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e-mail: [email protected], www.atla.com.Fides Reformata também está incluída nas seguintes bases indexadoras:

CLASE (www.dgbiblio.unam.mx/clase.html), Latindex (www. latindex.unam.mx), Francis (www.inist.fr/bbd.php), Ulrich’s International Periodicals Directory

(www.ulrichsweb.com/ulrichsweb/) e Fuente Academica da EBSCO (www.epnet.com/thisTopic.php?marketID=1&topicID=71).

Editores GeraisLeandro Antonio de Lima

Daniel Santos Júnior

Editor de resenhasFilipe Costa Fontes

RedatorAlderi Souza de Matos

EditoraçãoLibro Comunicação

CapaRubens Lima

Fides reformata – v. 1, n. 1 (1996) – São Paulo: Editora Mackenzie, 1996 –

Semestral. ISSN 1517-5863

1. Teologia 2. Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper.

CDD 291.2

INSTITUTO PRESBITERIANO MACKENZIEDiretor-Presidente Maurício Melo de Meneses

CENTRO PRESBITERIANO DE PÓS-GRADUAÇÃO ANDREW JUMPERDiretor Mauro Fernando Meister

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Conselho editorialAugustus Nicodemus Lopes

Davi Charles GomesHeber Carlos de Campos

Heber Carlos de Campos JúniorJedeías de Almeida Duarte

João Alves dos SantosJoão Paulo Thomaz de Aquino

Mauro Fernando MeisterValdeci da Silva Santos

A revista Fides Reformata é uma publicação semestral doCentro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper.

Os pontos de vista expressos nesta revista refletem os juízos pessoais dos autores, não representando necessariamente a posição do Conselho Editorial. Os direitos de publicação

desta revista são do Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper.

Permite-se reprodução desde que citada a fonte e o autor.

Pede-se permuta.We request exchange. On demande l’échange. Wir erbitten Austausch.

Se solicita canje. Si chiede lo scambio.

endereço para CorrespondênCiaRevista Fides Reformata

Rua Maria Borba, 40/44 – Vila BuarqueSão Paulo – SP – 01221-040

Tel.: (11) 2114-8644E-mail: [email protected]

endereço para permutaInstituto Presbiteriano Mackenzie

Rua da Consolação, 896Prédio 2 – Biblioteca CentralSão Paulo – SP – 01302-907

Tel.: (11) 2114-8302E-mail: [email protected]

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Editorial

É com grande alegria que apresentamos ao leitor o volume XX, no 1, da revista Fides Reformata, que comemora a marca histórica de 20 anos de publi-cação impressa ininterrupta. Desde 1996, a revista trouxe ao cenário acadêmico e pastoral do leitor de fala portuguesa 257 artigos e 150 resenhas, acumulando um total de 5.977 páginas de pesquisas. Esses materiais podem ser consultados fisicamente em várias bibliotecas ao redor do mundo ou eletronicamente no site oficial do Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper e em bancos de dados como ATLA Serials, Fuente Academica, etc. Uma busca simples nos tópicos e autores que contribuíram para essa conquista revelará que a revista buscou interagir com muitas questões teológicas, exegéticas, históricas, éticas, filosóficas e pastorais, proporcionando ao leitor uma amostra da perspectiva reformada que caracteriza nossa instituição.

Este número que comemora os 20 anos contém inicialmente um texto do Prof. Alderi Matos com um breve relato sobre a história da revista, que coloca em perspectiva a relevância daquilo que celebramos com esta edição. O segundo artigo, escrito por Jonathan Hack, apresenta uma correlação entre a vida e a mensagem do profeta Jeremias, analisando de modo conciso seu chamado, seu estilo literário, sua reação à perseguição, suas “confissões” e as influências recebidas em sua formação. Segundo o autor, o artigo visa incentivar uma melhor compreensão do livro de Jeremias que, de modo geral, tem sido ignorado no mundo evangélico. O terceiro artigo, escrito por Elizabeth Gomes, relata a vida genial e a obra de Catarina de Siena, uma mulher piedosa que se tornou embaixatriz, conselheira e doutora da igreja, na tentativa de influenciar e reformar uma igreja corrupta e uma política venal e torpe – de dentro para fora –, influenciando papas, prelados, mulheres, frades e freiras, reis e vassalos da Europa medieval. Segundo a autora, Catarina foi a mulher que mais marcou sua época e sua história por amor do sangue de Cristo.

O quarto artigo, escrito por Hermisten Costa, considera o aparente suces-so do ímpio em seus atos de blasfêmia, arrogância, soberba e imoralidade, o que, segundo o autor, provoca uma certa insegurança no salmista em relação a Deus e aos acontecimentos que presencia. O artigo analisa como a ótica da fé é fundamental para crer em Deus, e continuar crendo, apesar de nossa visão imediata e precipitada da situação que nos circunda. O quinto artigo, escrito por Alderi Matos, trata da compatibilidade dos conceitos de islã e tolerância. Segundo o autor, muitos observadores e estudiosos afirmam que as ações dos grupos radicais apresentam uma concepção distorcida do islã, que contradiz o verdadeiro espírito dessa religião. Assim, o artigo reexamina essa questão olhando para as fontes do islã, sua história e os acontecimentos atuais. Final-mente, o sexto artigo, escrito por Breno Macedo, cumprindo o compromisso

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estratégico mais recente da revista de publicar um artigo em inglês a cada número, trata da teologia pactual no pensamento de João Calvino. O texto investiga algumas das principais obras do reformador na tentativa de organizar o seu pensamento no que diz respeito a essa doutrina, o que permite ao autor delinear qual seria a visão do líder de Genebra sobre cada uma das dispen-sações do pacto divino com o homem. Neste artigo inicial são analisados os pactos das obras, noaico e abraâmico.

A seção de resenhas traz avaliações de obras relevantes para o contexto atual da igreja, entre elas Gênesis no Espaço-Tempo, de Francis Schaeffer, resenhada por Allen Porto; A Igreja Centrada, de Timothy Keller, resenhada por Gildásio Reis; A Igreja Missional na Bíblia, de Michael Goheen, resenha-da por Breno Macedo; e Atlas da Bíblia, de Annemarie Ohler e Tom Menzel, resenhado por Dario Cardoso.

Prosseguindo com o compromisso da revista de proporcionar e incentivar uma reflexão teológica reformada, entrego aos leitores o primeiro número do vigésimo ano de Fides Reformata, desejoso de que os artigos e resenhas des-pertem mais uma vez o interesse por uma pesquisa que visa contribuir para a edificação do povo de Deus servindo sua igreja ao redor do mundo.

Boa leitura!

Dr. Daniel SantosEditor Geral

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Sumário

Artigos

Fides ReFoRmata – vintE anoS dE hiStóriaAlderi Souza de Matos .................................................................................................................. 9

JErEmiaS: um panorama tEológicoJonathan Luís Hack ...................................................................................................................... 15

catarina dE SiEna: uma contribuição fEminina ao pEnSamEnto E à ESpiritualidadE ocidEntalElizabeth Gomes ........................................................................................................................... 33

a EnganoSa proSpEridadE doS ímpioS à luz do Salmo 10: uma rEflExão dEvocionalHermisten Maia Pereira da Costa ................................................................................................ 45

iSlã E tolErância: diScurSo apologético E rEalidadE hiStóricaAlderi Souza de Matos .................................................................................................................. 61

covEnant thEology in thE thought of John calvin: from thE covEnant of workS to thE abrahamic covEnantBreno Macedo ............................................................................................................................... 89

resenhAs

gênESiS no ESpaço-tEmpo (franciS SchaEffEr) Allen Porto .................................................................................................................................... 107

igrEJa cEntrada (timothy kEllEr)Gildásio Jesus Barbosa dos Reis .................................................................................................. 111

a igrEJa miSSional na bíblia (michaEl w. gohEEn)Breno Macedo ............................................................................................................................... 115

atlaS da bíblia (annEmariE ohlEr E tom mEnzEl)Dario de Araujo Cardoso.............................................................................................................. 121

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FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (2015): 9-14

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Fides ReFoRmata – vintE anoS dE hiStóriaAlderi Souza de Matos*

A revista Fides Reformata foi lançada nos primeiros anos de existência do Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper (CPAJ). Em junho de 1990, o Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil, ao aprovar o novo Regimento Interno da Junta de Educação Teológica, deu-lhe a atribuição de “criar e fazer funcionar cursos de extensão, mestrado e doutorado teológicos e integrá-los a um dos seminários da IPB, quando julgar conveniente, sempre com a supervisão da JET”.

No ano seguinte, atendendo a suas novas atribuições regimentais, a JET decidiu criar dois cursos de mestrado, um em Teologia, sediado no Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição, em São Paulo, e outro em Edu-cação Cristã, no Seminário Presbiteriano de Campinas. O Mestrado em Teologia teve o apoio oficial da Igreja Presbiteriana Evangélica (EPC), dos Estados Unidos, e recebeu o nome de Centro de Pós-Graduação Andrew Jumper em homenagem a um grande incentivador inicial, Rev. Dr. Andrew Albert Jumper (1927-1992), pastor por muitos anos da Igreja Presbiteriana Central de St. Louis, Missouri.

A inauguração ocorreu no dia 6 de março de 1992, sendo nomeado como primeiro coordenador do curso o Rev. João Alves dos Santos. Entre os estudantes dessa época pioneira estavam os Revs. Edilson Botelho Nogueira, Edival José Vieira, Fôlton Nogueira da Silva, Sebastião Machado Arruda e Tarcízio José de Freitas Carvalho, que fizeram parte da primeira turma de formandos do CPAJ. O Dr. Gerard Van Groningen, que nos anos 80 viera diversas vezes ao Brasil para colaborar na educação teológica, voltou a São Paulo em setembro de 1992 para ensinar disciplinas de sua área (Antigo Testamento).

Em fevereiro de 1993, após concluir seu curso de doutorado em Teolo-gia Sistemática em St. Louis, Estados Unidos, o Dr. Heber Carlos de Campos assumiu a coordenação do curso. Nesse período, também ministraram aulas

* Doutor em Teologia (Th.D.) pela Boston University School of Theology (EUA); professor de Teologia Histórica no CPAJ; redator e revisor de Fides Reformata.

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Alderi SouzA de MAtoS, Fides ReFoRmata – Vinte AnoS de HiStóriA

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no CPAJ os Drs. Fred Klooster (Teologia Contemporânea), Moises Silva (Novo Testamento), Darryl Hart (História da Igreja) e Laird Harris (Antigo Testamento), procedentes de diferentes seminários reformados dos Estados Unidos. Nos anos subsequentes, graças a um convênio firmado com a EPC, três pastores brasileiros fizeram seus estudos de doutorado no exterior e passaram a integrar o corpo docente: Augustus Nicodemus Lopes (Novo Testamento), Mauro Fernando Meister (Antigo Testamento) e Alderi Souza de Matos (His-tória da Igreja). Entre outras atividades, esses professores passaram a editar uma revista teológica.

A revista Fides Reformata foi criada no final de 1995 pela Junta Regional de Educação Teológica do Seminário Teológico Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição. A Juret-JMC era constituída pelos Revs. Onézio Figueiredo, Paulo Viana de Moura e Rubens de Souza Castro e os presbíteros Adilson Neves e Damócles Perrone Carvalho. O primeiro número, com 81 páginas, veio a lume no primeiro semestre de 1996 e foi apresentado pelo Rev. Fôlton Nogueira da Silva, diretor do seminário. Disse ele em suas palavras introdutórias: “Temos o propósito de apresentar o pensamento reformado sobre questões relevantes para o povo de Deus e nosso esforço maior será apresentar a riqueza deste pensamento de forma simples”.

Desde o início, participaram ativamente da administração da revista e da elaboração de artigos os professores que integravam o Centro de Pós-Graduação Andrew Jumper, até então um curso de pós-graduação do Seminário JMC. O número de lançamento teve seis artigos dos seguintes colaboradores: Mauro Fernando Meister, Augustus Nicodemus Lopes, Alderi Souza de Matos, Heber Carlos de Campos, Ricardo Quadros Gouvêa e Parcival Módolo. Também incluiu cinco resenhas escritas por Frans Leonard Schalkwijk, Fôlton Noguei-ra da Silva, Francisco Solano Portela Neto e Augustus Nicodemus Lopes, duas delas por este último. A revista contou com o valioso apoio do Instituto Mackenzie e foi impressa em sua gráfica.

A partir do segundo número, ainda em 1996, Fides passou a contar com um Conselho Editorial, composto pelos seguintes membros: Augustus Nicode-mus Lopes, Cláudio Antônio Batista Marra, Fôlton Nogueira da Silva, Heber Carlos de Campos, João Alves dos Santos, Parcival Módolo e Tarcízio José de Freitas Carvalho. Os principais responsáveis pela produção da revista eram Tarcízio Carvalho (redator), Cláudio Marra (jornalista responsável) e Augustus Nicodemus (editor). O segundo número teve nove artigos, sete resenhas ou artigos-resenhas e uma lista de “livros recebidos”. Os novos autores de artigos foram Boanerges Ribeiro, Guilhermino Cunha, Paulo Anglada e Solano Portela. No quarto número (1997-2), Alderi Matos passou a constar com editor ao lado de Augustus Nicodemus e no quinto número (1998-1) surgiu um editor de resenhas: Mauro Meister.

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FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (2015): 9-14

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Em 1997, a Comissão Executiva da IPB, presidida pelo Rev. Guilhermino Cunha, institucionalizou o Centro de Pós-Graduação e o desvinculou do Se-minário José Manoel da Conceição. Nesse mesmo ano, o CPAJ solicitou ao seminário a autorização para continuar publicando a revista. Após analisar a solicitação e escolher o momento próprio para a tomada de decisões, a Juret-JMC resolveu atender ao pedido, com duas condições: (a) manter o nível acadêmico e o compromisso doutrinário com a teologia reformada; (b) continuar solicitando a colaboração dos professores do Seminário JMC. A sexta edição (1998-2) foi a primeira a ser publicada sob os auspícios do Centro de Pós-Graduação Andrew Jumper. Essa decisão foi explicada em uma “Palavra da Juret”, assinada pelo seu presidente, Rev. Rubens de Souza Castro.

Nessa época, a revista passou a ser disponibilizada on-line e foi aprovada para indexação na ATLA (American Theological Library Association). Além de artigos e resenhas, surgiu a seção “Indicações bibliográficas”. Nos três pri-meiros anos, além dos colaboradores já mencionados, outros autores de artigos foram, pela ordem de aparecimento: Frans Leonard Schalkwijk, Paulo Sérgio Gomes, Hermisten Maia Pereira da Costa, Moisés Silva, Davi Charles Gomes, Antônio Carlos Barro, C. Timóteo Carriker, Valdeci da Silva Santos, Elizabeth Zekveld Portela, Luiz Roberto França de Mattos e Gerard Van Groningen.

No primeiro número de 1999, o editorial anunciou que aquela era a última edição a ser distribuída gratuitamente. Daí em diante haveria a necessidade de se fazer uma assinatura da revista. Com o passar do tempo, esse sistema se mostrou inviável. Nesse número, também foi anunciada pela primeira vez uma novidade: o oferecimento, pelo CPAJ, de um curso de pós-graduação lato sensu em Bíblia pela internet. Esse foi possivelmente o primeiro curso do gênero a ser oferecido no Brasil. Nas páginas finais, havia informações detalhadas sobre os programas oferecidos pelo Centro de Pós-Graduação, bem como anúncios de cursos especiais pelo Dr. Moisés Silva e o Dr. Ronaldo Lidório.

Em 2001, a revista sofreu alguns sobressaltos em virtude de uma crise que levou ao afastamento de quase todos os professores do Centro de Pós--Graduação. O nome da publicação foi modificado para Fides Reformata et Semper Reformanda Est, uma imitação infeliz do famoso lema “Ecclesia reformata semper reformanda est”. Este foi o único ano da história da revista em que somente um número foi publicado (VI-1). O novo título foi mantido no número seguinte, no primeiro semestre de 2002, mas na segunda edição daquele ano voltou o ser utilizado o nome original, Fides Reformata. A prin-cipal herança dessa época foi a nova capa, cujo layout, contendo no centro uma gravura do interior do templo reformado de Genebra, se mantém até hoje. Os principais colaboradores da revista nesse período foram Antônio José do Nascimento Filho, Antônio Máspoli de Araújo Gomes, Carlos Ribeiro Caldas Filho, Gabriele Greggersen, Paulo José Benício, Ricardo Quadros Gouvêa, Ronaldo Cavalcante e William Lacy Lane.

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Alderi SouzA de MAtoS, Fides ReFoRmata – Vinte AnoS de HiStóriA

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O número do 1º semestre de 2003 voltou a ter a participação dos professo-res originais do CPAJ, que haviam sido readmitidos no final do ano anterior, no início do primeiro mandato do Rev. Roberto Brasileiro Silva, novo presidente do SC/IPB. Os novos editores da revista eram Tarcízio Carvalho e Valdeci Santos. Desde 2001, passaram a constar das páginas iniciais os nomes dos dirigentes do Instituto Presbiteriano Mackenzie, sendo diretor-presidente nessa época o Dr. Cyro Aguiar. Em 2003, passou a ser incluído o nome do diretor do CPAJ, na ocasião o Dr. Luiz Roberto França de Mattos, que, devido a uma grave enfermidade, foi substituído no ano seguinte pelo Dr. Davi Charles Gomes. O novo diretor-presidente do IPM era o Dr. Custódio Pereira. Em 2005, o corpo editorial passou a ser constituído pelos professores Alderi Matos, Augustus Nicodemus, Mauro Meister e Valdeci Santos. O sumário da revista começou a ser incluído na quarta capa, tornando mais fácil a identificação do conteúdo de cada número.

O Dr. Alderi, além de constar como “editor geral”, também exercia a função de revisor do texto. Em seu primeiro editorial, ele afirmou:

Com este número, a revista Fides Reformata entra no seu décimo ano de pu-blicação. Trata-se de um marco extremamente significativo, pelo qual somos profundamente gratos a Deus e ao Instituto Presbiteriano Mackenzie. Ao longo destes anos, os editores têm procurado oferecer ao público leitor materiais caracterizados pela seriedade acadêmica, compromisso com a fé reformada, relevância para a igreja de Cristo e desafio e edificação pessoal.

A edição do 2º semestre de 2005 trouxe um recurso muito valioso: um índice de todas as matérias publicadas na revista em seus dez primeiros anos de circulação. Os 139 artigos foram classificados em 18 áreas: Antigo Testa-mento, Apologética, Crítica Textual, Culto e Liturgia, Eclesiologia, Educação Cristã e Geral, Ética e Sociedade, Filosofia, Hermenêutica, História da Igreja, Missões, Novo Testamento, Psicologia e Aconselhamento, Teologia Históri-ca, Teologia Pastoral, Teologia Sistemática, Temas Brasileiros e Vida Cristã. Também foram incluídas as centenas de resenhas e indicações bibliográficas publicadas naquela década.

Nos primeiros anos da revista, cada edição trazia um grande número de artigos e resenhas. A partir de 2004, passaram a ser publicados seis artigos e três resenhas a cada número, o que, com pequenas variações, vem sendo mantido até hoje. Entre os contribuintes, estavam não somente os professores do CPAJ, mas alunos, ex-alunos, ministro da IPB e outros. Durante algum tempo houve uma alternância em termos de autoria: em um semestre, dava-se preferência a colaboradores internos (professores) e no outro, a contribuições externas.

Em 2008, foram incluídos no corpo editorial os professores Fabiano de Almeida Oliveira e Daniel Santos Jr. Naquele ano, auxiliou na revisão o Prof. João Alves dos Santos. O 2º semestre de 2008 trouxe uma contribuição inédita:

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FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (2015): 9-14

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a primeira edição especial de Fides Reformata, dedicada ao tema “Educação”, sendo o editorial assinado pelo Presb. Solano Portela, presidente da Junta de Educação Teológica (JET/IPB). Distribuídos em quatro seções (histórica, fi-losófica, exegética e pedagógica), foram incluídos nove artigos, seguidos de uma extensa bibliografia sobre educação cristã. Esse também foi, até hoje, o número mais volumoso da revista, com mais de 200 páginas. No 2º semestre de 2009, veio a lume a segunda edição especial, dedicada ao 5º centenário do nascimento de João Calvino.

Em 2010, os editores acadêmicos foram reduzidos a dois: Augustus Nicodemus (editor geral) e Alderi Matos (editor assistente e revisor). No 2º semestre de 2011 surgiu uma inovação significativa, que foi a publicação de um artigo em inglês (ou outro idioma) em cada número. A razão apresentada foi o fato de que, além de ser indexada em instituições e órgãos acadêmicos internacionais, a revista estava gozando de aceitação fora do Brasil. Até o presente, foram publicados nesse idioma artigos dos seguintes autores: Rob van Houwelingen, Daniel Santos, Adriaan Neele, Elias Medeiros, Ralph Boersema e Breno Macedo. Ao longo dos anos, além de estar indexada na ATLA Religion Database, a revista também foi incluída nas seguintes bases indexadoras: CLASE, Latindex, Francis, Ulrich’s International Periodicals Directory e Fuente Academica.

No 1º semestre de 2014, sendo diretor do CPAJ desde o ano anterior o Dr. Mauro Fernando Meister, foi lançado o terceiro número especial de Fides Reformata e seus dez artigos versaram sobre diferentes aspectos da Eclesio-logia. Nesse ano, foram nomeados editores gerais os Drs. Daniel Santos Jr. e Leandro Antonio de Lima, e editor de resenhas o Prof. Filipe Costa Fontes, permanecendo o Dr. Alderi Matos como redator. O próximo número (2015-2) deverá trazer um índice completo de todas as matérias publicadas no segundo decênio do periódico. À exceção das edições especiais, são impressos 1.500 exemplares a cada semestre, que são oferecidos a todos os seminários da IPB, alunos do CPAJ, pastores e outros interessados.

Os professores residentes que escreveram artigos para a revista ao longo dos últimos dez anos foram, em ordem alfabética: Alderi Matos, Augustus Nicodemus Lopes, Daniel Santos Jr., Dario de Araújo Cardoso, Davi Gomes, Fabiano Oliveira, Filipe Fontes, Heber Campos, Heber Campos Júnior, Jedeias Duarte, João Alves, João Paulo Thomaz de Aquino, Leandro de Lima, Mauro Meister, Tarcízio Carvalho e Valdeci Santos. Também colaboraram com textos os seguintes professores visitantes: Elias Medeiros, Emílio Garofalo Neto, Frans Leonard Schalkwijk, Gildásio Jesus Barbosa dos Reis, Hermisten Cos-ta, Jorge Patrocínio, José Carlos Piacente Júnior, Wadislau Martins Gomes e Wilson Santana.

Ao completar 20 anos de publicação ininterrupta, os editores de Fides Reformata são profundamente gratos ao Deus trino por esse marco histórico.

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Alderi SouzA de MAtoS, Fides ReFoRmata – Vinte AnoS de HiStóriA

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Também expressam o seu sincero reconhecimento ao Instituto Presbiteriano Mackenzie e seus órgãos dirigentes (Conselho de Curadores, Conselho De-liberativo e Diretoria Executiva), pelo constante apoio financeiro e logístico na publicação da revista, bem como à Junta de Educação Teológica, por seu incentivo, e à Editora Cultura Cristã, pelo auxílio na distribuição. Continuam com o firme propósito de, nos próximos anos, continuar proporcionando textos cuidadosamente preparados sobre as diferentes áreas da enciclopédia teológi-ca, na perspectiva da cosmovisão reformada, tendo em vista o bem-estar e a prosperidade da igreja e da causa de Cristo no Brasil e no mundo.

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FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (2015): 15-31

JErEmiaS: um panorama tEológicoJonathan Luís Hack*

resumoPara incentivar uma melhor compreensão do livro de Jeremias, em geral

ignorado no meio evangélico, apresenta-se um resumo dos aspectos centrais de sua mensagem teológica. O texto inicia com uma correlação entre a vida e a mensagem do profeta Jeremias, analisando de modo conciso seu chamado, seu estilo literário, sua reação à perseguição, suas “confissões” e as influências recebidas em sua formação. A seguir, investigam-se aspectos da teologia do livro, com foco na soberania de Deus, na revelação divina por meio dos profe-tas, na acusação de Deus contra o seu povo, no seu chamado ao arrependimento, na garantia divina de salvação e no seu amor contínuo pelo povo. O ensaio finaliza com breves considerações sobre como aplicar essa mensagem à vida da igreja e à vida do cristão.

palavras-chaveJeremias; Vocação profética; Mensagem subversiva; Foco teocêntrico.

introduçãoJeremias é o maior livro da Bíblia em termos de extensão do texto, ul-

trapassando até o livro de Salmos. No entanto, é um livro pouco conhecido nas igrejas e pelos cristãos. Este artigo busca cooperar para a transformação dessa realidade ao desvendar de maneira panorâmica os aspectos centrais da mensagem teológica desse importante livro.1

* Mestre em Estudos Teológicos pelo Calvin Theological Seminary e doutorando em Letras na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Ministro da Igreja Presbiteriana do Brasil e coordenador da área de Teologia na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

1 Buscando apresentar didaticamente o conteúdo, o texto principal contém inúmeras referências ao livro de Jeremias, mas as indicações de leituras de aprofundamento e debates acadêmicos são mantidas nas notas.

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Jonathan Luís hack, Jeremias: um Panorama teoLógico

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Iniciaremos com uma breve investigação sobre a influência mútua en-tre a vida e a mensagem de Jeremias. Nosso objetivo principal não será o de aprofundar cada uma das importantes questões analisadas, mas apenas elencar diversas áreas importantes a serem consideradas no estudo de Jeremias para reflexões posteriores. Na segunda parte, faremos uma concisa análise de sua mensagem teológica. Ficará claro o aspecto teocêntrico da teologia de Jere-mias, pois Deus é o foco central de seu anúncio profético. Novamente, a ideia é apenas apontar caminhos importantes a serem trilhados em aprofundamentos subsequentes. Finalmente, apresentaremos algumas considerações sobre como aplicar essa mensagem à nossa vida moderna.

1. a correlação entre a vida e a teologia de jeremiasPara entender bem a mensagem do livro de Jeremias, precisamos conhecer

seu personagem humano principal. Conhecemos mais sobre a vida de Jeremias do que sobre qualquer outro profeta bíblico. O texto apresenta diversos dados de sua vida e seus sentimentos íntimos a respeito do que está acontecendo. Por que isso é importante? Porque no caso de Jeremias, quem ele é influen-ciou aquilo que fez, assim como o que fez também influenciou quem ele era. Como os eventos da vida de Jeremias modelaram seu pensamento? Como sua mensagem e perspectiva teológica afetaram sua vida?

Por um lado, as origens de Jeremias (1.1-3)2 tiveram certo impacto sobre a formação de seu pensamento:

(a) Sendo de uma linhagem sacerdotal, Jeremias certamente cresceu em meio a sacrifícios e outros procedimentos sacerdotais. Dessa forma, estava bem familiarizado com eles e com o discurso religioso correlato à função sacerdotal.

(b) Sendo de Anatote,3 Jeremias conhecia a mensagem dos profetas en-viados a Israel (Amós e Oseias o antecederam).4 Certamente aprendeu bastante sobre as tradições mais valorizadas no Norte: o Êxodo, a aliança do Sinai e o fracasso de Israel em guardar os mandamentos de Deus, o qual resultou em sua subsequente conquista e deportação pelos assírios um século antes, em 722 a.C.5

(c) Sendo um profeta ativo desde o 13º ano do reinado de Josias (627-626 a.C.), acompanhou de perto as suas reformas (2Rs 22.1–23.30) após a triunfante

2 Todas as referências bíblicas pertencem ao livro de Jeremias, a menos que indicadas de outra forma.

3 Anatote era uma cidade no território de Benjamim, a poucos quilômetros de Jerusalém, mas ainda na parte sudeste da nação de Israel. Os parentes de Jeremias tinham terras lá (32.6-12).

4 Em Judá, Isaías e Miqueias haviam profetizado bem antes, no século 8 a.C., enquanto Naum e Sofonias antecederam Jeremias por poucos anos; Habacuque provavelmente foi seu contemporâneo.

5 Essas são as tradições valorizadas pelas tribos do Norte, segundo VON RAD, Gerhard, Old Testament Theology. 2 vols. Peabody: Prince, 2005, v. 2, p. 192. Em contraste, Judá sustenta uma teologia sionista, defendida por Isaías mas criticada por Jeremias (ver adiante).

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redescoberta do “Livro da Lei” no templo (2Rs 22.8), que ocorreu no 18º ano de seu reinado. Jeremias foi bastante influenciado pela tradição deuteronomista. Também experimentou o posterior fracasso dessa reforma (a longo termo). Ele sabia quão enganosas podem ser a mente e a vontade humanas (17.9).

(d) Sendo (provavelmente) da linhagem de Eli,6 ele conhecia a história do santuário de Siló, fato que usou mais tarde como advertência a Judá (7.12).

Por outro lado, a mensagem que Javé lhe deu era dura de pregar e de ser ouvida, com os seguintes resultados na vida de Jeremias:

(a) Houve constantes problemas com seus inimigos. Os líderes de Judá o perseguiram, castigaram e aprisionaram como um traidor (por sua mensagem de que Israel deveria se submeter à Babilônia) e como falso profeta (por sua profecia de juízo, ao invés de paz).

(b) Experimentou profunda angústia pessoal, expressa em suas “confis-sões” (ver adiante).

(c) Investiu suas economias em sua mensagem (32.1-15). Jeremias foi desafiado a agir conforme cria, ou seja, comprando um terreno em coerência com seu discurso de restauração futura.

(d) Foi proibido de se casar e ter filhos (16.1-4), devido ao iminente juízo sobre Jerusalém.

Vamos examinar algumas partes da vida de Jeremias com mais detalhes.

1.1 Jeremias é chamado por Deus O chamado vocacional é a legitimação necessária para o ministério de

um profeta.7 Outorga a certeza da eleição divina para essa missão (1.5). Como Moisés e Gideão, Jeremias humildemente declina da missão (1.6), mas o sobe-rano Deus não aceita um “não” como resposta! Sua timidez seria superada, pois Deus o tornará forte (1.18; 6.27; 15.20). Deus também promete que estará com Jeremias e o protegerá de seus inimigos (1.8,19). A função de Jeremias (1.9) se baseia nas palavras de Moisés (Dt 18.18) sobre a promessa de revelações futuras por meio de profetas que proclamariam a Palavra de Deus.

A missão de Jeremias é indicada em 1.10: “para arrancares e derriba-res, para destruíres e arruinares e também para edificares e para plantares”. Esse tema recorrente (12.14-17; 18.7-10; 24.6; 31.28; 42.10; 45.4) antecipa a mensagem do livro. Indica que o ministério de Jeremias é primariamente de

6 Eli foi o sumo sacerdote em Siló no período dos juízes. Sacerdotes da casa de Eli serviram como sumo sacerdotes de Israel até que Salomão expulsou Abiatar de Jerusalém para Anatote, pondo em seu lugar Zadoque (1Rs 2.26-27) e cumprindo assim a palavra do Senhor contra a casa de Eli.

7 BRUEGGEMANN, Walter. Like Fire in the Bones: Listening for the Prophetic Word in Jeremiah. Org. Patrick Miller Jr. Mineápolis: Fortress, 2006, p. 245, nota 15, também indica que esse é “um me-canismo literário que serve como autorização teológica para o livro”. (Todas as citações de obras em inglês foram traduzidas pelo autor).

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condenação e, em menor escala, de restauração.8 Embora esperássemos um chamado para profetizar a Israel e Judá, Jeremias é comissionado para ser um profeta às nações (1.5,10). Isso já indica a forte ênfase do livro na sobe-rania de Javé sobre todas as nações, o que permitirá a Jeremias proclamar os oráculos divinos contra outros povos (caps. 46-51).

1.2 Jeremias é talentoso com as palavrasAprendemos com a crítica retórica que a forma da mensagem é parte

importante de seu conteúdo. Assim, para cumprir seu papel profético, a lin-guagem do profeta deve chocar a sensibilidade do público, proclamando pala-vras em fogo (5.14; 20.9; 23.29) que são absorvidas com deleite pelo profeta (15.16). Jeremias, pois, usa expressões vigorosas, falando “com exclamações e interjeições, com partículas enfáticas, com gritos passionais e repreensões e advertências urgentes, e, acima de tudo, com assonâncias extraordinariamente notáveis”.9 Ou seja, sua mensagem é hiperbólica, exagerada, calorosa e poética.

O discurso profético não pode ser convencional, racional ou previsível, porque precisa modelar consciências e definir como o povo deve entender a realidade. Jeremias usa um linguajar forte para provocar uma reação, gerando ao mesmo tempo um senso de urgência e profunda preocupação com sua au-diência. Os ouvintes precisam reavaliar o que assumem como óbvio em suas vidas. Em outras palavras, por meio de sua mensagem o profeta apresenta uma interpretação alternativa da realidade que visa levar o povo a compreender o mundo e as circunstâncias presentes do ponto de vista de Deus.10 Sua mensagem é sub-versiva, pois tanto subverte a cosmovisão dominante, quanto apresenta outra versão dos fatos, a versão oficial do Criador.

1.3 Jeremias é perseguido por seu próprio povoUm profeta é parte de uma espécie humana rara que consegue expor a

corrupção da sociedade humana, não se deixando enganar por suas raciona-lizações e convenções. “O profeta não vê o mundo do ponto de vista de uma

8 THOMPSON, J. A. The Book of Jeremiah. NICOT. Grand Rapids: Eerdmans, 1980, p. 151; BRUEGGEMANN, Walter. The Theology of the Book of Jeremiah. OTT. Cambridge: Cambridge Uni-versity, 2007, p. 60-61; BRUEGGEMANN, Walter. Like Fire, p. 9, 24-26. HOLLADAy, William Lee. Jeremiah 1: A Commentary on the Book of the Prophet Jeremiah, Chapters 1-25. Hermeneia. Filadélfia: Fortress, 1986, p. 1,21,37, defende a omissão do par central de verbos.

9 MUILENBURG, James. “The Terminology of Adversity in Jeremiah”. In: Harry T. Frank e Wm. L. Reed (Orgs.). Translating and Understanding the Old Testament; H. G. May Festschrift. Nashville: Abingdon, 1970 (p. 42-63), p. 60. VON RAD (Theology, v. 2, p. 193) chama a atenção em Jeremias para a “criação de novas formas para sua expressão apropriada”, em contraste com as tradicionais fórmulas proféticas empregadas anteriormente por outros profetas.

10 BRUEGGEMANN, Like Fire, p. 7-8,158-167; The Prophetic Imagination (Filadélfia: Fortress, 1978), p. 66.

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teoria política; ele é uma pessoa que vê o mundo do ponto de vista de Deus; ele vê o mundo por meio dos olhos de Deus”.11 Diversas vezes (7.2; 17.19; 19.2,14; 22.2; 38.14; cf. 36.10), Jeremias se posicionou junto aos portões da cidade e do templo (possivelmente na ocasião de algum dos três grandes fes-tivais de Israel), cumprindo uma função oficial de “pregador de portão” para encorajar os peregrinos a fazerem um autoexame antes de se encaminharem para a adoração. O foco da mensagem de Jeremias está na vida moral deles, que ele expõe abertamente ao denunciar várias violações da lei de Deus.

Como de costume,12 Jeremias recebeu uma reação violenta à sua mensa-gem. Foi ferido e metido no tronco (20.2), sofreu um julgamento que quase o levou à morte (26.7-9), foi açoitado e aprisionado (37.15-16) e, depois, jogado numa cisterna (38.6), sendo finalmente arrastado (contra a sua von-tade?) para o Egito (43.6). Apesar disso, conseguiu permanecer vivo devido à graça de Deus manifesta através de alguns poucos que o apoiavam (26.24; 39.13-14; 40.5). A usual reação defensiva de Jeremias era a de reivindicar sua legitimidade como profeta de Javé (26.12,15; cf. 38.15-16). Estava ape-nas cumprindo a tarefa profética mais básica: uma defesa das tradições mais preciosas de Israel.13

1.4 Jeremias é perturbado por suas próprias emoçõesO processo de proclamar as palavras de Deus pode ser bem desgastan-

te. Conhecendo o futuro iminente de seu próprio povo, Jeremias se angustia e chora (4.19; 8.18,21; 9.1,10; 13.17), atitude que lhe deu a fama de “profeta chorão”.14 Ele não é como Jonas, que aguardou ansiosamente que ocorresse a destruição que anunciara (Jn 3.10-4.2; cf. Jr 17.16)! Pelo contrário, intercede profundamente por eles (14.7-9,19-22; 21.2; 37.3; 42.2-4), ao ponto de Deus o proibir de continuar orando (7.16; 11.14; 14.11)! Mesmo em sua ira contra seus inimigos, Jeremias recorda a Deus como havia suplicado por eles (18.20). Esse comportamento paradoxal é reflexo da própria conduta de Javé. Jeremias é um representante de Deus; ele chora porque se identifica com os sentimentos

11 HESCHEL, Abraham J. The Prophets. Nova york: HarperCollins, 2001 (1962), p. 176. 12 Falar contra a ideologia dominante sempre é uma escolha perigosa (cf. 26.20-23). Para uma

análise da reação da comunidade ao Sermão do Templo, ver: O’CONNOR, Kathleen M. “‘Do Not Trim a Word’: The Contributions of Chapter 26 to the Book of Jeremiah”. The Catholic Biblical Quarterly 51 (1989), p. 617-630; e AMRAM, David W. “The Trial of Jeremiah”. The Biblical World 16 (1900), p. 431-437.

13 Ver DAVIDSON, R. “Orthodoxy and the Prophetic Word: A Study in the Relationship between Jeremiah and Deuteronomy”. Vetus Testamentum 14 (1964), p. 407-416; em especial, na p. 408: “Os profetas eram os guardiães e intérpretes dessa tradição, não seus criadores”.

14 A tradição o associa também com Lm 1.16 e 2.11. RENDTORFF, Rolf. The Canonical Hebrew Bible: A Theology of the Old Testament. Leiden: Deo, 2005, p. 229-231, o denomina “profeta em crise”.

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divinos.15 Deus sofre pela dor de seu povo (14.17; 31.20), mas precisa levar até o fim o juízo anunciado – da mesma forma que os pais disciplinam seus filhos, mesmo quando sentem sua dor (cf. Hb 12.4-11).

O conflito interno de Jeremias se agrava pela inevitável consequência: a perseguição do seu próprio povo. Os sofrimentos injustos levam Jeremias a questionar a justiça de Deus (por exemplo, 12.1; 15.18) em suas “confissões” (11.18-12.6; 15.10-21; 17.14-18; 18.18-23; 20.7-18).16 Às vezes, parece que Jeremias odeia sua missão, pois ela gera problemas com seus parentes (12.6) e conhecidos (11.21). Ele não consegue entender seu sofrimento, nem fugir de sua função profética. Porém, no fim, aprende que Deus é soberano. Percebe que também estava representando simbolicamente o sofrimento iminente de seu próprio povo.

1.5 Jeremias é influenciado por outros Como qualquer um de nós, Jeremias foi influenciado por outras pessoas.

Ele se encontra no fim de uma longa séria de pessoas usadas por Deus antes dele. Vejamos brevemente algumas influências sobre sua mensagem.17

(a) Jeremias se identifica com Moisés.18 Vem de linhagem sacerdotal, é profeta e tenta orientar seu povo por cerca de 40 anos. Seu chamado se modela em Moisés (Dt 18), apresenta protestos similares (1.6; cf. Êx 4.10) e recebe as

15 VON RAD, Theology, v. 2, p. 195-196, fala de um sentimento dominante de lamento e sofri-mento em Jeremias. Posteriormente, ele fala da via dolorosa de Jeremias (v. 2, p. 206-208) como sua participação no sofrimento divino.

