+ All Categories
Home > Documents > CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Date post: 11-Feb-2015
Category:
Upload: ralf-rickli
View: 106 times
Download: 15 times
Share this document with a friend
259
C UL UL UL UL ULTURAS TURAS TURAS TURAS TURAS C C C C CONTEMPORÂNEAS ONTEMPORÂNEAS ONTEMPORÂNEAS ONTEMPORÂNEAS ONTEMPORÂNEAS, I MA MA MA MA MAGINÁRIO GINÁRIO GINÁRIO GINÁRIO GINÁRIO E E E E E EDUCA DUCA DUCA DUCA DUCAÇÃ ÇÃ ÇÃ ÇÃ ÇÃO: REFLEX EFLEX EFLEX EFLEX EFLEXÕES ÕES ÕES ÕES ÕES E R R R R REL EL EL EL ELATOS OS OS OS OS DE DE DE DE DE P P P P PESQ ESQ ESQ ESQ ESQUISAS UISAS UISAS UISAS UISAS ORGANIZ GANIZ GANIZ GANIZ GANIZADORA ADORA ADORA ADORA ADORA S UELI UELI UELI UELI UELI A A A A APARECIDA ARECIDA ARECIDA ARECIDA ARECIDA I I I I ITMAN TMAN TMAN TMAN TMAN M M M M MONTEIR ONTEIR ONTEIR ONTEIR ONTEIRO
Transcript
Page 1: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

CCCCCULULULULULTURASTURASTURASTURASTURAS C C C C CONTEMPORÂNEASONTEMPORÂNEASONTEMPORÂNEASONTEMPORÂNEASONTEMPORÂNEAS,,,,,IIIIIMAMAMAMAMAGINÁRIOGINÁRIOGINÁRIOGINÁRIOGINÁRIO EEEEE E E E E EDUCADUCADUCADUCADUCAÇÃÇÃÇÃÇÃÇÃOOOOO:::::RRRRREFLEXEFLEXEFLEXEFLEXEFLEXÕESÕESÕESÕESÕES EEEEE R R R R RELELELELELAAAAATTTTTOSOSOSOSOS DEDEDEDEDE P P P P PESQESQESQESQESQUISASUISASUISASUISASUISAS

OOOOORRRRRGANIZGANIZGANIZGANIZGANIZADORAADORAADORAADORAADORA

SSSSSUELIUELIUELIUELIUELI A A A A APPPPPARECIDAARECIDAARECIDAARECIDAARECIDA I I I I ITMANTMANTMANTMANTMAN M M M M MONTEIRONTEIRONTEIRONTEIRONTEIROOOOO

Page 2: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

CULTURAS CONTEMPORÂNEAS,IMAGINÁRIO E EDUCAÇÃO:REFLEXÕES E RELATOS DE PESQUISAS

ORGANIZADORA

SUELI APARECIDA ITMAN MONTEIRO

2010

Page 3: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Copyright © 2010 dos autores

DDDDDiririririreitos reitos reitos reitos reitos reseresereseresereservvvvvados desta ediçãoados desta ediçãoados desta ediçãoados desta ediçãoados desta ediçãoRiMa Editora

EEEEEditoração e rditoração e rditoração e rditoração e rditoração e revisãoevisãoevisãoevisãoevisãoLótus Produtos Editoriais

Rua Virgílio Pozzi, 213 – Santa Paula13564-040 – São Carlos, SPFone/Fax: (16) 3411-1729

www.rimaeditora.com.br

COMISSÃO EDITORIALDirlene Ribeiro MartinsPaulo de Tarso Martins

Carlos Eduardo de Matos Bicudo (Instituto de Botânica - SP)Evaldo L. G. Espíndola (USP - SP)João Batista Martins (UEL - PR)

José Eduardo dos Santos (UFSCar - SP)Michèle Sato (UFMT - MT)

C967c

Culturas contemporâneas, imaginário e educação: reflexões e relatos de pesquisas / Organizado por Sueli Aparecida Itman Monteiro – São Carlos: RiMa Editora, 2010. 258 p. il. ISBN – 978-85-7656-201-6

1. Culturas. 2. Imaginário. 3. Educação. I. Título.

CDD – 370.7

978-85-7656-200-1 - Versão eletrônica

Page 4: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

AGRADECIMENTOS

A MARIA CECÍLIA SANCHEZ TEIXEIRA, educadora, pesquisadora, orientadora:

Pela acolhida, cuidados, respeito, afeto e amizade, que sempre revestemsuas atitudes.

Pelo espírito que imprimiu ao CICE (Centro de Estudos do Imaginário,Culturanálise de Grupos e Educação) da FEUSP, tornando sagrado o nossotempo do “estar-junto”.

Pelo pilar epistemológico que representa para os estudos e a constituiçãode nossa Teoria do Imaginário Escolar.

Pelo grande apoio à iniciativa de organização deste livro e pelo acompa-nhamento constante ao longo de sua elaboração.

Cecília, amiga... luz...

Sueli Itman

Page 5: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook
Page 6: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ................................................................................................... vii

PARTE I – CONTEMPORANEIDADE, CULTURAS, IMAGINÁRIO E EDUCAÇÃO

CONTEMPORANEIDADE E EDUCAÇÃO: DESAFIOS EPISTEMOLÓGICOS E

EDUCACIONAIS NA CONTEMPORANEIDADE ......................................................... 3Beatriz Fétizon

SUBJETIVIDADE E EDUCAÇÃO: UM NOVO OLHAR NA CULTURA PÓS-MODERNA ..........21Márcia R. M. Ferraz Arruda

IMAGINÁRIO E ORGANIZAÇÕES EDUCATIVAS ...........................................................33Débora Raquel da Costa Milani

CULTURA, ESCOLA E SOCIEDADE: A EDUCAÇÃO DE GRUPOS SOCIAIS ........................43Maria do Rosario Silveira Porto

CONHECER É DESCOLAR RÓTULOS: UMA REFLEXÃO IMAGINATIVA

SOBRE A CULTURA DA ESCOLA .........................................................................55Eliana Braga Aloia Atihé

PARTE II – COM OS OLHARES VOLTADOS ÀS CULTURAS ESCOLARES

CULTURA E IMAGINÁRIO DE UMA INSTITUIÇÃO EDUCATIVA:O OLHAR DAS CRIANÇAS ................................................................................73

Iduina Mont´Alverne Chaves

VIOLÊNCIA NA ESCOLA: O MEDO NOSSO DE CADA DIA .......................................... 85Maria Cecília Sanchez Teixeira

REFLEXOS DA CULTURA ESCOLAR SOBRE O PROCESSO DE AVALIAÇÃO

PARTICIPATIVA:EXPERIÊNCIA DE APLICAÇÃO DO INDIQUE

NAS ESCOLAS MUNICIPAIS DE ITUIUTABA, MG ...............................................101José Abílio Perez Junior

O IMAGINÁRIO SOBRE O NEGRO NO ESPAÇO ESCOLAR:DAS IMAGENS DA ANGÚSTIA À FORÇA DA ANCESTRALIDADE AFRICANA,TRILHANDO CAMINHOS NA CONSTRUÇÃO DE UMA EDUCAÇÃO PARA

AS RELAÇÕES ETNICORRACIAIS .......................................................................117Carolina dos Santos Bezerra Perez

Page 7: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

vi Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE: UM ESTUDO CULTURANALÍTICO DE ALUNOS

RIBEIRINHOS DO PANTANAL MATO-GROSSENSE ...............................................137Emília Darci de Souza Cuyabano

PARTE III – CULTURAS... PARA ALÉM DO TEMPO E DA ESCOLA

PRINCÍPIOS PARA UMA EDUCAÇÃO AFRO-BRASILEIRA .............................................157Julvan Moreira de Oliveira

DEAMBULAÇÕES CONTEMPORÂNEAS: FOGO CIGANO, CULTURAS E EDUCAÇÃO .......183Sueli Aparecida Itman Monteiro

O DESAFIO DE JUNTAR LETRAS, REVER E APROFUNDAR CONHECIMENTOS

NA VELHICE: IMAGINÁRIO E REALIDADE .........................................................199Altair Macedo Lahud Loureiro

OS MORADORES DE RUA COMO CONSTRUTORES DE UMA PEDAGOGIA URBANA .......215Antonio Busnardo Filho

MACHADO DE ASSIS: IMAGINÁRIO TRÁGICO E ÉTICA DA OCASIÃO ........................227Rogério de Almeida

MUSEUS E EDUCAÇÃO .......................................................................................239João de Deus Vieira Barros

Page 8: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Apresentação vii

APRESENTAÇÃO

Ao longo de duas décadas estamos a estudar, investigar, socializar reflexões,realizar reuniões científicas e publicar coletivamente os resultados de nossas pes-quisas, com o apoio das agências financiadoras CAPES, CNPq-PIBIC, CENP,FUNDUNESP, FAPEMAT, FAPESP e SETI/PR.

Essa dinâmica, que teve seu início em 1991, com a criação do CICE (Cen-tro de Estudos do Imaginário, Culturanálise de Grupos e Educação), da Facul-dade de Educação da USP, surgiu dos esforços dos professores José Carlos de PaulaCarvalho e Maria Cecília Sanchez Teixeira, da FEUSP, que, ao lado de seus en-tão orientandos de pós-graduação, encetaram uma jornada de reencantamento pelaciência, pela educação e pela vida. Os horizontes do pequeno nicho expandiram-se, outros grupos de pesquisas, enquanto belas crisálidas, foram surgindo ori-ginados daquele nascedouro e hoje, constituídos, constroem conhecimentosoferecendo caminhos à investigação e implantação de propostas junto aos Pro-gramas de Pós-Graduação nacionais e internacionais, aos Cursos de Formaçãode Professores e Gestores financiados pelo poder público, à vida institucionalda academia e demais instâncias sócio-político-educativas.

Assim, após os tantos anos de trabalhos realizados conjuntamente, este li-vro representa parte das reflexões nascidas no seio das falas estabelecidas entre aprimeira, a segunda e a terceira geração de pesquisadores formados a partir doarcabouço teórico amalgamado pelo CICE. Para tanto, na obra que segue, o lei-tor terá a oportunidade de divisar reflexões e autores diversos, contudo percebe-rá a bacia semântica que nos sustenta, ancorada que está principalmente nosescritos de Edgar Morin, Gilbert Durand, Michel Maffesoli e José Carlos de PaulaCarvalho.

A partir dessa arquitetura de pensamento construímos reflexões teóricas so-bre as nuances da ciência, as consequências de seu “engessamento” e as possibili-dades que temos quando dialogicamente recolocada a partir de outro epistema.Detivemo-nos a estudar obras que se traduzem em mentalidades de época. Nostrabalhos de campo nossos olhares foram seduzidos pelas muitas culturas grupaissedimentadas nos cotidianos das instituições educativas e, migrando para alémdelas, entendemos que os processos educativos ocorrem em todos os níveis da vidae se manifestam a partir dos modos do sentir, pensar e agir anunciados pelos ba-nais cotidianos.

Page 9: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

viii Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Para nós, cultura e imaginário significam um circuito de complementari-dades que se manifesta através das representações simbólicas segundo o capitalpensado, sonhado, imaginado pelos grupos, com seus modos sutis de viver o sa-grado e o profano, o tempo histórico e o tempo mítico, o ócio e o trabalho, as es-tratégias de sobrevivência, as múltiplas linguagens de comunicação e as infinitasformas de expressão da arte e da tecnologia, organizadas no interior dos pequenosgrupos nos quais o ser, identificado aos modos de conceber a vida, reconduz-se nummovimento de retorno à tribo, ganhando visibilidade e força para a burla das pe-quenas mortes sociais de todos os dias. A riqueza dos universos por nós reconheci-dos é inestimável, emoldurados que foram pelas personas em suas múltiplas faces,seus ideários e as tantas lógicas, lá e acolá afloradas, a povoarem nossas vidas, falas eescritos. Desse modo, a instigante escolha da temática “Culturas Contemporâneas,Imaginário e Educação” permite-nos acolher a amplitude de nossas investigações,ancoradas que estão em pressupostos teórico-metodológicos que nos identificam enos religam perante a profusão de olhares e inserções em campo. Para tanto,oportunizamos dividir a obra em três sessões.

A primeira parte nos aproxima de ensaios e reflexões que norteiam nossoscaminhos epistemológicos. A segunda sessão nos oferece um olhar destinado aosdiversos fenômenos próprios dos universos educacionais, enquanto a terceira nosbrinda com criativos olhares de tal forma a substantificar a diversidade dos gru-pos culturais, a lógica dos espaços, a arte e o tempo com sua literalidade e a uto-pia educativa, todos apresentados de modo criativo e inusitado.

Poderemos nos deliciar com as reflexões oferecidas pela nossa filósofa“menina” Beatriz Fétizon, face aos seus 83 anos de sabedorias e pensares inu-sitados. Em sua fala, a autora nos oferece conexões entre o conceito de tem-po e contemporaneidade enquanto uma dimensão temporal viva e consistente;um presente com estabilidade suficiente para comportar investigação e admitiruma margem variável de intervenção, embora historicamente fugaz. MárciaFerraz Arruda adentra ao conceito de cultura, elaborado por Edgar Morin epor Michel Maffesoli, dando-nos subsídios para a compreensão das relaçõesintersubjetivas no cotidiano da escola. Débora Milani nos conduz ao concei-to de cultura enquanto manifestação dos diferentes grupos presentes na escola, queestão a realizar trocas simbólicas via processos educativos. Aqui se afirma a escolaenquanto um sistema sociocultural que expressa ao mesmo tempo a estática dossistemas sociais e a dinâmica dos sistemas culturais, sendo que todos os grupossociais participantes desses universos desenvolvem uma dimensão organizacionale educativa.

Page 10: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Apresentação ix

Maria do Rosário Silveira Porto nos fala do papel tradicional reprodutoratribuído à escola e da possibilidade de constituição de uma outra concepção deeducação escolar que abre caminhos à criatividade, à inventividade e à emergên-cia do complexo, do multiforme, da polifonia, a partir de uma consciência do realnão limitadora das relações do ser com o mundo. Eliana Braga Aloia Atihé, atra-vés de reflexão instigante sobre a cultura da escola, brinda educadores com o de-safio do conhecer-se para descolar-se os rótulos e estigmas próprios dessesuniversos, tornando-se, assim, um mediador entre a provação e sua superação, pormeio da recriação de uma inteligência constituída na convergência da cognição,da emoção e da imaginação. Iduina Mont’Alverne Chaves nos apresenta signi-ficativos resultados obtidos através de pesquisa sobre a educação de crianças e ado-lescentes e a cultura que vem se instituindo em Colégio Universitário do Rio deJaneiro, especialmente a partir do olhar de seus participantes, que identificam con-quistas e mudanças ocorridas na dinâmica do movimento instituinte, à luz do es-tabelecido pelas normas instituídas. Evidencia-se aqui a expressão imagética dascrianças que (re)afirmam seus sentimentos em relação à escola, ao corpo adminis-trativo e pedagógico e ao espaço educativo vivenciado.

Maria Cecília Sanchez Teixeira nos traz, através de heurísticas reveladorasdos subterrâneos do imaginário grupal, máscaras da contemporaneidade traduzidasnas imagens simbólicas da violência e do medo, que se manifestavam nas repre-sentações e vivências cotidianas de alunos, particularmente no que se tratava desuas relações com os professores e com escolas da cidade de São Paulo. José AbílioPeres Junior nos apresenta a polêmica e recorrente temática de avaliar os univer-sos educativos ao traçar a influência que o imaginário e a cultura escolar exerce-ram sobre a condução e os resultados obtidos no processo de avaliação participativarealizado em escolas municipais de Minas Gerais, organizado com a finalidade delevantamento de subsídios para a elaboração de ações voltadas à gestão democrá-tica das escolas, bem como para a formulação de políticas públicas municipais.

Carolina dos Santos Bezerra Perez nos brinda com relato de pesquisa decampo desenvolvida a partir de Projeto de Extensão realizado pela UniversidadeEstadual de Londrina, que contemplou o levantamento do imaginário sobre o ne-gro no espaço escolar, indo das imagens de angústia à força da ancestralidade afri-cana, com o objetivo da construção de proposta educacional voltada às relaçõesetnicorraciais. Emília Darci de Souza Cuyabano nos apresenta os resultados depesquisa que tratou das manifestações simbólicas e culturais de um grupo de alunosde comunidade ribeirinha no pantanal mato-grossense, com o objetivo de com-

Page 11: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

x Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

preender como ressignificam, no seu cotidiano, as práticas culturais do seu gru-po e as práticas educativas da escola.

Julvan Moreira de Oliveira adentra às nuances étnicas a partir de uma re-flexão encetada sobre as ideias pedagógicas contidas nas culturas afro-brasileiras,focalizando, desta forma, alguns pressupostos que dão base aos modos de ser donegro no Brasil. Tais reflexões nos trazem substancial suporte para a constituiçãode uma filosofia da educação afro-brasileira. Sueli Aparecida Itman Monteiro,em suas andanças investigativas destinadas ao reconhecimento das culturas dasmuitas tribos contemporâneas que povoam os caminhos da educação, adentrou aosuniversos misteriosos que circundavam a questão do fracasso e da exclusão escolarpeculiares à história de vida de uma tribo cigana, que parte do ano levava seus ado-lescentes a frequentarem uma escola do interior do Estado de São Paulo. Através dafala de anciãos e adolescentes, a autora buscou reconhecer o visível e o invisívelsedimentado em um cotidiano de lógicas tão distintas e distantes e como pensavam,sentiam e agiam a partir desses fenômenos educacionais. Para tanto, mapeou as for-mas organizativas, os aspectos patentes e latentes da cultura daquele grupo, identi-ficando aí as paisagens mentais que povoavam sonhos, devaneios e representaçõessimbólicas acerca do que significava para eles a permanência, ou não, no universoescolar.

Altair Macedo Lahud Loureiro revela-nos trabalho de pesquisa realizadojunto à Universidade Aberta à Terceira Idade (UnATI) da UCB (Universidade Ca-tólica de Brasília), vinculado a um centro de convivência com a finalidade do apri-moramento de métodos que deslocam a proeza de alfabetizar crianças para sededicar a essa alegria tardia em relação aos outros, na medida em que no apagardas luzes surge o clarão das letras, que se tornam de repente legíveis. Neste desa-fio do juntar as letras, rever e aprofundar conhecimentos sobre a velhice, Altairparte de heurísticas que lhe permitem levantar as matrizes dos imaginários que po-voam os universos da terceira idade e, assim, apontar caminhos de ação destina-dos a esses grupos sociais, tão escondidos no tremor de suas próprias mãos. AntonioBusnardo Filho nos apresenta o imaginário de moradores de rua da cidade de SãoPaulo, compreendidos pelo autor enquanto construtores de uma pedagogia urba-na, porque trazem consigo representações de refúgio, que nos permitem compre-ender entendendo o espaço urbano como um campo pedagógico, como um espaçode formação da pessoa contemporânea.

Rogério de Almeida, através de belíssimo exercício de interpretação literá-ria realizado com o sentido de captar o universo da angústia humana, tão recor-rente nestes dias, nos oferece breve ensaio sobre o imaginário trágico caracterizado

Page 12: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Apresentação xi

na obra machadiana, por meio da análise do conto “Teoria do Medalhão” e a partirdas referências de Gilbert Durand, Edgar Morin e Clément Rosset, onde investi-ga a ética da ocasião como escolha estética diante do acaso da existência. Para oautor é no choque entre o universo concreto – destituído de inteligência, ins-tinto, vontade, razão, sentido, etc. – e o homem – constituído de todas essasfaculdades – que o imaginário se engendra ao espaço humano, possibilitandoo desenvolvimento da cultura como uma espécie de consciência comum, da so-ciedade ou de grupos. Ao permitir-nos, via asas filosóficas, a apreensão de suasincursões literárias, o autor nos coloca diante dos grandes desafios da própria exis-tência e de como o reconhecimento do imaginário trágico, próprio aos universospor nós aqui estudados constitui, ou não, caminhos contemporâneos para a com-preensão e recriação das culturas, da educação e da vida.

João de Deus, ao fechar este nosso círculo de reflexões, complexifica o con-ceito de museus quando retoma a questão da temporalidade anunciada no iní-cio desta obra por Beatriz Fétizon. João de Deus nos incita a uma incursão, aindaque breve, pelos meandros do tempo através do entrelaçamento entre passado,presente e futuro. Para esse autor-arte-educador da Universidade Federal de SãoLuiz do Maranhão, não há como falar em museus e educação sem nos referir-mos à temporalidade, na medida em que o museu nada mais é que a tentativahumana de coagulação do tempo. O sonho humano de parar ou aprisionar otempo está materializado nos museus. Na condição de educador, João de Deusos apresenta como um lugar de educação não formal, sem contudo perder devista as enormes possibilidades que os museus oferecem como parceiros com-plementares da educação escolar. Em seu devaneio, esse autor ainda nos fala domuseu de objetos futuros e no museu de desejos humanos. Em conversas sobrecontemporaneidade e a fugacidade do tempo, seria essa mais uma mostra da sau-dável loucura do artista, ou apenas uma pequena antecipação de futuro?

Boas e reencantantes leituras a todos!

Sueli Itman

UNESP, Araraquara, dezembro de 2010

Page 13: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook
Page 14: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

PARTE I

CONTEMPORANEIDADE, CULTURAS,IMAGINÁRIO E EDUCAÇÃO

Page 15: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook
Page 16: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

CONTEMPORANEIDADE E EDUCAÇÃO: DESAFIOS

EPISTEMOLÓGICOS E EDUCACIONAIS NA

CONTEMPORANEIDADE*

Beatriz Fétizon**

Contemporaneidade É o Presente Histórico

Eu costumo brincar com os estudantes dizendo que o fato de ser histórico, sal-va-o da irrelevância – porque, no tempo físico, o presente é a mais irrelevante das di-mensões temporais. É aquela que até agora era futuro e agora mesmo já será passado.O instante em que comecei a formular esta frase, antes mesmo que a acabasse de formu-lar, já era definitiva e irremediavelmente passado. O presente, enquanto dimensão dotempo físico é, pois, um irremediável estado de passagem – circunstância que, conve-nhamos, não nos permite viver. Ou não nos permitiria, é melhor dizer – se o bichohomem não resolvesse partir para a façanha de intervir na sucessão do tempo... Não es-tranhem. Não há por que não pudesse se decidir a tanto, ele que já metera o bede-lho em tanta coisa cujo acesso lhe seria aparentemente impossível... Como em muitasoutras realidades e circunstâncias, com o tempo não foi diferente: o homem deua volta por cima no que diz respeito à impossibilidade de conviver com essa in-cômoda irrelevância do presente e criou o tempo histórico – cujas dimensões, vis-to tratar-se de invenção sua, configuram-se ao sabor de suas necessidades e de suaspossibilidades de (con)vivência e de operação com elas. Contemporaneidade é o nomedessa dimensão presente do tempo histórico. E, nessas condições, a contemporaneidadeé uma dimensão temporal viva e consistente; um presente com estabilidade sufi-ciente para comportar investigação e admitir uma margem variável de interven-ção – embora, como todo presente que se preze, fugaz; mas historicamente fugaz.

São contemporâneos fatos, acontecimentos, coisas, pessoas, ideias que fazem parteda vivência de um tempo. Quanto dura a contemporaneidade? Depende dos limitesque lhe coloquemos ao tratarmos dela – ou com ela. Meus colegas estudantes uni-versitários ao longo da Graduação foram meus contemporâneos por quatro anos; e

* Conferência de Abertura da Semana da Educação, proferida na Faculdade de Educação daUniversidade Federal do Maranhão, São Luiz, em novembro de 2006.

** Professora doutora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

Page 17: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

4 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

os que foram meus colegas de Graduação e de Pós-Graduação, foram meus contem-porâneos por, no mínimo, uma dezena de anos – ao longo dos quais partilhamosuma das dimensões fundamentais de nossas respectivas histórias pessoais. E, outroshouve, que foram meus contemporâneos na universidade ao longo de mais de vin-te anos. Histórica e socialmente falando, nossos contemporâneos (dependendo docorte que estabeleçamos) são todos os integrantes de uma mesma geração histórica;ou são todos os integrantes das gerações compreendidas entre os acontecimentos Ye Z que delimitam a vigência de certa homogeneidade de características culturais,períodos, pois, de duração variável na história da humanidade, ou de uma cultura,de um continente, de um país, de um povo, de um grupo, de um indivíduo.

Demos a volta por cima, pois, na irrelevância do presente. Mas não otransformámos1, por isso, na dimensão temporal relevante por excelência. Quer setrate do tempo físico ou do tempo histórico, a dimensão mais relevante do tem-po não é o presente, nem é o futuro. É o passado. Não me tomem por passadista(ou saudosista). O futuro é a dimensão provocadora que, seja no plano pessoal,ou social, nacional, cultural, etc., nos solicita escolhas, decisões, sonhos, angús-tias, dúvidas – nunca certezas. O passado é a dimensão em que fixamos nossasâncoras. E é ao longo de nosso passado pessoal (bem como, é claro, do passadohistórico de nossa geração e de nossa cultura) que aquilo que somos no presen-te se explicita, adquire sentido, adquire forma. E cria raízes permanentes ao setornar passado. O presente até há pouco era futuro. Tornou-se presente, sim; masirremediavelmente passará; não há como fixá-lo para vivê-lo por mais tempoquando nos cativa ou nos deslumbra. É um irremediável estado de passagem.Só adquirirá estabilidade histórica – completo e intocável – quando se tornarpassado. Mais ainda do que de e numa perspectiva pessoal, na realidade social,nacional, cultural a dimensão histórico-temporal realmente relevante, consistente,estável e permanente – é o passado. Ora, eu não dissera que o homem dera-vol-ta-por-cima da irrelevância do presente? Agora, face a tal configuração do passa-do, parece que não. Mas só parece...

Criamos a contemporaneidade – eu disse que a criamos. E ela é o recurso hu-mano, genial, para enfeixar as três dimensões do tempo – passado, presente e futuro –num único espaço-tempo humano, irreal e perfeito: em que as três dimensões, numalarga margem temporal, se tornam uma – e uma estável e significativa sede tempo-ral de nossa vida: sede e dimensão em que vivemos e nos construímos como seres reais erealmente existentes.

1. A acentuação, há muito inexistente, foi conservada como mero recurso, em vista do leitor,da percepção do sentido pretérito da declaração.

Page 18: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Contemporaneidade e educação 5

E, de novo, eu os desaponto... Não importa, contudo, a criação genial dacontemporaneidade como recurso da conquista de nossa estabilidade histórica epessoal. A única dimensão verdadeiramente significativa na conquista da huma-nidade do homem é o passado...

Por quê? Não nos apressemos. Em vez de um argumento teórico, comece-mos com uma verificação prática. O que distingue o homem de todos os demaisseres da natureza é que, embora dela participando por – quem sabe? – a esmaga-dora maioria de seus componentes genéricos, específicos e individuais, o homemdela (da natureza) se separa e se distingue enquanto ser histórico. Embora parti-lhe com toda a natureza a vivência do e no tempo físico, o homem possui (e nelese insere, nele existe) o tempo histórico; um tempo humano – e só do humano, emtoda a natureza. E toda diferença entre esse tempo histórico e o tempo natural (ou fí-sico) se resume na circunstância de que o sujeito do tempo histórico (isto é, o homem)tenha, possua, passado. O ser natural não tem passado. A pedra, a água, a terra,a árvore não têm passado – nós é que lhes constituímos um passado, situando-osem nosso tempo. O animal não tem passado? Não. E, se um dia o tiver, não im-porta a forma ou o aspecto desse animal, podemos dar-lhe as boas-vindas na es-pécie humana.

Não vou levantar toda uma teoria do tempo e da história para convencê-los.Vou fazer algo que me parece mais fascinante: vou ler-lhes, pontuado de peque-nos comentários, o capítulo 28 do Quincas Borba de Machado de Assis (ó, não seassustem – é curtinho – uma folha e meia do livro). Machado é genial! Em 1891,quando a noção de tempo histórico estava longe de ter o uso e o alcance de hoje,Machado de Assis publica Quincas Borba – obra em que nos presenteia com umabelíssima caracterização do tempo humano enquanto histórico, inteiramente dis-tinto do tempo natural – posse, o tempo histórico, da humanidade; e posse, o temponatural, dos demais animais e dos demais reinos da natureza – e de toda a dimen-são animal, pois, do bicho homem.

Capítulo 28, pois. Rubião rumina seus problemas andando pelas terras dapropriedade. Pressentindo-o, Quincas Borba começa a latir. Rubião abre-lhe aporta para que o acompanhe. “O cão atirou-se para fora. Que alegria! que entusias-mo! que saltos em volta do amo! Chega a lamber-lhe a mão de contente, mas Rubiãodá-lhe um tabefe, que lhe dói; ele recua um pouco, triste, com a cauda entre as per-nas; depois o senhor dá um estalinho com os dedos, e ei-lo que volta de novo com amesma alegria.”

– “Sossega! Sossega!” (diz Rubião).

Page 19: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

6 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

“Quincas Borba vai atrás dele pelo jardim fora, contorna a casa, ora andando,ora aos saltos. Saboreia a liberdade, mas não perde o amo de vista... Aqui fareja, alipára a coçar uma orelha, acolá cata uma pulga na barriga, mas de um salto galga oespaço e o tempo perdido, e cose-se outra vez com os calcanhares do senhor. (...) QuandoRubião estaca, ele olha para cima, à espera; naturalmente, cuida dele; é algum proje-to, saírem juntos, ou cousa assim agradável. Não lhe lembra nunca a possibilidade deum pontapé ou de um tabefe. Tem o sentimento da confiança, e muito curta a me-mória das pancadas. Ao contrário, os afagos ficam-lhe impressos e fixos, por mais dis-traídos que sejam. Gosta de ser amado. Contenta-se de crer que o é.”

“A vida ali não é completamente boa nem completamente má. (...). Rubião passamuitas horas fora de casa, mas não o trata mal, e consente que vá acima, que assistaao almoço e ao jantar, que o acompanhe à sala ou ao gabinete. Brinca às vezes comele; fá-lo pular. Se chegam visitas de alguma cerimônia, manda-o levar para dentroou para baixo e, resistindo ele sempre, o espanhol toma-o a princípio com muita deli-cadeza, mas vinga-se daí a pouco, arrastando-o por uma orelha ou por uma perna,atira-o ao longe, e fecha-lhe todas as comunicações com a casa:

– Perro del infierno!”

“Machucado, separado do amigo, Quincas Borba vai então deitar-se a um can-to e fica ali muito tempo, calado; agita-se um pouco, até que acha posição definitiva,e cerra os olhos. Não dorme, recolhe as idéias, combina, relembra; a figura vaga dofinado amigo passa-lhe acaso ao longe, muito ao longe, aos pedaços, depois mis-tura-se à do amigo atual, e permanecem ambas uma só pessoa; depois outrasidéias.”(gs.ms) (Gente! Olhaí a ausência de passado!) “a figura vaga do finado amigopassa-lhe acaso ao longe, muito ao longe, aos pedaços, depois mistura-se à do ami-go atual e permancem uma só pessoa”!!

Gente!! o amigo morto, antigo dono, que fora a paixão de sua vida e que oamara e acarinhara lealmente – e até garantira que, depois de sua morte, seu cãotivesse um dono que cuidasse dele... (e para garanti-lo, deixara bens a esse novo-dono-futuro, inclusive a casa em que morava e onde o novo dono morará depois, com o cãoherdado), esse antigo e amigo dono confundido e misturado com o novo que oescorraça e lhe bate (os célebres tabefes que ele tanto temia!), nada tinham a ver umcom o outro na vida que lhe proporcionavam e na atenção que lhe dispensavam... Essesdois donos confundidos num só! E ele sentia falta, sim, do Quincas Borba seu anti-go dono de quem herdara o nome... Mas os dois donos se confundem num presen-te... Não há passado. É tudo presente. (E Machado é um gênio!...)

Page 20: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Contemporaneidade e educação 7

“Mas já são muitas idéias, – são idéias demais; em todo caso são idéias de ca-chorro, poeira de idéias”, – menos ainda que poeira, explicará ao leitor. (É. Nós tam-bém, aprisionados num tempo natural, despossuidores de um tempo histórico, nãoteríamos mais do que poeira de ideias...) “Mas a verdade é que este olho que se abrede quando em quando para fixar o espaço, tão expressivamente, parece traduzir algu-ma cousa, que brilha lá dentro, lá muito ao fundo de outra cousa que não sei comodiga, para exprimir uma parte canina, que não é a cauda nem as orelhas. Pobre lín-gua humana!”

“Afinal adormece. Então as imagens da vida brincam nele, em sonho, vagas, re-centes, farrapo daqui remendo dali. Quando acorda, esqueceu o mal; tem em si umaexpressão, que não digo seja melancolia, para não agravar o leitor. (...) Seja o que for,é alguma cousa que não a alegria de há pouco; mas venha um assobio do cozinhei-ro, ou um gesto do senhor, e lá vai tudo embora, os olhos brilham, o prazer arre-gaça-lhe o focinho, e as pernas voam que parecem asas.” [Machado de Assis, QuincasBorba, São Paulo: Globo, 1997 (Obras Completas de Machado de Assis), cap.XXVIII, p. 30-32.] (gs.ms)

Amigos, eu não descobri sozinha o significado genial do capítulo – de 2páginas – de Machado. Quem nele e no seu encanto me introduziu foi o para-sempre Mestre, Professor, Doutor João Eduardo Rodrigues Villalobos.

Eis aí. Eu creio que esta pequena caracterização machadiana do tempo ani-mal – o tempo natural – ilustra bem o que eu dizia: o tempo histórico é a cria-ção humana do tempo. E a Contemporaneidade é o presente histórico (ou adimensão presente do tempo histórico).

O tema nos pede que nos ocupemos dos desafios epistemológicos e educacio-nais na contemporaneidade.

Muito bem. Para que, como, o que devemos conhecer em nosso tempo? E devea educação se ocupar disso? por quê? e para quê ? Vamos continuar a abordar o temapor um través.

Era da comunicação. O século XX foi frequentemente definido como ‘o sé-culo da comunicação’. Será verdade que o foi? Suponho, isso sim, que vivemosgrande parte do século XX como um ‘século dos meios de comunicação’. Isso sim!De resto, provavelmente foi bem por isso, porque a comunicação deixou de exis-tir, é que o homem correu tão desesperadamente à procura de meios, de técnicas,de sistemas especiais de comunicação. Enquanto o homem efetivamente ‘se comu-nica’ com seu semelhante, nada o solicita – e muito menos o pressiona – a desco-brir meios sofisticados e fantásticos de estabelecer comunicação. Basta olhar o outro

Page 21: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

8 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

e dizer: oi! Num tom que parece nada ter de especial, mas que traz embutido comoextensão de sentido: ‘ó, eu tô aqui, heim?! eu existo, não se esqueça disso; não precisaesperar coisas fantásticas ou terríveis para me procurar; o que quer que precise – in-clusive um simples papo (como é bom!) eu estou pronto’.

Alguém já viu o caboclo precisar de celular ou de Internet (e-que-sei-eu)para, da soleira de sua porta, exercer requintes de comunicação como, por exem-plo, saudá-los a você ou a qualquer outro desconhecido que passe pela estrada,com um amável: “Tarrrrde”, (de ‘erre’ bem mole e bem comprido) – sem tê-losjamais visto ou ter jamais sabido que existiam, quem são, ou o que fazem poressas bandas?

Se passam pela estrada, é porque existem. E se existem, merecem uma ‘boa tar-de’... É, meus amigos... vivemos, no século XX, a era de sofisticação dos meios decomunicação. Não a da própria comunicação.

Para melhor percebermos quem e como somos relativamente ao outro e aomundo, costumo resumir a história individual do homem ao longo da vida e asênfases do mundo humano através da história, em dois breves retratos em quechamei de: ‘eu-mundo-eu’, à história pessoal; e ‘homem-mundo-homem’, à históriada humanidade.

Começando pelo eu. Nossa vida pessoal transcorre na alternância entre o pre-domínio do nosso eu e o predomínio do mundo. O primeiro momento é sempre odo eu. E se chegarmos à velhice muito velha, terminaremos a vida como a come-çamos – por um momento do eu. Cada vez que adentramos um dos ciclos domundo, estamos vivendo uma etapa de deslumbramento; quando nos encontra-mos encerrados no eu estamos vivendo as etapas heroicas da existência, a primeiradas quais começa a nos preparar para a autoconsciência que irá num crescendo atéencontrar a consciência trágica; e, se chegarmos à velhice-muito-velha, terminare-mos como começamos – encerrados no eu e distantes do mundo.

Vai lhes parecer, agora, que parto para uma digressão muito grande – digres-são que, para mais, nada teria a ver com o tema. Tem sim. Tem tudo a ver com ospressupostos epistemológicos e educacionais na contemporaneidade. Porque, tal-vez, o mais importante desses pressupostos seja o de que, para entendermos nossacontemporaneidade e nela nos entendermos, é preciso que saibamos alguma coisade nós, enquanto humanidade; e da evolução do mundo humano ao longo da histó-ria – sem o que não poderemos, nem sequer minimamente, compreender o imediatoontem desse mundo, o seu agora, e adquirir alguma razoabilidade na previsão de nossoimediato amanhã.

Page 22: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Contemporaneidade e educação 9

A criança ao nascer é, de certa forma, toda voltada para si mesma e em si mesmaencerrada. Vinda de um ambiente pré-natal especialmente protegido, tudo no ime-diato ambiente pós-natal a agride: o primeiro hausto de ar que respira, a tempera-tura ambiente, o contato das roupas e das mãos, a empreitada de adaptar-se,momento por momento, ao novo mundo e nele sobreviver. Pouco interesse lhedespertam as solicitações externas, a não ser na medida em que lhe facilitem otrabalho de adaptar-se, afirmar-se, viver e crescer. Cada dia é uma conquista.

Pouco a pouco, porém, o bebê começa a sair da concha e, proporcionalmentea sua própria capacidade de se afirmar no mundo, começa a se interessar por essemundo. Descobre técnicas de autoafirmação: que chorar pode dar excelentes re-sultados; que agredir ou empurrar funcionam; que sorrir ou beijar podem ser re-muneradores; aprende a pedir e a exigir; domina a façanha inaudita de erguer-sesobre as pernas, sobre elas manter-se e caminhar – uma tarefa extenuante, mas queabre possibilidades insuspeitadas de domínio e afirmação sobre o mundo ao redor.

E então, um belo dia, a criança terá dominado todas as técnicas a seu alcan-ce para afirmar-se em seu mundo. É muito curioso, mas é só a partir desse momentoque ela realmente descobre o mundo em que estivera desde o nascimento. Até en-tão sua tarefa de viver fora, toda ela, voltada para seu pequeno eu – e sua afirmação.Estivera ocupada demais consigo mesma para poder realmente dar-se conta domundo em que vivia. E na medida em que se desobriga, se desincumbe e se deso-cupa do comprometimento consigo mesma, descobre, como num encantamento, omundo em que está. E quer conhecê-lo, tocá-lo, senti-lo, medi-lo – nada está asalvo de suas mãos e nenhuma resposta sobre as coisas a satisfaz. É a idade dos ‘porquê’?, uma etapa de descobertas e deslumbramentos – curiosidade, descobertas e des-lumbramento que se exercem sobre coisas novas com que ela desde sempre convi-vera (a chuva, os carros, as árvores, a barba do avô, e por aí vai) e que, de repente,descobre. E sobre elas passa a indagar insaciavelmente. Como disse há pouco: atéentão, a criança vivera o e para o seu eu, não lhe sobrara tempo nem disponibilida-de para ver e descobrir o mundo em que sempre vivera e vivia.

Vive, agora, uma nova etapa – a do mundo. Etapa que vai durar até que acriança tenha esgotado suas possibilidades atuais de pesquisá-lo e conhecê-lo.Então, de repente, quando tocou, pesou, mediu, sentiu, avaliou, indagou, ex-perimentou tudo o que estava a seu alcance, e ao alcance de seus próprios meios– quando, embora provisoriamente, conhece o mundo em que está – a criança(que estará deixando de o ser) se descobre. E teme por si mesma. E indaga so-bre si mesma – por seu sentido nesse mundo enorme e caótico, e por suas possi-

Page 23: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

10 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

bilidades de afirmação entre as coisas e entre os homens, e por seu lugar na or-dem exterior. Olha para dentro de si mesma – ela que, por longo tempo, se de-socupara de si – e se estranha e se desconhece.

