittes.net>.
160 ANNE CAUQUELlN FREQüENTAROS INCORPORAIS 161
seu conteúdo. Só esse gesto basta para esclarecer o dispositi
vo simultaneamente tecnológico e teórico que se opera no ci
berespaço; a indiferença ao conteúdo, o vaivém do lugar e do
tempo (um comandando o outro), a indiferença a toda pers
pectiva de tempo ou de espaço, enfim, uma indiferença do
princípio ao fim (ele não tem fim) de tal movimento.
Reconheço que tenho uma queda por esse tipo de obra
que põe a nu as características do suporte que utiliza; assim
como o fez em seu tempo Support/Surface [Suporte/Super
fície], trata -se de despojar a peça de um ornamento literário
que viria ocultar a simplicidade da ferramenta e faria a atenção
se concentrar em um conteúdo pouco necessário. A meu ver,
a poesia está contida nessa nudez, assim como também está
contida - dado que se trata de linguagem - na rapidez deslo
cada das palavras entrecortadas e redistribuídas de Napier, na
captação do sopro (Edmond Couchot) ou do batimento do co
ração (Valery Granger); cada característica do espaço da rede
tem assim sua obra-tipo, que funciona corno sua alegoria.
Eis-nos, pois, com uma reformulação das duas pers
pectivas espacial e temporal: lugar e tempo, para o disposi
tivo eletrônico, são incorporais. Eles só assumem corpo em
determinadas circunstâncias e retornam a sua neutralida
de, a sua indiferença, a partir do momento em que a oca
sião - um sinal ou um impulso - se extingue.
A PERSPECTIVA DIGITAL
o abandono da perspectiva é algo difícil, pelo muito
que estamos presos nas redes de nossos modos de ver. Qua-
se sempre, nós nos esforçamos para encontrar um substituti
vo para a idéia de horizonte, para aquilo que dá respiração ao
desejo . Se não há mais ou menos perspectiva espacial nem
temporal, existe algum outro tipo de perspectiva aplicável
e até mesmo recomendável para o mundo do ciberespaço?
Por exemplo, uma perspectiva "digital"? Olivier Auber pro
põe conceber essa perspectiva como "um código partilhado
por certo número de participantes atuando em um projeto.
Nada mais de servidor central ao qual cada um se conectá,
mas um código chamado 'senha de grupo', sob cuja prote
ção eles podem todos emitir e receber simultaneamente in
formações relativas a uma aplicação particular">, Se o ponto
de vista central, o ponto de fuga, estava ligado ao ponto de
vista particular por urna trajetória, fixando às duas pontas da
cadeia o presente (aqui) e o futuro (lá), essa figura antropo
mórfica não convém ao computador. O ponto de fuga deve
poder corresponder a uma multiplicidade de pontos de vista.
Ele não pode ser unificado, nem fixo. Pelo fato de ter de in
tervir em tempo real, a perspectiva temporal deve ser parti
lhada em tantas perspectivas particulares quantos sejam os
pontos de vista diferentes (isto é, de participantes).
Olivier Auber dá como exemplo o protocolo Multicast,
que permite esse partilhamento, ou ainda o modo de fun
cionamento do vírus que infecta um grande número de
computadores ao mesmo tempo. Esse exemplo é convenien-
23. Olivier Auber, "Du générateur poí étiquc à la perspective num érique",Revue d'Esth éiique (Paris, n. 43, 2003), pp. 127-36.
162 ANNE CAUQUELIN FREQüENTAR OS INCORPORAIS 163
te para seu projeto de gerador poiético"; mas não há dúvida
de que seria necessário conceber uma pesquisa mais apro
fundada para concretizar a idéia de uma perspectiva digital
que não esteja ligada apenas a determinado projeto na in
ternet, mas que seja válido para o espaço cibernético como
um todo. Em suma, a questão então seria: existe uma pers
pectiva própria desse espaço? Mas pode existir uma perspec
tiva, ou o que poderia assumir o lugar de uma perspectiva,
em um espaço infinito sempre presente a si mesmo, onde
lugar algum é definido como estável e admite o vazio como
elemento constitutivo?
o vazío
Incorporal, o vazio está ligado ao lugar e ao tempo: ele
é sua condição. Para os estóicos, como vimos, o vazio é in
corporal por definição, não contém corpo algum. Mesmo
assim, ele não é nada. Sua maneira de existir é claramen
te desconcertante, porque é descontínua; o vazio existe nos
intervalos temporais entre a partida dos corpos que o ocu
pavam e a nova onda de corpos que chegam. Não há vazio
sem essa escansão de tempos. Assim como o lugar, do qual
é a contrapartida, o vazio está sob a dependência do tempo.
24. Le générateur potétique foi concebido por Auber como um jogo coletivoinspirado no "jogo da vida", de Conway (1976), que tentava modelizar a evoluçãode uma população de micróbios. Trata-se de um desenho e de um desígnio coletivo, que emerge a partir da contribuição dos participantes, que se representam a simesmos por uma tecla colorida. Eles podem intervir a qualquer momento sobre aforma e a disposição do conjunto mudando a própria posição.
Ele perfaz o ciclo das repetições e, assim como o lugar, não
abre perspectivas>,
Contudo, é porque ele existe, mesmo em se tratando
de uma existência alternada, que é possível o modo de exis
tência dos objetos no espaço cibernético. Os objetos que
transitam no ciberespaço são, com efeito, fugazes, evoluti
vos, instáveis. Trata-se de impulsos, mensagens em forma
ção ou em vias de se decompor para se recompor. O vazio
não lhes impõe nenhuma limitação, porque é sem forma,
desprovido de corpo e incapaz de admitir algum grau no
preenchimento. Sejam poucos ou muitos os objetos, isso
não faz diferença. Não podemos dizer, por exemplo, que
o espaço cibernético está meio vazio ou meio cheio, como
dizemos de uma garrafa que está meio vazia e, ao mesmo
tempo, meio cheia. Isso porque, no vazio infinito, sem al
to nem baixo, nem horizontal- como é o caso do espaço da
geometria -, nem vertical- como é o caso do espaço "vivi
do" do lugar, com suas raízes lançadas em profundidade -,
é impossível introduzir medidas. Mesmo assim, quando
falamos das infinitas possibilidades de conexões que se en
trelaçam no seio desse espaço, é ao vazio infinito que ele
faz referência. A incorporeidade do vazio torna possível a
infinidade de ligações que ele acolhe.
O vazio surge, então, não como uma perspectiva nega
tiva (o nada ou o infinito como espaço onde se perder), mas
25. Não podemos falar de perspectiva nos estóicos, porque ela dá - a nós, agora - a imagem de uma direção rumo ao longínquo e ao desconhecido, dado que se trata de um tempo cíclicoque retoma sobre si mesmo, voltando sobre os próprios passos,renovando paradoxalmente o mesmo mundo, uma vez completado o "grande ano".
164 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR os INCORPORAIS 165
como condição de possibilidade para o apagamento de toda perspectiva. O vazio assume um papel positivo, porque
permite renunciar à idéia de lugar tal qual a utilizamos ha
bitualmente: lugares de lembranças enraizadas, da profun
didade do tempo e das culturas, lugares indeslocáveis, aos
quais estamos presos, territórios reivindicados como singu
lares e portadores de identidade. Se renunciamos a tal lu
gar, a tal ancoragem, essa renúncia leva então a redefinir o
que é o tempo e a introduzir um tipo de infinito que não deve nada à extensão.
No que diz respeito ao vazio, percebemos que os possíveis não lhe convêm: o mundo que ele dispõe é um mundo
do infinito inteiramente presente a si mesmo, sem vetor.
Com efeito, a perspectiva temporal que freqüentemen
te imaginamos faz o infinito surgir como uma interminável
adição de momentos disjuntos. Ora, o espaço cibernético,
que compreende o vazio como seu lugar natural, oferecenos outra versão do infinito, a de uma presença a si mesma.
Os momentos do vazio não são adicionados nem adicioná
veis em sucessão, mas estão simplesmente todos presentesao mesmo tempo.
É o modo de existência do vazio que permite essa apresentaçãoou presentificação. Pornão privilegiardireçãoalguma,
por não impor nenhum vetor, por sua própria indiferença, o
vazio deixa àquele que age no espaço cibernético o cuidado
de introduzir um objeto ou - como é o caso mais freqüente
um programa. Aqui não se tem nem a escolha entre possíveis que já estariam no espaço vazio - o que é contraditório
em si -, nem o acaso de uma disponibilização de um entre
os possíveis; apesar de a idéia de um acaso mestre do jogo
ser muito tentadora, ela em nada corresponde à construção
desse espaço: o vazio apresenta todas as direções ao mesmo
tempo, isto é, nenhuma em particular, assim como não pri
vilegia nenhuma delas, mesmo que elas sejam tomadas ao
acaso! Não há nenhuma definição outra a acolher.Em outras
palavras, trata-se de um exprimível, de um lekton.Desse modo, o vazio exemplifica o elo que une todos
os incorporais entre si: sua indiferença, sua não-determina
ção, que os faz existir unicamente no instante em que eles
tomam corpo, na ação de acolher um corpo. Por isso os pos
síveis não preexistem às escolhas que se possam fazer: eles
se desenham apenas como o pano de fundo de uma ação
em vias de se fazer, no momento exato em que a ação se
realiza, como se, ao fazer um gesto, imaginássemos ou pro
jetássemos, como num filme, os outros gestos que podería
mos ter feito. Sua sombra>. E a sombra, seja o que for que se
faça dela, não é uma virtualidade, ela é projeção mental do
não-advindo que circunda o ato com um halo. Ao encontrar
um caminho, no momento de bifurcação, podemos pensar
em todos os caminhos pelos quais não enveredamos. Es
sas projeções não são em número infinito; elas desapare
cem tão logo o ato seja executado, porque são exprimíveis
incorporais: sem consistência, sonhos evanescentes.
Certamente, é difícil contornar o termo e a noção de
"possíveis". Nossa vida cotidiana está revestida pelo verbo
26. Ken Goldberg serviu sombras aos internautas com seu Shadow Serverem 1997.
166 ANNECAUQUELIN FREQüENTAR OS INCORPORAIS 167
"poder" e suas declinações; com efeito, uma moral da esco
lha governa nossas atitudes na vida, e nós medimos nossas
capacidades pelo metro do possível: temos de tentar tudo o
que seja possível, o possível é o que devemos e podemos po
der. Nada de semelhante há na concepção antiga do mundo
e dos incorporais. O vazio subsiste vazio, ele persiste no va
zio, e o infinito que o acompanha não é uma propriedade que
lhe seria anexada enquanto atributo, mas um verbo: o vazio
não finda de se infinitizar, furtando-se assim a toda deter
minação, mesmo que ela estivesse em germe nos possíveis.