16 Esses textos expressam a ira, autocomiseração, retaliação e resistência de Jeremias ao chamado de Deus. Para estudos posteriores nessa área, consultar DIAMOND, A. R. Pete. The Confessions of Jeremiah in Context: Scenes of a Prophetic Drama. JSOTSupp 45. Sheffield: Sheffield, 1987; O’CONNOR, Kathleen M. The Confessions of Jeremiah: Their Interpretation and Role in Chapters 1-25. SBLDS 94. Atlanta: Scholars, 1988 e SMITH, Mark S. The Laments of Jeremiah and their Contexts: A Literary and Redactional Study of Jeremiah 11-20. SBLMS 42. Atlanta: Scholars, 1990, além dos ensaios de VON RAD, “The Confessions of Jeremiah”, A Prophet to the Nations: Essays in Jeremiah Studies. Orgs. Leo G. Perdue e B. W. Kovacs. Winona Lake: Eisenbrauns, 1984, p. 339-347; BULTMANN, Christoph. “A Prophet in Desperation? The Confessions of Jeremiah”. In: Johannes C. De Moor (Org.). The Elusive Prophet: The Prophet as a Historical Person, Literary Character and Anonymous Artist. Leiden: Brill, 2001, p. 83-93; e BRIGHT, John, “Jeremiah’s Complaints: Liturgy, or Expressions of Personal Distress?”. In: J. I. Durham e J. R. Porter (Orgs.). Proclamation and Presence: Old Testament Essays in Honor of G. H. Davies. Londres: SCM, 1970, p. 189-214. Von Rad também os analisa em sua Theology (v. 2, p. 201-206).

17 HOLLADAy, William Lee. Jeremiah 2: A Commentary on the Book of the Prophet Jeremiah, Chapters 26-52. Hermeneia. Filadélfia: Fortress, 1989, p. 35-70, apresenta uma análise detalhada de possíveis paralelos com outros livros bíblicos.

18 Quanto a isso, ver dois artigos relevantes de Holladay: “The Background of Jeremiah’s Self-Understanding: Moses, Samuel, and Psalm 22”, Journal of Biblical Literature 83 (1964), p. 153-164; e “Jeremiah and Moses: Further Observations”, Journal of Biblical Literature 85 (1966), p. 17-27. Ele também inclui Samuel como influência sobre Jeremias. Além disso, em seu comentário (Jeremiah 1, p. 27), acres-centa uma comparação com Gideão.

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mesmas garantias de que as palavras de Deus estariam em sua boca. Jeremias também intercede por seu povo contra a ira de Deus. Todavia, enquanto Moisés levou o povo do Egito para Canaã, Jeremias testemunha o exílio do povo e termina no Egito com os “fugitivos” (43.1-7).

(b) A acusação de Jeremias quanto à idolatria é bem similar à de Oseias (tabela 1).19 A metáfora de casamento é proeminente em Jeremias 2-3, como símbolo do relacionamento entre Javé e Israel (2.2; 3.1-13). Oseias e Jeremias usam a aliança do Sinai como paradigma para uma vida fiel coram Deo,20 mas Jeremias vai além, salientando a devassidão da esposa, anunciando o divórcio de Deus e exigindo arrependimento como condição de retorno (tabela 2).21

tabela 1. Similaridades entre os profetas tabela 2. Diferenças entre ambos

Jeremias oseias Jeremias oseias

2.8; 4.22 4.1,6 2.20-25 2.5-7

3.1-20 2.2,14-16 3.1-5 2.11-12

4.3 10.12 3.13 2.18-25

7:9 4.2 3.22-25 2.3-5

14.10 8.13

31.34 2.20

(c) É possível que a escola deuteronomista tenha marcado definitiva-mente o livro.22 Certamente há pontos em comum: uma ênfase em observar a Torá (5.4-5; 8.7) e nas consequências de não fazê-lo (expulsão da terra). Deus está prestes a infligir sobre seu povo a maldição que procede de sua aliança (Lv 26.31-33; Dt 28.49-68). Jeremias também afirma a justiça de Deus (em impor o exílio) e sua fidelidade (em restaurar Israel).

Esses diversos pontos considerados revelam a forte correlação entre a vida de Jeremias, desde seus anos formativos até sua maturidade, e a mensagem anun-ciada pelo profeta. Certamente podemos extrapolar e entender que isso também

19 Para uma análise mais ampla, ver MCCONVILLE, J. G. Judgment and Promise: An Interpreta-tion of the Book of Jeremiah. Leicester: Apollos, 1993, p. 152-163. Também há paralelos com Miqueias (Jr 26.17-19 e Mq 3.12), Obadias (Jr 49.7-22 e Ob 1-14) e Isaías (Jr 23.5-6 e Is 4.2; 11.1,10).

20 Cf. BRUEGGEMANN, Theology, p. 15-20.21 Para uma avaliação da recodificação por Jeremias dessa metáfora, ver DIAMOND, A. R. Pete

e O’CONNOR, Kathleen M., “Unfaithful Passions: Coding Women Coding Men in Jeremiah 2-3 (4:2)”, Biblical Interpretation 4 (1996), p. 288-310; especialmente p. 306-307.

22 Não há concordância entre os estudiosos quanto à existência e à extensão do linguajar deute-ronomista no livro de Jeremias.

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ocorre com todos os que proclamam a Palavra de Deus, embora não tenhamos dados comprobatórios no caso da maioria dos demais profetas. Passemos agora a examinar mais atentamente algumas características da teologia desse livro.

2. a mensagem teológica do livroJeremias é um livro riquíssimo teologicamente. Seria pretencioso desejar

abranger todo o seu conteúdo nestas poucas linhas. Nosso objetivo, bem mais simples, é indicar rotas de navegação dentro desse oceano de significados. Vimos que Jeremias é um profeta em crise. Ele se esforça por compreender as razões teológicas para a destruição de Jerusalém e seu templo. Sua teodiceia afirma que, sendo Javé o Deus soberano sobre todas as nações, ele é sempre fiel à sua aliança graciosa com Israel, mesmo ao ponto de trazer juízo contra seus filhos para restaurá-los ao caminho correto da vida. Analisemos essa mensagem teológica com mais detalhes.

2.1 Deus é soberano Jeremias sempre enfatiza a soberania absoluta de Javé.23 Ele é todo-po-

deroso (27.4-5; 32.27; 46.10), transcendente (23.23) e onipresente (23.24). É o Criador de todas as coisas (10.12,16; 31.35; 51.15,19),24 mas pode dissolver a criação em sua ira (4.23-26; 18.6). Ele é o rei (48.15; 51.57), o justo juiz que vê e sabe de tudo (11.20; 17.10; 20.12). Não há ninguém como ele (10.6-7).

Além disso, embora Javé seja especificamente o Deus de Israel (2.3; 10.16; 17.13), ele governa sobre toda a terra. Para Jeremias, os conflitos políticos de sua época refletem apenas a vontade de Deus em ação. Deus tanto pode fazer o “inimigo do norte” vir quanto pode impedi-lo de atacar seu povo. Ele é o Senhor sobre todas as nações (5.15; 18.7-10; 25.17-29), o governador da his-tória (27.6-7; 45.4; 50.44). Portanto, Deus está no comando de tudo. As más ações de indivíduos e de nações se encaixam de alguma maneira no propósito final de Deus para seu povo. Não obstante, estes indivíduos e nações ainda são responsáveis pelo mal que causaram ao longo do caminho.25 Deus os punirá mais tarde por sua maldade (50.9; 51.1).

Adicionalmente, Javé irá restaurar o seu povo (30.22; 31.1) após a mere-cida punição (5.29), tão somente porque ele pode, e ninguém mais se importa (15.5). Ele o faz porque os ama e é fiel à sua aliança.

23 BRUEGGEMANN, Theology, p. 43-133, argumenta que essa é mensagem principal “que domina a retórica e a fé do livro de Jeremias” (p. 44). Ver também: VANGEMEREN, Willem A. Interpreting the Prophetic Word: An Introduction to the Prophetic Literature of the Old Testament. Grand Rapids: Zondervan, 1990, p. 310-311.

24 Ver BRUEGGEMANN, Like Fire, p. 41-55, para uma análise da teologia da criação no livro de Jeremias.

25 SIMUNDSON, Daniel J. “Preaching from Jeremiah: Challenges and Opportunities”. Word & World 22 (2002), p. 423-432; ver especificamente a p. 430.

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2.2 Deus revela sua palavra por meio de seus profetasEsse Deus soberano escolhe seus próprios instrumentos para proclamar a

sua palavra, a qual ele vela para cumprir (1.12; 4.28). Isso significa que alguns profetas especulam sobre o que não sabem, porque não receberam nenhuma revelação divina (14.14; 23.16,18,21-22). Também significa que o instrumento escolhido não conseguirá se esquivar da ardente proclamação que irrompe de seu interior (5.14; 20.9; 23.9,29).

Portanto, é importante que Jeremias demonstre que prega apenas o que Javé mandou.26 A fórmula profética “a Palavra do Senhor veio a Jeremias” (com variações)27 ocorre 17 vezes no livro, enfatizando que a mensagem de Jeremias veio diretamente de Javé para a boca do profeta (1.9; 5.14; 19.2; 26.12,16; 36.1-2). Jeremias é o porta-voz de Deus (15.19).28 Isso coloca o verdadeiro profeta em conflito direto com aqueles que não entraram no conselho divino para ouvir a voz de Deus (14.13-18; 23.9-40; 27.14-18). Estes profetizam mentiras e praticam o engano (5.31; 6.13). Jeremias contende mais específica e diretamente contra Hananias (28.1-17) e Semaías (29.24-32).

Essa revelação verbal exige apenas uma coisa: uma “obediência respon-siva” à “voz de Javé, que está no comando”.29 Não é suficiente ter “a lei do Senhor” (8.8), pois Deus quer que eles obedeçam à sua palavra. Por isso, um verbo importante em Jeremias é “ouvir”.30 Israel é acusado porque não ouve (nem obedece) a Deus, um fato recorrente em sua história (25.4).

2.3 Deus acusa seu povoPara Jeremias, Israel é a nação escolhida de Deus. Como tal, está em

aliança com Deus. Esse relacionamento exige do povo obediência a tudo o que a aliança postula. Jeremias os adverte sobre sua desobediência: Israel violou sua aliança com Javé. Todo o povo é corrupto (5.1-5) e não segue a

26 Ver Dt 13.1-6; 18.15-22. Para outros mecanismos de legitimação usados por Jeremias, ver BERQUIST, J. L. “Prophetic Legitimation in Jeremiah”. Vetus Testamentum 39 (1989), p. 129-39.

27 A fórmula ocorre em 7.1; 11.1; 18.1; 21.1; 25.1; 30.1; 32.1; 34.1,8; 35.1; 40.1 e 44.1. Com algumas variações, também ocorre em 1.2; 14.1; 46.1; 47.1 e 49.34. A expressão “palavra do Senhor” é repetida 71 vezes em Jeremias, num total de 447 vezes na Bíblia toda, segundo o software Logos. RENDTORFF, Hebrew Bible, p. 205-207, indica a constante presença em Jeremias dos termos “palavra”, “dito de Javé” e “assim diz o Senhor”.

28 WILLIAMS, Michael J. The Prophet and His Message: Reading Old Testament Prophecy Today. Phillipsburg: P&R, 2003, p. 73-106, analisa a tarefa profética e apresenta os profetas como representantes de Deus (bem como do povo e de si mesmos) não apenas em suas palavras, mas também em suas emoções e comportamento. Ver também HESCHEL, The Prophets, p. 146-156.

29 BRUEGGEMANN, Theology, p. 22. Uma característica da verdadeira profecia é sua capacidade de gerar, naqueles que a aceitam, arrependimento e um retorno a Deus em contrição (23.22).

30 O verbo shama‘ ocorre 184 vezes em Jeremias, mais do que em qualquer outro livro no Antigo Testamento (Isaías vem em segundo lugar, com 106 vezes, e Deuteronômio em terceiro, com 91). A raiz do verbo também significa “obedecer”, uma mensagem que está no centro de Dt 6.4-5.

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verdade nem a justiça. Estão violando abertamente os Dez Mandamentos (7.9; cf. Os 4.2), gerando injustiças sociais e males morais (5.26-28; 7.5-6; 22.13-17; 34.16). Adicionalmente, o povo adora falsos deuses (2.5,23-25; 3.9; 5.7; 7.18; 16.11-12; 22.9; 23.13; 32.29), incluindo a prática de sacrifícios de crianças (7.30-31; 19.5; 32.35) e imoralidade sexual (5.7-8; 23.10,14). A mancha de sua culpa era tão profunda que não poderia mais ser limpa (2.22).

Diante dessa situação, Deus lhes pede que ouçam sua palavra (11.2,6) e os ameaça (26.4-6), mas eles não o ouvem mais (6.10,17,19; 7.13,24,26; 11.7-8,10; 13.10-11; 17.23; 22.21; 25.3-4,7), chegando até a duvidar que Javé iria fazer algo a respeito (5.12-13; 7.10). Portanto, como parte ofendi-da, Javé acusa seu povo (2.1-3.5)31 e chama a natureza como testemunha da antiga aliança entre eles. Ele questiona o comportamento deles, lembra-os dos benefícios que receberam e os ameaça com a merecida punição. Jeremias acusa reis, príncipes, sacerdotes e profetas (1.18; 5.5; 32.32) como responsáveis por essa situação (cf. 22.13-19, uma dura acusação contra um rei). Jeremias enuncia o pecado de Judá de seis maneiras diferentes (informadas com suas passagens principais): infidelidade conjugal (capítulos 2-3), rebelião de um vassalo (4-6), saúde arruinada (8-9), criação em desordem (passim), comunidade moribunda (9) e liderança enganosa (22-23).32

O que é mais incrível nesse cenário é que Israel pensava que estava se-guindo corretamente a palavra de Javé! Ainda faziam os sacrifícios exigidos, atendiam às convocações e festas solenes, e prestavam um culto liturgicamente correto. O que estava errado era seu comportamento diário, principalmente em seus relacionamentos sociais, além de terem adicionado a adoração a outros deuses como atividade paralela. O Decálogo usualmente era lido em voz alta e o povo declarava sua anuência nas grandes festas anuais. Jeremias repreende a hipocrisia deles – o povo atende à celebração no templo (7.10), mas continua a violar os mandamentos (7.9). O templo se torna um lugar de proteção, onde podiam adorar a Javé e assumir que estavam livres de qualquer consequência de seus pecados. Jeremias não é contra a forma externa de culto e do relaciona-mento com Javé (17.25-26; 33.17-26). Mesmo assim, ele insiste que Deus não pode ser adorado apenas pelo aparato material ou por formas mecânicas (um conceito posteriormente desenvolvido mais intensamente por Jesus, Jo 4.24). Seu objetivo não é destruir a religião formal, mas persuadir Judá de que eles deviam praticar as implicações da aliança à qual juraram obediência (11.1-10).33 Para ele, a Torá abrange “as exigências éticas e a proibição contra a adoração

31 Os profetas usam a metáfora de um processo legal para apresentar as complicações do rela-cionamento de Deus com seu povo. Obviamente, Deus não necessita provar seu caso em um tribunal superior. A metáfora é usada para convencer Israel de sua culpa e produzir arrependimento.

32 BRUEGGEMANN, Theology, p. 81-98.33 THOMPSON, Jeremiah, p. 67-71; RENDTORFF, Hebrew Bible, p. 211-212.

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de outros deuses”.34 Cair em um tipo de erro facilmente leva a outros erros; ou seja, quebrar os mandamentos da primeira tábua (referente a Deus) implica em quebrar os mandamentos da segunda (referentes ao próximo), e vice-versa.35

2.4 Deus chama ao arrependimentoO verbo “voltar-se” ou “arrepender-se” é outro termo muito importante

no livro.36 As acusações feitas por Jeremias contêm uma convocação implícita ao arrependimento (36.3,7). Ainda há tempo para adiar a punição inevitável (9.23-24; 18.7-8), pois Deus é paciente e compasssivo (3.12). Ele adverte repe-tidas vezes antes do juízo, e isso revela sua longânima graça.37 Javé insiste em que eles se arrependam e retornem a ele (3.14,22; 4.14; 6.16), mas eles não o ouvem (5.3; 8.4-7; 18.11-12). A teimosia deles vem de longa data (11.6-8; 16.12).

Quando o rei queimou o escrito profético (36.1-32), de forma intencional, após os líderes da corte terem insistido que não o fizesse (v. 25), isso sinalizou uma rejeição completa da palavra de Javé pela nação e seus líderes. Deus não tem outra escolha senão pôr em ação seu juízo irrevogável contra o povo com o qual tem aliança.38 Após essa rejeição final, Javé não mais se dispõe a ouvir súplicas e ordena a Jeremias que não mais interceda pelo povo (7.16; 11.14; 14.12; 15.1). Deus não pode mais manifestar sua compaixão (13.14; 15.6), pois agora a punição está próxima e é inevitável (4.28; 7.27-29; 25.1-11; 35.17). O chamado de Jeremias ao celibato é um sinal para o povo dessa decisão divina irreversível de puni-los (16.1-4), assim como sua proibição de participar de festas e funerais (16.5-9). Não há mais conforto nem alegria para esta geração, o que é simbolizado pela ação de quebrar o vaso de barro (19.1-13).

É importante entender que, apesar de o arrependimento parecer inútil a essa altura, é exatamente isso o que Deus busca em seu povo. O juízo certa-mente viria, mas Deus nunca despreza um coração contrito e por certo aliviaria sua mão na execução da disciplina se o seu povo o buscasse verdadeiramente. Infelizmente, Israel preferiu descartar o aviso de Jeremias.

2.5 Deus garante salvação O grande problema de Israel nessa época não foi um afastamento completo

dos caminhos de Deus. Em suas mentes, imaginavam ser bons adoradores e

34 HyATT, J. Philip. “Torah in the Book of Jeremiah”. Journal of Biblical Literature 60 (1941), p. 381-396, p. 392.

35 THOMPSON, Jeremiah, p. 278.36 Segundo o software Logos, o verbo shub ocorre 106 vezes no livro (seguido de longe por

Gênesis, com 68 vezes, e Salmos, com 67). Ver também RENDTORFF, Hebrew Bible, p. 208,225-227.37 “Longânimo” é um bom termo para descrever as emoções divinas (2.31-32; 9.17-19; 14.17).38 HOLLADAy, Jeremiah 2, p. 30. Ele chama a atenção para a oferta de arrependimento no v. 7

que é descartada no v. 31. Observe-se que o texto do livro não está ordenado cronologicamente.

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pessoas religiosas. Eles realmente criam que Javé é o Senhor do universo e que o templo era o local de sua habitação. Seu engano não reside em sua correta percepção da soberania de Javé sobre todas as nações, nem em sua suposição de que ele escolheu habitar entre seu povo em Jerusalém.39 O problema teoló-gico aqui é a inferência incorreta de que Deus sempre protegeria seu povo de qualquer inimigo. Essa proteção era garantida, pensavam eles, por três razões principais:

(a) A reputação de Javé ficaria prejudicada entre as nações se Israel fosse derrotado. Essa era uma maneira antiga e comum de barganhar com Deus: lembrá-lo de considerar seu nome santo e sua glória (como Moisés em Êx 33.1-17). Não consideravam que a reputação dele também ficaria prejudicada se ele simplesmente desconsiderasse o pecado do seu povo.

(b) A aliança eterna estabelecida por Javé com Davi (2Sm 7.4-17; 23.1-7) e sua escolha de Sião (Jerusalém) como local de sua habitação são eventos fundamentais na história de Israel. O templo proporcionava um local para se entrar na presença do Deus Todo-Poderoso e adorá-lo. Javé se alegra com a ideia de Davi sobre um santuário central e aceita a oração de Salomão (1Rs 9.3-9), estabelecendo as mesmas condições de obediência que sempre estão presentes em nosso relacionamento com Deus. Entretanto, aquilo que foi ou-torgado como meio de graça para a vida na presença de Deus se deturpou em uma esperança enganosa de proteção incondicional da parte de Deus.

(c) A pregação de Isaías no século anterior reforçou seriamente esse con-ceito (Is 55.3). Ele orientou Ezequias a confiar completamente no livramento de Deus e a não temer seus inimigos (Is 36-37; ver especialmente 37.35), baseando-se na aliança divina com Davi. Portanto, na época de Jeremias, o povo aguardava o mesmo tipo de livramento (21.2) e os profetas proclamavam “paz, paz” como palavra de Javé para Israel (6.14; 8.11; 14.13; 23.17).40 En-tenderam a aliança de forma errada, apegando-se às promessas, mas ignorando as responsabilidades. Gabando-se do ponto teológico errado,41 transformaram a adoração ao Senhor em camuflagem para suas más ações.

Jeremias expõe a falácia da confiança deles em seu Sermão do Templo (7.1-14).42 Eles estão errados porque a verdadeira segurança não está em um

39 Para um estudo mais extenso sobre o engano do povo em Jeremias, ver: OVERHOLT, Thomas W. The Threat of Falsehood: A Study in the Theology of the Book of Jeremiah. SBT2 16. Londres: SCM, 1970, especialmente p. 86-104.

40 Para uma análise desses oráculos de salvação, ver: SISSON, Jonathan Paige. “Jeremiah and the Jerusalem Conception of Peace”. Journal of Biblical Literature 105 (1986), p. 429-442.

41 Deviam se gloriar acerca de um conhecimento real de Javé (9.23-24; 22.16). Ver: BRUEGGE-MANN, “Bragging about the Right Stuff”. Journal for Preachers 26 (2003), p. 27-32, especialmente p. 31.

42 BRUEGGEMANN, Like Fire, p. 16: “Jeremias parece ser um homem que fala a verdade em um mundo de falsidade e autoengano” (grifos do autor).

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edifício, mas na retidão moral, na fidelidade e na obediência a Deus. Javé abo-mina oblações que procedem da desobediência (6.19-20; 7.21; 11.15; 14.12). A frequência aos cultos e rituais religiosos não é substituto do relacionamento real (12.2). Jeremias não é contra a liturgia nem contra o templo em si, mas sim contra a falsa segurança do povo pelo fato de o templo estar em Jerusalém. Como o templo sinaliza a presença de Javé entre seu povo (Sl 46.5-7; 132), o anúncio de sua destruição é considerado uma blasfêmia e Jeremias é submetido a julgamento (26:7-15), escapando por pouco da morte devido a uma profecia anterior de Miqueias (26.16-19; cf. Mq 3.11-12) e pela influência de amigos poderosos (26.24). O profeta Urias, com mensagem similar, não alcançou o mesmo livramento (26.20-23).

Jeremias continua batalhando contra as profecias enganosas feitas em nome de Javé (5.30-31; 14.13-16; 23.13-40) – “engano” é outro termo importante no livro (7.4,8-9).43 Jeremias faz uma crítica radical contra essa ideologia real e sacerdotal de proteção divina. Ele lembra a Israel acerca do antigo santuário de Siló (7.12; 26.9), que foi destruído por similares suposições erradas.44 Indo além, Jeremias afirma que paz incondicional não existe, pois a aliança de Deus com Davi também é condicionada à obediência (17.24-27; 21.12; 22.1-5). Todavia, Deus não permitirá que essa aliança fique violada para sempre, por causa de sua graça e do seu santo nome. Dessa forma, há garantia de salvação, mas não do modo que Israel imaginava.

2.6 Deus ama continuamente seu povo Vimos que o juízo divino é um dos temas pervasivos desse livro, levan-

do tanto Jeremias quanto Baruque a gemer sem esperança (45.1-5). O juízo alcançará as outras nações (46-51). Esse juízo divino, contudo, é tanto uma expressão da ira de Deus para com o pecado deles,45 quanto do seu profundo amor por seu povo. Segundo Jeremias, o único modo de corrigir o caminho tortuoso que Judá estava seguindo seria através de uma disciplina séria que destruiria toda falsa esperança e os levaria ao arrependimento e uma nova vida (30.11; 31.18). A restauração final é o propósito do juízo iminente de Deus.46 É por isso que Jeremias vai contra a ideia de um período curto e cômodo de

43 O termo sheqer ocorre 39 vezes em Jeremias, mais do que em qualquer outro livro bíblico. 44 Ver HOLWERDA, David E. Jesus & Israel: One Covenant or Two? Grand Rapids: Eerdmans,

1995, p. 63-64.45 HESCHEL, The Prophets, p. 134, indica que Jeremias frequentemente é chamado de profeta da

ira divina por proclamar como o povo provocou Deus à indignação (7.18,20,29; 11.17; 23.19-20; 25.6; 32.30-32; 44.3-8).

46 RENDTORFF, Hebrew Bible, p. 208, declara que “mesmo a pregação mais violenta de juízo por Jeremias nunca pode ser lida fora do contexto maior da história de salvação de Deus”. Ver também BRUEGGEMANN, Like Fire, p. 23; Theology, p. 115-118.

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exílio (29.1-23) e proclama total rendição à Babilônia, pois ela é o instrumento divino de punição (27.1–28.17). Nisso discorda de Hananias (27.16; 28.3), que pensava que o juízo de Deus no ano 597 já tinha sido suficiente e profetizava paz a partir de agora.

Além disso, Jeremias proclama que, após satisfazer sua ira, Deus nova-mente mostraria compaixão para com o remanescente de Israel (12.15; 30.18; 31.20; 33.25-26; 42.12), que seria libertado de seu cativeiro (16.14-15; 24.5-7; 30.3; 31.23), o qual duraria 70 anos (29.10-14). Deus redime Israel apenas porque o ama (30.17; 31.3; Lm 3.22) e deseja renovar o relacionamento com ele (30.22). Israel é uma esposa maculada (3.1) que não pode ser aceita de volta, mas Deus perdoa até a mácula que não pode ser limpa (2.22; 50.20; 31.34b; 33.8) e declara que Israel é novamente virgem (31.4,21-22). Por isso Jeremias proclama que “há esperança para o teu futuro” (31.17; 29.11). Ele compra um campo como sinal de que a vida retornaria à normalidade (32.15,37). Mais que isso, o futuro será melhor do que os dias gloriosos do passado. Haverá acesso livre a Deus, não se precisará mais de estruturas formais (3.16-17). Haverá pastores verdadeiros segundo o coração de Deus (3.15; 23.4-6; 30.9,21), e conhecimento universal de Deus (31.34). As nações se unirão a Israel nessa nova época, se quiserem aprender o caminho de Javé (12.14-17; 3.17; 16.19-21). E haverá prosperidade (32.41-42).

Para concretizar esse futuro brilhante, Deus estabelecerá uma nova alian-ça (31.31-34) que depende inteiramente da fidelidade dele, de maneira que o povo não se afastará dele (32.40; 50.5).47 “Nova” aqui basicamente significa renovada, visto que muitas coisas permanecem iguais: Deus, o povo, a Torá, o relacionamento (“serão meu povo, serei seu Deus”; 32:38), o perdão.48 O “novo” é a circuncisão do coração (4.4) que Deus fará.49 O povo da nova aliança não dependerá de seus corações enganosos (3.17; 17.1,9), porque isso sempre comduz ao fracasso.

Em suma, percebemos claramente o foco teocêntrico da mensagem teológica de Jeremias. Todas as circunstâncias são interpretadas do ponto de vista divino. Deus é a fonte e a base para a compreensão da realidade. Ele domina sobre as nações e as usa para cumprir seus propósitos soberanos. Ele usa agentes humanos para revelar sua vontade, mas confronta aqueles que

47 HOLWERDA, Jesus, p. 95; BRUEGGEMANN, Like Fire, p. 105-106. 48 Cf. KAISER JR., Walter C. “The Old Promise and the New Covenant”. Journal of Evangeli-

cal Theological Studies 15 (1972), p. 11-23; VANGEMEREN, Interpreting, p. 313-317; BRUEGGE-MANN, Theology, p. 126-127. Para estudo posterior sobre a novidade da aliança, sua continuidade e descontinuidade com os pactos anteriores e sua relação com a mensagem de outros profetas, consultar: VON RAD, Theology, v. 2, p. 212-217; ANDERSON, Bernhard W. “‘The Lord Has Created Something New’: A Stylistic Study of Jer 31:15-22”. Catholic Biblical Quaterly 40 (1978), p. 463-478, e a biblio-grafia sobre o assunto em VANGEMEREN, Interpreting, p. 503, nota 102.

49 Cf. Dt 30.6; 10.16; Ez 18.31; 36.26-27; Rm 2.28-29; Cl 2.11.

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falam apenas de seus próprios sonhos. Ele acusa seu povo de ser religioso, mas infiel à aliança e desobediente na implantação da justiça social proposta. Ele chama continuamente ao arrependimento, pois deseja se relacionar intensa-mente com seu povo. Ele garante salvação incondicional, mas não livramento das consequências do pecado. Ele ama perpetuamente, e redime seu povo de seu pecado e aflições.

considerações finaisComo vimos, a destruição de Jerusalém por Babilônia é uma resposta

pactual do soberano Deus à desobediência de Judá às exigências da aliança.50 O livro de Jeremias explica e valida a causa do exílio de Judá, pela sua própria recusa pecaminosa em ouvir e retornar para Deus, e anuncia o esperançoso destino futuro daqueles que estão na Babilônia, baseado em uma nova aliança.51 Compreende-se a realidade histórica nesta teologia pactual como algo que se fundamenta na soberania de Javé como Senhor supremo do universo. É um movimento do juízo para a esperança e a promessa.52

Como devemos aplicar essa mensagem hoje? Algumas linhas de ação são propostas a seguir, já criando uma conexão com a mensagem neotestamentária:

(a) Devemos evitar o erro comum de institucionalizar o Deus soberano ou de limitar suas possíveis ações. Enquanto os profetas oficiais continuaram em sua “tradição”, defendendo a teologia sionista proposta por Isaías, Deus se moveu adiante e eles se distanciaram do que ele estava falando à situação presente. Embora Javé seja sempre fiel à sua palavra, nossa compreensão dela nunca é completa. Nossa teologia não pode ser mais importante do que ouvir de forma atenta e concreta àquilo que Deus está dizendo agora (erro básico dos religiosos na época de Jesus: Mc 7.11-13; Jo 5.38-39; Mt 22.29).53 Pode-mos descobrir que nossos pensamentos precisam de alguns ajustes. Ecclesia semper reformanda est!

(b) Sempre temos uma chance perante Deus para o arrependimento dos nossos pecados, pois ele sempre está aguardando intensamente por isso. No entanto, o livro de Jeremias nos ensina que a oportunidade de evitar a punição corretiva associada aos pecados tem um tempo limite, mesmo no longânimo amor divino. O arrependimento sempre é necessário, mesmo que seja para nos submetermos humildemente às consequências do que fizemos. O amor incondicional de Deus inclui a disciplina necessária para nos trazer de volta a ele (Hb 12.4-11). Quão teimosos queremos ser depende de nossa estupidez.

50 BRUEGGEMANN, Theology, p. 76-77.51 MCCONVILLE, Judgment and Promise, p. 180-181.52 BRUEGGEMANN, Like Fire, 152.53 OVERHOLT, Threat of Falsehood, p. 39-42.

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O Senhor sempre adverte que “dura coisa é recalcitrares contra os aguilhões” (At 26.14).

(c) Como Jeremias indica claramente em seu Sermão do Templo, a verda-deira religião implica numa forte ética em conformidade com a Torá (Tg 1.27; 1Jo 3.18). As duas tábuas do Decálogo (mandamentos verticais e horizontais) precisam ser obedecidas ao mesmo tempo e se resumem em amarmos a Deus e ao próximo com todo o nosso coração (Mt 22.37-40; 1Jo 4.20-21). Nossa missão profética como igreja de Cristo começa internamente, ao examinarmos nossa observância da correta adoração e da justiça social de Deus. Depois, continua ao proclamarmos ao mundo aquilo que o Senhor deseja para a humanidade. A justiça do povo de Deus é manifestação do seu Reino entre nós (Mt 6.10) e deve modelar o estilo de vida de todos os outros povos da terra.54

(d) A vida de Jeremias é cheia de incidentes. Cada um deles interfere em sua compreensão de Deus e influencia sua mensagem. Isso transparece em alguns outros profetas (como Oseias), mas certamente se aplica a todos os que vivem na presença de Deus, pois o Senhor conduz todas as circunstâncias ao nosso redor para gerar em nós a imagem do seu Filho (Rm 8.28-29). Para alcançarmos integridade, nossa mensagem precisa ser coerente com nossa vida. Em geral não conseguimos mudar o que acontece em nossas vidas, mas com certeza podemos interpretar esses acontecimentos à luz da Palavra de Deus, submetendo-nos à soberania do Criador e reagindo corretamente às circuns-tâncias a partir da perspectiva divina (2Co 4.17-18; Hc 3.17-19).

(e) A mensagem da nova aliança proclamada por Jeremias é crucial à teologia cristã pois se cumpre na morte de Cristo (Lc 22.20). Jesus é o Deus--homem que pode satisfazer completamente as condições pactuais (2Co 3.2-18) e beber o “cálice do furor” de Deus (25.15-29; Lc 22.42). Essa nova aliança traz a paz perpétua (cf. Ez 34.25; 37.26; Jo 14.27; Cl 1.20; Fp 4.7) implantada pelo prometido Renovo de Justiça (33.15-16).55

(f) A estrutura do livro de Jeremias gira em torno da missão anunciada em 1.10 – destruição e construção. Essa percepção teológica das circunstâncias pelas quais o seu povo passava tornam a mensagem de Jeremias algo essencial para a vida cristã. Esses dois momentos contrastantes reaparecem continuamente na teologia da igreja: a morte e a ressurreição de Cristo (1Co 15.3-4; Jo 2.19-22),56 o despojar do velho homem e o revestir do novo (Ef 4.22-24), a disciplina divina e a restauração (Hb 12.10-11), a mortificação e a vida abundante (2Co 4.11; Rm 8.13; 1Pe 2.24), o choro da noite e a alegria que vem pela manhã (Sl 30.5; 143.8; Lm 3.22-23). Cada um de nós tem seu momento de destruição, suas

54 HOLWERDA, Jesus, p. 138.55 Cf. CRAMER, George H. “Messianic Hope in Jeremiah”. Bibliotheca Sacra 115 (1958),

p. 237-246.56 BRUEGGEMANN, Theology, p. 191-192; Like Fire, p. 26-28,129-130,167,178.

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aflições pessoais, que precisam ser reinterpretadas à luz das promessas divinas de restauração. Somente “olhando firmemente para o Autor e Consumador da fé” (Hb 12.2), receberemos força, alegria e esperança para caminharmos em meio ao sofrimento (Tg 5.8; 1Pe 1.3-9; 4.12-13; Rm 8.17-18; Sl 32.10-11).

(g) Jeremias é um construtor de pontes. Ele se conecta com as tradições mais antigas da Torá, mas ao mesmo tempo traz uma nova mensagem de Deus que modela a realidade presente, influenciando as novas gerações.57 Como profeta, Jeremias prefigura Cristo e a igreja. Para seguirmos seu exemplo, precisamos conhecer bem o texto bíblico e aprender a ver a vida do ponto de vista de Deus; daí podemos atualizar o texto, mediante a orientação do Espírito Santo, para confrontar nossa pecaminosa realidade cotidiana com a contínua novidade da cosmovisão divina.58 A tarefa profética da igreja consiste em pro-clamar a mensagem subversiva das Escrituras (Mt 5.13-16; 1Co 1.18-25; 2Co 10.4-5), a qual anuncia uma perspectiva transformadora de vida abundante e teocêntrica na presença do Criador, uma alternativa salutar à ideologia ego-cêntrica e hedonista predominante no mundo (At 17.6).

Observamos apenas alguns pontos da rica mensagem de Jeremias. Há muito mais a ser escavado. Há outras aplicações a serem salientadas. Convido você a mergulhar nesse livro e a descobrir por você mesmo a “profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus” (Rm 11.33). A ele, pois, a glória eternamente. Amém!

abstractIn order to motivate a better understanding of the book of Jeremiah,

usually undervalued in evangelical circles, this article presents a summary of the core aspects of its theological message. The text begins with a correlation between the prophet’s life and message, discussing concisely his prophetic call, his literary style, his reaction to being persecuted, his “confessions”, and the influences received during his preparation. Next, several features of the book’s theology are investigated, focusing on God’s sovereignty, his divine revelation through prophets, his indictment against his people, his call to repentance, the divine assurance of salvation, and his perpetual love for his people. The arti-cle concludes with some considerations on how to apply this message to the church’s life and to the individual Christian.

KeywordsJeremiah; Prophetic call; Subversive message; Theocentric focus.

57 BRUEGGEMANN, Theology, p. 184-186.58 Esse é um tema recorrente ao final dos artigos de Brueggemann reunidos em seu livro Like

Fire (p. 26-28,39-40,68-71,85,115,129-131,140,167,177,187-188,198,212) e no final do seu livro Theology (p. 195-196).

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FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (2015): 33-44

catarina dE SiEna: uma contribuição fEminina ao pEnSamEnto E à ESpiritualidadE ocidEntal

Elizabeth Gomes*

resumoA vida genial e a obra de Catarina de Siena marcam-na como simples

mulher piedosa que se tornou embaixatriz, conselheira e doutora da igreja, na tentativa de influenciar e reformar uma igreja corrupta, bem como uma política venal e torpe – de dentro para fora –, influenciando papas, prelados, simples mulheres, frades e freiras discípulos, reis e vassalos da Europa me-dieval. Mantendo-se dentro da igreja romana, ela reconhecia algumas das suas heresias e buscava uma fé arrependida da parte daqueles que estavam no poder. Foi a mulher que mais marcou sua época e sua história, por amor do “sangue de Cristo”.

palavras-chaveCatarina de Siena; Igreja Católica; Paixão por Cristo; Varonilidade;

Comunhão; Chamado; Mãe.

introduçãoPor que uma pessoa de visão protestante e reformada escolheria uma

santa da Igreja Católica Romana como tema de estudo? O que a curta vida de uma contemplativa teria a ver com mulheres e homens do século 21 que queiram discernir e impactar a igreja cristã, bem como o mundo tenebroso em que estão inseridos?

Comecei a pesquisar biografias de mulheres que tiveram influência positi-va sobre a vida da igreja desde seu início, quando Jesus foi seguido e auxiliado

* Formada no Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper com o grau de Magister Divinitatis (M.Div.) na área de Filosofia e Teologia. Autora e tradutora de muitos livros.

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ElizabEth GomEs, Catarina dE siEna

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“também por algumas mulheres” (Lc 8.2-3).1 Pretendia procurar exemplos de mulheres de quatro épocas diferentes e mostrar o que as caracterizava e as di-ferenciava dos milhares de seguidores de Jesus Cristo. Cogitei de uma pessoa da era patrística, uma da era medieval, uma da Reforma e uma dos tempos atuais. Contudo, o material ficou tão extenso que não caberia em um livro de quinhentas laudas, quanto mais em um breve artigo. Porque sempre imaginei a Idade Média como uma época de trevas e as suas mulheres como de pouca ou nenhuma ação, e tendo ficado surpresa por saber que duas delas foram designadas pelos papas como “doutoras da igreja”, fiquei de escolher entre as figuras medievais de Hildegarda de Bingen e Catarina de Siena. Novamente surpreendida pela riqueza dessas vidas dedicadas ao Senhor, tive de delimitar ainda mais o assunto – e escolhi a que menos se parecia com as mulheres de destaque do século atual.

Diz a historiadora eclesiástica Mary Malone:

Jamais houve época na história cristã em que as mulheres não estivessem fisica-mente presentes – todos... estiveram envolvidos com mulheres, essencialmente como mães e doadoras de vida... como esposas, amantes, mentoras, mestras, e, ocasionalmente, amigas. A autoidentidade de todo líder cristão masculino foi formada contra o pano de fundo das mulheres invisíveis e silentes que tornaram possíveis suas vidas públicas.2

É intrigante a história de mulheres cristãs que contribuíram para a forma-ção do pensamento filosófico ocidental num mundo dominado pelo gênero masculino. Essa história é valiosa para oferecer aos estudantes de teologia filosófica e aos leitores em geral um respaldo para reflexão e produção literária e acadêmica que vise maior compreensão da ética entendida e vivenciada por mulheres cristãs.

O presente artigo responde três perguntas sobre esta pensadora: 1) Qual o impacto da mulher cristã no mundo em que está inserida? 2) Quais os empeci-lhos que ela precisa sobrepujar devido a seu gênero? 3) Quais as contribuições singulares, ligadas ou devidas a sua condição de mulher, diferentes daquelas de pensadores masculinos?

Em 25 de março de 1347, nasceu Catarina, 23ª filha de Jacopo e Lapa Benincasa, tendo uma irmã gêmea que morreu ao nascer. Na movimentada casa de um tingidor de peles e tecidos, aos seis anos de idade, Catarina teve sua primeira visão (de Cristo em vestes sacerdotais, acima da igreja de São Domingos). Inspirada pelo anseio de imitar os Pais do Deserto, Catarina

1 GOMES, Elizabeth. Mulheres no espelho. Belo Horizonte: Editora Betânia, 1996, p. 90.2 MALONE, Mary. Women and Christianity. Vol. I: The First Thousand years. Nova york: Orbis,

2001.

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iniciou a prática de muitas penitências, fazendo, aos sete anos, voto de per-pétua virgindade.