Começou a adolescência. Mas não se suponha que todo esse estranhamento,que todas essas perguntas sejam formulados: são muito mais do que isso, são vi-vidos. A adolescência é, pois, a nova fase do eu (sucedendo-se à primeira fase domundo). É uma fase de comprometimento consigo mesmo, de busca de afirma-ção e de segurança e de autonomia. É por isso que é quase impossível alcançar adimensão pessoal do adolescente – nunca chegamos até ele realmente. Sua soli-dão é, por vezes, inexpugnável e irremediável: o adolescente consegue fechar-seem seu ser pessoal e interior onde ninguém – vindo do vasto mundo exterior (eque não tenha sido escolhido por ele) – pode alcançá-lo. Vive seu eu e para seueu. Luta por ele e por tudo o que lhe diga respeito: seu lugar ao sol no mundoadulto, suas verdades, suas repostas, seus valores, suas necessidades, seus direitos –e seus, e seus e seus... Perdemos muito tempo tentando oferecer (impor?) respostasexternas ao adolescente: aquilo que ele tem por nossas verdades e nossos valores, asverdades e os valores do professor, do diretor, do padre ou do sábio, dos pais, nãolhe interessam. Ele vive um momento do eu. É de suas respostas (e de encontrá-las) que se trata – e não se satisfará com nada menos do que elas. E, por isso mes-mo, simplesmente não se satisfará. Não, enquanto for adolescente... E enquantonão encontrar, por seus próprios meios, as respostas que lhe permitam afirmar-se(provisoriamente, embora) e sentir-se seguro (provisoriamente, embora) no mundoexterno e adulto em que deve se inserir e viver, permanecerá solitário, inacessível,inseguro e – em defesa de si mesmo – agressivo (salvo para com aqueles a quemtenha escolhido para partilhar-se).

Contudo, aos momentos do eu seguem-se os momentos do mundo. E nossoadolescente terá esgotado, a partir de certo ponto, seus próprios recursos atuaisde conquista de autoafirmação em seu mundo – e, desocupado de si mesmo,redescobrirá esse mundo em que se afirmou e em que existe. E terá deixado deser um adolescente. Terá adentrado seu novo momento do mundo – a juventude.

A adolescência fora um momento típico do eu. Agora, desocupado de simesmo, aquele que está deixando de ser adolescente, tendo esgotado as próprias eatuais condições e possibilidades de indagar-se a propósito de si mesmo, desocu-pado de si volta-se para fora de si mesmo, descobre o mundo em que está – e adentraa juventude – o novo momento do mundo. Na vida do estudante esse momentoem geral coincide com o final do período da escola média.

Page 24: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Contemporaneidade e educação 11

Ora, no meu entender, a juventude é o ápice da assunção da humanidade pelohomem. Não nos detivemos na caracterização da ‘humanidade’ do homem, por-que o foco de nosso tema é outro. Dentre os fatores que compõem a condição‘humana’, demos destaque às dimensões do tempo humano e ao papel preponde-rante do passado. Se nosso tema tivesse sido ‘a humanidade do homem’, por exem-plo, nosso destaque teria sido dado à capacidade de violação. O homem é um serde violação. É um ser capaz de violar o dado natural. Os demais seres animais re-petem indefinidamente os padrões naturais, os padrões da espécie. O homem re-pete, igualmente, os padrões naturais. Tem de dormir, de comer, de beber – e umasérie de coisas mais – para viver. E ele o faz – mas, na esmagadora maioria dospadrões naturais de existência, o homem, embora os repita, pode violá-los. E,muitas vezes, comete a violação. Ele tem, por exemplo, que se alimentar para vi-ver – e ele o faz todos os dias. Contudo, pode violar tal padrão de comportamento;ele pode abster-se de comer, por exemplo, num regime alimentar para perda depeso por questões de saúde ou de vaidade. Mas pode, também, fazer greve de fomenum protesto existencial (pessoal, político, social, etc.) – e pode ir às últimasconsequências – deixar-se morrer por isso. Já tem acontecido. E se a capacidadede violar o dado, o preestabelecido, é um dos indicadores da condição de huma-nidade, o ápice da condição de humanidade é a juventude.

O jovem é naturalmente violador. O jovem é capaz de dizer ‘não’ até ao irre-mediável – que ele saiba ser irremediável... O adulto pratica seletivamente sua ca-pacidade de violação. É capaz de exercê-la até as últimas consequências, para aquiloque tem remédio. Quando percebe que não há remédio, o homem maduro pode atécontinuar a não aceitar certas coisas – mas conforma-se com sua existência (e, narealidade, a elas se acomoda). O jovem não. O jovem é capaz de dizer não ao irre-mediável e, sabendo, embora, que não ha remédio, continuará a recusar ostensiva-mente aquilo que não aceita. E é por isso que a juventude, a fase da vida em que seé capaz de assumir mais profunda e cabalmente a capacidade de dizer não, é, tam-bém no meu entender, a fase da capacidade de assumir, mais profunda e cabal-mente, a condição de sofrimento. A juventude diz não ao irremediável tendo claraconsciência da irremediabilidade; e assume, por antecipação, a dor que isso há decausar. E é por isso que eu digo, também, que juventude não é só e meramente umacondição etária (ou uma questão de idade). Há jovens velhíssimos. E há velhos ex-tremamente jovens.

Bertrand Russell (acho que foi ele, sim), já completara 91 anos quando parouo trânsito de Londres, sentando-se, num protesto político, no meio dos trilhos debondes, em cruzamento central em hora de rush. Esses jovens nonagenários sabemque podem se dar mal com seus desafiados. Mas têm plena consciência, também,

Page 25: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

12 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

do que representam nesse momento de história. A autoridade que ouse ordenar quelhes deitem as mãos, que toquem neles, que usem da força para anulá-los, não teráfeito mais do que ajudar a luta a pular etapas – e, em poucos minutos, poderá terassegurado, aos que lutam e a quem a autoridade combate, a vitória.

Numa bela análise, Marialice Foracchi2 mostra que “há, na juventude, um sig-nificado que a transcende. Ela é uma etapa de arrogante sacrifício”. Por isso, “se nãohá virtude especial em ser jovem é muito difícil sê-lo”. Aponta alguns dos incontáveisdesafios que assediam a juventude, indo da necessidade de autodefinição à liberda-de de escolha do tipo de adulto em que se converterá e culminando, muitas vezes,com um autêntico enfrentamento social. E, na medida em que se trata de decisãode destino pessoal, de tal decisão decorrem muitos dramas que às vezes culminamnuma “autodefinição negativa, alienadora em si mesma”: a escolha de não escolher,em cujo extremo mais radical está a “rejeição de si mesmo” e a “autodissolução”.Foracchi se aplica a uma bem fundada e exaustiva análise sociológica e psicossociológicada juventude e da crise que a sacode numa sociedade em mudança. Se acoplarmos,ao ponto de vista sociológico, o filosófico, a condição heroica apontada pela sociólo-ga adquire um relevo todo especial – e aparecerá como, talvez, a marca fundamen-tal na constituição da juventude.

Quando adentramos a maturidade e começamos distinguir moinhos de ventode exércitos e cavalos, e a conquistar uma objetividade inatacável (como se querpara a objetividade do adulto) na avaliação das possibilidades da ação, da viabili-dade dos meios, da exequibilidade dos planos e da viabilidade dos fins, a juventu-de começa a parecer-nos quixotesca. Tornámo-nos adultos3; e plenamente adultosseremos no momento em que, objetivamente, formos capazes de admitir que algonão deveria ser como é, estar como está – mas que absolutamente nada há que sepossa fazer, em definitivo, a respeito. Recebemos o selo da razoabilidade do adul-to e da maturidade. Que selo é esse? É a clara consciência de que não basta querermudar as coisas; de que é preciso ser possível fazê-lo – e de que essa possibilidadeenvolve nossas próprias condições, as daquilo que queremos mudar e as do entorno.A clara consciência, portanto, de que a adequada definição das possibilidades e daviabilidade das soluções é essencial à ação. (Abrindo parênteses: se querem saber, eu

2. Todas as referências que, neste texto, faço a Marialice Foracchi dizem respeito à sua obra AJuventude na Sociedade Moderna. Não indico editora e paginação pois fiz as reproduçõesde memória – mas são sempre do início do livro acima mencionado: Introdução e os trêsprimeiros capítulos, parte em que é feita a caracterização geral da juventude.

3. Repito – sei que não existe o acento, mas uso-o para elidir as imprecisões de sentido. Nocaso, faço questão de usá-lo (o acento) como indicador do uso do passado verbal.

Page 26: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Contemporaneidade e educação 13

que já ultrapassei a objetividade do adulto e da maturidade, que já posso ver a distân-cia, pois já vivo a efetiva velhice – eu, pois, pessoalmente, entendo que essa dita objetivi-dade tem muito a ver com a acomodação a tudo o que se tem por irremediável...)

Diz um velho adágio francês, “si jeunesse savait, si vieilesse pouvait...” (se ajuventude soubesse, se a velhice pudesse...), ou seja, a sabedoria da velhice aliada àforça da juventude seriam a alavanca que deslocaria o mundo. A impressão quetenho é a de que aí se toma por velhice tudo o que vier depois da juventude (amaturidade e a velhice). Pessoalmente, só o acato (o adágio) se nele se diz efeti-vamente velhice, excluída, pois, a maturidade. Não sei se partilho do otimismo do velhoadágio. A sabedoria da maturidade é talvez por demais eivada de conformismo, decomodismo e de respeito pela irremediabilidade de mais de uma situação reconheci-damente indesejável, para que fosse a aliada ideal da força da juventude. Bem, lem-brando o acatamento do irremediável, falamos de algo que é bem próprio damaturidade. Quanto à velhice, prefiro atribuir sua capacidade de violação (quan-do exista) à ocorrência de uma eterna juventude. Tornamo-nos maduros na me-dida em que conseguimos deter, canalizar ou derivar a angústia da impotência anteo irremediável, com a qual é impossível conviver e dentro da qual é impossívelprogredir e prosseguir em paz.

Para explicitar a mentalidade ‘madura’ face a tais impasses, costumo usar aparódia feita num texto (cujos originais, infelizmente, não consigo mais localizar),dizendo que, sem dúvida alguma, cada homem que tem fome, no mundo, é meu ir-mão; mas se eu não conseguir superar o desespero e o desconforto com minha própriaimpotência a esse respeito, e se não encontrar um estado de equilíbrio que me permitaconviver com a irremediabilidade da situação no que tange ao alcance máximo do raiode minha ação pessoal, não poderei agir nem poderei viver – e terei desperdiçado todomeu potencial de energia para a ação. O ponto de vista da objetividade é, segu-ramente, razoável e, provavelmente, verdadeiro. Não impede que o seja somente parao mundo maduro dos adultos. A juventude não pactua com irremediáveis quando setrata da visão de vida, de mundo, de homem e de si mesmo e, na impossibilidade deatingir tais irremediáveis diretamente por sua ação, e inconformada com eles, agrideo mundo adulto em que se inserem os centros de decisão, e os integrantes desse mundopor sua mediocridade humana.

A agressão do jovem é sempre proporcional à radicalidade da recusa e à vio-lência da frustração nascida do sentimento de impotência. A agressão do jovem de-nuncia, por vezes, a existência de algo como um elemento de neurose intrínseco àjuventude: o reconhecimento da realidade e sua radical inaceitação – o que acaba pornos indicar que outra das características da juventude parece ser aquela quase ili-

Page 27: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

14 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

mitada capacidade de sofrer (a que há pouco aludimos). A acomodação fornece àmaturidade (como também há pouco disse) a válvula de escape às insuportáveis ten-sões do sofrimento inútil; a juventude contém tais tensões nos limites da dimensãopessoal e as comporta e suporta tais como são – sem disfarces. Talvez se explique poressa especial capacidade de sofrer, consistente com o conteúdo agonístico – para usar aexpressão de Foracchi (embora eu a esteja usando no estrito sentido dicionário de“relativo à luta, em particular à luta pela vida”), que a juventude processa, o fato deque, embora crescer e tornar-se adulto sejam tarefas terrivelmente difíceis, a maioria dosjovens consiga chegar sã e salva à maturidade.

Bem, tudo o que até agora apontamos como definidor da condição de jovemparece indicar, na juventude, o momento maior da humanidade do homem – a ex-pressão maior, no individuo, da capacidade de violação que distingue e identificao homem. E me parece adequado e normal que a tal medida de realização do hu-mano corresponda, precisamente, o maior desafio do desempenhar-se humana-mente. Foracchi diz que não é fácil ser jovem – e eu acrescento que deve ser poruma providencial defesa natural da espécie que isto só seja reflexivamente desco-berto uma vez a mocidade vencida – quando já se está instalado no conforto, narelativa segurança e na provável mediocridade niveladora da maturidade.

Estou pensando em meus estudantes. Nos universitários... os que nos enfren-tam e muitas vezes nos encurralam, a nós, que lhes dirigimos o tempo e lhes pre-tendemos dirigir a formação (de certa forma sempre o fazemos, especialmente pornossos erros – não teria sido à toa que Ortega y Gasset afirmasse serem os erros omais precioso tesouro da humanidade...); e nossos estudantes denunciam nossasfraudes adultas, condenam nossas tergiversações, nossa conciliações, nossas aco-modações. E questionam. E agridem se não os ouvimos – ou nos lamentam setentamos atendê-los; e, muitas vezes, nos admiram e nos chamam mestres; mastalvez, mais frequentemente, descreiam de nós. Não é fácil ser jovem. Não é fácildescrer, questionar, derrubar e perceber que não se avançou de um passo na recons-trução do mundo que se quer outro – e suspeitar que não há nada a fazer a res-peito... por enquanto. No fundo, só lhe é poupada, à juventude, a lucidez de saberque não é só por enquanto; porque mais tarde, quando se puder fazer algo, ser-se-áadulto – e por isso conciliado, acomodado e vendido às injunções dos muitos irreme-diáveis (e é por isso, também, que existem alguns jovens nonagenários).

Talvez Foracchi não estivesse, afinal, com toda a razão. Talvez haja, sim, al-gum mérito especial em ser jovem – o mérito de se recusar, conscientemente, ao com-prometimento acomodador com a irremediabilidade das coisas. Talvez, afinal,quaisquer que tenham sido seus eventuais desmandos e incompreensões e o que

Page 28: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Contemporaneidade e educação 15

quer que tenhamos feito – eles e nós –, o jovem nos leve a melhor: talvez nele fale,mais desafrontadamente, a marca da humanidade violadora, porque menos dissolvi-do do que nós na natureza predeterminada das coisas; e seja, ainda ele, o ser huma-no na expressão mais essencial da humanidade, manifesta na capacidade de violaçãodo dado e na inaceitação do irremediável.

Mas, então, talvez ainda, filosoficamente falando, a juventude não seja sim-plesmente (exatamente?) uma faixa etária; mas, na verdadeira acepção do termo,um estado de espírito (ou uma condição de existência?). E, por isso, ainda talvez,possamos identificar na personalidade dos grandes vultos da humanidade (os des-cobridores, os reformadores, os inventores, os salvadores de povos e almas..., osrevolucionadores de culturas, os impulsionadores do conhecimento) a preservaçãoda capacidade de violação e a recusa ao irremediável que identificam a juventude.Talvez os grandes homens sejam, afinal, os que permaneceram essencialmentejovens. Afinal, é da velhice de Einstein o conhecido instantâneo em que o cien-tista do século mostra a língua aos repórteres (sem falar nos noventa anos de pro-tagonistas exemplares de episódios como o sentar-se nos trilhos, há pouco referido):eu exemplificava a eterna juventude de sexagenários e nonagenários com atitudesaparentemente incompatíveis com sua importância cultural e científica que pas-saram à história ligados a acontecimentos muito pouco compatíveis com sua re-putação e sua efetiva importância no mundo do conhecimento.

Lembremos, pois, ainda, que Sócrates, o velho feio numa sociedade em quea feiura física era quase um pecado (por isso a juntaram à lista de acusações, notribunal que o condenou à morte), atraísse especialmente os jovens (ao que se sai-ba, esteve sempre muito mais identificado com a juventude violadora de Atenas doque com a intelectualidade adulta à qual pertencia a magistratura que o conde-nou); e poderíamos, também, lembrar que as Críticas kantianas ou o Capitalmarxiano são obras da maturidade de seus autores (as Críticas kantianas: da Ra-zão Pura, 1785, 61 anos; da Razão Prática, 1788, 64 anos; do Juízo, 1790, 66 anos;o Capital marxiano, 1867, 49 anos) ou, até, Galileu e o ‘suo danno!’. Sem esque-cer que Castro Alves, morto aos 24 anos, por exemplo, aos 20 já concluíra seuGonzaga e, aos 20 anos e meio, era carregado em triunfo, na Bahia, depois da es-tréia do drama; ou que Álvares de Azevedo, morto aos 20 anos e meio, deixa com-pleto seu Noite na Taverna (publicado postumamente). Tudo isto talvez nosmostre que velhice, maturidade e juventude não são só e exclusivamente uma ques-tão etária. E, o que é mais importante, que os grandes homens provavelmente nãotenham sido, afinal, nem maiores nem menores do que homens simplesmente – nosquais se tenha construído e preservado mais genuinamente a humanidade.

Page 29: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

16 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Bem, finda a juventude, o indivíduo adentra a maturidade. E na primeira faseda maturidade (até os cinquenta, mais ou menos), o perguntar pelo mundo e peloeu, ao que tudo indica, encontram a melhor expressão de seu mútuo equilíbrio.

Viemos, pois, de um suceder de encontrar-se e desencontrar-se de si mesmoe dos outros e de cada outro e seu ‘eu-mesmo’. E na sucessão dos dias da maturida-de, no atropelo do ano-após-ano, do luta após luta, da solução de problema apósproblema, acabaremos por nos surpreender um belo dia – e podem saber que nessebelo dia estaremos entrando nos cinquenta – acabamos, pois, por nos surpreen-der perguntando por nada que não sejam as imposições do ofício, do estado (ci-vil, profissional ou de outro gênero, não importa); um perguntar que, então (eolhem aí a crise dos cinquenta), se nos desvela como vazio de sentido. E tropeça-mos com a vida, como se fora um tropeçar conosco mesmo perdidos no mundoe dos outros e de nós...

Ao contrário das etapas anteriores, a maturidade é o tempo de maior equilí-brio entre o eu e o mundo na história pessoal. Daqui para frente adentramos o,provavelmente, mais equilibrado e rendoso período da maturidade – a partir doqual entramos decisivamente na velhice.

Bem. Esses últimos vinte anos da maturidade (cinquenta a setenta) são mar-cados pela progressiva explicitação da pergunta pelo eu-no-mundo. Se aciden-tes geriátricos não se interpuserem, a clareza da explicitação atingirá seu pontomáximo entre os quase setenta e os quase oitenta anos – ou seja, praticamente, nofinal da maturidade e na primeira década da velhice. Depois disso, começará afase final, em que a visão do velho se embaçará progressivamente, até se trans-formar, provavelmente, em mera e permanente perplexidade. Pelo existir. Peloexistir no mundo. E pelo mundo em que se existe. E até que ponto podemos ga-rantir que as hesitações-e-quase-ausências dos velhos, nessa fase, não sejam menosas ausências da decrepitude do que os tropeços com a clareza da explicitação dapergunta pelo eu-no-mundo. E em que mundo?

Percorremos um longo caminho desde que, na distante adolescência, nummundo em que repentinamente nos descobríamos estranhos, solitários e perdidos,fomos pouco a pouco retomando a posse de nós mesmos, neste longo e desencontradodiálogo mundo-eu que é a vida. Fizemo-nos adultos possuidores de nós mesmos embusca da posse do mundo, até o tropeção conosco mesmo que marca o início da con-quista da maturidade. Na minha geração, dos quarenta aos cinquenta se percorriaa primeira fase da maturidade propriamente dita – aos quarenta, já adentráramos seupreâmbulo – marcada pela perda e pelo reencontro de nós mesmos na estranheza do

Page 30: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Contemporaneidade e educação 17

mundo. E a maturidade representava o, provavelmente, mais longo período de equi-líbrio da relação mundo-eu. Os vinte anos entre os cinquenta e os setenta. Pouquíssimascertezas e a tranquila segurança de todas as dúvidas. Como eu dizia, deve ser a idadede ouro do homem – esta subfase da maturidade.

Como o trajeto individual, o trajeto da humanidade também oscilou em pe-ríodos que se sucederam, ora voltados para o mundo, ora voltados para o homem.

No alvorecer da humanidade, o homem, provavelmente, voltava-se para simesmo. Tão ocupado estava, o habitante da caverna, em proteger-se contra ogrande mundo exterior – e hostil – que não lhe restava tempo para indagar so-bre esse mesmo mundo. Era lutar pela vida e pelo sustento – defender-se da fera,encontrar abrigo, proteger-se dos rigores do clima, extrair o alimento do entor-no. Indagações sobre as coisas, se chegavam a impor-se, eram respondidas emfunção do homem e não do mundo. O raio destruía em redor? A ventania, ofuracão, a avalanche ou a enchente devastavam tudo? Ou o fogo exterminaraárvores e animais, fontes de alimento? Provavelmente eram deuses irados casti-gando o homem – ou disputando-lhe o mundo (ou outra explicação saída daresposta mítica, e mística, ao si mesmo no entorno).

Somente depois de cumprido um longo percurso de luta e de autoafirmaçãosobre o ambiente (físico e humano), teria o homem conseguido impor-se ao mundopróximo, instalar-se nele e dominá-lo. Conseguir o alimento do dia a dia deixavade ser uma epopeia; defender-se da fera, abrigar-se do frio e proteger-se do calor,defender-se do inimigo não eram mais a luta urgente e diuturna de cada um – eo seriam cada vez menos à medida que se estruturavam povoados, vilas, cidades,governos, exércitos, profissões (e por aí...).

E o homem, desocupado de si mesmo em sua autoafirmação no mundo, de re-pente, descobre esse mesmo mundo que o cerca e em que vive – e maravilha-se comele. E indaga, questiona, experimenta, ensaia (e testa) explicações e respostas;constrói teorias, tentando descobrir o que é este mundo, de onde veio e comofunciona. Ao tempo em que trabalhava tais questões com meus estudantes, a pré-socrática era meu exemplo privilegiado desse primeiro momento-do-mundo, nacultura ocidental. Até que, esgotadas as possibilidades, não de o mundo ser co-nhecido, mas suas próprias possibilidades conjunturais de conhecê-lo, de novoo homem se descobria a si mesmo – desconhecido e perdido nesse vasto mundoexterior conhecido e devassado.

E, voltado para si mesmo, o homem se assusta com seu próprio desamparo.Quem sou? Que faço neste mundo estranho e hostil? Que sentido tenho (se é que

Page 31: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

18 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

tenho algum)? Para que existo? Como posso conhecer as coisas? Que valor tem oque conheço? O que conheço, realmente? E então, tendo-se descoberto no mundo,voltado para si, faz de si mesmo a medida do mundo. A socrática era meu exemploocidental privilegiado: o homem, eis a medida de todas as coisas – a grande síntesesocrática; e a grande ironia de Sócrates – tudo o que efetivamente sabe é que nadasabe... são os aforismos socráticos exemplares desse novo momento do homem. E ohomem que sabe o mundo passa a indagar, agora, sobre o próprio homem. Quemsou? O que é a Verdade? E a Justiça? E o Bem? E a Vida? E a Morte?

Se nos debruçarmos sobre a história da cultura ocidental, veremos que seutrajeto foi uma alternância de momentos de mundo e momentos de homem. Echegados ao nosso hoje, talvez se pudesse considerar que o século XX tenha sido umdos privilegiados momentos do mundo. O homem ocidental se debruçou sobre omundo e devassou-o. Descobriu-o, criou-o, dominou-o. Foi um constante acréscimode invenções, renovações e substituições de técnicas, explicações, previsões, transforma-ções, destruições com que o homem agiu sobre e interferiu em praticamente tudo oque existia – e criou muito do que não existia.

E tudo leva a crer que o século XXI, que começamos a percorrer (no planonatural) e a construir (no plano histórico), será um novo momento do homem.ONGs (Organizações não Governamentais), protestos, enunciação e cobrança dosdireitos do homem (fazendo eco a um outro século do homem que declarara taisdireitos e não conseguira impô-los), ênfase numa cultura da paz (apesar das cons-tantes e disseminadas guerras), denúncias de colonialismos persistentes, ecos lon-gínquos que acordam defesas de direitos, denúncias de infrações e declarações deprincípios, chamadas à conscientização – tudo isso sem chegar a lugar algum? É. Pre-cisamente, sem chegar a lugar algum – pelo menos até agora (quando mal come-çamos a adentrar a nova era que se anuncia). Mas se a história nos ensina algumacoisa, temos de convir que esse é o perfil de um anúncio ou de um prenúncio damudança – que pode vir, ou não; dependendo do peso efetivo da conscientizaçãorelativamente ao da acomodação; do tônus de luta e mudança versus credo de van-tagens pessoais; de novo espírito versus conformismo. E, mais uma vez, meus jo-vens, estamos em suas mãos – uma nova mentalidade, um novo credo, um novodecálogo, um novo panorama de convicções e um novo teor de resistência e detêmpera de luta – são algo que depende, sempre, das novas gerações.

É tarefa que incumbirá maciçamente à juventude e à maturidade contem-porâneas – como, de resto, todas as revoluções que promoveram as passagens dosgrandes momentos da humanidade (não esquecendo que, alinhados à juventudee à maturidade comprometidas, haverá sempre representantes daquela catego-

Page 32: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Contemporaneidade e educação 19

ria especial de jovens de 90 anos que se sentam em trilhos desafiando o poder...).Estas costumam ser revoluções de ideias – não revoluções de armas; e mais segu-ramente o serão no século que começamos a percorrer e a criar – não mais um sé-culo do mundo, como o que acabou de passar, mas um século do homem (ao quetudo indica).

E porque, falo, portanto, a um privilegiado grupo dos combatentes destanova revolução (uma dessas revoluções emblemáticas do trajeto do homem nomundo e que às vezes levam séculos para se repetir), quero de coração agradecer,aos que me convidaram, esta comovente oportunidade de um instante privilegia-do de encontro com um grupo de combatentes de escol. Aplaudo-os, respeito-os, inve-jo-os, admiro-os e lhes agradeço. E termino melancolicamente: Infelizmente eu nãoestarei com vocês. Eu, de fato, envelheci.

Page 33: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook
Page 34: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

SUBJETIVIDADE E EDUCAÇÃO:UM NOVO OLHAR NA CULTURA PÓS-MODERNA

Márcia R. M. Ferraz Arruda*

Inserindo-nos nos estudos antropológicos do imaginário, busca-se, nestecapítulo, mostrar a propriedade do conceito de cultura, elaborado por EdgarMorin (1984) e por Michel Maffesoli (1998) para pensar as relações intersu-bjetivas no cotidiano da escola. Badia, em um artigo intitulado “Cultura, Or-ganização e Educação: temática recorrente”, coloca-nos que Morin investiga ossentidos do termo cultura chegando a uma constante oscilação do mesmo, en-tre um sentido “totalizador-abarcante” e um sentido “residual”; afirma-nos, ain-da, que a primeira definição recobre o sentido “socioetnográfico” e a segunda umsentido “ético-estético” que, analisados, nos remeteriam aos seguintes sentidospara o termo cultura, a saber: sentido antropológico, etnográfico, sociológico econcepção valorativa ou axiológica de cultura. Convém ressaltar, segundo esseautor, que “aqueles sentidos podem se reduzir a dois procedimentos, dois méto-dos, duas filosofias”, na abordagem de Morin, para definir o termo cultura; umadessas filosofias reduz cultura a “estruturas organizacionais”, enquanto a outra re-mete a expressão cultura a um “plasma existencial”, e esse é modo pelo qual en-caminharemos nossa discussão.

Segundo esse mesmo autor (1979), “(...) as sociedade históricas comportamuma dimensão quase eco-organizacional decorrente das interações espontâneasentre indivíduos e grupos”. Desse modo, em virtude da complexidade dessasinterações, pautamo-nos na bacia semântica do Paradigma da Complexidade deEdgard Morin, nos referenciais teóricos da Culturanálise de Grupos de José Carlosde Paula Carvalho (1991), na Antropologia do Imaginário de Gilbert Durand(1993) e na Sociologia do Cotidiano de Michel Maffesoli (1998), fontes das quaisextraímos os raciocínios que mostram as características operacionais do conceitode cultura em Morin e Maffesolli, tendo em vista nosso objetivo: um novo olharfrente ao extremado (ver Canevacci, 2005) que insurge na Pós-Modernidade.

Não pretendemos, aqui, negar o Paradigma Clássico, mas acreditamos ha-ver um antagonismo responsável pela existência das “(...) dominações, da servi-dão e da sujeição”, conforme Morin. Tem-se, não somente no cotidiano escolar,

* Doutoranda do Programa de Pós-graduação da FCLAr-UNESP/Car-CIPI.

Page 35: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

22 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

a presença inegável das pluralidades que configuram a vida social, os grupos so-ciais, situações que não são expostas por esse Paradigma, um modelo fechado eatemporal, cuja ideia de relações educativas está na transmissão linear e unilate-ral de conteúdos, amparando-se na divisão dos papéis e funções dentro do pro-cesso comunicativo, cujos interlocutores não partilham dos mesmos interesses; são,na verdade, técnicos isolados de qualquer tipo inter-relacional, um modelo nãomais consistente na Contemporaneidade.

Paula Carvalho (2000) coloca-nos que “(...) o domínio antropológico pode seconfigurar como domínio das organizações sociais (...)” e, citando Mercier, apontapara uma tipologia heurística das organizações sociais, uma vez que “(...) seu estu-do recobre o estudo dos grupos, mais ou menos estruturados, o estudo das relaçõessociais e o estudo das formas que a sociedade global apresenta”, aproximando, des-se modo, as organizações sociais dos sistemas simbólicos, afirmando-os como sen-do grupos reais e relacionais que vivenciam códigos e correspondem às práticassimbólicas que são, na verdade, “as práticas sociais dos grupos.” Ainda para esse au-tor, atribui-se a todos os grupos sociais a função de educar e de organizar o com-portamento, entendendo-se o termo “educar” no seu sentido mais amplo, esegue afirmando que as práticas simbólicas, indistintamente, “(...) agenciam osprocessos simbólico-organizacionais de teor educativo” (Paula Carvalho, 1987,1989), criticando a efetivação do conceito ofélimo associado à educação, redu-zindo-a ao ensino, à instrução, apenas em detrimento da “educação fática”. Éa inserção de cultura e de organizações sociais na lógica semântica das redesorganizacionais dos grupos.

Se o imaginário faz parte do tecido físico das sociedades, fato que permitea percepção de uma relação entre o universo da cultura e o da prática social, paraMorin (2004: 87), tem-se uma realidade policultural na qual as relações se fazempor meio de agentes em ação, pautados em um processo inter-relacional cuja ca-racterística maior seja a interpretação significativa e não apenas o fenômeno trans-missivo. Portanto, a partir da interação social dos sujeitos é que o fenômenoconstrução social se viabiliza de modo significativo no cotidiano escolar, em quea concepção de cultura passa a ser vista numa forma dialetizada, ou uma con-cepção na qual se “dialetiza o simples”, termo que Paula Carvalho (2000) tomapor empréstimo de Bachelard (1940).

Chegamos a um conceito de cultura que se instaura no fluxo ou no trajetode um circuito, em polos que recobrem, então, dois domínios: o das estruturasorganizacionais (as organizações e instituições no seu sentido mais formal – o ins-tituído, o “stock” cultural que é representado pelos códigos culturais, formaçõesdiscursivas e pelos modelos de comportamento) e o domínio das vivências, dos

Page 36: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Subjetividade e educação 23

espaços, da afetividade e do afetual (o instituinte, o polo do plasma existencial),as organizações grupais no seu sentido afetivo. Aqui, Paula Carvalho estabelece tam-bém para um dos polos os aspectos lógico-cognitivo-representacional, fazendo partedo campo das ideações, ou seja, um conjunto que compõe a cultura patente, epara o segundo polo o aspecto residual-afetivo-imagético, as fantasmatizações, oque corresponde à cultura latente. No primeiro caso, o que se tem em análise éo nível racional de funcionamento do grupo, suas funções pragmático-reflexivasque se instauram e instituem a partir de molduras macroestruturais; no segundocaso, ou cultura latente, em análise o nível afetivo ou o que Paula Carvalho no-meia “polo fantasmático-imaginal das interações grupais”, regido, pois, pelo in-consciente grupal.

É importante retomarmos que, se considerarmos cultura como tudo o que éinstituído (códigos, normas, etc.), há de se considerar, por outro lado, que o é tam-bém, ao mesmo tempo, tudo o que caracteriza o instituinte, ou seja, a cotidianeidadeainda não estabelecida pelas normatizações e padrões socialmente aceitos. Caracte-riza-se, então, a cultura como um circuito entre o “núcleo duro” e as “franjasturbilhonares”, ou a definição dada por Maffesoli como sendo a “trajetividade” en-tre polos distintos, o que nos leva à “polarização” e não a dicotomias, ou tambémao chamado desde Morin e G. Durand como circuito dialético entre a repetição/diferença e o desejo/horizonte histórico, sempre em “recursividade organizacional”.Falamos de uma trajetividade na qual se configura a organizacionalidade profun-da da cultura, segundo Morin, ou não mais um mundo objetivo face a um mun-do subjetivo, segundo Maffesoli, mas a concepção “trajetiva” de mundo. Culturaentendida, então, como centrada no “trajeto” ou “circuito”, nas polarizações en-tre o “instituído” e o “instituinte”, o “patente” e o “latente”, o cognitivo e o afetivo,ou, retomando Paula Carvalho quando cita Franco Crespi (1983), entendendocultura à luz das mediações simbólicas, possibilitadas “(...) plenamente no jogoentre determinações e indeterminações (...).”

Diante do exposto, o circuito estabelecido pela trajetividade é entendidocomo a própria mediação simbólica e a cultura como sendo o universo dessasmediações, ou quando se parafraseia Morin, dizendo que “(...) “cultura” agenciaum “policulturalismo” cujo reconhecimento e acolhida são extremamente impor-tantes para se evitar o etnocentrismo (...)” e, por conseguinte, fundamentais noacolhimento das diversidades e na reflexão sobre o sentido, teor e oportunizaçãopara uma possível intervenção. Tem-se uma concepção de cultura que, segundoPaula Carvalho (1994: 54), assume-se como um elo que une os “sistemas sim-bólicos/códigos/normas e as práticas simbólicas cotidianas” que interagem pela

Page 37: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

24 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

reapropriação e reinterpretação daquilo que constitui a memória social. Impor-tante dizer aqui que intervenção no seu sentido amplo, no sentido antropolítico,capaz de desenvolver a chamada “dialética transicional” entre grupo-sujeito,pautada em uma “pedagogia da escuta”.

Aceitas essas considerações, teremos numa dada sociedade tantas culturasquantos forem os grupos sociais que a compõem; as “histórias” não serão as mes-mas, tampouco as reações ou entendimentos advindos do seu contexto não serãosemelhantes para os diferentes sujeitos, porque esses sofrerão influência da culturana qual se inserem. Desse modo, as características operacionais desses conceitosvão ao encontro das relações intersubjetivas, em largo sentido, que são estabelecidasno universo escolar, a partir da diversidade cultural e das “estratégias de precon-ceito”, segundo Taguieff (1991), que elevam uma cultura à posição hegemônicae as demais a posições subalternas, privilegiando a configuração da escola comoinstituição. Nesse sentido, e para pensarmos esses conceitos como uma chave ade-quada ao entendimento do cotidiano gestado nas escolas por seus usuários dire-tos, alunos, professores, funcionários, é preciso aceitar a cultura como sendo ouniverso das mediações, de funções, produções e práticas simbólicas.

Assim, cultura escolar, em termos antropológicos, se configura, simultaneamen-te, como cultura organizacional e como cultura de grupos ou cultura do cotidiano(recobrindo-se, aqui, os dois polos da mencionada noção de cultura). Como insti-tuição social, a escola, uma instituição moderna por excelência, segundo SilveiraPorto (1999), posiciona-se como uma instituição destinada à divulgação do sa-ber e da cultura oficiais. Recorrendo a Paula Carvalho, essa mesma autora definea escola como sendo ainda um grupo social, ou organismo burocrático, organi-zado no sentido de agir como aparelho que reproduz ordens, exercendo funçõesclássicas da educação nas sociedades modernas, ou seja, sociocultural, política eeconômica.

A escola, naqueles moldes, regida pelas teorias de administração e do pla-nejamento, privilegia o modelo de organização burocrática, a partir de uma in-tervenção gestionária, entendida como gestão escolar nos moldes organizacionaisburocráticos, visando à racionalização máxima das atividades. Aquele autor, ain-da na fala de Silveira Porto (op. cit.), analisa criticamente a escola que assume comoponto de partida uma visão racionalista de mundo, priorizando princípios de or-dem, economia e eficácia, ou seja, o correspondente a uma concepção praxeológicade educação, pautando-se na lógica das ações regidas pela definição racional de finse meios, uma concepção ofélima, ou seja, produção “ótima, eficiente e eficaz”, queatua segundo os esquemas e ainda segundo os meios para atingir fins previamente

Page 38: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Subjetividade e educação 25

determinados, funciona como mecanismo de controle social, independentementede ideologias que a informam e de teorias pedagógicas e administrativas que pro-põem modelos de ensino e de administração, mantenedoras do seu desempenhofuncional. Considerada também como grupo social, não perdendo, portanto, seucaráter simbólico, há de se ressaltar que a escola se estabelece a partir de organi-zações afetuais, ou seja, as que priorizam a vida afetiva do grupo, manifestadas nosistema de ideias, crenças, valores e sentimentos, ou, como afirma Paula Carvalho(1991), considerá-las como sistemas simbólicos é aceitá-las como grupos reais erelacionais vivenciando códigos e sistemas de ação. Afirma-nos, ainda, que aos sis-temas simbólicos correspondem as práticas simbólicas tidas como práticas soci-ais dos grupos que, por serem simbólicas, são necessariamente organizacionais eeducativas, tendo em vista que no decorrer do tempo vínculos de solidariedade ede contato são estabelecidos. Assim, esse autor entende que a “educação seja umaprática simbólica que realiza a sutura entre as demais práticas”.

Percorremos ainda Silveira Porto (op. cit.) quando esta busca em Morin(1980) que a cultura consiste num circuito metabólico, simultaneamente repe-titivo e diferencial, para concluir que não há dicotomias, mas polarizações, o quenos leva à afirmação do diferente, do plural e do conflitual existentes no interiordos grupos sociais e nas relações destes com o meio no qual se inserem, consti-tuindo uma unidade complexa (Unitas multiplex), cuja atuação é complementar,segundo a autora.

Recorrendo também à teoria de Patrick Tacussel (1998: 5-6), que definecomunidade como sendo o espaço das relações intersubjetivas, defendendo que“(...) a intersubjetividade é a penetração histórica do tempo na memória indivi-dual e coletiva (...)” e que “vivemos espontaneamente em nossas relações cotidia-nas o tempo como forma de memória ou como forma histórica na consciência, eisso constitui a ligação intersubjetiva”. O reconhecimento, portanto, das pessoasenquanto sujeitos inter-relacionais ocorre mediante a aceitação das pluralidadespresentes numa dada comunidade. Coexistem num mesmo espaço os semelhan-tes e os diferentes, o próximo e o distante, um Eu e um Tu, conforme Buber(2001), que se reconhecem na mútua aceitação e (re)apropriação e (re)interpre-tação dos fatos socialmente vividos, de modo a percebê-los tendo como ponto departida um novo olhar atento e reencantado, que os contemple a partir de uma“razão cultural”, segundo Sanchez Teixeira (1994), que abraça o determinado eo indeterminado numa relação de circularidade entre si e a mediação simbólicaque organiza o real.

Page 39: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

26 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

A já mencionada concepção ofélima e burocratizada do cotidiano escolar nosencaminha para um impasse: vivenciamos um embate entre um discurso interligadoa uma concepção de sociedade pensada e caracterizada a partir de um desenvolvi-mento social pleno, o discurso da Modernidade, e, em contrapartida, o discurso daContemporaneidade, do qual emerge uma saturação com os paradigmas propostosaté o momento. Há dissonância entre o instituído e o instituinte, que aponta paraa necessidade de reencantamento de mundo a partir das novas formas de relaçõessociais. Abraçar a alteridade e a diferença como pertencentes ao mesmo espaçoimplica assumir uma concepção ampliada de ciência e educação, que não se façameramente reprodutora, mas capaz de desenvolver a criatividade e a inventividadedentro dos mais variados e distintos estilos, sem que se corra o risco da exclusão,estereotipação, ou, finalmente, banalização. Maffesoli (1985, 1987) nos inserenessa temática através da figura trágica e rebelde de Prometeu e da figura emble-mática de Dionísio. Insere-nos em uma análise mitológica contemporânea, em queo primeiro é nominado para identificar, dentre outras características, a crença no“Projeto” para o futuro, o que inclui a esperança de conquista do paraíso atravésdo louvor ao trabalho enquanto elemento vital, a ordem, o progresso, o mito do“Uno” e a absolutização da verdade, e, na figura de Dionísio, personifica no gru-po afetual o amor ao ócio, o presenteísmo, a ausência de “Projeto”, a idolatria docorpo, o orgiasmo, o nomadismo, o lúdico, a provisoriedade da ordem e da ver-dade, cultuando-se o “aqui e agora”, segundo Itman Monteiro (1996).

