Cidadedaparceriaoucidadedadominação:situandoumaexperiênciagentrificadoraquenosatravessa
Cityofpartnershiporcityofdomination:situatingagentrifyingexperiencethatcrossesus
Coordenador:RodrigoGonçalvesdosSantos,UFSC,Professor,[email protected]
Debatedor:SamuelSteinerdosSantos,UFSC,Professor,[email protected]
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Procuramos trazer aqui nessa sessão livre uma tentativa de interlocuções possíveis entre atemática do XVII ENANPUR – desenvolvimento, crise e resistência: quais os caminhos doplanejamentourbanoeregional?–eaexperiênciagentrificadoradoespaçodacidade,tomandocomopontodepartidaopensamentodequeestamosnuma sociedadedoespetáculomediadapelanoçãodeumaestéticadadominaçãoemcontrapontoàumaestéticadaparceria.
Numexercíciodefalaeescuta,temosaintençãodeinstalarumconjuntodeexposições-diálogoscatalisadores do direcionamento de um olhar sensível à cidade revelando possibilidades dacoexistênciadasdiferençasnasdiversascamadasdoespaçourbano.Logo,estapropostadesessãolivre resulta da convergência dos interesses dos/as pesquisadores/as que estão desenvolvendoestudosque transitamnos campos interdisciplinaresdaarquitetura,do corpoeda cidade.Comisto,articulamostrêslinhasdepesquisa–(1)FenomenologiadoEspaçoHabitado;(2)PoéticasdoCorpo-Espaço-Objeto; e (3) Diferença, Estética, Educação e Cidade – apontando um caminhosocialmentecomprometidonoentendimento,apreensãoequalificaçãodacidadecontemporânea.
O convite, então, inclina as atenções para uma territorialização na Teoria da TransformaçãoCultural proposta por Riane Eisler no livro O cálice e a espada: nosso passado, nosso futuromediadaporalgumasideiasdeGuyDebordemAsociedadedoespetáculo.PodemossintetizarasideiasdeRianeEislernaexistênciadeduassociedades:asociedadedeparceriaeasociedadededominação. Na sociedade de parceria, valores mais sensíveis de compartilhamento e equidadeaparecem,atividadescriativasedecriaçãosãomaisfrequenteseexpressivas.Jánasociedadededominação, valores mais agressivos e competitivos surgem, evidencia-se um escalonamento ehierarquiaseadesigualdadeprevalecepormeiodasdiferenças.Hánasociedadededominaçãoatividadesquegiramemtornodaguerraedisputas,astecnologiasvoltam-separaarmamentoepairaumaatmosferabelicosanoar.
Sob esta ótica, destacamos que as condutas formadoras da sistemática das ações que na vidacotidianaqueremos(re)significarsãoaquelas legitimadorasdooutronaconvivência, fundandoosocial,agregandoumconversareumescutardentrodeummododeviver,incluindolembranças,partilhas, colaboração. Infelizmente, o que verificamos numa mirada nos acontecimentoscontemporâneoséum(pré)domíniodeummododeconvivênciahumanaderepulsaaorespeitodasdiferenças,negandoooutropormeiodarupturadarededeconversaçõeseconvíviosdestasdiferenças.
Umatravessamento:AAlegoriadascasasmarcadas.
Eles chegaram numa manhã. Marcaram casas com alguns sinais nas suasparedes. Fotografaram, desenharam rabiscos esquemáticos, preencheramplanilhas. Os que ali moravam não sabiam bem ao certo o que estavaacontecendo.Damesmamaneiraqueapareceram,sumiram.Ficounoarumaincerteza, dúvidas, insegurança. Dias depois avisos de melhorias no bairroacarretando o remanejamento daquelas casas marcadas com sinais, afinal,elas estavam no caminho do crescimento natural da cidade. Aqueles queseriamremanejados iriamparaumlocalmelhoremais longe,mascommais“qualidade de vida”. Novas cores apareceram. Padrões de beleza televisivosganharam o espaço das casas marcadas. Novos valores também surgiram.Aluguéisealgunsserviçosnãocabiammaisnoorçamentodosqueficaram.Eolocal melhor e mais longe continuou recebendo, diariamente, as outraspessoasdascasasquenãohaviamsidomarcadas.
Então, a intenção desta sessão livre é pensar como a estética, ou um projeto estético desociedade,podeseropropulsordanoçãodeumaexperiênciagentrificadoradoespaçodacidade.Podemos partir do pressuposto de que a experiência estética traz consigo a experiência de
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subjetividade à nossa contemporaneidade tão rasgada e atravessada por ritmos e valoresaleatóriosedinâmicos.Logo,essesvalores,porseremtãofugidios,sãocompletamenteignoradospor acadêmicos e técnicos que olham/desenham/pensam a cidade. Na experiência dasubjetividadesurgemcartografiasqueapontamvariáveisdifíceisdese“dominar”.Emumaaçãogentrificadora percebe-se, como estratégias de imposição de um projeto estético-social,desmanches realizados justamente no campo do sensível que desterritorializam subjetividadescircundantes a uma experiência estética, reterritorializando a própria experiência estética comovalordeprestígiosocialnumatentativaclaradeanulaçãodeumaconsciênciadelugarsocial.