Em sua casa, tais práticas ascéticas eram condenadas. Seus pais e irmãos queriam que a bela moça de longos cabelos loiros se arrumasse bem e arranjasse um bom casamento – solução pragmática para toda moça de família grande com precários recursos financeiros. Forçada aos trabalhos caseiros comuns a toda mulher, aos 16 anos de idade (1363-1364) Catarina se tornou terciária dominicana, recolhendo-se em sua própria casa.3 Com a morte do pai em 1368, a família perdeu todos os bens, ainda que Catarina conseguisse manter a residência familiar na qual cuidou de sua mãe, Lapa, até o final da sua vida.

Dominavam a Idade Média dois grandes ideais de unidade – um roma-no e outro de origem cristã. As hordas de bárbaros tinham sido reduzidas e disciplinadas, e na Europa Ocidental havia alguma percepção de comunhão humana. A energia da mente de Catarina estava em constante crescimento e ela escrevia longas e carinhosas cartas de conselho espiritual a discípulos de perto e de longe. Sua correspondência política – tensa, nervosa, viril, respirando vibrante paixão e força indicativas de um coração que se quebrava – também crescia. A base doutrinária de Catarina sempre foi a Igreja, corpo místico de Cristo. Denunciou as faltas e deficiências dos poderosos, mostrando-se deferente diante da autoridade legítima da igreja universal, que ela entendia como romana, querendo preservar, purificar e orientar essa Santa Chiesa para o bem de todos.

Viajou, acompanhada de frei Raimundo de Cápua, a Pisa, a Florença, à França e a Roma. A partir de 1374, quando foi enviada de Florença como embaixatriz a Avinhão, com apenas dois breves intervalos, ela viveu a vida de uma atarefada woman of affairs (mulher de grandes realizações). Sua pai-xão espiritual sofria pela disparidade entre o sinal e o que é significado, e ela dedicou todos os seus esforços para restaurar e purificar esse sinal – a igreja universal de Cristo.

Catarina confrontava uma igreja conformada com a imagem do mundo. A volta dos papas de Avinhão para Roma não resultou, como ela esperava, na pacificação da cristandade nem na reforma da igreja. Catarina viveu e morreu na visão da comunhão da humanidade em nome de Cristo.

1. ministrando aos carentes“Em obediência aos mandamentos de Deus e impelida por seu amor

aos homens”, Catarina ministrava aos necessitados. Ela buscava servir os prisioneiros, os pobres e doentes, as vítimas da peste (que entre 1374 e 1400 matou mais de 350 milhões de pessoas na Europa – entre 30 e 60% de toda a

3 Frei Josaphat diz que ela foi “leiga mantelata”, não ligada a qualquer regra ou superior. JOSAPHAT, Carlos. As santas doutoras: espiritualidade e emancipação da mulher. São Paulo: Paulus, 2005.

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população). Um terço da população de Siena foi dizimado. Entre as vítimas de sua cidade, morreram dois irmãos dela e oito sobrinhos. Contam que, num episódio extremo, Catarina pôs os lábios na ferida cancerosa de um paciente no hospital como um ato de contato direto com as chagas de Cristo.4

A uma humilde sobrinha que entrara no convento e estava desanimada da vida, ela escreveu:

Desejo ver-te nutrida do alimento angélico, pois de outra feita não poderias ser verdadeira noiva de Cristo crucificado, consagrada a ele pela religião verda-deira. Não vás desperdiçando teu tempo. Banha-te, inunda-te no doce sangue de teu noivo... sê firme e madura em ti mesma; serve as irmãs com ternura e toda vigilância... cuidado para não prender teu coração a ninguém senão Cristo crucificado...

A um secretário deprimido por haver pecado e questionando sua fé, te-meroso de ter perdido a salvação, escreveu:

Desejo que a confusão de tua alma seja consumida e desapareça na esperança do Sangue e no fogo do amor imensurável de Deus, e que nada permaneça salvo o verdadeiro conhecimento de ti mesmo, em que tu te humilhas, cresces e nutres a luz em tua alma. Não estará Ele mais disposto a perdoar do que mesmo nós a pecar? Não é Ele o Mediador e nós o doente? Ele não considera a confusão da mente pior do que todas as demais falhas?... Sendo assim, querido filho, abre os olhos de teu intelecto à luz da mais santa fé e considera o quanto és amado por Deus... Tu sabes que a confusão discorda totalmente da doutrina que te foi dada. É lepra que seca alma e corpo... dispondo a mente aos conflitos e variadas fantasias, furtando a luz sobrenatural da alma, obscurecendo sua luz natural... Ele nos criou na verdade a fim de nos dar a vida eterna. Que o diabo da confusão seja vencido! Retorna ao mar de paz onde jamais terás medo de separar-te de Deus... vive morto para a vontade própria e nesta morte ganharás a virtude. Conforta-te em que nenhuma pessoa se perderá das mãos de Cristo, pois tudo é dele.5

À medida que se espalhavam notícias sobre as visões de Catarina, as pessoas vinham vê-la em seus transes. Entre tais êxtases, em disposições de caloroso bom-senso terreno, ela resolvia querelas civis, convertendo notó-rios cafajestes à penitência e fé.6 Adquiriu fama e discípulos que a veneravam, chamando-a de “mãe”, como, disse ela, “a mãe traz o filho ao peito”.

4 TUCHMAN, Barbara. A Distant Mirror: The Calamitous 14th Century. Nova york: Ballentine, 1978, p. 323-328.

5 A Neri de Landoccio dei Pagliaresi. In: Letters of Catherine Benincasa (loc. 1105), Kindle books on-line.

6 TUCHMAN, A Distant Mirror, p. 325.

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2. ministrando ao mundo políticoA partir de 1370, Catarina aumentou sua participação na vida pública,

exortando governantes, prelados, conselhos de cidades e indivíduos em cartas de orientação política e espiritual. Nessa época, ela “morre misticamente” e recebe a ordem de ir pelo mundo salvando as almas. Raimundo de Cápua conta que Catarina ouviu as seguintes palavras de Deus:

A salvação dos homens exige que tu voltes à vida. Mas não viverás mais como até agora. O pequeno quarto não será mais tua costumeira moradia; pelo con-trário, para a salvação das almas deverás sair de tua cidade. Estarei contigo na ida e na volta. Levarás o louvor do meu nome e a minha mensagem a pequenos e grandes, a leigos, clérigos e religiosos. Colocarei em tua boca uma sabedoria, a qual ninguém poderá resistir. Conduzir-te-ei diante de papas, de bispos e de governantes do povo cristão a fim de que por meio dos fracos, como é do meu feitio, eu humilhe a soberba dos fortes.7

2.1 Embaixatriz, reformadoraFlorença comissionou-a como embaixadora para negociar a reconciliação

com o papa e a remoção do interdito.8 Contudo, para Catarina, sua maior missão era o apostolado para toda a humanidade, por meio de sua própria in-corporação com Deus e Jesus, mediante uma purificação e renovação da Igreja.

Ela insistia com o papa Gregório XI (1370-1378), a quem chamava de dolce babbo mio, para que ele começasse a reforma, designando sacerdotes dignos, pacificando a Itália não por meio de armas, mas com misericórdia e perdão, voltando a Roma não com uma guarda armada e espada, mas com a cruz na mão como o Bendito Cordeiro, “pois me parece que a Bondade divina está preparando para transformar os lobos furiosos em cordeiros... e os trará, humildes, ao vosso seio... Ó Pai, paz, por amor de Deus!”9

A própria Catarina não foi desobediente, considerando seu fundamento a igreja de Roma, o papado, o sacerdócio, a ordem dominicana, seu lar e sua santidade. Ela repreendia de dentro do aprisco.

A sua autoridade era a voz de Deus falando diretamente a ela, preservada no Diálogo, que foi ditado aos seus secretários-discípulos, os quais creram que foram dados “pessoalmente por Deus o Pai, que falou segundo a mente da gloriosa e santa virgem Catarina de Sena... estando ela em transe e ouvindo a voz real de Deus falando com ela”.10

7 RAIMUNDO DE CáPUA, Biografia de Santa Catarina de Sena, livro III, cap. 1, citado em CATARINA DE SIENA, O Diálogo. Trad. João Alves Basílio. São Paulo: Paulus, 2008, p. 7.

8 TUCHMAN, A Distant Mirror, p. 325.9 Carta nº X.10 TUCHMAN, A Distant Mirror, p. 324.

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2.2 Promotora de cruzadasAs cruzadas eram o sonho de espalhar a fé por todo o mundo, desviando

a atenção das constantes guerras entre ingleses e franceses, e entre os diver-sos reinos italianos, unindo a todos contra inimigos comuns – muçulmanos e judeus. Catarina convenceu o Papa Gregório XI a declarar uma cruzada em 1373. Em todas as cartas de seu pontificado, Gregório via as cruzadas não só como guerra defensiva contra os turcos, mas como meio de reconciliação entre França e Inglaterra, e esvaziamento dos mercenários da Europa.

2.3 Conselheira do supremo pontíficeCatarina travou conhecimento com frei Raimundo de Cápua, um nobre

de grande cultura e futuro geral da Ordem Dominicana, que se tornou seu con-fessor e biógrafo. Cápua foi intérprete de Catarina quando em Roma, porque ela falava somente a língua toscana e o papa, francês e latim.

Em 1376, Catarina foi a Florença e de lá foi enviada por Gregório XI a Avinhão como representante para negociar a paz entre os dois papados. Em Avinhão seus objetivos foram converter os chefes e líderes e trazê-los à obediência, bem como converter o papa e os cardeais e colocá-los a serviço dos fiéis e do conjunto da população. Catarina sentia-se oprimida pela atmosfera de sensualidade daquela cidade. O “fedor do pecado”, bem como a curiosidade das grandes damas, que cutucavam e beliscavam seu corpo a fim de testar os êxtases depois da eucaristia,11 muito a afligiam, mas ela estava determinada a cumprir sua missão no mundo.

Em The Outline of History, H. G. Wells comenta que, enquanto a igreja do século 13 estendeu seu poder legal no mundo, perdeu o pulso sobre a cons-ciência dos homens, tornando-se menos persuasiva e mais violenta. Em todo o século 14, o papado nada fez para recuperar seu poder moral – pelo contrário. Clemente V foi escolhido pelo rei Filipe IV da França e estabeleceu a corte em Avinhão, onde, com seus maus hábitos e associações francesas, todos os papas permaneceram até 1377, com Gregório XI.12 Isso chegou ao fim pela influência dessa simples mulher, Catarina de Siena, que convenceu o papa a voltar para Roma.

O rei Carlos V e os cardeais franceses não queriam que o papa retornasse para Roma, e tentaram dissuadir Gregório, mas Catarina deu-lhe forças para resistir às pressões. Quando Roma prometeu submissão se ele voltasse, o papa não mais pôde adiar a sua volta. Seu próprio pai, o Conde Guilherme de Beau-fort, jogou-se ao chão implorando que ficasse, mas Gregório pisou sobre ele, citando o Salmo 91.13 (“Pisarás a áspide e o basilisco”), entrando na cidade

11 Ibid., p. 326.12 WELLS, H. G. The Outline of History. Nova york: Macmillan, 1921, p. 662-665.

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eterna em janeiro de 1377. Foi curta a sua estada em Roma, pois Gregório morreu em março de 1378.

A Igreja se tornara dependente do sistema financeiro desenvolvido durante o exílio em Avinhão, centro comercial da França, onde o próprio papa, bem como os lideres da igreja, tinham inúmeras transações comerciais. Apesar de reconhecer a necessidade de reforma, a hierarquia resistia a ela fortemente. Se o papa a tentasse, os prelados resistiriam e a igreja estaria dividida como se fosse pestilência de hereges.

Com a morte de Gregório XI em 1378, foi eleito o italiano Bartolomeo Prignano, arcebispo de Bari, que se tornou o papa Urbano VI. Totalmente despreparado para o trono papal, Urbano foi transformado em implacável fla-gelo da simonia – menos movido por zelo religioso do que por simples ódio e inveja de privilégios. Repreendia publicamente os cardeais por se ausentarem, viverem vidas de luxúria e lascívia, e aceitarem dinheiro e outros favores das fontes seculares. Proibiu vender ou obter benefícios e ordenou ao tesoureiro papal que não lhes pagasse a metade do dinheiro dos benefícios usuais e, sim, utilizasse esse dinheiro para a restauração das igrejas de Roma. Tratava-os sem tato ou dignidade, seu rosto ficando roxo e a voz rouca de fúria, gritando invectivas de baixo calão e dizendo “Cala a boca” aos mais antigos cardeais. Estes, que o haviam eleito com a esperança de continuar o próprio domínio corrupto e poderoso, agora procuravam removê-lo.

A reação de Catarina ante a impiedade fez com que ela exclamasse:

Infelizes homens! Vós que vos nutris no seio da Igreja, como flores de seu jardim, para exalar o doce perfume, sendo pilares do Vigário de Cristo... lâmpadas para iluminar o mundo e difundir a fé... vós que fostes anjos sobre a terra, virastes para o caminho do diabo... o veneno do egoísmo destrói o mundo!

Como ser útil à Igreja e ao mundo? Catarina acreditava que: (a) Não se devia confiar nas ações e penitências externas, mas sim no amor e na contri-ção, na força infinita da graça e no “infinito desejo que ela suscita”. (b) Tinha consciência de que todo pecado e toda virtude tem uma dimensão pessoal e uma dimensão comunitária, social. Visam a Deus e ao próximo, à Igreja e ao mundo. (c) É preciso viver no conhecimento de si e de Deus, na humildade e caridade, na discrição que é a virtude do verdadeiro discernimento do bem a fazer aqui e agora.13

3. analfabeta e escritora genialDe 1370-1374 cresceram a reputação e influência de Catarina. Ela fez

muitos discípulos, desenvolvendo uma extensa correspondência que a tornou

13 RAIMUNDO DE CáPUA, Biografia de Catarina de Sena, p. 53-54.

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conhecida como pacificadora. Sua correspondência era feita com o auxílio de diversos amanuenses, pois ela só aprendeu a escrever – e atribuiu isso a um milagre – perto do final de sua vida. Outra versão da história diz que foi ensinada a ler aos 20 anos de idade por uma irmã dominicana de nobre estirpe. Quanto mais Catarina avançava na mística, conforme diz Carlos Josaphat, tanto mais se fazia presente na política, ditando diretivas para o papa e para os chefes de diversas cidades, reinos e principados.

Suas cartas transmitem um profundo amor a Deus e ao próximo, e sábia perspicácia de mente. São conhecidas 381 cartas, sendo dentre elas 23 escri-tas a papas, 13 a reis e rainhas e 38 a diversos governantes, bem como 16 a membros de sua família. Por mais respeitosa que fosse, Catarina não poupava palavras quanto aos erros daqueles que desejava salvar.

4. êxtases, misticismo e oraçõesSeu estilo incomum de vida e seus constantes êxtases provocaram muitas

suspeitas. Teve voz insistente e seguidores ardentes, sendo reverenciada pela experiência desses êxtases e por dizer ter recebido os stigmata das cinco fe-ridas de Cristo sobre as mãos, os pés e o coração (visíveis somente para ela).

A visão católica da Igreja como noiva de Cristo é contrária à visão bíblica protestante: ela não enxerga o sacerdócio universal de todos os crentes, nem o leigo como parte da Igreja, e sim, somente as mulheres que juraram celibato – freiras, monjas e mantelatas ou beguinas – próximas ao clero (que são apenas os sacerdotes e frades). Mulheres santas e separadas, preferivelmente virgens (se bem que havia viúvas ou mulheres que abdicaram de vida de casada) seriam as únicas noivas de Cristo.

Catarina afirmava que Cristo confirmou o seu noivado:

“não com um anel de prata, mas com um anel de sua própria santa carne, tirada quando ele foi circuncidado como infante”. Jesus a tomou como noiva numa cerimônia oficiada por sua santa Mãe, assistida por São João, São Paulo e São Domingos, sendo o rei Davi o instrumentista que tocou a música da harpa.14

Não obstante as viagens fantásticas indicadas por histórias como esta, Catarina teve algumas percepções sábias quanto às implicações de ser noiva/esposa de Cristo: coração largo por pensamentos e imaginações santas e ora-ção, estreito para com as coisas da terra. Na sua carta a Nanna, uma sobrinha que entrara no convento, escreveu:

Para ser noiva de Cristo é necessário possuir lâmpada, azeite e luz. A lâmpada é nosso coração... largo em cima, por pensamentos e imaginações santas e

14 TUCHMAN, A Distant Mirror, p. 324.

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oração contínua. Abaixo, a lâmpada é estreita para com as coisas terrenas – não as amando ou desejando-as com extravagância, mas sempre grata a Deus por tudo que ele provê. Essa lâmpada não serviria se não tivesse o azeite, a doce virtude da humildade e paciência, tendo verdadeiro conhecimento próprio, sabendo de nossas fraquezas e permanecendo a memória no conhecimento da bondade de Deus...15

Questionamos a veracidade dos êxtases de Catarina, mas não podemos negar seu lado prático e consciente de intervir na política e vida social vigente, de modo a trazer algum senso de realidade de vida cristã e salvar o mundo conturbado em que vivia.

Catarina se colocou em pé de igualdade com as humildes freiras contem-plativas, ao mesmo tempo em que se provava mulher de grande dinamismo. Ambas as experiências estavam relacionadas a algo mais profundo: sua alma tinha sede do infinito. Bem sabia que nem em obras nem em êxtase ascético, mas tão somente no “desejo santo”, na vida de aspiração incessante coram Deo, é que seu coração era completamente quebrantado, até o dia em que declarou: “Ó Deus, recebei o sacrifício de minha vida neste corpo místico da Santa igreja. Nada tenho para dar, salvo o que vós me destes. Tomai, portanto, esse meu coração, e imprimi-o sobre a face de vossa Esposa”.16 Morreu “de coração quebrado”, aos 33 anos.

conclusãoCatarina intervém, denuncia, suplica e exige em nome do evangelho,

apelando sempre para o “sangue de Cristo”.17 Tem consciência de sua missão reformadora e da realização mediante os “seus” – aqueles “que o Pai lhe deu”, em clara referência à expressão usada por Jesus em João 17.

Uma afirmação constante de Catarina era “Sê homem!”, que dizia ao papa, a monges e freiras, a parentes e a políticos diversos. A “varonilidade de Cristo” era seu desejo – e tal expressão não estava ligada a qualquer ênfase de gênero masculino (ela mesma queria portar-se “varonilmente”), e sim à condição “de ser humano de caráter, verdade e confiabilidade”. Assim foi que Catarina escreveu a Urbano VI em 1380:

Portai-vos varonilmente para mim, no santo temor de Deus. Sede totalmente exemplar em palavras, hábitos e ações. Que tudo seja visto claramente à luz de Deus e dos homens, como luz colocada no castiçal da Santa Igreja, para a qual todos os povos cristãos observam e devem olhar.

15 CATARINA DE SIENA, Letter to Nanna, niece in Florence (loc. 669).16 CATARINA DE SENA, Orações, p. 99.17 JOSAPHAT, As santas doutoras, p. 39.

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O desânimo entre os clérigos produziria na próxima geração o grande “herege” John Wycliffe e na seguinte Jan Hus,18 até que, um século depois, outro dominicano sairia do “aprisco de lobos romanos”, promulgando e sendo o instrumento de uma reforma total em bases verdadeiras – Martinho Lutero.

Teria sido diferente caso Catarina fosse homem? Parece que sua “fragi-lidade feminina” era um elemento a seu favor, pois

Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes, e Deus escolheu as coisas humildes do mundo e as desprezadas e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são, a fim de que ninguém se vanglorie na presença de Deus (1Co 1.27-29).

A constante tradição bíblica mostra Deus escolhendo os fracos para confundir os fortes, e cada [mulher assim escolhida por Deus] enuncia sua convicção de que primeiro importa obedecer a Deus do que os homens [At 5.20]. A substância da experiência mística dessa mulher se concentra numa vida de amor a Deus e compaixão pelo ser humano.19

Se pertencesse ao gênero masculino, talvez ela não tivesse desenvolvido a atitude maternal demonstrada tanto aos seus discípulos na vida restrita de Siena quanto nos interesses públicos dos poderosos da terra. Catarina via ambas essas escolas como importantes, por serem escolas de caráter designadas por Deus. Cumpriu fielmente sua “missão de mãe” (1Tm 2.15). Mesmo que tal atitude fosse possível a homens de Deus (Paulo se refere aos seus filhos espirituais como “meus filhos por quem de novo sofro as dores de parto, até ser Cristo formado em vós” – Gl 4.19), isso não era cultural ou socialmente viável aos homens do século 14.

O conteúdo filosófico e o argumento da obra de Catarina eram preocu-pações tipicamente excluídas pelo modelo dominante masculino da filosofia moral: cuidados, emoção, relacionamentos e o ser relacional contextualizado. O mundo e a igreja – que, em vez de influenciar o mundo para o bem, estava vendida ao príncipe do mundo – não eram paradigmas do Sumo Bem. Catarina foi aceita no século 14 como uma Débora do tempo dos juízes de Israel, que teve de sacudir Baraque de sua letargia e timidez (Juízes 4 e 5), ou Ester, numa corte de ímpios (“quem sabe se para conjetura como esta é que foste elevada a rainha?” – Et 4.14). A “não rainha” Catarina foi respeitada como realeza pelo mundo de sua época. O fato de ela ser mulher dava ânimo aos que se sentiam enfraquecidos e desarmava os que queriam se impor. Edmund Gardner exprime bem a impressão que temos dessa vida singular:

18 TUCHMAN, A Distant Mirror, p. 328.19 MALONE, Women and Christianity, v. II, p. 101.

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A Catarina foram dados dons mais raros do que a apaixonada fome e sede de justiça, um discernimento de espírito e intuição tão veloz e infalível que os homens achavam-na milagrosa... personalidade tão irresistível que homem nem mulher conseguia resisti-la. Possuía uma sabedoria simples, não ensinada, que confundia as artes e sutilezas do mundo, e com essas, uma fala tão dourada, tão prenhe de eloquência... que suas palavras, quer escritas, quer faladas, faziam os corações arder quando vinham as suas mensagens.20

Não há dúvida de que em Catarina estamos diante de um dos gênios da era medieval, que teve a habilidade de despertar a indolência de Gregório XI e sacudir a imponência de Urbano21 com uma cartinha para destacar a moral da história:

Mitigai um pouco, por amor de Cristo crucificado, esses impulsos repenti-nos que a natureza força sobre vós. Em santa virtude, jogai fora a natureza a fim de torná-la sobrenaturalmente grande... estabelecei varonilmente vosso coração...22

Apesar de seu ideal de perfeição e santidade desde menina, Catarina co-nhecia a si mesma, seu pecado, sua miséria – sabendo que, não fosse a graça e misericórdia divina, ela teria os mesmos pecados, ou piores, que aqueles de seu tempo. Sua igreja era cristã – mas apostatava por desconhecer as Es-crituras e acrescentar a elas as tradições e os ensinos humanos. Catarina cria piamente nos ensinos clássicos da igreja romana, e daí muitos de seus con-ceitos eram permeados de doutrinas que os protestantes consideram espúrias, principalmente a ênfase na eucaristia como repetição constante do sacrifício de Cristo, ao contrário do que ensina a carta aos Hebreus; no papa como vigário de Cristo na terra desde São Pedro e no acréscimo de obras para “merecer a graça”, contrariando o que ensina Efésios 2. Iriam se passar quase 200 anos antes que uma reforma verdadeira da igreja fosse realizada. Mas ela se dispôs “a começar em mim”. O estudo dessa santa da igreja romana – cuja ética não apenas conceitual, mas extremamente prática, influiu em todos os aspectos da vida – deverá provocar em mulheres e homens cristãos reformados de nossa era uma disposição santa de pensar segundo Deus pensa, para agir conforme Deus quer.

20 GARDNER, Edmund G. Saint Catherine of Sienna. Hibbert Journal, p. 577.21 Com um presente, uma alegoria em forma de laranjas amargas, açucaradas por dentro para

disfarçar o amargor, folheadas a ouro – belíssimas, mas intragáveis – confeccionadas pelas mãos da própria Catarina.

22 Carta a Urbano VI. In: Letters of Catherine Benincasa, Kindle books on line, p. 568.

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abstractCatherine of Siena’s outstanding life and work show how a simple, pious

woman became an ambassador, counselor, and doctor of the church as she attempted to influence and reform a corrupt ecclesiastical structure, as well as a venal and devious political system, from the inside out. She influenced popes, prelates, women, friars and nuns, kings and vassals in medieval Europe. Remaining inside the Roman church, she recognized some of its heresies and sought a repentant faith from those in power. She was the woman who made the strongest impact on her time and context, out of love for “the blood of Christ”.

KeywordsCatherine of Siena; Catholic Church; Passion for Christ; Manliness;

Fellowship; Calling; Mother.

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a EnganoSa proSpEridadE doS ímpioS à luz do Salmo 10: uma rEflExão dEvocional

Hermisten Maia Pereira da Costa*

resumoConsiderando o aparente sucesso do ímpio em seus atos de blasfêmia,

arrogância, soberba e imoralidade, o salmista, numa atitude precipitada, sente-se inseguro em relação a Deus e aos acontecimentos que presencia. Partindo da conclusão madura do salmista, o artigo analisa como a ótica da fé é funda-mental para crer em Deus e continuar crendo apesar de nossa visão imediata e precipitada da situação que nos circunda.

palavras-chaveSalmo 10; Impiedade; Ateísmo; Justiça de Deus; Paciência; Fé.

introduçãoConforme vimos em outro artigo,1 todo conhecimento parte de um pré-

-conhecimento que nos é fornecido por nossa condição ontologicamente finita e pelas circunstâncias temporais, geográficas, intelectuais e sociais dentro das quais construímos as nossas estruturas de conhecimento. Só existe possibili-dade de conhecimento porque, entre outras coisas, antes de nós percebermos, há um objeto referente que, por existir, possibilita o conhecer. Deste modo, o ser antecede ao sujeito que conhece e, portanto, ao próprio conhecer. Somente em Deus há a perfeita harmonia e coexistência entre o ser e o conhecer. Em nossa finitude, a essência precede à experiência. E esta modela a nossa visão

* Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e do Seminário Rev. José Manoel da Con-ceição, em São Paulo. Integra a equipe pastoral da Primeira Igreja Presbiteriana em São Bernardo do Campo (SP).

1 COSTA, Hermisten M. P. A religião entre os gregos e o ateísmo prático à luz do Salmo 14. Fides Reformata XVI-2 (2011), p. 119-149.

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do mundo. Fazer uma inversão aqui seria algo avassalador para a nossa epis-temologia e, consequentemente para a nossa práxis.

Somos em muitos sentidos parte de um produto cultural, filhos de uma geração com uma série de valores que determinam em grande parte as nossas pré-compreensões. Valendo-se de uma figura de Aristóteles (384-322 a.C.), Mohler faz uma aplicação interessante e elucidativa:

A última criatura a quem você deveria perguntar como é se sentir molhado é a um peixe, porque ele não faz ideia de que esteja molhado. Uma vez que nunca esteve seco, ele não tem um ponto de referência. Assim somos nós, quando se trata de cultura. Somos como peixes no sentido de que não temos sequer a capacidade de reconhecer onde a nossa cultura nos influencia. Desde a época em que estávamos no berço, a cultura tem formado nossas esperan-ças, perspectivas, sistemas de significado e interpretação, e até mesmo nossos instrumentos intelectuais.2

Portanto, a realidade se mostra a nós com contornos próprios delineados não simplesmente pelo que ela é, mas, também, pelos nossos olhos que a en-xergam e pinçam fragmentos desta realidade conferindo-lhes novas configu-rações com cores mais ou menos vivas, atribuindo-lhes valores muitas vezes bastante distintos dos reais.

O Salmo 10 reflete a situação singular de uma sociedade onde o mal parece imperar: o descaso para com Deus, o desprezo para com a lei, a difamação, exploração, perseguição e destruição são moedas correntes.3 Temos aqui uma descrição sumária da anatomia do coração e da mente humana sem Deus e algumas de suas implicações.

Neste salmo nos deparamos com a perspectiva de um homem fiel, te-mente a Deus, mas que se angustiava com a aparente prosperidade do ímpio e os seus atos de extrema maldade. A situação tem dois aspectos confluentes que intensificavam a sua dor. À sua vista, o ímpio não enfrentava problemas; tudo lhe corria bem. Para agravar a situação, até Deus, de quem se espera uma atitude justa, parecia distante no momento em que o salmista mais sentia necessidade de sua presença provedora.

Isto é expresso no primeiro verso: “Por que, Senhor, te conservas lon-ge? E te escondes nas horas de tribulação?” (Sl 10.1). Vejamos, então, alguns aspectos desta descrição.

2 MOHLER JR., Albert. Pregar com a cultura em mente. In: DEVER, Mark (Ed.). A pregação da cruz. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 66. Lewis se vale parcialmente desta figura, argumentando: “Nós nos sentimos molhados, se cairmos na água, porque não somos animais aquáticos: um peixe não se sente molhado”. LEWIS, C. S. A essência do cristianismo autêntico. São Paulo: Aliança Bíblica Universitária, (s.d.), p. 20-21.

3 “Esta descrição representa, como num espelho, uma viva imagem de um estado amplamente corrupto e caótico da sociedade”. CALVINO, João. O Livro dos Salmos. São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, p. 204 (Sl 10).

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1. a estrutura de pensamento e comportamento do ímpio

À luz deste salmo, podemos dizer que toda a estrutura de pensamento do ímpio parte de uma perspectiva errada a respeito de Deus. Uma falsa teologia nos conduz, invariavelmente, a uma visão defeituosa da realidade, a uma ética desfocada e, portanto, viciada. Analisemos alguns desses aspectos conforme o Salmo 10 nos mostra:

1.1 Em relação a Deus

1.1.1 Amaldiçoa e blasfema contra Deus

“Pois o perverso se gloria da cobiça de sua alma, o avarento maldiz o Senhor e blasfema (nã’ats) contra ele” (Sl 10.3).

O blasfemar (nã’ats) contra Deus aqui é o mesmo que desprezar, rejeitar, abominar conforme aparece no verso 13. O ímpio, quando é bem-sucedido em seus maus caminhos, tende a adotar a postura de blasfemar contra Deus, desprezá-lo em suas palavras e comportamento, maldizendo o nome de Deus, ou seja, a sua natureza santa e justa (Sl 74.10,18).4 O blasfemador toma a longani-midade de Deus como motivo para suas zombarias e leviandades. Ele se gloria em seus desejos pecaminosos e na capacidade de concretizá-los. “Seguro pelos sucessos externos, silencia prontamente a voz da consciência”.5

1.1.2 Ateísmo funcional irresponsável e propalado

“O perverso (rãshã’), na sua soberba, não investiga (dârash); que não há Deus são todas as suas cogitações (mezimmah)” (Sl 10.4).

Este homem perverso (rãshã’) (versos 3, 4 e 15) é também chamado de ímpio (2,13) e malvado (15). Aqui temos um ateísmo funcional ou prático.6 O ímpio descrito não está interessado em investigar a questão da existência ou

4 “Até quando, ó Deus, o adversário nos afrontará? Acaso, blasfemará (nã’ats) o inimigo inces-santemente o teu nome?” (Sl 74.10). “Lembra-te disto: o inimigo tem ultrajado ao Senhor, e um povo insensato tem blasfemado (nã’ats) o teu nome” (Sl 74.18).

5 WEISER, Artur. Os Salmos. São Paulo: Paulus, 1994, p. 107. De modo semelhante, Calvino escreve: “Os ímpios e perversos, se vendo intoxicados com sua prosperidade, lançavam de si todo o temor de Deus”. CALVINO, O Livro dos Salmos, v. 1, p. 204 (Sl 10).

6 “Um ateu teórico é alguém que nega com consciência a existência de um ser supremo, ao passo que um ateu prático pode até acreditar que existe um ser supremo, mas vive como se não existisse nenhum Deus”. POJMAN, Louis P. Ateísmo. In: AUDI, Robert (Dir.). Dicionário de Filosofia de Cambridge. São Paulo: Paulus, 2006, p. 54). Detalharemos melhor este ponto ao estudar o Salmo 14.

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não de Deus. Falta-lhe humildade e bom senso para isso. Ele, na realidade, vive conforme a sua fé: Deus não existe. Esta é a sua filosofia existencial. Não nos esqueçamos de que tanto o teísmo como o ateísmo são uma questão de fé!7 Para as questões éticas, o perigo jaz no ateísmo funcional, não neces-sariamente no teórico.

Vejam então como o ateísmo influencia diretamente a nossa ética. O ateu prático confesso conforme é aqui descrito passa a não ter compromisso com nada, exceto com seus interesses. Ele não se importa com nada nem com ninguém. Não há valores transcendentes que o referenciem. Não há Deus. Não há lei.8 Por isso, ele só se importa com os seus interesses. Todas as suas “co-gitações” (mezimmah) (verso 4) estão fundamentadas e são realizadas partido da impunidade. Sente-se livre e à vontade para planejar o mal, tramar, cometer impiedade, praticar perversidade, ser mau. Não há lei ou ele se julga superior a todas as leis. As leis são para os outros, não para ele.

Como o homem foi criado para se relacionar com Deus, o ateísmo afeta a nossa estrutura ontológica,9 a nossa natureza, interferindo, portanto, dramatica-mente em nossa perspectiva da realidade, na estruturação de nosso pensamento, sentimentos e de todas as coisas. “Quando o Criador é excluído, o nosso próprio pensamento se torna ‘nulo’”.10

Não há neutralidade em relação a Deus, porque de fato não há autonomia:

7 “O ateísmo é uma questão de fé tanto quanto o cristianismo”. MCGRATH, Alister. O Deus des-conhecido: em busca da realização espiritual. São Paulo: Loyola, 2001, p. 23. “O cristão que acredita em Deus, então, o faz por fé. Mas o ateu precisa fazer o mesmo. Ele crê que Deus não existe. Isso mesmo: crê. Como não consegue provar que não existe Deus, o ateísmo também é um tipo de fé”. MCGRATH, Alister. Como lidar com a dúvida sobre Deus e sobre você mesmo. Viçosa, MG: Ultimato, 2008, p. 36. “Pode-se negar que a existência de Deus seja demonstrável. Não se pode demonstrar que Deus não existe”. LACOSTE, Jean-yves. Ateísmo. In: LACOSTE, Jean-yves (Dir.). Dicionário crítico de teologia. São Paulo: Paulinas/Loyola, 2004, p. 204. Ver: CLARK, Gordon H. Em defesa da teologia. Brasília, DF: Monergismo, 2010, p. 29ss.; CRAIGIE, Peter C. Psalms 1-50. Word Biblical Commentary, v. 19. 2. ed. Waco: Thomas Nelson, 2004, p. 126-127 (Sl 10).

8 “... visto sua própria concupiscência ser sua lei, ele imagina que lhe é lícito fazer tudo quanto lhe apeteça”. CALVINO, O Livro dos Salmos, v. 1, p. 210 (Sl 10.4).

9 “Deixar de relacionar-se com Deus é deixar de ser completamente humano. Ser realizado é ser plenificado por Deus. Nada transitório pode preencher esta necessidade. Nada que não seja o próprio Deus pode esperar tomar o lugar de Deus. Assim mesmo, por causa da decadência da natureza humana, há hoje a tendência natural de se tentar fazer com que outras coisas preencham essa necessidade. O pecado nos afasta de Deus, e nos leva a pôr outras coisas em seu lugar. Essas vêm para substituir Deus. Elas, porém, não satisfazem. E, como a criança que experimenta e expressa insatisfação quando o pino quadrado não se encaixa no orifício redondo, passamos a experimentar um sentimento de insatisfação. De alguma forma, permanece em nós a sensação de necessidade de algo indefinível de que a natureza humana nada sabe, só sabe que não o possui”. MCGRATH, Alister E. Paixão pela verdade: a coerência intelectual do evangelicalismo. São Paulo: Shedd, 2007, p. 68.

10 VEITH JR., Gene Edward. De todo o teu entendimento. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 73.

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Seres humanos jamais são neutros em relação a Deus. Adoramos a Deus como Criador e Senhor ou nos afastamos de Deus. Porque o nosso coração é dirigido por Deus ou contra Deus, o pensamento teórico jamais é puro ou autônomo como muitos gostariam de pensar.11

O não investigar (dârash) (Sl 10.4) significa não se importar, não buscar a Deus. O ímpio acredita não ter elementos suficientes para crer em Deus; con-tudo, paradoxalmente, sustenta ter razões suficientes para negá-lo. Ou, como afirmou Eco: “... não vejo como é possível não acreditar em Deus e considerar que não se pode comprovar Sua existência, e depois a acreditar firmemente na inexistência de Deus, pensando poder prová-Lo”.12 Deste modo, o ímpio está satisfeito com a sua conclusão gratuita e, arrogantemente, propala isso com palavras e atitudes, sendo a sua ideologia reforçada pela sua evidente pros-peridade e impunidade que enchem os olhos dos menos avisados e também precipitados em suas conclusões.

O não investigar é um mal em si mesmo. Um bom princípio é examinar o que se nos apresenta como realidade, não nos deixando seduzir e guiar por nossas inclinações ou pelas tendências massificantes. Em geral, quando nos faltam critérios objetivos, apelamos para o gosto como critério definitivo e solitário. Assim, somos conduzidos simplesmente por princípios que nos agradam sem verificar a sua veracidade. O fim disso pode ser trágico. Assim sendo, por mais autoeloquentes que possam se configurar aspectos da chamada realidade, precisamos examiná-los antes de os tomarmos como pressupostos para a aceitação de outras declarações também reivindicatórias. Quando nos omitimos deste exame, deste juízo crítico, sem perceber estamos contribuindo para que os ensinamentos hoje aceitos inconsistentemente amanhã se tornem pressupostos que determinarão as nossas escolhas e avaliações.13

As hipóteses de hoje poderão se tornar nas teorias de amanhã e as futu-ras leis do pensamento e da moral. Neste caso, já estarão acima de qualquer suspeita e discussão: tornaram-se verdade. A ciência é, com frequência, um refinamento das observações cotidianas.14

Como escreveu Pearcey: “A questão importante é o que aceitamos como premissas básicas, pois são elas que moldam tudo o que vem depois”.15 Há o

11 NASH, Ronald H. Questões últimas da vida: uma introdução à filosofia. São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 22.

12 ECO, Umberto. In: ECO, Umberto; MARTINI, Carlo Maria. Em que crêem os que não crêem? Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 85.

13 Ver: LEWIS, C. S. A abolição do homem. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 5.14 Creio ser interessante ler o texto: JONES, Taylor B. Por que uma visão bíblica da ciência? In:

MACARTHUR, John (Ed. ger.). Pense biblicamente!: recuperando a visão cristã do mundo. São Paulo: Hagnos, 2005, especialmente p. 337-363.

15 PEARCEy, Nancy. Verdade absoluta: libertando o cristianismo de seu cativeiro cultural. Rio de Janeiro: CPAD, 2006, p. 44.

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perigo de, sem nos darmos conta, formar a nossa cosmovisão com base em um mosaico de peças promíscuas, contraditórias e excludentes.

1.1.3 Deísmo imoral

“Diz ele, no seu íntimo: Deus se esqueceu, virou o rosto e não verá isto nunca. (...) Por que razão despreza o ímpio a Deus, dizendo no seu íntimo que Deus não se importa (dârash)?” (Sl 10.11,13).

Curiosamente a palavra que é usada para falar do ímpio que não investiga (Sl 10.4) é a mesma que o ímpio usa para dizer que Deus também não se im-porta conosco (Sl 10.13). Deste modo, temos um ateu que não se importa com Deus e acredita que se há Deus ele não se importa conosco. Este homem dá uma espécie de troco ao Deus por ele concebido com vistas ao seu aniquilamento: ele não liga para mim, também eu não o levo em consideração. Temos aqui a concepção de um Deus apático, indiferente ou um Deus distante,16 conforme viria a difundir o deísmo.17

O deísmo é uma denominação genérica das doutrinas filosófico-religiosas que surgiram em meados do século 17, as quais, contrapondo-se ao “ateísmo”, afirmavam a existência de Deus; entretanto, negavam a revelação especial, os milagres e a providência.18 Esse Deus é concebido preliminarmente como a causa motora do universo. Uma das ideias predominantes era a de que um Deus transcendente criou o mundo dotando-o de leis próprias e retirou-se para o seu ócio celestial, deixando o mundo trabalhar conforme as leis predeterminadas. Uma figura comum ao deísmo do século 18 era a do relógio de precisão,19 que seria o equivalente ao universo que trabalha sozinho depois de se lhe dar

16 “Imaginavam que ele estava confinado no céu, onde se entregava ao ócio sem sentir a menor preocupação com o que se faz aqui em baixo”. CALVINO, v. 1, p. 214 (Sl 10.5-6).