Afirma-nos também Itman Monteiro (op. cit.), recorrendo a uma linguagemque nos remete aos mitos, que “Maffesoli trabalha as relações afetuais contempo-râneas em suas especificidades, ao entender que no seio das mais variadas men-talidades que dão corpo à moldura deste cenário de paixões (...)”. Considera-seque aquelas molduras se apresentam de formas ambivalentes, uma vez que “(...)servem tanto às modalidades revestidas de autoritarismos gestados pelos grupossociais controladores do poder quanto às modulações que implicam a descons-trução de códigos sociais rígidos através de grandes embates ou até mesmo na “re-sistência de massa”, na sua “moleza”, aquelas pequenas resistências cotidianas,vivenciadas através dos sistemas “de duplicidade” que os pequenos grupos encon-tram para preservarem suas identidades culturais”. A banalidade, então, torna-se“(...) uma forma de criação que escapa a uma atividade finalizada e que se esgo-ta em si mesma”.

Nesse sentido, a complexidade do fenômeno é intrínseca aos pequenos fa-tos do dia a dia, e é no jogo diário de forças que esse fenômeno deve ser entendi-do, considerando-se a perspectiva da circularidade, da bipolaridade, dentro de

Page 40: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Subjetividade e educação 27

gradações diversas, em que, segundo a autora, “(...) é exercida a (...) soberania so-bre o todo social, pela conjunção ou ordenamento das diferenças”. O que se tem,neste contexto, são os antagonismos não mais suprimidos, mas ordenados no in-tuito de se manter o pluralismo através do qual a ambiguidade, o múltiplo e aprovisoriedade que constituem o tecido da vida cotidiana possam ser captados.Ainda, para Maffesoli, contemplar o cotidiano escolar é entender que as verdadesse configuram no óbvio, na superfície; basta um olhar atento, um “olhar antro-pológico” para os sinais de reconhecimento de cada grupo, traduzidos em suasvestimentas, gestos, religiosidade, nos fantasmas, nas fantasias, nos códigos quetraduzem suas nostalgia e comunhão, nos sinais das paixões, afetos e desafetos, é,enfim, “contemplar a relva crescer dentre a densa floresta”.

Acreditamos que essas reflexões se justifiquem, sobretudo pelo fato de quedesde o início dos anos 1990 a necessidade de pensar a escola com recursosexplicativos advindos da cultura, real e conceitual, tem ocupado, em certo li-mite, pesquisadores, gestores, professores, estudantes. Todavia, esse esforço ain-da não alcançou seu objetivo, pois a complexidade própria dos cotidianos escolaresexige um empenho e um envolvimento que traduzem outra concepção de tem-po que não mais o produtivista-ofélimo ou a chamada “burocratização da vidasocial”, vistos até o momento.

Não se trata apenas de realizar estudos etnográficos sobre a escola, mas deuma mudança de olhar para a mesma, ou aquilo que Paula Carvalho (2000) de-nomina de uma luta pela “desmistificação às avessas”. É, segundo esse autor, “(...)lutar envolvendo-se”, mutuamente, com um projeto de “mutação” e com uma in-tervenção problemática, ou, nas palavras de Crespi (1983), pensar de modo an-tropológico num “projeto cultural da diferença”, privilegiando-se os saberes locais,a diversidade cultural presente no homem individual e social, as subjetividadese complexidades do fato social cotidiano, em especial um novo olhar sobre a práticaeducativa, desenvolvendo a chamada intervenção problemática, o que Paula Car-valho (1985) nomeia de imaginário da conflitorialidade, a dialética transicionalentre a cultura organizacional e as culturas emergentes. Nesse sentido, os recur-sos etnográficos oferecem, simultaneamente, aos seus usuários diretos os meios paraa compreensão das subjetividades nas quais aqueles se inserem, bem como o en-tendimento dos processos e da complexidade dos fenômenos que produzem.

A questão, portanto, a ser iluminada diz respeito ao fato de que é preciso“encontrar” objetivamente suportes teóricos robustos para pensar as relações inter-subjetivas estabelecidas no âmbito do cotidiano escolar, cuja compreensão e usodevem ser apropriados por todos que nela gestam grande parte de suas vidas, to-

Page 41: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

28 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

dos aqueles que se caracterizam como sendo sujeitos educativos. Não se pode mais,dadas as características da vida contemporânea, pensar em relações humanas noseio da escola apartadas de explicações substantivas que podem ter um carátercompreensivo-explicativo que atendam às experiências humanas atuais.

Pensamos que os conceitos em questão sejam apropriados para o que sedeseja: mostrar as características operacionais do conceito de cultura em Morine Maffesoli, evidenciando-se a propriedade desses entendimentos para serem(re)pensados e assimilados, sobretudo, por professores e gestores escolares. Nãose trata, no entanto, de abandonar ou desconsiderar as questões ou as visões para-digmáticas propostas, defendidas e trabalhadas pela Modernidade, mas de pen-sar, como já explicitamos em Paula Carvalho (1991), que os elementos instituintespresentes na sociedade demonstram a necessidade de transformação radical naconcepção do tempo, fator de suma importância para o entendimento de uma épo-ca; vivencia-se um presenteísmo em detrimento de atitudes projetivas.

Evidenciam-se, ainda, a necessidade de uma liberdade de busca que reme-ta os indivíduos a uma pluralidade da vida social, cujo sentido seja o mais am-pliado possível, incorporando-se o imaginário, as paixões, o lúdico, enfim, atitudese inter-relações assumidas pelos sujeitos envolvidos no processo educativo a par-tir de um “concreto extremado”, e o entendimento da concepção de que o vín-culo grupal se manifesta no “prazer de estar-junto-com” que Maffesoli denominasocialidade, as interações de fato, sem as normas da socialização, entendida aquicomo normatização e processo de transmissão de padrões.

Há de se preconizar e valorizar não somente um conceito ampliado de edu-cação, orienta-nos Paula Carvalho (1991), assumindo-se um “teor educativo perva-gante”, ou seja, que transpasse pelas práticas simbólicas de modo que essasorganizem processos simbólico-organizacionais cujo teor educativo não se reduzameramente à instrução, ao ensino ou à já apresentada concepção “praxeológica daeducação”, privilegiando-se a pluralidade e a complementaridade necessárias às di-nâmicas educativas, possíveis a partir da abordagem antropológica e com-preensiva,mas também que o entendimento do cotidiano escolar como pluralidades culturaise sociais que nos remetem às subjetividades e aos sentidos que os grupos sociais atri-buem aos fatos circundantes, às multiplicidades identitárias, fatores essenciais parauma postura relativista aos envolvidos no processo educativo, em especial professo-res e gestores.

Vale também mencionar que a postura relativista a que nos referimos se re-laciona, segundo Itman Monteiro (op. cit.), “(...) a uma ciência reencantada e a

Page 42: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Subjetividade e educação 29

uma ação educacional re-humanizada, situadas num novo epistema e, por issomesmo, de infinitas possibilidades, em que nada está definido e tudo está por serconstruído”.

Acreditamos que o entendimento dos sujeitos educativos pautados em umprocesso dialógico, estabelecendo novos parâmetros educacionais e lhes valorizandoas questões ontológicas, traduzam o ponto máximo da fertilidade do arcabouçoteórico e metodológico dessas reflexões para a educação, em especial a escolar.Contudo, não tratamos aqui de uma explanação a ser prescrita ou concepção deuma receita. Ao contrário, como o próprio Morin (2003) nos afirma, devemos,sim, entender e considerar as ideias aqui discutidas como desafios a serem trans-postos e como “motivações para pensar”; “motivações para pensar” com o Para-digma da Complexidade, que pode ser entendido como um novo olhar para asimplificação, ou ainda há de se conceber “(...) a complexidade como o inimigoda ordem e da clareza, e nessas condições a complexidade aparece como uma pro-cura viciosa da obscuridade”.

Defendemos, ainda, o entendimento de um cotidiano escolar no qualconvivam diferentes pessoas e grupos sociais estabelecidos em diferentes va-lores, crenças e, portanto, recorrendo à Silveira Porto (op. cit.), um lócus noqual conflitos e divergências podem eclodir em todos os momentos, que porsi só conota a importância do desenvolvimento de uma cultura de sensibili-dades, do “olhar antropológico” e da pedagogia da escuta recriando valoresprimordiais, retomando-os através da (re)circulação dos saberes universais eontológicos às microculturas dadas, inserindo-nos no cotidiano escolar, comobem definiu Itman Monteiro (op. cit.), “(...) com a esperança da constituiçãode uma escola capaz de acolher as subjetividades éticas e estéticas contempo-râneas (...)”.

Novamente recorrendo a Silveira Porto, temos, então, a importância de con-siderar todas as manifestações presentes no cotidiano escolar, entendendo que afunção dos grupos é a de organizar o comportamento e educar; educar, nesse con-texto, entendido como um ato para além de instruir, estando verdadeiramentepresente na “concepção fática” de educação, ou, segundo Maffesoli (1984), umolhar para os diferentes modos de captar as novas dimensões dos contatos sociaisnos microgrupos ou “tribos”, o que constitui uma das formas de ver o fenômenoeducacional. Reflexões e vivências em campos escolares que nos permitem (re)evi-denciar as necessárias estruturas relacionais de um fazer pedagógico.

Page 43: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

30 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Referências Bibliográficas

BACHELARD, G. A poética do devaneio. Trad. Antonio de P. Danesi. São Paulo: Martins Fon-tes, 1988.

CANEVACCI, M. Culturas eXtremas: mutações juvenis nos corpos das metrópolis. Trad. deAlba Olmi. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

COELHO, T. Dicionário crítico de política cultural. 3. ed. São Paulo:Iluminuras/FAPESP,2004.

CRESPI, F. Mediation symbolique et societé. Paris+ Méridiens, 1983.

DURAND, G. Les structures anthropologiques de l’imaginaire: introduction à l’archétypologiegénérale. Paris: Dunod, 1993.

________. L´exploration de l´imaginaire: introduction a la modélisation des universmytiques. Paris: L´Espace Bleu, 1988.

GOFFMAN, E. A representação do eu na vida cotidiana. Trad. Maria Célia Santos Raposo.Petrópolis: Vozes, 1985.

ITMAN MONTEIRO, S. A. Luzes, sombras e crepúsculos nas vivências cotidianas de duasescolas de primeiro grau: sucessos, fracassos, evasões, exclusões. 1996. Tese (Doutorado) – Facul-dade de Educação USP, São Paulo.

MAFFESOLI, M. Elogio da razão sensível. Petrópolis:Vozes, 1998.

________. A conquista do presente. Trad. de Márcia Sá Cavalcante. Rio de Janeiro: Rocco,1985.

________. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Riode Janeiro: Forense-Universitária, 1987.

MORIN, E. De la culturanalyse. In: Sociologie. Paris: Fayard, 1984.

________. O enigma do homem: para uma nova Antropologia. 2. ed. Trad. Fernando deCastro Ferro. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

________. Science avec conscience. Paris: Fayard, 1982.

PAULA CARVALHO, J. C. A culturanálise de grupos: posições teóricas e heurísticas em edu-cação fática e ação cultural. 1991. Tese (Titulação) – FEUSP, São Paulo.

________. Energia, símbolo e magia: para uma antropologia do imaginário. 1985. Tese (Dou-torado em Ciências Humanas e Sociais) – FFLCHUSP, São Paulo (3 v.).

________. A gestão escolar do imaginário. Revista Fórum Educacional, Rio de Janeiro: Fun-dação Getúlio Vargas, v. 13, n.1/2, p. 81-94, maio 1989.

________. Antropologia das organizações e educação: um ensaio holonômico. Rio de Ja-neiro: Imago, 1990.

________. A culturanálise de grupos: teorias e heurísticas em educação fática. São Paulo,FEUSP, 2000. (dig.)

PAULA CARVALHO, J. C.; BADIA, D. D. Viáticos do imaginário. São Paulo: Plêiade, 2002.cap. IV.

Page 44: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Subjetividade e educação 31

PORTO, M. do R. S. Cultura e complexidade social: perspectivas para a gestão escolar. In:SANCHEZ TEIXEIRA, M. C.; PORTO, Teixeira, M. do R. (Orgs.) Imagens da cultura: umoutro olhar. São Paulo: Plêiade, 1999. p. 89-100.

SANCHEZ TEIXEIRA, M. C. Imaginário, cultura e educação: um estudo socio-antropoló-gico de alunos de escolas de primeiro grau. 1994. Tese (Livre-docência) – Faculdade de Educa-ção, USP, São Paulo.

________. Antropologia, cotidiano e educação. Rio de Janeiro: Imago. 1990.

________. Imaginário e educação: as mediações simbólicas no universo das organizações educativas.Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 3, n. 4, p. 7-19, 1994.

TACUSSEL, P. Comunidade e sociedade: a partilha intersubjetiva do sentido. In: GERAES –Revista de Comunicação Social, Belo Horizonte, n. 49, p. 3-11, maio de 1998.

TAGUIEFF, J. P. La force du préjugue: les racisme et sés doubles. Paris: Gallimard, 1991.

Page 45: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook
Page 46: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

IMAGINÁRIO E ORGANIZAÇÕES EDUCATIVAS*

Débora Raquel da Costa Milani**

A temática “Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação” suscita al-gumas reflexões a partir das pesquisas por mim já realizadas.

Nossas sociedades são complexas e convivem com múltiplas culturas nãohomogêneas. Daí a imprescindibilidade da elaboração da noologia e de uma novaconcepção de organização em que o multiculturalismo, a razão simbólica e a trans-versalidade estejam presentes.

Segundo Paula Carvalho (1984), a transversalidade será observada e objetivadanos Projetos de Unidade da Ciência do Homem, fundamentados numa razão abertae que propõem realizar uma sutura epistemológica entre Natureza/Bios e Cultura/Noos, através da noção de trajeto antropológico, que para Durand (2002: 41) é:“(...) a incessante troca que existe ao nível do imaginário entre as pulsões subjeti-vas e assimiladoras e as intimações que emanam do meio cósmico e social”.

Para que os Projetos de Unidade da Ciência do Homem sejam concretiza-dos, a base fundamental é a antropologia do imaginário de Durand e a antropo-logia da complexidade de Morin.

Evidencia-se que a noção-chave de trajeto antropológico de Durand articula-rá Natureza/Bios e Cultura/Noos por meio da simbolização. Já a sutura episte-mológica entre Natureza e Cultura proposta por Morin seria uma integração dalógica organizacional do ser vivo com a noologia. Porto (2000: 8) nos remete a Morinao afirmar que noologia é “(...) a esfera na qual se integram fenômenos que vão doonirismo à cognição, com a representação, o imaginário, o símbolo e os signos”.

Tanto Morin quanto Durand objetivam a sutura epistemológica e práxicaentre Natureza e Cultura e o fazem através da dimensão simbólica. O símbolo tema função de vínculo, ligação entre o biológico e o sociocultural. Símbolo que paraDurand (2002: 22) é sempre a duplicação representativa de uma intencionalidadecultural, daí o seu entendimento de que “(...) a imagem – por mais degradadaque possa ser concebida – é ela própria portadora de um sentido que não deve serprocurado fora da significação imaginária”.

* Pesquisa financiada pela Secretaria da Educação do Estado de SP/CENP.

** Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação Escolar da FCLAr-UNESP.

Page 47: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

34 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Segundo Durand, o Imaginário é a chave de todo estudo da ciência do ho-mem, de toda antropologia. É o reservatório antropológico. A estética dos fe-nômenos antropológicos ocupa lugar de destaque para esse autor. Desta forma,concluímos com Durand (2002: 18) que “(...) o Imaginário é o conjunto dasimagens e das relações de imagens que constitui o capital pensado do homosapiens” e observa que o que chamamos de “polo biológico” do imaginário temsua âncora na corporeidade através da arquetipologia (shèmes, arquétipos, ges-tos e ritos).

Entendemos a cultura como manifestação dos diferentes grupos que estãopresentes na escola, e que esses grupos realizam trocas simbólicas que devem serlevadas em consideração nos processos educativos. A escola é, assim, consideradaum sistema sociocultural, pois expressa, ao mesmo tempo, a estática dos sistemassociais e a dinâmica dos sistemas culturais. Todos os grupos sociais desenvolvemuma dimensão organizacional e educativa.

Paula Carvalho (1990) mostrará que a educação é prática basal de sutura dasdemais práticas sociais. Os grupos sociais estão presentes nas escolas no multicul-turalismo que constitui a cultura escolar como culturas escolares. Daí a impor-tância da compreensão da cultura escolar como a cultura organizacional da escolaregida pelas Teorias da administração escolar, pela Teoria das organizações, pelaTeoria do currículo e programas e pela LDB – Lei de Diretrizes e Bases (este é olado instituído), e ao mesmo tempo as culturas dos grupos que compõem a es-cola e dizem respeito às vivências e ao cotidiano (este é o lado instituinte).

Brandão (1989) evidencia que não há um único modelo de educação, aescola não é o único lugar onde ela acontece e o professor não é o único quea pratica.

Morin (2006: 55) afirma que:

“(...) cabe à educação do futuro cuidar para que a idéia de unidade da espé-cie humana não apague a idéia de diversidade e que a sua diversidade nãoapague a da unidade. Há uma unidade humana. A unidade não está apenasnos traços biológicos da espécie Homo sapiens. A diversidade não está apenasnos traços psicológicos, culturais, sociais do ser humano. Existe tambémdiversidade propriamente biológica no seio da unidade humana; não apenasexiste unidade cerebral, mas mental, psíquica, afetiva, intelectual; além dis-so, as mais diversas culturas e sociedades têm princípios geradores ouorganizacionais comuns. É a unidade humana que traz em si os princípiosde suas múltiplas diversidades. Compreender o humano é compreender sua

Page 48: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Imaginário e organizações educativas 35

unidade na diversidade, sua diversidade na unidade. É preciso conceber aunidade do múltiplo, a multiplicidade do uno. A educação deverá ilustrareste principio de unidade/diversidade em todas as suas esferas.”

A educação, ao ser pensada desta forma, impregna-se pela concepção “holo-nômica”, que, conforme observa Badia (2004: 12), “(...) lida com articulações cadavez mais abrangentes e complexas de totalidades ou totalizações – ‘hólons”, emque na parte se pode ver a imagem do todo, no que consiste o ‘hológrafo’, dis-postas em redes e organizadas em patamares”.

Nesse sentido, a educação adquire maior expressividade de ação com aqui-lo que acontece para além dos muros escolares e que está presente no universo dogrupo – instituição escola.

A educação precisa ser vista como um conjunto de todas as práticas simbó-licas, a educação é basal. As diferenças, conflitorialidades, existem, pois estaspermeiam os grupos que estão no interior da escola. Não há somente uma formade educação; a educação é ampla, é realizada na escola, mas também por todosos grupos sociais.

A organização educativa como “educação fática”, de acordo com Paula Car-valho (1990), recebe um sentido ampliado e concatenado e aborda a questão dadiversidade cultural e dos universais do comportamento cultural.

Desde que observamos a existência de uma diversidade cultural, é fundamen-tal, diz Paula Carvalho (1990), uma constante elaboração de estudos socioantro-pográficos da multiplicidade cultural. Essa polissemia cultural pode ser as estruturasorganizacionais que visem à significação sociocultural através dos códigos. Mas acultura também pode ser remetida a um plasma existencial, enfocando a formade vivenciar um problema global. Sendo assim, a cultura faz com que a experi-ência existencial e o saber constituído andem de mãos dadas. O saber deve cana-lizar as relações existenciais.

Morin (2001) concebe a cultura como mediação simbólica de alta comple-xidade que fará as trocas entre os termos de base: existência e saber.

Crespi (1983: 9-10) nos traz a noção de mediação simbólica e diz que ela:

“(...) se constitui como horizonte ineludível de nossa experiência, como con-dição necessária, mas ao mesmo tempo limite da própria experiência. Esse éo paradoxo da mediação: ao mesmo tempo em que se constitui como nossoúnico horizonte (só há mediação), pode-se ela revelar como redução, isto é,como limite e como diferenciação (...). Apesar do número infinito dos possí-

Page 49: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

36 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

veis jogos de linguagem, as formas de mediação simbólica, exatamente por-que determinadas, não podem, de modo algum, ser absolutizadas, persistin-do, portanto, parciais.

Sahlins (2003), em oposição crítica à cultura como razão prática, propõe quea cultura seja observada pela razão simbólica, porque afirma que o homem se ca-racteriza por viver segundo um esquema simbólico e não simplesmente viver nummundo material. O homem organiza sua vida acionando sistemas de conceitos queirão ajudá-lo a definir sua ação. A linguagem é o universo das mediações simbó-licas que irá filtrar a práxis.

Paula Carvalho (1998: 30) nos remete a Godelier, ao evidenciar que:

“(...) há quatro funções do pensamento e das realidades que o pensamento‘produz’: F1 – apresentar ao pensamento qualquer ‘realidade’, inclusive opensamento; F2 – interpretar o que está presente ou definir sua natureza,ordem e funcionamento; F3 – organizar, em conseqüência da interpretação,as relações dos homens entre si e com a natureza; F4 – legitimar, ou não, aordem social e/ou cósmica existente”.

Tanto o mundo é construção da função simbólica como o sujeito que fazparte desse mundo se torna instaurador da realidade.

Godelier (1981) mostra que as realidades consideradas ideais devem ser aca-tadas como realidades linguísticas, como fatos que são indissociáveis da língua edo pensamento. O interesse prático dos homens produz a lógica material, e esseinteresse prático é constituído simbolicamente. A lógica material e a lógica cul-tural estão intimamente relacionadas, pois as finalidades da produção surgem nodomínio cultural. Desta forma, toda relação social nasce e existe no pensamentoe fora dele.

O projeto imaginário possui algumas categorias que podemos evidenciar:simbolização institucional, autogestão, transversalidade, analisador, discurso dainstituição, leis da análise institucional.

A simbolização institucional ocorre em toda instituição (micro ou macro) erefere-se à reprodução do conjunto do sistema institucional. Esse sistema está presoa um imaginário social.

Com relação à autogestão percebemos que esta facilitará condutas instituintesautênticas e que as decisões coletivas de organização começam com a cultura dosgrupos; mais necessariamente no inconsciente dos indivíduos.

Page 50: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Imaginário e organizações educativas 37

Já a transversalidade é noção fundamental elaborada por Guattari (1974),pois ajudará na liberação do desejo, não deixando que as condições internas con-traditórias sejam recusadas.

O analisador revelará o que ocorre na organização, desvendando o discursoda instituição (o sistema ideológico institucional).

A análise institucional consiste em encontrar o eixo central em toda situa-ção da prática social, desmascarando o efeito periférico do Estado. Para encontrar-mos esse eixo central será necessário mudar o olhar, dando importância ao que antespareceria insignificante.

Os problemas pedagógicos, muitas vezes, estão envoltos numa trama buro-crática, e as redes de leitura da dinâmica sociocultural estão emaranhadas pelosmesmos paradigmas, querendo solucionar o que, talvez, nem sequer exista! Daí anecessidade do olhar e do ouvir perspicaz e sensível por parte dos educadores ede todos os envolvidos com a educação.

Quando pensamos na problemática pedagógica observamos grande repeti-ção quanto àquilo que fica obscurecido pelo discurso, de forma que sempre rea-parece e nunca é resolvido, pois não se leva em consideração a dimensão simbólicae, concomitantemente, a função organizacional do imaginário. Tudo isso revela-nos que, de fato, os problemas são mal colocados e que a organização escolar estásendo regida pela organização entrópica e homogeneizante do paradigma clássi-co. A cultura é entendida tão-somente como cultura organizacional, vedando oacesso à consciência do universo simbólico.

Para entendermos melhor todas essas relações é necessária a articulação dascircunstâncias histórico-estruturais e paradigmáticas de instalação do iconoclasmono paradigma clássico.

Duborgel (1992) mostrará que o iconoclasmo define-se pela representação,domesticação, extinção da imaginação simbólica em prol do pensamento direto(do conceito). Há, por fim, uma pedagogia iconoclasta nas instituições que se pau-ta no modelo entrópico de organização.

Tudo isso gerará, segundo Paula Carvalho (1989), uma ampliação assusta-dora da racionalidade técnica e seus traços: produtivismo, eficiência, ofelimidade,progresso.

Para que a racionalidade técnica seja definida é preciso amplo conceito deregras que, posteriormente, visará obter o controle de qualquer intervenção.

Page 51: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

38 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Godelier (1981) define praxeologia como a lógica da ação racional, e Maffesoli(1976) a define como a lógica social da dominação. Nesses termos, a escola passaser o agente da endoculturação repressiva.

Essa lógica educativa da dominação praxeológica vai ao encontro daquilo queMaffesoli (1987) designa como político-econômico, engendrando uma dinâmicasociopsico-organizacional regida pela dimensão macroestrutural. Em contrapartida,encontramos a possibilidade do trabalho realizado nos microgrupos e a importânciaque é concebida ao que acontece no cotidiano.

No universo holonômico ocorre a acolhida do outro, pois a cultura é regidapela razão simbólica e suas formas e práticas. Há a valorização da alteridade, dadiferença.

Daí a imprescindibilidade do enfoque da razão cultural, pois parte do pres-suposto de que a ação humana é mediada pelo projeto cultural e leva em consi-deração uma análise mais rica e complexa da realidade, resgatando a dimensãosimbólica do ser humano. Desta forma, a “razão cultural”, como observa Teixeira(1990: 83), seria a “organizadora do real”.

Na medida em que o comportamento social dos indivíduos é o resultado deuma pré-compreensão simbólica do real, isso significa que o universo da media-ção simbólica, como afirma Crespi (1983), é considerado como o conjunto de to-dos os produtos culturais, (linguagem, religião, ciência, arte, mito) e é, portanto,função basal de constituição da ordem social.

As práticas simbólicas constituem o imaginário. Essas práticas são organi-zacionais e educativas, na medida em que os vínculos vão sendo criados.

O enfoque da razão cultural almeja outra concepção de sociedade, de orga-nização e, concomitantemente, de educação. É por isso que as funções da escolaprecisam ser repensadas, pois não dá para continuar considerando-a como meca-nismo de controle social e exclusão.

Tendemos sempre a pensar todas as coisas através dos nossos valores, modelos,nossas definições sobre a vida. Temos extrema dificuldade em pensar a diferença.Sentimos medo, somos hostis a tudo o que nos parecer estranho.

O etnocentrismo está tão próximo que fica difícil separá-lo do nosso coti-diano. Como diz Rocha (1996), o etnocentrismo é uma visão do mundo em quenosso próprio grupo é tomado como eixo central. E então, quando nos depara-mos com outro grupo, um grupo diferente, ficamos perplexos. E este choque ge-rador do etnocentrismo nasce, talvez, na constatação das diferenças.

Page 52: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Imaginário e organizações educativas 39

Augé (1999) nos mostra que o sentido dos outros se perde e se exacerba aomesmo tempo. Perde-se à medida que desaparece a aptidão de tolerar a diferen-ça. Mas essa intolerância, ela mesma criada, inventa a estrutura da alteridade.

A diferença é ameaçadora porque fere nossa própria identidade cultural.

O etnocentrismo passa exatamente por um julgamento de valor da culturado outro nos termos da cultura do grupo do eu. O pensamento é o seguinte: aminha cultura é a melhor, a cultura do outro é inferior. Ao outro é negada ummínimo de autonomia necessária para falar de si mesmo, pois assim fica mais fá-cil manipular sua imagem como bem se entender.

Rocha (1996: 15) afirma que:

“Aqueles que são diferentes do grupo do eu – os diversos “outros” destemundo –, por não poderem dizer algo de si mesmo, acabam representadospela ótica etnocêntrica e segundo dinâmicas ideológicas de determinadosmomentos.”

Uma ideia importantíssima que o autor nos apresenta e que se contrapõe aoetnocentrismo é a ideia da relativização. Quando compreendemos o outro nos seuspróprios valores, e não nos nossos, estamos relatitivizando. Relativizar “(...) nãoé transformar a diferença em hierarquia, em superiores e inferiores ou em bem emal, mas vê-la na sua dimensão de riqueza por ser diferença”.

E complementa dizendo que a diferença precisa ser vista como forma pelaqual os seres humanos deram soluções diversas a problemas existenciais comuns.Ela não é uma ameaça do “outro” e sim uma possibilidade que o “outro” pode abrirpara o “eu” (Rocha, 1996: 20).

Pode-se dizer que a escola espontaneamente tende ao monoculturalismo, poisos saberes transmitidos exaltam a cultura dominante, colocando-a como culturapadrão e reduzindo a autonomia das culturas populares. Desta forma, a desigual-dade social aumenta ainda mais.

Mas acredita-se que essa tendência espontânea da escola possa ser contra-riada e, mais, acredita-se que a escola possa ser reconvertida, se não ao multi-culturalismo, ao menos ao relativismo cultural. Porém, sabe-se que para chegar aessa conquista será preciso enfrentar mais que obstáculos, riscos, contradições, etc.

Quando a escola rejeita o reconhecimento de que as culturas populares sãoculturas, rejeita também o direito dos educandos procedentes das classes popu-lares do reconhecimento do seu valor. E é justamente a partir da falta desse re-

Page 53: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

40 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

conhecimento e da incompreensão que está a raiz para o etnocentrismo da ins-tituição, que exercerá papel determinante nos mecanismos que ocasionam o fra-casso escolar dos educandos procedentes das classes dominadas.

Daí a necessidade de uma pedagogia que reconheça o relativismo cultural,pois a partir deste se admitirá o multiculturalismo e, consequentemente, a exis-tência de culturas diferentes da cultura culta ou dominante. Com esse reconhe-cimento de que as culturas populares são culturas e, por isso, possuem autonomiasimbólica, as crianças das classes dominadas possivelmente poderão se apropriarda cultura culta, sem que automaticamente haja uma ruptura com sua cultura deorigem e uma conversão à cultura dominante.

O contrário seria uma escola que se recusaria a reconhecer as culturas e des-prezaria por completo tudo o que não faz parte da cultura culta. E em tais con-dições não seria surpresa que o fracasso escolar se constituísse para os educandoscomo regra.

Segundo Silva (1998), num mundo marcado pela diversidade cultural e va-riados movimentos sociais, a crítica educacional não pode se prender a esquemasescolares e escolásticos de análise, nem reduzir-se ao domínio de somente umacultura.

Questões como multiculturalismo e etnocentrismo são imprescindíveis nadimensão escolar e só podem ser analisadas, produtivamente, a partir de outrasformas de percepção e compreensão.

“Uma educação que recupera a dimensão simbólica deixa de ter caráter me-ramente reprodutivo, na medida em que permite a criatividade e ainventividade; mais ainda, apoiando-se na concepção de homem complexo einacabado, e da cultura enquanto universo de objetos e práticas transicionaisque criam um espaço potencial, pode o processo educacional liberar-se dalógica social da dominação, viabilizando a emergência do complexo, domultiforme, da polifonia, ou seja, do lado instituinte do social” (Teixeira ePorto, 1995: 34).

Assim, é fundamental pensar e assumir uma nova organizacionalidade emque seja contemplada a dimensão simbólica organizadora da esfera da ação. Nes-se sentido, a cultura não se conforma a pressões materiais, ao contrário, faz comque o homem viva conforme um esquema de significados criado por si, voltadosà criatividade e à ação cultural. A humanidade é inimitável!

Page 54: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Imaginário e organizações educativas 41

Referências Bibliográficas

AUGÉ, M. O sentido dos outros: atualidade da antropologia. Petrópolis: Vozes, 1999.

BADIA, D. D. O paradigma do imaginário e os fundamentos organizacionais da edu-cação. Araraquara: Faculdade de Ciências e Letras, Unesp, 2004. Mimeografado.

BRANDÃO, C. R. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 1989.

CRESPI, F. Médiation symbolique et sociéte. Paris: Librairie Méridiens, 1983.

DUBORGEL, B. Imaginação e pedagogia. Lisboa: Instituto Piaget, 1992.

DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral.Tradução de Hélder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

GODELIER, M. A parte ideal do real. Tradução de Danielle M. Labeau Figueiredo. In: CAR-VALHO, E. A. de (Org.). Grandes cientistas sociais. São Paulo: Ática, 1981. p.185-203.

GUATTARI, F. Psychanalyse et transversalité: essais d’analyse institutionnelle. Paris: F. Maspero,1974.

MAFFESOLI, M. O tempo das tribos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.

________. Lógica da dominação. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1976.

MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2006.

________. O método 2: a vida da vida. Porto Alegre: Sulina, 2001.

PAULA CARVALHO, J. C. Imaginário e mitodologia: hermenêutica dos símbolos e estóriasda vida. Londrina: Ed. da UEL, 1998.

________. Antropologia das organizações e educação: um ensaio holonômico. Rio de Ja-neiro: Imago, 1990.

________. Sobre a gestão escolar do imaginário. Revista Fórum Educacional, Rio de Janei-ro, v. 13, n. 112, p. 81-94, fev./maio 1989.

________. Energia, símbolo e magia: uma contribuição à antropologia do Imaginário.1984.Tese (Doutorado) – FFLCH, USP, São Paulo.

PORTO, M. do R. S. Imaginário e cultura: escorrências na educação. Conferência proferidano II Encontro sobre o Imaginário, Cultura e Educação, promovido pelo CICE/FEUSP em 08a 09 de maio de 2000. Mimeografado.

ROCHA, G. E. O que é etnocentrismo? São Paulo: Brasiliense, 1996.

SAHLINS, M. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003.

SILVA, T. T. Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação.Petrópolis: Vozes, 1998.

TEIXEIRA, M. C. S. Antropologia cotidiano e educação. Rio de Janeiro: Imago 1990.

TEIXEIRA, M. C. S.; PORTO, M. R. S. Perspectivas paradigmáticas em educação. Revista daFaculdade de Educação da USP, São Paulo, v. 21, n.1, p. 21-36, jan./jun. 1995.

Page 55: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook
Page 56: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

CULTURA, ESCOLA E SOCIEDADE: A EDUCAÇÃO DE GRUPOS SOCIAIS

Maria do Rosario Silveira Porto*

Introdução

O conceito de educação nas sociedades modernas está indissoluvelmente li-gado ao de escola e ao papel que é destinado a essa instituição: realizar, junto àsnovas gerações, o que a sociedade pretende que seja a formação ideal. Entretan-to, a educação é um processo muito mais amplo e anterior à existência da escola:ultrapassa a ação de instruir e ensinar, para se tornar um conjunto de práticas sim-bólicas basais, pelas quais se expressam os modos de pensar, sentir e agir do gru-po social. Desse ponto de vista, ela se enquadra numa visão particular de mundo,permitindo a cada grupo social e, em decorrência, à sociedade estabelecer e mo-dificar normas e modelos de comportamento, desenvolver e expressar crenças,ideias e valores, construir o saber comum e modelos de trabalho, definir as rela-ções entre os membros, estabelecer a forma particular como cada qual expressa ematerializa o seu dia a dia. Enfim, sua principal função é propiciar formas ade-quadas e sempre dinâmicas de organização grupal e social.

Nas sociedades modernas, a escola também desenvolve outras funções. In-fluenciada pelo “espírito do capitalismo” e suas consequências – burocratizaçãoda vida social, ideologia do desenvolvimentismo, tecnificação geral da existência,ideologia da mobilidade ascensional – e premida pela emergência de conflitos,latentes ou expressos, entre os segmentos e grupos sociais, resultantes do esforçode dominação de uns sobre outros e da despersonalização efetuada pelo excessode racionalização1 presente nas relações entre indivíduos e grupos, foi concebida,primeiro, como importante mecanismo de controle desses conflitos e, mais recen-temente, como conciliadora e responsável pelo apaziguamento da sociedade. Acre-dita-se que tais funções são facilitadas pela organização burocrática que adota epor um conjunto de leis e normas que segue, os quais, dentre outras coisas, em

* Professora doutora do EDA da FEUSP. Membro do CICE–FEUSP.

1. Entendida esta, por Edgar Morin (2001a: 157-8), como uma visão totalizante do universo, combase em dados parciais, visão parcial ou princípio único. A partir de uma proposição inicial, quepode ser absurda ou fantasmática, realiza uma construção lógica e deduz consequências práticas.

Page 57: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

44 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

nome da eficiência e da produtividade, definem suas competências e hierarquizamo poder. Ao mesmo tempo, empobrecem, quando não desconhecem, a rica poli-fonia do social; as culturas grupais diferenciadas; as relações harmônicas e/ouconflituais, mas sempre educativas, que se estabelecem entre os componentes dogrupo social-escolar; as trocas constantes, propiciadas por diferentes percepçõesde mundo, saberes apriorísticos que os alunos trazem de seu cotidiano, excelentematéria a ser trabalhada pelos professores, em contraste com conhecimentos de-correntes do desenvolvimento científico e cultural da humanidade etc., tudo issoresultando em um processo educativo, para além da função específica de trans-mitir conteúdos previamente selecionados.

É do papel tradicional atribuído à escola e da proposta de outra concepçãode educação escolar que trataremos a seguir. Nesse caso, valemo-nos do referencialteórico desenvolvido por José Carlos de Paula Carvalho (Antropologia das Orga-nizações e da Educação) e de Edgar Morin (Antropologia da Complexidade).

Para Paula Carvalho (1991: 82), em linhas gerais, as organizações sociais sãonecessariamente culturais, isto é, grupos reais e relacionais que vivenciam códi-gos e sistemas de ações, só podendo ser pensadas a partir do sistema simbólico queas informa. A esse sistema correspondem práticas sociais do grupo que, por seremsimbólicas (ou seja, a cristalização em ação de um universo imaginário numapráxis, através de um sistema sociocultural e de suas instituições), são necessaria-mente organizacionais e educativas, na medida em que criam vínculos de solida-riedade e de contato. Portanto, educação é entendida como prática simbólica basalque realiza a sutura entre as demais práticas.

Para o autor (1988: 180), por meio do processo educacional, é possível li-berar os indivíduos da lógica social de dominação, da hipocomplexidade e da re-pressão, em suma, do econômico-político e da entropização sócio-histórica, demodo a viabilizar a emergência do complexo, do multiforme, da polifonia – o ladoinstituinte do social, conforme M. Chauí (1980). Propõe, assim, uma concepçãoampliada de educação, quer como o conjunto das práticas socioeducativas e dosfenômenos educacionais, quer por propiciar (e até estimular) novas formas deorganizacionalidade que não somente as burocratizadas.

De Edgar Morin, tomamos a noção de complexidade e de cultura. De acordocom o autor (1997), um conhecimento complexo enfrenta a incerteza, a insepa-rabilidade, as insuficiências da lógica dedutiva-identitária, os limites da induçãoe do princípio de identidade. Não há mais fundamento último ou único para oconhecimento, nem ordem soberana num universo onde caos, desordens e even-tualidades obrigam a negociar com a incerteza. Não há conhecimento pertinente

Page 58: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Cultura, escola e sociedade: a educação de grupos sociais 45

sobre objetos fechados, separados uns dos outros, mas necessidade de contextualizaro conhecimento particular e, se possível, de introduzi-lo no conjunto ou sistemaglobal de que ele é um momento ou parte. “O pensamento complexo não é a subs-tituição da simplicidade pela complexidade, ele é o exercício de uma dialógicaincessante entre o simples e o complexo” (p. 200).

No campo dos estudos sociais e humanísticos, esse pensamento propicia umavisão complexa e global da sociedade, ao considerar o que é rejeitado como “resí-duos” irracionais ou não-racionais, elementos que, antes de serem desintegradores,interagem e reorganizam o sistema, a partir de uma relação recursiva do aneltetralógico ordem ⇔ interação ⇔ desordem ⇔ (re)organização, que se caracte-riza por aceitar o antagonismo, a complexidade e a contradição. Permite, também,entender os níveis de emergência da realidade, sem reduzi-los a níveis elementa-res e a leis gerais, resultando num modelo conflitante, contraditório, diferente, plu-ral, no interior dos grupos sociais e na relação destes com o ecossistema, a unitasmultiplex: uma unidade complexa (genética, cerebral, intelectual, afetiva) do Homosapiens-demens, em uma multiplicidade complexa, que exprime suas inúmerasvirtualidades através da diversidade cultural. Enfim, traz a ideia de auto-organi-zação como autonomia ou de sistema auto-organizado complexo (autopoiético),que se opõe ao alopoiético (Morin, 2002).

Nessa perspectiva, a cultura toma um sentido focal. Com base em Morin,Paula Carvalho (1990) desenvolve a ideia de que ela consiste num circuito/anelmetabólico, simultaneamente repetitivo e diferencial, entre os polos biofísico enoológico. O primeiro, o polo das formas estruturantes, da lógica organizacionaldo ser vivo, no caso do indivíduo humano, configura-se em organizações e insti-tuições, no quais se manifestam códigos, formações discursivas e sistemas de ações;e o segundo, a esfera das coisas do espírito, na qual se integram fenômenos quevão do onirismo à cognição, como a representação, o imaginário, o símbolo e ossignos, fenômenos referentes tanto a atividades práticas do espírito, de tipo cogni-tivo, como a atividades fantasmáticas e imaginárias.