Capítulo do exprimível e do virtual: a interatividade
Se estou juntando o exprimível e o virtual neste capítu
lo, é para entender como a interatividade - noção eminente
mente computacional - pode se unir, simultaneamente, ao
exprimível incorp oral e às artes do virtual. É sempre uma
dificuldad e passar do regime das noções ao das práticas, so
bretudo quando os dois se prevalecem de uma noção comum
e a interpretam, cada qual a sua maneira. A desconfiança se
impõe, tanto ma is que o vocabulário comum usa e abusa do
termo "virtual" assim como do termo "interatividade",
O primeiro serve, nas conversas comuns, para desig
nar tudo o que é fictício, imaginário, ou da ordem da ausên
cia: desse modo, alguém que esteja aus ente a uma reunião
para a qual foi convidado é chamado de "virtualmente"
presente. Em uma língua um pouc o mais precisa, "virtual"
design a o que ainda não se realizou, ma s que bem pode-
ria ter se realizado; um livro está virtualmente concluído,
um projeto também está, de momento, em estado ou na
etapa virtual. Por fim, na linguagem dos internautas e da
queles que teorizam as práticas computaciona is, o termo
"virtual" quase sempre sofre o contragolpe da utili zação
comum, mesmo que designe mai s precis amente um modo
de operação próprio da informática. Desse modo, "virtual"
é, no mais das vezes , tomado como sinônimo de "possível",
formando então uma dupla com "realização" ou "atualiza
ção", que lhe são cont rár ios e carregam sempre a noção de
ausência, de fictício, que parece vinculada a ele.
Quanto à "ínteratividade", apesar de ser ela uma no
ção recente - ela tem a idade dos computadores e não car
rega o peso de sucessivos usos em outros campos -, ela
sofre, contudo, o contragolpe do termo "interação", que lhe
é bem próximo e remete à conversação, ou à reciprocid ade
de uma causa à qual Schopenhauer se referia dizendo que
ela não passava de uma dupla causalidade sem proprieda
de particular, uma falsa boa id éia",
27. Esse tipo de dificuldade não é t ípico do conf ronto atual de dois universos.um, costum eiro, cotidiano, o universo do "vivido", e o outro, especializado, técnico, que requer outras comp etências . Embaraço semelhant e também acompanhavao emprego do exprimível (lekton) entre os es t óicos, Trata -se, sem dúvida , da mesma ques tão - a dis tinção do real e do fictício - que causa problema no nível da linguagem, refletindo a dificuldade de distinguir os dois regimes, e a realidade de suaproximidade . O lekton era, para os estóicos, o sentido incorporai de palavras queeram corporais - a mais comum das soluções - ou aind a uma espécie de vazio quepermitia ao sentido instalar -se (momen taneamente), uma espécie de medi llm - oque os alqu imistas chamariam, na seqüência, de "veículo"? O segundo sentido dotermo parece se conjuga r melhor com a teoria dos incorporais, e sobretudo com umentre eles, o vazio; contudo, os textos não esclarecem se havia uma preferência de terminada por um ou outro .
168 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORP ORAIS 169
A conversação é a relação reivindicada pela estética da
comunicação como seu protótipo. Presença real dos inter
locutores, rapidez da troca e valor do vínculo estabelecido,
posteriormente negociado e sempre aberto, caracterizam a
conversação ("entre pessoas de boa fé", acrescentaria Aris
tóteles). Mas há interatividade nisso? Não, porque o que fal
ta é o espaço de transação artificial do computador, que não
pertence aos indivíduos em presença e subverte a noção de
sujeito, tão valorizada pelos que conversam. Do mesmo mo
do, "interação" não é suficiente o bastante para caracteri
zar a operação que a interatividade supõe. A interação é algo
próprio de todo indivíduo vivo que reage a seu meio e age
em retorno sobre ele. Aqui também faz falta a especificidade
computacional que tornaria essa interação interativa: uma
mediação digital tecnicamente programada. Desse modo, se
a relação é justamente um traço comum à conversação, à in
teração e à interatividade, é um traço genérico demais para
poder servir de guia à compreensão dos links singulares que
se dão no espaço cibernético. A conversação e a interação
são, efetivamente, desses tipos de imagem que, para facili
tar a abordagem de uma noção, dão dela um sucedâneo de
tal modo simplificado que acabam por representar obstácu
lo a sua apreensão. Precisamos, então, contornar, ao mesmo
tempo, a imagem da conversação e a da interação para en
tender o que pode ser a interatividade. Assim como, a todo
momento, precisamos contornar a imagem da perspectiva.
Comecemos, então, por situar a interatividade ali on
de ela adquire sentido, no espaço cibernético. O espaço ci-
bernético é um espaço de ligações, atravessado de fluxos
que transportam mensagens, palavras, imagens e sons
com a rapidez cujo nome em linguagem computacional é
"tempo real ". Ligações instantâneas, nunca estáveis, evo
luindo sem parar, projetadas em uma espécie de vazio, do
qual elas seriam, de algum modo, a textura.
O que é preciso compreender, então, é que "virtual"
não é um adjetivo que viria se acrescentar a um objeto
como a dizer, por exemplo, "um corpo virtual" -, mas um
substantivo: o virtual, fazendo referência a um sistema.
Desse modo, "realidade virtual", que parece ser uma con
tradição em termos se não se tomar a precaução de de
finir virtual como um sistema, torna-se perfeitamente
compreensível quando designamos com isso um objeto
produzido no e pelo sistema virtual. A realidade virtual é o
tipo de realidade produzida pelo sistema digital.
Se voltarmos ao vazio incorporal, fica certo, então, que
as mensagens que transitam no espaço que compreende
mos como "vazio" não são propriamente virtuais: é o mo
do de transmissão próprio a esse espaço e que o constitui
enquanto tal que é virtual.
É verdade que a tendência ao realismo é particular
mente renitente, é verdade que temos dificuldade em pensar
a não ser por objetos e imagens de objetos e que, por isso,
dificilmente pensamos que a realidade não é feita de obje
tos, mas das relações que os conectam e os produzem. Fazer
o esforço de despojar os objetos percebidos de sua realidade
para transpô-la ao espaço que os liga, essa é a tarefa reser-
170 ANNE CAUQUELIN FREQüENTAR OS INCORPORAIS 171
vada àquele que freqüenta os incorporais, aos artistas da ci
berarte e, em certa medida, aos internautas. Esforço mais
sonhado que efetivamente realizado. . . Continuamos a dizer
comumente que os corpos, o do internauta ou o de seu ava
tar, são corpos virtuais, que os museus apresentados na web
são museus virtuais etc., ignorando com constância e deter
minação que se trata de corpos apreendidos pelo virtual>.
Mas se chegarmos a conceber que o virtua l é um siste
ma ou caracter iza um sistema como produtor de conexões,
pod emos imaginar mais facilmente e, sobretudo, mais cor
retamente, a interatividade. Uma definição aproximada se
ria a seguinte: é chamado interativo o trab alho efetuado
pa ra captar, formalizar essas relações, modificá-las, de sfru
tá-las e lhes dar uma presença sensível. Em suma, nesse ca
so, a interatividad e revela as relações virtuais que ocupam o
es paço cibernético e que não são perceptíveis se m um tra
balho de formalizaç ão>.
A interatividade, ou trabalho entre e sobrerelações que
são elas mesmas "entrevários", é portanto um trabalho de
fundo. Ela se dist ingue daquilo que, parad oxalmente, se
poderia chamar de um trabalho de superfície: a imersão.
"Imersão" designa a entrada de um visitante no es
paço virtual que constitui uma obra interativa e a ação que
ele pode reali zar nesse espaço. Em geral, a ime rsão tem ne -
28. A "apreensão" é a noção - e a ação - esse ncial de toda operação empreendida no espaço ciberné tico. [ean-Lou is Boissier insiste nisso em todos osseus textos .
29. É assim que [ean-Lou is Boissier a define em La relatlon comme forme:l'interactioiteen art (Genebra, Ma rnco, 2004).
cess idade de um quadro bastante amplo, de um ambiente
que permita ao visitante se de slocar em diversas direções
e de slocar objetos. Ninguém imerge em um menu rolan
te, nem em uma obra qualquer de ciberartista. Há neces
sidade da imagem de uma realidade natural, ou que tenha
su a aparência, como aquela que encontramo s nos oideo
games: paisagem, animais e, inclusive, inacreditáveis dra
gões, monstros de tod os os tipos. Antes de tudo, tem -se ne
cessidade do ambiente 3-D. Se a impressão de mergulhar e
de ser engolido acompanha as experiências dos visitantes,
ela deriva sobretudo da estranheza da visita, de sua raridade,
talvez também do efeito "boião", típico de recipientes boju
dos, que esses ambientes manifestam, por serem freqüente
mente verdes e marrons, muitas vezes glaucos. As metáforas
aquát icas invo cadas como exemplo das operações na rede
são, aliás, numerosas, elas domesticam o desconhecido, cor
relato da cor famili ar das féria s, exóticas apen as o suficien
te para marcar a diferença. Desse modo, o termo "imersão"
evoca o batismo, a in iciação no novo mundo subaquá tico e
su rreal que é o cibermundo da interatividade .
Considerar a imersão com o o elemento mais sign ifica
tivo e praticamente determinante do que é a interatividade
é um en 030, ainda mais porque, além desses aspectos pro-
30. Contudo, trata-se de um erro com força de lei. Desse modo. Louise Passant (org.), Dictionnaire des arts médiatiques (Montreal, Presses Universitaires duQu ébec, 1997), remet e o termo "imersão" a "realidade virtual" e "realidade virtual" reme te a.. . "imersão". Tem-se, entã o, a seguinte definiçã o: "a KV [real idadevirtual] é uma experiência de imersão na qual os usu ár ios usam capacetes de rea lidad e virtua l munidos de sensores de posição, vêem imagens etc.".
172 ANNE CAUQUELlN FREQüENTAR OS INCORPORAIS 173
vocadores, a imersão traz cons igo dois efeitos perturbado
res: primeiro, ela introduz no campo da prática a tem ível
noção de co-autor; dep ois, ela restab elece a noção de pers
pectiva espaciotemporaI, mesmo tend o sido visto que o ci
berespaço é desprovido de tal noção. Abordaremos esses
dois exemplos na seqüência.
C O-AUTOR OU FIGURANTE
A noção de co-autor transformou -se em um lugar-co
mum na arte contemporânea. No teat ro da arte contempo
rânea, espectador e expositor (gale rista, agente, curador)
reclamam para si esse estatuto. Produzir, expor obras faz
parte do trabalho de criação, portanto, merece o mesmo
estatuto que o do artista expo sto e produzido. É claro que
um esp aço de relações necessária s envolve a criação, ou,
como o descreve muito bem [ érôme Clicens tein-', um dis
positivo fora do qual nenhuma obra pode nem ao men os
ser concebida. Paralelamente a essa reivindicação de esta
tuto por parte dos produtores, os artistas contemporâne
os, já vimos isso, têm uma atitude de recuo, um gosto pelo
an on imato, uma vontade de desaparecer, praticando com
isso um a crítica interna do sistema da ar te e de seus atri
butos tais como peça única, autor ún ico e or iginal. Temos,
então, todas as condições de um lado e de outro para o em
basamento da idéia de co-autor.
31. [ érôrne Glicenstein, "D ispos itif(s)", em Michela Marzano (org.), Dictionnaire du corps (Par is, r UF, 2006).