17 Palavra que parece ter sido usada pela primeira vez no século 16 pelos socinianos, objetivando distinguirem-se dos ateus. Cf. Deísmo. In: LALANDE, A. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 236. É neste sentido que Pierre Viret (1511-1571), teólogo calvinista, amigo e correspondente de Calvino, usou a expressão em 1564: “Há vários que confessam que acredi-tam que existe um Deus e uma Divindade, como os Turcos e os Judeus. Ouvi dizer que há nesse bando aqueles que se chamam Deístas, uma palavra totalmente nova que eles querem opor ao Ateísmo”. VIRET, P. Instruction Chrétienne. Apud: Deísmo. In: LALANDE, Vocabulário técnico e crítico da filosofia, p. 236. A respeito do emprego da palavra ateísmo, ver também: MOHLER JR., Albert. Ateísmo remix: um confronto cristão aos novos ateístas. São José dos Campos, SP: Fiel, 2009, p. 21-22.

18 Calvino fala de uma crença semelhante sustentada pelos epicureus e outros sistemas da antigui-dade: “Silencio quanto aos Epicureus, peste de que o mundo tem sempre estado cheio, que sonham a um Deus ocioso e inoperante, e outros em nada mais sãos, que outrora imaginaram que Deus assim governasse acima da região média do ar, que deixasse as partes inferiores à sorte”. CALVINO, As Institutas, I.16.4.

19 Esta figura fora usada no século 14 por Nicolaus de Oresmes. Cf. CHARLEy, J. W. Deísmo. In: NELSON, Wilton M. (Ed. Ger.). Diccionario de Historia de la Iglesia. Miami, Flórida: Editorial Caribe, 1989, p. 332.

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corda. A conclusão tirada pelos deístas é que as leis que regem o universo são imutáveis. O deísmo consequentemente atribui à criação a capacidade de se sustentar e se governar por si mesma.20 Temos aqui um naturalismo autônomo.

Desta forma, Deus é um proprietário ausente, que não age diretamente sobre a criação. A única relação existente entre o Criador e a criação se dá por meio de suas leis deixadas, as quais regem o universo de forma determinista.21 Deus seria regente do universo “apenas de nome”.22

1.1.4 Senso de impunidade exacerbado

“Pois diz lá no seu íntimo: Jamais serei abalado (mot); de geração em geração, nenhum mal me sobrevirá” (Sl 10.6).

O ímpio crê firmemente em seu coração que poderá continuar fazendo o mal enquanto quiser; mal nenhum em tempo algum lhe sobrevirá; ele ja-mais vacilará. “Os ímpios com frequência vomitam linguagem soberba a esse respeito”.23 O senso de impunidade é um estímulo à sofisticação da crueldade.24

1.2 Em relação a si mesmo

1.2.1 Arrogante

“Com arrogância (rãshã’), os ímpios perseguem o pobre....” (Sl 10.2).

O arrogante (rãshã’) aqui descrito é o mesmo ímpio ilustrado no Salmo 1.6;25 iníquo (Sl 5.4), perverso (Sl 9.17; 10.3,4; 11.6; 12.8; 17.9). O arrogante é capaz de qualquer crueldade para evidenciar aquilo que julga ser verdade: a sua superioridade.26

O arrogante confia tanto em sua capacidade que não percebe o cerco e emboscada que prepara para si mesmo. Se há uma coisa que o arrogante não tem é senso de perigo. Demovê-lo de sua excessiva confiança em si mesmo é algo extremamente difícil; ele sempre acha que tem uma solução fruto do brilhan-tismo que lhe é próprio. Por isso, termina por ficar preso no próprio produto de

20 Cf. SHEDD, William G. T. Dogmatic theology. 2. ed. Nashville: Thomas Nelson, © 1980, v. I, p. 528.

21 Ver: Destino. In: Voltaire, Dicionário filosófico. Os Pensadores XXIII. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 154-155; GEISLER, N. L.; FEINBERG, P. D. Introdução à filosofia. São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 218ss.; WAINWRIGHT, William J. Deísmo. In: AUDI, Dicionário de filosofia de Cambridge, p. 212.

22 CALVINO, As Institutas, I.16.4.23 CALVINO, O Livro dos Salmos, v. 1, p. 215 (Sl 10.5-6).24 “A impunidade é mãe da libertinagem”. CALVINO, João. Efésios. São Paulo: Paracletos, 1998,

p. 186 (Ef 6.9).25 Do mesmo modo Sl 3.7; 7.10; 9.5; 26.5; 28.3, etc.26 Ver: CALVINO, O Livro dos Salmos, v. 1, p. 207 (Sl 1.2).

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sua arrogância: “Faz-se conhecido o Senhor, pelo juízo que executa; enlaçado está o ímpio (rãshã’) nas obras de suas próprias mãos” (Sl 9.16).

1.2.2 Soberbo

“O perverso, na sua soberba (gobah), não investiga; que não há Deus são todas as suas cogitações” (Sl 10.4).

A expressão descreve alguém que tem um espírito de superioridade, sente-se mais alto do que os demais. Ele se julga melhor e mais capaz do que todos, daí a confiança em seus planos, estratégias e métodos para ilu-dir, humilhar, convencer e destruir.27 Ele sabe, está satisfeito com isso. Não precisa investigar coisa alguma. Este, por tais atos, é abominável ao Senhor: “Abominável é ao Senhor todo arrogante (gobah) de coração; é evidente que não ficará impune” (Pv 16.5).

1.2.3 Autossuficiente

“Pois diz lá no seu íntimo: Jamais serei abalado (mot); de geração em geração, nenhum mal me sobrevirá” (Sl 10.6).

Ele se sente seguro na sua confortável e aparentemente inabalável situação. Aqui existe algo de extrema relevância que revela a arrogância do ímpio. Analisemos isso:

Nos Salmos encontramos diversas expressões de confiança de servos de Deus que creem também que não serão abalados. Contudo, estes falam desta certeza porque confiam em Deus e seguem a sua Palavra. O Senhor os fortalece e firma, não permitindo que vacilem (Sl 16.8; 17.5; 21.7; 62.2,6; 66.9; 94.18; 121.3; 125.1).28 Aqui, diferentemente, o soberbo tem uma confiança puramente naturalista. Ele por si só, analisando o curso da história sobre o qual crê ter todo o domínio, acredita que jamais será abalado.

Davi, no Salmo 30, em seu cântico de ação de graças a Deus, relembra a sua temporária e vã arrogância e como Deus o disciplinou atraindo-o para Si:

27 Ver: Sl 103.11 e 113.5, referindo-se a Deus. 28 “O Senhor, tenho-o sempre à minha presença; estando ele à minha direita, não serei abalado”

(Sl 16.8). “Os meus passos se afizeram às tuas veredas, os meus pés não resvalaram” (Sl 17.5). “O rei confia no Senhor e pela misericórdia do Altíssimo jamais vacilará” (Sl 21.7). “Só ele é a minha rocha, e a minha salvação, e o meu alto refúgio; não serei muito abalado. (...) Só ele é a minha rocha, e a mi-nha salvação, e o meu alto refúgio; não serei jamais abalado” (Sl 62.2,6). “O que preserva com vida a nossa alma e não permite que nos resvalem os pés” (Sl 66.9). “Quando eu digo: resvala-me o pé, a tua benignidade, Senhor, me sustém” (Sl 94.18). “Ele não permitirá que os teus pés vacilem; não dormitará aquele que te guarda” (Sl 121.3). “Os que confiam no Senhor são como o monte Sião, que não se abala, firme para sempre” (Sl 125.1).

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Porque não passa de um momento a sua ira; o seu favor dura a vida inteira. Ao anoitecer, pode vir o choro, mas a alegria vem pela manhã. Quanto a mim, dizia eu na minha prosperidade: jamais serei abalado (mot). Tu, Senhor, por teu favor fizeste permanecer forte a minha montanha; apenas voltaste o rosto, fiquei logo conturbado (Sl 30.5-7).

1.3 Em relação aos homens

1.3.1 Persegue os pobres e necessitados

“Com arrogância, os ímpios perseguem (dalaq)29 o pobre (‘aniy);30 sejam presas das tramas (mezimmah) (= plano, propósito, “teorias refinadas”) que urdiram. (...) Põe-se de tocaia nas vilas, trucida os inocentes nos lugares ocultos; seus olhos espreitam o desamparado. Está ele de em-boscada, como o leão na sua caverna; está de emboscada para enlaçar o pobre (‘aniy): apanha-o e, na sua rede, o enleia. Abaixa-se, rasteja; em seu poder, lhe caem os necessitados” (Sl 10.2,8-10).

O seu alvo principal são aqueles que não podem oferecer resistência, que não têm recursos, nem quem os defenda. O salmista emprega três figuras para descrever a violência feroz do ímpio que é incandescente em sua perseguição. Ele age como um ladrão e assassino de estrada (8), um leão (9) e um caçador (9). As três figuras envolvem o trabalho de preparação para o seu ataque.31 O verso 10 apresenta o desfecho deste ataque: “Abaixa-se, rasteja; em seu poder, lhe caem os necessitados” (Sl 10.10). No verso 11 vemos o seu raciocínio lógico construído a partir de seu ateísmo prático.32

1.3.2 Gloria-se em sua cobiça

“Pois o perverso se gloria (hãlal) da cobiça (ta’awãh) de sua alma, o avarento maldiz o Senhor e blasfema contra ele” (Sl 10.3).

Ele louva e se alegra com os seus próprios desejos e apetites pecaminosos; cultiva a satisfação em sentir o desejo de destruir, perseguir, humilhar, possuir. Alimenta-se com os seus próprios pecados.

29 A palavra tem também o sentido de inflamação (Sl 7.13), esquentar (Is 5.11), acender (o fogo) (Ez 24.10); incendiar (Os 1.18). No texto parece significar perseguir com astúcia, perseverança e intensa fúria (Gn 31.36; Lm 4.19). Calvino diz que “a soberba dos perversos, como o fogo, devora o pobre e aflito”. CALVINO, O Livro dos Salmos, v. 1, p. 208 (Sl 10.2).

30 ‘aniy (“necessitado”, “fraco”, “pobre”, “aflito”, “humilde”). Indica alguém que está indefeso, sujeito à opressão. Ver: COPPES, Leonard J. ‘Ãnâ. In: HARRIS, R. Laird et. al. (Eds.). Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1145-1146.

31 O detalhamento e a aplicação feita por Calvino destas figuras são bastante ilustrativos. Ver: CALVINO, O Livro dos Salmos, v. 1, p. 219-220 (Sl 10.8-9).

32 Ver: BOyCE, James M. Psalms: an expositional commentary. Grand Rapids, MI: Baker, 1994, v. 1, p. 86, (Sl 10).

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1.3.3 Ridiculariza

“São prósperos os seus caminhos em todo tempo; muito acima e longe dele estão os teus juízos; quanto aos seus adversários, ele a todos ridi-culiza (pûha)” (Sl 10.5).

Profere palavras mentirosas expondo-os ao ridículo; escarnece de todos os seus inimigos. O ato de ridicularizar faz parte de seu arsenal de mentiras. Difunde um testemunho falso a fim de expor ao ridículo o seu oponente. Es-palha falsas notícias; daí a ideia de sopro (Pv 19.5,9; 29.8). Temos aqui uma estratégia que visa diminuir e desmoralizar seus adversários. Deste modo, estes, independentemente de seus argumentos, já estarão derrotados à vista daqueles que simpatizaram com as calúnias do ímpio.

1.3.4 Amaldiçoa, engana e insulta

“A boca, ele a tem cheia de maldição, enganos (miremâh) e opressão; debaixo da língua, insulto e iniquidade” (Sl 10.7).

Ele amaldiçoa, engana (miremâh)33 e insulta.34 Usa dos artifícios da lin-guagem para ameaçar, enganar e humilhar o seu inimigo a quem visa destruir.

2. a percepção imediata do oprimidoO oprimido, vendo o que vê e como vê, abala-se em sua fé. Há aqui um

círculo vicioso: as evidências interferem em minha visão e, quanto mais mi-nha visão é distorcida, as configurações do real assumem papéis distintos que me fazem ver elementos que reforçam o que penso ter visto, apesar disto não corresponder à realidade dos fatos. Pior: corro o risco de ver apenas uma parte da realidade, esquecendo-me de Deus, do seu caráter e poder.

2.1 Em relação a Deus: distante e indiferente

“Por que, Senhor, te conservas longe? E te escondes nas horas de tribu-lação? (...) Levanta-te, Senhor! Ó Deus, ergue a mão! Não te esqueças dos pobres” (Sl 10.1,12).

Calvino chama a atenção para o fato de que “embora Davi se queixe de Deus conservar-se à distância, ele estava, não obstante, plenamente convicto de sua presença consigo; do contrário teria sido debalde tê-lo invocado para prover auxílio”.35

33 A palavra tem o sentido de fraudar (Sl 5.7; 17.1); agir com dolo (Sl 24.4; 34.13); malícia (Sl 36.3).34 Injuriar, oprimir (Sl 55.11; 72,14).35 CALVINO, O Livro dos Salmos, v. 1, p. 206 (Sl 10.1).

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Temos aqui, portanto, um sentimento ambíguo: Se por um lado cremos em Deus, por outro, temos a impressão de que ele se mantém indiferente, especialmente porque em nosso coração já idealizamos uma forma de ele agir contra os nossos adversários a qual não percebo acontecendo. Daí a angústia do salmista. Temos um caso paralelo no livro de Jó (21.7-16).36

2.2 Em relação ao soberbo Ele prospera, dando tudo certo em sua vida. A impressão que se tem é

que em todo o tempo tudo corre bem nas diversas esferas de sua vida. Ele maquina o mal, é incorreto em seus negócios, amaldiçoa, blasfema, persegue, oprime, mas não tem perigo; tudo dá certo (Sl 10.5). Ele, de fato, infunde terror naqueles que o conhecem (Sl 10.18).

3. conclusão do salmista

3.1 Quanto à natureza de Deus Aqui temos um ponto fundamental: como vemos a Deus? A nossa pers-

pectiva errada de Deus nos conduz a uma visão equivocada da vida, do sucesso e das aflições. Observe que não estou falando apenas circunstancialmente. O fato é que não temos alternativa. Somos essencialmente religiosos. Ou cremos em Deus, conhecendo-o, ainda que não exaustivamente, ou não cremos em Deus. Este é o grande divisor de águas de nossa existência e, por isso mesmo, de nossa visão de mundo e comportamento. Não estou dizendo que tudo se resolva aqui; antes, entendo que a partir deste ponto temos uma bifurcação que, conforme o caminho que vamos seguir, irá definir toda a nossa existência.

A partir do direcionamento que seguirmos, teremos que fazer inúmeras outras escolhas menores durante toda a nossa existência. Estas terão grande relevância em nossa vida; contudo, o grande abismo de separação foi estabe-lecido lá atrás.

O salmista crê em Deus. Portanto, o seu horizonte já está delineado. Den-tro desta compreensão, outras escolhas, outras compreensões serão elaboradas e concluídas, as quais serão profundamente importantes no seu refinamento teológico e existencial. Espero deixar isso mais claro no desenvolvimento deste ponto.

36 “Como é, pois, que vivem os perversos, envelhecem e ainda se tornam mais poderosos? Seus filhos se estabelecem na sua presença; e os seus descendentes, ante seus olhos. As suas casas têm paz, sem temor, e a vara de Deus não os fustiga. O seu touro gera e não falha, suas novilhas têm a cria e não abortam. Deixam correr suas crianças, como a um rebanho, e seus filhos saltam de alegria; cantam com tamboril e harpa e alegram-se ao som da flauta. Passam eles os seus dias em prosperidade e em paz descem à sepultura. E são estes os que disseram a Deus: Retira-te de nós! Não desejamos conhecer os teus caminhos. Que é o Todo-Poderoso, para que nós o sirvamos? E que nos aproveitará que lhe façamos orações? Vede, porém, que não provém deles a sua prosperidade; longe de mim o conselho dos perversos!” (Jó 21.7-16).

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3.1.1 Deus é Rei eterno

“O Senhor é rei eterno: da sua terra somem-se as nações” (Sl 10.16).

Deus tem todo o poder; tudo lhe pertence. A aparente prosperidade do ímpio está nas mãos de Deus, que governa todas as coisas eternamente. Quando Deus manifestar a sua justiça, não haverá nação, por mais poderosa que seja, que poderá resistir-lhe.

3.1.2 Deus é justo

“Para fazeres justiça ao órfão e ao oprimido, a fim de que o homem, que é da terra, já não infunda terror” (Sl 10.18).

Deus é justo mesmo que não vejamos a sua manifestação. Ele é justo em sua própria natureza. A nossa percepção não serve de critério seguro para avaliar todos os atos de Deus, no entanto, ele permanece sendo o que é.

3.2 Em relação aos atos de Deus

3.2.1 Deus defende os desvalidos

“Tu, porém, o tens visto, porque atentas aos trabalhos e à dor, para que os possas tomar em tuas mãos. A ti se entrega o desamparado; tu tens sido o defensor do órfão” (Sl 10.14).

Em sua precipitação o salmista falara de um Deus distante e indiferente.

Agora, olhando com mais cautela os fatos, ele tem de admitir que Deus não é indiferente nem está distante. Antes, ele tem observado toda esta situação e tem defendido o órfão e o desamparado. Sempre há o perigo de trazermos para nós a providência de Deus querendo, arrogantemente, ajuizar sobre o tempo e o modo de Deus agir. É de fato, um difícil, porém, necessário exercício de fé, aprender a confiar no cuidado de Deus e a descansar em seu soberano e amoroso cuidado.

3.2.2 Deus ouve as nossas orações

“Tens ouvido (shama), Senhor, o desejo dos humildes...” (Sl 10.17).

Ainda que sejamos tentados em nossa precipitação a achar que ele está distante ou muito ocupado, Deus sempre ouve com atenção as nossas súplicas. É o que demonstra Davi em outro Salmo: “Eu disse na minha pressa: estou

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excluído da tua presença. Não obstante, ouviste (shama) a minha súplice voz, quando clamei por teu socorro” (Sl 31.22).37

Deus nos ouve até mesmo quando estamos sofrendo devido à nossa desobediência. Ele é misericordioso: “Então, Jonas, do ventre do peixe, orou ao Senhor, seu Deus, e disse: Na minha angústia, clamei ao Senhor, e ele me respondeu; do ventre do abismo, gritei, e tu me ouviste (shama) a voz” (Jn 2.1-2).

Devemos aprender a confiar em Deus, expor-lhe em oração as nossas an-gústias38 e aguardar com fé a sua resposta: “De manhã, Senhor, ouves (shama) a minha voz; de manhã te apresento a minha oração e fico esperando” (Sl 5.3). Ele entende as nossas necessidades e nos responde em sua misericórdia.39 Não tenhamos a pretensão de estabelecer para Deus o caminho da justiça.

3.2.3 Deus fortalece o coração dos fiéis

“Tens ouvido, Senhor, o desejo dos humildes; tu lhes fortalecerás (kûn)40 o coração e lhes acudirás” (Sl 10.17).

Ao cultivarmos a certeza de que Deus nos ouve, Deus mesmo firma os nossos corações, o nosso centro vital, para que não sejamos levados pelas circunstâncias e precipitadamente pela aparência dos fatos. “É uma bênção singular a que Deus nos confere quando, em meio às tentações, Ele nutre nos-sos corações, não os deixando retroceder dele, nem buscando em outra fonte algum outro apoio e livramento”.41

Deus fortalece os nossos corações para nos firmar os passos: “Tirou-me de um poço de perdição, de um tremedal de lama; colocou-me os pés sobre uma rocha e me firmou (kûn) os passos” (Sl 40.2). “O Senhor firma (kûn) os passos do homem bom, e no seu caminho se compraz” (Sl 37.23).

“Firme (kûn) está o meu coração, ó Deus, o meu coração está firme (kûn); cantarei e entoarei louvores” (Sl 57.7). Quando nosso coração é fir-mado pelo Senhor nas Suas promessas nos dispomos a entoar-lhe louvores

37 “Apartai-vos de mim, todos os que praticais a iniquidade, porque o Senhor ouviu (shama) a voz do meu lamento; o Senhor ouviu (shama) a minha súplica; o Senhor acolhe a minha oração” (Sl 6.8-9).

38 “Na minha angústia, invoquei o Senhor, gritei por socorro ao meu Deus. Ele do seu templo ouviu (shama) a minha voz, e o meu clamor lhe penetrou os ouvidos” (Sl 18.6).

39 “Responde-me quando clamo, ó Deus da minha justiça; na angústia, me tens aliviado; tem mise-ricórdia de mim e ouve (shama) a minha oração” (Sl 4.1/Sl 4.3). “Pois não desprezou, nem abominou a dor do aflito, nem ocultou dele o rosto, mas o ouviu (shama), quando lhe gritou por socorro” (Sl 22.24). “Ouve (shama), Senhor, a minha voz; eu clamo; compadece-te de mim e responde-me” (Sl 27.7). Ver também: Sl 28.2,6; 34.6,17; 39.12; 40.1; 54.2; 55.17; 61.1; 116.1; 119.149; 130.2 143.1; 145.19.

40 A palavra tem o sentido de estabelecer, firmar, manter-se reto. No estudo do Salmo 108 exploro mais pormenorizadamente o significado da palavra.

41 CALVINO, O Livro dos Salmos, v. 1, p. 230 (Sl 10.17).

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com integridade: “Firme (kûn) está o meu coração, ó Deus! Cantarei e entoarei louvores de toda a minha alma” (Sl 108.1).

3.2.4 Deus nos acode em nossas necessidades

“Tens ouvido, Senhor, o desejo dos humildes; tu lhes fortalecerás o coração e lhes acudirás (qashab)” (Sl 10.17).

Deus ouve as nossas orações e fortalece o nosso coração com as suas promessas. As suas palavras não são vazias, antes, são os fundamentos de sua ação: ele nos acode, nos socorre de fato. Aqui o salmista se vale de um sinônimo para reforçar a mesma ideia. Deus nos tem ouvido (shama) e, por isso, nos acode (qashab) em nossas reais necessidades. Ele dá atenção a nós e à nossa súplica.

3.2.5 Deus manifesta a Sua justiça

“Para fazeres justiça ao órfão e ao oprimido, a fim de que o homem, que é da terra, já não infunda terror” (Sl 10.18).

Deus é justo e fará justiça no tempo certo. Podemos e devemos suplicar por sua justiça, contudo, a manifestação da justiça também é uma questão de tempo. Deus em sua longanimidade muitas vezes não executa de forma imediata o seu juízo a fim de oferecer a oportunidade aos seus servos de se arrependerem e os justos de aprenderem a perseverar em sua fé.

Deus fará justiça no seu tempo. Em sua justiça não há apelação; ela é decisiva visto que ele é justo, por isso julga justa e retamente.

considerações finais(1) Precisamos de cautela em nossos juízos a respeito do silêncio de

Deus. O aparente silêncio não é indiferença ou incapacidade. Pode ser uma manifestação de longanimidade dentro de seu propósito pedagógico (Sl 10.1). Não podemos deixar que as nossas experiências mutáveis se constituam apres-sadamente em parâmetros para a nossa teologia, que deve ser proveniente das Escrituras. As Escrituras é que devem avaliar, instruir e corrigir as nossas experiências.42

(2) Ao contrário do ímpio, não cedamos à tentação de pensar que somos autossuficientes. Confiemos em Deus e em sua manutenção (Sl 10.6). “Confia

42 “A teologia cristã oferece uma estrutura pela qual as ambiguidades da experiência podem ser interpretadas. A teologia visa interpretar a experiência. É como uma rede que podemos lançar sobre a experiência, a fim de capturar seu sentido. A experiência é vista como algo para ser interpretado, em vez de algo que em si é capaz de interpretar. A teologia cristã visa assim a dirigir-se a, interpretar e transformar a experiência humana”. MCGRATH, Paixão pela verdade, p. 66-67.

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os teus cuidados ao Senhor, e ele te susterá; jamais permitirá que o justo seja abalado (mot)” (Sl 55.22).

(3) Ainda que não percebamos a manifestação da justiça de Deus, não duvidemos de sua providência. Deus age sempre no tempo determinado por ele mesmo; afinal, Deus é o Rei eterno, tendo pleno controle do tempo (Sl 10.12,16).43

(4) Aprendemos neste salmo que, por mais graves que sejam as circuns-tâncias adversas, o nosso recurso é orar a Deus. Ele é o Rei soberano e preser-vador de seu povo. Ele conhece as nossas necessidades (Sl 10.14). Devemos, portanto, expor a Deus as nossas angústias e incompreensões suplicando o seu auxílio (Sl 10.12).

(5) Isto serve de grande estímulo e conforto para nós. Deus reina. Ele tem o controle total de todos os reinos e da história. Aos irmãos atribulados que aguardavam a manifestação da justiça de Deus, Pedro escreve:

Amados, esta é, agora, a segunda epístola que vos escrevo; em ambas, procuro despertar com lembranças a vossa mente esclarecida, para que vos recordeis das palavras que, anteriormente, foram ditas pelos santos profetas, bem como do mandamento do Senhor e Salvador, ensinado pelos vossos apóstolos, tendo em conta, antes de tudo, que, nos últimos dias, virão escarnecedores com os seus escárnios, andando segundo as próprias paixões e dizendo: Onde está a promessa da sua vinda? Porque, desde que os pais dormiram, todas as coisas permanecem como desde o princípio da criação. Porque, deliberadamente, esquecem que, de longo tempo, houve céus bem como terra, a qual surgiu da água e através da água pela palavra de Deus, pela qual veio a perecer o mundo daquele tempo, afogado em água. Ora, os céus que agora existem e a terra, pela mesma pala-vra, têm sido entesourados para fogo, estando reservados para o Dia do Juízo e destruição dos homens ímpios. Há, todavia, uma coisa, amados, que não deveis esquecer: que, para o Senhor, um dia é como mil anos, e mil anos, como um dia. (...) Virá, entretanto, como ladrão, o Dia do Senhor, no qual os céus passarão com estrepitoso estrondo, e os elementos se desfarão abrasados; também a terra e as obras que nela existem serão atingidas (2Pe 3.1-8,10).

Pregando em Atenas, Paulo afirma que Deus “estabeleceu um dia em que há de julgar o mundo com justiça, por meio de um varão que destinou e acreditou diante de todos, ressuscitando-o dentre os mortos” (At 17.31).

(6) Confiar no sustento de Deus que se manifesta no tempo propício. Portanto, devemos pedir a Deus que mantenha o nosso coração reto, firme em suas promessas (Sl 10.17; ver Sl 11.2), renovando em nós um espírito inaba-lável. Daí a oração de Davi: “Cria em mim, ó Deus, um coração puro e renova dentro de mim um espírito inabalável (kûn)” (Sl 51.10).

43 Para uma aplicação pastoral do Salmo 10, Ver: POWLISON, David. Uma nova visão. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 87-102.

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Habacuque, vivendo em momento extremamente difícil sob a ameaça da violenta Babilônia, e sem conseguir compreender adequadamente a história, após expor a Deus a sua angústia, escreve: “O justo viverá pela sua fé” (Hc 2.4). A sua fé alicerçada em Deus lhe permitiu declarar na conclusão do livro:

Ainda que a figueira não floresça, nem haja fruto na vide; o produto da oliveira minta, e os campos não produzam mantimento; as ovelhas sejam arrebatadas do aprisco, e nos currais não haja gado, todavia, eu me alegro no Senhor, exulto no Deus da minha salvação. O Senhor Deus é a minha fortaleza, e faz os meus pés como os da corça, e me faz andar altaneiramente (Hc 3.17-19).

(7) Temos aqui um alerta para nós a fim de que, quando investidos de poder e recursos, não sejamos tentados a tratar o nosso próximo com arrogância e desdém. Deus não se agrada disso (Sl 10.14-18).

(8) A enganosa prosperidade dos ímpios consiste no fato de pensarem que podem viver sem Deus, prescindindo do seu cuidado, misericórdia e amor. A continuar assim, eles descobrirão, talvez tardia e inevitavelmente, que jogaram sua vida fora, tomando aspectos do provisório como definitivo e eterno. Os bens materiais podem ser uma grande bênção de Deus se não nos conduzirem ao materialismo, à redução de toda realidade à fluidez do que é efêmero e passageiro.

(9) Por pior que seja a condição de pecado e maldade do ímpio descrita neste salmo, lembremo-nos de que: a) Se ele, por graça, se arrepender de seus pecados, voltando-se para Deus, será salvo. O santo Deus que reina, governa também com a sua misericórdia. b) Este homem é o espelho do que poderíamos ser se não fosse a graça de Deus que nos atraiu para si, perdoando os nossos pecados, dando-nos um novo coração. Ó maravilhosa graça de Deus! Aleluia! Amém!

abstractObserving the wicked’s seeming success in their acts of blasphemy, ar-

rogance, pride, and immorality, the psalmist, in a rash atitude, feels insecure regarding God and the events he sees around him. Starting from the psalmist’s mature conclusion, the article analyzes how the perspective of faith is funda-mental toward trusting in God and continuing to trust despite our immediate, precipitous perceptions of the situation around us.

KeywordsPsalm 10; Impiety; Atheism; God’s justice; Patience; Faith.

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iSlã E tolErância: diScurSo apologético E rEalidadE hiStórica

Alderi Souza de Matos*

resumoO início do século 21 está testemunhando eventos de grande significado

histórico no âmbito da religião. O radicalismo islâmico tem assombrado o mundo com sua persistente agressividade e vasta amplitude. O Oriente Médio, o norte da áfrica e partes da ásia, Europa e América do Norte têm sido palco do fanatismo e da violência dos extremistas. Em especial, as comunidades cristãs que vivem pacificamente em países muçulmanos estão sendo alvo de horrível crueldade. Em diversas regiões, o pouco que restava do cristianismo está a caminho da extinção. Muitos observadores e estudiosos afirmam que essas ações representam uma grotesca distorção do islã, não sendo condizentes com o verdadeiro espírito dessa religião. Os apologistas internos e externos declaram repetidamente que a fé muçulmana tem cultivado historicamente a tolerância e a paz. O objetivo deste artigo é reexaminar essa questão olhando para as fontes do islã, sua história e os acontecimentos dos anos recentes.

palavras-chaveIslã; Islamismo; Muçulmanos; Maomé; Corão; Hadith; Sharia; Tolerân-

cia; Multiculturalismo; Fundamentalismo; Cristianismo; Perseguição; Direitos humanos.

introduçãoNos últimos anos, muitos termos de origem árabe se tornaram frequentes

na imprensa ocidental, como “aiatolá”, “xiita”, “sunita”, “imã”, “ramadã”,

* Doutor em Teologia (Th.D.) pela Boston University School of Theology; professor de Teologia Histórica no Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, São Paulo.

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Alderi SouzA de MAtoS, iSlã e tolerânciA: diScurSo Apologético e reAlidAde HiStóricA

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“burca”, “xador”, “madraçal”, “talibã”, “jihad”, “sharia” e “califado”. O uso dessa terminologia não resulta de questões inocentes, como um súbito inte-resse intelectual ou histórico pelos povos muçulmanos, e sim de um espectro sombrio que tem se levantado sobre o mundo neste início do século 21 – o radicalismo islâmico.1 Essa forma de extremismo político e religioso já havia surgido em meados do século 20, mas tem atingido proporções assustadoras nestes primeiros anos do novo século, a começar dos atentados contra as Torres Gêmeas, em Nova york, no fatídico 11 de setembro de 2001. No Ocidente, o episódio mais recente foi o assassinato de vários caricaturistas do jornal satírico Charlie Hebdo, em Paris, no dia 7 de janeiro de 2015.

No entanto, o principal cenário do extremismo islâmico tem sido o ter-ritório dos países ligados a essa religião, como Afeganistão, Paquistão, Síria, Iraque, Egito e Líbia, nos quais a maior parte das vítimas tem sido os próprios muçulmanos. Como se não bastassem tantas atrocidades em nome de Deus, em 2014 surgiu no Oriente Médio, no contexto da guerra civil na Síria e do caos reinante no Iraque, a expressão máxima do terror, o chamado Estado Islâmico. Esse movimento de inspiração sunita tem sido responsável por alguns dos maiores atos de selvageria e barbárie de que se tem notícia na história recente da humanidade, dirigindo sua fúria homicida contra a facção xiita e as minorias religiosas da região, principalmente cristãs.

O presidente americano Barack Obama, líder mais importante do mundo ocidental, tem feito um esforço sistemático no sentido de isentar a religião islâmica de qualquer responsabilidade por essas atrocidades. Ele jamais utili-za a expressão “terroristas islâmicos” – são simplesmente terroristas. Mesmo no caso do ataque de um grupo radical da Somália contra uma universidade do Quênia, em 2 de abril de 2015, no qual 147 estudantes foram mortos pelo fato de serem cristãos, ele não se referiu aos terroristas como muçulmanos nem aos estudantes como cristãos.2 Um bando de extremistas simplesmente matou a esmo um enorme grupo de estudantes. Em outras palavras, o fator religioso seria irrelevante nesses episódios. Para Obama, tais indivíduos de modo algum representam o islã, que para ele é essencialmente uma religião de paz e tolerância.

Porém, existem algumas perguntas que precisam ser respondidas. Se as motivações dos extremistas não têm uma origem islâmica, quais são de fato tais motivações? Seriam elas apenas de ordem política, social ou ideo-lógica, sem qualquer dimensão religiosa? É de fato o islã uma religião cujos

1 Em anos recentes, tem sido feita uma importante distinção terminológica no que se refere aos seguidores de Maomé. O termo “islã” é reservado para essa religião no seu sentido geral, convencional. Já o termo “islamismo” é aplicado por muitos autores ao islã político ou fundamentalismo islâmico.

2 W[hite H[ouse] Statement on Kenya terror attack fails to mention Christians were singled out. Disponível em: http://townhall.com/tipsheet/leahbarkoukis/2015/04/04/obama-statement-on-kenya--n1980810. Acesso em: 13/05/2015.

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pressupostos conduzem a uma convivência harmoniosa com outras religiões e cosmovisões? O que dizem a história e a situação atual sobre isso? Princi-palmente, que tipos de valores e condutas caracterizam o islã majoritário ou normativo, conforme se observa na vida atual das nações islâmicas? Qual é o status dos grupos religiosos minoritários nesses países?

Na tentativa de responder tais indagações, este artigo aborda inicialmente duas interpretações básicas do islã correntes nos meios acadêmicos. Em segui-da, considera sucessivamente o surgimento dessa religião, suas crenças mais importantes e sua história subsequente, até o advento do islamismo radical no século 20. Por último retoma a questão da tolerância, analisando a lógica interna do islã, o conceito de jihad e a perseguição dos cristãos na atualidade, destacando o que ocorre em alguns países significativos.

1. atitudes quanto ao islãA literatura sobre a religião islâmica é vasta e se avolumou considera-

velmente nas últimas décadas.3 Isso se deve não somente ao recrudescimento do radicalismo associado a essa religião, mas a um contato sem precedentes entre o mundo islâmico e o Ocidente nos últimos 50 anos. A maior parte das nações muçulmanas é pobre, muitas delas têm sido afligidas por guerras e revoluções, e isso produziu um grande êxodo para a Europa e os Estados Unidos. Estima-se que haja atualmente 5 milhões de muçulmanos na França, 4 milhões na Alemanha e 3 milhões no Reino Unido. Nos Estados Unidos, as estimativas estão em torno de 6 milhões. Devido à imigração e a elevadas taxas de natalidade, esses números crescem continuamente.

Recentemente, a organização Pew Research Center publicou um estudo segundo o qual haverá um crescimento exponencial do islã nas próximas dé-cadas, quando o número de muçulmanos deverá se tornar quase igual ao de cristãos em termos mundiais. De 2010 a 2050, os cristãos deverão passar de 2,17 para 2,92 bilhões e os muçulmanos, de 1,6 para 2,76 bilhões. Nesse período, o percentual de cristãos na população mundial se manterá em torno de 31,4, enquanto que o dos muçulmanos deverá crescer de 23,2 para 29,7. Depois de 2070, existe a possibilidade de que o islã ultrapasse o cristianismo em número de adeptos.4 O Centro para o Estudo do Cristianismo Global, do Seminário

3 Nos últimos anos, várias dissertações sobre o tema foram apresentadas no curso de Mestrado em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie: LIMA, César Rocha. Da Bíblia ao Alcorão: desconstruções e (re)construções simbólicas no processo de reversão ao islã no Brasil (2013); MAMEDES, Janoí Joaquim. A mesquita da luz: o islã sunita no Rio de Janeiro (2014); SILVA, Dirceu Alves da. A mulher muçulmana: uma visão panorâmica de Meca a São Paulo (2014); PAGANELLI, Magno. A relação entre a violência do Hamas e a interpretação do Corão (2014).

4 Here is the best prediction yet of how Christianity and Islam will change worldwide by 2050. Disponível em: http://www.christianitytoday.com/gleanings/2015/april/heres-best-prediction-yet-christianity-islam-2050-pew.html. Acesso em: 08/05/2015.

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Teológico Gordon-Conwell, tem números mais otimistas, prevendo que mais de 3,3 bilhões de pessoas serão cristãs em 2050.5

Esses fatos destacam que o islã e o cristianismo estão vivendo uma situação inteiramente nova. Nunca antes em toda a história houve um contato tão estreito entre esses dois mundos conceituais, e tal interação tem gerado tanto grandes oportunidades quanto enormes tensões. Essa aproximação entre o Oriente islâmico e o Ocidente cristão se dá num momento muito particular da vida do mundo ocidental, caracterizado pelo que se convencionou chamar de pós-modernidade. O hemisfério norte pós-moderno está abandonando rapidamente as suas raízes cristãs e se deixando seduzir pelo mais completo secularismo. Nesse ambiente irreligioso, floresce uma nova ideologia, o mul-ticulturalismo, com a consequente valorização das minorias.

Isso tem um lado positivo, o respeito pelos diferentes grupos que com-põem a sociedade, em especial aqueles historicamente marginalizados, e um lado negativo, o abandono ou relativização dos próprios valores em nome da igualdade de todas as culturas, bem como a rejeição de qualquer crítica às crenças e práticas de outros grupos. Esse relativismo paradoxalmente mesclado com uma tendência absolutista é o que se denomina “politicamente correto”. Tal clima cultural tem beneficiado grandemente o universo muçulmano, sendo ativamente utilizado pelos seus apologistas. Qualquer questionamento dos valores e práticas islâmicos é rapidamente tachado de “islamofobia”, tanto por líderes dessa religião quanto por seus simpatizantes ocidentais.

Um dos melhores livros sobre o islã publicados originalmente em português é O Mundo Muçulmano, de Peter Demant, renomado especialista internacional no assunto. Em sua obra, ele observa que, quando se analisam as causas da grande crise vivida pelo islã e da ameaça que o radicalismo representa para o mundo, duas escolas interpretativas se opõem no Ocidente.6 Uma delas, denominada “internalista”, argumenta que o próprio islã é o problema e que, para o desen-volvimento do mundo muçulmano e sua democratização, é necessário que haja uma reforma dessa religião. Os principais representantes dessa teoria, chamados por seus críticos de reacionários e “orientalistas”, são Bernard Lewis,7 Daniel Pipes e Martin Kramer. A segunda escola, “externalista”, considera essa visão

5 Ibid. O islã também tem crescido no Brasil. Ver: http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2015/05/31/aumenta-numero-de-brasileiros-convertidos-ao-isla.htm.

6 DEMANT, Peter. O mundo muçulmano. São Paulo: Contexto, 2004, p. 334-336. Esse holandês nascido em 1951 residiu por quase uma década em Israel e desde 1999 é professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo.

7 Bernard Lewis nasceu em Londres em 1916 e é professor emérito de Estudos do Oriente Próximo na Universidade de Princeton. Alguns de seus livros publicados em português são: O Oriente Médio: do advento do cristianismo aos dias de hoje; Assassinos – os primórdios do terrorismo no islã; O que deu errado no Oriente Médio?; A crise do islã: guerra santa e terror profano e A descoberta da Europa pelo islã, os primeiros publicados pela editora Jorge Zahar e o último por Perspectiva.