Estabelece-se, pois, uma sutura epistemológica entre Natureza e Cultura,uma “abertura para baixo”, em direção à integração da lógica organizacional doser vivo, e uma “abertura para cima”, em direção à noologia, esta entendida porMorin (2002: 410) como o conjunto de fenômenos espirituais2 , tais como ideias,teorias, filosofias, mitos, fantasmas, sonhos. Essa sutura epistemológica configu-ra-se no processo de hominização, que propicia articulações e reciprocidades entre

2. Lembrando que, em Morin, a palavra “espiritual” refere-se às produções da mente (mind).

Page 59: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

46 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

os termos do triângulo básico: espécie-indivíduo-sociedade, fundamento da unifi-cação bio-antropo-psico-sociológica (Morin, 2001b).

Nesse sentido, os seres humanos

“(...) devem reconhecer-se em sua humanidade comum e ao mesmo temporeconhecer a diversidade cultural inerente a tudo que é humano.Conhecer o humano é, antes de mais nada, situá-lo no universo, e não separá-lo dele” (Morin, 2000b: 47).

Enfim, integram-se à cultura saberes e técnicas, ideias, costumes, normas,proibições, crenças, valores, mitos, transmitidos pelas gerações e reproduzidos emcada indivíduo, de modo a controlar a existência da sociedade e manter a com-plexidade psicológica e social. Passemos, então, à discussão sobre as funções daeducação e da escola.

Funções Sociais da Escola Moderna

As sociedades modernas vêm privilegiando uma ideologia de produtivismoe de progresso, cuja consequência mais importante é a racionalização exageradada existência, expressa pela tecnoburocracia que domina todos os setores da vidasocial. Segundo Edgar Morin (2001a), essa visão racionalista de mundo que vemdominando a Europa a partir do século XVIII, com a consequente identifica-ção entre o real, o racional, o calculável e a eliminação da desordem, da subje-tividade, concorreu para que a razão passasse a ser entendida em conformidadecom os princípios utilitários da economia burguesa e o ideal de ordem e har-monia orientasse a organização da sociedade.

Para o autor, o Racionalismo das Luzes era humanista, pois associava sincreti-camente o respeito e o culto ao homem – sujeito do universo, ser livre e razoável,isto é, liberto da “irracionalidade” – com a ideologia de um universo integralmenteracional. O racionalismo iluminista apresentava-se, assim, como uma ideologia deemancipação e de progresso, princípios que constituíram o suporte do liberalis-mo: a liberdade intelectual, religiosa, política, econômica; a igualdade perante alei; o direito natural à propriedade; a convicção de que cada pessoa tem aptidõese talentos, que podem e devem ser desenvolvidos; e a democracia como formaadequada de governo, em que se garante a participação de todos através da livreescolha de cada um. A doutrina liberal veio, pois, ao encontro da necessidade deimplantar e manter uma nova ordem social e econômica: o Estado moderno e odesenvolvimento do processo urbano-industrial.

Page 60: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Cultura, escola e sociedade: a educação de grupos sociais 47

O ideário liberal inspirou, no século XIX europeu, a organização de (oupelo menos a ideia de) uma escola democrática e equalizadora, acessível a todos,independentemente do grupo social, credo religioso ou político, ou de privilégi-os sociais e econômicos. A educação – direito de todos – passou a ser vista comodever do Estado, porque somente este teria condições de, por meio de institui-ções específicas, garantir tal direito. Iniciou-se, na Europa, a organização de sis-temas nacionais de ensino, com o objetivo de proporcionar instrução para todosindiscriminadamente e impedir que a educação fosse monopolizada por grupose interesses particulares. Seria, pois, uma razão de Estado (como, de resto, sem-pre o foi) que motivou a implantação e o desenvolvimento desses sistemas.

No Brasil, essas discussões tiveram peso realmente no despertar do séculoXX, em especial em virtude do processo de imigração extensiva que exigia umapolítica nacional de integração e da influência do movimento dos escolanovistas– de cunho liberal – na segunda década do século, cujo resultado foi a inserção,na Constituição de 34, da obrigatoriedade do ensino primário e da responsabili-dade planificadora e administrativa do Estado pela educação nacional.

A implantação da racionalidade industrial, desde fins do século XIX, já es-tava modificando esse panorama e os conceitos sobre educação formal. O traba-lhador passava, gradativamente, a ser considerado não mais como pessoa, sujeitode sua própria ação, mas como força física de trabalho. Industrialização, urbani-zação, burocratização, tecnologização passaram a ser efetuadas de acordo com re-gras e princípios da manipulação social, isto é, dos indivíduos tratados como coisas.

Portanto, enquanto a razão humanista fora liberal, libertadora, a racionali-zação técnica despontou como uma violência, tentando eliminar tudo o que nãolhe era redutível ou reduzindo-o aos princípios de ordem, economia e eficácia.Exemplo disso são as propostas de Taylor e Fayol sobre a “nova” organização do tra-balho, infelizmente ainda revividas com outras denominações em teorias pseudo-inovadoras, como, por exemplo, a qualidade total, a reengenharia e a mensuraçãodo quociente emocional.

Essa razão técnica tornou-se instrumento de poder, ou seja, de dominação,e implantou uma ordem racionalizadora pela qual tudo o que possa ser desor-ganizatório configura-se como demente ou criminoso3. No nível micro, é a ins-tauração daquilo que José Carlos de Paula Carvalho (1985) denomina de modelosentrópicos (ou clássicos) de organizacionalidade social. A empresa não pode abrigardemonstrações de emoções, diferenças, afetividades, ações criativas, enfim, de

3. Vide o célebre livro de Michel Foucault Vigiar e Punir.

Page 61: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

48 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

“irracionalidades”, a não ser para quantificá-las, controlá-las e convertê-las em lu-cro4. Caso contrário, serão ignoradas, quando não eliminadas ou punidas. No nívelmacro, o domínio dessa ideologia expressa-se pela implantação de sistemas eco-nômicos e políticos e, ao mesmo tempo, pela adaptação de indivíduos a normas,modelos sociais e ideais de produtivismo e de progresso.

Mas não são somente esses os efeitos do processo de racionalização. A socie-dade ocidental moderna também monopolizou a razão e o intelecto em detrimen-to da imaginação e do sentimento. A razão se tornou o grande mito do saber, daética e da política, o único critério de estruturação social, de tal forma que umracionalismo exacerbado passou a mediar as relações entre os indivíduos (Morin,2001a). Deixou de ter sentido aquilo que humaniza os homens: a busca do co-nhecimento, de si, do outro e do mundo; as relações grupais de afetividade; asmanifestações cotidianas dos mitos pessoais e grupais, com as ritualizações decor-rentes; a necessidade de criar, de experimentar, de imaginar, segundo GastonBachelard, uma “poética do devaneio”.

Nesse contexto, a escola passou a ser considerada gradativamente como umainstituição destinada a preservar, criar, divulgar o saber e a cultura oficiais. Deacordo com Paula Carvalho (1985), enquanto grupo social/organismo burocrá-tico, a escola vai organizar-se no sentido de agir como aparelho de reprodução deordens (em Weber, econômica, política e ideológica) para exercer as funções clás-sicas da educação nas sociedades modernas: sociocultural, política e econômica.

Para o autor, como processo sociocultural, a educação é um fenômeno intrae intergrupos comprometido com uma visão autoritária, de racionalidade positi-va e de divisão social do trabalho. Ela articula a política da família aos processossecundários, sobretudo de profissionalização, garantindo a transmissão dos patternsof behavior. A ação educativa do grupo social-escolar situa-se, pois, nos quadrosda moralidade conservadora e dos ideais da positividade: uma educação instru-mental neutralizadora de conflitos sociais.

A função política da educação, segundo o autor, embora deva referir-se à ci-dadania consciente, é, antes, político-ideológica, ou seja, de acordo com T. Herberta quem cita, tal função consiste em fornecer “matrizes de ideologemas”, que sãoagregados de significação sem consistência semântico-lógica, mas dotados de gran-de carga efetiva. Mais do que levar ao conhecimento, os ideologemas induzem

4. Um exemplo foi o experimento desenvolvido por Elton Mayo e sua equipe na WesternEletric americana, o qual originou a Escola de Relações Humanas.

Page 62: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Cultura, escola e sociedade: a educação de grupos sociais 49

efeitos de desconhecimento, por serem alusões pela metade que jogam com a di-nâmica da ilusão. A ideologia lida, pois, com um universo de representaçõesdistorcidas (estereótipos), que funcionam no nível do afeto e do desejo, isto é,do inconsciente, tornando o discurso falacioso, sem consistência lógica.

Por fim, a função econômica da educação, como capital humano, articula,para Paula Carvalho, a formação da mão de obra qualificada – os recursos huma-nos na educação – com a gestão dos negócios educacionais, cuja funcionalidadesupõe uma lógica econômico-administrativa e político-social de um sistema quedefine necessidades, investimentos e consumos produtivos.

Em suma, a escola, baseada nessa visão racionalista de mundo, corresponde,segundo Maria Cecília Sanchez Teixeira (1990: 48), (apenas, diria eu) a uma con-cepção praxeológica de educação, que privilegia a adaptação a normas, modelossociais e ideais de produtivismo e de progresso, entendendo-se praxeologia como alógica de ação regida pela dimensão racional de fins e meios e a correlata consecu-ção racionalizadora e ofélima, isto é, de otimização de recursos (Paula Carvalho,1985). Portanto, deve funcionar como mecanismo de controle social, indepen-dentemente de ideologias que a informam e de teorias que propõem modelos deensino e de administração, visando garantir o bom desempenho dessa função.

Entretanto, conforme Sanchez Teixeira escreveu em um de seus textos5, aopretender abarcar tudo, a razão preparou o caminho para o retorno da sensibili-dade reprimida. Por não ser sensível à força do seu contrário, o racionalismo nãosoube integrá-la para temperar a sua pulsão hegemônica e, com isso, vem perdendoespaço.

A Escola como Espaço Sociocultural

Entretanto, ao contrário do que se acredita, a sociedade não pode ser con-siderada dicotomicamente, nem as relações entre os indivíduos obedecem a nor-mas deterministas e mecanicistas.

Segundo Abner Cohen (1978: 87), a sociedade, qualquer que seja seu ta-manho ou complexidade, compõe-se de grupos de interesse que se confrontam,entram em competição, aliam-se, misturam-se e se interpenetram, de modo aproteger ou aumentar a parcela de poder que detêm. Tais grupos diferenciam-se culturalmente, os mais fortes e organizados tentando impor sua visão de mun-

5. “O Imaginário como Dinamismo Organizador e a Educação como Prática Simbólica” (dig.)

Page 63: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

50 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

do e de sociedade a seus membros e aos de outros grupos. Entendendo-se que essaimposição nas sociedades modernas tem forte componente ideológico, uma vezque está em jogo a dominação político-econômica, ela é sempre uma ameaça paraa identidade do grupo sujeitado e para cada indivíduo em particular, na medidaem que produz alterações nos papéis sociais (p. 77).

Mas os indivíduos não recebem passivamente essa dominação: tentam ajustar-se às novas estruturas impostas, ajustamento possível porque formações simbólicas(que tornam tangíveis valores, normas, regras de conduta, conceitos abstratos dehonra, de bem e mal, de prestígio e posição hierárquica, e os relacionam à vida co-tidiana) e modelos de comportamento tendem a persistir além das relações de po-der (p. 55). Sempre que possível, far-se-á a reinterpretação dos modelos existentesde comportamento simbólico, pela preservação dos modelos sociais tradicionais(p. 77).

Portanto, embora não seja possível ignorar as alterações que vêm ocorrendona sociedade, mercê da implantação do capitalismo e de suas medidas “moder-nizadoras”, é preciso considerar, primeiro, que tais alterações não atingem com amesma intensidade todos os grupos sociais; e, segundo, que, exposto aos valoresdessa ordem econômica, o grupo vai recursivamente6 aceitar alguns, rejeitar par-cial ou totalmente outros e reinterpretar os demais, conforme o capital simbóli-co que o informa. É perigoso considerar que um grupo social esteja submetido aum processo de dominação tal que não encontre condições de recriar e reorgani-zar seu sistema social, mesmo que demande tempo e esse fenômeno possa não sedar pacificamente: por certo haverá danos à organização grupal, mas tambémhaverá benefícios.

E, se não é possível reduzir os grupos sociais ao macroestrutural, tampouco sepode diluir o indivíduo no grupo. Embora ao nascer ele já encontre, segundo FrancoCrespi (1983: 155), um sistema de mediações simbólicas determinado – sempreúnico, particular e não-universal – que lhe permitirá estabelecer suas relações como self, com o outro, com o mundo, os quais constituem a estrutura concreta de suasituação existencial, essas relações vão se dar recursivamente, a criatividade e a inven-tividade serão constantes e inexoráveis, num processo de desorganização e reorga-nização infinito de suas condições de vida, de modo que a ideia de humanidade “(...)

6. Recursivo: processo pelo qual uma organização ativa produz elementos e efeitos necessáriosà sua própria geração ou existência, realizando um circuito em que o produto ou efeito últi-mo torna-se elemento ou causa primeira. A recursividade compreende simultaneamentecomplementaridade, concorrência e antagonismo (Morin, 2002: 231).

Page 64: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Cultura, escola e sociedade: a educação de grupos sociais 51

só pode aparecer como o produto e o horizonte da experiência vivida individualmen-te” (Morin, 2001b: 492).

Admitindo-se tais ideias, muda fundamentalmente a concepção de que aescola é eficiente enquanto agência de controle social e de divulgação do saberoficial, podendo ser repensado o seu papel. Para tanto, é necessário reelaborar oconceito de grupalidade e de cultura.

Para Morin (1999), é na organização humana, ou antropossocial comoquer o autor, que aparecem características desconhecidas em outras organiza-ções, como a linguagem, a consciência, a cultura. O homem, ser complexo, nãoé somente biológico ou cultural, nem metade de cada um, mas totalmente bio-lógico e totalmente metabiológico (cultural, espiritual, político), consistindo acomplexidade em referir o conhecimento da natureza (bio, physis) às determi-nações antropossociais. Ou seja,

“(...) um ser aberto para o mundo, um especialista da não-especialização,um aprendiz por curiosidade ativa, um lúdico explorador, um ser perma-nentemente incompleto e inacabado, portanto um ser do perigo, da álea, dorisco, da desordem complexificante, ser ambíguo, ambivalente e crísico”(Gehlen & Lorenz, apud Paula Carvalho, 1988: 183).

Trata-se, portanto, de um homem contraditorial, antinômico, a-lógico, quese caracteriza, segundo Marshal Sahlins (1979: 8), não pelo fato de viver nummundo material, que aliás compartilha com os demais organismos, mas por fazê-lo de acordo com um esquema (entenda-se esquema simbólico) de significadoscriado por ele próprio, nunca o único possível.

Além disso, os grupos sociais formam-se e se transformam na medida em quecontrolam e são controlados, ou seja, pela necessidade de organizar e adaptar suavida cotidiana às injunções intra e extragrupos, para tanto desenvolvendo sistemase práticas simbólicos, que agem como mediadores entre os membros do grupo, en-tre os grupos e entre esses e a sociedade, e que atribuem significado à sua existên-cia. Nesse sentido é que, para Paula Carvalho (1990), as organizações sociais sãonecessariamente culturais e só podem ser pensadas a partir do sistema simbólico queas informa. Ou seja, é a dimensão simbólica que cimenta a socialidade dos grupos,entendida por Michel Maffesoli (1984) como a expressão cotidiana e tangível de umasolidariedade de base. Portanto, cada grupo social é simultaneamente diferente esemelhante, porque perpassam por dada sociedade valores, crenças, costumes co-muns, continuamente reinterpretados tanto pelo grupo como por seus integrantes,cada qual individualmente.

Page 65: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

52 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Amplia-se, com isso, a concepção de educação para além do que se realizaatualmente na escola. Aliás, para além da escola.

Na escola, o espaço comum, burocratizado – que molda coercitivamente há-bitos e costumes do dia a dia – permite, paradoxalmente, o desenvolvimento de umasocialidade, de um “ser-estar junto com” (être ensemble), que cimenta as relaçõessociais que se dão em seu interior. A consequência disso é o fato de cada escola de-senvolver uma cultura própria, que só pode ser apreendida, no cotidiano escolar, pelaobservação da complexidade e da heterogeneidade resultantes das relações entre osdiferentes grupos – alunos, professores, funcionários, “turmas” (da manhã, da tar-de, da noite), classes (de 1a série, etc.) – que agem em seu interior.

Tal especificidade se deve não só ao lado institucional, à estrutura burocrá-tica que imprime forte influência sobre o desenvolvimento de tais relações, mas,também, ao lado instituinte – as pequenas ações de todos os dias, a rotina esco-lar – que tem o poder de subverter a ordem dominante, imprimindo uma nova,resultante de como as injunções burocráticas são encaradas pela escola, dos inte-resses comuns, dos consensos e conflitos entre grupos e pessoas, da influência dacultura grupal sobre a instituição e, principalmente, do modo como o pessoal es-colar, sobretudo os professores, veem a si próprios e seu papel, e são vistos pelacomunidade.

Isto é fundamental para a organização do espaço escolar não mais como umainstituição formalizada, quase imobilizada por regras e deveres, mas sim como umlugar de ensino-aprendizagem que se configura como um espaço de vida, de tro-cas, de desenvolvimento, cuja tarefa pedagógica é garantir que as interações en-tre indivíduos e grupos produzam uma cultura que retroaja sobre eles mesmos.

Outra Escola, Outra Educação?

Retomando o que foi dito no início deste texto, se a função dos grupos éorganizar o comportamento e educar seus membros, e se a educação ultrapassa amera função de instruir e ensinar, para ser mesmo um processo de hominização(tal como esse termo é entendido por Morin em sua vasta obra), talvez seja pos-sível estabelecer outra proposta educacional que, sem desprezar os grandes temasuniversais, os quais, de resto, dizem respeito à humanidade como um todo e vêmimpelindo o homem a descobrir e a conhecer cada vez mais o mundo que o cer-ca, portanto a si mesmo (pois, como nos alerta Morin, todo conhecimento éautoconhecimento), possa também considerar a escola, mais ainda, os alunos, apartir de suas especificidades culturais, permitindo uma concepção ampliada de

Page 66: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Cultura, escola e sociedade: a educação de grupos sociais 53

educação: quer como o conjunto de práticas socioeducativas e dos fenômenos edu-cacionais, quer por propiciar (e até estimular) novas formas de organizacionalidadee de desenvolvimento cultural, com consequências em todos os âmbitos da vidasocial: político, econômico, da saúde, do trabalho, do lazer, etc.

A educação como prática simbólica é um elemento de coesão e de integraçãono universo cultural polarizado. Se, conforme dizíamos anteriormente, o homemé um ser antinômico que existe em duas dimensões essenciais – a individual e asocial –, uma educação que discrimine ou atrofie uma delas estará amputando oeducando em sua humanidade. É necessário, pois, pensar-se em uma educação quetrabalhe com as polaridades sempre em permanente relação de complementaridadee de antagonismo: indivíduo-sociedade, diferença-igualdade, natureza-cultura,razão-crença, totalidade-unicidade, etc.

Num processo mais amplo, para uma sociedade, uma educação que recu-pera essa dimensão simbólica pode contribuir, segundo Bruno Duborgel (1986:2), para reequilibrar, harmonizar na economia do ser humano o ser imaginante,o ser físico e o sujeito do “pensamento direto”, que ele contrapõe ao “pensamentoindireto”, mediado pela ciência que conduz ao conhecimento “positivo”, “ob-jetivo”, “racional” de mundo (p. 1 e sgtes.). Deixa, pois, de ter caráter meramentereprodutório, na medida em que permite a criatividade e a inventividade, e aemergência do complexo, do multiforme, da polifonia, e aos indivíduos umaconsciência do real que não limite suas relações com o mundo pela percepçãoimediata do que tem nele.

Por certo, não é a organização burocratizada da escola que retalha os conhe-cimentos em disciplinas, sem conseguir conectá-los novamente, que vai permitirapreender o complexo, “o que é tecido junto”, pois só existe complexidade,

“(...) quando os componentes que constituem um todo (como o econômi-co, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico) sãoinseparáveis e existe um tecido interdependente, interativo e inter-retroati-vo entre as partes e o todo, o todo e as partes” (Morin, 2000a: 14).

Isto porque:

“É a unidade humana que traz em si os princípios de suas múltiplas diversi-dades. Compreender o humano é compreender sua unidade na diversidade,sua diversidade na unidade” (Morin, 2000b: 55).

E é a pessoa humana a razão última da educação. Não nos esqueçamos...

Page 67: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

54 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Referências Bibliográficas

CHAUÍ, Marilena de Souza. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. SãoPaulo: Moderna, 1980.

COHEN, Abner. O homem bidimensional. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

CRESPI, Franco. Mediation symbolique et societé. Paris: Méridiens, 1983.

DUBORGEL, Bruno. Imaginaire et pédagogie. Paris: Privat, 1992.

MAFFESOLI, Michel. A conquista do presente. Rio de Janeiro: Rocco, 1984.

MORIN, Edgar. Meus demônios. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

________. O Método 3 – o conhecimento do conhecimento. Porto Alegre: Sulina, 1999.

________. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 2000a.

________. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília:UNESCO, 2000b.

________. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001a.

________. O Método 2 – a vida da vida. Porto Alegre: Sulina, 2001b.

________. O Método 1 – a natureza da natureza. Porto Alegre: Sulina, 2002.

PAULA CARVALHO, José Carlos. A dimensão do imaginário na problemática organizacionalda administração e da educação. Revista da Faculdade de Educação, São Paulo: FEUSP, v.11, n. ½, p. 19-42, 1985.

________. Estrutura, organização e educação: o imaginário sócio-organizacional e as práti-cas educativas. In: FISCHMANN, Roseli (Org.). Escola brasileira: temas e estudos. São Paulo:Atlas, 1987. p. 48-71.

________. Educação e administração: elementos para um estudo antropológico da organiza-ção. Revista da Faculdade de Educação, São Paulo: FEUSP, v. 14, n. 2, p. 33-37, 1988.

________. Antropologia das organizações e da educação: um ensaio holonômico. Rio deJaneiro: Imago, 1990.

________. A culturanálise de grupos: posições teóricas e heurísticas em educação e ação cul-tural. Ensaio de Titulação. FEUSP, 1991 (dig.).

SAHLINS, Marshall. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

TEIXEIRA, Maria Cecília Sanchez. Antropologia, cotidiano e educação. Rio de Janeiro:Imago, 1990.

Page 68: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

CONHECER É DESCOLAR RÓTULOS:UMA REFLEXÃO IMAGINATIVA1 SOBRE A

CULTURA DA ESCOLA

Eliana Braga Aloia Atihé2

— Cazuza, eu queria pedir-lhe um favor. Aquela história de Pata-Choca passou.

O pequeno hoje é outra coisa: está esperto, estudioso.

Você compreende, eu sou pai: dói-me ver meu filho com um apelidotão feio.

O Pata-Choca era lá. Aqui é o Evaristo, não acha?

Não fale em Pata-Choca aí na escola. Está combinado?

(Cazuza, Viriato Correia)

Há alguns meses, uma revista especializada em educação, de grande circu-lação no país, pediu-me para responder algumas perguntas sobre o que a jorna-lista definia como o ato de “rotular o outro”, no contexto da escola de educaçãoformal, expressão relacionada, segundo ela, à atitude de “designar uma pessoa ape-nas por uma palavra ou expressão”, geralmente de natureza jocosa e frequentemen-te pejorativa. Diante da demanda, não pude deixar de considerar, num primeiromomento, a força com que o discurso da cultura do consumo imprime sua mar-ca em nós. Juntamente com os valores ditos, recebemos alguns outros, não-ditos,os quais se imprimem em nossa alma como atributos do vasto imaginário do mer-cado que determina esse mesmo discurso. Dentre esses valores, estão algumas ca-racterísticas que nos identificam, de modo inescapável, com bens de consumo.

Até poucos anos atrás, estaríamos falando aqui em apelidos ou alcunhas.Hoje, contudo, falamos em rótulos, de certo modo assumindo que somos produtosdispostos nas gôndolas de um supermercado. Condicionados pelas regras da so-ciedade de consumo, sua cultura e suas instituições, somos, desde muito cedo,

1. Versão editada de artigo publicado com o mesmo título no livro Imaginário, educação e cultu-ra da escola, organizado por Sueli Barborsa Thomaz, coedição UFRJ-Editora Rovelle, 2009.

2. Doutora em Educação pela FEUSP,. Membro do CICE.

Page 69: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

56 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

acondicionados em embalagens que, em certas etapas da linha de produção, sãoestampadas com diferentes rótulos, favoráveis ou desfavoráveis, adequados ou ina-dequados, justos ou injustos. Por uma questão de fidelidade ao meu estímulo ori-ginal para escrever este capítulo, decidi adotar, eu também, a metáfora dos rótulos,com alguns dos semantismos cabíveis neste contexto.

De volta à entrevista e pelo tom das perguntas a mim enviadas, percebi logoque minha interlocutora, refletindo as posições da revista, procurava relacionar aprática da rotulação ao bullying, na medida em que a primeira pode facilmenteultrapassar os limites do senso de humor e da camaradagem para resvalar no sar-casmo e até mesmo na crueldade, vindo, desse modo, a assumir os contornos som-brios daquela violência, simbólica ou não, tão familiar ao mundo das organizaçõessociais, dentre elas, a escola.

Tendo passado quase vinte anos de minha vida ensinando Língua Portuguesano ensino fundamental, mais sete dando aulas de Comunicação Oral e Escritapara o ensino superior, sem contar os outros tantos em que tenho estado envol-vida com a formação de educadores à margem da escola oficial, pude eu mesmareceber e atribuir inúmeros rótulos. No caso da disciplina que eu lecionava, es-tes emergiam em situações especialmente reveladoras das intenções ocultas por trásdo discurso, já que envolviam a aquisição da competência e o treino do desem-penho verbal. Como já disse, sei também que fui, e mais de uma vez, rotuladapor meus superiores, alunos e colegas. Do mesmo modo, reitero que atribuí nãopoucos rótulos a alunos, colegas e superiores. Lembro-me, aliás, de uma infinida-de de reuniões de coordenação em que o tema dos rótulos não somente fazia parteda pauta, como também ganhava relevância em relação aos outros assuntos do co-tidiano, acendendo infindáveis discussões, tão fecundas em produzir racionalizaçõese idealizações quanto estéreis para gerar efeitos construtivos na realidade.

Que atire a primeira pedra aquele que, envolvido na encenação do dramaescolar de cada dia, não tenha cometido o pecado da rotulação. E que atire asegunda aquele que, na mesma condição, não perdeu a fé, ao menos uma vez,nas iniciativas moralistas, maniqueístas e politicamente corretas com as quais aescola procura simplesmente tamponar as manifestações da sombra de seu egoinstitucional, ensinando assim as novas gerações a dissimularem a aparência dobem, também para evitar entrar no cerne das questões concretas que a pressio-nam, de dentro e de fora. Todavia, nem nossa culpa, no caso da primeira pedra,nem nosso cinismo, no caso da segunda, nos podem continuar eximindo de adotarposicionamentos mais criativos perante temas tão arcaicos e ambivalentes quan-

Page 70: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Conhecer é descolar rótulos 57

to a própria natureza humana. De saída, portanto, proponho que nos identifique-mos com rotuladores e rotulados, em idêntica medida.

A matéria que foi, por fim, editada e publicada na tal revista era um cut-and-paste superficial e previsível de opiniões de vários especialistas em educação (euentre eles, muito embora não me considere, de modo algum, uma especialista),a qual não conseguiu, a meu ver, decolar para além dos clichês. Mas a faísca ini-cial produzida pela oportunidade serviu para me colocar no encalço do tema. So-mente busquei, em minhas respostas, um tom um pouco desviante da norma quepauta os discursos sobre a educação, para abordar, sem pretensões teóricas, o pro-blema da irredutível inclinação humana para “designar uma pessoa apenas por umapalavra ou expressão”. Minha opção por investir mais na imagem do que no con-ceito tinha, agora e então, por finalidade encontrar um fio narrativo que mobili-zasse, em meu leitor e em proporções semelhantes, o sentimento, a imaginaçãoe a racionalidade.

Assim, comecei por tentar co-implicar a mim, ao meu leitor-educador (for-mal e informal) e ao objeto que partilhamos, visando construir, já na entrevistaque serviu de embrião a este capítulo, um ponto de vista mais memorioso efabulador do que propriamente técnico e teórico. De braços com as perguntas,deixei-me viajar pelo que denominei “um imaginário dos rótulos”, termo que bempode ter sido apropriado de algum outro contexto. Ao colocar-me nesse ponto devista, pretendi ativar outro olhar sobre um assunto aparentemente banal, recor-rente e incômodo, propondo assim, ao meu leitor, mais um dilema do que pro-priamente um debate.

Em minha história de vida de educadora-educanda (que remonta aos seisanos de idade e ainda não se encerrou), percebo, não sem certo desânimo, comoo discurso escolar oficial, porta-voz da cultura escolar patente, longe de mobili-zar, no nível da ação, os encaminhamentos devidos e eficazes para elaborar o pro-blema, ao contrário, suscita defesas de toda sorte, as quais têm por prioridade, nãoa busca de elaborações capazes de desembaraçar alguns dos nós que impedem arealidade de fluir, mas a preservação da “persona escolar modelar”, ou seja, da ima-gem institucional que a cultura da organização pretende projetar, de si, no mundo.

É claro que me refiro aqui mais à escola privada do que à pública, postoque esta última, de modo geral, conta com menos recursos para investir nessa“fachada simbólica” coerente e eficiente, o que implica certa identificação daescola pública com a sombra da educação formal e produz, como efeito colateral,uma veracidade feroz e indesejável. As próprias instituições carregam, portan-

Page 71: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

58 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

to (e até mesmo fabricam para si, deliberadamente ou não), rótulos benévolose malévolos, falsos e autênticos, incômodos e confortáveis. Poderíamos até mes-mo imaginar que uma colagem de rótulos positivos constituiria a persona da es-cola, isto é, sua máscara social, a camada mais superficial desse ego institucionalque toda organização social constitui, no contato com a cultura: uma identidadeconsciente coletiva, a qual a organização procura laboriosamente lapidar, esforçan-do-se por colocar em evidência as facetas favoráveis, ocultando as desfavoráveis.

Como todo ego, o escolar também projeta uma sombra que lhe é oposta-complementar, sombra que C. G. Jung define como o contingente inconsciente,refugiado nos porões do ego consciente. Na sombra, estão aninhados todos oscomponentes que o ego, seja ele individual ou coletivo, considera inadequados,vergonhosos, incômodos, e que, por esse mesmo motivo, trata de rechaçar. Rejei-tados, conquanto não suprimidos, menos ainda inativos, tais conteúdos terminampor encontrar meios espúrios de se manifestar, quase sempre subjugando de ma-neira autônoma a mesma instância que os renega. Entretanto, na medida em quesão considerados, transformados e devidamente integrados, os conteúdos da som-bra intervêm para ampliar a consciência do ego, em lugar de sabotá-la. A umamodalidade de consciência defensiva, a um só tempo impermeável e vulnerável aoinconsciente, Jung opõe a consciência criativa, permeável ao inconsciente porquedisposta a integrar a sombra, a negociar com ela e a fecundar-se com seus con-teúdos, devidamente mediados pela dimensão simbólica. Ego, persona e sombrasão elementos que dinamizam na construção da cultura escolar, a qual se entreteceao sabor das relações cultivadas no interior da organização, tanto quanto desta como ambiente no qual se encontra inserida.

Em demanda desse outro olhar dirigido a um “imaginário dos rótulos”, bemcomo de uma consciência mais porosa e flexível para condicioná-lo, apelei aqui,como costumo fazer (e já que não venho da Pedagogia, mas das Letras), à almaimaginativa, que é, segundo o psicoterapeuta e pensador da cultura norte-ame-ricano James Hillman (1992), o “lugar” onde e a atividade por meio da qual, emnossa psique, as imagens que revestem de significado a experiência são geradas.Alma entendida, pois, como metáfora: dimensão da subjetividade humana que é,a um só tempo, fonte, motor e acervo da imaginação e da memória emotiva. Con-voco aqui a alma porque, ao fim e ao fundo, os rótulos nada mais são do que for-mas verbais fixadas em estereótipos (portanto em imagens), que transformam emformas discursivas as fantasias e projeções (mais imagens) que o coletivo atribuiao sujeito, recebendo, em contrapartida, as projeções e fantasias do mesmo sujeito,tudo isso se passando na subjetividade da organização.

Page 72: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Conhecer é descolar rótulos 59

Vale pontuar ainda que a alma, no sentido em que a refiro, tem se consti-tuído, para a consciência da organização escolar polarizada no paradigma cientí-fico, como o território da cultura latente, a qual é, segundo Maria Cecília SanchezTeixeira (2005), “um espaço para a criação – o das experiências vividas no coti-diano – no qual os conhecimentos reconhecidos são questionados e os padrõesestabelecidos, transgredidos, criando-se, então, novos padrões culturais”. Sem es-paço para serem devidamente “assimilados e reconhecidos pelo sistema cultural” es-colar, ou seja, retidos na sombra dessa identidade excludente da alteridade, os valoresda alma são mantidos a distância e sob suspeita, considerados como elementos es-tranhos e ameaçadores ao:

“nível de funcionamento técnico-racional do grupo (pólo da cultura paten-te) (...), o pólo técnico das interações grupais (...), regido pelo sistema demetas e meios racionalmente dispostos, que atuam como fator de agregação”(op. cit.).

Lidar com imagens, fantasias e projeções da alma, a partir da perspectivaimobilizada na dimensão lógico-racional que hoje impregna todas as instâncias daeducação escolar, implica, por conseguinte, atuar com a finalidade de controlare reduzir as primeiras, por meio de racionalizações e idealizações que se desdobraminfinitamente em explicações, conceitos, julgamentos de valor, ou seja, nos expe-dientes defensivos do discurso lógico-racional aos quais já me referi. Tal atitudetão somente reafirma a recusa a priori da organização escolar em reconhecer o valordessas imagens, fantasias, projeções e emoções, bem como de sua integração e cul-tivo no processo da educação formal, postura que, como vimos, está longe de im-pedir que a alma e seus parâmetros rejeitados continuem a parasitar, pelo avesso,a razão instrumental escolar.

Desse modo, o imaginário latente, reprimido, permanece a pressionar e airromper inadvertidamente no cotidiano da escola (como faz em todas as organiza-ções da sociedade), de um lado investindo contra a persona que recobre o ego cons-ciente que o rejeita e, de outro, oferecendo e este último as necessárias e urgentescompensações. Ao recusar sequer olhar, quanto mais procurar desvelar e compreendertais fantasias e projeções à luz da complexidade humana (o que não significa de modoalgum transigir com seus efeitos perversos no cotidiano), a consciência institucionalescolar perde inestimáveis oportunidades de elaborar criativamente alguns eventosmais que reveladores dos dinamismos que a determinam.

Impedida, pois, de oferecer seus parâmetros como valores equilibradores domodelo educacional em vigor, neopositivista, utilitarista, produtivista, exclusivamentefocado no vestibular e nas demandas de mercado, a alma permanece fadada a in-

Page 73: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

60 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

tervir quase exclusivamente na condição fantasmática, de instância convocadora darevanche da sombra. Ao invadir o imaginário dominante na cultura em questão, oconteúdo que emerge do imaginário reprimido atua com violência, também paradesmantelar as formas vazias e esgotadas da dimensão patente e, consequentemente,para desorganizar esse ego escolar unilateral, impondo-lhe, ao fim e ao fundo, al-guma modalidade de equilibração e renovação, ainda que pela força. Penso que talvezo processo de atribuição de rótulos e seus efeitos no cotidiano da organização ca-minhem na direção de um acerto de contas do sentimento e da imaginação (quevegetam, incultos, na sombra da escola) com a hegemonia da cognição.

Mas uma perspectiva da alma parte sempre das imagens, projeções e fanta-sias, como valores de compensação para a consciência lógica descompensada e,nessa medida, como mensagens sumamente significativas da dimensão latente àpatente, mesmo porque os fantasmas da subjetividade (individual e coletiva)infiltram-se, queiramos ou não, no modo pelo qual pensamos e construímos a re-alidade objetiva da educação formal. Um caso de rotulação especialmente expres-sivo, para nós aqui, mesmo porque protagonizado por um educador, ocorre nofilme Entre os muros da escola (Entre les murs, Laurent Cantet, 2008), que contaa história de um jovem professor de francês que luta para ensinar seu conteúdo auma turbulenta turma multiétnica de adolescentes, numa escola da periferia deParis. Numa de suas aulas, ele repreende duas alunas pela postura inadequada queambas adotaram na reunião do conselho escolar, ocorrida no dia anterior. Impul-sivo e frágil em sua discutível autoridade, acuado pelo “lado de lá” da sala de aulaapertada e populosa, o professor acusa-as de terem agido como “vagabundas”.

Muito há para dizer sobre o fato de que esse rótulo tenha partido do profes-sor, como um ato falho emerso da sombra reprimida da instituição, para rasurar odiscurso estável e previsível que lhe caberia, como representante investido do egoescolar e da cultura patente. Mais ainda porque o termo usado por ele veio igual-mente carregado de conotações sexuais e sexistas que o lançaram no limbo dos pre-conceitos de classe e de gênero, devidamente amplificados pelo cenário. Eis aí omodo como o contexto deslocou a mensagem da intenção comunicativa original deseu emissor, que era a de expressar, com a necessária contundência, a maneira frí-vola, vulgar e irresponsável pela qual as duas garotas, de fato, comportaram-se numasituação em que, como representantes do corpo discente, cabia-lhes agir de formadiametralmente oposta. Justificado pelo sentimento de profundo desconforto queserviu de base à sua crítica (e mais ainda, talvez, pela retórica leniente que marcouo discurso e a atitude blasé dos outros participantes adultos da reunião), o profes-sor foi traído pelo afloramento da emoção em meio ao primado da razão.

Page 74: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Conhecer é descolar rótulos 61

Essa sequência parece-me particularmente ilustrativa do fato de que, em-bora tecnicamente excluído do território do pensamento que é a escola, o sen-timento permanece a atuar no nível das subjetividades (que não podem serdesligadas ao soar do sinal), porém pela via da sombra, a qual se manifestoudesastradamente no ato falho do professor. Tão preocupado em convencer seusalunos da importância de aprender e aplicar os tempos verbais corretamente, eleviu-se capturado por uma armadilha de linguagem, acionada pela sombra. Orótulo de “vagabundas” (seja lá o que isto quisesse dizer) foi projetado sobre asalunas pela autoridade, ainda que cambaia. Elas, por seu turno, rejeitaram-nocom veemência, tendo vencido a parada no coletivo, o qual, contudo, nada ga-nhou com a experiência.

Os pragmáticos romanos atribuíam um poder à palavra escrita que excediaamplamente o da palavra falada, a qual consideravam demasiado volátil para com-prometer severamente o emissor. Os rótulos, contudo, têm tal força que parecemaderir como sanguessugas aos seus portadores, e assim argumentam no sentidooposto, de que, mesmo no reino do conceito e da palavra escrita que é a escola, aoralidade, profundamente enraizada na presentidade do cotidiano, na emoção ena imaginação, pode ferir e continuar ferindo, não importa quantas racionaliza-ções posteriores usemos para tentar desmobilizá-la. No filme, a palavra imprópriaemergiu à tona de um sentimento legítimo, que pedia para ser considerado e ela-borado a um nível mais profundo que o do procedimento padrão. A escola, noentanto, e de maneira muito verossímil, apenas tomou as medidas higiênicas eburocráticas devidas para tamponar o extravasamento emocional (dos dois ladosdo confronto) e neutralizá-lo no nível mais superficial das relações. Não houvequalquer tentativa de apropriação pedagógica do episódio vivido pelo grupo. Etudo continuou como dantes, pelo menos até o cataclismo seguinte.

Mais parênteses para outra história exemplar, que revela o quão paradoxaispodem ser as reações a essas designações. Um amigo de meu filho, de 15 anos,contava-me, dia destes, com visível alívio, que não tinha sido classificado para a“turma dos nerds”, no exame de seleção de um prestigioso colégio de São Paulo.Por sorte, sua nota lhe tinha garantido um lugar na igualmente prestigiosa (ain-da que pelo avesso) “turma dos vagabundos”. Aqui, a mesma palavra que fez emer-gir o conflito longamente latente de Entre os muros da escola transformou-se emfonte de valor positivo para o amigo de meu filho. Como se pode constatar, osrótulos são, como nós, bipolares. Diferentes contextos podem conferir-lhes valo-res diametralmente opostos, em especial se se tratarem de rótulos coletivos.

Page 75: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

62 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Prosseguindo na pista de um “imaginário dos rótulos”, creio que se pode afir-mar, com base nas narrativas da história da humanidade, que o ato de designaruma pessoa por uma palavra ou expressão constitui uma prática tão antiga quantoa de produzir cultura, fato que, embora não justifique os excessos envolvidos, poroutro lado nos dá a medida do poder das fantasias e projeções que pululam portrás dos limites estreitos da dimensão objetiva da realidade. Em certas sociedadestradicionais, por exemplo, é preciso que a criança comece a manifestar certos atri-butos reveladores de seu caráter para que receba um nome seu, que deve ser ex-pressivo desses mesmos atributos. Não se pode negar que há, nessa conduta, umforte travo de rotulação determinista, já que o coletivo prevê que o Bravo, o Si-lencioso, a Generosa, o Astuto passem a vida agindo de acordo com a expectati-va construída para eles.