Mas esse será o caso da obra interativa, na qual o in
ternauta imerge? Parece que não. Ao sus tentar a idéia de
co-autor no caso de uma peça interativa, cometer-se-ia o
mesmo erro de quando se comp ara a interatividade à con
versação e a interação à interatividade . Claro que, nos dois
casos, conversação ou interação, pode- se defend er a idéia
de que há co-autor, porque os protagonistas reagem mu
tuamen te e se encarregam da relação, um por vez. Mas o
fato de o internauta entrar no mundo qu e sua interven
ção pode - ou não - transformar não faz dele um co-autor,
porque a obra é construída de modo a compreender es
sa entrada (e o efeito que ela pod e ter) como um elemen
to de seu dispositivo. Nesse sentido, o internauta se torna
uma parte da criação continuada que constitui a obra, que
de algum modo aumenta com as contribuições que lhe são
feitas. Olivier Auber, para retomar esse exemplo, é, portan
to, o verdadeiro autor do Génerateur potétique, mesmo que
os pa rticipantes do jogo contribuam para rea lizar o estado
momentân eo no qual a obra se encontra no ins tante x.
Contudo, como o esclarece Maurice Ben ayoun, "dizer
que os participantes são co-autores não é compreender o
que é a obra. Trata-se de 'visitantes "', acrescenta ele. "A
obra é o conjunto do dispositivo, incluindo a participação
das pessoas, as regras que determinam o processo de evo
lução [.. .] O lance do espectador co-autor é um a mist ifica
ção pseudodemagógica lament ável.">
32. Ent revista realizada em 25 de junho de 2004 por Anolga Rodia noff.
174 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAlS 175
Tendo eu mesma consentido, e várias vezes>, nessa
mistificação "libertária", eu me dou perfeitamente conta,
ao trabalhar com o espaço cibernético, de que ela é válida
exclusivamente (e talvez ocorra aqui também uma espécie
de mistificação) para as obras não-digitais. Desse modo,
não há co-autor no espaço de liberdade que a obra interati
va representa para a maioria. Visitantes, participantes, jo
gadores talvez. Mas é unicamente o autor que tece os fios
onde os visitantes se enredam.
A ILUSÃO DA PARTILHA
Quanto à perspectiva aberta pela imersão no mundo
criado por uma obra digital, ela é freqüentemente conside
rada como visão compreensiva de um horizonte, no seio da
qual o visitante se inclui, se incorpora e, poderíamos dizer,
interage. Imaginamos, então, que ao se deslocar, ao agir de
uma ou de outra maneira, ele é causa dos acontecimentos
que se produzem. Mais uma vez, mostra-se a ideologia da
igualdade e da partilha da authorshíp. Talvez estejam fazendo
falta aqui os esclarecimentos teológicos que os filósofos
do século XVII (Malebranche, por exemplo) introduziam em
suas reflexões sobre a causa primeira e as causas adjacentes,
ou ocasionais... Na realidade, o programa do autor faz o pa
pel de providência, ele tece o desígnio geral e as variações de
que o visitante se serve ou não, a depender do caso.
33. Cf.• entre outros, os meus Petit traité d'art contemporain (2. ed., Paris,Éditions du Seuil, 1998) e Eart contemporain (6. ed., Paris, rUF, 2001).
A imersão que se pretende compartilhadora ilude, e
essa ilusão oculta a verdadeira natureza da relação do usuá
rio com a obra.
É desse modo que o horizonte proposto, o ambiente
no qual se situa a ação empreendida pelo internauta, é se
melhante à perspectiva espacial habitual que ele simula. A
perspectiva espacial e o horizonte da expectativa temporal
continuam sendo a imagem principal pela qual convocamos
uma resposta, sempre pensada e sentida como remota, mes
mo que ela seja instantaneamente entregue. Ao emprestar
som e imagem à perspectiva espacial e temporal habitual
valendo-se das imagens 3-D dos vídeogames, a perspectiva
proposta nas peças interativas trava a compreensão de uma
perspectiva digital, inteiramente situada na ação formal das
relações virtuais. Ao se encontrar em um espaço que lhe
parece natural, o visitante também assume de modo com
pletamente natural seu modo de proceder habitual - por
causalidades sucessivas. Ele pensa que um gesto de sua par
te vai realmente causar o movimento de um objeto no espaço
cibernético, como é o caso no espaço comum. Ao fazer isso,
ele restitui uma perspectiva temporal e causal ali onde jus
tamente isso não existe e deixa de lado a verdadeira nature
za da obra interativa. Mas a ilusão está ali e parece que tudo
é feito para desviar a atenção, provocar erros, disfarçar a na
tureza hierárquica, autoritária, do espaço cibernético. A re
presentação da distância e da sucessão está ali para dar ao
visitante a impressão de uma continuidade sem falha com
seu mundo familiar: ele é sempre, acredita, o dono do jogo.
176 AN NE CAUQUELIN FREQ ÜENTAR O S INCORPORA IS 177
Uma das falhas de nosso sistema cultur al, legado
muito antigo, é a de reduzir todas as coisas à visão e de
não poder pensar a abstração sem recur so a imagens. O
próprio Descartes já notava essa deficiência comum", uti
lizando ele mesmo aquilo que condenava - o mesmo, aliás,
que Platão fazia usando mitos. Pensar diretamente a rela
ção enquanto tal, sem lhe acrescentar a imagem dos obje
tos que ela conecta, não é algo de espontâneo. Para tanto,
é preciso aplicação, isto é, aprendizagem.
Éverdade que adotar o ponto de vista impessoal do com
putador e do digital não é exatamente um empreendimento
fácil: como representar mentalmente uma "perspectiva tem
poral" sem recorrer a uma visada? O que é uma perspe cti
va da qual o lugar está ausente?» É extremamente difícilabrir
mão da metáfora do lugar, da distância e, paralelamente, da
intenção ou do desejo:em uma palavra, de uma subjetividade
trabalhada e formalizada por séculos de cultura européia.
Para chegar a dispen sar esses costumes, precisam os fa
zer o desvio por sua crítica e nos lembrar bem de que nos
sos sensedata estão longe de ser "dados". Precisamos pen sar,
então, na percepção chamada "natural" como em um dispo
sitivo extremamente construído e engenhoso, que formaliz a
o mundo e seus objetos.Três dimensões no espaço isomorfo,
34. Desca rtes, Regulae ad directionem ingeníi (trad . Georges Ler oy, Pari s,Gallimard, 1952), regra XII.
35. São qu estões das quais se ocupam, por exemplo, jean -Lou is Boissier ea livier Auber em textos que estão em int erlocu ção: jean-Lo uis Boiss ier, La relation commeforme, op. cit., pp . 26355; e O livier Aub er, "Ou gén érateur poi ét ique à laperspective nu rn érique", op. cit.
horizonte reto e não curvo, distinção de volumes, distinção
de planos e de pan os de fund o, enquadramento, retificação
das paralela s verticais, tudo isso se deve ao trabalho dos ar
quitetos e dos matemáticos, mas tamb ém do pensamento
"reto", que analisa e compõe utilmente. Vemos, sentimos e
experimentamos através dessas mediações e graças a elas.
A percepção natural é, portanto, bem formada - se é
que não se deveria dize r formatada, na linguagem ciber -,
mesmo se acreditamos que ela é natura!. E se nós nos lem
brarmos disso, poderemos considerar os dispositivos ele
trôn icos como formadores de percepção de outro tipo>,
eles nos dão a combinação de um mundo que não é mais o
do movimento local que percorremos etapa por etapa, em
uma perspectiva dada. Eles nos dão um tempo encur tado
e um lugar revisto pela simultaneidade. A diferença entre
os dispositivos que formaram nossas percepções habituais
e nos pare cem naturais e os dispositivos ciberné ticos é que
un s são tomados na consciência interior dos seres, como
se fossem inatos e imediatos nos cérebros, e os outros es
tão no exterior e mostram com evidência, de maneira mar
cante, o que eles são e como funcionam. Eles nos parecem,
portanto, estrangeiros, para não dizer estranhos.
Contudo, o obstáculo que opõe o realismo à justa per
cepção do espaço virtual e do que ali se trama poderia ser le-
36. Assim como, no Renascime nto, a invenção da perspect iva legítima lite ralmente "inventou" a paisagem e formou nossa maneira de percebera dis tância, a sucessão de planos, o enquadramento, isto é, um a maneira de ver que aind a hoje é a nossa.Cf. Annc Cauquclin, Eimxntion du paysage (4. cd ., Pa ris, I'UP, 2002, col. Qu ad rige)IA inixnção da paisagem (trad . Marcos Marcion ilo, São Pau lo, Martins. 2007)).
o espaço do virtual segundo o exprimível
vantado se se tentasse o desvio pela noção de exprimível tal
qual a encontramos nos estóicos e tal como tentei apresentá-la
aqui. Para tanto, é preciso abandonar todo um modo de pen
samento que conecta a realidade à presença, as men sagens às
palavras, o espaço e o tempo à visão e à perspectiva visual.
Vimos que o exprimível não é nem as palavras que pro
nunciamos, nem mesmo a significação que a elas se atribu i.
Porque as palavras, "carregadas de sentido", não podem
entrar na classe dos incorporais, e as significações, mesmo
invisíveis e freqüentemente mutantes, afetam os corpos e
são afetadas por eles . Ora, o incorporai não padece nem age
sobre os corpos. O exprimíve l, o lekton, é, portanto, uma es
pécie de vazio e só sai desse vazio quando é expresso; em
outros termos, ele não preexiste a sua expres são.
A preexistência: eis a noção que serve de bas e às defi
nições mais comuns do virtual. Ela é também o obstáculo
maior a sua compreensão. Com essa idéia de preexistência,
imaginamos o virtual como uma espécie de reservatório ple
no de possíveis ainda não atu alizad os que aguardaria, ador
mecido, que um acontecime nto o despertasse, tirando-o de
seu torpor e elegesse um entre os possíveis que ele contém .
Trata- se de uma idéia ancorada na metafísica que ali
menta essa imagem do virtua l: uma potência ou força (a
virtus lat ina) esta ria oculta nas profundezas das coisas:
plantas, animais, pedras, seres humanos. Daí decorre que o
179
37. Cf. Philippe Qu éau, La ptanête des espriis (Paris, Odile [aco b, 2(J(J1); eAlai n Milon, La réaliténirtuelle:avec011 sans corps? (Paris, Aut rernent, 2005).
FREQüENTAR os INCO RPO RAIS
homem, vir, tem mais virtus do que qualquer outro ser vivo
- plantas ou animais - , visto que ele partilha a raiz etimo
lógica de seu nome com a virtude, isto é, a força interior. O
recur so à etimologia, mesmo que poét ico, afirma, contudo,
a opinião em sua crença, mais do que explicita os seus fun
damentos. Contudo, trata-se do argumento comumente in
vocado e que estabelece que a natureza essencial das coisas
precede sua existência. Argumento que o exist encialismo
acreditava ter erradicado, ma s que, não obstante, retoma
fôlego por meio das novas tecnologias e esp ecificam ente
por meio do virtual. Contudo, trata-se de um argumento,
ou, melhor dizendo, crença, um pouc o m ágica" , Existi riam
forças (ou potências) invisíveis, fontes de movim entos que
são sua expressão manifesta. Compartilhamento entre vi
sível e invisível; a alma, ou força, ou virtude. Ao aproximar
o virtual dessa s potência s, che gamos mu ito rapid amente a
fazer da tecnologia digital- pois é disso que se trata - um
avatar da teologia ou do mist icism o. As tribos de internau
tas glorificam uma força da qual nada se sabe, uma potên
cia que permanece subterrâ nea, a virtude do virtual - por
sinal, vir tude de que se zomba quando ela toma a form a de
uma propriedade como a da "virtude dormitiva" de algu
mas plantas e out ras fantasias aristotélico-medievais.