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reducionista e aponta para fatores exógenos – as intromissões ocidentais – como responsáveis pelos problemas das sociedades muçulmanas. Seus expoentes são Edward Said, Maxime Rodinson e John Esposito, que muitos consideram “uma ‘quinta coluna’ islamófila na academia”.8

A escola internalista predominou até os anos 70. A partir da década se-guinte, sob a influência de fatores como o pós-modernismo, as novas ênfases subjetivistas e relativistas na filosofia e nas ciências sociais, o relativismo cul-tural e o multiculturalismo, a posição externalista se tornou mais influente, até, em certos contextos, constituir “a nova ortodoxia do ‘politicamente correto’”.9 Todavia, depois do 11 de setembro e agora mais ainda, com o surgimento do Estado Islâmico e sua barbárie, a visão internalista novamente está ganhando credibilidade. Com vistas a compreender o ethos ou espírito do islã, e averiguar se ele é compatível ou não com a tolerância e a convivência pacífica com outros grupos, é necessário conhecer os contornos básicos de sua história e convicções.

2. primórdios da fé islâmicaO islã surgiu na península arábica no início do século 7º da era cristã. A

Arábia estava situada na periferia de duas superpotências. De um lado, havia o Império Bizantino, na ásia Menor, sucessor do antigo Império Romano oriental, tendo como religião oficial a igreja grega, mais tarde conhecida como ortodoxa. Ao oriente estava o Império Sassânida, que incluía a Pérsia e a Mesopotâmia, herdeiro da velha civilização do zoroastrismo, sistema religioso-filosófico fundado no século 6º AC.

Como as guerras contínuas haviam inviabilizado a Rota da Seda, que trazia produtos da China para o Mediterrâneo através da Pérsia, os comercian-tes buscaram rotas alternativas, sendo que uma delas atravessava o Hijaz, no noroeste da Arábia. Esse fato beneficiou grandemente a região, em especial a cidade de Meca, tradicional centro de peregrinação no qual muitas divindades eram cultuadas em torno de uma estranha pedra negra – um meteorito de 30 centímetros de diâmetro tido como sagrado. Mais tarde seria erguido ali um edifício em forma de cubo, a Caaba (Ka’aba), local mais reverenciado do islã. A sociedade era tribal e o estilo de vida valorizava a liberdade de circulação, a preservação da honra e a lealdade ao clã. As lutas pelos escassos recursos eram frequentes, “o que provocava ciclos de vingança”.10

8 DEMANT, O mundo muçulmano, p. 336. Esposito é fundador e diretor do Centro para o Enten-dimento Muçulmano-Cristão, na Universidade Georgetown, em Washington. Esse centro recebeu uma dotação de 20 milhões de dólares do príncipe saudita Alwaleed Bin Talal e passou a ter o seu nome. Para uma avaliação crítica desse autor, ver: SCHWARTZ, Stephen. John L. Esposito: apologist for Wahhabi Islam. American Thinker. Disponível em: http://www.americanthinker.com/articles/2011/09/john_l_esposito_ apologist_for_wahhabi_islam.html. Acesso em: 31/05/2015.

9 DEMANT, O mundo muçulmano, p. 338.10 Ibid., p. 23-25.

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Nesse contexto entrou em cena a figura notável de Muhammad ou Maomé (570-632), que pertencia a um ramo do clã dos coraixitas, um dos mais pode-rosos de Meca. Aos 25 anos, ele casou-se com Khadija, uma rica viúva, com a qual teve uma única filha, Fátima. Era mercador e acredita-se que em suas viagens comerciais foi influenciado por judeus e cristãos, dos quais recebeu suas concepções monoteístas. Aos 35 anos, resolveu um conflito entre três xeiques no templo de Meca e concluiu que podia ser um grande líder religioso de seu povo. Finalmente, aos 40 anos, sentiu-se chamado pelo anjo Gabriel (Jibril) a pregar a religião de um Deus único e todo-poderoso, diante do qual cada ser humano deve se submeter incondicionalmente.11 Daí a palavra “islã”, isto é, “submissão”, sendo que “muçulmano” significa “aquele que se submete”.

Aos 50 anos, Alá confirmou o chamado de Maomé levando-o à noite para Jerusalém (esplanada do templo), onde ele conversou com Jesus (Issa), Moisés (Mussa) e Abraão (Ibrahim). A seguir, ele e o anjo subiram por uma escada até o sétimo céu.12 Dois anos mais tarde, sua pregação contra a idolatria irritou a elite comercial de Meca, fazendo com que ele e seus poucos seguidores fos-sem expulsos. Seguiram então para a cidade de Iatreb, mais tarde denominada Medina, 300 quilômetros ao norte de Meca. Esse episódio, conhecido como héjira ou migração (hijra), marca o início do calendário muçulmano (ano 622). Com o tempo, os muçulmanos impuseram sua superioridade militar em Medina, que se tornou a primeira comunidade a viver sob as leis da nova fé.13

O poder crescente de Maomé como líder político e militar levou um nú-mero cada vez maior de tribos a se aliar ao seu projeto. Com isso, ele impôs sua autoridade em sua cidade natal, Meca, limpou a Caaba de todas as divin-dades pagãs e estabeleceu-a com o principal centro da nova religião. Quando o fundador morreu, em 632, nos braços da esposa favorita de seu harém, a maior parte da Arábia estava em mãos muçulmanas. Maomé se tornou uma figura altamente reverenciada pelos seus seguidores, que o consideram o últi-mo e maior dos profetas de Deus e o grande exemplo a ser seguido em todos os aspectos da vida.

Contudo, devoção ainda maior é prestada ao livro sagrado do islã, o Corão (Qur’an ou “recitação”), uma compilação de todas as revelações dadas a Maomé, que só recebeu sua versão definitiva trinta anos após a morte do profeta. Esse livro é considerado a revelação direta e pessoal de Alá, sendo, portanto, divino. Afirmam que existe um protótipo dele no próprio céu. Dessa maneira, ocorre uma curiosa inversão em comparação com o cristianismo. Neste, a pessoa de Cristo ocupa lugar supremo e a Bíblia uma posição subordinada. No islã é o

11 HUME, Roberto Ernesto. Las religiones vivas. Buenos Aires e Montevidéu: Mundo Nuevo, 1931, p. 223.

12 BEVERLEy, James A. Muhammad amid the faiths. Christian History, v. XXI, n. 2 (2002), p. 12.13 DEMANT, O mundo muçulmano, p. 26.

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oposto, vindo o Corão em primeiro lugar e em seguida a pessoa de Maomé. Esse livro é constituído de 114 capítulos ou “suras”, que formam um volume pouco menor que o Novo Testamento. O primeiro capítulo contém uma breve oração inicial, a Fatiha. Em seguida, os capítulos estão dispostos em ordem decrescente de tamanho, desde o maior, com 286 versículos, até os menores, com menos de dez, num total de 6.236 versículos. Todas as suras, exceto a 9ª, começam com a mesma fórmula: “Em nome de Alá, o Compassivo, o Misericordioso”.

3. convicções fundamentaisA religião islâmica é bastante complexa, porém dá ênfase especial a alguns

poucos deveres essenciais, que são considerados os cinco pilares do islã. São eles: (a) Shahada (testemunho): consiste na recitação diária de uma declaração de fé fundamental – “Não há outro Deus senão Alá e Maomé é seu profeta”. A simples repetição desse credo é aceita como prova de conversão. (b) Salat (oração): os fiéis devem orar cinco vezes ao dia, de preferência em uma mes-quita ou então sobre um tapete, voltados em direção a Meca, a cidade sagrada. Nas sextas-feiras, realizam-se cerimônias especiais nas mesquitas. (c) Zakat (esmolas): a conversão ao islã supõe claramente o pagamento desse imposto de 2,5% dos rendimentos para os pobres e necessitados. (d) Sawm (jejum): em especial no mês sagrado de Ramadã (9º mês), os fiéis praticam completa abstinência de relações sexuais, alimentos e água, mas apenas durante o dia. (e) Hajj (peregrinação): pelo menos uma vez na vida, deve-se ir a Meca para caminhar ao redor da mesquita sagrada e realizar vários outros rituais; em caso de impossibilidade, pode-se mandar um substituto.14

Muitos consideram como outro pilar a jihad, que literalmente significa “esforço”, ou seja, a luta espiritual particular ou o empenho em prol da expan-são do islã por todo o mundo. Esse conceito é entendido, em especial pelos conservadores, como “guerra santa” em defesa dos territórios e dos interesses islâmicos. Os teólogos dessa religião distinguem entre quatro modalidades: (1) jihad do coração – a luta contra as tendências más da natureza humana, a busca do aperfeiçoamento pessoal; (2) jihad da boca e da pena – o esforço verbal, na forma de argumentação e imprecações, visando refutar a oposição ao islã, ou o uso da palavra escrita em sua defesa, como faz a apologética islâmica em relação às doutrinas centrais do cristianismo; (3) jihad da mão – promoção da causa de Alá por meio de ações louváveis como o tratamento exemplar dos outros e a devoção a Deus; (4) jihad da espada – combate físico em prol do islã.15

14 HUME, Las religiones vivas, p. 237s.15 ELASS, Mateen A. Four jihads. Christian History, v. XXI, n. 2 (2002), p. 35.

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Associados aos pilares do islã estão algumas doutrinas centrais, a começar do entendimento do ser supremo. Alá é tido como um Deus absolutamente único, eterno, poderoso, onisciente, onipresente e transcendente, sendo tanto o politeísmo quanto a idolatria pecados abomináveis. Existe uma distância intransponível entre Deus e os mortais, que lhe devem obediência absoluta. O islã também aceita a existência de anjos, jinns e demônios. Os primeiros intercedem pelos homens junto a Alá, sendo que Gabriel tem um status especial como arcanjo e às vezes é chamado o Espírito Santo. Os jinns ou gênios são seres intermediários entre os homens e os anjos. Um deles é o diabo (shaytan ou iblis), que está acompanhado de shayatin, demônios. No fim do mundo, haverá uma ressurreição geral. Os muçulmanos creem no juízo final, no paraíso e no inferno. O paraíso é descrito com abundantes prazeres para os sentidos: rios e jardins, ricas iguarias e diversos deleites sensuais. O inferno também é descrito com muito realismo. Outra convicção é a crença no destino (kismet) ou fatalismo absoluto, uma vez que tudo está predeterminado por Alá.16

Uma questão paradoxal é a relação entre o islã e as duas religiões que lhe deram origem. Os muçulmanos creem que Deus levantou no mundo uma longa sucessão de profetas. O Corão menciona 28 deles, 23 pertencentes ao Antigo Testamento e três ao Novo Testamento (Zacarias, João Batista e Jesus). Outro deles é Saleh ou Selá, um antigo profeta árabe. Maomé é tido como o último e o maior de todos, e assim a revelação dada a ele inclui e transcende as anteriores. Ele se considerava um herdeiro das tradições judaica e cristã e a parte inicial do Corão expressa a esperança de que os “povos do livro” o aceitem como profeta. Todavia, seções posteriores fazem forte polêmica con-tra os dois grupos. Mesmo assim, Maomé manteve uma atitude positiva para com os cristãos e decretou que eles e os judeus deviam receber proteção sob o domínio islâmico.17

A falta de familiaridade de Maomé com o cristianismo ortodoxo fica evidente no Corão. O livro refuta três ensinos cristãos fundamentais: que Jesus era o filho de Deus, que ele morreu na cruz e que Deus é um ser trino.18 Segundo o islã, Jesus nasceu da virgem Maria e realizou muitos milagres, mas foi pro-tegido da morte por crucificação e não ressuscitou dentre os mortos. Ele subiu ao céu após a morte e retornará à terra. Era um muçulmano fiel ou seguidor de Alá. Alega-se, sem qualquer evidência histórica, que os cristãos corromperam intencionalmente as suas Escrituras para incluir as doutrinas acima.

Com toda a sua imensa importância, o Corão não é a única fonte das convicções e práticas dos muçulmanos. Existem também a tradição islâmica

16 HUME, Las religiones vivas, p. 234-236.17 BEVERLEy, Muhammad amid the faiths, p. 13.18 Ibid.

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(hadith) e a lei islâmica (sharia). A hadith é um conjunto de tradições sobre Maomé, sua família e seus companheiros que são consideradas, tanto em seus aspectos legais quanto não legais, tão normativas quanto o Corão.19 A sharia é a legislação islâmica conforme exposta no Corão, na tradição e na interpretação dos principais teólogos e juristas, especialmente nos séculos iniciais do islã. Abrange todas as áreas da vida: religião, relações sociais (família, herança, casamento) e lei criminal.20 Classifica as ações humanas em cinco categorias – obrigatórias, indicadas, neutras, reprováveis e proibidas –, prescrevendo para estas últimas terríveis punições corporais.

Uma característica notável do islã é o seu caráter abrangente ou totali-zante, indo muito além do que ocorreu na cristandade medieval. A fé islâmica condiciona todas os aspectos da vida dos fiéis, tanto no plano individual quanto coletivo. Com isso, entre outras consequências, não existe separação entre as esferas sagrada e secular, entre o âmbito religioso e o social. O islã tem também grande visibilidade, pois é praticado de maneira muito aberta e pública, em contraste com o caráter cada vez mais privativo da espiritualidade no Ocidente. Adicionalmente, essa religião exerce forte poder de atração sobre seus fiéis e é objeto de grande fervor devocional. Os muçulmanos têm muito interesse pela religiosidade e gostam de falar sobre o assunto.

Eles se orgulham de constituir uma só comunidade mundial – a umma, também conhecida como Dar al-islam (“a casa do islã”), o conjunto de todos os territórios submetidos a essa fé. Todavia, paradoxalmente a comunidade islâmica sofre graves tensões e divisões por motivos étnicos, políticos, econô-micos e também religiosos. Numa época em que havia maior diversidade no islã, surgiram muitas seitas e movimentos com ênfases diferentes. Além dos sunitas e xiitas originais, que em alguns países são inimigos acerbos, existem os sufis, adeptos de uma tendência mística do sunismo que dá ênfase à imanên-cia de Deus e não à sua transcendência. Seu nome deriva da vestimenta de lã usada pelos adeptos (suf). Alguns grupos sectários são os alawitas ou nusairis (seita xiita extrema da Síria que venera Ali), os alevitas (ramo xiita da Turquia com influências pré-islâmicas), os zaiditas (corrente xiita moderada do Iêmen) e os ahmadis (movimento messiânico e pacifista fundado na Índia no final do século 19). Nos Estados Unidos, existe a Nação do Islã, um movimento

19 SCHIRRMACHER, Christine. Islam: an introduction. The WEA Global Issues Series 6. Bonn, Alemanha: Verlag für Kultur und Wissenschaft, 2011, p. 31s. Essa autora e professora alemã é uma renomada especialista em estudos islâmicos, com mestrado e doutorado na área. Leciona na Universi-dade Protestante de Lovaina (Bélgica) e na Universidade de Bonn. É diretora do Instituto Internacional de Estudos Islâmicos, da Aliança Evangélica Mundial. Seu esposo, Dr. Thomas Schirrmacher, é presidente da Comissão Teológica da Aliança Evangélica Mundial.

20 Ibid., p. 75. Sobre a relação entre sharia e direitos humanos, ver SCHIRRMACHER, Thomas. Human rights. WEA Global Issues Series 5. Bonn: Verlag für Kultur und Wissenschaft, 2014, p. 57-59.

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de negros que possuía traços sectários, mas gradualmente foi absorvido pelo sunismo ortodoxo.21

4. história posteriorA longa história do islã é dividida em vários estágios, nos quais ele se

expandiu amplamente até ocupar uma enorme região do mundo que se estende do norte da áfrica à Indonésia. Essa história é repleta de avanços e recuos, de progresso e decadência, nos aspectos político, econômico e intelectual.

4.1 Conflitos iniciaisOs primeiros trinta anos após a morte do fundador foram cenário de inten-

sa luta pela liderança do movimento. Maomé morreu sem indicar claramente um sucessor, o que levou ao surgimento de duas tendências antagônicas que persistem até hoje. A posição majoritária considerou que qualquer fiel podia ser candidato à sucessão, desde que aceito pela comunidade. O primeiro sucessor ou “califa” foi Abu Bakr, velho companheiro do profeta, que consolidou o poder islâmico na maior parte da Arábia. Ele foi sucedido em 634 por Umar ibn al-Khattab, que conquistou vastos territórios do Império Bizantino (Egito, Síria, Palestina, Mesopotâmia e uma porção do Cáucaso), bem como parte do Império Persa. O terceiro califa, Uthman ibn Affan (644-656) consolidou as conquistas do anterior e tomou o norte da áfrica.22 No seu governo, houve a fixação definitiva do texto do Corão.

A seguir, manifestou-se a segunda tendência na liderança do islã, que se tornou minoritária: a opinião de que os sucessores do profeta deviam pertencer à sua própria família. Em 656, assumiu o califado seu genro Ali, casado com Fátima. Porém, sua autoridade foi contestada por Mu’awiyya, membro de outro ramo dos coraixitas. Seguiu-se uma guerra civil que resultou no assassinato de Ali em 661. Surgiu a partir daí uma divisão permanente no islã. Os seguidores de Ali e seus sucessores formaram o partido ou facção (shi’a) de Ali, de onde procedem os xiitas, que hoje constituem cerca de 10 a 15% dos muçulmanos. A maior parte dos árabes aceitou a liderança de Mu’awiyya, que deu início a uma dinastia, a dos omíadas. Esse grupo veio a constituir a maioria ortodoxa islâmica, os seguidores da tradição (sunna), de onde vem o termo sunitas. A dinastia xiita inicial teve uma existência breve e trágica. Hassan, filho e sucessor de Ali, foi assassinado em 669. Seu filho Hussein liderou uma rebelião contra Yazid, sucessor de Mu’awiyya, e foi decapitado. Os xiitas até hoje glorificam o sacrifício de Hussein e contestam a legitimidade dos califas sunitas. Para eles, as autoridades supremas sobre a comunidade islâmica (umma) são os imãs.23

21 DEMANT, O mundo muçulmano, p. 182s.22 Ibid., p. 38.23 Ibid., p. 37-40.

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A maior parte dos xiitas vive no Irã, Iraque, Paquistão e Índia. Dividem-se em três grupos principais: duodécimos, ismailis e zaidis.

4.2 Os grandes impériosGraças às suas notáveis conquistas militares, os muçulmanos fundaram

vastos impérios. O primeiro deles, o Império Omíada, perdurou por quase um século (661-750), tendo sua capital em Damasco, na Síria, e se estendeu da Península Ibérica até a Índia. Completou a conquista do norte da áfrica até o Maghreb (Marrocos) e invadiu a Espanha em 711. Porém, o avanço islâmico na Europa ocidental foi permanentemente detido pelos franceses no ano 732, na célebre batalha de Tours ou Poitiers.24 As conquistas muçulmanas desse período representaram sérias perdas para o cristianismo, tanto no Oriente Médio quanto no norte da áfrica. Importantes centros cristãos como Antioquia, Alexandria e Cartago foram permanentemente perdidos para o islã. No início, os cristãos foram tratados com certa tolerância por estarem entre os “povos do livro”, ou seja, outras religiões monoteístas que possuíam um livro sagrado anterior. Não havia pressões para a conversão e eles tinham o status de comunidade protegida (dhimma). Contudo, sofriam várias limitações e nunca estiveram plenamente seguros. Tinham de usar um vestuário diferente e pagar um im-posto individual (jizya).

Na década de 740, uma revolta dos muçulmanos não árabes (mawali), liderados por Abu al-Abbas, parente distante de Maomé, derrotou os omíadas e tomou grande parte de seus territórios. A nova dinastia, sediada em Bagdá, equiparou os direitos de todos os muçulmanos. O Império Abássida (750-1258) foi o mais poderoso e avançado do mundo de então, especialmente nos seus dois primeiros séculos, um período de extraordinária prosperidade e florescimento cultural que é considerado a época de ouro da civilização islâmica.25 Deu no-táveis contribuições no âmbito da ciência (astronomia, alquimia, matemática, medicina, ótica), literatura, filosofia, arquitetura e tecnologia.

A partir do século 11, os territórios islâmicos sofreram a invasão de tribos nômades da Eurásia que, ao mesmo tempo em que abraçaram o islã, causaram tumulto e destruição durante séculos. Os principais desses povos foram os turcos e os mongóis. Os primeiros tiveram uma vitória decisiva con-tra os bizantinos na Batalha de Manzikert, em 1071, que abalou o equilíbrio geopolítico da região. Esses turcos seljúcidas criaram um sultanato que veio a incorporar a Síria e a Palestina. Os obstáculos colocados pelos sultões aos peregrinos cristãos que queriam visitar os locais sagrados da Palestina foram o motivo inicial das Cruzadas (1096-1291), grandes campanhas militares dos

24 Para uma reavaliação recente desse episódio, ver: LEWIS, David Levering. O islã e a formação da Europa de 570 a 1215. Barueri, SP: Amarilys, 2010.

25 DEMANT, O mundo muçulmano, p. 43.

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europeus que mais tarde foram transformadas em um símbolo da agressão cristã contra o islã.26 Contudo, do ponto de vista estratégico e psicológico, a perda da Península Ibérica (al-Andalus) foi bem mais grave para os muçulmanos, tendo se concluído em 1492 com a queda de Granada.

Ainda mais devastadoras para o mundo islâmico foram as invasões mon-gólicas de Genghis Khan e seus sucessores, principalmente durante o século 14. No âmbito religioso e cultural, a principal consequência dessas invasões foi a crescente rigidez dogmática do islã, que se tornou mais intolerante para com suas dissidências internas e os adeptos de outras religiões (dhimmis). Demant acredita que essa virada teológica conservadora “afetou negativamen-te a capacidade muçulmana para reagir aos desafios lançados posteriormente pelo Ocidente”.27

Outra tribo turca, liderada por Osman, criou o poderoso e duradouro Império Otomano (1281-1924). Eles tomaram Constantinopla em 1453, pondo fim ao antigo Império Bizantino, outra enorme perda para o cristianismo. Os otomanos avançaram pelos Bálcãs até Viena, na áustria, e conquistaram o Oriente Médio e o norte da áfrica até as fronteiras do Marrocos. Implantaram em todo o império a supremacia sunita, mas não conseguiram conquistar a Pérsia (Irã), até hoje solidamente xiita. O auge desse império se deu no sé-culo 16 com o sultão Suleiman, o Magnífico.28 Após uma longa decadência, o império turco chegou ao fim na esteira da 1ª Guerra Mundial, não sem antes ter produzido o genocídio armênio (1915-1923).29

Ao longo dos séculos, o islã também se expandiu amplamente na Índia, no sudeste asiático (Indonésia, Malásia, Filipinas) e na áfrica saariana e orien-tal. Na Índia, houve choques violentos com o hinduísmo, que culminaram no fim do século 17 com o surgimento do fundamentalismo hindu, fortemente antimuçulmano. Ao mesmo tempo em que o império otomano e outras regiões do mundo islâmico entravam em declínio cultural, intelectual e político, o Ocidente cristão experimentou grande desenvolvimento, graças a fenômenos como a Reforma Protestante, o iluminismo e a revolução industrial. Finalmente, as regiões fortemente islamizadas da ásia, Índia e do próprio Oriente Médio caíram, ainda que por breve tempo, sob o controle das potências coloniais europeias. Esses fatos, associados às circunstâncias da criação do Estado de

26 Nos três volumes de sua obra História das Cruzadas (1951-1954), Sir Steven Runciman contribuiu para divulgar a ideia de que os combatentes cristãos foram vilões e os muçulmanos, vítimas inocentes e heroicas.

27 DEMANT, O mundo muçulmano, p. 56.28 Sobre como o reformador Martinho Lutero interpretou a ameaça turca contra a Europa, ver:

MILLER, Gregory. From Crusades to homeland defense. Christian History, v. XXI, n. 2 (2002), p. 31-34.29 Quanto a esse episódio, ver: MATOS, Alderi S. Armênios – um centenário doloroso. Brasil

Presbiteriano, maio 2015, p. 8s; Genocídio armênio – memória e negação. Ultimato, julho-agosto 2015.

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Israel, alimentaram um sentimento de humilhação, injustiça e trauma que acabou resultando no surgimento do islã político ou radicalismo muçulmano.30

4.3 O fundamentalismo islâmicoEm meados do século 20, os países árabes se defrontaram com duas

opções políticas que resultaram em fracasso: de um lado, a modernização pró-ocidental; de outro, o nacionalismo secular e os governos autoritários daí resultantes. No vácuo dessa crise, surgiu o fundamentalismo muçulmano ou islamismo, definido por Peter Demant como

uma ideologia política antimoderna, anti-secularista e antiocidental, cujo projeto é converter o indivíduo para que se torne um muçulmano religioso observante, é transformar a sociedade formalmente muçulmana em uma comunidade religiosa voltada ao serviço a Deus e estabelecer o reino de Deus em toda a Terra.31

O autor acrescenta que essa tendência talvez seja a vertente predominante do islã atual.

O fundamentalismo começou com uma fase sunita nos anos 50 a 70, graças aos escritos do paquistanês Abu al-Ala Mawdudi (1903-1979) e de seu discípulo egípcio Sayyid Qutb (1906-1966), ligado à Fraternidade Muçulmana. Em seguida, nos anos 80, houve um intervalo xiita sob a liderança do aiatolá Ruhollah Khomeini (1902-1989), o qual, reagindo contra a modernização pró-ocidental do seu país, idealizou e liderou a Revolução Iraniana (1978-1979), que implantou a primeira república islâmica. Outra expressão desse fundamentalismo xiita foi o grupo Hezbollah, surgido no Líbano. Finalmente, a partir dos anos 90, ocorreu a internacionalização do radicalismo islâmico na esteira da Guerra do Golfo (1991).32 Algumas das manifestações mais conhe-cidas dessa fase são as organizações terroristas Hamas (territórios palestinos), Talebã (Afeganistão) e al-Qaeda, do saudita Osama bin Laden, morto em 2011. Finalmente, em 2014, esse radicalismo entrou em um estágio ainda mais apa-vorante com o Estado Islâmico do Iraque e da Síria e seu séquito de horrores.

Segundo os teóricos do fundamentalismo, os princípios que inspiram o movimento são os seguintes: antiapologia (o islã é perfeito e não precisa de justificação), antiocidentalismo (é preciso manter uma barreira contra o mundo não muçulmano), literalismo (o texto sagrado deve ser entendido de maneira literal), politização (deve haver a implantação do estado islâmico) e

30 Sobre essas questões, ver entrevista com J. Dudley Woodberry em: Christian History, v. XXI, n. 2 (2002), p. 43-45.

31 DEMANT, O mundo muçulmano, p. 201.32 Ibid.

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universalismo (o islã precisa ser imposto a toda a humanidade).33 Daí resultam várias ênfases do fundamentalismo atual: islamização da política, da sociedade civil e da cultura; construção de um islã internacional; luta militar aberta em novas frentes; islamização das diásporas muçulmanas no Ocidente.34 Tudo isso chega ao auge na guerra internacional de bin Laden e, posteriormente, do Estado Islâmico.

5. a tolerância no islãA esta altura, é necessário voltar às indagações do início. Será que as ações

do fundamentalismo islâmico são de fato uma deturpação do verdadeiro islã, como alegam muitos apologistas dessa religião? Deixando de lado as ações dos grupos extremistas, é a fé muçulmana uma religião de paz, tolerância e concórdia com outros grupos? Muitos autores, quer sejam adeptos dessa fé ou não, defendem tal tese.35 A quarta capa de uma monografia declara: “Por meio de ilustrações históricas convincentes e cuidadosa exposição teológica, [o livro] apresenta um argumento conciso mas irrefutável de que a fé islâmica é inerente e enfaticamente tolerante por natureza e disposição”.36 Outro autor conclui um estudo sobre o tema com a seguinte declaração:

Sem dúvida, historicamente, a civilização islâmica revelou notável capacidade de adaptação e reconciliação. Ela apresentou grandes exemplos de tolerância e boa-vontade universal. Sua singular filosofia de tolerância está fundamentada no amor, serviço e bem-estar do humanismo.37

Em geral, os argumentos em favor da tolerância islâmica se concentram em três aspectos: exemplos de atitudes conciliatórias de Maomé, passagens do Corão que demonstram uma atitude pacífica para com outros grupos e situações concretas de convivência cordial entre muçulmanos e adeptos de outras religiões. Ao mesmo tempo, procurando inverter a discussão, os apo-logistas islâmicos gostam de apontar para exemplos de intolerância cristã,

33 Ibid., p. 206-209.34 Ibid., p. 248.35 No âmbito acadêmico, ver, por exemplo, em ordem cronológica: TyLER, Aaron. Religious

tolerance and Islam: a case study of Turkey. Fides et Historia 37, n. 1, Wint-Spr 2005, p. 35-51; OMAR, Abdul Rashied. Islam beyond tolerance: the Qur’anic concept of ta’aruf. Brethren Life and Thought 53, n. 2, Spr 2008, p. 15-20; KHAN, A. Q. Tolerance in Islam. Hamdard Islamicus 32, n. 2, Apr-Jun 2009, p. 93-95; KAZMI, Syed Latif Hussain. An essay on the place of tolerance in Islam. Journal of Shi‘a Islamic Studies, v. II, n. 1, Winter 2009, p. 27-51; SHAH-KAZEMI, Reza. The spirit of tolerance in Islam. Londres, Nova york: Institute of Ismaili Studies, 2012.

36 SHAH-KAZEMI, The spirit of tolerance in Islam, quarta capa. Minha tradução.37 KAZMI, An essay on the place of tolerance in Islam, p. 49. Minha tradução. O autor é professor

de filosofia na Universidade Muçulmana de Aligarh, na Índia.

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mencionando nesse sentido as Cruzadas, a Inquisição, a expulsão dos mouros da Península Ibérica, o extermínio dos indígenas do Novo Mundo e a escravidão nas Américas, entre outros episódios.38 Eles deliberadamente se esquecem de que, em primeiro lugar, nenhuma dessas condutas foi motivada por convic-ções e valores cristãos e, em segundo lugar, os cristãos atuais lamentam esses erros do passado e têm expressado publicamente o seu profundo pesar pelos mesmos. Em contraste com isso, um exame detido do islã mostra que existem aspectos muito preocupantes quanto à questão da tolerância em suas fontes, em sua história passada e em seu comportamento atual.

5.1 O ethos do islãPor ser a mais recente das grandes religiões mundiais, por entender que o

seu fundador é o último e o maior dos profetas e por acreditar que o seu livro sagrado é a própria palavra divina aos seres humanos, o islã acredita que sua missão é levar o mundo inteiro a conhecer a Alá e submeter-se a ele. Embora o cristianismo também seja uma religião universalista, os cristãos sabem que nunca a humanidade inteira aceitará o evangelho. Os muçulmanos não só acreditam que o mundo pode e deve aceitar a fé islâmica, mas estão dispostos a utilizar qualquer meio para que isso aconteça. Essa mentalidade certamente não é condizente com um espírito tolerante, porque a tolerância pressupõe que todos têm o direito de crer no que quiserem sem ser coagidos a crer ou deixar de crer.

Outra dificuldade é que predomina no islã uma veneração profunda pelas origens dessa religião. Assim, tanto a pessoa de Maomé quanto o Corão e a tradição islâmica são considerados intocáveis. O fundador é idealizado e con-siderado um ser perfeito em suas virtudes e ações. Um autor o descreve com as seguintes expressões: “protótipo da perfeição humana e espiritual”, “ideal perfeito da vida moral”, “a perfeição personificada”, “o modelo perfeito de um comportamento ético”.39 O problema é que Maomé foi também um líder político e militar, tendo utilizado a força e a violência para impor as suas con-vicções. O Corão, ao lado de muitas expressões de brandura no tratamento dos não muçulmanos, também ostenta passagens eivadas de forte agressividade.

Aqui está uma diferença fundamental entre o islã e o cristianismo. Embora Jesus tenha usado uma linguagem forte em relação aos líderes do judaísmo e em certa ocasião tenha expulsado os que faziam comércio no recinto do templo, a tônica da sua mensagem foi o amor, o perdão, a não retaliação e a pregação pacífica do reino de Deus. Também é interessante o que ocorre com a Bíblia.

38 No primeiro semestre de 2015, o presidente Barack Obama utilizou argumentos semelhantes em pelo menos duas ocasiões: no National Prayer Breakfast, em 5 de fevereiro, e no Easter Prayer Breakfast, na Casa Branca, em 7 de abril.

39 KAZMI, An essay on the place of tolerance in Islam, p. 34s.

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Embora o Antigo Testamento tenha passagens muito contundentes em relação a outros povos, nem os judeus de hoje e muito menos os cristãos as utilizam para justificar qualquer beligerância contra os que não creem como eles. Existe uma série de fatores exegéticos e históricos que atenuam ou afastam por completo a aplicação literal daqueles textos para hoje.

No islã, a dinâmica é diferente. A altíssima devoção pelos elementos fundantes dessa religião faz com que os valores, métodos e práticas originais continuem a ser legitimados no presente.40 Os muçulmanos gostam de citar uma conhecida frase do Corão que declara: “Não pode haver coação na religião” (2:256). Porém, existem outras partes do livro sagrado que não são assim tão condescendentes. Isso fica particularmente claro no que diz respeito à noção fundamental de jihad.

5.2 O conceito de jihadComo foi visto, a doutrina islâmica aceita três formas relativamente

pacíficas de jihad ou esforço em prol da fé: do coração, da boca/da pena e da mão. Porém existe uma quarta modalidade, a jihad da espada, que domina a história e a jurisprudência islâmica. Em muitas de suas ocorrências no Corão, ela significa um apelo ao combate físico em favor do islã. O conceito tem quatro estágios de desenvolvimento no livro sagrado.41 Quando o islã era um movimento incipiente, Maomé aconselhou uma política de persuasão pacífica (16:125-126). Posteriormente decretou que a luta era permissível somente para repelir a agressão e resgatar bens confiscados por infiéis (22:39). Em novo estágio, essa permissão para lutar em autodefesa logo se tornou uma obrigação religiosa de combater aqueles que iniciassem hostilidades contra a comunidade islâmica (2:190-194). À medida que a doutrina se desenvolveu, o fundador ensinou que aqueles que sacrificassem suas vidas em batalha pela causa de Alá seriam recebidos no nível mais elevado do céu (9:38-39).

O terceiro estágio levou a jihad da defesa para o ataque, exceto nos quatro meses de peregrinação religiosa:

Passados os meses sagrados, combatei e matai os idólatras onde os encontrardes, aprisionai-os, cercai-os e armai-lhes emboscadas. Porém, caso se arrependam, observem as orações e deem esmolas, deixai-os em paz no seu caminho, porque Deus é indulgente e misericordioso (9:5).

40 Um autor mostra como a rigidez do Corão conflita com a ideia de tolerância: HySENI, Nezir. Tolerance and the Qur’an: understanding the unavoidable Islam. Disponível em: www.answering-islam.org/Quran/Themes/tolerance.html. Acesso em: 31/05/2015.

41 ELASS, Four jihads, p. 36-38.

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A evolução final do conceito afastou quaisquer limitações quanto à época de batalhar pela causa de Alá. Quando comandados por um líder reconhecido, os muçulmanos podiam atacar os incrédulos em qualquer época e em qualquer lugar que ainda não havia se rendido aos exércitos do islã: “Combatei os que não creem em Deus e no Dia do Juízo Final, não se abstêm do que Deus e o seu profeta proibiram, não professam a verdadeira religião daqueles que receberam o Livro, até que eles, submissos, paguem o tributo” (9:29).

De acordo com a jurisprudência islâmica, este último estágio é normativo para o islã. A prática desse princípio – jihad como “guerra santa” – explica boa parte da expansão muçulmana ao longo da história, pelo menos em regiões anteriormente cristãs. O islã é a única das grandes religiões que, principalmente nos primeiros séculos de sua história, utilizou sistematicamente a conquista militar como meio de expandir a fé. Quando confrontados com essa história de coerção e expansão, ao invés de se sentirem constrangidos, os muçulmanos se orgulham dessa herança.42

5.3 O islã e os outrosÉ verdade que, ainda em seus primórdios, os muçulmanos não obriga-

vam os não seguidores que viviam entre eles a ser converter, principalmente judeus e cristãos, os chamados “povos do livro”. Tecnicamente, os dhimmis eram comunidades protegidas no seio do islã; contudo, sofriam uma série de limitações. Tinham de usar vestes diferentes, deviam pagar um imposto e não usufruíam dos mesmos direitos políticos. Assim, experimentavam claramente uma situação de inferioridade e dependiam a cada momento da indulgência da maioria. Essa condição não lhes dava nenhuma segurança e com frequência eram perseguidos.43

Infelizmente, o próprio Maomé estabeleceu um monstruoso precedente de intolerância fatal. Quando ele fugiu de Meca para Medina, havia nessa região três tribos judaicas. Pelo fato de não o aceitarem como profeta, ele expulsou duas delas, apossando-se de suas terras e bens. A terceira, dos Banu Qurayza, teve um destino muito pior. Como eles se mantiveram neutros num ataque das forças de Meca contra Maomé, este os condenou à morte. À beira de uma vala aberta na ocasião, cerca de 800 homens e meninos foram decapitados, sendo as mulheres e crianças escravizadas. Esse horrendo episódio é narrado com detalhes pelo biógrafo do profeta, Ibn Ishaq.44

42 Ibid., p. 38.43 Ver as severas estipulações do Pacto de Umar: Christian History, v. XXI, n. 2, p. 18.44 BEVERLEy, Muhammad amid the faiths, p. 15. Para uma narrativa detalhada, ver: www.

thereligionofpeace.com/Muhammad/myths-mu-qurayza.htm. Acesso em: 31/05/2015. Há uma breve referência ao fato no Corão (33:26).

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Nos séculos seguintes, multiplicaram-se os casos de agressão contra as minorias, especialmente cristãs. Por exemplo, em 717 o califa Umar II iniciou a primeira perseguição geral de não muçulmanos; em 807, o califa Harun al-Rashid ordenou a destruição de igrejas novas; em 850, o califa Mutawakill forçou os cristãos a usarem distintivos amarelos; em 1009, o califa fatímida Hakim destruiu a Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém, e em 1091, na véspera do início das Cruzadas, os turcos seljúcidas expulsaram os sacerdotes cristãos de Jerusalém.45

Outro problema para a apologética islâmica é o que ocorre com um grande grupo interno – as mulheres. Embora se alegue que o islã inicial representou uma elevação do status feminino em comparação com práticas anteriores, o fato é que persistem, em maior ou menor grau, muitas atitudes discriminatórias contra as mulheres sancionadas pela sharia: os homens têm direito à poligamia, as mulheres herdam só a metade do que os homens, seu testemunho em juízo é limitado ou não aceito, quando acusadas de adultério são castigadas com maior severidade do que os homens, o marido tem o direito de punir fisicamente a esposa. Em muitos países, elas nada podem fazer quando são rejeitadas ou quando seus filhos lhes são tirados após um divórcio.46 Outros sérios problemas são os casamentos forçados e os assassinatos em defesa da honra.47

Quando se avalia a questão da tolerância no islã não é suficiente olhar para situações da história passada, nem para os exemplos de moderação exis-tentes em alguns países islâmicos e na conduta de muitos fiéis que vivem no Ocidente. É preciso considerar o que ocorre hoje nas nações que compõem a vasta maioria do mundo islâmico. Ao se fazer isso, o que se constata é uma realidade de cruel discriminação e repressão contra as populações cristãs que vivem pacificamente nessas regiões.

5.4 A perseguição dos cristãosUm dos fatos mais desconcertantes da atualidade é o recrudescimento

da violência contra os cristãos em muitas partes do mundo. Um livro recente sobre o assunto, depois de declarar que “os cristãos são o grupo religioso mais amplamente perseguido no mundo hoje”, apresenta uma estimativa segundo a qual 75% dos atos de intolerância religiosa são direcionados contra eles.48

45 Ver: Three phases of Christian-Muslim interaction. Christian History, v. XXI, n. 2 (2002), p. 26.46 SCHIRRMACHER, Christine. The Sharia: law and order in Islam. WEA World of Theology

Series 7. Bonn: Verlag für Kultur und Wissenschaft, 2013, p. 30-35.47 SCHIRRMACHER, Christine. Muslim immigration to Europe. Martin Bucer Seminar Texte

106. Bonn, 2008, p. 4, 7. Uma conhecida crítica do islã é a ativista somali-holandesa-americana Ayaan Hirsi Ali. Ver: KWON, Lillian. Ex-muslim: proposal that Islam is tolerant is fallacious, dangerous. 2010. Disponível em: http://www.christianpost. com/news/ex-muslim-proposal-that-islam-is-tolerant--is-fallacious-dangerous-47349/. Acesso em: 31/05/2015.