Nesse sentido, a rotulação, como amplificação, derivação ou degeneração daprópria nomeação do sujeito, parece refletir a tendência inata de nossa identida-de a enquadrar o outro numa categoria simbólica que reduza e simplifique o mis-tério insondável que ele representa para o eu. Do mesmo modo, ela sinaliza ainclinação do coletivo para inserir o indivíduo numa categoria que funcione comoum chip de controle do grupo (o superego de Freud), implantado no interior daidentidade individual. Essa inclinação preside, aliás, a própria gênese mítica dalinguagem. Dominamos simbolicamente a natureza porque Adão foi incumbidopor Jeová de nomear as espécies que habitavam e vicejavam no Éden. A propósi-to, foi ensinando o primeiro homem a reduzir a realidade infinita e cambiante domundo à convenção arbitrária e limitada da linguagem verbal que, no mito bí-blico, o Criador em pessoa orientou sua criatura a cercar com nomes a diferença(e a consequente ameaça) que a natureza representa para a cultura.

Outro modo de considerar nossa inclinação para reduzir a alteridade a umafórmula chapada e estável, por sinal um desdobramento desse exemplo mítico queacabo de especular, está relacionado ao fato de que rotular é uma forma de apri-sionar o outro num estereótipo. Daí talvez decorra nosso gosto imemorial pelosepítetos, aqueles títulos que costumavam acompanhar os nomes de pessoas e di-vindades (em geral, poderosas e ameaçadoras), a fim de designá-las por meio dealgum atributo físico ou psicológico especialmente marcante. Nem sempre eramepítetos lisonjeiros, como os que Homero criou para caracterizar os personagensde seus poemas, ou como os de Filipe o Belo e Alexandre o Grande. Havia tam-bém Joana a Louca, Vlad o Empalador, Carlos o Gotoso, Hades o Invisível... Aoque tudo indica, no caso da rainha de Espanha, pelo menos, o epíteto de Loucaseria, além de ofensivo, também equivocado e injusto. Um epíteto menos solene,

Page 76: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Conhecer é descolar rótulos 63

porém muito familiar e que nos diz respeito diretamente neste capítulo, aparecena deliciosa obra Diário de escola, em que o professor e escritor francês DanielPennac (2008) relata como certos professores o condenaram a ser Daniel o Ler-do, ao passo que outros o liberaram desse destino para que ele viesse a se tornarDaniel, o apaixonado professor de literatura do liceu.

No entanto, há sempre que se levar em conta, para além das visões do co-letivo, a das subjetividades afetadas. Essa tem sido, aliás, a inclinação da escola dapós-modernidade, heroicamente focada no sucesso do indivíduo em detrimentodo bem-estar do coletivo. Do lado do sujeito rotulado, a nomeação, fruto da as-sociação entre afeto (positivo e/ou negativo) e imaginação, pode igualmente mo-tivar tanto reações criativas quanto defensivas, agressivas e receptivas, de rejeiçãoou adesão, de repulsa ou entusiasmo, revestindo-se, portanto, de tonalidades orapositivas, ora perversas, perversas e positivas em dosagens variadas, mais perver-sas do que positivas quando se trata de uma escola que estimula intensamente acompetição e o individualismo, e onde, portanto, o outro terminará por se tor-nar, mais dia, menos dia, um oponente na disputa por uma vaga no ensino su-perior público ou no mercado de trabalho.

Nas relações entre alunos, o rótulo é a designação do coletivo (ou de um cer-to coletivo) ao sujeito e, portanto, uma manifestação do poder (afetivo e imagi-nativo) do grupo sobre ele. Dependendo de quem é rotulado e do modo peloqual o fenômeno é tratado no interior do grupo, ou seja, do sentido conferido aorótulo individual pela comunidade escolar, o mesmo pode simplesmente esvair-se, na ausência de uma contrapartida, perder a graça, não “pegar”, também por-que o sujeito rotulado recusa-se a entrar no molde que lhe é imposto de fora. Eassim desmantela-se o jogo. Dissolvido em seu próprio vazio, o rótulo emudece.Neste caso, ele pode até mesmo mobilizar o sujeito rotulado a fortalecer sua iden-tidade, querendo mostrar-se como acredita que, de fato, é, demonstrando commais veemência os atributos que considera legítimos em si, para que os outros oreconheçam e assim reconheçam que erraram, ao rotulá-lo. Por outro lado, umrótulo pode “pegar” de tal modo que o sujeito passa a se identificar com ele, acarregá-lo consigo como uma cruz ou um distintivo de “pertença pelo avesso”a um coletivo que muitas vezes o rechaça. Afinal, como bem pontuou GeorgeBerkeley, “ser é ser percebido”. Neste sentido, o rotulado pode apegar-se ao ró-tulo como a uma tábua de salvação, já que se trata quase de uma marca de dis-criminação e reconhecimento (ainda que perverso) por parte do grupo. A essesujeito caberá conformar-se ou deformar-se, para se amoldar à projeção do cole-tivo sobre ele.

Page 77: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

64 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Lembremo-nos ainda de que a adolescência é a etapa por excelência dasrotulações em nossa vida, quando o julgamento do grupo é tudo o que nos im-porta. Tanto que nos sentimos valorizados como sujeitos quando esse rótulo iden-tifica-nos com um grupo ao qual aderimos por opção, seja ele o dos “emos” ou odas “patricinhas”, dos “hipongos”, “nerds” ou “vagabundos”... Por outro lado (e estaera a visão da jornalista que puxou o fio desta narrativa), um rótulo pode imobi-lizar o sujeito que o recebe, a ponto de fazê-lo sentir-se aviltado pelo julgamentode valor expresso. Profundamente mobilizado pelo conteúdo afetivo e pelo ima-ginário do nome que o grupo lhe designou, o rotulado pode fechar-se, constran-gido, em sua concha, recusando-se a interagir e chegando mesmo a precisar deajuda externa para voltar a se expor no drama dos relacionamentos.

Neste ponto, minha reflexão torna-se memoriosa e retorna ao Cazuza deViriato Correia (1968), de onde retirei a epígrafe deste capítulo: uma obra infanto-juvenil que li aos dez anos de idade, no severo instituto de educação onde curseio ginásio. Um dos livros formadores de minha vida, lembro-me bem (mesmo por-que os ensinamentos que nos vêm pela via simbólica ficam gravados a fogo, comoimagens, em nossa memória afetiva) dos rótulos escolares colecionados pelo au-tor desse clássico que, infelizmente, tem andado ausente das listas de leituras es-colares do ensino fundamental.

Para começar, havia o memorável Pata-Choca, o aluno flácido e passivo doimplacável professor João Ricardo, sempre vitimizado por este e pelos colegas por-que, além de ser lerdo, ainda comia terra. Diferentemente da lentidão cognitivade Daniel Pennac, a do Pata-Choca era fruto de um grave quadro de verminose.Foi preciso que um velho médico que viajava numa “gaiola” e, por acaso, desem-barcara no vilarejo onde Pata- Choca e Cazuza viviam se unisse ao pai do primeiropara, juntos, desmontarem o rótulo, garantindo assim a transformação integral dePata-Choca em Evaristo.

Tendo passado alguns anos sem ver o colega, Cazuza o reencontra e não oreconhece no garoto esperto e saudável que, certo dia, grita seu nome na rua. Sur-preso com a mudança, Cazuza ainda chama o amigo pelo velho apelido. O paide Evaristo escuta a conversa e, ao final, depois que o filho se afasta, intervém jun-to a Cazuza, pedindo-lhe que não volte a usar o apelido. Não bastava curar-se dosvermes e retomar o crescimento normal para que seu filho fosse, de fato, Evaristo.Era preciso também que ele deixasse de ser o Pata-Choca para o coletivo que as-sim o designara um dia. A autoridade a um só tempo assertiva, sábia e afetuosado pai de Evaristo me comove, sempre que releio esse trecho. Seu gesto pedagó-gico para com Cazuza faz-me pensar que já passa da hora de a escola rever e rea-

Page 78: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Conhecer é descolar rótulos 65

bilitar certos parâmetros esquecidos do arquétipo do Pai, os quais efetivamente lhedizem respeito, começando por reinterpretá-los à luz da realidade atual e passandoa incorporá-los, em prol das crianças e jovens que deve educar para a vida.

Em Cazuza aparecem também o Fala Mole, o Bicho de Coco, o Perereca, oEspalha-Brasas, o Bicho Brabo, o Parafuso, todos eles meninos vivos, inteligentes,valentes, sofridos, lutando para construir a própria identidade no interior do gru-po, como também num mundo adulto áspero e severo para com as crianças emgeral, em quase tudo oposto ao mundo excessivamente complacente, de limitesfrouxos ou inexistentes, que construímos como reação destemperada ao que o an-tecedeu. Aqui me pergunto se algum professor, alguma vez, já se lembrou de lançarmão das deliciosas imagens de Cazuza para lidar, oblíqua, metaforicamente, coma realidade dos rótulos em sua sala de aula, entre outras tantas mazelas escolaresde que trata essa obra inestimável para nos ajudar a construir nossa sensibilida-de. Usar a narrativa de fantasia para equilibrar a realidade era, inclusive, uma dasestratégias bem-sucedidas de que Dona Nenê, professora de Cazuza, lançava mãopara cultivar valores com seus alunos. Imagino, porém, que, nestes tempos som-brios de hipocrisia travestida em ética, Cazuza corra o risco de se juntar a Caça-das de Pedrinho, de Monteiro Lobato, na lista dos clássicos infantis “politicamenteincorretos”.

O fato é que certas realidades, como defende Ítalo Calvino (1990), preci-sam ser olhadas através de um espelho, para não nos petrificarem com sua cho-cante contundência. Assim, narra esse autor, fez Perseu com a Medusa, quandoescolheu observar o reflexo do monstro no escudo, em vez de olhar diretamentepara ele, na hora de enfrentá-lo, mesmo porque, se o fizesse, acabaria transformadoem estátua. À mesma maneira, as imagens da arte e da literatura oferecem as me-lhores oportunidades, na escola, para a integração, criativa também porque indi-reta, não confrontadora, dos conteúdos da sombra à consciência. Como aindapontua Calvino, a recusa da visão direta não significa, de modo algum, a recusada realidade, já que Perseu bem sabe que está destinado a viver num mundo demonstros e “assume essa realidade que traz consigo como um fardo pessoal”.

Eis como as imagens da cultura, materializadas e vividas de viés, por meiodas narrativas dos mitos, dos contos de fadas, do cinema, da poesia e da literatu-ra (não como conteúdos de disciplina, mas como experiências simuladas na sub-jetividade e, portanto, ensaiadas na imaginação), das obras de arte, das imagensgeradas no fazer do ateliê (um espaço quase ausente da escola atual), dentre ou-tras possibilidades infinitas, oferecem continentes e significado para as experiên-cias negativas, propondo uma educação do cultivo da alma, oposta-complementar

Page 79: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

66 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

ao treinamento cognitivo, no interior da qual os opostos podem reunir-se, pormeio do símbolo, constelado e apropriado pelos envolvidos. Assim propõem, aofim e ao fundo e entre outros, Carl Gustav Jung e James Hillman. As imagens dacultura abrem a identidade delicadamente para a intervenção da alteridade, aju-dando assim a subjetividade (em formação e/ou ferida) a lidar também com suasdores, bem como inspirando o coletivo a ultrapassar as contradições que o imo-bilizam no debate racional estéril.

Como a realidade de Perseu, a nossa também inclui o fardo de ter de lidarcom os monstros do mundo. A assunção do aspecto monstruoso da realidade éuma etapa fundamental de uma educação que se pretenda complexa e, portan-to, humanizadora numa dimensão antropológico. A escola é uma instância quenos inicia também no mundo dos deuses e dos monstros, e não apenas no uni-verso asséptico e ordenado do conhecimento sistematizado. Além disso, como to-das as outras instituições sociais, a escola reflete e inflete os valores da sociedadee da cultura na qual está inserida e à qual se espera que ela sirva. Numa socieda-de moderada pelos interesses do marketing e que, portanto, pauta-se pela super-ficialidade nas relações, a cultura de massa só tem a oferecer estereótipos comoreferências e modelos de valor.

Longe de ser um paraíso, a escola é o que é: uma microdistopia que espelhae reproduz a sociedade em seus melhores e piores aspectos. Os professores tam-pouco são santos, defendendo-se como podem da alteridade ameaçadora: essa es-finge cada vez mais impenetrável chamada aluno, a questionar sua autoridade,despertar sua insegurança, resistir ao seu gesto formador. O professor tambémrotula para neutralizar simbolicamente o poder de aniquilação da alteridade. Naescola, exercitamos a socialidade, experimentamos as regras de convivência, apren-demos a respeitar e a nos darmos ao respeito, cultivamos as relações em meio àsturbulências que marcam o cotidiano de uma organização. Isso tudo e o contrá-rio disso. No processo nada pacífico de aprender a “ser com”, rotular e ser rotu-lado se constituem numa experiência inevitável, a qual pode, todavia, tornar-seprofundamente pedagógica para todos os envolvidos, dependendo de como a cul-tura escolar a elabora.

A meu ver, os rótulos não apenas podem perder seu poder, como tambémcolocá-lo a serviço da verdadeira educação, aquela que nunca se encerra e que deveproduzir resiliência3 em todos os envolvidos, além de bons resultados nas provas

3. “... processo que permite retomar algum tipo de desenvolvimento apesar de um traumatismoe em circunstâncias adversas” (Cirulnik, 2005: 4).

Page 80: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Conhecer é descolar rótulos 67

e vestibulares. Saber lidar com os rótulos que o coletivo nos atribui certamente éum aprendizado de grande valor que cabe à escola transmitir, mesmo porque elescontinuarão a aparecer pela vida afora, nos diversos contextos institucionais emque ainda haveremos de nos inserir. A vida escolar é, tão somente, um ensaio, porvezes bem realista, por vezes bastante fantasioso, do que virá depois. E esta é, ameu ver, uma das funções sociais e culturais mais relevantes da escola, enquantoorganização social e comunidade de seres humanos.

A competência para lidar com os rótulos e com outros inúmeros revezes ine-vitáveis que a vida nos reserva, implica aquisição de autoconhecimento e, destarte,aptidão para entrar em contato com nossas emoções, expressá-las criativamente eelaborar respostas ao mundo que, como alteridade, sempre haverá de nos provo-car e confrontar. Quando somos imaturos, são os adultos que nos devem servircomo tutores nesses processos. Teoricamente são os adultos aqueles que se auto-conhecem a ponto de serem capazes de elaborar respostas ao mundo, agindo, por-tanto, como os professores de Daniel Pennac que lhe asseguraram que sua lerdezapoderia ser superada, confiaram nele e o ajudaram a fazer a passagem.

Na busca por formar esses tão necessários tutores de resiliência4, a escola, queexperimenta a emoção como um fator de atraso indesejável nas programações eagendas, de desvio da produtividade e do bom desempenho, precisa rever urgen-temente suas posições. Cultivar as emoções e a imaginação, na escola e na família,no interior dessas culturas de formação e iniciação, seria um imenso passo no sen-tido de desmobilizar o poder dos rótulos (e muitos outros poderes sombrios), como fito de criar oportunidades menos previsíveis, porém muito valiosas, de educar atodos os membros da comunidade, sempre que novos rótulos (e outras Medusas)aparecerem. Numa escola que valoriza e estimula a cooperação e a tolerância à di-ferença com a mesma dedicação com que investe na formação do espírito críticoe na acuidade do raciocínio, os rótulos certamente emergirão, contudo dificilmenteterão tanto poder para petrificar.

Espera-se assim que, como adultos alçados à condição de guias (e não ape-nas de eficientes transmissores de conteúdos), os professores estejam mais cons-cientes para os gatilhos que, dentro e fora, ativam esse mecanismo defensivo quetanto empobrece as relações no interior das instituições em geral. E possam aju-dar seus alunos a fazê-lo, desde que também estejam dispostos a considerar ho-nesta e criativamente essa experiência como uma oportunidade pedagógica, sempre

4. “Eles (os professores) tornam-se tutores de resiliência para uma criança ferida quando criam umacontecimento significativo que assume um valor de referência” (Cirulnik, 2005: 68).

Page 81: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

68 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

que ela se manifestar. Aparentemente paramos de rotular quando nos dispomosa libertar o outro do estereótipo que lhe impusemos (também para projetar neleas coisas de que não gostamos em nós mesmos), quando nos lançamos à aventu-ra de conhecer o outro e de nos reconhecermos nele, para o bem e para o mal.Rotular é, pois, um modo de exercer poder. Em contrapartida, conhecer é des-colar rótulos, enxergando o sujeito por trás deles, mas também das embalagensque os sustentam.

Há pouco fiz referência à dimensão latente da cultura organizacional, tam-bém denominada dimensão do imaginário reprimido, também chamada deafetual-fantasmática, o polo oposto complementar da instância dominante, cons-ciente, técnico-racional. Dar lugar, voz e sentido aos fantasmas que assombrama educação e as culturas escolares significa olhar para imagens, projeções e fanta-sias que perpassam o cotidiano, de modo que, quando estas se manifestarem,emersas da sombra do ego escolar, saibamos como elaborá-las e integrá-las. Umrótulo equivocado e, no mais das vezes, ofensivo e intimidador, sobrevive mal a umarelação consistente; todavia, uma relação consistente pode até mesmo revelar o avessodo rótulo, no plano da realidade. Quem, afinal, não viveu a experiência de come-çar o ano odiando (e rotulando) um professor ou aluno, para aprender, pouco a pou-co, a admirá-lo, reconhecendo também seu próprio erro de julgamento?

Boris Cirulnik (2005: 54) afirma ainda que a escola é a primeira grande pro-vação social na vida da criança (onde ela receberá, no mínimo, um “rótulo especi-alizado”, do tipo Lento, Hiperativo, Disléxico, fruto de uma Família Disfuncional...).Mas sabemos também que a escola é, na mesma medida, um lugar onde essacriança terá acesso a tutores de resiliência (na forma de pessoas encarnadas oude produções da cultura) que a ajudem a dar significado às provações, para queestas “assumam um valor de referência” em sua vida. Sim, a escola é ambivalente,como tudo mais que diga respeito a nós, seres humanos: ela envolve a provaçãoe sua superação, as quais, juntas, constroem um oxímoro5: uma genuína expe-riência pedagógica e simbólica, baseada na união dos contrários e, portanto, naultrapassagem das dicotomias.

Na mesma escola onde Daniel Pennac foi posto à prova, ele descobriu a saí-da. As provações sempre ocorrerão, e as rotulações certamente estarão entre elas. Adiferença é que aprender a lidar com os monstros deve ser parte imprescindível docurrículo desse amplo e contínuo processo de humanização ao qual chamamos edu-

5. “.... em que dois termos antinômicos se associam opondo-se, como as vigas de um telhado sesustentam, porque são erigidas uma contra a outra” (Cirulnik, 2005: 3).

Page 82: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Conhecer é descolar rótulos 69

cação, e que somente se encerra (pelo pouco que sabemos) com nossa morte. Nes-se sentido, o educador torna-se um mediador entre a provação e sua superação, pormeio da construção do significado: uma mensagem que, para ser compreendida eiluminar a experiência, necessita de uma inteligência constituída na convergênciade cognição, emoção e imaginação.

Referências Bibliográficas

CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras,1990. p. 16-17.

CIRULNIK, Boris. O murmúrio dos fantasmas. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

CORREIA, Viriato. Cazuza. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968.

HILLMAN, James. Psicologia arquetípica. São Paulo: Cultrix, 1992. p. 27-28.

PENNAC, Daniel. Diário de escola. São Paulo: Rocco, 2008.

SANCHEZ TEIXEIRA, Maria Cecília. Gestão da escola como prática simbólico-educativa: sen-tido e poder. Cadernos de Educação, Cuiabá: EdUNIC., v. 9, n. 1, p. 37-8, 2005.

Page 83: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook
Page 84: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

PARTE II

COM OS OLHARES VOLTADOS ÀS

CULTURAS ESCOLARES

Page 85: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook
Page 86: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

CULTURA E IMAGINÁRIO DE UMA INSTITUIÇÃO

EDUCATIVA: O OLHAR DAS CRIANÇAS1

Iduina Mont´Alverne Chaves 2

[...] A escola poderia, desde logo, tornar-se o lugar de uma pedagogia contraditória em que a criança seria alternativamente

conduzida a apropriar-se da razão e do sonho.

(Wunenburger, 2003: 58)

(...) o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoasnão estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que

elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam. Verdade.

João Guimarães Rosa (Grande Sertão: Veredas)

Introdução

O objetivo deste trabalho é apresentar a cultura que vem se instituindo no Co-légio Universitário Geraldo Reis (COLUNI), especialmente pelo olhar das crianças edos adolescentes. Ressaltar, também, as conquistas e as mudanças ocorridas na dinâ-mica do movimento instituinte à luz do que se estabelece nas normas instituídas alivivenciadas. Mostrar a expressão imagética das crianças que (re)afirmam os seus sen-timentos sobre a escola e seu corpo administrativo e pedagógico. Enfim, contar umpouco da história da trajetória desse espaço educativo.

Acredito, firmemente, que para falar do cotidiano de uma instituição é precisoestar e participar da sua rotina para que se possa entender as nuances das forças apa-rentemente contraditórias do fazer racional da prática pedagógica com o fazer “irra-cional”, emotivo, afetual, das vivências pessoais que se entrecruzam no tempo e noespaço escolar. A culturanálise de grupos foi fundamental para esta compreensão.

A Culturanálise de Grupos, delineada por Paula Carvalho (1990), é umaabordagem da teoria e da prática organizacional em seus efeitos institucionais. Ela

1. Este trabalho é um dos produtos da pesquisa PIBIC/CNPq desenvolvido pela Grupo de Pes-quisa Cultura, Memória, Imaginário e Educação, sob a minha coordenação.

2. UFF – Universidade Federal Fluminense. Faculdade de Educação. Niterói, RJ, Brasil.

Page 87: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

74 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

aponta a dimensão simbólica do discurso e da ação de uma dada organização. Ela re-pensa a escola-organização no âmbito das práticas simbólicas e educativas, ligando-as ao imaginário sociocultural e organizacional. Permite a compreensão da culturadas organizações educativas, na medida em que estas são mediadoras da reproduçãoe da reinterpretação da cultura dominante e do social, pelos grupos no seu coti-diano (p. 17).

A culturanálise é um instrumento metodológico que permite compreendero nível de funcionamento dos grupos, tanto no aspecto patente – polo das for-mas estruturantes que abrange os códigos, as formações discursivas, os projetos dainstituição, ou seja, o nível racional – quanto no aspecto latente que se expressanas vivências, na dimensão imaginal e afetual dos grupos. Esses dois aspectos serelacionam de forma dialógica, fazendo emergir, a partir da troca simbólica en-tre a dimensão normativa e a dimensão da vivência, o mapa da existência e daconsciência dos grupos nas instituições. Essa compreensão do real vivido pelosgrupos, numa escola, por exemplo, traz a possibilidade de um trabalho mais or-gânico, mais adequado, mais solidário e mais comprometido com propostas querespeitem as diferenças dos profissionais que nela trabalham.

Essa heurística permite o conhecimento da cultura da instituição – os mo-dos de pensar, sentir e agir de todos os que fazem a escola. Também traz à tonao nível do desejo e estabelece o vínculo entre a razão e a emoção/sensibilidade in-dispensável, penso, para uma educação crítica e criativa. Uma educação para a sen-sibilidade. É um caminho teórico-metodológico que busca o acolhimento dosprincípios da complexidade, que minha produção científica tem proposto nosmovimentos integradores entre homem-natureza-cultura, real e imaginário, razãoe emoção, norma e vida.

A forma narrativa é usada para o relato do conjunto das informações sobrea escola, coletadas durante a pesquisa, por apresentar-se como a mais adequada,pois lida com fatos, ideias, teorias, sonhos, medos e esperanças, na perspectiva davida de alguém e no contexto das suas emoções. A esse respeito MacIntyre (1981:83) afirma que a história torna-se o gênero básico e essencial para a caracterização dasações humanas. Para Ricoeur (1984: 85), existe uma correlação entre a atividadede narrar uma estória e o caráter temporal da experiência humana que não é pu-ramente acidental, mas apresenta uma forma de necessidade transcultural. Recen-tes pesquisas, nesse assunto, clarificam que a narrativa é essencial ao propósito decomunicar quem somos nós, o que fazemos, como sentimos e por que seguimosum curso de ação e não outro.

Page 88: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Cultura e imaginário de uma instituição educativa 75

As imagens levantadas no contexto escolar e as pequenas narrativas dos es-tudantes apresentam respostas arquetípicas, cujos significados profundos dão pistaspara a compreensão dos seus modos de pensar, sentir e agir (cultura), dos seus tra-jetos (antropológicos) entre a norma e a vida no cenário da escola e da dinâmicainstituído-instituinte ali vivenciada. A pesquisa ressalta o desafio de uma edu-cação que valorize a imaginação, o sentimento, a razão sensível pautada nosensinamentos da pedagogia do imaginário para a formação dos professores.

Uma Breve História da Escola

O Colégio Universitário Geraldo Reis nasceu de um convênio entre a Univer-sidade Federal Fluminense (UFF), assinado em 2006, com o Estado e herdou ascrianças (em número mais ou menos de cem) e os professores estaduais lotados noCIEP de mesmo nome, onde agora funciona. Em dezembro de 2006, um sorteiopermitiu a entrada de cerca de 150 crianças de diferentes classes sociais atraídas pelorespaldo e pela chancela da Universidade Federal Fluminense. Atende do 1o ao 8o

anos do ensino fundamental, e a UFF está suprindo o quadro de professores edemais funcionários do colégio, bem como das ações voltadas para a recuperaçãodo espaço físico, que estava amplamente deteriorado, para que o colégio funcio-ne de forma adequada. É uma escola híbrida, com crianças de classes sociais bemdiversificadas. Em março de 2007, fui nomeada Diretora Geral do Colégio, poisassumi o cargo de coordenadora da Coordenação de Professores da UFF, ligada àPROAC/Reitoria.

De um início conturbado pela entrada da universidade na escola, já vislum-bramos a esperança de um trabalho mais orgânico, mais relacional. A culturanálisede grupos, o instrumento metodológico desta pesquisa, nos deu esta visão: a di-mensão do patente, das normas e dos projetos da instituição e a dimensão do ladolatente, que era preciso ser iluminado, que é a vida do cotidiano do colégio. Noescopo deste trabalho não é possível abordar tudo o que vimos, aprendemos e sen-timos com os profissionais e com as crianças do colégio. Mas foi fundamental paraa nossa ação como pesquisadora e para subsidiar este estudo/apresentação.

Imagens e Sentimentos: os começos

Dos professores

A professora Maíra, lotada na escola, falou que a formação sempre contribuipara o crescimento profissional, porém, a prática é muito diferente da teoria. Acho que

Page 89: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

76 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

aprendi mais na prática, pois a teoria estava distante do que eu vivia no dia a dia,“no chão da escola”. A professora Suzana disse que sua formação foi boa, mas nãoestava conseguindo usar o que aprendeu na prática e afirmou: não sei como pren-der a atenção dos alunos e fico muito incomodada com isso. Alguns atrapalham mui-to as aulas. Outra colega da escola afirmou, também, que o curso de Pedagogianão a preparou, suficientemente, para enfrentar a disciplina, a violência, o domí-nio de turma e a lidar com as classes populares na escola.

Para a professora Adelaide, os três maiores desafios que ela enfrenta no co-tidiano desse CIEP e que deveriam ser alvo do curso de formação de professo-res são: a violência, a dinâmica de projetos e a interdisciplinaridade. Há, também,ao lado do sentimento de impotência, de cansaço, por parte dos professores,uma vontade de acertar, de ajudar as crianças das classes populares que estão naescola a experienciarem um espaço mais digno, mais alegre, mais respeitoso emais compreensivo. Expressaram nas suas imagens/textos sobre o colégio ilus-trações de pássaros (cegonha), de sol, de estrela, que simbolizam os seus dese-jos de (re)nascimento, de luz e de tempos melhores para o convívio escolar.

Das crianças, apresento as narrativas. Elas também retratam os inícios.

15 de junho de 2007.

Iara, Lina e Ana são nomes fictícios dados por mim a três adolescentes docolégio que convidei para uma conversa. Uma das minhas tentativas, como gestora,de evitar uma prematura exclusão, delas, da escola. Seus nomes fazem parte de umalista de estudantes considerados prejudiciais ao bom andamento da escola.

Solicitei que me falassem sobre o Colégio Universitário (antigo Centro In-tegrado de Educação Pública – CIEP): (a) as mudanças ocorridas nestes últimosquatro meses e (b) sugestões para melhorar o ambiente escolar.

Iara tem 15 anos. É aluna repetente por duas vezes. Disse não gostar da es-cola ser em tempo integral, pois não tem tempo para brincar. Nota mudanças na co-mida, na limpeza e na parte interna do colégio. Sugeriu mais aulas de EducaçãoFísica e de materiais para brincadeiras.

Lina tem 13 anos e só repetiu uma vez. Está no colégio há cinco anos e fa-lou com um ar de crítica: a escola tem agora muitas crianças “não me toque”; nãopodemos brincar junto com os riquinhos, brancos, bem de vida, que não moram nomorro como nós. Batemos neles, sim, porque eles nos tratam mal, falam que somosfaveladas, nos desprezam. Lina acha que a escola mudou para melhor até no com-

Page 90: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Cultura e imaginário de uma instituição educativa 77

portamento das crianças, na comida, e a sua sugestão é que façam alguma coisa paraque essas crianças mudem o tratamento com elas.

Ana fez 13 anos e estuda no colégio há quatro. Falou de maneira firme: Estaé uma escola boa. É o meu futuro. A escola mudou, tem menos briga. Quero mais au-las que incluam brincadeiras.

Assim, ficou evidenciado que os profissionais da escola reconhecem que seusmétodos de ensino estão ultrapassados, o trabalho árduo com as crianças de difí-cil comportamento, a violência em todos os espaços da instituição, a falta de tempopara estudo, o lidar com o fracasso escolar, o cansaço em todos os sentidos. Aci-ma de tudo, a entrada da universidade na escola criou uma expectativa grande ea esperança de tempos melhores e mais fáceis na dinâmica escolar cotidiana.

Como diretora da escola, busquei, com compreensão e lucidez, fazer algo quetornasse mais humana, mais alegre, mais feliz a vida das crianças e dos professo-res que estão sob a minha gestão. A fim de encarar tal desafio, alguns projetos,em parceria com professores da UFF, estão sendo desenvolvidos para, numa açãocoletiva – com os pais, com o corpo docente, o corpo discente, técnico-adminis-trativos, funcionários –, construirmos uma escola inclusiva, que respeite, de fato,as diferenças das crianças e adolescentes do colégio. São projetos que buscam de-senvolver a sensibilidade das crianças e dos professores, que promovem ações in-tegradas, que dão espaço ao lúdico, ao prazer, à criatividade. Estou lutando,bravamente, com todas as minhas forças, para que todas sejam dignamente res-peitadas nas suas diferenças.

Três anos se passaram

Os trechos da narrativa de duas professoras falam um pouco de como estãoavaliando a sua formação no curso de graduação em Pedagogia e as suas ações nocolégio, hoje, 2009.

A professora Eva falou:

A escola é um espaço dinâmico. Preparada nós nunca estamos. A gente aprende acada dia. Cada dia aparece uma coisa diferente. Você às vezes se depara comalgumas dinâmicas aqui na escola que você para e pensa: isso eu não aprendi nomeu curso de graduação. Isso eu não sei. Como é que eu resolvo? Por essa razãoacho super-relevante o espaço de troca que o COLUNI oferece. Porque aquilo queeu não sei eu posso aprender com o outro colega que já teve essa experiência e tal.Porque dificuldades, é claro, que a gente tem. Você pode ter acabado de sair de

Page 91: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

78 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

uma formação, às vezes você tem dez anos de formação, mas a cada ano que passaas coisas mudam, as crianças mudam. Então, eu acho que pronto e acabado agente nunca está. As trocas ajudam muito nesse sentido. É muito gratificantetrabalhar nesta escola.

A respeito da formação docente, Gi disse.

A gente não pode colocar qualquer pessoa para trabalhar em qualquer lugar. Nósnão recebemos a mesma formação. Eu penso que a formação que a universidadedá – estamos falando do curso de Pedagogia – ela é uma formação teórica, que eureconheço a importância. A teoria tem a sua importância, mas, aqui dentro daescola, essa teoria tem que ser ressignificada, tem que servir para alguma coisa.Então nesse ponto eu vejo que a formação peca, deixa esse défcit na medida dequase distância da prática. Eu vejo que a prática é pobre em narrar, em viver aexperiência. A gente precisa estar neste espaço aqui (da escola) para saber o que é.A gente precisa trocar experiências com quem está neste espaço. Prática é vocêsentar numa sala, num conselho de classe e ouvir o professor narrando o que é serprofessor, quais são os desafios que a gente encontra, como é que a gente tentasuperar esses limites e prosseguir. Esta escola tem proporcionado esse espaço para atroca, para a formação continuada dos professores. Estou muito feliz aqui.

EU e o COLUNI

Uma das heurísticas da pesquisa foi profundamente reveladora dos sentimen-tos das crianças. Solicitei que pensassem algo e fizessem o desenho sobre o quesentiam a respeito da escola, em outras palavras, o encaminhamento foi: “EU EO COLUNI”.

Algumas imagens/símbolos contidos nos desenhos e nas falas dos estudan-tes do COLUNI, que serão apresentados mais adiante, ajudam a traduzir o esforçodeles para decifrar e subjugar um destino que lhes escapa através das obscurida-des e das esperanças que os rodeiam. Dentre elas, escolhi apenas as imagens queestão consteladas em torno da logomarca UFF, do diploma e do capelo e das cri-anças de mãos dadas. Entendo com Wunenburger e Araújo (2006: 15) que asimagens visuais e linguísticas contribuem para enriquecer a representação domundo (Bachelard, Durand) ou para elaborar a identidade do eu.

Segundo Durand (1988), a imaginação se revela como o fator geral deequilibração psicossocial e sua função primeira seria a busca do Sentido, do “hu-mano absoluto”. Para esse autor (1989: 41), os conjuntos simbólicos são essasconstelações em que as imagens vêm convergir em torno de núcleos organizadores

Page 92: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Cultura e imaginário de uma instituição educativa 79

que a arquetipologia antropológica deve esforçar-se por distinguir através de to-das as manifestações humanas da imaginação. Com Teixeira (2002: 19) entendo,também, que a “imaginação não se reduz à memória, antes é a memória que co-lore a imaginação com resíduos a posteriori (...) imaginação e memória formamum complexo indissolúvel, no qual a lembrança tem sempre um valor de imagem”.

É importante deixar claro a noção de símbolo. Gilbert Durand (1988:37) considera os símbolos, mediadores da energia psíquica, como a reunião de con-trários mais fundamentais, a saber, a energia eterna da alma e as manifestaçõestemporais que a imaginação colhe nas percepções, as lembranças da experiênciae a cultura. Acrescenta, ainda, que é pela interpretação dos símbolos que se rea-liza a individuação, isto é, o encontro da energia eterna, fundo do inconscientenão diferenciado e sua refração através das situações temporais diferenciadas.

O símbolo da UFFsímbolo da UFFsímbolo da UFFsímbolo da UFFsímbolo da UFF, que aparece bem grande nos vários desenhos, ex-pressa o orgulho que os estudantes sentem de pertencerem à Universidade Fe-deral Fluminense e de carregarem no peito (camisa) a sigla UFF. Nas suas palavras:

Essa camisa do COLUNI é bem bonita e me deixa feliz.

O uniforme da escola é o primeiro que me vem à cabeça quando falam do COLUNI.

Mascote tirado da minha imaginação com o símbolo da UFF.

A entrada na escola, com portas e janelas abertas, simboliza para os estu-dantes:

Um lugar de aprendizagem.

Respeito à educação.

Page 93: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

80 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

A imagem de um CIEP na fachada da escola passa um sentimento ruim – nuncaeu imaginei estudar num CIEP, mesmo sendo da UFF. Mas para uma escolapública aqui a educação aqui é muito boa; eu gosto dos professores, amo meusamigos. Não é preconceito.

Lugar que eu tenho meus melhores amigos, que eu amo muito e também lugaronde eu aprendo e tenho ótimos professores.

O COLUNI para mim é um lugar de aprendizagem. Que ajuda as crianças seinspirarem, que vejo ser o futuro.

Do diploma e do capelo as afirmações:

A escola: como ela é grande! A escola melhorou muito; quero sair da escola forma-do. Sonho de toda criança do COLUNI.

Os recreios eu gosto muito. Mas acho que devemos estudar. O COLUNI para mimé um lugar de aprendizagem. Eu já vou ser advogada.

Page 94: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Cultura e imaginário de uma instituição educativa 81

Eu gosto da hora de assistir aula, pois semessa hora eu não seria nada. O COLUNIrepresenta para mim um lugar de novos co-nhecimentos, você sempre aprende algumacoisa nova, arranja mais amizades, maiseducação;

Eu acho que esse colégio é muito maneiro.

Essa escola representa para mim: é aquique tenho os melhores amigos e aprendo ascoisas para ser alguém na vida;

O Colégio é muito importante para meufuturo. A Escola significa os meus estudos. Eos meus estudos me darão um bom futuro.A escola representa para mim os meus pri-meiros passos para o futuro.

Dentre outras imagens que também se mostraram constantes nos desenhosdas crianças podemos citar: da biblioteca e do livro, da quadra, das crianças demãos dadas, da árvore.

Page 95: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

82 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Nesses núcleos de imagens, identificamos suas configurações míticas queestão ancoradas em imaginário sintético que, de acordo com Durand (1997),é aquele que atende à necessidade humana de ligação, de conciliação de contrá-rios, de retorno, de comunicação, de religar as ações exteriores à tomada de cons-ciência, o que faz integrando os modos heróico (luta) e místico (aconchego).

Assim se encaminham para simbolismos de um imaginário heróico, da ordem,a ordem parece, aqui, ser "divina", estabelecida pelo soberano, e segui-la (os exem-plos de honra e dever) condição única para conseguir triunfar na vida e, assim, po-der "gerar" o próprio destino. E, também, para o imaginário místico (da ordem dosensível), pois apresentam as janelas abertas para o ar e para a luz que simbolizamreceptividade, aconchego, alegria, felicidade. A gesta, nesse núcleo semântico, tudoindica ser tanto de natureza heróica (de luta), quanto de natureza mística (de aco-lhimento), numa (de)monstração de elementos que as crianças valorizam, uma pe-dagogia da razão e do sonho inscrita no currículo/ações da escola.

Não estariam os estudantes do COLUNI, nas suas representações da escolae nas suas pequenas narrativas, enunciando e anunciando a harmonia dos contrá-rios? Não estariam eles mostrando a felicidade de pertencerem a uma casa de es-tudos que valoriza a todos e a cada um? Não estariam eles se autoafirmando naescola e no mundo? Não estariam eles apontando para o mérito do acolhimentoe das relações amistosas e respeitosas na escola como um todo? Não estariam eles,na simplicidade de suas manifestações simbólicas, reforçando o valor do estudo,da brincadeira, da conversa, da arte, do lúdico, do respeito, dos conflitos, da con-vivência pacífica, da leitura, do diálogo, do orgulho de pertencer a uma escola dequalidade, da amizade, do amor?

Page 96: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Cultura e imaginário de uma instituição educativa 83

Isso está evidente quando apresentam, nas suas criações imagéticas, har-monicamente, a quadra e a sala de aula, a biblioteca e o pátio, a briga e a jus-tiça, o uniforme e a alegria da brincadeira, o presente e o futuro, o sol e a sombrada árvore.

Acredito que a escola não está falida. Mas há outros caminhos e outros mé-todos. Outra pedagogia. É com ela que estamos reencantando uma escola, oCOLUNI. Para tal, tivemos de encaminhar ações que integrassem escola, famí-lia, bairro, centros de saúde e comunitários, igreja. Um trabalho planejado, or-ganizado. Foi preciso criar espaços de encontro, de convivência que reunisse ascrianças e os jovens numa convivência prazerosa com atividades de lazer e de cul-tura. Foi necessário o estabelecimento de uma política educacional que tenha porbase a participação, que acate as diferenças, o conflito, a razão e a imaginação,como parte construtiva da vida em sociedade.

Creio, fortemente, que é preciso lançar um novo olhar para dentro da esco-la a fim de que os currículos dos cursos de formação respeitem a complexidadeinerente a ela. Penso que deveria ser uma formação complexa que respeite o prin-cípio da relação. Uma relação que se estabelece a partir do contexto, instituindo-se na dinâmica do processo e dos movimentos da comunidade na qual se insere.Há, assim, uma abertura para o inusitado, o inesperado. Para a diversidade quea escola oferece. Enfim, a construção em processo de uma Pedagogia da razão edo sonho, cimentada em princípios éticos.