É desse modo que, pa radoxalmente, o instrumento
mais racional, o mais calculado, o mais engenhosamente
..••.~... "•.,..~.,: t
ANNE CAUQUELIN178
180 ANNE CAUQUELIN FREQÜ ENrAR os INCORPORAIS 181
disposto, leva, se não se tomar o devido cuidado, a um es
piritualismo ampliado, ou seja, ao animismo.. . O mesmo
surpreendente paradoxo de quando vemos um pensamento
bas eado na cultura do efêmero, da ficção, dos mundos para
lelos, do nomadismo e do acaso, como o pensamento dos in
ternautas, vincular-se a um a filosofia essencialista. ..
Mas se nós nos fiarmos nos incorporais físicos dos es
tóicos, evitaremos esses desvios: com efeito, com o expri
mível, não se trata nem de alma, nem de força, nem de
potência oculta . Sua única propriedade é poder acolher o
sentido, logo, estar aberto a todas as interpretações. Não
que elas sejam programadas como se fossem de antemão
"possíveis" nos quais o intérprete escolheria o melhor se
gundo sua própria opinião, como se estivesse no supermer
cad o (impr essão que, às vezes, se tem na internet). Tamb ém
nã o que o exprimível esteja carregado da realidade expres
siva que advirá, nem que o virtual, nesse me smo esque
ma, esteja carregado de uma realização quase instantânea.
Essas duas imagens destinadas a fazer entender o que são
o exprimível ou o virtual são engodos. Eles repetem pela
en ésima vez as mesmas divisões: para um, o exprimível, a
divisão se faria en tre fictício e rea l; para o segundo, acres
centar-se -ia a divi são entre natureza e artifício. O virtual
seria fictício porque, ao mesmo tempo, conteria promessas
ainda não realizadas e porque ele derivaria do ar tifício (su
bentendido: o que é natural é real).
Ora, o real nã o está em oposição com o virtual. Eles
não têm por que se confrontar um com o outro. Não se tra-
ta de um par. O virtual é tão vazio de oposição quanto de
semelhança, sem nenhuma afinidade nem contato com o
real. A realidade con siste, desde o início, em distinção, di
ferença, e diferenças, semelhanças, relações de quantida
des e de qualidades . Orientações mentais e físicas, um alto
e um baixo, o superior e o inferior. Preferências. Uma for
ma. O individual. O concreto. Corpos, que sofrem e agem.
O virtual, por sua vez, é "a atualização furtiva na consulta,
na programação e na memorização na concepção, memo
rização do efêmero, dissolução das formas em suas reitera
ções e variações infinitas, pegada de um inatual, simulação,
temporalidades múl tiplas e variáveis, inst áveis">.
Quanto à "realidade virtual" ("RV", para os iniciados),
casamento improvável de duas entidades contrárias, sua
definição é um verda deiro quebra- cabeças, e ela só pode
ser considerada de maneira mais ou men os estável, pela
mediação daquilo que a ela conduz: a interface.
Com efeito, a cibe rlinguagem batizou com o interfa
ce o línk que une realidade e virtua lidade . O substantivo já
deu até um verbo: "interfaciar". Que se quer dizer com in
terface e interfaciar? Trata-se de uma ponte, de uma porta,
de uma peneira? O que é que interface acrescenta à idéia de
uma ponte entre duas entidades heterogêneas? O termo,
com seu prefixo inter, remete muito naturalmente a intera-
38. Odile Blin, "I nt roduction à la matiêrc numériqu e: la product ion etJ'in ven tion des formes. Uno nouvelle csth étiquc ", Solaris (Grupo Inte runi vcrsit ário de Pesquis a em Ciências da Documen tação e da Informação, <www.info.unicaen.fr/jeJec/So laris/d07/b lin .ht rnl>, n. 7, dez . 2000).
182 ANNE CAUQUELlN FREQÜENTAROS INCORPORAIS 183
tividade. É, pois, com os instrumentos lógicos do sistema
virtual que é preciso apreendê-lo, é nesse universo que ele
é eficiente, que ele tem seu lugar e significa algo . Ao se fa
zer dele um substantivo comum, válido para tudo o que é
da ordem da pas sagem, como é freqüente, arriscamo-nos a
mascarar sua especificidade.
Uma gramática de links:a interface
É necessário comp reender o tempo, o lugar, o vazio e
agora o virtual e o exprimível como ligados entre si, porque
eles são, cada qual, condição para os outros. Desse modo,
o exprimível não pode ser pensado exteriormente ao va
zio, que permite a extensão. O virtual, se nos ativermos ao
sentido que lhe é atribuído no universo cibernético, só po
de existir em um espaço sem lugares, sem perspectiva e em
um tempo abolido, como aquele que acabamos de descre
ver. Essa coerência pertence, de pleno direito, aos incorpo
rais. Aquilo que os vincula entre si é um link abstrato, que a
gramática traduz por um modo: a condição. Se cada qual é
condição de possibilidade do outro, estamos em um siste
ma entrelaçado; ora, essas condições entrelaçadas não são
da ordem da realidade, onde reinam a ocasião, a mudança,
o movimento descontínuo. Ao constituírem sistema, elas
passam a pertencer à ordem da necessidade, que as tolhe .
Vincular os incorporais - submetidos ao regime do neces
sário - às realidades que vivemos passa então a parecer
uma verdadeira aposta. É a invenção da interface que res-
ponde a esse desafio». E isso, de diversas maneiras, em di
ferentes níveis, segundo diferentes planos.
No campo da s artes midiáticas, geralmente definimos
a interface como um instrumento - computacional ou mate
rial- que estabelece o contato entre o usuário e o computa
dor ou entre dois ou vários computadores. É o instrumento
de passagem, que favorece a tradução de um sistema para
outro . Toda obra interativa utiliza interfaces, por exemplo,
capacetes de visão, luvas, ou um traje completo para captar
os movimentos de um corpo e traduzi-los para a máquina,
que os processa e os retransmite, seja di retamente para os
sensores corporais, seja para uma tela . A captura e a tradu
ção são as etapas técnicas da interatividade, e a interface é
um momento delicado disso, do qual depende o resultado:
não apenas o resultado bruto (o fato de que isso funciona) ,
o que seria o primeiro grau da utilidade, mas também sua
poética, que se situa em um outro nível.
Pomo, DA INTERFACE
Ora, existem várias maneiras de considerar uma poética.
Inicialmente, enquanto atributo: um texto é chamado poéti
co quando evoca imagens poéticas: a flor, a neve, o amor, a
morte ... e existe todo um léxico dessas imagens, por perío
dos literários; o atributo "poético " é concebido, então, como
39. Cf., nesse sen tido. Louise Poissant (org.), Interfaces et sensorialité (Montreal, Presses de l'Universit é du Québec, 2003).
184 ANNE CAUQUELIN FREQüENTAR os INCORPORAIS 185
adorno, complemento ou acréscimo. Desse modo, a interface
pode ser considerada como poética quando, por seu intermé
dio, a obra interativa evoca tais imagens. A pena de Couchot
é poética em si, poderíamos dizer, mesmo sem que o sopro
do visitante a faça flutuar. A dançarina em equilíbri o sobre
um fio que o movimento do visitante faz balançar perigosa
mente evoca o funâmbulo que sempre e de todos os modos
faz sonhar. Contudo, essa interpretação do poético prioriza
nossos hábito s culturais, as imagens convencionadas de um
léxico já estabelecido, muito mais do que leva a pensar uma
nova relação entre realidade e ficção, relação que seria, a meu
ver, o que há de próprio em uma poética. Eu me atrever ia a
dizer que os atributos poéticos, com seu poder de evocação,
ocultam a estrutura de uma obra e representam um obstá
culo para sua compreensão. Nesse nível, a simulação digital ,
longe de inverter a relação do real com a ficção, desempenha
o mesmo tradicional papel da semelhança ou da representa
ção em pintura: ela repete o que já foi visto.
Outra maneira de conceber, não mais o que é poé
tico, mas uma poética: a arte poética, isto é, um conjunto
de regras que circunscrevem um território sing ular, cujos
princípios estão postos e devem ser seguidos. Essa poética
const rói e revela a estrutura do campo considerado. Desse
modo, para retomar um exemplo já utilizado, o G én érateur
poiétique (o termo poiético indi ca justamente uma arte do
fazer) produz claramente as reg ras de seu próprio funcio
namento, sem recorrer minimamente a imagens pretensa
mente poéticas. O mesmo se pode dizer do Click de Closky
ou de seu +1. O simples fato de entrar em contato com seu
programa me faz entrar no universo dos visitantes; dessa
vez, cada clique acrescenta um número à lista. Só isso .
Podemos, então, conceber desde logo que a interfa
ce revela muito mais que uma subjetividade criadora: uma
prática que subverte as prioridades, uma poética. Ainda se
faz necessário precisamente que essa transformação seja
mostrada, que ela não seja ocultada atrás de histórias, e é
por isso que eu acabei de dizer que prefiro as obras nuas,
que se aplicam unicamente ao desvelamento da interface
in processo A interface está aqui , agora, de imediato. É exa
tamente no momento em que eu entro em contato com a
obra virtual que o tempo, o vazio e o lugar oscilam, porque,
de repente, eles se tornam corporais. Mas essa oscilação
não acres centa nem subtrai nada a sua natureza incorpo
ral. Bem ao contrário, essa inversão ou oscilação é o seu
sign o; é pelo fato de o tempo, o lugar, o vazio e o expri
mível serem incorporais que eles podem admitir corpos e
colocá-los à disposição do internauta quando ele "se inter
faceia". Em síntese, a interface faz o corp oral oscilar para o
incorporai e é nisso que se situa sua poética própria.
UMA PornCA AMPLIADA
Aquil o que, então, poderíamos chamar de "poética do
espaço virtual", ou de "arte" do virtual, compreenderia re
gras de composição para que uma obra fosse - se podemos
assim nos exprimir - realmente virtual, ou seja, para que
186 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAROS INCORPORAIS 187
usufruísse plenamente as características da virtualidade e
apresentasse as suas características. Ela também deveria
ao menos esboçar os princípios elementares sobre os quais
repousam essas regras, isto é, a natureza e as característi
cas do ciberespaço e do cybertime.Ora, uma "arte do virtual" assim começa a se estabe
lecer a partir dos trabalhos teóricos e práticos dos artistas.
Com efeito, parece que a apresentação de listas e de classi
ficações de obras interativas - mesmo que ela seja necessá
ria para permitir vir a se saber que essa arte existe e mesmo
que as obras sejam descritas com entusiasmo - não basta
para formar o núcleo de uma verdadeira estética do virtual.