48 MARSHALL, Paul; GILBERT, Lela; SHEA, Nina. Perseguidos: o ataque global aos cristãos. São Paulo: Mundo Cristão, 2014, p. 20.

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Os mesmos autores informam que “os cristãos sofrem assédio estatal ou da sociedade em 133 países – 2/3 dos países do mundo – e em mais lugares do que qualquer outro grupo religioso”.49

Embora diversos dos países que se destacam na violação dos direitos hu-manos no âmbito religioso sejam comunistas ou pós-comunistas, como China, Coreia do Norte, Vietnã, Laos, Cuba, Rússia e as antigas repúblicas soviéticas, ou então budistas e hindus, como Índia, Sri Lanka, Nepal, Butão e Mianmar, o grosso da perseguição se concentra nos países islâmicos do Oriente Médio, norte da áfrica e sudeste asiático. A organização Portas Abertas mantém uma lista atualizada dos 50 países mais opressores do cristianismo e da liberdade religiosa.50 Destes, cerca de 35 são países muçulmanos, a começar da Somália, Iraque, Síria, Afeganistão, Sudão, Irã, Paquistão, Maldivas e Arábia Saudita.

A perseguição nesses países pode ser efetuada por governos, grupos ra-dicais ou pela sociedade em geral. As formas que essa intolerância assume são muitas: proibição de cultos e reuniões, de distribuição de literatura religiosa e de conversão à fé cristã; exigências arbitrárias para a construção de edifícios religiosos ou o registro de igrejas; discriminação em áreas como emprego, habitação e educação; multas onerosas, detenção arbitrária, interrogatório e, nos casos mais graves, destruição de templos, saques, espancamentos, tortura, estupro, assassinato e execução. Em suma, são desrespeitados os direitos à vida, integridade física, liberdade e segurança dos indivíduos, ou seja, os direitos humanos mais elementares.51

A consequência dessas ações é não só o sofrimento indescritível de indi-víduos, famílias e comunidades, mas a progressiva eliminação do cristianismo em muitas dessas sociedades. As estimativas apontam para o fato de que, nos últimos cem anos, a presença cristã declinou de 35% para 1,5% no Iraque; de 15% para 2% no Irã; de 40% para 10% na Síria e de 32% para 0,15% na Tur-quia.52 Igrejas ancestrais, como as da Caldeia e da Assíria, no Irã, e a Copta, no Egito, sofrem intensa ameaça. Mas nada se compara a situação dos cristãos da Síria e do Iraque desde o surgimento do Estado Islâmico. Um articulista observa que 2014 foi uma catástrofe para os cristãos do Oriente Médio.53

49 Ibid., p. 24. 50 Disponível em: https://www.portasabertas.org.br/cristaosperseguidos/perfil/. Acesso em:

28/05/2015. Desde 1988, Portas Abertas promove no final de maio o Domingo da Igreja Perseguida. Ver: https://www.domingodaigrejaperseguida.org.br/o-que-e.

51 A organização Anistia Internacional também denuncia ano após ano as extensas violações de direitos humanos cometidas por esses e outros países. Ver: https://www.amnesty.org/en/countries/. Acesso em: 31/05/2015.

52 MARSHALL et al., Perseguidos, p. 21.53 JENKINS, Philip. Is this the end for Mideast Christianity? Christianity Today. Disponível em:

http://www.christianitytoday.com/ct/2014/november/on-edge-of-extinction.html. Acesso em: 28/05/2015.

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O Estado Islâmico, conhecido em árabe pela sigla Daesh, reivindica ser um califado e, como tal, ter autoridade religiosa, política e militar sobre todos os muçulmanos. Essa organização de linha sunita foi criada há vários anos, mas só alcançou notoriedade internacional em junho de 2014 ao declarar a criação do califado. Controla vastas regiões do Iraque e da Síria e entre seus alvos estão todas as minorias religiosas: xiitas, yazidis, shabaks, mandeus e cristãos. Estes últimos incluem assírios, caldeus, ortodoxos, católicos e pro-testantes. A organização terrorista ocupou importantes cidades, como Mosul e Qaraqosh, dando aos cristãos três opções para não serem mortos: converter-se, fugir ou pagar um imposto. Além de destruir valiosos bens culturais e edifícios religiosos históricos, o Estado Islâmico tem cometido assassinatos cruéis na forma de crucificações e decapitações. Uma das consequências é a drástica redução da população cristã.54

Todavia, é preciso ir além. Também é importante considerar o que ocorre em nações que não enfrentam situações tão extremas como o Iraque e a Síria. A título de ilustração da gravidade do problema, são destacados a seguir vários países do Oriente Médio, da áfrica e da ásia, alguns dos quais estão entre os mais representativos do mundo islâmico.

5.4.1 Arábia SauditaO berço do islã e sede de seus locais mais sagrados é um país notório por

sua supressão da liberdade religiosa. Dominado por uma forma ultraconser-vadora da tradição sunita, o wahabismo,55 esse reino não permite a existência de nenhum local de culto não islâmico em seu território, além de exigir que todos os sauditas sejam muçulmanos. Os únicos cristãos são trabalhadores estrangeiros e diplomatas, que só podem se reunir para o culto às escondi-das. Em março de 2012, o grande mufti saudita, Abdul-Aziz ibn Abdullah Al ash-Sheikh, promulgou uma decisão jurídica (fatwa) segundo a qual “é necessário destruir todas as igrejas da região”, ou seja, mesmo as que estão fora da Arábia Saudita.56

O país se define como um estado islâmico, tendo como lei a sharia e como constituição o Corão. Muitos pregadores das mesquitas regularmente incitam a violência contra cristãos e judeus. As escolas públicas ensinam os alunos a odiar os cristãos, considerando-os infiéis e inimigos. Existe uma polícia reli-giosa (mutawwa’in) que controla a conduta e as manifestações de pensamento.

54 Ver: http://veja.abril.com.br/noticia/mundo/jihadistas-proclamam-um-estado-islamico-entre--o-iraque-e-a-siria/ (30/06/2014); http://veja.abril.com.br/noticia/mundo/avanco-jihadista-ameaca--extinguir-a-lingua-falada-por-jesus/ (28/08/2014). Acesso em: 03/09/2014.

55 Derivado de Muhammad ibn Abd al-Wahhab (1703-1792), rigoroso pregador da Península Arábica.

56 MARSHALL et al., Perseguidos, p. 27, 160.

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Os poucos convertidos cristãos são considerados apóstatas e correm o risco de ser presos, torturados e mortos. O reino saudita utiliza seus grandes lucros com o petróleo para exportar sua versão fundamentalista do islã para outros países, financiando mesquitas, escolas, livrarias e atividades sociais.57 Apesar de tudo, é considerado pelo governo americano como um importante aliado estratégico, o que limita os protestos contra a violação de direitos humanos.

5.4.2 IrãEsse país, a antiga Pérsia, é a principal expressão do islã xiita, sendo um

forte adversário da Arábia Saudita. Possui em seu território antigas confissões cristãs como a Igreja Apostólica Armênia (cerca de 300 mil adeptos dessa etnia), a Igreja Assíria do Oriente (11 mil) e a Igreja Católica da Caldeia (7 mil), além de pequenos grupos protestantes. Só reconhece oficialmente o zoroastrismo, o judaísmo e o cristianismo, os quais, no entanto, enfrentam muitas formas de discriminação. Grupos não reconhecidos, como os bahais, estão em situação ainda mais difícil. A República Islâmica do Irã impõe fortes restrições aos grupos religiosos minoritários, que têm declinado rapidamente nas últimas décadas. Em anos recentes, tem crescido o número de atos repressivos como invasão de igrejas, prisões, torturas e queima de Bíblias. O número crescente de iranianos que se convertem ao cristianismo enfrenta o risco de execução. Foi muito divulgado há alguns anos o caso do pastor youcef Nadarkhani, con-denado à morte por ter se convertido à fé cristã, que só escapou da execução, em 2012, devido à forte pressão internacional em seu favor.58

5.4.3 EgitoPaís árabe mais populoso, o Egito é o lar da maior e mais antiga comu-

nidade cristã do Oriente Médio, a Igreja Copta, com cerca de 8 milhões de adeptos (10% da população e 90% dos cristãos egípcios). Outros grupos cris-tãos são ortodoxos gregos, católicos romanos e evangélicos. Após a queda do ditador Hosni Mubarak e a tomada do poder pelos militares em 2011, foram realizadas eleições parlamentares, tendo a Irmandade Muçulmana conquista-do quase metade das cadeiras, e os salafistas, semelhantes aos wahabitas da

57 Ibid., p. 159-169. Uma missionária que trabalha em um pequeno país africano disse no início de 2015: “Nos últimos dias, temos tido certas dificuldades quanto ao crescimento absurdo do islamismo. Há um projeto deles de que a cada 45 dias seja construída uma mesquita. E é verdade. A cada dia somos surpreendidos com elas por todos os lados... Nossos vizinhos são animistas. Estão para atraí-los, eles estão servindo lanche todos os dias na mesquita, e nas sextas-feiras, depois das orações das 14h00, ser-vem almoço e dão um quilo de açúcar para levar para casa (coisa que é cara e que os nacionais apreciam muito). Também está sendo preparada aqui na capital uma conferência de líderes islâmicos de vários países da áfrica Ocidental... Está em debate na Assembleia Nacional Popular uma proposta para que o governo pague os professores das escolas alcorânicas”.

58 MARSHALL et al., Perseguidos, p. 172-180. Ver também: BAUMANN, Dan. O amor venceu o medo: o impressionante testemunho de um cristão prisioneiro no Irã. São Paulo: Vida, 2004.

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Arábia Saudita, outras 26%. Poucos meses depois, Mohamed Morsi, ligado à Fraternidade Muçulmana, foi eleito presidente com pouco mais da metade dos votos. Seu governo crescentemente autoritário chegou ao fim em julho de 2013, mediante nova intervenção militar, que também resultou em violenta repressão contra seus partidários.

Desde a “primavera árabe”, a situação dos coptas se agravou considera-velmente e muitos começaram a deixar o país. Além das leis discriminatórias quanto à reforma ou construção de templos cristãos, desde a renúncia de Mu-barak aumentaram os ataques de extremistas, forças de segurança e multidões insufladas pelo fanatismo, com muitas vítimas fatais. Multiplicam-se os incêndios de igrejas e cresce o rapto de meninas coptas com fins de conversão forçada ao islã. Os egípcios que deixam o islã e se convertem a outra fé são passíveis de morte. Uma pesquisa da organização Pew Research Center em 2010 revelou que 84% dos egípcios são favoráveis à execução de muçulmanos que mudam de religião.59 O governo se recusa a alterar a filiação religiosa nas carteiras de identidade dos convertidos.60

5.4.4 SudãoA situação dos cristãos no país ao sul do Egito é ainda pior. A fé cristã

chegou à antiga Núbia nos primeiros séculos da era cristã, mas desde a che-gada do islã a igreja sudanesa tem sofrido continuamente. O cristianismo foi revitalizado no século 19 e difundiu-se amplamente no sul do país no século 20. Com o passar do tempo, a repressão do governo islâmico de Cartum contra os cristãos, mediante a imposição da sharia em todo o território, resultou em 1983 numa guerra civil que, após muito sofrimento, levou à divisão do país. Em 9 de julho de 2011 foi oficialmente criada a República do Sudão do Sul, a mais nova nação do mundo.

Mesmo assim, a provação continua mediante ataques de simpatizantes do norte ao longo da fronteira dos dois países na forma de bombardeios, se-questros, estupros e assassinatos. Os motivos para a continuação da violência são o petróleo do sul e o desejo de islamizar a região. Além disso, o general Omar al-Bashir, que governa desde 1989 e foi acusado de crimes de guerra em uma corte internacional, continua a atacar o povo nuba, no centro do Sudão, composto de cristãos e muçulmanos moderados. Desde que o sul se separou, os poucos cristãos da capital, Cartum, também vivem sob a sombra do medo, devido aos grupos muçulmanos que ameaçam destruir igrejas, matar os fiéis e eliminar o cristianismo do país.61

59 MARSHALL et al., Perseguidos, p. 189. Ver: http://www.pewglobal.org/2010/12/02/muslims-around-the-world-divided-on-hamas-and-hezbollah/. Acesso em: 29/05/2015.

60 MARSHALL et al., Perseguidos, p. 184-195.61 Ibid., p. 213-221.

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5.4.5 NigériaO país mais populoso da áfrica, com cerca de 170 milhões de habitantes

e mais de 250 grupos étnicos, também vem sendo esfacelado pelos conflitos religiosos. A população está quase totalmente dividida entre cristãos no sul e muçulmanos no norte, sendo que outros 10% seguem crenças tradicionais africanas. Nas últimas décadas, a violência entre os dois grupos tem custado milhares de vidas. Desde 1999, 11 dos 36 estados introduziram uma versão da sharia. Ao mesmo tempo, crescem as milícias islâmicas, a mais célebre das quais é o grupo conhecido como Boko Haram, que trata como infiéis todos – cristãos e muçulmanos – que não se harmonizam com suas ideias. Seus repetidos ataques têm deixado um rastro de destruição e morte em cidades e vilas. São raros os domingos em que não ocorrem ataques contra igrejas.

Depois de se aliar à al-Qaeda, o Boko Haram declarou a sua adesão ao Estado Islâmico do Iraque e da Síria. Um de seus principais objetivos é lutar contra os cristãos e impor a lei islâmica em todo o país. A oposição deste e de outros grupos à “educação ocidental” faz com que os pais muçulmanos não enviem seus filhos à escola, perpetuando a pobreza e o fanatismo.62

5.4.6 IndonésiaEsse arquipélago asiático é considerado a maior democracia de maioria

muçulmana do mundo, com cerca de 250 milhões de habitantes. O país é cele-brado por sua ampla tolerância religiosa, mas organizações extremistas como a Frente de Defensores Islâmicos estão crescendo e se tornando mais ativas e violentas. Para os cristãos, de 10 a 13% da população, os maiores desafios à liberdade religiosa vêm da pressão social e de justiceiros, milícias e governos locais. Em algumas localidades, os cristãos têm sido objeto de ações agressivas que incluem processos judiciais, destruição de templos, espancamentos e até mesmo assassinatos.63 Todavia, o trabalho de organizações islâmicas mode-radas tem dado um novo alento à minoria cristã.64 Infelizmente, a Indonésia é uma exceção, visto que a imensa maioria das nações muçulmanas rejeita a democracia e os valores associados a ela.

5.4.7 TurquiaA antiga ásia Menor da época do Novo Testamento, palco das viagens

missionárias do apóstolo Paulo, foi uma das regiões com mais forte presença

62 MARSHALL et al., Perseguidos, p. 235-239.63 Ver: INTAM, Benyamin F. Religious violence in Indonesia: the role of state and civil society.

International Journal for Religious Freedom 5, n. 2 (2012), p. 63-77.64 MARSHALL et. al., Perseguidos, p. 240-245. Esse clima mais favorável permite o trabalho

de líderes cristãos como o Rev. Stephen Tong, pastor de uma grande e próspera igreja reformada em Jakarta.

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cristã ao longo dos séculos. A situação mudou devido à contínua pressão dos turcos convertidos ao islamismo, culminando com a queda de Constantinopla em 1453. O Império Otomano foi o mais poderoso que já surgiu no Oriente Médio e só chegou ao fim com a 1ª Guerra Mundial, após a qual foi criada, em 1923, a moderna República da Turquia. Esse período de transição representou uma imensa tragédia para várias minorias cristãs, especialmente os armênios, submetidos a massacres e deportações.

Conhecida como uma república secular e interessada em ser admitida na União Europeia, a Turquia começou a mudar de direção em 2002 com a chegada ao poder do Partido Justiça e Desenvolvimento, de orientação islâmi-ca, fundado por Recep Erdogan. Com isso, aumentaram as dificuldades para os grupos cristãos, que representam apenas 0,15% da população do país e se encontram sob o risco de ser totalmente extintos. O controle estatal da religião é exercido por meio da poderosa Diretoria de Assuntos Religiosos (Diyanet). Vistas como inimigas da “identidade turca”, as igrejas sofrem inúmeras ameaças, como sufocantes restrições legais de suas atividades, proibição do treinamento local de religiosos (seminários não são permitidos), bem como propaganda negativa na imprensa, escolas e mesquitas. Somente são reconhecidos oficial-mente os ortodoxos gregos, armênios e judeus. Os protestantes, considerados uma presença estrangeira, sofrem restrições ainda maiores. Em anos recentes ocorreram brutais assassinatos de cristãos.65

5.5 Problemas de uma cosmovisãoApesar das alegações enfáticas de seus apologistas, existem peculiari-

dades no ethos, na lógica interna ou na autocompreensão do islã que tornam difícil a convivência com outros grupos. Quando se fala em tolerância na re-ligião islâmica, o que se tem em mente não é uma aceitação mútua de iguais, mas uma atitude de condescendência do superior para com o inferior, atitude essa que pode ser modificada a qualquer momento. Quando se fala em paz, é a paz que irá resultar do predomínio final do islã, não uma ausência de ani-mosidade para com os outros. Em última análise, o que se espera e deseja é a submissão de todos ao islã.66

Esse sentimento de superioridade está acompanhado de uma hipersen-sibilidade que faz os muçulmanos reagirem de maneira desproporcional ao

65 MARSHALL et al., Perseguidos, p. 134-145. Ver também: UPHOFF, Petra. Islam and tolera-tion: what does religion teach? Islam and Christianity 8, n. 1 (2008), p. 30s.

66 SCHIRRMACHER, Christine. Islam and society: sharia law – jihad – women in Islam. WEA Global Issues Series 4. Bonn: Verlag für Kultur und Wissenschaft, 2008, p. 45-54. Outras obras dessa autora são: The Islamic view of major Christian teachings (2008), Apostasy and sharia (2009). É edi-tora do periódico Islam and Christianity, do Instituto de Estudos Islâmicos (Alianças Evangélicas de Língua Alemã).

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que entendem como ameaça e desrespeito à sua religião. Por exemplo, uma hadith afirma que Maomé desaconselhou a reprodução da sua figura para que não se tornasse um objeto de culto. Isso não impediu que pintores islâmicos medievais o retratassem em muitas obras de arte. Hoje, se uma publicação ostenta um desenho do profeta, mesmo que inocente e não desrespeitoso, tal fato desperta acusações de blasfêmia e reações muitas vezes letais de multidões ensandecidas, pelo mundo afora.67 Este sentimento de ofensa não está presente com tal intensidade em outras religiões.

Outro problema do islã é a incapacidade de compreender que o cristianis-mo não pode ser responsabilizado por tudo de mau que ocorre no Ocidente e pelas ações negativas de países ocidentais em relação ao mundo muçulmano. Além de haver no hemisfério norte a plena separação entre igreja e estado, as sociedades europeias e norte-americanas são fortemente secularizadas, tendo há muito abandonado as melhores convicções e valores do cristianismo. É igualmente injusto despejar reações de frustração e fúria sobre as pacíficas comunidades cristãs que sobrevivem com tanta dificuldade no mundo islâmico.

Quanto à alegação de que o extremismo é uma distorção perversa do verdadeiro islã, é importante lembrar que, no cristianismo, mesmo os grupos mais aberrantes do ponto de vista doutrinário ou ético jamais adotaram práticas tão violentas. Que adeptos de outras religiões bradam “Deus é grande!” (Allahu Akbar) enquanto cometem os maiores atos de crueldade? A agressividade latente no islã desde os seus primórdios e externada nas muitas situações menciona-das acima leva a concluir que a diferença entre o radicalismo islâmico e o islã majoritário não é tanto de natureza, e sim de grau.68 A diferenciação que se faz entre Dar al-islam (“a casa do islã”) e Dar al-harb (“a casa da guerra”), esta última sendo o mundo não muçulmano a ser conquistado, não é indicativa de uma atitude pacífica e tolerante.

conclusãoA interação entre os mundos cristão e muçulmano é uma realidade inevi-

tável na contemporaneidade. Assim como os muçulmanos, os cristãos também creem na plena veracidade da sua fé e desejam compartilhá-la com todos os povos e culturas. Eles querem dialogar e debater com os adeptos de outras religiões num ambiente de liberdade, respeito e convivência cordial.69 Se o

67 Foi o que ocorreu no Níger a partir do dia 16 de janeiro de 2015, depois que o jornal Charlie Hebdo publicou em sua capa uma charge de Maomé.

68 Ver: BRASIL, Felipe Moura. O mito da minoria radical muçulmana. Disponível em: http://veja.abril.com.br/blog/felipe-moura-brasil/2015/01/07/o-mito-da-minoria-radical-muculmana/.

69 O Seminário Teológico Reformado, em Jackson, Mississipi, é um dos poucos que têm um programa voltado especificamente para o estudo e ministério a esse grupo, denominado “Our Muslim Neighbors” (nossos vizinhos muçulmanos).

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islã está seguro de suas crenças, não precisa temer que seus fiéis mantenham contato com a fé cristã.

Existem valores no islã que podem ser utilizados para criar uma nova ati-tude em relação aos demais grupos religiosos. Porém, isso exigirá uma mudança de mentalidade dos juristas, dos exegetas, dos pregadores e dos governantes islâmicos, para que exerçam um novo tipo de influência sobre as suas popula-ções. Peter Demant, autor nitidamente simpático ao islã, propõe uma reforma dessa religião em torno de alguns pontos essenciais: reinterpretação mais flexível de suas fontes, nova valorização da diversidade, reconciliação com a modernidade, valorização da democracia e atuação decisiva do islã ocidental.70

Os cristãos reconhecem a legitimidade de muitas críticas dos muçulmanos em relação ao Ocidente. O materialismo, a corrupção moral, o hedonismo e a atitude imperialista são merecedores de censura.71 O fervor e a intensidade do islã também contrastam com o comodismo e a superficialidade de muitos cristãos ocidentais. Porém, o cristianismo entende que a violência, o espírito de vingança e a imposição de uma visão religiosa são igualmente condenáveis e pecaminosos. Eles não podem ficar passivos diante das agressões brutais que os seus irmãos sofrem em muitas partes do mundo. Não se trata de islamofobia, mas de uma questão de justiça e solidariedade.

Ao contrário de outros líderes ocidentais, que preferem um silêncio cúmplice sobre esse tema, o primeiro-ministro inglês David Cameron falou claramente do assunto em sua mensagem de Páscoa de 2015. Depois de apontar o significado da data, mostrar a relevância do cristianismo na vida inglesa e declarar que a Inglaterra é um país cristão, ele acrescentou:

Temos o dever de falar sobre a perseguição de cristãos ao redor do mundo. É realmente chocante que, em 2015, ainda existam cristãos sendo ameaçados, torturados e até mortos por causa de sua fé, do Egito à Nigéria, da Líbia à Coréia do Norte. Por todo o Oriente Médio cristãos têm sido arrastados de suas casas, obrigados a fugir de vila em vila, muitos deles forçados a renunciar à sua fé ou sendo brutalmente assassinados. A todos esses corajosos cristãos no Iraque e na Síria que praticam a sua fé ou oferecem refúgio a outros, devemos dizer: “Nós estamos com vocês”.72

70 DEMANT, O mundo muçulmano, p. 357-364. 71 Ver yANCEy, Philip. Por que os muçulmanos nos odeiam? In: WINTER, Ralph et al. Pers-

pectivas no movimento cristão mundial. São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 481-483. No romance ficcional Submissão, publicado recentemente em português, o escritor Michel Houellebecq imagina a ascensão ao poder de um partido político muçulmano na França e as consequências desse fato. Visto como uma crítica ao islã, o livro na realidade aponta para a decadência cultural e espiritual da Europa.

72 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=A6JzlUwnSWw&feature=youtu.be. Acesso em: 22/05/2015.

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Os imigrantes muçulmanos e seus descendentes desfrutam, no mundo ocidental, do pleno direito de cultivar a sua religiosidade. Ainda que, por ve-zes, sejam objeto de manifestações de antipatia por parte de alguns indivíduos, isso em nada se compara ao que os cristãos e outras minorias experimentam nos países islâmicos. Existe a necessidade de uma transformação na religião islâmica conforme entendida e praticada na atualidade, de um retorno à atitude mais flexível, aberta e coerente de outros tempos. Num mundo que se depara com tantos problemas angustiosos como a superpopulação, o esgotamento dos recursos naturais, o desequilíbrio ecológico, a fome e a miséria, a religião não pode ser mais uma fonte de medo e insegurança.

abstractThe beginning of the 21st century is witnessing events in the realm of

religion with great historical significance. Islamic radicalism is haunting the world with its persistent aggressiveness and broad scope. The Middle East, North Africa, and parts of Asia, Europe and North America have been the stage of extremist fanaticism and violence. In special, Christian communities living peacefully in Muslim countries are being the targets of horrible cruelty. In several regions, the remaining Christianity is on its way to extinction. Many observers and scholars assert that such actions represent a grotesque distortion of Islam and are not in harmony with the true spirit of that religion. Time after time, internal and external apologists state that historically the Muslim faith has fostered tolerance and peace. The aim of this article is to reexamine this issue by looking at Islam’s sources, its history, and the developments in recent years.

KeywordsIslam; Islamism; Muslims; Mohammed; Coran; Hadith; Sharia; Tolerance;

Multi-culturalism; Christianity; Fundamentalism; Persecution; Human rights.

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covEnant thEology in thE thought of John calvin: from thE covEnant of workS

to thE abrahamic covEnantBreno Macedo*

abstractCovenant theology has always had a special place in the Reformed branch

of theology. It is the ground for several other doctrines and also functions as a hermeneutical key to reading and interpreting the Scriptures. Although the great systematizations of this doctrine only appeared in the seventeenth-century and onward, it is possible to find it present in the thought of the early Reformers. This article investigates some of the main works of John Calvin in the attempt to organize his thought regarding this doctrine and aims to formulate what would be the view of the Genevan reformer on each dispensation of the divine cove-nant with man. The article analyses the following covenants: works, Noahic, and Abrahamic. Several articles have been published investigating Calvin’s covenantal thought as a whole, in terms of the covenant of grace in general. It was not possible to find an academic contribution that would investigate each of the dispensations in Calvin’s thought.

KeywordsJohn Calvin; Theology; Covenant; Works; Noahic; Abrahamic.

introductionJohn Calvin certainly is one of the most influential theologians of the Re-

formation, if not the most influential. His commentaries on the Bible, his letters,

* The author earned a M.Div. from Greenville Presbyterian Theological Seminary, a Th.M. from Puritan Reformed Theological Seminary, and is a doctoral candidate (Ph.D.) at the University of Free State, South Africa, with concentration in historical theology. He teaches at Seminário Teológico Pres-biteriano do Nordeste (Northeast Presbyterian Theological Seminary), in Teresina, Brazil.

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Breno Macedo, covenant theology in the thought of John calvin

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and his magnum opus, the Institutes, are still read, researched, and analyzed by many today. His influence not only in theology, but in society and economy, is widely recognized. Regardless of one’s love or hate for him, all ought to acknowledge the historical reality of this man’s achievements.

When it comes to understanding Calvin’s thought, many have tried to identify the central dogma, the structural principle of Calvin’s theology. Several have been proposed, but there is still no positive consensus among scholars.1 From the debate at least one certainty seems to have emerged and become an accepted position in scholarly circles: if there is a central dogma dominating Calvin’s thought, most certainly it is not covenant theology. Everett H. Emerson explains that “Calvin himself, like many other Christian theologians, spoke of a divine covenant, but because the covenant is not a basic element for his system, he is not regarded as a covenant theologian.”2 However, as Emerson affirms, no one would deny that the doctrine of the covenant is present in all of Calvin’s works from the Institutes to his commentaries. It may not be the center of his system, if he has a system at all, but as a fruit of his exegetical genius and of his Sola Scriptura, the covenant is found in crucial topics of Calvin’s theology like creation, predestination, justification, sanctification, sacraments, and church discipline.

The goal of this article is to investigate Calvin’s writings in search for the reformer’s views on the divine covenants and to organize them in the ge-nerally accepted division of the doctrine: works and grace. Calvin’s doctrine of the covenant of grace will be analyzed in terms of its five most accepted dispensations: Noahic, Abrahamic, Mosaic, Davidic, and New Covenant. The article will systematize Calvin’s thought in terms of the basic elements of a covenantal relationship: the existence of a covenant, its parties, characteristics,

1 The central dogma methodology is one of the most common approaches to the study of Calvin’s thought. Cornelis Venema explains that the method consists of finding “the key to Calvin’s theology in one dominant theme. A central idea or motif in Calvin’s though is regarded as the basis for its various sub-themes. Implicit in this approach is the conviction that Calvin was, in contrast to the other reformers and Luther in particular, the author of a theological system whose various aspects constitute an inter-related and inter-connected pattern of ideas.” Cornelis P. Venema, Accepted and Renewed in Christ: The Twofold Grace of God and the Interpretation of Calvin’s Theology (Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2007), 14. While Luther dedicated more attention to the dogma of justification by faith, several theologians believe that the central theme in Calvin’s theology is the doctrine of God, with special focus on God’s sovereignty and predestination. For more on this subject, see Charles Partee, “Calvin’s Central Dogma Again,” The Sixteenth Century Journal 18, n. 2 (July 1987): 191-200; Richard A. Muller, “Calvin and the ‘Calvinists’: Assessing Continuities and Discontinuities between the Reformation and Orthodoxy,” Calvin Theological Journal 30, n. 2 (November 1995): 345-375; Richard A. Muller, Calvin and the Reformed Tradition: On the Work of Christ and the Order of Salvation (Grand Rapids, MI: Baker Aca-demic, 2012), 13-50; François Wendel, Calvin: Origins and Development of His Religious Thought, trans. Philip Mairet, first Labyrinth Press edition (Grand Rapids, Mich.: Baker Academic, 1995), 263-284.

2 Everett H. Emerson, “Calvin and Covenant Theology,” Church History 25, n. 2 (June 1956): 136.

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promises, and threats. At the end, it will demonstrate that, although the Refor-mer himself did not produce a systematic approach to covenant theology, it is possible to formulate a “Calvinian” system through his theological writings.

1. covenant of worKs in the thought of john calvin

The presence of a covenant of works in Calvin’s theology has long been a debated issue. Donald J. Bruggink in a controversial article published in 1959 boldly affirmed that there was a complete absence of any intimation of a covenant of works made with Adam in Calvin’s writings.3 Leonard Trinterud is another scholar who placed doubt concerning the presence of a covenant of works in Calvin’s thought, at least as expressed in later works on federal theology like those of Ursinus, Olevianus, and the English Puritans. Although acknowledging Calvin’s frequent use of the word “covenant” in his works, Trinterud affirms that Calvin’s meaning and interpretation of the covenant was very different from his successors.4 For him, Calvin viewed the covenant as a gracious act of God in which the burden of fulfillment was placed upon God alone, while for later theologians the covenant meant a mutual compact depen-dent on man’s response in obedience.5 If Trinterud is right, than there is really no space in Calvin’s theology for a covenant of works which, by definition, is dependent on man’s faithfulness to God’s terms of covenant in order to enjoy its benefits.

In spite of the contrary positions, an unbiased look at Calvin’s writings seems to point to the presence of a mutual contract between God and Adam before the Fall, at least in seminal form. The first evidence clearly found in Calvin’s writings is that Adam’s relationship with God was conditioned by the Creator’s commands. The tree of life was to be a reminder of Adam’s source of life. “Man, as often as he tasted the fruit of that tree, should remember whence he received his life, in order that he might acknowledge that he lives not by his own power, but by the kindness of God alone.”6 The tree of the knowledge of good and evil served as an instrument to test Adam’s obedience

3 Peter A. Lillback, “Ursinus’ Development of the Covenant of Creation: a Debt to Melanchthon or Calvin?,” Westminster Theological Journal 43, n. 2 (March 1981): 274.

4 “For Calvin… the covenant of God is God’s promise to man, which obligates God to fulfill… In the covenant theory of the Rhineland and of the English reformers, the covenant is a conditional promise on God’s part, which has the effect of drawing out of man a responding promise of obedience, thus creating a mutual pact or treaty. The burden of fulfillment rests upon man, for he must first obey in order to bring God’s reciprocal obligation into force.” Leonard J. Trinterud, “The Origins of Puritanism,” Church History 20, n. 1 (March 1951): 45.

5 Trinterud, “The Origins of Puritanism,” 56n27.6 John Calvin, Commentaries on the First Book of Moses Called Genesis, trans. John King, v. 1

(Grand Rapids, MI: Baker Book House, 2005), 117.

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Breno Macedo, covenant theology in the thought of John calvin

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to God and to teach him subjection. “A law is imposed upon him in token of his subjection… Therefore, the prohibition of one tree was a test of obedience.” Being successful in his test, Adam would enjoy a blessed state yet unknown to him. “His earthly life truly would have been temporal; yet he would have passed into heaven without death, and without injury.”7 “Truly the first man would have passed to a better life, had he remained upright; but there would have been no separation of the soul from the body, no corruption, no kind of destruction, and, in short, no violent change.”8 Calvin understands, therefore, that the relationship between God and Adam is a sort of probation based on man’s obedience.9 This, in spite of the absence of the word “covenant”, is a fundamental element in the doctrine of the covenant of works.10 Paul Helm rightly affirms: “Calvin teaches that the relation of Adam to his creator was that of a probationer.”11

It is important to note that, for Calvin, the condition imposed upon Adam was a legal arrangement. The reformer refers to the condition of Adam’s proba-tion as “a law”. But it would be wrong to limit the definition of law in Calvin’s theology to the single command of abstinence of the forbidden fruit without considering Calvin’s writings as a whole. In his commentary of Leviticus 18:5, Calvin recognizes the salvific power of the Law of Moses (the moral law) although “salvation is not to be expected from the Law unless its precepts be in every respect complied with.”12 After the Fall, the law continues to provide life to all those who can perfectly obey it.13

In other words, Calvin sees continuity between Eden and Sinai. In both circumstances life was promised and death was threatened under the same condition: perfect obedience to the Law. The Edenic single condition of perfect

7 Calvin, Commentaries on Genesis, 1:127.8 Ibid., 1:180.9 Calvin expressed the same view of a probationary relationship between God and Adam in his

Institutes. There, one finds him affirming: “But the promise by which he was biden to hope for eternal life, and, conversely, the terrible threat of death once he tasted of the tree of the knowledge of good and evil, served to prove and exercise his faith.” Jean Calvin, Institutes of the Christian Religion, ed. John T. McNeill, trans. Ford Lewis Battles, v. 1 (Louisville, Ky: Westminster John Knox Press, 1960), 245, II.I.4.

10 Westminster Confession of Faith, Chapter 7, Section 2.11 Paul Helm, “Calvin and the Covenant: Unity and Continuity,” Evangelical Quarterly 55 (April

1983): 74.12 John Calvin, Commentaries on the Four last Books of Moses Arranged in the Form of a Har-

mony, trans. Charles William Bingham, vol. 2 (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 2005), 204.13 “…he [Moses] considers the Law as connected with promises and threatening. Whence it follows,

that salvation can only be procured by it if its precepts be exactly fulfilled. Life is indeed promised in it, but only if whatever its commands be complied with; whilst, on the other hand, it denounces death against its transgressors, so that to have offended in the slightest point is enough to condemn and destroy a person; and thus it overwhelms all men with despair.” Calvin, Commentaries on the Four last Books of Moses, 2:200.

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obedience is fully revealed at Sinai as the Decalogue.14 The legal element is, the-refore, present in the Adamic administration along with all the other elements that characterize a covenantal relationship. The covenant of works may not be clearly systematized and spelled out in Calvin’s writings, but it is there in seed form.15

As mentioned above, several are the arguments against the idea that a pre-lapsarian covenant is present in Calvin.16 One of the arguments used is that unlike the common interpretation covenant theologians give to Hosea 6:7, Calvin rejects the idea that this text speaks of a covenant with Adam.17 In spite of its immediate appearance, it is necessary to interpret Calvin’s statement in its local context. What Calvin rejects here is the attempt to translate the word ~d"a'B. from the Hebrew text as “Adam” and to understand from this translation that Hosea is referring to the first man created, the father of humanity. In other words, Calvin refuses to use Hosea 6:7 as a reference to the covenant with Adam but he does not deny the doctrine of covenant itself. This, on the other hand, is extremely significant. As observed by Lillback, Calvin is used to expressing his disapproval of the illegitimate use of biblical passages in order to support dogmatic assertions.18 In his commentary of Genesis 1:1, Calvin recognizes the plural form of ~yh+Il{a/ and even affirms that one might infer from it a plurality in the godhead. Nevertheless, he refuses to use this exegetical evidence as a proof for such an important doctrine and even condemns those who do so.19

14 The same line of thought and conclusion are present in the works of Lillback, “Ursinus’ Develop-ment of the Covenant of Creation,” 282-283, and Heinrich Heppe, Reformed Dogmatics (Eugene, OR: Wipf and Stock Publishers, 2008), 288-292.

15 Paul Helms comes to the same conclusion when he affirms that “it is clear that Calvin presents all the elements of the later-developed covenant of nature, and that he denies nothing that the later, more elaborate doctrine affirms: the probation of the federal head Adam, by being given a divine command or law; the threat of punishment for disobedience and the promise of reward for obedience.” Helm, “Calvin and the Covenant,” 75.

16 A good summary of the most popular arguments against a covenant of works in Calvin’s theology is found in Lillback, “Ursinus’ Development of the Covenant of Creation,” 274-281.

17 “Other explains the words thus, “They have transgressed as Adam the covenant.” But the word, Adam, we know, is taken indefinitely for men. This exposition is frigid and diluted, “They have transgressed as Adam the covenant;” that is, they have followed or imitated the example of their father Adam, who had immediately at the beginning transgressed God’s commandment. I do not stop to refute this comment; for we see that it is in itself vapid.” John Calvin, Commentaries on the Twelve Minor Prophets, trans. John Owen, v. 1 (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 2005), 235.

18 Lillback, “Ursinus’ Development of the Covenant of Creation,” 281.19 “They think that they have testimony against the Arians, to prove the Deity of the Son and of the

Spirit, but in the meantime they involve themselves in the error of Sabellius, because Moses afterwards subjoins that the Elohim had spoken, and that the Spirit of the Elohim rested upon the waters. If we suppose three persons to be here denoted, there will be no distinction between them. For it will follow, both that the Son is begotten by himself, and that the Spirit is not of the Father, but of himself. For me it is sufficient that the plural number expresses those powers which God exercised in creating the world.” Calvin, Commentaries on Genesis, 1:71-72.

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Another argument against a covenant of works in Calvin is drawn from his understanding of the imputation of Adam’s sin. Some would argue that a pre-lapsarian covenant demands a representative view of the imputation of the original sin. The representative position affirms that Adam was chosen (appointed) by God as humanity’s federal head and it is this appointment that makes every man responsible for Adam’s transgression. This perspective was developed by later Reformed theologians.20 In contrast, it is affirmed that Calvin, influenced by Augustine and Anselm, was a realist. Calvin believed, it is affirmed, that because Adam is the source of all the human race, in Adam’s “loins” all mankind also sinned, coming into existence in an already fallen state.21

It is indeed true that Calvin held the realistic position. This is verified in a statement found in the Institutes.22 But it is false to affirm that Calvin held to this particular position alone. Texts that point to a representative view are also found in Calvin.23 The attempt to identify Calvin in one of the two schools concerning the nature of the imputation of Adam’s sin is, at least, inconclusive. And regardless of Calvin’s position on this issue, Reformed theologians have already agreed that the doctrine of the covenant of works is compatible with either view.24 The simple fact that Calvin adheres to one of them is an actual indication that a pre-lapsarian covenant is present in Calvin’s thought.

The presence of the covenant of works in Calvin’s theology seems very clear. It is correct to affirm that the theologian of Geneva did not produce a systematic treatise on the subject compared to the works of famous covenant theologians like Ursinus, Olevianus, Musculus, Perkins, Ball, and the West-minster divines. Actually, the contrary is what seems to be true. The theologians of the post-Reformation, “drinking” from Calvin and others, elaborated a more sophisticated system in order to explain a biblical dogma. Regardless of how

20 Helm, “Calvin and the Covenant,” 72.21 According to Lillback it was the great southern Presbyterian James H. Thornwell who held to

this position. Lillback, “Ursinus’ Development of the Covenant of Creation,” 278n99.22 “Adam, by sinning, not only took upon himself misfortune and ruin but also plunged our nature

into like destruction. This was not due to the guilt of himself alone, which would not pertain to us at all, but was because he infected all his posterity with that corruption in to which he had fallen.” Calvin, Institutes, 1:249.