É esse o sentido das minhas buscas e dos meus estudos sobre cultura, edu-cação e do imaginário e do meu entendimento do mestre como um condutor dealmas.

Referências Bibliográficas

BACHELARD, Gaston. La poétique de la rêverie. 4. éd.. Paris: PUF, 1968.

CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.

CHAVES, Iduina Mont´Alverne. Vestida de azul e branco como manda a tradição: cultu-ra e rituais na escola. Rio de Janeiro: Quartet e Intertexto, 2000.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: Edito-ra José Olympio, 1999.

DUBORGEL Bruno. Imaginário e pedagogia. Lisboa: Instituto Piaget, 1992.

DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix, 1988.

________. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

MacINTIRE, J. Narrative in teaching. Chicago: University of Chicago Press, 1981.

Page 97: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

84 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

MORIN, Edgar. O problema epistemológico da complexidade. Lisboa: Publicações Euro-pa-América, 1997.

________. A religação dos saberes: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Bra-sil, 2001.

PAULA CARVALHO, J. C. de. Antropologia das organizações e educação: um ensaioholonômico. Rio de Janeiro: Imago, 1990.

RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação. Trad. de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1984.

ROSA, J. G. Grande sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

SANCHEZ TEIXEIRA, M. Cecília. Imaginário e memória docente: o mestre e a pedagogia comomistério – a trajetória de Beatriz Fétizon. In: FÉTIZON, Beatriz. Sombra e luzes: o tempo ha-bitado. São Paulo: Zouk, 2002.

WUNENBURGER, Jean-Jacques; ARAÚJO, Alberto Filipe. Introdução ao imaginário. In: ARA-ÚJO, Alberto Filipe; BAPTISTA, Fernando Paulo. (Coords.). Variações sobre o imaginário:domínios, teorizações, práticas hermenêuticas. Lisboa: Instituto Piaget, 2003.

________. Educação e imaginário: introdução a uma filosofia da imagem. São Paulo: Cortez,2006.

Page 98: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

VIOLÊNCIA NA ESCOLA:O MEDO NOSSO DE CADA DIA*

Maria Cecília Sanchez Teixeira**

A flor da pele e ao fundo da alma – assim é a violência nocotidiano, uma violência que corre e ricocheteia sobre todas as

superfícies de nossa existência e que uma palavra, um gesto, umaimagem, um grito, uma sombra que seja capta, sustenta e relançaindefinidamente, e que, no entanto, desta espuma dos dias, abre à

alma vertiginosos abismos em mergulhos de angústia que nos fazemdizer: “Sou eu mesmo toda essa violência?”

(Dadoun, Roger, 1998: 43)

Introdução

Este capítulo tem por finalidade apresentar parte dos resultados da pesqui-sa “As máscaras da violência e o imaginário do medo na escola”1. O objetivo domeu subprojeto era compreender como as imagens simbólicas da violência e domedo se manifestavam nas representações e vivências cotidianas de alunos, parti-cularmente nas suas relações com os professores e com a escola.

A pesquisa teve por suportes teóricos básicos a Teoria Geral do Imagináriode Gilbert Durand e estudos sobre a violência, particularmente os de MichelMaffesoli e Roger Dadoun. Nessa perspectiva, um enfoque hermenêutico-simbó-lico permitiu a apreensão, no imaginário dos alunos, das imagens de violência,medo e solidariedade, por meio de entrevistas semidirigidas e do Teste do Sim-bolismo Animal. O recurso escolhido para a garimpagem das imagens e símbo-los foi o de seguir as pistas deixadas pelas palavras no texto, tentando através delasadentrar no imaginário dos nossos sujeitos.

* Artigo publicado na Revista @mbienteeducação, São Paulo, v. 2, n. 1, p. 39-51, jan.-jun. 2010.

** Livre docente pela USP-SP, Departamento de Administração Escolar. Coordenada pela Profª.Drª. Icléia Rodrigues de Lima e Gomes e financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa doEstado de Mato Grosso (FAPEMAT), a pesquisa se realizou em seis escolas de ensino funda-mental e médio da cidade de Cuiabá, entre outubro de 2002 e agosto de 2005.

Page 99: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

86 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Numa perspectiva durandiana, parti do pressuposto de que é através doimaginário que nos reconhecemos como humanos, conhecemos o outro e apreen-demos a realidade múltipla do mundo. Em outras palavras, entendo que o ima-ginário tece as redes simbólicas que interferem na nossa leitura e organização domundo e sustentam os comportamentos e as ações humanas em sociedade, den-tre as quais a violência e as reações que ela provoca.

A Cultura da Violência

Analisando a violência do ponto de vista do seu dinamismo interno, Maffesoli(1981, 1987, 2005) a considera como uma herança comum a todo e qualquer agru-pamento humano, tendo uma função estruturante em sua constituição. Ela é for-ça e potência, motor principal do dinamismo social, que remete ao confronto eao conflito. A luta é o fundamento de toda relação social e se manifesta em ins-tabilidade, espontaneidade, multiplicidade, desacordos, recusas. Essa violênciafundadora e arcaica, à qual o homem está submetido desde tempos imemoriais,faz dele um ser de violência, um homo violens.

Contudo, embora inerente ao ser humano, a violência é considerada decor-rente muito mais de fatores externos sobre os quais o homem parece não ter qual-quer domínio do que da sua natureza, privilegiando-se o que Dadoun (1998)chama de “concepção eruptiva” da violência. Por isso, paradoxalmente, ao longoda história da humanidade, todas as tentativas de humanizar o homem, arran-cando-o desse terror originário hipotético, redundaram em mais violência, empráticas de exterminação muito concretas, que resultaram num processo de as-sustadora desumanização (Dadoun, 1998).

Por essa razão, em todos os tempos, as sociedades procuraram controlar aviolência, como nos mostra Balandier (1997). Diz o autor que, nas sociedadestradicionais, ela sempre esteve presente, mas sob controle: do homicídio (nãoreprovado quando sancionado) aos confrontos internos entre grupos e à guerra(orientada para o estrangeiro, inimigo real ou potencial); da violência formadora(meio de educação e socialização de adolescentes) à violência oculta, insidiosa,que tomava a forma de feitiçaria, ou aberta, jamais inteiramente contida. Ela eradomesticada, tratada ritualmente como forma de prevenir-se contra a sua subver-são ou perturbação. Contudo, isso não vem ocorrendo nas sociedades modernas,nas quais o monopólio e a racionalização da violência, além do desejo e da neces-sidade de “domesticá-la” a qualquer custo, desencadeiam ainda mais violência,rompendo o equilíbrio proporcionado pelos rituais existentes nas sociedades tra-dicionais e aumentando os índices de criminalidade e a insegurança.

Page 100: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Violência na escola 87

A exacerbação dessa violência estrutural e fundadora, nos dias atuais, deuorigem a uma verdadeira cultura da violência. Figueiredo (1988) alude a um “es-tado” ou “condição” de violência que passa a se constituir em um ingrediente per-manente da cultura, marcando o regime de sociabilidade dominante. Segundo esseautor, uma condição de violência pode ser ostensiva, visível ou mais ou menos dis-simulada, no entanto, em razão de sua própria cronicidade, um estado de violênciaincorporado à cultura tende a se tornar visível. Nessa perspectiva, a violência éestruturante e constitutiva tanto das subjetividades como da socialidade1.

Nessa cultura de violência, os atos violentos podem se manifestar claramente,“dar a sua cara”, cotidianamente, nas ruas, em casa, na escola ou em qualquer ou-tro espaço social. De acordo com os relatos dos alunos participantes da pesquisa,a violência se concretiza na forma de: roubos, vandalismos, brigas, assaltos, badernas,depredação, estupros, agressão, violência doméstica, ataques nas ruas, violência sexualna família, espancamento, assassinato, maus tratos dos pais. Outras vezes ela se es-conde atrás de diferentes máscaras, em atitudes que não se pretendem violentas,mas que trazem em si o germe da agressividade. Para os alunos, elas se materiali-zavam em: ameaças do professor, desatenção dos pais, arrogância, desrespeito, brinca-deiras agressivas, destruição da imagem de uma pessoa na internet, violência verbal,discriminação contra negros, mulatos, gordos e deficientes, violência moral, insultos,xingamentos, desigualdade, ostentação dos mais ricos, falta de respeito, agressões ver-bais, xingamento do professor.

Há também causas bem mais concretas que fazem dos indivíduos ou agen-tes ou vítimas de atos violentos. Dentre as causas mais citadas pelos alunos des-tacam-se: o desemprego, a fome, o capitalismo, o uso de drogas, a falta de projetossociais na escola e na sociedade, a falta de segurança, de policiamento, de progra-ma educacional de resistência às drogas, de apoio às vítimas da violência, de po-liciamento no bairro, de iluminação pública. Contudo, as representações dosalunos sobre a violência muitas vezes são reproduções estereotipadas do discursoveiculado na mídia, na escola, no bairro:

“Eu nunca participei de nenhum tipo de violência, mas com certeza já sofriindiretamente. Com relação à violência, estudar nesta escola é sofrer indire-tamente e até mesmo diretamente, a convivência neste ambiente é péssima(...). Todos nós que convivemos neste ambiente somos atacados moralmentee até mesmo fisicamente” (JV A1).

1. Socialidade é aqui entendida no sentido que lhe dá Maffesoli (2005), como expressão coti-diana e tangível da solidariedade de base, ou seja, como experiência social compartilhada pelamultiplicidade de redes sociais formadas por pequenos grupos no cotidiano.

Page 101: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

88 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

A predominância da violência, mesmo que mascarada, tal como é retratadapelos alunos contribui para reforçar o imaginário do medo, gerador de mais in-segurança e de mais violência.

O Imaginário do Medo

De acordo com Delumeau (2001), o medo é um componente maior da ex-periência humana, apesar de todos os esforços feitos para superá-lo, uma emoção-choque frequentemente precedida de surpresa, provocada pela tomada de consciênciade um perigo, presente e urgente, que ameaça a conservação do indivíduo ou dogrupo. Pode tornar-se um hábito de temor às ameaças reais ou imaginárias, e a suapresença pode ser identificada nos comportamentos de grupos, desde os povos pri-mitivos até a sociedade contemporânea, nos setores mais diversos da experiência co-tidiana. Como lembra o autor, os antigos viam no medo uma punição dos deusese, por isso, os gregos trataram de divinizá-lo através de Deimos (Terror) e Phobos(Medo)2, esforçando-se por conciliar-se com eles em tempos de guerra. Projetar nosdeuses os seus medos foi uma forma encontrada para lidar com eles.

Citando Sartre, Delumeau (op. cit.) lembra que todos os homens têm medoe quem não o sente não é normal. Sentir medo não significa falta de coragem. Dessaafirmação o autor conclui que “(...) a necessidade de segurança é, portanto, funda-mental; está na base da afetividade e da moral humanas. A insegurança é símbolode morte, e a segurança símbolo de vida” (p. 19). Por isso, entende que foi um errode Freud não ter levado a análise da angústia e de suas formas patogênicas até oenraizamento na necessidade de conservação ameaçada pela previsão da morte. Aocontrário dos outros animais que não antecipam a morte, o homem sabe desde muitocedo que vai morrer um dia, e essa consciência gera a angústia.

Ele é, pois, o único ser no mundo a conhecer o medo num grau tão temívele duradouro. Enquanto o medo das espécies animais é único, idêntico a si mesmo,imutável – o de ser devorado –, o medo humano, filho de nossa imaginação, não éuno, mas múltiplo, não é fixo, mas perpetuamente cambiante. Ao se tornar presado medo, o sujeito corre o risco de se desagregar, sua personalidade se fende. Co-letivo, o medo pode conduzir a comportamentos aberrantes e suicidas, dos quais aapreciação correta da realidade desapareceu (idem).

2. Deimos e Phobos eram filhos de Ares, deus da guerra, com Afrodite. Segundo Brandão (1997)não possuem um mito próprio, mas acompanhavam o pai onde houvesse batalha e derrama-mento de sangue.

Page 102: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Violência na escola 89

Nessa reflexão com Delumeau, é importante distinguir entre medo e angús-tia, que, para a psicanálise, são fatos psíquicos diversos. Enquanto o medo se re-fere a um objeto conhecido, despertando pavor, temor, espanto, terror, a angústiaestá associada ao desconhecido, é uma espera dolorosa diante de um perigo tan-to mais temível quanto menos claramente identificado e desperta inquietação,ansiedade, melancolia. Mas porque é impossível conservar o equilíbrio internoafrontando por muito tempo a angústia incerta, infinita, indefinível, o homem atransforma e a fragmenta em medos precisos de alguma coisa ou de alguém, ouseja, “(...) o espírito humano fabrica permanentemente o medo para evitar umaangústia mórbida que resultaria na abolição do eu” (1997: 26).

Podemos ver nessa concepção convergências com a teoria durandiana sobre opapel determinante da angústia original na constituição do imaginário e na criaçãohumana. Para Durand (1997), a angústia original é provocada pela consciênciado Tempo e da Morte e pelas experiências negativas advindas dessa consciência.O desejo fundamental da imaginação humana será sempre reduzir essa angústiaexistencial por meio do seu princípio constitutivo, que é representar, simbolizaras faces do Tempo e da Morte a fim de controlá-las e às situações que elas repre-sentam. Mas, em virtude da impossibilidade desse controle, ou seja, de distinguire encarar o desconhecido e os perigos que ele pode representar, a imaginação criaimagens nefastas da angústia. E entendo que, ao simbolizá-la, o imaginário a trans-forma em medo, que se projeta não mais no desconhecido, mas na animalidade agres-siva (símbolos teriomorfos), nas trevas terrificantes (símbolos nictomorfos) e na quedaassustadora (símbolos catamorfos).

Para enfrentar a angústia, o homem desenvolve três atitudes imaginativasbásicas que, para Durand (1997), correspondem às três estruturas do imaginá-rio: a heróica, na qual a imaginação combate os monstros hiperbolizados por meiode símbolos antitéticos: as trevas são combatidas pela luz e a queda pela ascen-são, acionando imagens de luta, suscitando ações e temas de luta do herói con-tra o monstro, do bem contra o mal; a mística, na qual a imaginação, animadapor um caráter participativo e sob o signo da conversão e do eufemismo, inverteos valores simbólicos do tempo e assim o destino não é mais combatido, mas as-similado; e a sintética ou disseminátoria3, na qual a imaginação procura domaro destino, reunindo no tempo dois universos míticos antagonistas – o heróico e

3. De acordo com Durand (1982), o termo disseminatório, que empresta de Derrida, é mais apro-priado para designar esta estrutura, porque nela ocorre uma disseminação, uma difusão dos sen-tidos num processo de dramatização, numa dinâmica que integra polaridades que mantêm asua heterogeneidade.

Page 103: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

90 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

o místico – sem que eles percam sua individualidade e potencialidade. Como ve-mos, a imaginação desempenha papel importante, seja na criação da angústia, sejano seu controle através da tentativa de eliminá-la, eufemizá-la ou dominá-la. Es-sas três estruturas são, para o autor (op. cit.), núcleos que organizam a simbolizaçãoem torno de três esquemas matriciais básicos: o separar (heróico), o incluir (mís-tico) e o integrar (sintético ou disseminatório).

Ao elaborar a sua teoria do imaginário, Durand (op. cit.) parte da hipótesede que existe uma estreita concomitância entre os gestos do corpo, os centros ner-vosos e as representações simbólicas. Em outras palavras, o imaginário se produzno que ele chama de trajeto antropológico, o qual junta, em uma representaçãoou atitude humana, o que vem da espécie zoológica (o psíquico e o psicofisiológico)e o que vem da sociedade e da sua história (o sociocultural), de modo que o ima-ginário não é nem mera criação individual, nem simples produção social.

E é nessa troca incessante entre o biopsíquico e o sociocultural que, no meuentender, se manifesta a agressão, a qual, segundo Lorenz (1974), é parte essen-cial da organização dos instintos de proteção da vida, não sendo, portanto, umasimples pulsão de morte como queria Freud. Ao contrário, é possível identificarnesse instinto uma pulsão de vida, uma busca pela individuação, pela diferencia-ção, mobilizada pela estrutura heróica do imaginário. Já a pulsão de morte seriaimpelida pelo desejo de identificação com o todo indiferenciado, próprio da es-trutura mística.

Marcado irremediavelmente por dimensões conflitantes, o homem transmiteaos agrupamentos humanos e à sociedade o seu destino trágico: a busca da con-ciliação entre seus instintos e pulsões e as imposições e determinações do seu meio.Contudo, quando natureza e cultura parecem irreconciliáveis, o equilíbrio entreo eu e o outro é rompido e a agressividade deixa de ser uma forma de proteção ede construção da identidade, de potência criadora, transformando-se em violên-cia contra o outro. Ao negar o outro, ela provoca a destruição dos laços sociais.O outro não é mais uma pessoa, mas um objeto que permite ao indivíduo vio-lento liberar sua força bruta nele (Bergeret et al., 2000).

É essa agressividade transformada em violência que materializa a angústia emmedo real ou imaginário. Medo que gera impotência e insegurança que, por suavez, geram mais medo e mais violência, num círculo vicioso indefinido. Acrescen-te-se a essas causas naturais biopsicológicas as situações sociais e culturais que geraminsegurança, aumentando a angústia existencial e a necessidade de exorcizar omedo pela imaginação, e podemos, então, avaliar o papel que o imaginário domedo exerce nas sociedades modernas.

Page 104: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Violência na escola 91

Cotidiano e Medo: Ouvindo os Alunos

Um medo ancestral, já aqui referido, enraizado no corpo e no imaginário ealimentado por ações violentas do meio, parece marcar negativamente a vida dosalunos, alvos de nossa pesquisa. Dos alunos pesquisados, 53% afirmam já ter sidovítima de algum tipo de violência.

De que têm medo os alunos?

“Ah! Geralmente eu tenho medo quando eu tô andando sozinha de noiteaqui no bairro (...) fica tudo escuro bem perto onde eu moro” (DF A8).

“Eu tenho medo que alguém aí, com um revólver, atirando, caçando alguémaqui que estuda nessa escola...” (DF A9).

“Do que que eu tenho mais medo? É de andar sozinha. Eu não gosto deandar sozinha, assim... Eu fico com medo de alguma coisa acontecer comigo(...). Eu me sinto despreparada pra andar por aí sozinha, assim” (SG A5).

“Da violência, né? (...) De um dia ser... sofrer com uma bala perdida, porque(...) sempre acontece aqui [na escola] né? (...) brigas de gangues, rachas degangues (...). Eu posso olhar pra uma pessoa (...) que não gostou, já vem (...)tomar satisfação, porque só olhei pra essa pessoa. Então... é isso, né? Eutenho medo realmente (...) tenho até um receio de... vim estudar. Semprepenso que eu tô sonhando com morte, com violência, porque tô sendo pres-sionado (....) essa violência que eu tô vendo, convivendo...” (JV A1).

Ancorada nessa dimensão natural e cultural aflora a sua condição trans-his-tórica, entendida por López (1988) como uma qualidade social que emerge oudesaparece, eu acrescentaria: que aumenta ou diminui em função da relação realou imaginária com o exterior. O medo faz parte de nossa natureza, mas seus ob-jetos são social e culturalmente construídos, assim como as formas de organiza-ção social para combatê-lo.

Constituindo-se em realidade e representação, seu fundamento empíricoserve de base e de justificação para a criação de um imaginário do medo. Segun-do a autora (op. cit.), o medo opera como mediação simbólica entre o indivíduoe a sociedade, consolidando crenças, dúvidas, fantasmas, articulando-os em umatotalidade que guarda significações coletivas acumuladas e serve de guia para in-terpretar experiências. Ele é palpável em todos os aspectos da vida cotidiana e en-gendra formas subjetivas particulares. O impacto que ele causa caracteriza-se pordois aspectos.

Page 105: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

92 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Primeiramente, transforma as relações sociais, fazendo de cada indivíduouma vítima atual ou potencial, ou um suspeito, colocando uns contra os outros.Eis alguns exemplos trazidos das entrevistas:

“Sim, já fui confundido com bandido e os policiais me humilharam” (DCA21).

“Um colega meu tinha roubado uma carteira minha e eu que apanhei por-que ele chegou perto e os cara pensou que eu estava no meio” (CN A16).

“O bairro é violento, o bairro tem drogas, o bairro tem prostitutas, temtudo. O que eu mais tenho medo é de morte. Pode tá correndo tudo bem,uma aula tranquila, alguém ser visado por um tiro... Alguma coisa, assim, eutenho medo (...)” (DC A21).

“Tenho muito medo. Tenho medo, assim... de ser assaltada, quando tiversaindo da escola e indo pra casa e isso acontecer comigo (...). Ser roubada”(DF A7).

“Eu tenho medo de ter alguma (...) briga comigo e eu for... porque eu soucabeça estourada também e revidar (...) é isso aí, é o meu maior medo” (SGA6).

Em seguida, o medo cria novos lugares de encontro, desenvolvendo formasde socialidade e de identificação, originando aventuras comunitárias de proteçãocoletiva que mobilizam os grupos em torno das figuras do medo. E a escola, em-bora ela própria vítima da violência, configura-se como espaço protetor e acolhe-dor para parte dos alunos:

“Sinceridade? A escola e os professores são a proteção de todas essas criançashoje, que tão aqui hoje, sem brincadeira nenhuma” (DC A19).

“Dentro da escola eu acho que tá bem seguro, os bairros tudo aqui. Entãoconhecimento assim, de falta de segurança eu não tenho. Tá tudo em ordem(...) eu tô como se tivesse dentro da minha casa” (DC A19).

“Não, aqui dentro da escola me sinto... bem seguro” (SG A22).

“Olha, num... temo nada. Eu me sinto bem segura como eu disse, né, aquidentro” (SG A23).

“Acho que aqui eu tô seguro assim... Eu nunca pensei nisso, quê que eutenho mais medo... Acho que eu não tenho nada, não” (SG A24).

“O que eu tenho mais medo... nesta escola, é quando eu saio dela, porque aviolência geralmente tá do lado de fora (...). Às vezes tá aqui dentro, nós não

Page 106: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Violência na escola 93

percebemos, tá do nosso lado (...). Então eu tenho medo é quando eu saio daescola. Não é quando eu tô na escola” (SG 25).

“Eu não tenho da violência em si dentro da escola porque aqui nós somosmuito bem protegidos pela... pela direção, pelas normas, pelas regras daescola” (SG A6).

O imaginário do medo provoca demandas sociais por proteção, e não ape-nas da classe média. Justamente as populações mais atingidas pela força policial,pelo aparato do Estado, são as que pedem mais proteção policial e ação do Esta-do. Justifica também demanda de legalização do porte de arma, a criação de em-presas de segurança e o apoio à privatização da polícia. Cria uma indústria desegurança, grades, seguros, alarmes, que fornece uma falsa sensação de proteção.Por fim, legitima discursos oficiais de políticos, da mídia, de chefes religiosos, sobreo aumento da violência e da criminalidade como resultado da decadência moralda sociedade (López, 1988). Tais discursos, embora ofereçam uma visão estereo-tipada das causas da violência, criam uma narrativa que é reproduzida por todasas camadas sociais e pelos nossos alunos.

O resultado é o fortalecimento do imaginário da ordem que justifica a do-minação institucional, a diminuição dos espaços sociais, o encarceramentogradativo e voluntário das vítimas prováveis, servindo de combustível para ocrescimento e a continuidade do individualismo, característico das sociedadesmodernas, ou para a tribalização em pequenos grupos fechados que, geralmen-te, tomam o aspecto de gangues. As estratégias apontadas pelos alunos para ocombate à violência confirmam essas afirmações: não sair à noite, um pouco defé, um pouco de sonho, programas sobre segurança, maior incentivo do governo àeducação e à cultura, acompanhamento familiar psicológico, segurança, policiamento,campanhas de conscientização, não usar joias, advertências, suspensão, expulsão, ori-entação, prevenção, educação, catraca na escola, segurança na porta da escola, tra-balho de conscientização com as crianças, Igreja, Escola Bíblica de Férias, Programasde Erradicação do Trabalho Infantil, capoeira, caratê...

Conforme López (1988), as narrativas sobre o medo são criadas e recriadascoletivamente, de modo que é possível identificar uma grande uniformidade em re-latos, tanto de pessoas que foram vítimas de atos violentos como daquelas que nãoo foram. Elas interiorizam representações do que acontece no caso de violência, quaissentimentos e a conduta da vítima e suas reações. O mecanismo de base é a iden-tificação com a vítima e a reapropriação do incidente, o que gera uma socializaçãoda insegurança pela qual, solidariamente, antecipamos a nossa vitimização futura.Tais representações estavam presentes nas falas de nossos entrevistados:

Page 107: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

94 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

“... a gente sai de casa... Sai vivo, mas não sabe se volta vivo. Então a gente jásai imaginando que está saindo, mas não sabe se vai voltar, pelo menos vivo(...) de levar um tiro na sala de aula, no corredor, na saída (...) De balaperdida, fora da escola” (CN A14).

“Ah! Eu tenho medo de ser estuprada, só isso, mais Deus me protege (...).Eu tenho... A gente tem medo da vida em si, do que ela vai nos proporci-onar dia após dia. A bíblia diz: ‘Basta a cada dia o seu mal’ (...). O meumaior medo é o que vai acontecer na minha vida, no meu convívio com aspessoas...” (SG A3).

Cada ação concreta de agressão ou violência permite ritualizar uma amea-ça, justificando a reprodução do medo e a adoção de medidas de segurança. Sãomedidas que, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que acentuam a inseguran-ça e o medo, provocam a banalização da violência. Eis algumas respostas dos alu-nos, quando perguntados se já foram vítimas de violência:

“Sim, mas uma coisa normal. (...) Eu apenas apanhei em casa” (CN A15).

“Eu fui estuprada, mas ninguém sabe” (CN A14).

“Eu e mais alguns amigos fomos atacados por uma gangue que simplesmen-te não foram com a nossa cara (...) nas imediações da escola” (CN A13).

Pois bem, as reflexões e os depoimentos apresentados confirmam a relaçãoentre a consciência do perigo, o imaginário do medo e a cultura da violência queparece invadir a escola (Teixeira & Porto, 1998). Vejamos, agora, como o imagi-nário dos alunos organiza as suas experiências escolares e as relações pedagógicascom os professores.

Imaginário, Relação Pedagógica e ExperiênciasEscolares de Solidariedade e de Conflito

Partindo do pressuposto de que o jogo relacional pedagógico é mediado pelaorganização profunda do imaginário de professores e alunos, procurei constatar seas relações entre esse grupo de alunos e seus professores eram positivas ou nega-tivas, afetivas ou agressivas, de aceitação ou de rejeição, e se estariam ou não con-tribuindo para reforçar a cultura da violência e o imaginário do medo na escola.

De acordo com Jacquet Montreuil (1998), às três estruturas durandianas –a heróica, a mística e a sintética ou disseminatória – correspondem modos deinteração e de relação com o mundo que regulam, ao mesmo tempo, o equilíbrio

Page 108: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Violência na escola 95

individual e social, favorecendo a atribuição de sentido e a apropriação de conhe-cimentos: o “modo heróico”, baseado na necessidade de se identificar, se distin-guir, de afrontar, de agir, de se afirmar; o “modo místico”, baseado na necessidadede se recentrar, de se recolher, na introspecção no nível individual e de partici-par, cooperar, integrar-se no nível grupal e social; e o “modo sintético”, baseadona necessidade de integração dos modos heróico e místico, de ligação, de retor-no, de comunicação, de religar as ações exteriores à tomada de consciência.

Para apreender a influência desses “modos de ser” na relação pedagógica, useio Teste do Simbolismo Animal4, teste projetivo que se vale da narrativa, do dese-nho e dos recursos simbólicos sugeridos pelo animal, para provocar uma represen-tação fantasmática das relações entre alunos e professores na situação pedagógica. Pormeio da projeção nos animais, o teste favorece a emergência de imagens, a mani-festação dos afetos e de outros sentimentos que, de modo oculto, rege a relaçãopedagógica.

A escolha justifica-se porque esse simbolismo, além de servir em seus aspectosnegativos para despertar a angústia, enraiza-se em camadas profundas arquetípicasque lhe dão um caráter arcaico e universal, apesar de demasiado comum e, apa-rentemente, vago e banal. Em sua dimensão arquetípica, o simbolismo animal éuniversal e intemporal, mas o sentido é atribuído pelo meio sociocultural, razãopela qual pode apresentar sentidos diversos em diferentes culturas. Além disso, oanimal é suscetível de ser sobredeterminado por características particulares que nãose ligam diretamente à animalidade. A sobreposição de motivações provoca sem-pre uma polivalência semântica, agregando a um mesmo animal tanto valoraçõespositivas como negativas. Ademais, segundo Ronecker (1997, p. 14), o “(...) sim-bolismo animal reflete não os animais, mas a idéia que o homem tem deles, e tal-vez definitivamente, a idéia que tem de si próprio”. O homem se vale da analogiacom os animais para denunciar ou exaltar, através do simbolismo, suas virtudese defeitos.

No entanto, é preciso esclarecer que alguns alunos tiveram dificuldades decompreender as consignas do teste, fato que, se não invalidou totalmente algunsresultados, dificultou a sua análise. Apesar disso, foram extraídos de cada teste ostraços, ainda que tênues, dos simbolismos atribuídos aos animais.

A escolha dos animais, indicativa da relação que os alunos estabeleciam comos professores, pode ser visualizada no Quadro 1.

4. Este teste foi adaptado da Prova das Alegorias Animais, criada por Marcel Postic (1993).

Page 109: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

96 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Quadro 1 Incidência dos animais.

Aluno Professor

Animal no % Animal no %

Pássaro 3 14,28 Águia 2 04,76

Colibri 1 04,76 Pássaro 1 02,38

Peixe 2 09,52 Beija-flor 1 02,38

Girino 1 04,76 Papagaio 4 09,52

Chitar 1 04,76 Sabiá 1 02,38

Leão 1 04,76 Macaco 3 07,14

Raposa 1 04,76 Zebra 1 02,38

Gato 3 14,28 Elefante 1 02,38

Tigre 1 04,76 Tigre 4 09,52

Cão 4 19,04 Cobra 4 09,52

Tartaruga 1 04,76 Gato 6 14,28

Urso 1 02,38

Cão 5 11,90

Coelho 1 02,38

Cavalo 2 04,76

Preguiça 1 02,38

Leão 3 07,14

Burro 1 02,38

Total 21 100 42 100

Como o simbolismo animal é ambíguo, os alunos sempre optaram porsimbolizações positivas. Observamos que 52% dos animais escolhidos para osrepresentarem – cão, gato, pássaro e peixe – apresentam simbolizações positi-vas, revelando seu desejo de paz, cuidado, proteção, solidariedade, próprio doimaginário místico, ou seja, um modo místico de ser no mundo que procuraeufemizar o poder terrificante que os animais poderiam simbolizar. Já a esco-

Page 110: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Violência na escola 97

lha dos animais selvagens para se representar – 19% – indica o desejo e a von-tade de lutar contra a violência com os próprios recursos, mesmo que escassos,revelando uma atitude ancorada em um imaginário heróico, ou seja, um modoheróico de ser no mundo.

Se, como acreditamos, o homem se vale da analogia com o animal para de-nunciar ou exaltar, por meio do simbolismo, suas virtudes e defeitos, então po-demos indagar se a escolha de animais domésticos não seria reflexo da domesticaçãodo instinto, levada a efeito pela cultura. De acordo com Freud (1996), a subli-mação do instinto é um dos pilares da civilização, visto que esta promove umareorientação do mesmo para o trabalho. Contudo, quando as condições de vidanão oferecem objetos libidinais adequados para que o instinto seja sublimado, elase transforma em repressão. Repressão que, muitas vezes, impede o desenvolvimen-to de recursos necessários à sobrevivência.

No caso dos professores representados, houve distribuição mais equilibradaentre as escolhas: 40% de animais domésticos e 37% de selvagens. Tais dadospodem sugerir que parte dos alunos considera que seus professores também sãoimpotentes para combater a violência, enquanto outros neles depositam a espe-rança do combate à mesma.

Vejamos agora no Quadro 2 a incidência dos simbolismos positivos e nega-tivos:

Quadro 2 Simbolismos positivos e negativos.

Simbolismos positivos Simbolismos negativos

Aluno Professor Aluno Professor

PássaroColibriPeixe

GirinoCãoGato

ChitarLeão

RaposaTigreUrso

Tartaruga

PássaroÁguia

Beija-florGatoCão

CoelhoCavaloTigreLeão

Macaco

PapagaioBurroLeãoZebra

MacacoElefantePreguiça

Page 111: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

98 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Nesse quadro é interessante notar que os alunos só expressaram represen-tações positivas de si próprios, o que pode sugerir a dificuldade para enfrentara sombra ou o que Zweig e Abrams (1994) chamam de “lado escuro da natu-reza humana”. A sombra pessoal é a parte do inconsciente que representa as ca-racterísticas positivas ou negativas que o ego se recusa a admitir e que só sãodescobertas em confrontos desagradáveis com o outro, como no caso das situa-ções de agressão e violência.

Relativamente aos professores, embora a incidência dos simbolismos positivostenha sido significativa, a dos negativos também foi alta. No primeiro caso, os sim-bolismos positivos revelaram uma relação positiva apoiada em sentimentos de ad-miração, confiança, reconhecimento, respeito, gratidão, proximidade, solidariedadee esperança de ajuda no combate à violência. No segundo, demonstram uma rela-ção negativa, depreciativa mesmo, apoiada em sentimentos de desconfiança, desprezo,distanciamento, medo e falta de esperança de qualquer tipo de ajuda. Talvez pos-samos ver nesses simbolismos negativos a projeção da sombra do aluno no pro-fessor, pois, como mostra Whitmont (1994), a sombra é o impulso arquetípicode buscar o bode expiatório, de encontrar alguém em quem projetar aquilo queo indivíduo e o grupo rejeitam como perigoso, indesejável e incompatível compadrões socioculturais.

Na adolescência, a representação que o aluno tem do professor interfere naorganização das suas produções imaginárias. Misturam-se aspectos cognitivos eafetivos com sentimentos de atração, de rejeição, de ambiguidade e incerteza.Assim, as relações reveladas pelo teste foram, ao mesmo tempo, positivas e ne-gativas. Uma relação totalmente negativa só ocorreu em três casos. Em outros,relações de solidariedade e de conflito revelam a ambiguidade do imaginário dealguns alunos.

Focando a análise no tema da violência, através do teste foi possível identi-ficar: 1) imagens místicas, reveladoras do desejo de paz, proteção, aconchego,amor, que predominavam sobre as imagens heróicas de luta; 2) uma relação pe-dagógica de modo geral positiva e solidária entre alunos e professores; 3) a pre-sença de conflitos latentes gerados por sentimentos de desconfiança e de desprezopor parte de alguns alunos com relação a certos professores, decorrentes, prova-velmente, da violência do poder instituído incorporada pelos professores; 4) re-presentação ambivalente sobre a escola e os professores, nos quais projetavam, aomesmo tempo, a esperança no combate à violência e o temor de que fossem der-rotados por ela.

Page 112: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Violência na escola 99

Concluindo

Por meio dos relatos dos alunos foi possível perceber o esgarçamento do te-cido social no ambiente no qual viviam, deixando clara a presença da violência,fazendo de todos, ao mesmo tempo, vítimas e suspeitos. Suas representações sereferiam tanto às vivências concretas de situações violentas, a maioria delas no pró-prio bairro ou mesmo no ambiente familiar, como às narrativas veiculadas peloimaginário do medo, de forte apelo emocional, por meio das quais procuravamexorcizar o medo.

No entanto, é interessante observar que eles se referiam sempre à violênciapraticada pelo outro, portanto, à violência que estava “fora”, fora do aconchego dolar, fora da escola; mesmo quando mencionavam a violência doméstica, era sem-pre do outro que falavam, poucas vezes de si próprios, o que, mais uma vez, su-gere a projeção da sombra que não conseguiam encarar em si próprios e em suasfamílias.

Contudo, é preciso ressaltar que, apesar da insegurança real e do imagináriodo medo, consideravam a escola como um espaço seguro, protegido das ameaças vin-das de fora ou dos atos de incivilidade praticados pelos colegas. A maioria sentia-se segura dentro dos muros da escola e confiava nos professores para ajudá-los avencer as dificuldades e o medo da violência. Tal percepção, porém, não os im-pedia de terem uma consciência difusa da impotência da escola para lidar com aviolência que rondava seus muros e até mesmo a sala de aula.

Em suma, podemos dizer que, embora boa parte deles vivesse em situação devulnerabilidade social, as imagens de solidariedade predominavam sobre as de con-flito, sobretudo na sua relação com a escola e com os professores, depositários de suasesperanças de vencer a violência.

Portanto, mesmo que à primeira vista os dados obtidos com a pesquisa pos-sam sugerir que nada de novo foi encontrado, ao tentarmos compreender comoo imaginário do medo interferia nas relações sociais e nas experiências cotidianasdos alunos, pudemos constatar que, numa relação muito mais antagonista quecomplementar entre seus desejos e pulsões (quase sempre frustrados) e as impo-sições, ameaças e restrições do meio, eles tentavam construir uma relação positi-va com a escola, procurando sobreviver com humanidade e dignidade, apesar domedo e da violência.

Page 113: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

100 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Referências Bibliográficas

BALANDIER, Georges. A desordem: elogio do movimento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

BRANDÃO, Junito. Dicionário mítico-etimológico. Petrópolis: Vozes, 1997.

DADOUN, Roger. A violência: ensaio acerca do “homo violens”. Rio de Janeiro: DIFEL, 1998.

DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. SãoPaulo: Cia das Letras, 2001.

DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fon-tes, 1997.

________. Mito, símbolo e mitodologia. Lisboa: Presença, 1982.

FIGUEIREDO, Luis Cláudio. Adolescência e violência: considerações sobre o caso brasileiro. In:ENCONTRO ADOLESCÊNCIA E VIOLÊNCIA: CONSEQÜÊNCIAS DA REALIDADEBRASILEIRA, 2., 1996, São Paulo. Comunicação... São Paulo, 1996 (dig.).

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Edição standar brasileira das obras psicológi-cas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

JACQUET-MONTREUIL, Michelle. 1998. La fonction socialisante de l’imaginaire. Thèse(Doctorat en Sociologie) – Université de Savoie, France.

LÓPEZ, Maria Milagros. Notre peur de tous le jours: l´imaginaire de l´insecurité et la militarisationde la vie quotidienne à Porto Rico. In: COLLOQUE INTERNATIONAL DE SOCIOLOGIEDE LA VIE QUOTIDIENNE, 1998, Paris. Comunicação... Paris: Sorbonne, Université RenéDescartes, 1988 (dig.).

LORENZ, Konrad. A agressão, uma história natural do mal. Lisboa: Moraes, 1974.

MAFFESOLI, Michel. A sombra de Dioniso. São Paulo: Zouk, 2005.

________. A violência totalitária, ensaio sobre antropologia política. Rio de Janeiro: Zahar,1981.

________. Dinâmica da violência. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, Edições Vértice,1987.

POSTIC, Marcel. O imaginário na relação pedagógica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.

RONECKER, Jean-Paul. O simbolismo animal, mitos, crenças, arquétipos, folclore,imaginário. São Paulo: Paulus, 1997.

TEIXEIRA, Maria Cecília S.; PORTO, Maria do Rosário S. Violência, insegurança e imagináriodo medo. Cadernos CEDES n. 47: Na mira da violência: a escola e seus agentes. Campinas:CEDES, p. 51-66, 1998.

WHITMONT, Edwards. A evolução da sombra. In: ZWEIG, Connie; ABRAMS, Jeremiah(Orgs.). Ao encontro da sombra, o potencial oculto do lado escuro da natureza hu-mana. São Paulo: Cultrix, 1994. p. 36-42.

ZWEIG, Connie; ABRAMS, Jeremiah (Orgs.). Ao encontro da sombra, o potencial ocultodo lado escuro da natureza humana. São Paulo: Cultrix, 1994.

Page 114: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

REFLEXOS DA CULTURA ESCOLAR SOBRE O

PROCESSO DE AVALIAÇÃO PARTICIPATIVA:EXPERIÊNCIA DE APLICAÇÃO DO INDIQUE NAS

ESCOLAS MUNICIPAIS DE ITUIUTABA, MG

José Abílio Perez Junior*

O objetivo central do presente texto é trazer um relato/reflexão sobre a in-fluência que o imaginário e a cultura escolar exerceram sobre a condução e os re-sultados obtidos pelo processo de avaliação participativa realizado em Ituiutaba,MG, por meio da metodologia do Indique (Indicadores da Qualidade na Edu-cação), entre os anos de 2007 e 2008. Escrevo o presente relato na qualidade deconsultor contratado pela Secretaria Municipal de Educação, Esporte e Lazer(SMEEL), a quem coube o financiamento do projeto.