Uma estética do virtual exige muito mais, ela convoca uma
reflexão que não seja nem preditiva e autoritária, como po
de sê-lo a estética clássica, nem, por outro lado, isenta de
certa visão de conjunto do mundo da arte, melhor dizendo,
do mundo como tal. Tal estética se dedicaria a iluminar os
dados essenciais que entram em jogo no ciberespaço, que é
o espaço de trabalho deuma artedovirtual. Isso só é possível
quando alguém está pessoalmente envolvido em um tra
balho nesse espaço. Aqui, mais que nunca, os autores são
levados a teorizar no processo de seus trabalhos". É do in-
40. Em história da arte, geralmen te esquecemos a impor tância da reflexão teórica dos artistas. Trata -se de um ponto que vem sendo contem plado pelos recentes estudos sobre os diários, as cadernetas e os d iferen tes escritos dos pintores. Veja-se oCentre d'Études d'Arl Contemporain (Paris )- Sorbonne), dirigido por Ann e Moeglin,cujos trabalhos se concentram sobre as leorias de artista. Cf. tamb ém o ~Itimo capílulode Anne Cauquelin, Théories derart (Paris, rUF, 2001) [Teo:ws daarte, Sao Paulo, Martins, 2005]. E mais, trata-se de um pont o que não pode mais ser neghgencmdo ne~ relegado ao silêncio quando nos ocupamos de arte digital"dad o que o t:a~alho art ísticonesse campo consiste exatamente em pôr à prova um a sene de proposiçoes abstratas.
terior de uma espécie de laboratório de obras virtuais que
se constroem e se afinam as condições de sua existência, e
não desde o exterior do campo, com não sei que conside
rações gerais sobre o estado da sociedade na era das multi
mídias e da globalização.
Essa maneira de ir construindo gradualmente a lógica
das interpretações para um campo, lógica sempre retoma
da, inacabada por essência , corresponde à composição de
obras que reivindicam pertencer ao aberto, ao inacabado,
ao processo em vias de se realizar. O que se configura, en
tão, pedaço por pedaço, parece uma miniatura cujas peças
se juntam ao sabor dos acontecimentos que são, a cada ins
tante, as novas criações digitais, e o que elas acrescentam
à tela já esboçada. Não se trata mais de introduzir atribu
tos poéticos (da arte!) nas obras virtuais, mas de legitimar
a expressão do virtual como arte.
o virtual como arte
É claro que há uma estética em formação no mundo
das comunicações cibernéticas. Já o desvelamos: há uma
poética da interface, uma ação estética e sobre a estética da
virtualidade digital. Mas como ela se posiciona em relação
às definições habituais da arte e qual é o papel reservado
à atividade artística nesse espaço? Quaisquer que sejam as
diferentes maneiras de apresentar a arte, de lhe dar um con
teúdo ou de teorizar a partir dela - e vejam que elas são nu
merosas - , uma característica permanece constante nessas
188 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR os INCORPORAIS 189
tentativas de definição: a arte é uma atividade que se situa
entre realidade e ficção. Definição mínima, que está aí para
ser reconsiderada. Com efeito, trata-se da divisão entre real
e imaginário, entre virtual e real, entre realidade e abstra
ção? Parece que, à luz da arte do virtual, essa definição pre
cisa ser reformulada.
REVISITAR A FICÇÃO
Separamos ficção e realidade, geralmente pondo de um
lado o que é próprio da ficção: imagens, imaginário, apresen
tação inabsentia, verossímil e inverossímil, possíveis, e, do ou
tro lado, o que é próprio da realidade; realidades pertinentes
ao vivido, à presença, à trama do cotidiano, ao que é rotineiro
e não configura objeto nem de dúvida, nem de incerteza, ao
menos naquele momento. Nesse esquema, a fantasia e a leve
za são o apanágio da ficção, ao passo que a densidade, o peso,
a certeza afligem a realidade; a atividade artística, que lança
raízes no modo da ficção, viria aliviar o peso das realidades,
em um jogo de distanciamento e de ilusões.Mas , nesse caso, que fazer das idéias que são chama
das abstrações e que decidem a trama das realidades co
tidianas? Quero falar da estrutura do espaço e do tempo,
por exemplo, da relatividade geral, da composição dos áto
mos: trata-se de hipóteses, de expressões ideais, em suma,
de ficções. Porque o campo da ficção, contrariamente aos
lugares-comuns que o transformam em um mundo de so
nhos, é também o mundo dos modelos, dos cálculos, das
formas que escapam à apreensão direta - isto é, sensorial.
Sendo assim, o fato de a terra ser redonda escapa a nossa
experiência presente, ele não é dado pelos nossos sentidos.
Para nós, a terra é plana porque caminhamos sobre o so
lo sem que ele escorregue. Husserl fazia a distinção entre a
evidência presente da planura e a crença verificada, hauri
da no estoque dos conhecimentos apreendidos, de sua es
feric ídade-'. Nesse exemplo, o real vivido no erro está em
contradição com a ficção verdadeira. E agora? Onde se si
tua o fictício? O exemplo é banal, mas se aplica a outras
evidências sensoriais contrariadas pela abstração científi
ca ou "ficção". A realidade da ficção e a realidade vivida se
mantêm assim, lado a lado, em uma espécie de mútua in
diferença. Isso também nos indica que vivemos simultanea
mente em dois mundos separados, aquele que chamamos
de realidade vivida, presente, concreta, e o das realidades,
não presentes e não concretas para nós, das ficções nacio
nais. Geralmente, lidamos muito bem com esses dois mun
dos mais apostos que opostos, e vivemos essa justaposição
sem problemas. Sabemos utilizar máquinas das quais não
conhecemos nem a estrutura, nem o modo de alimentação.
Andamos de bicicleta sem conhecer as leis do equilíbrio e
escrevemos nossos e-mails sem pensar na rede planetária.
Tudo aquilo que se refere à estrutura do espaço e do
tempo atuante em nossas comunicações eletrônicas faz
parte do mundo ficcional: não há dúvida de que esse mun
do é presente, contudo, ele nos parece remoto, como um
41. Edmund Husserl, "L'arche originaire: La Terre ne se meul pas ' (trad,Didier Franck , Philosophie, Paris, Éditions de Minuit , n. 1. 1~84) .
190 AJ\JNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 191
invólucro cuja textura é desconhecida, mas sem o qual não
se pode passar. Mesmo que nos suponhamos capazes de
levantar a hipótese do dispositivo de um tempo sem pers
pectiva, de um espaço sem lugares e do vazio exprimível,
ele continua a escapar da percepção corrente.
Utilizamos apenas os dispositivos gerados por essas
estruturas em certas condições, para determinadas tarefas
especializadas, sem nos questionar do que eles são feitos;
vagamente conscientes de que eles dependem de princí
pios diferentes daqueles aos quais concedemos nossa fé,
continuamos a lançar mão, comumente e sem resistência
de alma, de imagens espaciais do tempo, da distância en
tre os objetos do mundo e das intenções que nos levam a
agir em vista de metas. Com efeito, há uma distância con
siderável entre aquilo que nós vivemos - nossas crenças e
meias-certezas - e os modelos científicos que tomamos por
verdadeiros. Essa distância aumenta sem cessar com o de
senvolvimento das especializações e de suas linguagens,
que vão se tornando cada vez mais esotéricas. A compreen
são dos fenômenos físicos escapa à boa vontade comum.
Mesmo uma coisa tão banal quanto a situação do tempo,
traduzida na linguagem dos meteorologistas, torna-se um
enigma para o espectador comum diante da previsão do
tempo do noticiário da tevê. E assim vamos nós, como ce
gos, em meio a blocos técnicos intransponíveis, aferrados a
nossos modos de ver e de pensar, que, mesmo anacrônicos,
têm ao menos a vantagem de existirem para nós .
Nessa divisão entre uma prática singular, tecnicamen
te aparelhada e cuja fundamentação nos parece estranha, e
outra prática familiar e que classificamos como natural, se
guimos um princípio estabelecido: o familiar, o íntimo, o
natural é o sentimento profundo, a consciência, é o "inte
rior", ao passo que a técnica, o artificial, o aparelhado está
no exterior. O interior é também o imaginário, o sonho, a
fantasia, a interpretação, ao passo que o exterior é o cálcu
lo frio da matéria programada, as deduções sem surpresa.
É desse modo que encaramos, na maior parte do tempo, os
campos respectivos das máquinas e de nossa sensibilidade
de todo humana. Nesse esquema, a ficção, essa aura sim
pática que cerca os objetos sensíveis e os desvia levemente
para o mundo do sonho e da imagem, é um atributo espe
cificamente humano. Nós fazemos ficção naturalmente, e
nisso estaria nossa superioridade sobre os outros seres vi
vos, presos a seus instintos. Em contrapartida, o espírito
geométrico animaria certo número de dispositivos mais oumenos maquínicos e rígidos.
Ora, disso se conclui que, se algo pode ser invocado
em favor do modelo cibernético, trata-se do desvelamentadesse esquema, de sua crítica.
O ELO "ARTISTA"
Com efeito, com a interatividade e a entrada em cena dainterface, os dois campos, realidade e ficção, deixam de po
der ser nitidamente separados. E, ainda mais, eles se inter
penetram, e a ficção - a capacidade de imaginar na ausência
do objeto - talvez já não se situe no lugar em que se espe
rava que ela estivesse. Ela não está mais do lado do sujeito,
192 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR os INCORPORAIS 193
que se acreditava autorizado a criar formas (quando artista)
ou a interpretar (quando espectador) segundo sua própria
subjetividade, e a comunicação entre o criador e o especta
dor não se faz mais de sujeito a sujeito. Com a interface que
liga o mundo das realidades vividas pelo sujeito ao mundo
do ciberespaço, a capacidade de fazer ficção passa para o lado
do abstrato, do dispositivo calculado. Do lado do artista, é o
programa que carrega a função poética - abstração e simpli
cidade são seus atributos. Do lado do visitante, ao entrar no
espaço virtual por uma interface, ele é levado a abandonar
sua pretensão à interpretação poética, para seguir as injun
ções ficcionais do dispositivo abstrato do sistema. Porque,
uma vez mais, trata-se de uma transformação derivada do
dispositivo, não das disposições particulares dos sujeitos.
O espaço interior do sujeito - íntimo, natural, real-, com
suas percepções particulares, é então reportado ao interior
de outro espaço - o espaço virtual- no qual ele se converte, e
a função verdadeiramente poética da interface é revelar essa
conversão dando acesso a seu próprio funcionamento.
Percebemos então que, no espaço digital, a interface
provoca a reversão da relação entre realidade e ficção. Uma
realidade fictícia ... é sem dúvida nisso que desemboca o dis
positivo, a meio caminho entre o programa (e seus parâme
tros calculados, que permanecem invisíveis) e sua aplicação
por meio das interfaces. O visitante faz parte daquele dispo
sitivo enquanto ajuda a materializar a ficção, a fazê-la passar
para o lado de um concreto sensível. Desse modo, o ficcio
nal está sempre em estado de passagem, e nossa realidade
(o íntimo, o interior, a subjetividade) é apenas uma parte do
mecanismo dessa passagem - penso no parteiro da verda
de que Sócrates dá como exemplo. O mestre em sua maiêu
tica é apenas o instrumento de passagem entre o oculto e o
descoberto; a dialética é concebida, não como interface en
tre o mestre e o discípulo, mas entre o oculto, o in-sabido,
e o trazer à luz. O desconhecimento do discípulo atua co
mo o vazio, quando ele acolhe um corpo; ele acolhe o saber
que emerge, dando-lhe lugar. Ao incorporá-lo, ele mesmo
se torna corporal. No sistema computacional, quando o vi
sitante procede a uma interface, não se trata nem de saber,
nem de verdade, como é o caso da maiêutica, mas da realiza
ção. Prevalece aqui outra espécie de parto: a interface do vi
sitante conclui a artev, ele faz a ficção entrar no real.