23 “…the beginning of corruption in Adam was such that it was conveyed in a perpetual stream from the ancestors into their descendants. For the contagion does not take its origins from the substance of the flesh or soul, but because it had been so ordained that the first man should at one and the same time have and love, both for himself and for his descendants, the gifts that God had bestowed upon him.” Calvin, Institutes, 1:250.

24 Shedd, another Presbyterian theologian, affirmed: “Since the idea of representation by Adam is incompatible with that of specific existence in Adam, the choice must be made between representative union and natural union. A combination of the two views is illogical. But the doctrine of the covenant of works is consistent with either theory of the Adamic connection.” William G. T. Shedd, Dogmatic Theology (Nashville, TN: Thomas Nelson Publishers, 1980), II, 39-40.

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and whom later theologians are indebted to for their theology of a covenant of works, it seems clear that this doctrine is already present in Calvin in seminal form. Lillback concludes: “The arguments affirming that Calvin taught a co-venant of works in an inchoative sense appear conclusive.”25

2. the beginning of the administration of the covenant of grace and the noahic covenant

For Calvin, all true believers after the Fall are under the covenant of grace. In the two most important chapters in the Institutes regarding Calvin’s views on the doctrine of the covenant, chapters 10 and 11 of Book II, the re-former affirms that to Adam was given the first promise of salvation.26 Calvin was referring to the text of Genesis 3:15, which later became known among covenant theologians as the protoeuangelion.27 This certainly explains why Calvin frequently uses the following sequence of persons when dealing with redemption in its revelation, accomplishment and application: “Adam, Noah, Abraham.” In his argument in the commentary on the book of Genesis, Calvin affirms that the covenant between God and his people dates back long before Moses. Those whom he would free had already been informed through their fathers about the covenantal relation between yahweh and Israel and this was a knowledge “entirely uncontroverted among them.”28 For Calvin, salvation after the Fall begins to be revealed to Adam and progressively passes on to other patriarchs until its full consummation in Christ.29

25 Lillback, “Ursinus’ Development of the Covenant of Creation,” 288.26 For an excellent summary on the importance of these two chapters in the understanding of

Calvin’s covenantal thought see Calvin, Institutes, 1:428n1.27 Calvin, Institutes, 1:446. It is important to note that while Calvin interprets Genesis 3:15 as

pointing to the salvation of sinners, he rejects the association of the word “seed” with the Lord Jesus Christ. Such interpretation for Calvin is a violent distortion. His reasons are two: one exegetical and another historical. He identifies the term as a collective noun and simply cannot understand how it can be applied to one man only as such. Moreover, throughout human history as revealed in Scripture Calvin sees that victory over Satan (who used the serpent to tempt Adam and Eve) is promised to elect human-kind. Calvin concludes: “I explain, therefore, the seed to mean the posterity of the woman generally. But since experience teaches that not all sons of Adam by far, arise as conquerors of the devil, we must necessarily come to one head, that we may find to whom the victory belongs.” Calvin, Commentaries on Genesis, 1:170. In his sermon on this text Calvin uses Genesis 3:15 as an encouragement to Christians in their battle against Satan. After explaining from the pulpit the same opinion present in his commentary, he affirms: “Now, since we have the natural meaning of this passage, let us think seriously about taking advantage of it. In the first place, as I have already said, let us be thoroughly convinced that we must fight against Satan if we want to serve God and be considered among the number of his children.” John Calvin, Sermons on Genesis 1:1 - 11:4. Forty-nine Sermons Delivered in Geneva between 4 September 1559 and 23 January 1560, trans Rob Roy McGregor (Carlisle, PA: Banner of Truth, 2009), 289.

28 Calvin, Commentaries on Genesis, 1:59, 65-66.29 For the occurrences of the expression see Calvin, Institutes, 1:70, 434. It also appears in Book 4,

viii, 5 as he deals with the Church and its possession of divine revelation. For Calvin, Adam and Noah were also to be regarded as patriarchs just like Abraham, Isaac and Jacob.

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Calvin sees yahweh’s promise of preservation and deliverance to Noah as the Noahic covenant. The promise is a strengthener to Noah’s faith, who certainly needed it to face the difficult construction of the ark and the many terrors which were ahead of him, although he was a man of incomparable faith.30 The covenant, therefore, is above all a means for Noah to live by faith. It is an instrument to entice Noah’s trust in the word of God and to help him “discriminate between life and death.”31 The Noahic covenant is in general terms a promise of preservation directed to Noah alone.32

Calvin uses certain terms in ways different from how they came to be used in more careful and elaborated views of the covenant. When talking about the preservation of Noah’s family and of the animals, Calvin calls it a “condition annexed” to the covenant to encourage Noah in reference to the “replenishing of the new world.”33 It is clear by Calvin’s own interpretation that this con-dition is not to be fulfilled by Noah but by yahweh. In seventeenth-century thought, the condition of the covenant is that part of the divine agreement must be performed by man, not by God.34 In light of the later use of the term, what Calvin means here is an annex to the covenant’s divine promise of life. Another

30 Calvin, Commentaries on Genesis, 1:258, 296.31 Calvin, Commentaries on Genesis, 1:259. Calvin does not identify the threats of the covenant.

But since the promise of the covenant should assist Noah’s faith to obedience, it seems reasonable to conclude that for Calvin the threat of the covenant would be to drawn with the rest of the disobedient human race. Similar to the Adamic Covenant, which promised life upon obedience and death upon dis-obedience, so does the Noahic covenant. The clear difference in Calvin’s thought is that the obedience of Noah to the covenant is only by faith and the object of faith is the promise of the covenant itself. Calvin will later call this covenant “the covenant of life.” Calvin, Commentaries on Genesis, 1:310.

32 Calvin, Commentaries on Genesis, 1:259. “For there is an understood antithesis, that the whole world being rejected, the Lord would establish a peculiar covenant with Noah alone.” Emphasis mine.

33 Calvin, Commentaries on Genesis, 1:259.34 Zacharias Ursinus in regard to the covenant teaches that “this agreement, or reconciliation, is

called a Covenant, because God promises to us certain blessings, and demands from us in return our obedience, employing also certain solemn ceremonies for the confirmation thereof.” For Ursinus, covenant promises derive from God and covenant conditions are for men. The conditions of a covenant are its substance and they are repentance and faith. This element is what leads Ursinus to the conclusion that “there is but one covenant.” See Zacharias Ursinus, The Commentary of Dr. Zacharias Ursinus on the Heidelberg Catechism, trans G. W. Williard (Phillipsburg, N.J.: Presbyterian & Reformed Pub. Co., 1985), 97-100. In a similar fashion Thomas Watson, preaching on question 12 of the Westminster Shorter Catechism which affirms that God, after creating man, entered into a covenant of life with him upon condition of perfect obedience, affirms that “the form of the first covenant in innocence was working; ‘Do this and live.’ Working was the ground and condition of man’s justification.” Thomas Watson, Body of Divinity: Contained in Sermons upon the Assembly’s Catechism, ed. George Rogers (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1979), 90. Preaching on question 20 of the same catechism, this time on the covenant of grace, he explains that “it is a covenant of grace, because it is a royal charter, all made up of terms of grace; that ‘God will cast our sins behind his back;’ that ‘he will love us freely;’ Hos 14:4; that he will give us a will to accept the mercy of the covenant, and strength to perform the conditions of the covenant. Ezek 36:67. All this is pure grace.” Watson, Body of Divinity, 107.

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instance of different terminology is when Calvin calls Noah “the stipulator of the covenant.” 35 He uses this term to describe Noah as the subject with whom the covenant is being made and that his sons are incorporated to the agreement by association. Although the word can be used in reference to one who accepts a deal without requiring any kind of guarantee, in later developments of the doctrine of the covenant the word was used mainly in reference to yahweh’s role of setting up the details of the agreement.36

The parties of the Noahic Covenant, for Calvin, are God and Noah. As already noted, Noah’s family and the animals are part of God’s promise (or, using Calvin’s terminology, condition) to Noah in order to encourage him to present obedience and future hope. This is why this covenant results in both human and cosmic preservation.37 But Calvin observes that the entrance of Noah’s family into the covenant has a “subordinated place.” Noah’s sons and their wives are “joined with their father” and are “associated with him.”38 It seems that Calvin considers Noah as the federal head of his family, like Adam, and his posterity, both near and far, participate with him in the covenant. Calvin uses this conclusion in order to refute the Anabaptists, who reject infant baptism

35 Calvin, Commentaries on Genesis, 1:297.36 One of the first Reformed creeds to give attention to the doctrine of the covenant was the

Erlauthaler Confession of 1562. It expresses in concise but precise form what was understood by a divine covenant. According to Peter De Jong, in it “God the Father is recognized as ‘stipulator et promissor.’ However, since in all covenant there are two parts, so too in the new covenant of God with man there are obligations which must be met. Recognizing and elaborating upon this the confession states: ‘In nove foedere Deus stipulator est, Christus autem factor obligator nostro nomine.’” Peter y. De Jong, The Covenant Idea in New England Theology, 1620-1847 (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans, 1945), 30. In this sense, stipulator means the one who begins the arrangement and set its requirements. In the seventeenth-century, Johannes Cocceius seems to be the one who, using Roman law terminology, applies the term stipulator only to God meaning “the initiator, the one who lays down the conditions of the agreement.” And to man he applies the term astipulator, who consents to the conditions laid down by the stipulator. Charles S. McCoy, “The Covenant Theology of Johannes Cocceius” (PhD diss., yale University, 1957), 157-194. See particularly 169n2. Calvin uses to term in reference to God in his commentary to the prophecy of Malachi. There he explains the divine covenant in terms of the marriage covenant. He affirms that “God is as it were the stipulator, who by his authority joins the man to the woman, and sanctions the alliance.” John Calvin, Commentaries on the Twelve Minor Prophets, trans. John Owen, vol. 5 (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 2005), 553. It seems that here Calvin acknowledges God’s role as one who officially unites and bonds a couple in their marital vows. The no-tion of an initiator and one who dictates obligations seems to be absent here. In his excellent historical study of covenant theology, Andrew Woolsey explains that there was in Calvin’s covenantal thought the idea of “mutual stipulations.” But, used in this sense, the word means condition instead of initiation. Andrew A. Woolsey, Unity and Continuity in Covenantal Thought: a Study in the Reformed Tradition to the Westminster Assembly (Grand Rapids, MI: Reformation Heritage Books, 2012), 306-317.

37 “In other words, the world today does not survive apart from the power of that covenant God placed between men and himself…he wants to preserve us and all living creatures because of his infinite goodness even though we deserve to be exterminated.” Calvin, Sermons on Genesis 1 to 11, 752.

38 Calvin, Commentaries on Genesis, 1:297.

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on the basis that “they are destitute of present faith.” Appling the implications of the nature of the Noahic Covenant, Calvin concludes that God’s promise to Noah and his thousand generations is legitimate; in this case, however, parents do not function as mediators but as teachers who pass on the words of the covenant to those after them and incite them to believe those words.39 Ultimately, again, salvation is by faith.

Similar to the covenant of works that had the tree of life as its sacrament, the arch over the clouds becomes the sacrament of the Noahic Covenant. By sacrament Calvin means a “mark [in which] God placed his sign and seal on.”40 The rainbow, he explains, has always existed, but at the moment that God impressed upon it his Word, it became a sign of his promise to all those who believe. Such belief is not the automatic product of the sight of the sacrament, or the rational association of the phenomenon with its divine meaning. It is the fruit of the power of the Holy Spirit working in the believer through the sacrament.41 Every time the bow shows up in the sky the believer should be encouraged in his faith in God as the preserver and provider of life. It seems that here resides for Calvin the redemptive aspect of the Noahic Covenant. It is not simply a promise of preservation of material life, but of life. He explains that when the rainbow appears it is always in a circumstance of rain and it should bring fear and dread to the believer’s heart. But since God’s Word of promise is now impressed upon it, when it appears, even in a circumstance of threat, it awakens in the believer the assurance of salvation. The Word en-graved in the sacrament encourages and boosts the Christian’s faith in God’s provision of salvation. In the New Covenant, this provision is clearly and totally revealed in the sacrament of the Lord’s Supper, which points to God’s life in Christ’s death.42 Thus, the covenant with Noah is not simply a generic covenant of preservation; it is principally a covenant that promises life, life eternal, life abundant. The source of this life will be revealed progressively in the subsequent covenants.

3. abrahamic covenant in the thought of john calvin

For Calvin, the Abrahamic covenant is the formal establishment of the covenant of grace. In Abraham, the gathering of a particular people begins to whom salvation will be granted. Abraham did not conquer or merit this great

39 “…When God promised salvation to a thousand generations, the fathers were not intermediate parties between God and their children, whose office it is to deliver to their children (so to speak) from hand to hand, the promise received from God.” Calvin, Commentaries on Genesis, 1:297-298.

40 Calvin, Sermons on Genesis 1 to 11, 760.41 Calvin, Commentaries on Genesis, 1:298-299.42 Calvin, Sermons on Genesis 1 to 11, 760-761.

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privilege in any sort of way; it is the fruit only of God’s grace, an element which characterizes the covenantal dealing in all its administrations.43

In his commentaries on Genesis 17, Calvin thoroughly elaborates on some characteristics of this dispensation. He identifies in this chapter the presence of a summary of the divine covenant. Concerning the content of Abraham’s vision, he writes: “Now that word summarily contains this decla-ration, that God enters into covenant with Abram: it then unfolds the nature of the covenant itself, and finally puts to it the seal, with the accompanying attestations.”44

The first element of the nature of the covenant clearly observed in Calvin’s teaching is its mutuality. In paraphrasing God’s words to Abraham, he writes: “See how kindly I indulge thee: for I do not require integrity from thee simply on account of my authority, which I might justly do; but whereas I owe thee nothing, I condescend graciously to engage in a mutual covenant.”45 Peter Lillback explains that “mutuality acknowledges that both parties of the cove-nant have responsibilities.”46 God, in Genesis 17, obligates himself to bless Abraham by means of promises. Those promises are, nevertheless, gratuitous, not depending on Abraham’s merit, character, or efforts. In this sense of God’s grace, the covenant is unilateral; it is the fruit only of God’s condescension. But, as a contract, the covenant also establishes obligations for Abraham. God demands from him devotion, servitude, and commitment to the righteousness of God. In Calvin’s words, the patriarch’s responsibility in the covenant was that “Abraham should be upright.”47

A second element Calvin identifies in the Abrahamic covenant is that of conditionality. Lillback explains that “conditionality outlines the responsi-bilities that each as party has toward the other.”48 Commenting on the words “walk before me” in Genesis 17:1, Calvin affirms Abraham’s responsibility:

43 “He (God) designs to open his sacred mouth, that he may show to one, deceived by Satan’s wiles, the way of salvation. And it is wonderful, that a man, miserable and lost, should have the preference given to him, over so many holy worshippers of God, that the covenant of life should be placed in his possession; that the Church should be revived in him, and he himself constituted the father of all the faithful. But this is done designedly, in order that the manifestation of the grace of God might become the more conspicuous in his person.” Calvin, Commentaries on Genesis, 1:343.

44 Ibid., 1:442.45 Ibid., 1:444.46 Peter A. Lillback, The Binding of God: Calvin’s Role in the Development of Covenant Theology

(Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2001), 169.47 Calvin, Commentaries on Genesis, 1:444. For a complete exposition of Calvin’s understanding

of the mutuality of the Abrahamic covenant, read in full his comments on verses 1 and 2 of his com-mentary on Genesis 17. For several other places in Calvin’s writings where the concept of mutuality is developed, see Lillback, The Binding of God, 166-168.

48 Lillback, The Binding of God, 169.

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“In making the covenant, God stipulates for obedience, on the part of his servant.”49 The reformer obviously recognizes that the first patriarch would receive the blessings of the covenant upon his faithfulness in keeping its conditions. In the Institutes, Calvin explains the exclusion of Ishmael and Esau from the Abrahamic covenant due to their disobedience to the terms of the pact. He affirms: “By their own defect and guilt, I admit, Ishmael, Esau, and the like were cut off from adoption. For the condition had been laid down that they should faithfully keep God’s covenant, which they faithlessly violated.”50 It is important to note that the idea of condition in the covenant of grace has not always been accepted in the reformed camp. Anthony Hoekema explains that the theologian Herman Hoeksema and the historian Perry Miller insisted in the absence of this concept in Reformed and Puritan theology. Hoekema confirms, nonetheless, the presence of this element in Calvin’s thought and explains:

Calvin insists that man has conditions to keep in the covenant of grace; but holds that we can only keep these conditions through God’s strength, and that keeping these conditions involves no merits on our part, since our works are always imperfect.51

The existence of a conditional element in the Abrahamic covenant demands an explanation of Calvin’s view of justification in this particular dispensation. Calvin elaborates on Abraham’s faith and justification in his comments on Genesis 15. In his explanation of the expression “and he believed in the Lord”, Calvin affirms that righteousness is imputed to Abraham apart from his per-sonal justice.52 But why is righteousness imputed to Abram? Because of his faith, Calvin explains. He affirms that “the righteousness of the most perfect characters perpetually consists in faith; since Abram, with all the excellency of his virtues, after his daily and ever remarkable service of God, was, never-theless, justified by faith.” At this point, Calvin associates becoming righteous with justification, and describes it in terms of adoption and reconciliation.53

49 Calvin, Commentaries on Genesis, 1:443.50 Calvin, Institutes, 1:929.51 Anthony A. Hoekema, “Calvin’s Doctrine of the Covenant of Grace,” Reformed Review 15, n. 4

(May 1962): 9.52 “Just as we understand that they to whom iniquity is imputed are guilty before God; so those

to whom he imputes righteousness are approved by him as just persons; wherefore Abram was received into the number and rank of just persons, by the imputation of righteousness… Therefore, they foolishly trifle who apply this term to his character as an honest man; as if it meant that Abram was personally held to be a just and righteous man.” Calvin, Commentaries on Genesis, 1:405-406.

53 “Therefore, we do no say that Abram was justified because he laid hold of a single word, respecting the offspring to be brought forth, but because he embraced God as his Father. And truly faith

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And in what did Abraham had faith? In the fulfillment of the words of the covenant, Calvin affirms. God bound himself by promise to bless Abraham and all the nations by means of a seed which would come from him. The object of Abraham’s faith is in the promise of the covenant. This seed does not represent Abram descendancy as a whole, but that particular blessed seed in which reconciliation would be achieved.54 Veninga rightly summarizes the subject of justification and faith affirming that

[...] the import of this discussion is that God freely called Abraham and offered to him and his posterity eternal salvation; Abraham was justified because he believed the Father, not because of personal merit. The clue to Abraham’s spi-ritual success is that he believed in the promise, and from this belief he gained courage for a life of obedience.55

The association of the Abrahamic covenant with circumcision and parti-cipation in the covenant is inevitable. In his comments on Genesis 17:7, Calvin insists that God’s covenant with Abraham is not only immediately with him alone but also includes his natural descendants. “There is no doubt,” Calvin affirms, “that the Lord distinguishes the race of Abraham from the rest of the world.” By the expression “race of Abraham”, Calvin means those who are biologically related to Abraham: “Nothing is more certain, that God made his covenant with those sons of Abraham who were naturally to be born of him.”56 Nevertheless, Abraham’s descendants are not to be differentiated from the Church; in fact, Israel is the Old Testament Church in the body of a nation separated from all others.

In the beginning, antecedently to this covenant, the condition of the whole world was one and the same. But as soon as it was said, “I will be a God to thee and to thy seed after thee,” the Church was separated from other nations; just as in the creation of the world, the light emerged out of the darkness.57

does not justify us for any other reason, than that is reconciles us unto God; and that it does so, not by its own merit; but because we receive the face offered to us in the promises, and have no doubt of eternal life, being fully persuaded that we are loved by God as sons.” Calvin, Commentaries on Genesis, 1:407.

54 “It seems, however, to be absurd, that Abram should be justified by believing that his seed would be as numerous as the stars of heaven; for this could be nothing but a particular faith, which would but no means suffice for the complete righteousness of man. Besides, what could an earthly and temporal promise avail for eternal salvation? I answer, first, the believing of which Moses speaks, is not to be restricted to a single clause of the promise here referred to, but embraces the whole; secondly, Abram did not form his estimate of the promised seed from this oracle alone, but also from others, where a special benediction is added. Whence we infer that he did not expect some common or undefined seed, but that in which the world was to be blessed.” Calvin, Commentaries on Genesis, 1:406.

55 James Frank Veninga, “Covenant Theology and Ethics in the Thought of John Calvin and John Preston” (PhD diss., Houston, TX: Rice University, 1980), 49.

56 Calvin, Commentaries on Genesis, 1:447-448.57 Ibid., 1:448.

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However, being a natural descendent from Abraham did not guarantee one’s participation in the promise of covenant. Calvin affirms that “…not all who are from Abraham are to be esteemed legitimate children; because they are not the children of the promise, but only of the flesh.”58 Calvin, therefore, creates a dichotomy between promise and covenant in such a way that one may be participant of the covenant but not of its promises. To participate in the covenant alone is to be recipient only of its words, but to be participant of the promises is to share the inner effects of the covenant.

For there, the promise is not taken generally for the outward word, by which God conferred his favor as well upon the reprobate as upon the elect; but must be restricted to that efficacious calling, which he inwardly seals by his Spirit.59

This dichotomy between participation in the covenant and participation in the promises provides the setting for Calvin to elaborate a concept of election in the Abrahamic covenant. He speaks of a “twofold class of sons” present in the Church. The first refers to the whole group of people who are identified as the Church. They are publicly recognized as members of the covenant and are accounted as children of God. The second class refers to those whom “the promise of the covenant is ratified by faith.” This dicho-tomy Calvin attributes to the “fountain of gratuitous election, whence also faith itself springs.”60 Hoekema’s explanation of this dichotomy in Calvin is most enlightening:

you could say that covenant membership is here pictured as a circle wider than particular election, but narrower than mankind as a whole. Covenant membership thus by no means guarantees one’s salvation; one like Esau and Saul may be lost despite one’s covenant membership…The covenant of grace, therefore, is here pictured, not as identical with particular election, but as a visible image of it…Calvin distinguished between two types of election: election in the wider sense, illustrated in the choice of Abraham’s seed to be his people, and therefore equivalent to the adoption of individuals into his covenant of grace; and election in the narrower sense, which means predes-tination to eternal life.61

One last aspect of the Abrahamic covenant present in Calvin’s writings deserves attention: the sacrament of circumcision and its meaning. Calvin affirms circumcision to be the inscription of the covenant in Abraham’s

58 Ibid., 1:448-449.59 Ibid., 1:449.60 Ibid., 1:449.61 Hoekema, “Calvin’s Doctrine of the Covenant of Grace,” 7.

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body in order that, through that register, the patriarch’s new status would be remembered.62 In the mind of Calvin, the memorial aspect of circumcision is associated with the fact that it is called “the covenant of God.” Calvin explains that the association of the word of God (present here in the covenant concept) and the symbol is what makes it a sacrament. “A sacrament is nothing else that a visible word, or sculpture and image of that grace of God which the word more fully illustrates.”63 Calvin, then, moves on to place upon the sacrament a particular function as a result of this relationship between word, sacrament, and faith: “It follows that the proposed end and use of sacraments is to help, promote and confirm faith.”64 Calvin emphasizes this amazing role of the sa-crament without destroying the power and authority of the word. Both must be present. He affirms: “And although we must maintain the distinction between the word and the sign; yet let us know, that as soon as the sign itself meets our eyes, the word ought to sound in our ears.”65

Concerning the significance of the sacrament, Calvin recognizes the necessity of an analogy between the thing signified and the sign. Due to this recognition, he initially expresses amazement for the choice of such unusual sign. His amazement, however, does not hinder the great theologian to find an answer to the meaning for circumcision. He attributes to it two significances: the declaration of the corruption of the human race and the confirmation that such tragic state would be reverted by one belonging to the descendancy of Abraham.66 In other words, the sign represents both removal of uncleanness and redemption. Such reasoning opens the doors for Calvin’s later association of circumcision and baptism.

Concerning the participants of the covenant, Calvin affirms the partici-pation of both genders, male and female, in it, in spite of the administration of the sign being restricted only to males. He attributes the participation of women into the covenant to the necessity that both sexes have of its blessed

62 “As formerly, covenants were not only committed to public records, but were also wont to be engraven in brass, or sculptured on stones, in order that the memory of them might be more fully recorded, and more highly celebrated; so in the present instance, God inscribes his covenant in the flesh of Abraham. For circumcision was a solemn memorial of that adoption, by which the family of Abraham had been elected to be the peculiar people of God.” Calvin, Commentaries on Genesis, 1:451.

63 Calvin, Commentaries on Genesis, 1:451. Calvin affirms the same even more emphatically: “By the figure metonymy, the name of covenant is transferred to circumcision, which is so conjoined with the word, that it could not be separated from it.” Calvin, Commentaries on Genesis, 1:453.

64 Ibid., 1:452.65 Ibid.66 “Moreover, it is probable that the Lord commanded circumcision for two reasons: first, to show

that whatever is born of man is polluted; then, that salvation would proceed from the blessed seed of Abraham.” Calvin, Commentaries on Genesis, 1:453-454.

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Breno Macedo, covenant theology in the thought of John calvin

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promise.67 The administration of the sign of the covenant in babies does not guarantee their salvation. Calvin makes a strong case against the false belief that those infants who die before the opportunity of being baptized are doomed to perdition. The sign, according to Calvin, shall not overpower the promise of God.68 However, the reformer raises a strong case against those who willingly hinder their children from receiving the sign of the sacrament. Calvin affirms it to be a demonstration of ingratitude and contempt for the grace of God. The willful rejection of the sign God himself established as part of his covenant must be avoided at all costs on the threat of one’s suffering God’s divine pu-nishment.69 In the Institutes, Calvin emphasizes five different practical aspects of the Abrahamic covenant regarding membership in it and the spiritual profit of its members from it. They are, according to Peter Lillback: (1) this covenant is the means by which God separates believers and non-believers in the world; (2) it is where Israel, the natural descendants of Abraham, finds salvation; (3) this covenant continues to be valid until today; (4) Christ is center of this dispensation; (5) justification and sanctification are its two great benefits.70

conclusionAlthough Calvin was not concerned to leave behind him a systematic

approach to the doctrine of the divine covenants, it is clear that not only was his mind immersed in this precious doctrine but that a careful, logical, and systematical approach to his writings enables one to extract and organize, in systematic form, his thoughts. Calvin was not too far from the other scholars after him who developed dogmatics having the covenant as their central structural principle. Such a harmony between Calvin and later theologians demonstrates what takes place when the Sola Scriptura is taken seriously: harmony in the midst of diversity. In spite of diverging in non-essentials like specific terminology, the theologians of the reformation and post-reformation periods believed in general in the same dogmas. The Church does well in keeping and studying their teachings.

67 “For the covenant of God was graven on the bodies of the males, with this condition annexed, that the females also should as their associates be partakers of the same sign” Calvin, Commentaries on Genesis, 1:453.

68 “To consign to destruction those infants whom a sudden death has not allowed to be presented for baptism, before any neglect of parents could intervene, is a cruelty originating in superstition. But that the promise belongs to such children, is nothing the least doubtful. For what can be more absurd than that the symbol, which is added for the sake of confirming the promise, should really enervate its force?” Calvin, Commentaries on Genesis, 1:458.

69 “But because it is not in the power of man to sever what God has joined together; no one could despise or neglect the sign, without both rejecting the word itself, and depriving himself of the benefit therein offered. And therefore the Lord punished bare neglect with such severity.” Calvin, Commentaries on Genesis, 1:457-458.

70 Lillback, The Binding of God, 145-146.

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resumoA teologia do pacto sempre teve um lugar de destaque no ramo reformado.

Ela serve de base para várias outras doutrinas e também se constitui em uma chave hermenêutica para ler e compreender as Escrituras. Apesar de as grandes sistematizações dessa doutrina terem aparecido somente a partir do século 17, é possível encontrá-la presente no pensamento dos primeiros reformadores. Este artigo visa investigar algumas das principais obras de João Calvino na tentativa de organizar o seu pensamento no que diz respeito a essa doutrina e de construir o que seria a visão do reformador de Genebra sobre cada uma das dispensações do pacto divino com o homem. Neste primeiro artigo são analisados os seguintes pactos: das obras, noaico e abraâmico. Vários artigos já foram publicados analisando o pensamento pactual de Calvino como um todo, em termos do pacto da graça de maneira geral. Entretanto, não foi encontrada nenhuma contribuição acadêmica que investigasse cada pacto sucessivamente no pensamento de Calvino.

palavras-chaveJoão Calvino; Teologia; Pacto; Obras; Noaico; Abraâmico.

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rESEnha Allen Porto*

SCHAEFFER, Francis. Gênesis no espaço-tempo. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2014. 208 p.

O pastor presbiteriano Francis Schaeffer não é desconhecido no Brasil. Fundador da Comunidade L’Abri e da International Presbyterian Church, é considerado, por alguns, o líder evangélico mais importante do século 20.1 Suas obras completas trazem 22 títulos, embora tenha publicado mais que isso.2 Dentre tais volumes, pelo menos 16 foram traduzidos para o português.

Nascido em 1912, Schaeffer se tornou conhecido pelo tipo de ministério que desenvolveu, aplicando o evangelho às demandas da cultura irracionalis-ta do seu tempo. L’Abri, um conjunto de chalés nos Alpes Suíços, abrigava diversos tipos de pessoas, em sua maioria jovens em busca existencial, para “demonstrar a existência de Deus” e fornecer “respostas honestas a questões honestas”.3 Diferente de muitos em seu tempo, Schaeffer interagiu com a produção cultural para interpretar o homem e anunciar os problemas da cos-movisão da época, apontando para a fé da Reforma – o evangelho – como a única resposta consistente para o dilema humano. Assim, ganhou notoriedade por dialogar com o cinema, a pintura, a ciência e a filosofia, enquanto trazia a Bíblia para a discussão. Faleceu em 1984, tendo deixado um ministério que se

* Aluno do mestrado em Teologia Filosófica no Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper. Pastor auxiliar da Igreja Presbiteriana do Renascença, em São Luís, Maranhão. Está envolvido em um projeto de plantação de igreja na mesma cidade.

1 Conforme a revista First Things, Schaeffer é um dos 50 líderes religiosos mais importantes da história dos Estados Unidos. Disponível em: < http://www.firstthings.com/blogs/firstthoughts/2010/08/50--most-influential-religious-figures-in-american-history>.

2 O livro “A obra consumada de Cristo”, por exemplo, não está presente na coletânea.3 Schaeffer utiliza a expressão em muitas de suas obras. Em Gênesis no Espaço-Tempo, é utilizada

na p. 178.

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Gênesis no espaço-tempo

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espalhou pelo mundo, com unidades de L’Abri na Suíça, Holanda, Inglaterra, Estados Unidos, Austrália, Japão e Brasil.

Gênesis no Espaço-Tempo deve ser percebido no contexto desse tipo de compreensão e abordagem. Schaeffer está situado no campo reformado, manifestando uma apreciação pela cultura que aponta para Abraham Kuyper. Sua discussão não apenas no âmbito de “fatos”, mas também de pressupostos e cosmovisões, indica a influência de Cornelius Van Til, de quem foi aluno no Westminster Theological Seminary. Sua firmeza doutrinária, aliada às reivin-dicações do impacto do cristianismo para o todo da vida, revela a absorção do que há de melhor nas tradições reformadas anglo-saxãs e continentais.

O livro trata, em suma, dos primeiros onze capítulos do Gênesis, buscando nos relatos das origens o fundamento da realidade e as respostas a algumas das perguntas mais básicas da humanidade. Em seus oito capítulos, Schaeffer discute a criação e o ser de Deus; a criação do homem e sua singularidade no mundo; a estrutura do mundo; a escolha humana; a queda humana e suas implicações para a vida; o desenvolvimento de duas linhagens e culturas; o dilúvio e as percepções acerca do funcionamento do universo; e Noé, Babel, Abraão e o relacionamento pactual entre Deus e o homem.

O interesse do autor, como a leitura demonstrará, não está em discutir cada fenômeno de maneira excessivamente detalhada, mas em identificar, por meio de contornos abrangentes, o “fluxo da história”.4 Essa, aliás, é a declaração inicial do texto. Tal aproximação é a força e a fraqueza de Schaeffer. Alguns o considerarão superficial, por não aprofundar tanto a discussão de palavras e cláusulas, ou por não dedicar mais tempo ao aprofundamento dos conceitos tratados, enquanto outros notarão que esta abordagem é mais adequada para lidar com os temas em foco, sem se perder em minúcias. O tema do fluxo da história perpassa o pensamento de Schaeffer, delineando também a sua ma-neira de fazer teologia bíblica e análise histórica. Caso semelhante acontece na obra Josué e o Fluxo da História Bíblica5 e em Como Viveremos?.6

Além da noção de fluxo da história, outros temas caros ao autor são encon-trados na obra. É o caso da crítica sobre a “divisão da realidade em patamares distintos”: o superior, da “verdade religiosa” e o inferior, da “verdade histórica” (cf. p. 19, 24-26). Tal crítica é forte em obras como O Deus que Intervém7 e A Morte da Razão,8 e é devidamente retomada nesta, que busca apresentar uma percepção do relato bíblico das origens conectada à vida humana em sua

4 O termo é usado generosamente por Schaeffer. Cf. p. 21, 43, 65, 68, 73, 87, 100, 113, 120, 135, 142, 151, 155, 157, 179, 180, 190, 192, 197, 200, 203.

5 SCHAEFFER, Francis. Josué e o fluxo da história bíblica. São Paulo: Cultura Cristã, 2005.6 SCHAEFFER, Francis. Como viveremos? São Paulo: Cultura Cristã, 2003.7 SCHAEFFER, Francis. O Deus que intervém. São Paulo: Cultura Cristã, 2002.8 SCHAEFFER, Francis. A morte da razão. São Paulo: Cultura Cristã, 2002.

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realidade imediata. Conforme a apresentação do autor, notar a realidade frag-mentada implica em perder a força da mensagem de Deus para a vida humana.

Também se faz presente em Gênesis no Espaço-Tempo o tema da “comu-nicação verdadeira e comunicação exaustiva” (cf. p. 49-53), tratado em O Deus Que Se Revela.9 Para Schaeffer, a Bíblia fornece conhecimento verdadeiro, embora não total. Ela é verdade proposicional, mesmo não tratando de todos os temas do conhecimento humano. Tal noção deveria garantir a integridade da Escritura, bem como promover uma aproximação adequada de seu texto. Conforme o autor, a Bíblia pode ser tratada como texto científico no sentido de que suas afirmações sobre o mundo são verdadeiras. Porém, não pode ser tratada como livro de ciências caso se pretenda encontrar nela verdade científica exaustiva, ou mesmo tal tema como o seu assunto central.

A noção de um “Deus infinito e pessoal” também é apresentada nessa obra. Já havia sido abordada em livros anteriores,10 mas é necessária para o contexto das origens. A chave para a compreensão do mundo e do homem é o Deus infinito, o princípio absoluto e também pessoal, sua marca relacional evidenciada na Trindade. Conforme Schaeffer, sem tais noções, o mundo cai no abismo da irrelevância – o universo não passa de “um punhado de pedrinhas jogadas por aí” (p. 31) – e não há explicações apropriadas para a estrutura pre-sente na realidade. A pessoalidade do homem também não pode ser explicada fora de tal compreensão: os relacionamentos humanos, os empreendimentos culturais e a prática da justiça se tornam insignificantes.

Para além dos temas recorrentes, tal obra também responde diretamen-te aos dilemas da compreensão bíblica e às questões do homem no limiar da pós-modernidade. É assim que o título se mostra sugestivo: Gênesis no Espaço-Tempo é a tentativa de demonstrar que tais eventos estão ancorados na realidade e de sustentar a veracidade de tais histórias, que conferem identidade, significado e propósito ao ser humano. Enquanto cresce a difusão de ideias acerca de uma origem impessoal e da falta de sentido para a existência, uma alternativa racional e mais consistente é apresentada.

O lugar do homem no mundo é explicado pelas distinções estabelecidas por Deus. Primeiramente, a diferença entre a criação e o homem: somente este possui a imagem de Deus. Em segundo lugar, a diferença entre homem e mu-lher. A base para o domínio e trabalho, bem como para os relacionamentos, é apresentada. A distinção que orienta todas as outras, contudo, é a que separa o Criador da criação. Schaeffer ecoa Cornelius Van Til ao ressaltar a importância desse ponto. Tal separação, no entanto, ainda permite a comunicação.

9 SCHAEFFER, Francis. O Deus que se revela. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 113.10 Cf. A noção está presente em O Deus que intervém, A morte da razão e O Deus que se revela,

a trilogia que orienta e dá sentido a todas as demais obras de Schaeffer.

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Gênesis no espaço-tempo

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Deus cria segundo o seu caráter, estabelece a sua autoridade, mas não se relaciona com o homem como com uma máquina. A criatura possui decisão, e a exerce efetivamente, como o pecado veio a ilustrar. Criado para amar a Deus, o homem utilizou o seu poder de decisão para desobedecer ao Criador. A essa altura, Schaeffer manifesta sua compreensão aliancista, descrevendo as partes, a condição e a promessa do pacto das obras (p. 97). Surge, então, a Queda.

Alimentada por Satanás, cuja mentira caminha conforme a teologia liberal (p. 101), a Queda histórica trouxe ao homem o conhecimento experimental da morte. Com ela, a humanidade sofreu os resultados: culpa real, além da ruptura no relacionamento com Deus, consigo, com o seu semelhante e com a natureza. Duas linhagens, então, são formadas, exemplificadas em Caim e Abel. A cultura humanista sem Deus produz a partir de egoísmo e orgulho centrados no homem, enquanto que a cultura da linhagem piedosa, a partir de Sete, identifica-se pela centralidade em Deus.

A separação entre tais culturas se torna clara no episódio do Dilúvio. É importante entender que as genealogias não servem para a contagem crono-lógica exata, pois não é esse o seu propósito. A figura de Noé, portanto, surge em um momento histórico que não pode ser contado a partir da genealogia descrita. Schaeffer não tem problema em harmonizar a história bíblica com os relatos antropológicos e sugerir uma data anterior a 20.000 a.C. (p. 172). No relato do dilúvio encontra-se a percepção da maldade humana, do juízo de Deus, e questiona-se o fundamento do naturalismo, a saber, a visão do universo como um sistema fechado de causa e efeito. O fluxo da história aponta para a intervenção e o juízo divino.

Após o dilúvio, Deus reafirma o valor do ser humano e estabelece uma nova etapa no relacionamento pactual — uma aliança eterna estabelecida com Noé e seus descendentes. Dessa descendência, tem origem a história de Babel. Trata-se do clamor humanista revelado: fazer um nome para si. Deus exerce juízo e uma nova separação é estabelecida: agora entre nações, com línguas e culturas distintas.

Da linhagem de Sem, filho de Noé, aparece Abraão. A resposta final ao dilema humano será apresentada por meio dele, em quem todas as famílias da Terra serão abençoadas (cf. Gn 12.1-3). A partir da aliança de Deus com Abraão, o evangelho é apresentado. Este é o fluxo definitivo da história.

Aspectos técnicos do livro, como a boa diagramação e o espaçamento das margens também tornam a experiência da leitura agradável e auxiliam o estudante que deseja tomar notas nas páginas. A tradução do Josaías Cardoso é impecável, embora alguns ajustes na revisão precisem ser feitos. A obra é recomendada aos interessados em uma abordagem que discuta teologia bíblica em diálogo com os questionamentos culturais levantados. Pastores, professores e conselheiros bíblicos poderão fazer bom uso dela.

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rESEnhaGildásio Jesus Barbosa dos Reis*

KELLER, Timothy. igreja centrada: desenvolvendo em sua cidade um ministério equilibrado e centrado no evangelho. São Paulo: Vida Nova, 2014. 464 p.

O autor, reconhecido como uma das grandes expressões contemporâneas em plantação e revitalização de igrejas, produziu várias outras obras que têm servido de bênção e instrução espiritual para muitos. Pastor da Redeemer Presbyterian Church, uma das igrejas mais importantes de Nova York, e com mais de vinte anos de experiência ministerial em Manhatan, oferece em Igreja Centrada uma proposta desafiadora para aqueles que desejam desenvolver eficazmente um ministério urbano.