Dentre minhas responsabilidades, em conjunto com a equipe da SMEEL1,incluem-se o planejamento, a coordenação, o acompanhamento da execução con-junta em todas as escolas municipais e a sistematização dos resultados da avalia-ção. Tais resultados, por sua vez, visaram fornecer subsídios para a elaboração deações no nível da gestão democrática das escolas, bem como contribuir com a for-mulação de políticas públicas municipais.

O processo do Indique, amplamente participativo, envolveu todos os se-tores da vida escolar, desde diretoras e equipes gestoras até professores, pais, fun-cionários e alunos. Embora os alunos fossem, em sua maioria, das séries iniciaisdo ensino fundamental, de 6 a 11 anos, sua participação foi constantemente es-timulada e suas vozes se fizeram ouvir nos fóruns de participação democrática.

* Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da USP junto ao CICE – Centro de Estu-dos do Imaginário, Cultura e Educação. Doutorando em Ciências da Religião pela Universi-dade Federal de Juiz de Fora.

1. Agradeço, especialmente, às amigas e companheiras: Luciane Dias Ribeiro, Beatriz OliveiraMenezes e Lilian Maria de Morais Teodoro; e ao apoio do secretário municipal, Isaías TadeuAlves de Macedo. Agradeço, igualmente, a Joana Buarque de Gusmão e a Nino Bernini, as-sessores da Ação Educativa.

Page 115: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

102 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

No trabalho de aplicação da avaliação, foi possível observar como a dinâmicaprópria da cultura e do cotidiano de cada escola refletia-se nos diferentes modospelos quais o instrumento de avaliação participativa era absorvido.

Durante todas as fases do trabalho, desde o levantamento preliminar deinformações e preparação até a execução, acompanhamento e interpretação dosresultados, diversas observações e anotações foram realizadas com base em fun-damentos teóricos dos estudos da cultura e imaginário, aos quais sou vincula-do paradigmaticamente. Tais anotações foram utilizadas para a elaboração dealguns aspectos dos relatórios enviados à Secretaria. No entanto, dado o formatosucinto então adotado com o intuito de preservar a concisão e a objetividade,não foi desenvolvida a reflexão teórica que subsidiou esses aspectos das análises.Pretendo, no presente texto, relatar e trazer à tona questões pontuais, tratadasa título de exemplificação, de dinâmicas culturais então observadas cujos refle-xos nos resultados finais da avaliação podem ser comentados com o subsídioparadigmático dos trabalhos relacionados à Cultura e Educação gestados noCICE (Centro de Estudos do Imaginário, Culturanálise de Grupos e Educação),da Universidade de São Paulo2.

Considerando-se o registro final da aplicação, elaborado coletivamente emcada escola e encaminhado à secretaria e à consultoria, poderemos constatar queos resultados obtidos materializam traços de uma dinâmica que lhes ultrapassa.Durante a aplicação, o levantamento dos problemas suscita dinâmicas da cultu-ra escolar, e o modo de operação dessas dinâmicas se reflete nos resultados obti-dos. Tal constatação, ao contrário do que poderia ocorrer a um ideário tecnicista,foi fator da mais alta relevância relacionado à aplicação do Indique, pois possibi-litou o início do processo de transformação da realidade vivida. Essa questão serámelhor detalhada adiante.

Com o intuito de alcançar maior coerência expositiva, o presente texto seráorganizado de acordo com os seguintes tópicos:

1. Apresentação do Indique enquanto instrumento de avaliação participativa,o processo que ocasionou sua criação, o modo de aplicação e natureza dosresultados.

2. Descrição da aplicação do Indique em Ituiutaba.

2. O CICE-FEUSP (Centro de Estudos do Imaginário, Cultura e Educação da Faculdade deEducação da USP) foi fundado em 1992 pelo professor José Carlos de Paula Carvalho, emconjunto com Maria do Rosário Silveira Porto, Maria Cecília Sanchez Teixeira e Helenir Suano.O centro é vinculado ao CRI/Grenoble (Centre de Recherche sur L´Imaginaire, UniversitéStendhal, Grenoble 3), fundado em 1966 por Gilbert Durand.

Page 116: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Reflexos da cultura escolar sobre o processo... 103

3. Interpretação de alguns resultados obtidos, considerados em relação àdinâmica do imaginário escolar observado por ocasião da aplicação.

Como os relatórios finais encaminhados à SMEEL pela consultoria (Perez,2008) buscaram uma abrangência de todos os pontos principais da avaliação, de-ter-nos-emos, no presente relato/reflexão, no tratamento de questões pontuais to-madas como exemplo.

Os Indicadores da Qualidade na Educação – Indique

O Indique é um instrumento de avaliação diagnóstica que visa iniciar na es-cola um processo participativo de diálogo e busca de soluções conjuntas para os pro-blemas encontrados, caracterizando-se como um instrumento de gestão democráticavoltado à participação. São convidados para o processo todos os setores da vida es-colar, dialogando, identificando qualidades, problemas, e propondo soluções demodo conjunto, desde a diretora e técnicos até alunos, pais e mesmo associações debairro ou outros grupos que estejam diretamente envolvidos com a vida na escola.O instrumento é flexível e encoraja-se sua adaptação às diferentes situações. O in-tuito é a autoavaliação da comunidade escolar, a quem pertence as informações le-vantadas e a iniciativa de transformação. Como será visto, os resultados dosindicadores da qualidade na educação dificilmente prestam-se a uma comparaçãosimples entre as escolas, menos ainda a uma hierarquização entre as comunidades.

O Indique foi criado por um grupo de trabalho coordenado pela ONG AçãoEducativa, com a participação da PNUD, INEP/MEC e Unicef e financiamentodesta última. Diversos atores sociais foram convidados e participaram do grupode trabalho colegiado que forneceu o subsídio da experiência em pesquisa e açõessociais no campo da educação. Desse grupo, formado sob iniciativa da AçãoEducativa, fizeram parte representantes das seguintes instituições: Ipea, Insti-tuto Pólis, Fundação Abrinq, Undime, Ceale, Cenpec, Instituto Ayrton Senna,Cefortec, Instituto Avisa Lá, Instituto Paulo Freire, Consed, Cedac, CEEL,CFORM, Fundação Victor Civita, Campanha Nacional pelo Direito à Educa-ção e UNCME (Indique, 2008).

O objetivo central da iniciativa seria a construção de um instrumento deavaliação que subsidiasse um processo coletivo e democrático e refletisse o modopelo qual os próprios setores envolvidos na vida escolar avaliam a qualidade na es-cola. Referindo-se aos indicadores construídos por agências centralizadoras, VeraRibeiro, Vanda Ribeiro e Joana Gusmão (2005: 231) terminam por constatarque: “Pesquisadores e tecnocratas não observam e não interrogam a realidade es-colar da mesma perspectiva que as pessoas que a vivem no cotidiano”.

Page 117: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

104 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Assim sendo, importava encontrar ou formular um processo de diagnósticoque fizesse sentido àqueles que vivem o cotidiano escolar. Com esse intuito, atravésde levantamento sistemático, foi identificado e adotado pela Ação Educativa o mé-todo de autoavaliação utilizado nos projetos do CPCD (Centro Popular de Cultu-ra e Desenvolvimento), uma organização não-governamental criada em 1984 emBelo Horizonte pelo “educador, antropólogo e folclorista” Sebastião Rocha, “(...)para atuar nas áreas de Educação Popular e Desenvolvimento Comunitário, tendo aCultura como matéria-prima e instrumento de trabalho, pedagógico e institucional”(Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento, 2010, grifo na fonte).

Segundo Vera Ribeiro, Vanda Ribeiro e Joana Gusmão (2005: 237-238):

“Grande inspiração para a parte metodológica do projeto veio da organizaçãomineira Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento (s.d.). A instituição,em seu projeto Bornal de Jogos, utiliza indicadores qualitativos construídoscoletivamente (assim como os critérios) para avaliação participativa das açõesque promove. Na metodologia, coordenadores, educadores, crianças, adoles-centes e pais se reúnem em roda, debatem e atribuem nota a um conjunto de12 indicadores, como transformação, eficiência, harmonia, alegria, beleza eapropriação, dentre outros. Esses indicadores são construídos, segundo suarelevância e significação, pelos participantes, que seguem seus próprios pon-tos de vista. Finalmente, são calculadas as médias das notas por indicador esegmento, assim como a média geral do projeto. Essa experiência demons-trou a eficácia e a fecundidade do método participativo, que é um dos prin-cípios do nosso trabalho.”

A partir da metodologia do CPCD, coube ao grupo a elaboração das questõesque guiariam o processo de autoavaliação da escola. Com o intuito de simplifica-ção e maior facilidade de compreensão e operacionalização do processo avaliativo,as “notas” e “médias” foram substituídas por “cores”, com o sentido análogo ao dosemáforo, ou seja, “vermelho”, “amarelo” e “verde”. A redação final do instrumen-to, batizado de “Indicadores da Qualidade em Educação – Indique”, coube a JoanaBuarque de Gusmão, na qualidade de assessora da Ação Educativa. Finalizado em2004, o material foi assumido e distribuído nacionalmente pelo MEC em 2006e adotado em diversos estados e municípios. Pelo fato de o roteiro de perguntasdo Indique consistir em uma apresentação sintética e sistemática de critérios dequalidade oriundos de práticas e pesquisas dos mais diversos setores: acadêmico,governamental, das agências internacionais e da sociedade civil, sua utilização temse dado tanto em processos de avaliação quanto de formação de gestores, e mes-mo como subsídio à realização de novas pesquisas de campo.

Page 118: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Reflexos da cultura escolar sobre o processo... 105

A aplicação do Indique é precedida por um período de divulgação e mobi-lização. No dia agendado, comparecem à escola todos os interessados na melhoriada qualidade da educação. Os presentes serão organizados segundo grupos hete-rogêneos com afinidade com determinado tema. A cada um cabe o debate de umúnico aspecto do que se considera uma escola “de qualidade”, chamada “dimensão”pelo instrumento. Após os debates em grupo, o resultado é conduzido a uma ple-nária geral, que revisará e aprovará o resultado final, conforme o seguinte modelo.

Fonte: Indique, 2008: 12.

Aconselha-se, pelo material, que todo o trabalho seja conduzido pela cons-trução de consensos, e não simplesmente por determinação da maioria através dovoto. Tal consenso, no entanto, não deverá ser “forçado”, podendo-se optar peloregistro de dissensos e discordâncias. O objetivo é favorecer o diálogo e a negoci-ação em torno dos temas elencados, e não chegar a algum indicador supostamente“objetivo”. Tal diálogo e a busca de soluções por parte da escola, em si, são a partefundamental e o próprio sentido do processo.

A relação das “dimensões” do Indique é a que segue:

Dimensão 1. Ambiente Educativo

Dimensão 2. Prática Pedagógica e Avaliação

Dimensão 3. Ensino e Aprendizagem da Escrita

Dimensão 4. Gestão Escolar Democrática

Dimensão 5. Formação e Condição de Trabalho dos Profissionais da Escola

Page 119: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

106 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Dimensão 6. Ambiente Físico Escolar

Dimensão 7. Acesso e Permanência dos Alunos na Escola

No interior de cada grupo, o trabalho será conduzido através da leitura deperguntas, fornecidas pelo instrumento, que visam suscitar o debate. Para cadapergunta lida, todos os presentes deverão selecionar uma cor: vermelho, amareloou verde. Havendo discordância, esta é debatida pelo grupo. No processo, pode-se alterar a cor inicialmente proposta, até a definição de um resultado final. Emuma situação hipotética: todos os presentes selecionam o “verde”, com exceção deum único participante que seleciona o “vermelho”. Abre-se o diálogo até ser en-contrado o consenso, que poderá ser um “amarelo”, um “verde” ou mesmo “ver-melho”. Também podem ser registradas ressalvas. O trabalho no interior do grupoé conduzido por esse processo de leitura, diálogo e registro de cores a cada umadas perguntas lidas, com breve justificativa redigida pelo grupo. O que será con-duzido à plenária final é o registro das cores e respectivas justificativas. Dessemodo, o resultado é inteiramente dependente da qualidade e de critérios estabe-lecidos no próprio processo de diálogo, tanto quanto da pertinência das pergun-tas previamente elaboradas constantes do instrumento.

Cada uma das Dimensões anteriormente listadas é avaliada pelo grupo atra-vés de determinado número de perguntas que, por sua vez, são organizadas noschamados “indicadores”, conforme o exemplo a seguir, o indicador “2” (Preocu-pação com abandono e evasão) da Dimensão “7” (Acesso e Permanência dos Alu-nos na Escola) e respectivas perguntas:

Fonte: Indique, 2008: 58.

Conforme a metodologia do Indique, define-se a cor respectiva a cada “per-gunta” para, ao final, atribuir-se a cor do “indicador”. O mesmo procedimentovale para a “dimensão”, cuja cor geral é determinada por último, após a escolhade todos os “indicadores”. A simplicidade do processo permite que um número

Page 120: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Reflexos da cultura escolar sobre o processo... 107

substancial de questões sejam avaliadas e debatidas por um grupo heterogêneo emum tempo previsto de cerca de 90 minutos.

Cada “dimensão” é composta por um número variável de “indicadores”, ge-ralmente em torno de cinco ou seis. O mesmo vale para cada “indicador”, com-posto por um número variável de “perguntas”. É recomendada pelo material asupressão de perguntas não pertinentes à realidade avaliada ou a inclusão de “per-guntas” e mesmo “dimensões” não previstas ou contempladas, principalmente parao caso de aplicações periódicas ou da formação de uma comissão organizadora pré-via à avaliação.

Após a finalização do trabalho organizado por dimensões, um relator ou co-missão conduz à plenária uma síntese do debate e as cores escolhidas (verde, ama-relo ou vermelho). À plenária cabe aprovar ou alterar o apresentado pelo grupo.É previsto para esta segunda parte entre noventa a cento e vinte minutos.

Esse processo descrito é referente ao diagnóstico da escola através do Indi-que. A elaboração das medidas e ações a serem implantadas pode ocorrer em diasubsequente ou, de modo indicativo, poderão ser propostas soluções e atribuiçãodas responsabilidades no mesmo processo de avaliação, sugerindo a formação degrupos de trabalho e distribuição coletiva de tarefas, por exemplo.

O Indique em Ituiutaba, MG

Em Ituiutaba, o contato inicial com a Ação Educativa ocorreu por iniciativada assessora da Secretaria Municipal para a Educação, Esporte e Lazer (SMEEL),Luciane Dias Ribeiro. Por parte da Ação Educativa, foi designado o assessor NinoBernini, entre os anos de 2005 e 2006. Entre os anos de 2007 e 2008, a consul-toria foi repassada a mim. Embora o contrato tenha sido realizado diretamenteentre secretaria e consultoria, a mediação e o contato foram realizados através daAção Educativa.

Coube à consultoria, nas duas fases de aplicação (2005 /2006 e 2007/2008), a organização da aplicação do Indique, a capacitação da equipe das es-colas e o cruzamento de dados que resultou no consolidado e no plano de ação.As ações indicadas nesse Plano foram repassadas à SMEEL em caráter consul-tivo, que passou à elaboração de ações e programas que incidissem sobre os pon-tos críticos levantados no diagnóstico. Igualmente em caráter consultivo, foramauxiliados os processos de construção coletiva dos planos de ações em cada es-cola, de modo participativo.

Page 121: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

108 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

O Indique foi assumido como um instrumento central por parte da secre-taria para a elaboração de políticas e ações durante toda a gestão, no período com-preendido entre 2005 e 2008.

Em 2008, o trabalho desenvolvido foi inscrito, por sugestão da equipe téc-nica da Ação Educativa, especialmente Joana Buarque de Gusmão, no Prêmio Ino-vação em Gestão, do INEP-MEC, sendo classificado para a última fase comoexperiência inovadora no âmbito da gestão educacional, passando então a com-por o banco de dados do Laboratório de Experiências Inovadoras em Gestão Edu-cacional do INEP/MEC, disponível on-line, cujo objetivo é a difusão de práticasbem-sucedidas no campo da gestão educacional.

Os resultados do Indique subsidiaram diversas decisões relevantes em nívelmunicipal, tais como: significativos avanços percebidos na democratização da ges-tão escolar; formação dos Conselhos Escolares e Grêmios estudantis; ampliação devagas em Educação Infantil e EJA; acompanhamento, por parte das equipes es-colares, dos índices e motivos de evasão e falta; identificação das demandas paraa formação dos professores e consequente parceria fixada com a Universidade Fe-deral de Minas Gerais, Universidade Federal de Uberlândia, dentre outras insti-tuições; criação do projeto Fios e Tramas de arte-educação, que envolveu toda aRede Municipal e, dentre outros aspectos, ampliou a carga horária da arte-edu-cação, liberando os professores das demais disciplinas para o programa de formaçãocontinuada em serviço em horário letivo; diversificação das metodologias de en-sino, principalmente em escolas rurais; implementação da lei 10.639/03 (Ensi-no e valorização da história e cultura afro-brasileira e africana).

Foi possível constatar que, mesmo tendo sido assumida enquanto política pú-blica em âmbito municipal, a adoção do Indique foi heterogênea em relação a cadauma das escolas. Esse é o ponto que se pretende abordar mais detidamente.

O Imaginário e a Cultura Escolar

Antes de passarmos aos efeitos observados da cultura sobre o processo e oresultado das avaliações efetuadas, torna-se necessário precisar algumas noções econceitos com os quais serão efetuadas as análises. Desse modo, deveremos nosdeter sobre as noções de “imaginário”, “símbolo” e “cultura”. Nosso intuito nãoserá proceder a uma análise comparativa dos termos aqui empregados com os sen-tidos que possam assumir em outros contextos e teorias, mas apenas atender a umprincípio de rigor em relação ao paradigma aqui trabalhado.

Page 122: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Reflexos da cultura escolar sobre o processo... 109

A noção de “imaginário” foi adotada por Gilbert Durand (1997) ao buscarultrapassar a dicotomia entre “natureza” e “cultura”, concepção corrente na antro-pologia e estabelecida por Claude Lévi-Strauss (1996). Durand (1997: 52, grifodo autor) considera que:

“(...) se (...) o que é da ordem da natureza e tem por critérios a universalida-de e a espontaneidade está separado do que pertence à cultura, domínio daparticularidade, da relatividade e do constrangimento, não deixa por isso deser necessário que um acordo se realize entre a natureza e a cultura sob penade ver o conteúdo cultural nunca ser vivido.”

Deste modo, o imaginário e o símbolo, nos sentidos próprios que os termosassumem no pensamento durandiano, são situados enquanto sutura ontológica einstância mediadora, espécie de trajeto circular entre “eu” (o “cogito” simbólico) eo meio natural, incluindo ambos os polos, organizados desde a corporeidade dohomem e do mundo. Assim sendo, o imaginário designa, no pensamento do au-tor, o âmbito instaurativo do vivido, seu meio e substrato, tanto no sentido indi-vidual quanto grupal. É relevante afastar sentidos presente na linguagem correntee não implicadas no pensamento de Durand ou no presente texto, como a res-trição de “imaginário” a “conjunto de representações”; ou a definição de “imagi-nário” em oposição ao “real”. No presente contexto, o “imaginário” é a instânciainstaurativa, dinâmica organizadora, da realidade vivida.

O termo “cultura” é extremamente polivalente, assumindo sentidos muitodiversos conforme o autor estudado. Se Durand concebe o imaginário como su-tura e mediação entre “natureza” e “cultura”, Edgar Morin compreenderá com omesmo termo, “cultura”, algo que podemos relacionar (senão identificar) com o“imaginário” durandiano, ou seja:

“(...) um sistema que faz comunicarem-se – dialetizando-se – uma experiên-cia existencial e um saber constituído. (...) consiste num circuito metabóli-co, simultaneamente repetitivo e diferencial, entre o polo das formasestruturantes (physis/bios), no qual se manifestam códigos, formações discursivase sistemas de ação, e o polo do plasma existencial (noos/psychè), das vivências,dos espaços, da afetividade e do afetual” (Morin apud Porto, 2000: 22).

Para fins da análise aqui proposta, embora as noções mencionadas apresen-tem outros traços constitutivos, reteremos na noção de “imaginário”:

a) sua função instaurativa do real vivido;

b) constituir-se em instância mediadora entre a esfera patente das práticas (atarefa a ser cumprida) e o campo afetual, individual ou grupal.

Page 123: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

110 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Nesses sentidos aqui presentes, a escola é compreendida como “(...) um sis-tema sócio-cultural, isto é, um sistema simbólico constituído por grupos reais erelacionais, cujos projetos e tarefas se ancoram nos processos simbólicos definidoresde sua ação e de sua identidade” (Teixeira et al., 2008: 172), sendo a gestão(acrescentemos: a avaliação) “uma prática simbólico-educativa.”

Podemos comparar o termo “símbolo”, em Durand, a “nós” na tessitura doimaginário. Não se trata, como bem expõe Umberto Eco (1991: 195), ao expli-car a teoria de Durand, de confundir “símbolo” com “signo” em geral, nem comouma “classe de signos” em particular, como signos religiosos ou insígnias, etc. Aorecorrermos às imagens que expomos a seguir para exemplificar as estruturas doimaginário, é tão-somente ao constatá-las como relacionadas a determinados esque-mas (schèmes) do imaginário, de um modo muito semelhante ao qual a medicinaconsidera seus “sintomas”. Daí a necessidade de as imagens serem consideradas emseu “sentido segundo”, no translado das “figuras” representacionais em direção aosschèmes. A descrição das dinâmicas basais do imaginário são o tema da obra mag-na de Gilbert Durand (1997), cuja exposição abreviada evitarei, por permitir umafalsa compreensão da teoria.

Com base em Durand (1997), recorreremos à identificação dos Regimes(Diurno e Noturno) e das estruturas (heróica, mística e dramática), que caracte-rizam toda forma imaginária. Na mitologia clássica grega, apenas a título deexemplificação, podemos citar os mitos de Zeus, Ares e do deus solar Apolo (emsua grande batalha contra a serpente gigante Píton) como arranjos simbólicoscaracteristicamente heróicos; Deméter (“A Terra Cultivada”), Dionísio e Orfeu,como característicos da “Estrutura Mística” do “Regime Noturno”; e Hermes,o mensageiro, como exemplo da segunda estrutura do mesmo regime, a “Dra-mática”. Mantemos as referências clássicas apenas a título de ilustração, haja vis-ta a não possibilidade de exposição das estruturas de modo abreviado; e por se tratar,antes, de algo da ordem de “matérias elementares” do imaginário (para utilizar otermo de Gaston Bachelard) que de uma “tipologia”.

Segundo Durand (1997), todas as três estruturas são respostas mobiliza-das, no nível do imaginário, à “angústia originária”, ou seja à constatação dainevitabilidade da passagem do tempo e da morte. Essa consciência da “finitudedo tempo” também apresenta suas imagens “diretas”, chamadas “imagens da an-gústia”, organizadas a partir de seus três esquemas (schemas): nictomorfo (tre-vas, fervilhamento); catamorfo (queda, profundezas, labirinto); e teriomorfo(animalidade nefasta, como a serpente Píton, a Hydra, etc.).

Page 124: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Reflexos da cultura escolar sobre o processo... 111

Na organização das heurísticas para a Culturanálise de Grupos, com inspi-ração em Durand, José Carlos de Paula Carvalho (1992) considera a “etnografia”como uma descrição dos aspectos “patentes” da cultura por deter-se em procedi-mentos descritivos.

Pode-se considerar o exposto a seguir como resultado de um processo de ins-piração etnográfica, com visita às escolas e registro em caderno de campo, nãoobstante, diferenciamos o trabalho apresentado de uma etnografia convencionalpela busca permanente de atentar às dinâmicas profundas, chamadas “emergen-tes” e “latentes” por Paula Carvalho, em um processo recursivo entre observaçãoe crítica/análise simbólica do observado. Tal conjugação entre crítica e análise sim-bólica de inspiração durandiana equivale à noção de “hermenêutica simbólica” emMarcos Ferreira Santos (2004).

Dos efeitos do imaginário escolar no processo de avaliaçãoatravés do Indique

Como era possível esperar, uma grande heterogeneidade de dinâmicas ima-ginárias caracteriza a vida nas escolas estudadas. Cada escola solicitaria um traba-lho extenso e, somando-se às rupturas, transformações e dinâmicas ocorridas aolongo de dois anos de trabalho, um mapeamento exaustivo seria impossível, emesmo indesejável.

Nas escolas rurais, assim como em algumas urbanas, notou-se uma estru-turação marcadamente mística. Os núcleos simbólicos da “terra gasta”, do uni-verso da angústia, se fizeram perceber em narrativas relacionadas à expansão dacultura da cana e consequente desestruturação de comunidades, poluição dosrios e eliminação das árvores do cerrado.

Outras escolas apresentaram um imaginário heróico, marcadamente orga-nizado por uma noção de hierarquia, centralizadas em uma “liderança forte” (o/a diretor/a). Imagens dramáticas foram perceptíveis principalmente em textos,falas e ações da assessora da secretaria Luciane Ribeiro, idealizadora de proje-tos como “Fios e Tramas”. Seu imaginário e força de mobilização se caracteriza-ram, principalmente, pela construção de “redes” multicentralizadas, em termos deorganizacionalidade, enquanto notava-se, em seus textos, a atualização de imagensdas três estruturas do imaginário, indistintamente.

Em suma, a realidade oferecia material amplo de exploração e estudo e cum-priu escolher uma delimitação.

Page 125: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

112 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Deter-me-ei sobre uma dinâmica do imaginário que pude explorar em su-cessivas ocasiões. Sua presença não foi a que se fez sentir mais fortemente, nem aque caracteriza mais fielmente as inúmeras situações vividas, mas sua análise é aque oferecerá exemplo mais ilustrativo para o aqui almejado. Chamaremos essadinâmica, a exemplo de Gaston Bachelard (1998: 19), de um complexo de cul-tura, ou seja, “atitudes irrefletidas que comandam o próprio trabalho de reflexão”. Apli-cando o termo à análise literária e à criação poética, explica o autor: “Em sua formacorreta, o complexo de cultura revive e rejuvenesce uma tradição. Em sua formaerrada, o complexo de cultura é um hábito escolar de um escritor sem imagina-ção” (Bachelard, 1998: 19).

No presente, transladamos a noção de Bachelard da crítica literária para ahermenêutica sociocultural e batizamos o complexo aqui estudado de “complexoda avaliação punitiva”. Tal complexo se fez notar de modo fragmentário, em di-versos momentos, suplantado por outras dinâmicas, em alguns outros, como ins-tância central da interação sociocultural.

Complexo cultural da avaliação punitiva

É possível que o complexo de cultura aqui estudado seja uma marca históri-ca legada pela não tão distante ditadura militar. No âmbito da Secretaria Munici-pal, embora já houvesse sido sugerida a alteração da nomenclatura de “supervisora”para “coordenadora pedagógica”, tal alteração foi desqualificada como reflexo de mero“modismo”. Além da nomenclatura, sobrevive o imaginário relacionado à supervi-são como instância fiscalizadora do cumprimento de normas emanadas verticalmentee de modo descendente. Tal situação autoritária se faz acompanhar, necessariamente,de sujeição, temor, ou duplicidade perante o poder que se impõe. Nesse sentido,da ausência de práticas e ideários democráticos, a relação com as instâncias superi-ores frequentemente é concebida em sentido paternalista, na qual “se pede” umabenesse, ao vereador, ao prefeito, à Secretaria. Tal imaginário, embora não exclusi-vo ou mesmo preponderante, foi detectado indistintamente em todos os setoresenvolvidos com a vida escolar.

A perda da posição de “oficialidade” ocupada por tal imaginário ocasionouum interessante impasse. Uma espécie de “indefinição” – de papéis, de funções,de ideias – podia ser frequentemente percebida. Como se o esvaziamento da fun-ção autoritária do Estado devesse ceder lugar a uma imagem paternalista e “bon-dosa” orientada exclusivamente pela “benesse”, instância simbólica materializadana “reforma” solicitada ou concedida, na disponibilização de material ou mesmode orientação técnica, etc.

Page 126: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Reflexos da cultura escolar sobre o processo... 113

A mesma dinâmica do imaginário poderia suscitar críticas como a perda dafunção “disciplinadora” da escola. Nessa visão, esse “pai” bondoso é o mesmo quenão educa por “não impor limites”, sendo responsabilizado pela depredação, des-respeito ao professor, indisciplina, enfim, pela insurgência do “caos” e das imagensda angústia no espaço escolar.

Na dinâmica instaurada por tal imaginário, a avaliação assume função hie-rarquizante e classificatória, como uma espécie de “julgamento” com o dever deseparar o “certo” do “errado”, e os “bons” dos “maus”. Por parte do avaliado, asituação de avaliação será vivida como o surgimento de imagens da angústia, emuma exaltação e amplificação da finitude do tempo. Tomaremos esse último tra-ço, a “avaliação punitiva”, como designação metonímica para todo o complexo.

A interação do complexo da “avaliação punitiva” com aaplicação do Indique

O Indique, dadas sua origem e forma de apresentação, não concebe a avalia-ção como instância classificatória ou hierarquizante, pois o resultado não pode serfacilmente comparado. Como ocorre no início do processo de trabalho, e não nofinal, não se presta a um “julgamento”, mas a um “diagnóstico”. Os pontos “ver-melhos” e “amarelos” levantados são aqueles que solicitam maior atenção e esfor-ços, identificando-se os pontos a receberem maior quantidade de recursos, humanoe material, e não o “mal” a ser combatido e expulso. Em relação ao gerenciamentodas verbas públicas e ao acesso à educação, considera-os sob a ótica do “direitodemocrático” e não da “benesse”. Desse modo, cada uma das características doIndique situa-se no polo oposto ao complexo da “avaliação punitiva”.

Tais pontos tiveram de ser expostos repetidamente, pois era reiterativa aeclosão do “temor” da “avaliação punitiva”, pois, relembrando Morin (apud Por-to, 2000: 22), o imaginário se caracteriza pela reatualização de sua dinâmicaprofunda em situações novas. Apesar do trabalho realizado durante a fase de pre-paração, através de seminários e oficinas, durante as aplicações puderam-se ob-servar situações nas plenárias e grupos nas quais se buscava “evitar” o “vermelho”e o “amarelo” por argumentos que recaíam, não sobre a situação objetivamentecompreendida, mas pela possível “culpabilização”, do colega professor, da dire-tora, etc., imaginariamente implicada segundo o complexo da avaliação puni-tiva. Tal fato, perceptível de maneira periférica em muitos momentos, pode serobservado no quadro a seguir.

Page 127: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

114 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Fonte: Elaboração própria.

Como mencionado anteriormente, a comparação entre as cores não podeser feita de maneira simplificada. Mencione-se que na Escola 2 notava-se maiorpresença de símbolos da “estrutura mística” do Regime noturno na interaçãosóciocultural de avaliação; na Escola 1, notava-se predominância da estrutura he-róica do Regime Diurno. Na organização da Escola 1, notava-se contínuo “es-forço” para a obtenção do “verde”, imaginariamente assimilada à “nota azul”. Aescola se mostrava bem organizada, porém, sem características de processo dedecisão democrático, ou seja, centralizada e hierárquica. Durante a plenária fi-nal, notava-se forte presença do complexo da “avaliação punitiva”. Diversos “ama-relos” e “vermelhos” eram “derrubados” por um grupo de professores, a diretorae a supervisora, utilizando-se de argumentos que visavam “absolver” um suposto“culpado”. Notava-se um “receio”, seja em relação a instâncias centrais (a Secre-taria), seja na comparação com as demais escolas.

O ponto de maior polêmica foi o “Indicador 4 – combate à discriminação”.Em um clima “amistoso”, porém nervoso, alguns pais negros insistiam na existên-cia de situações, não explicitadas, possivelmente bullying que vitimava criançasnegras. Com a insistência dos pais, o microfone foi tomado pela diretora em umalonga fala, com ares de “ponto final”, na qual se declarava que “não era admitidoisso na escola”, referindo-se à discriminação, com apoio de uma professora que de-clarava “já trabalhamos a diversidade”. Optei, após algumas falas “minimamenteintrusivas”, inclusive solicitando que o tempo de fala não fosse monopolizado, pornão “impor” uma constatação à plenária reunida, o que poderia ter sido cogita-do no papel de consultor e representante da Secretaria Municipal, porém, com

Resultados da Dimensão 1 do Indique – Ambiente Educativo

Indicador Escola 1 Escola 2

1. Amizade e solidariedade

2. Alegria

3. Respeito ao outro

4. Combate à discriminação 3

5. Disciplina e tratamento adequado aos conflitos

que ocorrem no dia a dia da escola

6. Respeito aos direitos das crianças e dos

adolescentes2

2

2 2

2

2

Page 128: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Reflexos da cultura escolar sobre o processo... 115

resultados certamente inócuos. Optei apenas pelo registro do ocorrido, comuni-cando, em particular, minha solidariedade a alguns pais de alunos. Ao grupo deprofessores, era impossível encarar a “culpabilização” que seria gerada em face doproblema, em virtude da operação do próprio complexo da avaliação punitiva, quepermaneceu preservado.

Na Escola 2, por sua vez, nota-se maior predominância do “amarelo” e “ver-melho” atribuídos pelo grupo reunido à avaliação da dimensão. Era perceptívelna escola certa desestruturação, incluindo relato de tráfico de drogas, desestru-turação visível até mesmo na situação da manutenção predial e dos vasos de plan-tas. Não obstante, observava-se certa abertura para a organização comunal, dadaa estrutura predominantemente noturna do imaginário. Embora com perceptívelpouca familiaridade com processos democráticos decisórios, tal característica eralargamente contrabalançada por uma tendência ao diálogo franco. A avaliação dascores, diferentemente de uma sequência de “defesas” e “delações”, consistia no iníciodo estabelecimento de pequenos “consensos” comunitários e da percepção da ne-cessidade de mudança.

Ao final do processo de consultoria e implementação do Indique, foi orga-nizada uma reunião com todas as equipes gestoras das escolas, aberta aos mem-bros dos Conselhos Escolares. A intenção foi avaliar o instrumento e o processode avaliação nas escolas. A Escola 1 avaliou o instrumento como “desnecessário”,pois já contaria com “outros modos de avaliação”. Os representantes da Escola 2declararam que já não mais faziam parte da mesma escola de meses atrás, em vir-tude dos processo de transformação então iniciados.

Conclusões

No Indique, os resultados das avaliações participativas prestam-se pouco avalorações e comparações por parte de instâncias ou agências centralizadas. Umaescola com diversos “verdes” não apresenta, necessariamente, uma situação “me-lhor” que outra com diversos “amarelos” e “vermelhos”. Dada a mecânica do pro-cesso de avaliação, o sentido das cores atribuídas aos indicadores emerge e retornaa uma dinâmica intrínseca da comunidade escolar.

Inclusive em virtude dessa característica, o instrumento se presta bem a umfortalecimento de uma autogestão e à construção de relações dialogais em instân-cias internas e externas à escola, mas sua aplicação esbarra em dinâmicas profun-damente arraigadas na cultura escolar que relaciona “avaliação” a “hierarquização”,“julgamento” e “punição”. Tais dinâmicas imaginárias grupais solicitam um pa-ciente trabalho de transformação.

Page 129: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

116 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Referências Bibliográficas

BACHELARD, G. A água e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

CENTRO POPULAR DE CULTURA E DESENVOLVIMENTO [CPCD]. Disponível em:www.cpcd.org.br. Acesso em: 6 dez. 2010.

DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral.São Paulo: Martins Fontes, 1997.

ECO, U. Semiótica e filosofia da linguagem. São Paulo: Ática, 1991.

INDIQUE – INDICADORES DA QUALIDADE NA EDUCAÇÃO. Ação Educativa, Unicef,Pnud, INEP, Seb/MEC. 3. ed. ampl. São Paulo: Ação Educativa, 2008.

LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.

PAULA CARVALHO, J. C. de. Da arquetipologia geral à sua formulação experimentalatravés do AT-9: sete estudos para aplicação à culturanálise de grupos. São Paulo: CICE-FEUSP,1992. Circulação interna para formação de pesquisadores do CICE.

PEREZ JUNIOR, J. A. Consolidado e relatório da segunda rodada de aplicação do In-dique. Ituiutaba: Secretaria Municipal de Educação, Esporte e Lazer, 2008. Relatório deconsultoria.

PORTO, M. do R. S. Imaginário e cultura: escorrências na educação. In: PORTO, M. do R.S. et al. Tessituras do imaginário: cultura e educação. Cuiabá: Edunic/CICE/FEUSP, 2000.p. 17-27.

RIBEIRO, V. M.; RIBEIRO, V. M.; GUSMÃO, J. B. de. Indicadores de qualidade para amobilização da escola. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 35, n. 124, p. 227.251, jan./abr.2005. Disponível em: http://www.scielo.br. Acesso em: 6 dez. 2010.

SANTOS, M. F. Crepusculário. São Paulo: Zouk, 2004.

TEIXEIRA, M. C. S.; PORTO, M. do R. S.; CUYABANO, E. D. de S. O imaginário de direto-res de escola: participação e grupalidade. In: BARROS, J. de D. V. (Org.). Imaginário e educa-ção: pesquisas e reflexões. São Luís: EDUFMA, 2008. p. 171-197.

Bibliografia Consultada

BARROS, J. de D. V. (Org.). Imaginário e educação: pesquisas e reflexões. São Luís: EDUFMA,2008.

BATISTA, A. Imaginário e redação: leituras possíveis. São Paulo: Zouk, 2002.

DURAND, G. A imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix, 1995.

Page 130: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

O IMAGINÁRIO SOBRE O NEGRO NO ESPAÇO

ESCOLAR: DAS IMAGENS DA ANGÚSTIA À FORÇA

DA ANCESTRALIDADE AFRICANA, TRILHANDO

CAMINHOS NA CONSTRUÇÃO DE UMA

EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ETNICORRACIAIS

Carolina dos Santos Bezerra Perez *

Porque essa associação mais rápida, porque que uma criança, a Néia,né, tem nove anos, ela já canta vários pontos, pontos que eu nemlembro, às vezes ela canta e repete de ano. Sabe, ela me falou que

o dia que ela foi cantar na sala [de aula], que alguém falou o que éjongo, o dia que ela foi cantar falaram: ‘ai que música feia!’.

Não vai cantar nunca mais, não vai cantar mais na sala. Entende?Mas ela sente que naquele momento [da festa] ela pode cantar e pode dançar que ninguém está achando ela a feia, a negrinha

fedida, tá todo mundo na mesma situação e, não sei, só nãoestá na mesma situação quem vem de fora.

Aline Damásio, jovem jongueira da Comunidade doTamandaré, Guaratinguetá, SP1

IntroduçãoAs contribuições da herança africana não são necessariamente negadas pela

sociedade, mas aparecem, frequentemente, relacionadas ao seu caráter exótico epitoresco, dando a elas um tom estereotipado e preconceituoso, utilizando-as sem-pre a partir de parâmetros de comparação com a ética, a moral, a estética, a filo-sofia, a ciência e a cultura ocidental e europeia.

O etnocentrismo, pensado aqui também no sentido proposto por Rodrigues(1989), ocorre ao concebermos uma forma única e possível de ver, sentir e per-ceber o mundo, tornada universal e definidora do “humano”, relegando todos

* Mestre e doutoranda pela FEUSP, com projeto realizado junto ao CICE. Professora do Colé-gio de Aplicação João XXIII da Universidade Federal de Juiz de Fora-MG.

1. Entrevista realizada em 11/11/2004, em São Paulo.

Page 131: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

118 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

aqueles que não compartilham desses referenciais à categoria de “não-humano”,descaracterizado-os e marginalizando-os.

Com relação ao campo educacional e a sua dimensão didático-pedagógicanão é diferente. O etnocentrismo se apresenta desde as escolhas de conteúdos ecurrículos até as metodologias de ensino, passando por modelos de políticas edu-cacionais que a muito distam da realidade cotidiana das nossas salas de aulas, douniverso sociocultural e simbólico dos nossos educandos.

Entendo estereótipo como modelo padronizado que baliza imagens, com-portamentos e ações que emergem quase como se fossem naturais, eliminando ascaracterísticas individuais e as diferenças:

“O estereótipo é a prática do preconceito. É a sua manifestação comportamental.O estereótipo objetiva (1) justificar uma suposta inferioridade; (2) justificar amanutenção do status quo; e (3) legitimar, aceitar e justificar: a dependência, asubordinação e a desigualdade” (Sant’Ana, 2005: 65).

Já o preconceito é um conceito previamente estabelecido, ele emerge a par-tir de uma imaginário coletivo, negativizado contra algo ou alguém, que se dis-semina por toda a sociedade e se ancora em um paradigma que se localiza emum espaço-tempo específico e que é partilhado por determinado grupo ou co-munidade científica, refletindo-se no ideário e em todos os espaços sociais dedeterminada sociedade, incluindo a escola.

“Ele pode ser definido, também, como uma indisposição, um julgamentoprévio, negativo, que se faz de pessoas estigmatizadas por estereótipos”(Sant’Ana, 2005: 62).