“Aalienaçãodoespectadoremfavordoobjetocontemplado(oqueresultadesua própria atividade inconsciente) se expressa assim: quanto mais elecontempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagensdominantesdanecessidade,menoscompreendesuaprópriaexistênciaeseupróprio desejo (...)” [Fragmento tese 30 d’A Sociedade do espetáculo](DEBORD,1997,p.24).
Constatamos nesse projeto que força uma territorialização, desterritorialização ereterritorialização em torno da experiência estética o impulso de um movimento deaburguesamento(ougentrificação)dosespaçosdacidadeoqualbebenocernedasociedadedadominaçãoapresentadaporRianeEisler.Pormaisinvisíveisoudifíceisdeseremdetectadose/ounomeados, estão em voga nesse movimento gentrificador valores como expulsar, separar,extratificar, acentuar desigualdades. Com tais valores vem à tona uma falta de respeito àdiferença.Adiferençaaquideveserentendidacomoaquiloqueéinerenteaoser,umamaneiradeestar-no-mundo,assubjetividadesnasociedadecontemporânea.
MaisumavezrecorremosaGuyDebord,quandoestenosapontaque
“(...) ourbanismoéa tomadadepossedoambientenatural ehumanopelocapitalismo que, ao desenvolver sua lógica de dominação absoluta, pode edeve agora refazer a totalidade do espaço como seu próprio cenário”[Fragmentotese169d’ASociedadedoespetáculo](DEBORD,1997,p.112).
eacentuamosqueagentrificaçãodeveservistacomoumaestratégiadaclassedominantedepôrem prática um projeto excludente de espaço urbano, não respeitando as diferenças, sendointolerante à experiência da subjetividade, normatizando valores de dominação e sufocandopossíveisexpressõesdeparceriase/oucompartilhamentosnacidadecontemporânea.
Um outro atravessamento: Aprender expressões e ações de parceria:responsabilidadepara/porvocê.
“Naprática,ésócomosadultosdascalçadasqueascriançasaprendem–seéque chegam a aprender – o princípio fundamental de uma vida urbanapróspera: as pessoas devem assumir um pouquinho de responsabilidadepúblicapelasoutras,mesmoquenãotenhamrelaçõescomelas.Trata-sedeuma lição que ninguém aprende por lhe ensinarem. Aprende-se a partir daexperiênciadeoutraspessoassemlaçosdeparentescooudeamizadeíntimaou responsabilidade formal para com você, que assumemumpouquinho daresponsabilidadepúblicaporvocê”(JACOBS,2014,p.90).
Porfim,aexperiênciagentrificadoradoespaçodacidadeéproblematizadanessasessãolivrenasvivências que temos da apreensão contemporânea da cidade considerando que vivemos emespetáculos e por espetáculos (DEBORD, 1997). Será que já estamosmergulhados num projetoestético-social com base numa anulação de um corpo que solicita um entrelaçamento com aexperiência (inter)subjetiva? A noção de compartilhamento que nos vem diariamente bater à
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portacombotõesde“curtir”nãoestariainseridonumcontextode“gelatinizar”umaexperiênciadobeloeprepararumterritóriopseudo-subjetivoparaagentesoutrosdominaraquelesqueaindatentamclicarembotõesoucompartilhardiscursosfacebookianos?
É difícil gerar compartilhamentos reais/verdadeiros, criar uma sociedade da parceria em umcenário como o nosso atual, um cenário de dominação com valores belicosos que oprimemqualquermovimentocriativoemproldeumasociedademaisequânime. Asessão livrepropõe,então, uma ação de resistência: discutir e problematizar a gentrificação a partir desse marcoteórico-estético-social.Cabe, justamente,entenderopapeldearquitetos/as,urbanistas,artistas,pesquisadores/asetécnicos/asqueatuamnoespaçourbanocomopossíveispotencializadores/asdeumaestéticadadominaçãooudeumaestéticadaparceria.Éumacartografiadoentreenãoumaaçãodosobre.Nãoévermapasetraçardiagramascomcoreseesquemasdeações-vôo-de-pássaro.Éentrarnosmapasnumarelaçãohorizontal,percorrerlugares,sentiresquinasepessoas,envolver-sedecorpoecomoscorpos.Nãodiagnosticar,sentiracidade.Deixarsecontagiarpelaexperiência subjetiva e a partir daí traçar (se possível) desenhos de cidades que expressem aparceriaadormecidadeestar-junto.
Referências
DEBORD,Guy.Asociedadedoespetáculo.RiodeJaneiro:Contraponto,1997.
EISLER,Riane.Ocáliceeaespada:nossopassado,nossofuturo.SãoPaulo:PalasAthena,2007.
JACOBS,Jane.Morteevidadegrandescidades.SãoPaulo:MartinsFontes,2014[ediçãooriginalde1961].