Keller é o mentor da rede “Redeemer City to City”, projeto que já plan-tou mais de 200 igrejas em 35 importantes cidades do mundo. Boa parte do conteúdo de Igreja Centrada é resultado da experiência vivida na Redeemer desde 1989, ano de sua fundação, bem como de uma série de palestras feitas pelo autor em 2008 e 2009, num encontro internacional realizado na cidade de Londres.

Tim Keller defende, com cuidadoso equilíbrio, uma teologia sobre o crescimento da igreja, evitando por um lado o pragmatismo tão comum em nossos dias, que enfatiza apenas o crescimento quantificável, e, por outro lado, reage à acomodação das igrejas, que embora fiéis ao evangelho não conse-guem crescer. Para o autor, além da fidelidade, precisamos de algo mais para avaliar se estamos sendo ministros segundo o coração de Deus. Ele afirma que “é uma simplificação exagerada achar que fidelidade é o que realmente

* Mestre em Educação Cristã pelo CPAJ, mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutorando em Ministério pelo CPAJ. É professor no Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição, Capelão Universitário na UPM e pastor efetivo da Igreja Presbiteriana do Parque São Domingos, em São Paulo.

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Igreja centrada

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importa” (p. 15). Para o autor, uma igreja fiel também precisa produzir frutos. É isso que ele tem em mente com o vocábulo “centrada”.

Conforme ele define, Igreja Centrada descreve uma visão teológica, um conjunto específico de ênfases e posturas de ministério, no qual o evangelho tem implicações valiosas para a vida, para o ministério e para a missão da igreja em determinada cultura e em certo momento da história. Ele pontua o seguinte:

Neste livro, falaremos muito sobre a necessidade de buscarmos o equilíbrio, como faz a Escritura, entre um ministério de palavra e um ministério de obras, entre desafiar e apoiar a cultura, entre engajamento cultural e distanciamento contracultural, entre compromisso com a verdade e generosidade para com os que não partilham das mesmas crenças, entre tradição e prática inovadora (p. 25).

Sendo assim, essa igreja centrada ou equilibrada deve assumir três eixos ou compromissos básicos: evangelho, cidade e movimento.

O primeiro eixo é a Centralidade do Evangelho. Keller defende que, se queremos transformar a cultura ao nosso redor, precisamos pregar o evangelho genuíno. Devemos evitar os extremos, tanto a heterodoxia liberal quanto a ortodoxia morta que nada produz. Keller cita o moderno puritano D. Martyn Lloyd-Jones para exemplicar esse equilibrio quanto ao evangelho:

D. Martyn Lloyd-Jones argumenta que, assim como claramente perdemos o evangelho sempre que caímos na heterodoxia, da mesma forma também deixa-mos, na prática, de pregar e aplicar o evangelho à nossa própria vida em razão de uma ortodoxia morta ou de ênfases doutrinárias desequilibradas (p. 26).

Está claro em toda a obra que Tim Keller procura caracterizar seu minis-tério pela profundidade doutrinária e teológica em relação ao evangelho, e não pelo pragmatismo ou por uma filosofia orientada ou motivada por métodos. Essa centralidade pode ser expressa de outra maneira. Ou seja, o evangelho da graça de Jesus Cristo não comunga com o legalismo e muito menos com o relativismo. O evangelho verdadeiro sempre muda o coração do homem e transforma a sociedade. A igreja centrada coloca o evangelho no centro e o centro é o lugar do equilíbrio. Keller gasta três capítulos falando sobre a re-novação do evangelho, fazendo algumas críticas ao avivamento de Finney. A perspectiva de Keller é a mesma vista em Jonathan Edwards sobre o reavivamento (p. 65-73). Além disso, o autor reafirma a importância dos meios ordinários de graça do Espírito em trazer o verdadeiro avivamento.

Centralidade da Cidade. Neste segundo eixo o autor mostra como o mundo globalizado e os grandes centros urbanos influenciam cada vez mais a nossa cultura e definem, negativamente ou positivamente, a maneira como o trabalho pastoral é desenvolvido. Adotando uma maneira positiva de enxer-gar a cultura, Keller dedica quase 200 páginas da obra para mostrar como as

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cidades representam uma das maiores oportunidades da história como lugares estratégicos para o serviço cristão e a proclamação do evangelho.

Cada igreja, esteja ela localizada na cidade, nos bairros mais afastados de classe média alta ou na zona rural (e existem muitos elementos que se alteram ou se combinam entre um e outro desses ambientes), deve familiarizar-se com as características da vida humana nessas regiões e passar a ser versada nessas questões (p. 27).

Keller divide este eixo em três partes: contextualização do evangelho, visão para a cidade e engajamento cultural. Em contextualização do evangelho ele analisa as bases bíblicas da contextualização equilibrada, seguindo uma abordagem de como a cidade é vista na Escritura Sagrada. Segundo Keller, enxergar a cidade sob o ponto de vista bíblico nos ajuda a olhar para a mesma sem indiferença e hostilidade. Na parte seguinte, ao falar de engajamento na cidade, o autor analisa historicamente o surgimento de quatro modelos de en-gajamento cultural (modelo transformacionista, modelo da relevância, modelo transcultural e modelo dos dois reinos), concluindo com o modelo que ele entende ser o melhor para a igreja alcançar a cidade, ou seja, o Modelo dos Dois Reinos. Keller dedica algumas páginas mostrando esta dupla estrutura da natureza da regência de Deus, que é o que impulsiona este quarto modelo. No entanto, ele entende que os quatros modelos apresentam tanto pontos positivos quanto negativos. A proposta do autor é que a igreja centrada procure mesclar as perspectivas culturais e bíblicas de todos os modelos em suas atividades e ministério e assim aprender a discernir a atual situação da igreja e buscar o melhor de cada um dos modelos.

Centralidade do Movimento. Neste terceiro eixo, que é a parte mais prática da obra e também pode ser a mais controversa, Keller inclui três capítulos nos quais desenvolve uma filosofia prática para o ministério da igreja. Três temas principais são aqui abordados: o debate sobre a igreja missionária; mobilizando a igreja numa cultura “perdida”; e a natureza de “movimentos” de plantação de igrejas. A melhor palavra para resumir este ponto é colaboração. A igreja centrada deve ser uma igreja que evita criar sua própria tribo. Ela não deve se isolar, mas, guiada pelo Espírito Santo, deve buscar através dos seus mais diversos ministérios a prosperidade e a paz da sociedade. A proposta de igrejas de diferentes vertentes denominacionais que se unem em colaboração para evangelizar a cidade pode parecer estranha e ofensiva para alguns líderes mais conservadores, mas o apelo de Keller à expressão do Credo dos Apóstolos “santa igreja católica” nos parece uma base sólida para esta colaboração (p. 433-439).

Keller afirma que o sectarismo e o racismo negam a catolicidade e critica a postura das igrejas que “identificam-se tanto com sua tradição teológica, que não conseguem se unir a outras igrejas evangélicas ou a outras instituições para alcançar a cidade ou trabalhar para o bem comum” (p. 29).

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Igreja centrada

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A igreja centrada deve ser uma igreja que busca ser missional, preparando pessoas para desenvolverem seus ministérios onde quer que elas estejam. Keller sugere diversos movimentos ou diversas ações que a igreja pode desenvolver dentro da cidade ou dentro da cultura. Para um ministério bem-sucedido, a lide-rança da igreja precisa valorizar as vocações e fazer uso das diversas metáforas e imagens que a Bíblia usa para descrever a igreja, levando-a a se engajar na sociedade para transformá-la. Para o autor, devemos fugir do tradicionalismo; caso contrário, a igreja pode estagnar e morrer. Keller critica as igrejas que se fecham em tribos e ideologias denominacionais, e por isso não aprendem com outros movimentos eclesiásticos que também fazem parte do Reino de Deus. Nesse ponto reconhecemos uma lógica estratégica na argumentação do autor, mas sentimos falta de fundamentação bíblica, o que daria maior sustentação para sua proposta. Para ele, uma igreja centrada deve fazer parcerias com outras tradições históricas ou características teológicas diferentes das suas, a fim de alcançar a comunidade.

Ele afirma que

Quanto mais esse ministério vier “do centro” de todos os eixos, mais dinâmico e frutífero ele será. O ministério que pende para qualquer extremidade do espectro ou eixo extinguirá seu poder de transformar a vida das pessoas que estão dentro dele ou que o cercam (p. 29).

Igreja Centrada é uma obra acadêmica e prática. Certamente será uma ferramenta útil para pastores, líderes e cristãos em geral que amam o Reino de Deus e desejam a expansão e crescimento da igreja. Recomendamos sua leitura. Por certo, ela haverá de fortalecer as convicções teológicas do leitor, além de oferecer uma filosofia de ministério com diretrizes bíblicas, antes de propor modelos e métodos de multiplicação para o desenvolvimento de um ministério urbano eficaz.

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rESEnhaBreno Macedo*

GOHEEN, MICHAEL W. a igreja missional na Bíblia: luz para as nações. São Paulo: Vida Nova, 2014. 286 p.

Mais um manual de como a igreja pode fazer missões. Foi o que pensei ao começar a ler esse livro. Entretanto, para minha surpresa, o autor entende que ser uma igreja missional não é simplesmente ser um grupo de indivíduos que crêem em Cristo e buscam cultivar a prática de comunicar o evangelho. De acordo com Goheen, ser missional faz parte da essência e da identidadade da igreja. A igreja não simplesmente faz missões, ela é missional em sua própria natureza. Goheen é professor de cosmovisão e estudos religiosos na Trinity Western University e sua dissertação de doutorado foi na área de missiologia. Ele também é coautor, junto com Craig Bloomber, de um livro entitulado The Drama of Scripture: Finding Our Place in the Biblical Story, onde as Escrituras são vistas como uma grande narrativa (metanarrativa) que serve de fundamento para o desenvolvimento de uma cosmovisão cristã. A Igreja Missional na Bíblia é um excelente estudo bíblico-teológico da relação entre a igreja e missões. A habilidade exegética de Goheen e sua visão da história bíblica como o desenvoltimento progressivo de uma narrativa da redenção fazem com que o livro seja um cuidadoso estudo canônico da relação entre a igreja e missões nas Escrituras.

A estrutura do livro em si já demonstra sua unidade e progressividade. Ele é composto de 9 capítulos que poderiam ser divididos em quatro grupos. O capítulo 1 é a introdução ao livro. Nele encontra-se o argumento central, os objetivos e importantes definições que guiarão o leitor na compreensão

* Mestre em Divindade (M.Div.) pelo Greenville Presbyterian Theological Seminary, Mestre em Teologia (Th.M.) pelo Puritan Reformed Theological Seminary e candidato ao doutorado (Ph.D.), na área de teologia histórica, pela University of Free State, áfrica do Sul. Leciona no Seminário Teológico Presbiteriano do Nordeste, em Teresina.

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dos capítulos subsequentes. Os capítulos 2 e 3 analisam o Antigo Testamento e buscam fundamentar a tese do autor na dispensação da Antiga Aliança. Os capítulos 4 a 7 visam fazer no Novo Testamento aquilo que os anteriores fize-ram no Antigo. O capítulo 8 é um apanhado geral, um tipo de resumo daquilo que o autor encontrou na Escritura como um todo sobre o assunto. O capítulo final é um exemplo do que para Goheen seria uma igreja missonal hoje. Aqui ele descreve sua própria experiência e sugere 13 maneiras para se desenvolver e experimentar igrejas missionais hoje.

Para Goheen a palavra “missão” lembra à igreja que ela existe não para ser uma comunidade voltada para si mesma, mas “orientada para o mundo” (p. 20). A crítica do autor é que se discute muito metodologia e prática quando missões deveriam ser encaradas como o que a igreja é enquanto grupo, daí o termo “missional”. Quando a igreja entende que precisa estar orientada para o mundo, ela então passa a ser um agente ativo na história de Deus, interagindo críticamente com a cultura e a sociedade. Para Goheen,

[...] somente quando a igreja é uma encarnação fiel do reino como parte da cul-tura ao seu redor – mas em contraposição à sua idolatria – é que sua vida e suas palavras produzirão um testemunho atraente e convincente a favor das boas-novas de que em Jesus Cristo um novo mundo é chegado e está chegando (p. 21).

O autor parte então para uma análise histórica da interação da igreja com o mundo ao seu redor. Ele inicia com a igreja primitiva, que compreen-dia sua identidade missional e cujo papel foi genuinamente testemunhar para sua sociedade que o reino de Deus havia chegado, argumentando que a partir do momento que o cristianismo passou a ser uma religião reconhecida pelo Estado, sua identidade missional começou a desaparecer (p. 26). A realidade atual, explica Goheen, é que a igreja permitiu-se moldar pelo pós-iluminismo e o consumismo enquanto história cultural, tornando-se então uma “mera vendedora de bens e serviços religiosos” (p. 32).

Na busca de compreender corretamente a igreja, o autor inicia sua in-vestigação no Antigo Testamento. “O relacionamento do povo de Deus com os de fora de sua comunidade é desenvolvido na narrativa de Israel e de seu chamado em meio das nações” (p. 41). Aqui, Goheen enfoca as alianças que Javé faz progressivamente com Israel, primeiro com os patriarcas no livro de Gênesis e finalmente com o povo, então se tornando uma nação, no livro de Êxodo. Em Abraão, Javé elege uma família para participar de uma missão: “desfrutar da bênção redentora de Deus e andar nos caminhos do Senhor a fim de que as nações possam participar dessa bênção” (p. 51). Mas enquanto em Gênesis Deus promete a Abraão o surgimento de uma grande nação a partir dele, em Êxodo surge essa nação e sua função é levar às outras nações a bên-ção prometida. Enquanto nação, a forma como Israel executará sua missão é

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descrita por meio de duas imagens: “reino de sacerdotes” e “nação santa”. A primeira imagem diz respeito a Israel vivendo uma vida “em favor das nações” (p. 59). A segunda diz respeito ao modo de vida de Israel, uma nação que vive no meio de outras evidenciando padrões éticos transformados por Javé. Assim, Goheen conclue que o chamado missional de Israel é centrípeto. “Israel deve encarnar a intenção que Deus tinha com a criação de toda a humanidade em favor do mundo, vivendo de tal maneira que atraia as nações à aliança com Deus” (p. 60).

Após analisar a fundação de Israel enquanto nação e o recebimento de sua missão entre as nações, Goheen segue a história veterotestamentária e investiga os diferentes contextos nos quais Israel viveu enquanto nação missional. Ele divide esses contextos em quatro situações: tribal, monárquico, exílico e inter-testamentário. “Em cada situação, eles deveriam ser o povo de Deus em favor das nações, fosse como uma livre confederação de tribos, ou como uma monarquia unida e forte, ou como um povo disperso entre as nações” (p. 71, ênfase minha). Durante a situação tribal, os principais temas missionais relacionados a Israel são o confronto com a idolatria das nações vizinhas e a instrução de gerações subsequentes nos padrões de Javé. A situação monárquica é inaugurada em um momento no qual a identidade de Israel, tanto missional quanto nacional, havia se perdido. Um rei é então estabelecido para “derrotar nações idólatras que ameaçam Israel”, para promover uma vida de retidão nacional ligada ao templo e para servir como “símbolo do generoso governo universal futuro de Deus sobre as nações” (p. 79). É também nesse período que outra dávida, os profetas, surgem para fortalecer o papel e a identidade missional de Israel. Sua tarefa principal é questionar Israel quando sua identidade é esquecida e sua missão é negligenciada. A negligência e infidelidade de Israel leva a nação ao exílio, guiando-a também a um novo formato de execução do seu papel missional: “viver como uma minoria em meio às culturas pagãs” (p. 84). Nesse novo contexto, o principal problema é a assimilação cultural. Ao comparar a cultura judaica com as demais, as novas gerações poderiam rejeitar sua própria herança cultural por ser exigente e difícil demais de ser vivida. Para combater esse perigos, dois mecanismos surgiram: o papel dos anciãos e a literatura exílica. Por último, no período intertestamentário, enquanto Israel alimenta a esperança de um futuro no qual Javé é o monarca absoluto sobre todas as nações, os missinários de Deus fecham-se num casulo de ódio contra as nações pagãs que detêm sobre eles governo e poder.

O fracasso de Israel em viver como luz para as nações é completamente remediado e transformado pela obra salvífica de Cristo. Segundo Goheen, é em Jesus que as espectativas de um reino divino escatológico finalmente são cumpridas. A messagen da chegada do reino é uma das características de sua pregação. Goheen explica que, apesar de Jesus não ter explicado exatamente o que quer dizer por “reino”, duas características podem ser deduzidas de seus

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ensinamentos: o reino é a presença de Deus para a derrota dos inimigos do seu povo e a chegada da salvação escatológica como um evento do qual os ouvintes podem participar (p. 101). Dessa forma, “a vinda do reino significa um encontro missionário entre o poder do reino e os poderes demoníacos e idólatras que distorcem as estruturas da sociedade humana”, afirma Goheen (p. 104). Em Cristo, as expectativas de reunião e restauração de Israel para dar continuidade à sua missão entre as nações também são cumpridas. A seleção, treinamento e envio de doze discípulos simboliza essa restauração da antiga nação. Entretanto, nesse reino escatológico, Israel é composto por muito mais que descendentes de Abraão, já que os gentios também são chamados a fazer parte dele. Os membros do reino, o Israel restaurado, são, portanto, chamados a viver como luz para as nações e são divinamente capacitados para cumprir sua missão. A eles é concedida a restauração de seu relacionamento com Javé em Cristo, o perdão de pecados, o dom do Espírito e um novo coração, tudo isso para que eles vivam como luz no meio das nações.

Após a ressurreição e ascenção de Cristo, Goheen observa que o livro de Atos trata da Igreja dando continuidade à missão de Jesus. Seguindo o padrão veterotestamentário adotado pelo próprio Jesus, a Igreja é agora uma comunidade integrada na qual o testemunho servirá de luz para as nações e as atrairá para uma aliança com Deus. Aqui, Goheen identifica quatro maneiras pelas quais Lucas conecta a missão da Igreja com a missão de Jesus conforme relatada no evangelho: a histórico-redentora, os paralelos literários, a obra do Espírito e a expansão geográfica. Quando esses quatro fatores são comparados entre Cristo e a igreja, Goheen percebe um padrão no qual a igreja repete a característica do ministério de Cristo (p. 152-155). Na formação dessa comuni-dade escatológica que leva adiante a missão de Jesus, há três desdobramentos notáveis: sua reunião em uma localidade geográfica, a exclusão do povo de Deus daqueles que rejeitam Cristo como o Messias e o acréscimo dos gentios a essa comunidade. Em Jerusalém, a igreja experimenta o padrão da missão do antigo Israel primeiro pela dedicação ao ensino apostólico, no culto e na administração dos sacramentos. Além disso, eles vivem publicamente a vida do reino, evidenciando experimentalmente o que é ser membros dessa comu-nidade escatológica. Por fim, ela atrai para si outros que se unirão na mesma tarefa. Em Antioquia, onde os cristãos recebem esse nome pela primeira vez, surge uma igreja com várias diferenças daquela em Jerusalém. Seus membros, judeus e gentios, vivem em harmonia, rompendo todas as barreiras sociais. Também é de lá que surge o primeiro ímpeto missionário, no qual a igreja enxerga “além de seus limites geográficos e pergunta-se como pode participar na propagação do evangelho até os confins da terra” (p. 182).

Depois de fazer uma análise exaustiva da igreja missional tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, Goheen propõe o que seria uma igreja missional hoje. Com o que ela se parece no século 21 e como implementá-la.

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Dentre as várias características propostas por Goheen, destacam-se o uso do culto público como instrumento de cultivo de uma identidade missional, a necessidade de se entender o contexto cultural da igreja, o treinamento para o confronto missionário e pais preparados para fortalecer a fé de seus filhos. Segundo Goheen, uma igreja missional é preparada e estimulada quando ela se reúne para cultuar. Uma das maneiras pelas quais o culto pode ter esse efeito na igreja é utilizar a metanarrativa bíblica ao longo do culto. Uma outra maneira é utilizar os elementos de culto para reorientar e redirecionar os membros da igreja “para o mundo incrédulo como a perspectiva suprema de nossa vocação” (p. 242). Com relação ao contexto cultural da igreja, Goheen sugere que ela precisa entender profundamente as diferentes cosmovisões que a cercam e não se deixar iludir pelo desejo de que a cultura seja algo que ela não é. Quanto ao confronto missionário, Goheen refere-se à prática evangelística associada à vida no reino. Ele se refere “à maneira que os leigos encarnam o senhorio de Jesus Cristo no seu trabalho, nos negócios, na vida cadêmica, no trabalho social, nos tribunais, e na construção civil” (p. 254). Ele alerta para o sofrimento inevitável que surgirá desse confronto missionário. Por último, Goheen lembra que em Deuteronômio uma das ameaças que o povo de Deus enfrenta em sua tarefa missional é “o fracasso em transmitir a fé à geração seguinte” (p. 263). Goheen descreve os passos que deu para implementar em sua própria família esse objetivo. Cultos familiares (domésticos), educação cristã, moderação no uso de tecnologia, compreensão do contexto cultural, treinamento dos filhos para serem bons membros da comunidade da aliança.

A Igreja Missional na Bíblia é um excelente exemplo de aplicação de teologia e cosmovisão bíblicas para entender um assunto extremamente rele-vante para a vida da igreja: sua identidade enquanto agente de conversão de almas. Ele utiliza de maneira magistral a metanarrativa bíblica transformando-a no fundamento para uma teologia de missões. Mas será que esse livro é sobre eclesiologia? Goheen frequentemente destaca a importância da eclesiologia para a identidade missional da igreja, sem oferecer uma definição precisa do termo. Em um momento de elucidação sobre o assunto, ele explica de forma breve que “eclesiologia tem a ver com a compreensão de nossa identidade, quem somos e por que Deus nos escolheu – a quem pertencemos” (p. 21). En-quanto Goheen de maneira alguma está errado, a eclesiologia não está limitada ao que a igreja é, mas também ao que a igreja faz e como faz. Na dogmática clássica, a eclesiologia engloba, além da identidade da igreja, outros assuntos como marcas, autoridade, governo, culto e meios de graça.

A impressão é que Goheen associa desnecessáriamente a ideia de eclesio-logia à sua teologia de missões. Talvez outra dificuldade encontrada em Goheen é um fato que ocorre frequentemente com teólogos bíblicos que desejam encon-trar um tema central em toda a Escritura: a identificação forçada de sua matriz teológica em textos que não oferecem claro suporte para elas. Por exemplo: ao

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expor a importância simbólica dos doze apóstolos como representação do povo de Deus em conjunto engajando-se na atividade missionária, Goheen parece esquecer dos esforços individuais de homens como Filipe e de duplas como Paulo e Barnabé. Ele também parece esquecer que após a ascenção de Cristo os doze se espalharam pelo mundo ao invés de executar a obrigação missional como um grupo. Por último, na seção sobre a prática da igreja missional, a insistência de Goheen em um movimento missional centrípeto leva-o a sugerir a mudança da ênfase introvertida na utilização dos sacramentos para uma ênfase mais extramuros, mais focada na vocação da igreja para com o mundo. “Os dois sacramentos devem ser escatológicos e missionais e a nossa celebração litúrgica de ambos deve promover essa visão” (p. 242). Mas Goheen não oferece suporte algum para tão corajoso imperativo. Não é o próprio Cristo quem diz qual deve ser a ênfase dos sacramentos? Não são as palavras da administração ordenada por Cristo “esse é o meu corpo que é dado por vós” e “este é cálice da nova aliança no meu sangue derramado em favor de vós”? Como então mudar a ênfase introvertida (para a igreja) dos sacramentos quando parece ter sido exatamente essa a função para a qual Cristo os deu à sua noiva?

Se você está buscando um bom livro sobre teologia de missões que evita as soluções enlatadas e interage com a grande história da redenção bíblica, então Goheen é uma excelente opção. Apenas leve com você alguns grãozinhos de sal.

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rESEnhaDario de Araujo Cardoso*

OHLER, Annemarie (Org.); MENZEL, Tom; LÖHNDORF, Jan-Martin. atlas da Bíblia. Trad. Celiz Elaine Sayão. São Paulo: Hagnos, 2013. 495p.

Publicado originalmente em alemão no ano de 2004, como parte de uma biblioteca produzida pela Deutscher Taschenbuch Verlag (DTV), o Atlas da Bíblia é um compêndio organizado por Annemarie Ohler e ilustrado por Tom Menzel e Jan-Martin Lohndorf. Somente os dois primeiros são apresentados como autores na edição em português e não há nenhuma informação sobre outros colaboradores. Por essa razão, em nossa análise nos referiremos a Ohler como autora.

Annemarie Ohler é doutora em teologia católica e professora de alemão, religião e hebraico com especialidade em Antigo Testamento, conhecida por seu interesse em temas feministas,1 ainda que esta característica pouco se ma-nifeste na obra. Essa é a primeira obra da autora disponibilizada ao público brasileiro. Além deste volume, a autora publicou: Mythologische Elemente im Alten Testament: Eine motivgeschichtliche Untersuchung (1969); Gattungen im Alten Testament (1972-73), publicado em inglês como Studying the Old Testament: From Tradition to Canon (1985)2 e The Bible Looks at Fathers (1999), bem como artigos acadêmicos.

Os dicionários da língua portuguesa definem atlas como “coleção de mapas ou cartas cartográficas em volume”. O termo deriva de um personagem

* Mestre em Teologia (Antigo Testamento) pelo CPAJ, em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutorando no Programa de Semiótica e Linguística Geral das FFLCH/USP. Professor assistente de Teologia Pastoral no CPAJ e professor de Teologia Exegética no Seminário Rev. José Manoel da Conceição, em São Paulo.

1 Cf. BENJAMIN, Don C. Resenha. The Bible Looks at Fathers. Catholic Biblical Quarterly 64, 1 (Jan. 1, 2002), 140-141.

2 Cf. WATTS, John W. Resenha. Studying the Old Testament: From Tradition to Canon. Review & Expositor 84, 1 (Dec. 1, 1987), 121.

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mitológico que tinha esse nome e que era “representado por um gigante carre-gando sobre os ombros a abóbada celeste”.3 Por extensão, o termo é utilizado para livros compostos como “coleção de gravuras, gráficos, etc., relativos a uma dada ciência”.4 Assim, o propósito da obra é fazer uma exposição abrangente de temas e tópicos ligados à Bíblia. Ela se divide em 24 partes. A primeira é uma introdução geral, nove tratam do Antigo Testamento, dez do Novo Tes-tamento, uma trata do cânon, uma da interpretação bíblica, as duas finais são uma cronologia e há uma bibliografia.

A introdução trata dos aspectos culturais concernentes ao contexto em que se formou o texto bíblico como história, ambiente religioso, línguas, etc. Em seguida, o Antigo Testamento é estudado por meio de uma introdução que foca em questões de conceito e conteúdo, e de uma exposição em blocos assim denominados: O Pentateuco, A obra histórica deuteronomista, Os profetas, Literatura apocalíptica, Os salmos, A literatura sapiencial, A literatura narrativa posterior, A época do segundo templo.

Na sequência, o Novo Testamento é estudado a partir de uma introdução geral, uma introdução aos evangelhos, um estudo sobre os evangelhos sinóti-cos, sobre Atos dos Apóstolos e sobre os textos joaninos. Após uma introdução acerca da vida e ministério de Paulo, são estudadas as suas cartas e aquilo que a autora chama de repercussão das cartas de Paulo5 e textos doutrinários tardios e, por fim, uma exposição de Apocalipse.

A seção sobre o cânon retoma e amplia alguns conceitos já tratados na introdução geral e buscar dar conta de como a comunidade cristã tratou os testamentos. Por sua vez, a seção sobre interpretação bíblica faz um apanhado muito panorâmico da história da interpretação bíblica e foca na descrição e justificativa das metodologias de interpretações contemporâneas.

A edição é primorosa, feita em cores, em papel couchê, o que, além de embelezar, diminui o volume do livro, embora prejudique a leitura em am-bientes muito iluminados. Os gráficos em grande quantidade são muito bem produzidos e diversas vezes realizam aquilo que as informações e os argumentos não conseguiram estabelecer (e.g., p. 13).

Ainda no aspecto editorial, a grande maioria das páginas apresenta um parágrafo levemente deslocado na margem direita que se confunde com o texto, mas o interrompe com informações avulsas que várias vezes nem correspon-dem ao assunto em discussão. Essa interrupção prejudica a fluência da leitura

3 CUNHA, Antonio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4ª ed. rev. e amp. Rio de Janeiro: Lexicon, 2010, p. 67.

4 HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 335.

5 2 Tessalonicenses, Colossenses, Efésios e as pastorais, documentos que a autora afirma não terem sido escritos por Paulo, mas por seus discípulos.

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e distrai o leitor, que se vê forçado a tentar estabelecer a relação entre aquele parágrafo com o restante do texto. Quadros explicativos, que são utilizados em outros momentos, também seriam mais apropriados tanto do ponto de vista do conteúdo, quanto da estética.

O lugar dedicado aos ilustradores na produção da obra indica que a cria-tividade e a construção de imagens são bases em que se fundamenta o livro. É curiosa a completa ausência de referências bibliográficas para as afirmações. A inclusão de uma extensa bibliografia ao final da obra não supre a necessidade de apresentar fundamentos e principalmente evidências do que está sendo afirmado. Além do mais, por vezes uma consulta a obras de referência evitaria deslizes como a crassa confusão entre as datas e as propostas dos partidos dos fariseus e dos saduceus (p. 14).

A perspectiva da obra é abertamente contrária aos padrões da tradição evangélica conservadora. O constrangimento é tamanho que os editores se viram obrigados a adicionar uma nota, logo após o sumário, tentando justifi-car a leitura da obra, a despeito do ataque à historicidade e à autenticidade da Bíblia, com base num suposto “aperfeiçoamento do pensar cristão” (p. 7) que permitiria aos cristãos a aquisição de subsídios para “defender a sua fé com argumentos inteligentes e tecidos por meio de um estudo sério dos relatos bí-blicos”, deixando entender que as defesas da fé não têm sido feitas assim. Isso não impede, digamos desde já, que, a despeito do desprezo pela historicidade do conteúdo, boas observações e aplicações sobre o texto sejam encontradas em certos momentos.

Logo no primeiro parágrafo (p. 8) a comparação dos Vedas com a Bíblia chama a atenção. Estes escritos hinduístas, datados do 2º milênio antes de Cristo, são apresentados como modelo de referência para a “noção de que a Bíblia é a ‘palavra de Deus’”. Essa comparação é muito infeliz. Primeiro, num sentido mais básico, porque os Vedas não são considerados palavra de Deus; os hinduístas nem creem em um deus pessoal. Segundo, por ser francamente improdutiva, porque pouquíssimas pessoas sabem o que são os Vedas. Terceiro, porque a comparação nem de longe ilustra o conceito teológico de revelação em que se baseia a noção de Palavra de Deus (com letras maiúsculas e sem aspas). Igualmente infeliz é a equiparação de Jesus com Buda e Maomé (p. 288). Situações falaciosas como estas, que criam falsos silogismos, assolarão o leitor por todo o livro. Não haverá espaço suficiente para rebater contradições (e.g., p. 16), incorreções (e.g., p. 64), imprecisões (e.g., p. 42), falsas pressuposições (e.g., p. 24) e até mesmo fantasias (e.g., p. 159) espalhadas ao longo de toda a obra.

É impressionante observar que em pleno século 21 ainda haja pessoas que sustentam a Hipótese Documental de Julius Wellhausen, conhecida como JEDP. A descrença na veracidade da Bíblia existirá até o retorno de Jesus, mas é incompreensível como um pesquisador contemporâneo possa, após todos os

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avanços da arqueologia bíblica, sustentar, sem qualquer evidência, que o texto bíblico se originou na confluência de quatro documentos criados a partir do século 8º a.C. Tal proposta só se sustentou sob os auspícios do racionalismo do período moderno que transformava em verdade as concepções da mente humana decaída. Por conta dessa realidade, a autora oscila admitindo a pro-posta de que o texto do Antigo Testamento se formou por camadas (p. 24), de que foi compilado no tempo de Esdras (p. 40, 436), de que foi alterado pelos rabinos judeus (p. 438), uma sopa de propostas contraditórias entre si. Fica claro que a autora está mais preocupada em fazer interpretações agradáveis à sua comunidade do que em manter a coerência de seus posicionamentos. E mesmo reconhecendo que as reconstruções documentárias permanecem in-certas (p. 48ss) e que o projeto da crítica das fontes fracassou (p. 63), mantém sua proposta e reluta em aceitar os elementos arqueológicos que confirmam a história bíblica (p. 26-27).

Sem qualquer pudor, ela chama o contexto de Deuteronômio de ficção (p. 91) e afirma que as narrativas do Êxodo não tem a “ideia de relatar tudo da maneira como deve ter acontecido” (p. 82). Rejeita qualquer possibilidade de Moisés ser autor de qualquer parte do texto bíblico, pois identifica o cântico de Débora como o texto mais remoto do Antigo Testamento (p. 108). Por outro lado, usa de ampla liberdade criativa para descrever a vida de Israel na terra (p. 114). Por fim, a inclusão e tratamento igualitário dado aos livros apócrifos e deuterocanônicos é inconcebível para uma editora evangélica.

Quanto ao Novo Testamento, ao defender que os discípulos não pode-riam ter inventado a história de que João Batista batizou Jesus (p. 288), deixa aberta a sugestão de que outros episódios podem ter sido criados. Defende que os evangelhos são fruto de uma revisão dos ensinos de Jesus em virtude das Guerras Judaicas contra Roma. Até então os discípulos teriam entendido que Jesus ensinara que o seu reino deveria fixar-se em Jerusalém (p. 302).

Na questão da autoridade do Novo Testamento, defende que os autores cristãos até o 2º século consideravam somente os livros do Antigo Testamento como Escritura Sagrada (p. 303). Desconsidera assim o testemunho de 2Pe 3.15-16, a evidência bíblica de que os escritos neotestamentários eram lidos publicamente nas reuniões da igreja (Cl 4.16; 1Ts 5.27; 1Tm 4.11; Ap 1.3, 2.7,11,17,29; 3.6,13,22) e esconde o fato de que não há documentos cristãos, exceto os do texto bíblico, anteriores ao 2º século, e que os primeiros docu-mentos escritos já reconhecem a autoridade espiritual dos evangelhos e das cartas de Paulo, como, por exemplo, a carta de Clemente de Roma aos Coríntios (47.1-3), que afirma a inspiração de 1 Coríntios.6 O mesmo erro será cometido

6 Cf. COSTA, Hermisten Maia Pereira da. A inspiração e inerrância das Escrituras: uma pers-pectiva reformada. São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 28-29.

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na p. 311, quando a autora considera que os evangelhos foram os primeiros escritos cristãos utilizados para leitura nos cultos.

Além disso, a relação entre a “perda” dos originais e a não consideração dos textos como imutáveis (p. 304) é falaciosa. O texto valia pelo seu conteúdo e não por sua originalidade documental. Até mesmo a pequena quantidade de documentos disponíveis impossibilita a presunção de que os textos podiam ser modificados, pois a maior parte das diferenças apontadas nessa época decorre de erros de cópia e transcrição. O argumento de que Mateus e Lucas reescreveram Marcos chega a ser ridículo, pois na verdade o que se supõe (com grande debate) é que eles escreveram seus evangelhos baseados em Marcos, não que reescreveram o livro.

Algumas propostas são tão absurdas que várias vezes os editores são obrigados a inserir notas contestado as afirmações do texto. Na pág. 106, há uma nota contestando a afirmação de que o relato da conquista é fictício. Na p. 192, outra nota rebate a afirmação de que única previsão autêntica do livro de Daniel não se cumpriu. Nas p. 412 e 414, os editores são novamente obrigados a inserir notas contestando a autora ao afirmar que 2 Tessalonicen-ses não é de autoria paulina, mas produção pseudoepígrafa de um discípulo. Acrescente-se que o mesmo é afirmado sobre as cartas de Colossenses, Efésios, 1 e 2 Timóteo e Tito. A autora nega também a autoria joanina das cartas de João atribuindo-as a um discípulo do apóstolo autodenominado “ancião”. E nem se dá ao trabalho de justificar a negação da autoria das cartas de Pedro, Tiago e Judas. Para a autora, Paulo é como Sócrates ou Rabi Aquiva, que se torna alvo de veneração em textos e histórias criadas por seus discípulos. Afirma que, ao chamar seus auxiliares de ministros, Paulo legitimava essa prática (p. 414-415). Ao que parece, a mesma compreensão é assumida em relação às cartas de Tiago, Pedro, Judas e João. A partir daí, qualquer análise sobre essas cartas torna-se descartável.

A obra tem um manifesto compromisso com a destruição dos fundamen-tos da fé. Por vezes, ela faz isso até mesmo de modo desonesto. Por exemplo, ao descrever o trabalho de Jerônimo em traduzir a Bíblia para o latim, valendo-se do hebraico e do grego para fazer seus comentários, a autora, sem qualquer argumento, afirma: “Depreende-se disso a ideia de que os textos bíblicos não são a palavra de Deus em si, mas testificam a respeito dela” (p. 443). Pode-se afirmar exatamente o contrário: a preocupação de Jerônimo em comparar os textos disponíveis atesta a grande importância que ele dava em seguir o texto o mais fielmente possível.

Ao abrir a seção de interpretação bíblica (p. 448), a autora critica a proposta de uma única interpretação correta e defende uma diversidade de significados válidos, incluindo aqueles do judaísmo. Adiante põe em questão a validade do ensino bíblico para os nossos dias. Ao falar da interpretação moderna, defende novamente os múltiplos significados a partir das teorias da recepção

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(p. 462), mas propõe como instrumento de controle as várias propostas de exegese histórico-críticas, como forma de prevenção contra interpretações arbitrárias (p. 463). Tal prevenção é descrita, de forma anacrônica, com um esvaziamento da autoridade bíblica: “Quando se conhece o contexto no qual sugiram alguns textos antissemitas no NT ou trechos que exaltam a violência no AT fica impossível ouvir ali a palavra eternamente válida de Deus, que demanda obediência” (p. 464). Por fim, combate a leitura dos “textos bíblicos como parte de uma história que vai da Criação até o fim do mundo” (p. 465).

Sua cristologia é frontalmente contrária à ortodoxia cristã. É, no mínimo, estranha a expressão de que, por causa de suas adversidades, os indivíduos “pensavam estar dominados, ‘possessos’ por forças malignas”, e que Jesus pensava isso também (p. 320). Torna assim a possessão demoníaca uma ava-liação, uma impressão de Jesus e das pessoas, e não uma realidade espiritual vencida por Jesus. O mesmo se dá na p. 331, onde a autora afirma que talvez Jesus “tivesse entendido o seu sofrimento como parte do final dos tempos”, e na p. 344, onde se diz que Jesus fracassou na missão para com o seu povo. Igualmente absurdo é sugerir que Jesus, num ato de covardia, se escondeu na hora de sua morte (p. 372), deturpando completamente o sentido de João 12.36. Quando trata da ressurreição (p. 332-335), a questão se complica sensivelmente. Ainda que admita que algo sui generis está acontecendo na comunidade cristã (p. 334), a autora trata a ressurreição como uma crença, e não como um acon-tecimento. Ignora inexplicavelmente os relatos da ressurreição ambientados em Jerusalém, ao afirmar que os discípulos foram para a Galileia frustrados, e não, como indica o texto bíblico (Mt 28.10), para atender ao comando de Jesus de se encontrarem ali com ele. Estranhamente, usa aspas para se referir à aparição de Jesus e afirma que Paulo não apresenta provas da ressurreição de Jesus, apenas testemunhas que poderiam ser consultadas. Deixa assim, a ressur-reição na zona cinzenta de uma forte convicção da igreja primitiva. Na p. 370, a autora contraria frontalmente a teologia cristã ao afirmar que, para João, Jesus era deus somente no sentido de ser divino, diferenciando-o do único Deus de Israel. Na p. 424, descreve Jesus como o ser mais próximo de Deus. Não há dúvida de que tal posicionamento é herético.

Conhecida por sua história de publicações de elevado nível teológico e de compromisso com a fé cristã, a Editora Hagnos infelizmente publicou uma obra que não se harmoniza com a ortodoxia evangélica e dificulta uma saudável compreensão da Escritura. Esperamos que a editora retome seu bem-sucedido caminho de fornecer ao público brasileiro obras teológicas de qualidade e que, ao mesmo tempo, contribuam para o crescimento na fé e a promoção da causa de Cristo em nossa sociedade.

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