Porque, para o visitante, não se trata de "fazer o qua
dro", segundo a celebérrima fórmula de Duchamp, que pu
nha o visitante completamente à vontade ao inquietá-lo um
pouco, nem, para o artista, de tornar visível o invisível, se
gundo outra fórmula também muito célebre. O invisível aqui
não é da ordem do espiritual, que uma epifania viria revelar,\
ele simplesmente caracteriza o estado de um sistema em de-
terminado momento de seu desenvolvimento. E o visitante é
a passagem obrigatória para outra etapa: sua realização.
Desse modo, o espaço que se estende entre realidade
e ficção é percorrido em todos os sentidos por uma ativida
de de artista que joga com os dois, mistura-os, inverte-os e
os põe em movimento. A ilusão de um é a verdade do outro.
42. Assim como a arte, em Aristóteles, "completa" a natureza.
194ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 195
o artista que propõe o programa e o visitante que pratica a
interface estão ligados em um espaço que mescla realidades
vividas e ficção abstrata. Eu veria tranqüilamente esse link
como a réplica do fogo artista que percorre o mundo, segun
do os estóicos, instruindo a ligação por simpatia e tensão.
Com efeito, o que precisamos reter desse fogo artista não é a
espiritualidade de um fogo que proviria da alma, mas a ma
terialidade desse fogo, indicada pelo adjetivo technikon. No
texto de Diógenes Laércio, o acréscimo da seguinte frase : "É
um sopro capaz de sensação [aisthetiken]" marca a passa
gem do técnico, que parece pertencer ao artifício, ao sentir
que pertence ao ser vivo». Essa mescla impressionante situa
a arte sob o duplo regime do técnico e da sensação«.
A ARTE DO VIRTIJAL CO MO REGIÃ O DA ARTE
Havíamos visto, na segunda parte, que alvos tinham si
do visados pelos artistas contemporâneos: a rejeição do sis
tema das galerias, do mercado, da museificacão, e havíamos
visto também que destino estava reservado a essa atitude.
Ao se dobrar ao mercado, alguns artistas haviam tentado su
primir o seu conteúdo e jogar com o espaço oferecido abor
tando-o. Klein expõe o vazio, ou a invisibilidade tornada
espírito. Mas aqui também o jogo zombador vira celebração.
43. Diógenes Laércio, Vies, doctrines et senterzces des philosophes iIIustres(trad. RobertGrena ille,.Paris, Garnier/Flam marion, 1~65), livro VII, pp. 156-8.
. 44. Ibidem fedomgl.: trad. Robert Drew Hicks , Cambridge, Har vard Universíty Pressl Loeb Classical Library].A tradução inglesa leva em conta essas duascaracterísticas e prop õe: "artistically working fire".
Outro alvo: o partilhar de um domínio cultural quase sem
pre elitista com um público ampliado. É o abandono da au
ra e a reprodução generalizada. Mais uma vez, essa tentativa
está destinada ao fracasso porque o público se prende, jus
tamente, à inacessibilidade da arte e não adere a sua versão
cheap: "Isso não é mais arte", é o que se diz .Tanto de um lado
como de outro, invisível ou excessivamente visível, a ativida
de artística gira em torno de suas próprias marcas.
Ora, a miniatura digital parece oferecer uma resposta à
maioria dessas aspirações: o não-mercado, a desmateriali
zação versão americana anos 1960 e o partilhar. Livre aces
so e disseminação em todas as direções estão no programa
da interatividade e, com ele, a ação do espectador sobre o
espetáculo, sua entrada livre no mundo dos criadores. A mi
niatura, ou dispositivo digital, parece atender às demandas
ela chegou até a suscitar o entusiasmo em seus inícios - ,
mesmo que essa liberdade de acesso seja ilusória, mesmo
que, ao final das contas, suscite-se sempre a questão do re
conhecimento dos autores e de seus direitos, mesmo que as
questões de mercado, de divisão (copyright ou "copyieft"?)
estejam longe de ser regulamentadas. A despeito também
das questões de pirataria e de manipulações diversas, da
falta de recursos para a compra e conservação das peças,
da dificuldade de reconhecimento e de exposição.
Para além dos primeiros atrativos, muito conhecidos,
que continuam a ser apregoados, também é preciso pensar
que o imaterial ou o que assume seu lugar atrai os artistas
para a miniatura digital? Fazer o invisível advir à visibilida-
196 ANNE CAUQUELIN
de, mostrar o que se esconde, evocar o que não pode ser di
to, tentar o indizível ou calá-lo: essas são dimensões da arte
freqüentemente reivindicadas e vinculadas às noções mais
ou menos obscuras de mistério, de profundidade, de inte
rioridade, de espiritualidade. Podemos imaginar que essa
busca está parcialmente esgotada quando o suporte artís
tico se torna ciberespacial, isto é, "imaterial"; esse material
imaterial pode ser pensado, então, como espiritual - essa
é uma alternativa que agrada a alguns - a menos que, ou
tra alternativa, ele seja tomado exatamente por aquilo que é:
um suporte físico, um vazio atravessado por impulsos, sem
nenhuma conotação humanista. O que importa é que, nos
dois casos, o caráter de eloestá no centro do trabalho. É so
bre esse elo e com elos que o ciberartista trabalha: ativida
de de ligação, não apenas entre os objetos que circulam no
mundo artificial, entre sites e internautas, mas também en
tre realidade e ficção, entre vários modelos de mundo, entre
artifício e natureza.
E talvez seja por esse traço que o caracteriza que a arte
do virtual, longe de ser o parente pobre da arte com A maiús
culo, possa ser pensada como uma espécie de modelo pa
ra a atividade artística em geral. Poderíamos até mesmo nos
arriscar a levantar a hipótese de que a atividade que se de
senvolve no ciberespaço é, ela própria, uma atividade artista,
qualquer que seja o conteúdo daquilo que é conectado».
45. A estetização da sociedade, da qual atualmente tanto se fala, de maneira tão ambígua, não teria sua fonte na extensão dos links, no trabalho sobre esseslinks, trabalho que se revelaria, finalmente, como verdadeiramente artista?
PROPOSIÇÃO FINAL
PENSAR SEGUNDO OS INCORPORAIS
Teríamos, então, freqüentado os incorporais dos estóicos ao longo deste trabalho... Os incorporais? Não fantasmas, sombras fugazes, nem mesmo as memórias vacilantesdaquilo que nunca foi: todas as imagens que poderíamosesboçar, e que nos encantariam, cedem diante da dura condição que eles impõem ao pensamento. De nada adiantaexemplificá-los, eles não têm imagem; de nada adianta descrevê-los, eles não têm forma - e nisso eles são exatamente invisíveis; inútil estabelecer-lhes residência, eles não têmnada que possa fixá-los.
Mesmo assim, tendo aqui acompanhado seus movimentos e interceptado suas manifestações fugazes - e issoespecialmente na arte contemporânea -, poderíamos ter aimpressão de ter passado a conhecê-los melhor; conhecer, isto é, usá-los, pô-los a trabalhar, deles nos utilizar. Claro quea filosofia é justamente uma atualização de concepções recebidas; recompor o quadro, pintá-lo de novo, mesmo que comcores antigas, essa é sua tarefa.
Modelos e miniaturas de mundo
Se eu questionar o conjunto de traços que pareciam cor
responder à antiga definição dos quatro incorporais, acho
que posso indicar duas direções nas quais poderíamos en
contrar ensinamentos.
A primeira é a das expressões artísticas contemporâ
neas que, como vimos, apoderam-se do incorporal para o
pôr à prova de sua atividade, a das artes do virtual, que re
convertem noções usuais do espaço e do tempo e convocam
novas definições. O modelo de universo oferecido pelos in
corporais estóicos e a miniatura do oferecem dialogariam,
dessa forma, no decorrer dos séculos, interpretando-se mu
tuamente. Trataremos de juntá-los uma vez mais aqui, em
um primeiro tempo ("Modelos e miniaturas de mundo").
A segunda via, mais meditativa, levar-nos-ia a uma
reflexão sobre o impessoal e a indiferença. Eis aí um in
corporal com nossa dimensão, que freqüentamos assidua
mente sem, contudo, apreendê-lo como tal. Implícito e
fragmento são nosso quinhão cotidiano, que cingem com
suas franjas nossas palavras mínimas e os mais ordinários
de nossos gestos; em seus interstícios, percebem-se os in
corporais sob a forma do vazio, da perda, para não falar da
desordem. Um simples esboço me permitirá evocar a sua
presença ("0 momento estóico").
que, em mais de uma correspondência, haja uma espécie
de desdobramento ou de explicação que a miniatura digital
opera: a visualização de um cosmos antigo, que teríamos
esquecido desde muito tempo, aquele que é sugerido pela
teoria dos incorporais. Nesse sentido, se a hipótese que ve
nho defendendo é confiável, o ciberespaço e o cosmos es
tóico se analisam mutuamente. Enquanto o modelo antigo
permite compreender melhor a miniatura digital, a minia
tura digital lança luz sobre o modelo do universo antigo;
ela o revela, não como uma antigüidade saborosa, fanta
siosa e levemente ridícula, mas como um padrão (pattern)
talhado quase sob medida para as operações virtuais das
quais nossa modernidade se orgulha.
Desse modo, para garantir a coesão do conjunto-mun
do, os estóicos haviam recorrido a um princípio de fusão in
terna que percorria a totalidade dos seres, um fogo artista
que punha os seres vivos em simpatia. Os vínculos entre
humanos (por exemplo) não dependem de sua boa ou má
vontade, mas da energia que os atravessa. Uma espécie de
vontade anônima - muito próxima da de Schopenhauer'
limita as subjetividades, em um desígnio comum de ligação.
A ligação está no centro do sistema, é seu princípio fundador.
Não, uma vez mais, vínculos de sujeito a sujeito, mas víncu
los entre os elementos de um dispositivo, apesar de que tal
vez fosse melhor falar de uma gramática ou de uma lógica,
200 ANNE CAUQUELIN f~ ·,'""."
\FREQüENTAR os INCORPORAIS 201
Parecem múltiplas as correspondências entre os ele
mentos da física estóica e a miniatura digital. Parece até
1. Cf. Arthur Schopenhauer, "L'objectivation de la volonté", em Lemondecommevolonté et comme représentation (trad. Auguste Burdeau, Paris, PUF, 1966). [O mundocomo vontade ecomo representação, trad. Jair Barboza, São Paulo, Unesp, 2005].
o MOTOR
mais que de uma moral. A abstração está no centro do siste
ma, ela é disposição, vínculo entre os signos, sem lugar al
gum para os sentimentos ou emoções: o fogo artista suscita
uma única paixão, a admiração, para a ordem do mundo.