Cartografiadolugar:umdebateestético-políticodecompartilhamentodosensível
RodrigoGonçalvesdosSantos(UFSC)
Numprojetodearquiteturaeurbanismo,ao(re)inventaromundoeseuslugares,épossívelnotarmomentos em que a cartografia pode ser utilizada como alternativa metodológica para traçarpercursos poéticos. Na cartografia nos deparamos com possibilidades de caminhos a seremtraçados no trabalho nos quais as atenções voltam-se à processualidade em curso. Requisita-sepassageme fala, incorpora-se sentimentos, emociona-se. É ummapadopresentequedemarcaumconjuntode fragmentosemcontínuomovimentodeprodução.Apresentoumfragmentodeestudos sobre “Diferença, Estética, Educação e Cidade” com o intuito de situar um debateestético-político de compartilhamento do sensível, por meio de um diálogo socialmentecomprometido no entendimento, apreensão e qualificação da cidade contemporânea. Naformação de futuros/as arquitetos/as trago na cartografia do lugar um exercício experimentalcomo alternativa metodológica aos “diagnósticos” tradicionais. São cartografias das áreas emestudodedisciplinasministradaspormimnocursodeArquiteturaeUrbanismodaUFSCdesde2013.Os resultados desta experiência são vídeos de curta duração que configuram cartografiassemmapas,cartografiasemmovimentotraduzindoaexperiênciadeapreensãodos/asalunos/asdearquiteturaacercadolugar.Assim,odebateestético-políticoadentranacompreensãodaspré-existências(in)visíveisemvezdesubstituí-laspordiscursosdominantes,colocandoaexperiênciagentrificadora em suspensão. Sob este ângulo, o lugar não é o suporte para o projeto dearquiteturaeurbanismo.O lugaréopróprioprojetorequisitandopartilhassensíveisnasesferas
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estéticaepolítica.Odesenhoaquiemquestãoéodeumacidadedaparceriaemdissidênciaàumacidadedadominação.
Opacidades,rugosidades,dobras:asfeirascomoespaçostáticos
LailaBeatrizdaRochaLoddi(UEG)
Ocupando praças e ruas das cidades, as feiras semanalmente se conformam e se diluem,caracterizandoumaexperiênciapeculiardesociabilidadeeusodaruaemumterritórioefêmerodefluxodepessoaseintercâmbiodemercadorias.Atravésdasfeiras,acidadeécotidianamenteapropriada por ambulantes, transformando a paisagem urbana com suas visualidades esonoridadescaracterísticas,ecolocandoempráticamodosdesermuitasvezesabandonadospeloímpetodoprogressoedaespetacularizaçãodascidades.Nosinteressamespecialmenteasfeiraspopularesqueconfiguramverdadeirosgarimposurbanos,ondesãoencontradostambémobjetosusados,coleçõesdequinquilharias;nãoapenasutensíliosfuncionais,masmatériassubvertidaseminutilidades reinventadas: “inutilezas” ou “grandezas do ínfimo”, como diziaManoel de Barros.Desenvolvendotáticasde invenção (Certeau,2007)edesobrevivênciadiárianacidade injustaedesigual,excluídosdaeconomiaformal,osfeirantesrevelamacapacidadecriativadaspessoasemrelaçãoaouniversomaterialqueascerca.Realizarumacartografiadosespaçosopacos (Santos,1996)observaumaespacialidadefugidia,suscetíveladesvioseimprevistos,queconvidaapensara complexidade segundo novos caminhos, em um campo conceitual transversal. Com suasrugosidades, as açõesnestes espaços resistemao ritmo vorazdos fenômenosdeespeculaçãoegentrificaçãodascidades.Adescobertadasrelaçõeshumanaseafetivasexistentesnesteterritórioinformalpossibilitaaelaboraçãode intervençõescapazesdeconstruir lugaresmaissensíveisaosimagináriosurbanos,reestabelecendoaconexãosocialeurbanacomosespaçospúblicos.
Presençasindígenasnoespaçopúblico
NauíraZanardoZanin(UFFS)
Apartirdadiversidadedaspresençasquecorporificamrelaçõesnoespaçopúblico,buscorefletirsobre as constâncias invisíveis, a presença do indesejado que reitera. A cidade como lugar degente, de encontro, de interações culturais dinâmicas que caracterizamaurbanidade.Qualquerquesejaanaturezadessasrelações–comerciais,amistosas,conflitivas,preconceituosas,ilegais–estabelecemavivacidadedoscentrosurbanos(TENÓRIO,2012).Querodialogarsobrepresençassilenciosas,quesuscitamodeslocamento,ainquietação,especialmentenocasodosindígenasquevendem artesanato no centro das cidades. Em alguns casos, o preconceito vivenciado levou àlegalização de sua presença, legitimando a tradicionalidade da forma que corporalmente seposicionam(FAGUNDES,2013).Érelevante,ainda,consideraraancestralidadedessaspresenças,nesses lugares específicos. Considerar o centro urbano como lugar de gente, continuamente,comocomprovamaarqueologia,atoponímiaeamemória.Tragoentãoreflexõesqueextrapolamosmapas,que incitamopercursoeasensibilidadedeumestar junto,aindaquecadaumtenhaestabelecidooseuterritório-fluído,porquenãopermanente.