A miniatura do sistema ciberespaço produz o mesmo
desenho produzido pelo modelo do mundo estóico, quase
a ponto de, por ser puramente artificial, o ciberespaço não
ter necessidade do primeiro motor - isto é, de Deus - para
funcionar. Trata-se de um sistema perfeitamente leigo, no
qual a engenharia substitui o papel reservado, pelos Anti
gos, ao princípio divino. Desse modo, a miniatura do digital
completa o modelo; ela o finaliza, até mesmo na medida em
que, pondo de lado o divino, ela realiza e mantém os para
doxos que representavam dificuldade para os estóicos: por
exemplo, aliar a necessidade incontornável do vínculo à in
diferença dos sujeitos, ou ainda a materialidade hardde um
mundo pleno de corpos com a necessidade de situar os in
corporais ao lado desse corpo pleno.Realmente, ao se situar ao lado daquilo que chamamos
"realidade", o modelo computacional faz justiça à separa
ção antiga entre mundo e vazio, entre corpo e incorporais,
e mesmo assim mantendo sua unidade. Corpo real e incor
porais ficções são inseparáveis nas operações digitais. Para
as duas versões, antiga e contemporânea, do esquema cós
mico, o mundo é Uno e um só. Tanto para a ciência contem
porânea como para o pensamento antigo, apenas os graus
203FREQüENTAR os INCORPORAIS
de percepção é que são diferentes. A vida humana biológica
mede o tempo segundo uma escala brevíssima em compa
ração com os dois extremos: os ato-segundos, que medem a
estrutura do átomo, e os bilhões de anos, que medem a es
trutura do universo. O mesmo se daria na Antigüidade com
a separação do movimento sublunar, aquele que mede e de
fine a duração de nossas vidas e nos permite apreender tanto
as distâncias temporais quanto as espaciais, do movimen
to da esfera celeste, eterno, cíclico, sempre reiniciado (teoria
que encontramos em Arist óteles'), ou do "grande ano" es
tóico, que explode em uma conflagração final (ekpyrosis) an
tes do retorno do ciclo.
Separados desse modo, como podemos fazer a jun
ção entre os mundos eternamente em movimento, situados
para além dos dados sensoriais, e aqueles cujo movimento
podemos perceber? Se a ciência e a arte permitem essa jun
ção, nos Antigos', a teoria dos incorporais pode descrever
a passagem entre os dois mundos de maneira mais preci
sa: é a oscilação pontual, instantânea, do vaz io para o lugar
quando um corpo entra nele, ou do tempo incorporal para
2. O movimento local é o primeiro entre os movimentos que percebem os.Seu modelo é o movimen to de rotação un iforme, que imita o movime nto circular uniforme da esfera das estrelas fixas . Os orbes se enca ixam uns nos outros, cada qual sendo definit ivamente medido pelo movimento que serve de mode lo, o doprimeiro motor. Desse modo, diz o filósofo (Aristó teles, Physique, trad . Henri Carteron, Paris, Les BeIJes Letres, 1926, IV, XIV): "O tempo parece ser o movimento daesfera, é por esse movimento que são medidos todos os outros movimentos".
3. Por isso podemos ler na Metafísica, na tradu ção de Jean Tricot para ofrancês (Paris, Librair ie Ph ilosophique Vrin, 1940), as proposições ar istotélicas so bre o inteligível: a ciência forma um vínculo entre aquilo que podem os compreender e viver e aquilo que a int eligência suprema vive e compre ende (livro L, 7 e 8).
ANNE CAUQUELlN202
204AJ"lNE CAUQUELlN FREQüENTAROS INCORPORAIS 205
o tempo vivido quando ele é percebido como momento, que
desempenha a ligação necessária entre os tempos disjuntos
dos movimentos locais e celestes.Os dispositivos de ligação situados no ciberespaço
respondem à mesma questão de maneira mais precisa: o
vínculo entre as diferentes escalas e modelos de mundo é
muito mais explícito porque, no nível do tempo local, a in
terface é um ato que vincula as duas escalas de tempo, a
escala do que é vivido pelo internauta e a escala do tempo
micro do sistema eletrônico.Situamo-nos na física do universo e não vamos pro
curar o ciclo do eterno retorno: a ligação é um ato pontual,
que põe os dois tempos em contato - todos os dois reais
mas em escalas diferentes - tempo local e tempo atomiza
do - e os faz existir simultaneamente.A freqüentação dos incorporais - porque não podemos
fazer nada além de freqüentá-los - nos levou a rever o que se
passa nessas ligações e fusões - como a de um real fictício:
tempo intemporal, ou lugar sem lugar, cuja réplica concre
ta temos nos sites eletrônicos ' . Mesmo que seja uma simu-
4. Diant e disso, só posso apoia r as definições que Edm ond Couchot avançaem um ar tigo de 1985 na revista Traverses: "O tempo digital é um tempo simu l~ do, sintet izado a part ir de microdurações, assim como a imagem dIgItal ~o ~oraçaoda qual ele bate e cujas matrizes ele ordena é co~nposta de elementos at<:mlcos (ospixels), cuja associa ção cria formas e cores. Ele nao segue mai s a orientação do passado para o futu ro, como o temp o crônico do calendário que conta os dias, ou otemp o dos relógios ast ronômicos que repres enta os movimentos do sol e dos p~anet as, das mar és e de outros fenômenos. Ele não é mais escoament o, mas vib ra ção.Ele não representa nada, não mede nada; ele repete indefinidamente o mesm o rrucroinstante, ele marca a simultaneidade, ele sincroniza, ele opera" (revis ta Traverses, Par is, n. 35, 1985, pp. 41-5).
lação do modelo estóico, o dispositivo computacional não é
menos concreto, real. Eu diria até que essa simulação é mais
real que o modelo. O dispositivo cibernético traça o modelo,
o aperfeiçoa e permanece no campo do pensamento, ideal.
Paradoxalmente, a simulação realiza o projeto, ela o com
pleta. O tempo simulado é mais "real" que o tempo conta
do, e a duração bergsoniana encontra sua justa expressão no
tempo intemporal da simulação. O modelo cibernético cer
tamente oferece novos esclarecimentos, não apenas sobre os
incorporais e a visão estóica do mundo, mas também sobre
as noções filosóficas de tempo e de duração.
A DISTÂNCIA
Existem, contudo, pontos em que esse modelo se afas
ta substancialmente do modelo e chega, até mesmo, a con
tradizê-lo. É o que ocorre com a problemática dos possíveis,
que, no cibersistema, está ligada à liberdade de escolha.
Com efeito, o modelo computacional transgride o
modelo dos incorporais porque ele produz e mantém a ilu
são da escolha. O visitante tem a pretensa liberdade de es
colher entre uma infinidade de possíveis. A cibercultura
adula essa liberdade, multiplicando-a na escala da infini
dade das conexões planetárias. Ela também adula a indi
vidualidade da escolha e, desse modo, justifica a diferença,
pois cada qual pode se afirmar diferente ao preferir um
dos possíveis entre todos os outros. Sem dúvida, a moral
cristã passou por lá, e seria insupor tável para nós não ser
206 ANNE CAUQUELl N FREQüENTARos INCORPORAIS 207
senhores de nossas decisões, livres em nossas escolhas. Se
esse ponto for anulado, não haverá mais responsabilida
de pessoal, logo, não vai haver mais pecado, assim como
também não haverá mais redenção. A ideologia da escolha
entre os possíveis tem um forte matiz religioso, algo que
não é lá muito de se esperar quando se freqüentam os ci
bermundos e algo também que não é lá muito ressaltado
pelos críticos... Contudo, essa liberdade não é pré-requisi
to para que o cibermundo funcione . Assim como também
não é pré-requisito no sistema antigo. Ora, ao deixar esses
possíveis disponíveis para escolhas voluntárias, intencio
nais e individualizadas, a cibercultura cai na contradição
inversa daquela na qual os estóicos se deixaram ser pegos
por seus contraditores. A esses últimos foi oposta a idéia
de que eles não podiam escolher o preferível ou os prefe
ríveis na indiferença na qual os mantinha o destino e que,
portanto, era inútil considerar alguns bens preferíveis a
outros. Contrariamente, podem-se censurar os cibernau
tas pela contradição que existe entre o vínculo comunitá
rio querido, reclamado, profetizado, vínculo fusional que
deve fazer da humanidade uma totalidade responsável, e
a liberdade individual da escolha, que tende a provocar e a
afirmar a diferença.Desse modo, pode-se claramente produzir na física do
virtual uma correspondência bastante esclarecedora com
os incorporais, mas nos comportamentos individuais ou
sociais que esses sistemas evocam a distância aumenta; po
demos até avançar que eles são diametralmente opostos.
O momento estóico
Com efeito, é no terreno dos comportamentos cotidia
nos que a distância entre modelo e miniatura se faz notar.
Afora os modelos da física estóica e das simulações con
temporâneas, dos quais venho falando até aqui, podemos
encontrar, por assim dizer, incorporais familiares em nosso
círculo imediato e em nossas próprias atitudes de vida e de
arte. Desse modo, naquilo que se refere à linguagem, todo
um setor da comunicação está voltado para a incompreen
são, para o vazio de sentido; não raro investigamos aquilo
que tal proposição, tal pergunta querem exatamente dizer;
nós mesmos, quando falamos, não temos total segurança
de ter expressado o que pensamos (ou talvez devêssemos
dizer inversamente: pensado o que nós dizemos?). De to
do modo, esse vazio de sentido é rapidamente preenchido
por múltiplas interpretações, tanto da parte do locutor co
mo da parte do interlocutor: "Na verdade, eu queria dizer
que... - Ah! É? Eu tinha entendido que...".
Interpretação, este é o termo dado ao preenchimento
desse buraco do sentido. Interpretar, segundo o incorporal,
significa preencher esse vazio com certo número de "cor
pos" para fazer dele um lugar, fixar sua inconsistência.
Tomar consciência da fragilidade dessa passagem na
qual o não-sentido, o vazio, de repente abre lugar para o
sentido pela oscilação do exprimível em expressão é o que
eu chamo de momento estóico. Um momento no qual se equi
libram as duas vertentes do sentido e do vazio de sentido
208 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 209
sem que se dê prioridade a um ou a outro'. Furtivo é o ins
tante da indiferença, suspenso todo o sentido, com chances
iguais para que a incompreensão subsista ou para que a in
terpretação tome a dianteira. O acontecimento do sentido é
condensado sobre si mesmo, pronto a desaparecer, se não ti
ver tido lugar, ou então a tomar corpo. Momento silencioso,
pausa que permite à respiração do mundo vir ao interior da
linguagem. Ligeiro tremor, vacilo: a indiferença ou a incer
teza. Porque, é isso o que os incorporais nos ensinam, a in
diferença é o ponto morto no movimento do fielde balança,
antes que ele caia para um lado ou para o outros.Essa oscila
ção se produz sem que a vontade, a escolha ou a preferência
se manifestem. Porque a indiferença é naturalmente contrá
ria às preferências. Portanto, é sobre esse ponto que diver
gem modelo estóico e ciberminiatura.
A INDIFERENÇA, o IMPREFERíVEL
Para os estóicos, o acontecimento é sempre exterior, as
sim como é exterior a física, a natureza. Não decidimos, não
escolhemos a ordem das causas, nem seu encadeamento,
nem a cor de nossos olhos, nem a ordenação de nossos ge-
5. É difícil encon tra r um equivalente para "privado de sentido", o asemosgrego ou o sinnlo s alemão; temos de imedi ato "não-sentido", o que naturalmentefaz sentido de imedi ato... "Incerto sentido", o título dado por Leszek Brogoswski asuas edições de livros de art istas aproxima-se mais do moment o estóico.
6. No artigo já citado, Edmond Coucho t, faland o da ciberlinguagem, afirma: "Há como que uma dobra funda escavada na supe rfície da linguagem, algoque simula uma espécie de toma da de consciência (sem consciência) da linguagempor si mesma", e ressalta justamente a indiferença da escolha subjetiva e a autono mia de uma linguagem que decide por si mesma .
nes. Essas são coisas que não temos como preferir; elas se
fazem sem nós. Vêm de fora. Podemos chamar como qui
sermos - acaso, providência ou destino - a gestão desses ti
pos de acontecimentos. Mas sejam quais forem seu nome,
quando se trata deles, a indiferença é a regra: a ordem do
mundo não se inquieta por indivíduos, nem nos pequenos,
nem nos grandes acontecimentos. Nós os padeceríamos,
portanto, indiferentemente.
Como pode ser isso? Tudo em nós se recusa à depen
dência passiva . A liberdade (de escolha), a dignidade (do
ser humano), a singularidade de nossos gostos, o senso de
iniciativa e o poder de decisão, tudo isso faz parte da baga
gem cultural imprescritível que nós também chamamos de
"direitos humanos".
Mas, talvez, não estejamos compreendendo bem o que
significam indiferença e indiferentemente. Indiferença existe
quando não podemos escolher entre dois objetos: "Dá no
mesmo", diremos. Um não é preferível ao outro; é indiferen
temente que escolherei um ou outro - seria até mais exato
dizer: é indiferentemente que efetuarei uma não-escolha.
A partir dessa situação, duas explicações são possíveis.
A primeira se refere à física estóica: tomar as coisas indife
rentemente é se comportar como o vazio com relação aos
corpos que ele pode acolher. Não lhes dar nenhuma orien
tação, nenhuma prioridade umas sobre as outras . É, por
tanto, manter-se muito próximo do próprio princípio do
cosmos: o mundo é pleno e o vazio o cerca e, entre os dois,
ocorre o equilíbrio ínfimo ou a vacilação do tempo, do lugar
210 ANNE CAUQUEUN FREQüENfAR os INCORPORAIS 211
e do exprimível. Sendo indiferentes, como o é o vazio com
relação aos corpos que o ocupam por um momento, nós
imitaríamos a natureza, a physis, ou até mesmo lhe daría
mos acabamento, assim como a arte completa a natureza.
O que advém encontraria em nós um vazio não-orientado,
sem vetor, ilimitado, em suma, uma indiferença maior.
A segunda se refere à lógica dos estóicos, especifica
mente à definição do exprimível, o lekton.A indiferença não
é um estado, nem substantivo nem adjetivo, é um lekton,
um exprimível; e, segundo o exprimível, não podemos falar
de algo de indiferente como se se tratasse de uma de suas
qualidades: também não podemos falar de uma indiferen
ça como de um estado do ser, mas apenas de determinado
momento de indiferença, inserido entre o momento no qual
o sentido está vazio e aquele no qual ele se enche, e isso se
dá em um instante sem duração.
Se essa definição da indiferença segundo os incorpo
rais não estiver equivocada, então as críticas dirigidas à
teoria estóica não se aplicam mais; com efeito, lembramos
que essas críticas visavam à contradição entre a indiferen
ça exaltada pelo Pórtico e a escolha que se devia fazer de
alguns bens, preferíveis a outros.
A indiferença não é um estado psicológico, como ten
taram fazer crer os moralistas dos séculos [ e II d.e. Nas
duas interpretações, uma física, outra lógica, trata-se de
uma ação efêmera, evanescente, que exprime uma passa
gem, um movimento do vazio para o cheio, do vazio de
sentido à interpretação. E, para falar exatamente segundo o
incorporal, deveríamos dizer de um acontecimento (de falaou de coisas) que se indiferenta.
o momento estóico na artecontemporânea
Já encontramos essas características da indiferença
estóica quando analisamos as diferentes maneiras pelas
quais os artistas contemporâneos freqüentam os incorpo
rais. O que é chocante é, ao mesmo tempo, o número e a
diversidade das manifestações pelas quais os incorporais
se exprimem. Ora são convocados separadamente: o tem
po, por exemplo, é evocado diretamente - trata-se de mos
trar sua repetição monótona e, portanto, sua inanidade, sua
irrealidade; ora é o vazio sob todas as suas formas: as formas
do buraco, do branco ou da ausência, sendo, aliás, essa úl
tima expressão do vazio a mais próxima de se assemelhar
ao exprimível, ao lekton. Por fim, os incidentes dos percur
sos, o encontro inesperado, o acaso -rei evocam ou convo
cam o momento estóico do impreferível e da indiferença queacabo de descrever.
Essas características estão bem presentes no mundo
da arte contemporânea, mas ela não é o único espaço onde
os incorporais se manifestam. Os artistas não têm o privi
légio de revelar o incorporai: nós os freqüentamos mui
to mais vezes do que pensamos e em circunstâncias não
especificamente artísticas. Porque existem outras formas,
mais subterrâneas, menos notadas: aquelas que semeiam
a perturbação na continuidade do rio tranqüilo do tempo
212 ANNE CAUQUELIN FREQÜENTAR OS INCORPORAIS 213
com o qual achamos que nossas vidas são tecidas e na es
trutura firme, ao menos é o que achamos, do espaço.
Trata-se de dois franco -atiradores, marginais: o implí
cito e o fragmento. São eles que nos põem em contato com
os incorporais e são eles que, curiosamente, estão o mais
próximos de nós na vida corrente.O implícito é essa forma de memória sem memória
que está o mais perto de corresponder ao que pensamos
ser o exprimível incorporal: sabemos algo que não sabe
mos que sabemos, e só a ocasião certa permite acolher es
se acolher não-sabido, permite trazê-lo ao real. O implícito
seria, desse modo, a forma familiar do virtual e do expri
mível. Para retomar o exemplo que dei no prefácio: crianças
que estão na praia sabem perfeitamente bem , sem que es
se saber seja verdadeiramente sabido de maneira ordena
da, o que significa a men sagem: "Não ir muito longe!". Não
porque elas tenham uma intuiçã o fulgurant e do sentido,
mas por uma espécie de automatismo derivado da apren
dizagem, sem que seja necessário solicitá-lo compulsando
os estratos complexos da memória. O momento estóico es
tá ali: no processo de transformação de um incorporal em
corpo e no instante em que o próprio tempo incorp orai se
torn a temporal, o aviso é entendido como tal.Contudo, esse saber emergente, apesar de parecer evi
dente (de não apresentar uma única dobra, como se diz), não
se apresenta como um conhecimento disciplinado e coerente.
A harmônica conivência entre partes bem ajustadas não tem a
ver com o implícito; quando aquilo que ele retém em suas do-
bras vem à luz e preenche o buraco do sentido, são rudimen
tos esparsos de saber que surgem. Com efeito, o fragmento é
a forma mais comum pela qual o implícito se manifesta.
Daí decorre seu uso freqüente em poesia, quando a im
posição discursiva, o corpo fixo e estrito da linguagem estão
suspensos . Daí também decorre seu uso não menos fre
qüente em pintura: o detalhe incongruente, insignificante
em si, surge não se sabe de onde, e até mesmo as interpreta
ções mais aguçadas, como as de Daniel Arrasse', não conse
guem enquadrá-lo inteiramente.
O paradoxo do fragmento deriva do fato de ele ser ao
mesmo tempo ún ico, fechado em si mesmo como um por
co-espinhos, e reflexo do conjunto que ele condensa e traz àluz. De certo modo, ligado e desligado; nisso, ele atua no li
mite entre aparição e desaparição - aparição enquanto cor
po bem definido, desapari ção enquanto se deixa reabsorver
pelo conjunto de que é signo. Ao marcar o interstício imper
ceptível entre um todo - o mundo - e aquilo que o acom
panha sem ruído nem existência - o vazio -, o fragmento
deriva do corpo e do incorp orai, sempre no limite de voltar
a ser sem consistência, ou de apresentar em um único pon
to e em um só momento, estóico, a consistência do todo.
7. Dan iel Arrasse, Le d étail eIl peinture: pour une histoire rapprochée de lapeinture (Paris, Flammarion, 1996).
8. Os românticos alemães, em sua pretensão de totalidade da arte e, ao mes mo tempo, de unicidade da obra, bem reconheceram o fragmento como uma conereção, um cristal, frio, quase anônimo em seu brilho indiferente. A esse respeito, cf.Philippe Lacoue-Labarth e & [ean -Luc Nancy, Eabsolu littéraire: th éoric de la litt érature du romantisme allemand (Paris, Éditions du Seuil, 1978). Cf. ainda Anne Cauquclin,Court traitéd/lfragment (Paris, Aubier, 1986).
214 ANNE CAUQUEUN FREQÜENTAR OS INCORPO RAIS 215
Ao final deste percurso, eu gostaria de voltar, ainda
uma vez, à pintura. Não se trataria mais do dedo que apon
ta para o céu, do índex que aponta para um lugar do corpo
ou para as Tábuas da Lei, do olhar que mira um alvo ausen
te, mas da extensão, imóvel, das paisagens pintadas. Por
que há na pintura de paisagem várias características que
podem sugerir o mundo dos incorporais. Geralmente, ima
ginamos a linha do horizonte como a indicação de que há
um além, outra parte, mais longe, bem para lá; também o
olhar do espectador vai se perder atrás da cortina de vege
tação, sonhando; mas essa invisibilidade tão presente e tão
visível, eu diria, não é nada mais que a ilusão permanente
da pintura. Mesmo assim, podemos considerar que a ilusão
está, sobretudo, do lado de cá, o nosso, e que o famoso lá é
aquionde nós estamos.
Há em toda paisagem uma espécie de vazio que la
deia as coisas a ponto de desorientá-las; ao mesmo tem
po, o espaço horizontal parece acolher todo acontecimento
corporal que nele venha se inscrever. Diferentemente do
retrato, que força o exprimível em uma direção determi
nada, o vazio paisagístico, o anonimato de uma nature
za contra a qual nada podemos, que desautoriza, em sua
objetividade nua, toda veleidade de inefável, deixam aber
tas as possibilidades do sentido sem imprimir a elas movi
mentos obrigatórios.
Sem dúvida, aquilo que chamo de momento estóico
afIora aqui, a nosso alcance, com a condição de haver uma
inversão ou uma abolição da perspectiva - aquilo que o ci-
berespaço, mas também o bignothing, nos ensinou a fazer.
Desse modo, assim como o fragmento é a forma literária
por meio da qual o implícito se manifesta, e assim como
o implícito é a forma familiar do virtual e do exprimível,
a paisagem é, para nós, a figura familiar do incorporai, dolugar e do vazio.