Nesse contexto, o objetivo deste relato de experiências é compartilhar oaprendizado obtido por ocasião de minha atuação no campo educacional na ci-dade de Londrina, PR, onde trabalhei em sucessivos projetos ligados à supera-ção do etnocentrismo e do racismo, através da implementação da Lei 10.639/03, que instituiu o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana em todasas escolas públicas e particulares do país.

Dentre esses projetos, cito a colaboração com o NEAA (Núcleo de EstudosAfro-Asiáticos) da Universidade Estadual de Londrina (em sucessivas gestões), doqual participei enquanto professora contratada do Departamento de Educação daUniversidade Estadual de Londrina. Cito, também, a participação no UNIAFRO(MEC/SESu/SECAD), realizado em parceria com o Núcleo Regional de Ensino(NRE) do governo estadual do Paraná e a Secretaria Municipal de Educação de

Page 132: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

O imaginário sobre o negro no espaço escolar 119

Londrina (SME). A experiência que passo a descrever ocorre no contexto do pro-jeto do qual participei junto ao LEAFRO2 – Laboratório de Cultura e EstudosAfro-Brasileiros: diálogos para o reconhecimento e a valorização da história e cul-tura afro-brasileira no Paraná (Londrina e Jacarezinho) – financiado pela SETI –Programa Universidade sem Fronteiras.

Desse modo, o objetivo deste relato de experiência é o de socializar comoconseguimos dar alguns passos na inversão da relação de negatividade perante apopulação negra e os saberes ancestrais de base africana, socialmente desvaloriza-dos na escola, levando para o espaço escolar os referenciais epistemológicos e exis-tenciais desses saberes, atentando à dimensão do ensinar e do aprender em grupostradicionais de influência africana, assim como a sua prática educativa, ou seja, aforma como se desenvolve a relação do ensinar e do aprender nessas comunida-des e seus aspectos metodológicos para que sejam valorizados e trabalhados em con-textos formais de ensino-aprendizagem, contribuindo para a construção de umapedagogia epistemologicamente afrocentrada3 para o ensino das Africanidades4.

Experiências de Transformação e Superação doEtnocentrismo no Espaço Escolar

Como metodologia, o projeto LEAFRO articulou o ensino, a pesquisa e aextensão de forma integrada, realizando a formação dos graduandos(as) e recém-formados(as) em Ciências Sociais, tanto por meio de um grupo de estudos e pes-quisas como por meio da elaboração e realização de oficinas, palestras e minicursos

2. Projeto criado e coordenado pela Profª Drª Maria Nilza da Silva, docente do Departamento deCiências Sociais da UEL e ex-diretora do NEAA – UEL. Esse projeto de extensão foi financia-do pela SETI/PR – Secretaria de Ciência e Tecnologia do Estado do Paraná, que possibilitou abolsa aos recém-formados(as), aos graduandos(as) e aos professores (as) e coordenadores(as) doprojeto.

3. Molefi Kete Asante, professor da Universidade de Temple, Filadélfia, sistematizou teoricamenteo conceito de afrocentricidade que consiste em um paradigma, um epistema, que parte da loca-lização, a posição central que as experiências, perspectivas e referenciais epistêmicos africanos assumemno desenvolvimento de qualquer atividade. Em outras palavras, o que é decisivo se encontra na to-mada da cultura e história africana como referencial de todas as atividades. (Santos, 2010: 2-3)

4. Ao dizer africanidades brasileiras estamos nos referindo às raízes da cultura brasileira que têm ori-gem africana. Dizendo de outra forma, estamos, de um lado, nos referindo aos modos de ser, de vi-ver, de organizar suas lutas, próprios dos negros brasileiros, e de outro lado, às marcas da culturaafricana que, independentemente da origem étnica de cada brasileiro, fazem parte do seu dia-a-dia(Silva, 2005: 155).

Page 133: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

120 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

sobre a temática em diversos segmentos e modalidades de ensino: na educaçãoinfantil, na educação básica, no ensino médio, na educação de jovens e adultos ena formação de professores(as).

A Escola Municipal Elias Kauan, localizada no Bairro Novo Amparo, se si-tua simbolicamente “abaixo da linha do trem”. Apesar da linha férrea ter deixadode cruzar a cidade há muitos anos, a expressão típica persiste, pois designa a li-nha que divide material e simbolicamente a cidade em duas: o lado “de cima”,urbanizado, com ruas calçadas, casas de alto padrão, quase exclusivamente de bran-cos descendentes de imigrantes; e a parte “abaixo da linha”, com presença precá-ria do Estado, tráfico de drogas intenso, altos índices de violência, casas simplese maior presença de descendentes de negros, metade quase invisível na imagemque a própria cidade apresenta de si mesma.

A primeira parte de meu trabalho foi contribuir para a formação da equipeinterna do LEAFRO. Para isso, um dos meus referenciais pedagógicos foi a filo-sofia freireana5, que auxiliou os participantes a pensarem uma realidade que exi-gia deles a elaboração de análises que mobilizavam os conhecimentos e as leiturasda graduação, as leituras sobre a temática etnicorracial, com as leituras da dimensãoeducativa, convergindo para uma prática pedagógica que se desenvolve embasadapor uma relação teoria e prática que adquire sentido e conceito, ampliando os seusolhares perante a realidade na qual vivem, existem e se constroem como seres hu-manos e como cientistas sociais.

Em um segundo momento, passamos a um levantamento da cultura escolar.Foi elaborado um roteiro para auxílio à observação, que buscou chamar a atençãopara aspectos relacionados à prática pedagógica, à relação entre as pessoas (profes-sores, professor-aluno, aluno-aluno, professor-funcionário, funcionário-aluno) e, es-pecificamente, ao modo como se apresenta a questão etnicorracial no espaço escolar.

Em todas as experiências já citadas, um dos temas que mais encontrou re-sistência por parte dos professores(as), gestores(as) e graduandos(as) é o que serelaciona à discussão da questão etnicorracial brasileira e seus reflexos no am-biente escolar, no mercado de trabalho, na mídia e em tantos outros espaços,bem como nos indicadores sociais.

Mesmo quando dados, análises estatísticas e pesquisas nacionalmente reco-nhecidas são apresentados para embasamento teórico e reflexão, como a que apre-sentamos aos professores das escolas envolvidas no projeto na primeira formação

5. Referência à concepção teórico-metodológica de Paulo Freire (1967, 1996).

Page 134: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

O imaginário sobre o negro no espaço escolar 121

realizada pelo LEAFRO, há clara resistência à aceitação dos fatos, dos dados e dosresultados apresentados, demonstrando que diversos argumentos, mesmo que se-jam claros e nítidos, quando colocados em questão pelo crivo racional, não con-seguem atingir os preconceitos que se encontram cristalizados e arraigados noimaginário da sociedade brasileira, produzidos pelos séculos de escravidão quevivenciamos.

Essa experiência produziu imagens e sentimentos que ainda submergem daprofundidade do imaginário, da dimensão subjetiva e do próprio senso comum,carregados de preconceitos, estigmas e estereótipos evidentes em uma série deposicionamentos e falas que muito dificultam uma formação crítica, ética e cons-ciente, tanto para uma educação das relações etnicorraciais como para a atuaçãodesses docentes e futuros docentes no sistema educacional brasileiro, como se ob-serva em suas falas:

“O próprio negro tem preconceito contra o negro!”

“Ah! Mais aqui no sul não tem tanto negro, por isso não temos tantos médicosnegros!”

“Um próprio pai falou para o filho que negro não serve para estudar, só paratrabalhar!”

“Ah! Mas eles estão nessa situação é porque não se esforçam, veja os imigrantes, seesforçaram e venceram!”

De certa forma, esses professores(as) já partiam da ideia de um fracasso ina-to e de uma situação socioeconômica já naturalizada, criando uma invisibilidadepara as crianças e jovens negros que estavam presentes nas suas salas de aula,como se não houvesse nada a fazer, já que eles mesmos eram responsáveis poraquela situação. Para isso reforçavam argumentos presentes no seu imaginário, osquais, embora parecessem um mero preconceito, estereótipo ou senso comum, aonos aprofundarmos nas imagens que eles suscitam, percebemos concepções e ima-gens simbólicas cristalizadas, tanto por meio das narrativas bíblicas e das grandesescrituras como pelas teorias racistas fomentadas no século XIX ou os discursosliberais de igualdade que conduzem a uma visão com relação ao mérito, à com-petição e à hierarquização.

Observei, portanto, a partir do mapeamento do imaginário dos(as) profes-sores(as), que as imagens do negro no espaço escolar quase sempre aparecem comdescrições negativas e que trazem à tona uma série de preconceitos presentes noimaginário da cultura escolar como um todo. A constelação simbólica sugerida nos

Page 135: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

122 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

relatos e na observação das oficinas e ações realizadas nas escolas, sem dúvida,reatualizam o medo ancestral do homem a certas imagens arquetípicas enumera-das e exemplificadas por Gilbert Durand (1997) em As Estruturas Antropológicasdo Imaginário, mais especificamente, no Livro Primeiro, quando desenvolve asconsiderações sobre o Regime Diurno da Imagem.

Na primeira parte do livro, intitulado As faces do tempo, o autor se utilizade diversas referências para ir desfiando as imagens da angústia da morte e da per-cepção da finitude (angústia existencial) organizadas nos símbolos teriomórficos(como monstros), nictomórficos (imagens da escuridão) e catamórficos (imagensda queda). Como diz o autor:

“Desta solidez das ligações isomórficas resulta que a negrura é sempre valori-zada negativamente. O diabo é quase sempre negro ou contém algum negror.O anti-semitismo não seria talvez outra fonte além desta hostilidade naturalpelos tipos étnicos escuros. ‘Os negros na América assumem também umatal função de fixação da agressão dos povos hospedeiros’, diz Otto Fenichel,‘tal como entre nós os ciganos... são acusados com razão ou sem ela de todaespécie de malfeitorias.’ Deve-se aproximar disto o fato de que Hitler con-fundia no seu ódio e no seu desprezo o judeu e os povos ‘negróides’. Acres-centaremos que se explica assim na Europa o ódio imemorial do mouro, quese manifesta nos nossos dias pela segregação espontânea dos norte-africanosque residem na França” (Durand, 1997: 93).

Considerando que é impossível separar a prática educativa, em sua dimen-são “praxeológica”, da dinâmica afetual e simbólica na qual ela se insere, percebe-mos que a formação seria possível somente se dialogássemos com os professoresno nível das imagens estruturantes do imaginário racista, e não apenas no níveldos conteúdos e da exposição de dados científicos.

Oficina de Imaginário e Memória Docente

Assim sendo, no próximo encontro, tivemos como tema: “Imaginário e me-mória docente: a questão etnicorracial”, no qual levantamos as imagens da trajetó-ria dos professores e professoras a partir da sua memória, com as seguintes questõesgeradoras:

“Quais personagens negros que víamos na nossa infância nos livros de literatura?”

“Quais artistas e atores negros que assistíamos nos programas de televisão?”

“Como era ensinada nas escolas a história dos negros?”

Page 136: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

O imaginário sobre o negro no espaço escolar 123

“Quais referências de intelectuais, artistas, médicos, advogados, músicos, poetas eescritores negros tivemos na nossa trajetória escolar?”

Como dinâmica de trabalho, organizamos os docentes em grupos de cincopessoas para que conversassem entre si, estando em cada um representantes dastrês escolas nas quais atuava então o projeto. Em seguida eles deveriam respon-der às perguntas e expô-las aos demais. Com relação ao comportamento dos(as)professores(as) em formação, foi muito positivo, não houve nenhum tipo de re-sistência, diferentemente do encontro anterior, durante o qual expressões de aver-são foram explícitas e de certa forma agressivas.

As perguntas foram elaboradas de modo que possibilitassem que as imagensemergissem das histórias de vida carregadas de sentidos afetuais. Foi interessanteconfirmar que, semelhante a outros espaços nos quais realizei essa dinâmica, asrespostas pouco variavam, pois a imagem do negro aparece tal e qual, o que con-firma o sentido social dos resultados. Assim sendo, os personagens citados comoconstitutivos da memória da trajetória de vida dos docentes foram: Tia Anastácia,Tio Barnabé, Vera Verão, Pelé, Mussum, Saci-Pererê, Negrinho do Pastoreiro,Grande Otelo, Escrava Isaura, as mulatas do Sargenteli, Chica-da-Silva, as Amas-de-Leite, Mães-pretas. Sobre o ensino da história na escola, apareceram apenasimagens relacionadas a africanos apanhando em troncos, amarrados, amordaça-dos, o que permitiu ao professores perceberem que estudaram na escola a histó-ria sobre os negros no Brasil unicamente a partir da escravidão.

Foi também possível notar alguma mudança recente, através de alguns ato-res e atrizes atuais que fazem sucesso na televisão brasileira, como: Taís Araújo,Camila Pitanga, Lázaro Ramos, Ruth de Souza. Cantores negros, como: MiltonNascimento, Gilberto Gil, Martinho da Vila, etc., foram citados, mas com me-nor presença que as imagens anteriores.

Durante a apresentação dos(as) professores(as) por grupo, fui realizandoo registro na lousa dos personagens que apareciam, organizando-os a partir deconstelações simbólicas. Aos estereótipos como: “ama-de-leite”, “mãe-preta”,“preto-velho”, “mulata”, “negão”, “malandro”, etc., podíamos relacionar papéise personagens costumeiramente atribuídos a negros na televisão. A ambos os gru-pos anteriores, relacionamos papéis e espaços sociais que os negros podem ocu-par: a “empregada”, o “marginal”, o “menor delinquente”, a “prostituta” ou“amante”, salientando a ausência de negros em papéis valorizados positivamente,seja no âmbito social, como o “advogado”, o “médico”, o “engenheiro”, o “in-telectual”, seja no âmbito pessoal: a “boa mãe”, o “amigo”, o “bom filho”, oumesmo mítico: o herói, o rei, a princesa.

Page 137: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

124 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Foi importante fazê-los perceber que esse imaginário não poderia ser natu-ralizado, que ele não se construiu a partir de uma neutralidade, pois pode ser com-preendido como o resultado de um processo de construção de uma nação queprecisava negar a matriz negra presente na sua cultura para legitimar o papel desubalternidade e inferioridade dos negros. Para isso, a formação da nossa herançacultural privilegiou a matriz branca e europeia, o imaginário do homem branco co-lonizador e vencedor, superior moral e racionalmente, civilizado, empreendedor.

Assim, a partir dos exemplos citados fui demonstrando como foram construídose cristalizados os elementos que desvalorizam a ancestralidade negra no Brasil e queessa desvalorização é naturalizada no cotidiano a ponto de não ser percebida. Comoexemplo, percebemos que uma única citação a um personagem negro presente nahistória da cidade de Londrina ocorreu em grupos nos quais havia professores(as)do CAIC Sul, que citaram o Dr. Clímaco, primeiro médico negro de Londrina,sendo isso reflexo do trabalho realizado nessa escola, que possui um histórico deações sobre a temática etnicorracial.

Somente a partir desse levantamento conjunto do imaginário estruturantedo racismo foi possível retornar a uma reflexão sobre os conteúdos e argumentosapresentados anteriormente pelos professores:

“O próprio negro tem preconceito contra o negro!”: Foi debatido como a socie-dade brasileira ainda legitima e sustenta o “mito da democracia racial” e como osvalores e as imagens da “ideologia do branqueamento” são interiorizados e, por con-seguinte, exteriorizados tanto pelos brancos como por parte da população negra.

“No sul do país (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná) não tem negro”:Foram apresentados os resultados do mapeamento realizado pelo grupo de estu-dos Clóvis Moura, instituído em 2006, que identificou cerca de 90 comunida-des quilombolas no Estado do Paraná.

“Ah! Mas eles estão nessa situação porque não se esforçam, veja os imigrantes, seesforçaram e venceram!”

Demonstramos a diferença de condições e oportunidades nas quais foramtrazidos para o Brasil os africanos escravizados e os imigrantes europeus, e comoessas diferenças de condições históricas se atualizam nas condições presentes dosseus descendentes.

Diante dessas questões, retornei os argumentos por eles apresentados, utilizan-do como argumento a memória que cada um possuía com relação à população ne-gra para desconstruí-la, atestando que, por fazerem parte dessa sociedade, por se

Page 138: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

O imaginário sobre o negro no espaço escolar 125

constituírem enquanto pessoas e seres humanos na recursividade do trajeto antro-pológico, eles não se encontravam isentos de terem as suas imagens e o seu imagi-nário livres das influências culturais, sociais e simbólicas da sociedade e do mundono qual habitam, pois, como afirma Durand (1997: 41), o imaginário é produzi-do no “trajeto antropológico” entendido como:“...a incessante troca que existe ao ní-vel do imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas queemanam do meio cósmico e social”. Ou seja, o imaginário é produzido na trajetividadeentre o subjetivo e o objetivo, o pessoal e o meio sociocultural.

Finda a parte de levantamento e desconstrução do imaginário negativo so-bre o negro, iniciamos um processo de (re)construção de um outro imaginário.Tocamos a música: “África”, do grupo Palavra Cantada.

Quem não sabe onde é o SudãosaberáA Nigéria, o GabãoRuandaQuem não sabe onde fica o Senegal,A Tanzânia e a Namíbia,Guiné BissauTodo o povo do JapãoSaberáDe onde veio o Leãode JudáAlemanha e CanadáSaberãoToda a gente da Bahiasabe jáDe onde vem a melodiaDo ijexáo sol nasce todo diaVem de lá

Entre o Oriente e ocidenteOnde fica?Qual a origem de gente?Onde fica?África fica no meio do mapa do mundodo atlas da vidaÁfricas ficam na África que fica lá e aquiÁfrica ficaráBasta atravessar o marpra chegarOnde cresce o Baobápra saberDa floresta de OxaláE malêDo deserto de AlahDo ilêBanto mulçumanagôYorubá

A letra da música ilustra o continente africano como berço da humanida-de, já que os fósseis mais antigos dos primeiros seres humanos foram encontra-dos ali. Essas imagens reforçam um sentido de uma origem em comum, queperante uma discriminação que se apresenta pela cor da pele perde o seu senti-do, já que todos os seres humanos descendem da Mãe África.

Page 139: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

126 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

A Experiência com os Alunos da Escola MunicipalElias Kauan, Londrina, PR

A formação e sensibilização iniciada com os(as) professores(as) prosseguiamao mesmo tempo em que os graduandos(as) e recém-formados(as) realizavam asobservações nas escolas com o apoio do roteiro de observação anteriormente cita-do. A oficina “Imaginário e Memória Docente” realizada com os(as) professores(as)teve muito êxito; eles(as) se abriram para as novas possibilidades de aprender so-bre a história e a cultura afro-brasileira e africana.

Passamos, então, à exposição do documento das “Diretrizes CurricularesNacionais para implementação da Lei 10.639/03”, a partir da qual o diálogo foimais harmonioso. Contamos com maior envolvimento e aceitação dos(as) profes-sores(as) e gestores(as) para iniciarmos as oficinas com os alunos e alunas nas es-colas. Mais do que isso, ficaram convencidos da importância e da necessidade dedesenvolvermos um trabalho como esse em suas realidades escolares.

Iniciamos a realização das oficinas na Escola Municipal Elias Kauan, tendocomo objetivo principal sensibilizarmos alunos(as), professores(as) e equipe peda-gógica de forma lúdica e prazerosa.

Relatos de observação

Nos relatos de observação dos graduandos(as), as questões que mais chama-ram a atenção na escola citada foram as seguintes:

� A grande carência afetiva das crianças.

� Casos de algumas crianças que se automutilam.

� Comentários negativos sobre suas características físicas (cabelos e pele)realizados pelos(as) alunos(as) que se ofendem mutuamente e de formaviolenta e agressiva.

� Sexualização exacerbada.

� O não respeito no convívio entre professores(as) e alunos(as) e entrealunos(as) e alunos(os): muitos gritos, empurrões e correrias.

� A não sensibilidade de alguns professores(as) em lidar com a realidadesocioeconômica, etnicorracial e cultural dos educandos.

� Baixa autoestima das crianças.

Page 140: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

O imaginário sobre o negro no espaço escolar 127

Oficina do camaleão

A partir desses pontos, decidimos iniciar o trabalho realizando uma oficinacom as crianças de 6 a 9 anos com o tema: “Identidade e Diversidade: A constru-ção da autoestima na infância”. Tinha por objetivo possibilitar às crianças, por meiode atividades lúdicas, a expressão de sua identidade, contribuindo para a constru-ção da sua autonomia, para a percepção de si própria, do outro e do seu corpo,problematizando as diferenças e semelhanças entre si de forma lúdica e criativa,visando à autoaceitação, e a construção de referenciais positivos das suas caracte-rísticas físicas e afetivas.

A oficina se iniciou com a leitura do livro Bom Dia Todas as Cores, de RuthRocha. O livro conta a história de um camaleão que tem a preferência pela corrosa e sai de casa contente da vida para passear na floresta. Acontece que, duran-te o seu passeio, sempre encontra outro animal que critica a sua cor, o que faz comque imediatamente ele mude de cor para agradá-lo.

Ao final do dia o camaleão volta para casa e reflete que os gostos das pessoassão diversos e que ele não pode querer agradar a todos, é preciso agradar a si mes-mo, por isso no outro dia quando ele encontra o primeiro animal que fala sobre asua cor ele responde:

“Eu uso as cores que eu gosto,

e com isso faço bem.

Eu gosto dos bons conselhos,

mas faço o que me convém.

Quem não agrada a si mesmo,

Não pode agradar ninguém...”

(Rocha, 1998: 35).

Passamos, então, a explorar os conhecimentos científicos sobre as caracterís-ticas do camaleão e a sua capacidade de mudar de cor, o chamado mimetismo.“Por que o camaleão muda de cor?”, “E nós, podemos mudar de cor?”, “Quem gosta-ria de mudar de cor?”, “Você gosta de sua cor?”, “Se pudesse mudar de cor que cor es-colheria?”. É muito interessante perceber a resposta dada por muitas crianças:

– Você gosta da sua cor?

– Não!

Page 141: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

128 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

– Por quê?

– Porque preto é sujo, preto é fedido, preto não presta!!

– De que cor você gostaria de ser?

– Branco!

Desse modo, utilizamos a literatura explorando-a para a fruição estética, parao desenvolvimento da imaginação, mas também como pretexto para explorar deforma eufemizada, que foi trazida à tona na fala dos(as) alunos(as), as questõessobre sua própria autoimagem, ponto inicial do processo de transformação. Emum trabalho próximo ao que Sanchez Teixeira define como uma “pedagogia doimaginário”:

“Apostando nessa possibilidade, penso no olhar oximorônico proposto porPaula Carvalho (1986, 1991) através da culturanálise de grupos, a qual nospermite apreender tanto os traços culturais estruturadores da sua identidade‘oficial’ quanto aqueles que, gestados nos espaços intersticiais, fronteiriçosentre o instituído e o instituinte, reconfiguram sua imagem, abrindo espaçopara uma pedagogia do imaginário. Pedagogia que, ancorada em uma ‘razãosimbólica’, nos ensine a desaprender a pedagogia oficial, a integrar razão eimaginação. Pedagogia do imaginário que, ao estimular o ‘imaginárioaprendente’, atribua sentido à educação e revalorize o humano” (SanchezTeixeira, 2008a: 2).

Dinâmica “olho-no-olho” e a reconstrução da autoimagem

Após esse primeiro momento, passamos à dinâmica “olho no olho”. Colo-camos as crianças em círculos e pedimos para formarem pares. Somente um para cada vez se dirigia ao centro do círculo. Cada criança devia olhar o outro e di-zer o que possuem de semelhanças e diferenças entre si. Após um primeiro mo-mento, a classe poderia ajudar, e então troca-se o par do centro do círculo.

A atitude das crianças com relação a essa dinâmica foi bem interessante; a difi-culdade em verbalizar as diferenças na cor da pele, na textura dos cabelos, na altura,traços físicos, etc., foi muito importante para que elas se vissem e se percebessem. Éclaro que elas se veem todos os dias, mas não da forma como estava sendo proposto:a construção de um olhar que olha para o outro mirando a si mesmo.

É importante frisar que muitas crianças não quiseram participar, e uma de-las, de traços indígenas e negros, foi para baixo da mesa e a muito custo, commuita paciência e dedicação, foi retirada de lá.

Page 142: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

O imaginário sobre o negro no espaço escolar 129

Depois de explorar e trabalhar com as diferenças e semelhanças entre cadaum, foi pedido para as crianças desenharem um autorretrato, buscando registrarcomo elas se veem e se percebem no mundo. Muitas crianças negras se desenha-ram loiras e de olhos azuis, e se coloriram com o lápis “cor de pele”, a partir dospadrões de beleza colocados pela sociedade, nos quais a criança negra não se vê enão se reconhece, em imagens dos livros de literatura (Branca de Neve, Cinderela,Gata Borralheira, etc.), nos desenhos animados, na publicidade, nas novelas...

Dessa forma, para lidar com a rejeição social à própria imagem que sentem,as crianças necessitam de um mecanismo equilibrador da própria angústia frenteao espelho:

“Neste jogo entre o individual e o coletivo, para driblar a individualidade, apsique coletiva se mascara de psique individual. A esta máscara, Jung deno-mina persona, considerando-a como um segmento arbitrário da psique cole-tiva. No seu entender, persona é uma expressão extremamente apropriada,pois designava originalmente a máscara utilizada pelos atores, significando opapel que iam desempenhar. Embora a persona tenha uma aparência indivi-dual, visto que sempre tem algo do indivíduo, ela é uma máscara da psiquecoletiva, destinada a produzir um determinado efeito sobre os outros, ocul-tando ao mesmo tempo a verdadeira natureza do indivíduo” (Sanchez Teixeira,2008b: 5).

Portanto, desenharem-se com as características citadas é uma forma de op-tar por uma máscara, por uma persona, para ocultar a sua verdadeira natureza, asua própria imagem, pois retirar as máscaras vestidas perante um imaginário tãonegativo sobre o negro, olhar para si mesmo se despindo das máscaras e personascoletivas, torna-se um processo muito doloroso.

Buscando transformar essas questões e procurando trazer para as crianças umaidentidade e autoimagem positivas, por fim, realizamos a “dinâmica do espelho”.

Colocamos um espelho dentro de uma caixa embrulhada em papel de pre-sente e dissemos às crianças que ali dentro se encontrava a coisa mais importantedo mundo! Que era preciso cuidar dela com muito carinho e tratá-la bem, frisandoa necessidade de gostar dela e amá-la, aceitá-la do jeito que é, com seus gostos,com seus jeitos, com a sua beleza, com a sua cor!

Assim, abríamos a caixa bem em frente ao rosto das crianças, e uma a umaia vendo seu sorriso se abrir como pétalas de flor, ao se verem sem máscaras, ten-do de lidar com o fato de serem o que há de mais importante no mundo, por se-rem crianças, por terem direito a sonhar e a serem felizes, independente de sua

Page 143: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

130 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

cor, credo, classe social ou universo cultural. A partir daí, as crianças começarama mudar a relação consigo mesmas, com o outro e com o mundo. Nas falas pos-teriores observamos que olhar para elas com a importância, com o respeito e coma consideração que elas merecem produziu efeitos reveladores no imaginário decada uma.

Por que você tem essa cor?

Continuando com esse processo de autorreconhecimento e valorização, ou-tra pergunta que foi feita às crianças na realização da dinâmica “olho no olho”, par-tindo das diferenças nas características físicas que apontavam entre si, era sobre oporquê de terem a pele daquela cor, ao que elas respondiam:

– Porque eu tomei muito sol!

– Porque a minha mãe tomava muito café!

– Porque eu caí na tinta quando pequeno!

– Porque eu comi muita jabuticaba!

Foi interessante perceber que as crianças negras deram respostas que não serelacionam com o fato de herdarem suas características físicas de seus antepassados,diferentemente das crianças de pele mais clara que respondiam orgulhosamente:

– Minha avó era italiana!

– Eu sou descendente de espanhóis!

– “Puxei” o meu pai!

A menina bonita do laço de fita

Passamos à leitura de outro livro de literatura infantil, de Ana Maria Ma-chado, intitulado Menina Bonita do Laço de Fita, que conta a história de umcoelho apaixonado pela menina protagonista do livro que tem a pele escura. Elepergunta a ela qual o seu segredo para ser tão bonita e tão pretinha, ao que amenina vai respondendo exatamente as mesmas coisas que as crianças respon-deram: atribuindo ao que come, toma ou faz o motivo para ser daquela cor, atéo momento em que a sua mãe ouve a conversa e intervém:

“A menina não sabia e já ia inventando outra coisa, uma história de feijoada,quando a mãe dela, que era uma mulata linda e risonha, resolveu se meter edisse:

Page 144: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

O imaginário sobre o negro no espaço escolar 131

– Artes de uma avó preta que ela tinha...

Aí o coelho – que era bobinho, mas nem tanto – viu que a mãe da meninadevia estar mesmo dizendo a verdade, porque a gente se parece sempre comos pais, os tios, os avós e até com parentes tortos. E se ele queria ter uma filhapretinha e linda que nem a menina, tinha era que procurar uma coelha pretapara se casar”(Machado, 2004: 13-14).

Chegamos, através da mobilização do imaginário que valoriza positivamen-te a cor negra, até o real motivo pelo qual a menina tem aquela cor de pele, con-vergindo para o fato de que eles também são negros por terem antepassadosafricanos.

Dialogando sobre o livro, projeção positiva para todas as crianças, indepen-dentemente da cor, por romper com um padrão de beleza único, problematizamoscom as crianças essa falta de referências sobre os seus antepassados, sobre a suaancestralidade e a não compreensão sobre as suas características físicas e culturais.

Pontuamos que os africanos foram trazidos para o Brasil de forma violentae desumana e que, apesar desse triste histórico, retomaram as suas vidas trazendopara cá suas experiências, sua forma de ver o mundo, sua cultura, religiosidade,práticas sociais, e que todo esse conhecimento trazido por seus antepassados es-tava impregnado na cultura brasileira de norte a sul do país.

Surgiram então as questões: “Mas de que lugares vieram os africanos que aquichegaram?”; “Como e por que foram trazidos pra cá?”

O imaginário sobre a África: do exótico a novos conceitos

Essas questões nos levaram ao desenvolvimento de outra oficina que tevecomo tema a África. Realizamos o levantamento do Imaginário sobre a África comos alunos e alunas buscando perceber, a partir de suas falas, quais as imagens pre-sentes no imaginário com relação à África, bem como as construções e conteú-dos que apresentavam sobre o tema.

Para realizarmos o levantamento sobre o imaginário da África, confecciona-mos um mapa da África e perguntávamos às crianças: “O que tem na África”, “Oque você acha que existe lá?”, “Como você imagina a África?”, “Como eles vivem?”,“O que você sabe e lembra-se do que aprendeu sobre lá?”. No mapa, as crianças co-lavam as palavras sobre o que tem na África e o que sabem sobre esse continente.

Novamente fomos ouvindo informações muito estereotipadas e preconceituosas.

Page 145: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

132 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Fomos observando que as crianças possuem uma visão construída a partir dedesenhos e filmes, uma terra habitada por animais, leões, girafas e zebras, comuma geografia única, onde não há cidades, escolas, e quando indagadas sobre quemvive na África respondem: escravos!

Percebemos que as imagens sobre o negro e a África ainda encontram-se rela-cionadas somente à escravidão. A África não é vista como um continente com dife-rentes países, etnias e nações que possuem línguas, costumes, histórias, religiosidadese visões de mundo próprias e diversas. Com relação aos(as) professores(as), pode-se afirmar o mesmo, pois percebemos grande surpresa quando mencionamos queo Egito se localiza no continente africano e, assim sendo, eram africanos os ho-mens que construíram as pirâmides.

O objetivo da oficina era proporcionar às crianças a construção de conceitossobre a África com relação à geografia (continente e países), diversidade social,política, econômica e cultural, enfatizando a origem africana de todos os ho-mens, como também dos nossos antepassados mais diretos. (Por isso alguns denós temos a pele negra.)

Assim, valorizamos positivamente as histórias e narrativas sobre a África,sensibilizando nossos educandos para a cultura, a ética, a estética, os mitos e ló-gicas africanas e afro-brasileiras.

Passamos às atividades com bandeiras de alguns países da África, escolhemosa da Nigéria, a do Congo, a de Angola e a da África do Sul, buscando contex-tualizar que existem várias nações ou grupos étnicos que possuem línguas, costu-mes, religiosidades e culturas diferenciadas. Queríamos também que percebessemque são diversas as origens dos africanos que vieram para o Brasil, que, a partir dasua ancestralidade africana, desenvolveram expressões como o jongo, a capoeira,o maracatu e tantas outras que fazem parte da nossa cultura:

“Entender a beleza, a sensibilidade e a radicalidade da cultura de tradiçãoafricana, impregnada de norte a sul deste país e não somente no segmentonegro da população, é um aprendizado a ser incorporado pelos que cui-dam das políticas educacionais. O mundo africano recriado no Brasil ébelo e cheio de sabedoria. Nele, tanto o homem quanto a mulher são vistosem sua totalidade e não como fragmentos. Nesse modo de ser e de ver aexistência e o mundo, as várias dimensões do ser humano são destacadas: aracional, a ética, a estética, a corpórea, a espiritual, a ecológica, a política,etc., construídas ao longo do acontecer humano e nos diferentes ciclos davida” (Gomes, 2001: 95).

Page 146: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

O imaginário sobre o negro no espaço escolar 133

Oficina de jongo6

Após todo esse percurso, finalizamos as atividades do ano com a oficina dejongo, na qual as crianças vivenciaram na própria corporeidade a dança, o canto, osmovimentos, os toques dos tambores e o ritmo das palmas de uma ancestralidadeque se encontra pulsante na cultura brasileira. Todo esse processo narrado foi fun-damental para que pudéssemos levar os tambores à escola de forma contextualizada,sem que eles se tornassem mais uma imagem negativa.

Portanto, ao se despirem dos preconceitos e estereótipos, as crianças puderammergulhar e vivenciar no próprio corpo, na quadra da escola, com suas professorase a diretora da escola, uma expressão dos seus antepassados, compreendendo o jongo,a capoeira e outras expressões afro-brasileiras como uma herança da qual tambémtinham o direito de se orgulhar.

E, assim, as “imagens da angústia” e o medo ou repulsa que suscitavam es-sas imagens foram cedendo lugar às imagens positivas, ao autoconhecimento eassunção da própria identidade.

Algumas crianças tomaram coragem e passaram a narrar o que aprenderamcom seus pais e avós, falaram das festas nos terreiros de umbanda que frequentam,das cantigas e festas a São Cosme e Damião, muitas vezes um pouco tímidas, ou-tras vezes ansiosas para verem relatado, naquele espaço, um conhecimento e umsaber que traziam dentro de si, muito parecido com o que estavam aprendendosobre o jongo com relação à força da palavra e a função da oralidade como reali-zadoras, como potencializadoras da criação e da relação com o mundo, o respei-to aos mais velhos, a complementaridade entre o feminino e o masculino, a funçãoda música e do canto como linguagem simbólico-educativa que ensina e constróisentidos, o ensinar e o aprender coletivo, cotidiano e existencial, pautado nas his-tórias de vida e no exemplo da labuta, da luta diária para a sobrevivência que ob-servam na família e no bairro.

A força da ancestralidade africana se fez presente na articulação das estru-turas de sensibilidade heróica e mística que se harmonizaram nas imagens e sím-

6. O jongo é uma expressão afro-brasileira dos negros escravizados que surgiu nas senzalas das fa-zendas no Brasil. Compreende a dança, o canto, os tambores denominados tambu e candongueiroe os jongueiros que improvisam os pontos (músicas, versos, letras) cantados e respondidos por todosna roda. É também uma forma de comunicação em linguagem cifrada que os negros bantu-angoleses criaram, uma expressão poética e complexa de resistência, momento de liberdade noqual exercitavam sua socialidade em meio à situação de cativeiro.

Page 147: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

134 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

bolos, que convergiram a uma sensibilidade dramática (Durand, 1997)7 da rodade jongo, das palmas, da formação circular, do feminino e do masculino no cen-tro do círculo, da criança, do jovem e do velho na escola, na roda, todos dan-çando e cantando juntos acompanhados pelos tambores, no ritmo do coração.

Por meio da vivência corporal do jongo, fomos transformando sofrimento emalegria, utilizando-nos da prática simbólica conforme nos ensinou Dona Mazé,anciã da comunidade jongueira do Tamandaré que, nesse dia 17 de novembro de2004, deixou-nos “lá para as terras d´Aruanda”:

“O jongo é um divertimento, o jongo é uma alegria, o jongo é uma oraçãoque chama a atenção do povo. É pra tirá a dor que a gente traz por dentro dagente, a mágoa que a gente sente, que a gente sente muita mágoa, a gentefica muito burricido com o que acontece. Mas de você entrá na roda dejongo, se você puxá aqueles ponto sagrado, ninguém mais sente dor. Que-rem cantá, querem bate palma, querem mostrá o quê que é o jongo. Ojongo é uma bença, o jongo é uma alegria para todos, eu quero que todosfique ciente que o jongo não e coisa ruim, o jongo é a alegria, é a paz, é afelicidade a todos. E a todos vocês um grande axé.”

Maria José Martins de Oliveira, 75 anos, jongueira do Tamandaré

Referências Bibliográficas

ASANTE, Molefi Kete. Afrocentricidade: notas sobre uma posição disciplinar. In: NASCIMEN-TO, Elisa Larkin (Org.). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo:Selo Negro, 2009. p. 93-110.

BRASIL. Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Diretrizes curricularespara a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: SEPPIR, 2004.

DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fon-tes, 1997.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.

________. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

GOMES, Nilma Lino. Educação cidadã, etnia e raça: o trato pedagógico da diversidade. In:CAVALLEIRO, Eliane. (Org.) Racismo e anti-racismo na educação: repensando a nossa es-cola. São Paulo: Selo Negro, 2001.

MACHADO, Ana Maria. Menina bonita do laço de fita. São Paulo: Editora Ática, 2004.

ROCHA, Ruth. Bom dia, todas as cores. São Paulo: Quinteto Editorial, 1998.

RODRIGUES, José Carlos. Antropologia e comunicação: princípios radicais. Rio de Ja-neiro: Espaço e Tempo, 1989.

Page 148: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

O imaginário sobre o negro no espaço escolar 135

SANCHEZ TEIXEIRA, Maria Cecília. Culturas escolares e novas configurações culturais: de umacultura da razão a uma pedagogia do imaginário. In: SOUZA, Gomide de et al. Sexualidade,diversidade e culturas escolares: contribuições ibero-americanas para os estudos de educação,gênero e valores. Araraquara: FCL-UNESP, Laboratório Editorial; Alcalá de Henares: Universidadde alcalá, 2008a. (Temas em Educação Escolar, n. 9.)

________. O “pensamento pedagógico” de Jung e suas implicações para a educação. Revista daEducação, São Paulo, v. 8, p. 18-29, 2008b.

SANT’ANA. Antônio Olímpio de. História e conceitos básicos sobre o racismo e seus derivados.In: MUNANGA, Kabengele (Org). Superando o racismo na escola. 2. ed. Brasília: MEC/SECAD, 2005.

SANTOS Jr. Renato Nogueira dos. Afrocentricidade e educação: os princípios gerais para um cur-rículo afrocentrado. Revista África e Africanidades, ano 3, n.11, 2010.

SECAD. Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal n. 10.639/03. Brasília:MEC/SECAD, 2005.

SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e. Aprendizagem e ensino das africanidades brasileiras. In:MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o racismo na escola. 2. ed. Brasília: MEC/SECAD, 2005.

Page 149: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook
Page 150: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE: UM ESTUDO

CULTURANALÍTICO DE ALUNOS RIBEIRINHOS

DO PANTANAL MATO-GROSSENSE*

Emília Darci de Souza Cuyabano**

Introdução

Este capítulo apresenta resultados de uma pesquisa a respeito das manifes-tações simbólicas e culturais de um grupo de alunos de uma comunidade ribei-rinha no pantanal mato-grossense, município de Cáceres, MT, com o objetivo decompreender como ressignificavam, no cotidiano, as práticas culturais do seu gru-po e as práticas educativas da escola.

A pesquisa foi realizada em uma escola pública rurbana1 da cidade de Cáceres,situada em Porto Limão, área de fronteira entre Brasil e Bolívia. Encravada no ex-tremo oeste da fronteira, situa-se em uma região2 que por muito tempo conviveu como isolamento, não só geográfico, mas pela falta de comunicação e dificuldade de aces-so a outros centros, conservando a herança cultural de sua ancestralidade indígena.Atualmente, para fugir de rótulos estigmatizantes, os moradores dessa comunida-de passam a se considerar apenas fronteiriços, pantaneiros ou mesmo cacerenses,buscando o pertencimento como forma de se abrigar da exclusão social.

Fundamentando-se na Antropologia do Imaginário de Gilbert Durand e naCulturanálise de Grupos de José Carlos de Paula Carvalho, a pesquisa teve a in-

* Pesquisa realizada no Programa de Pós-Graduação da Universidade de São Paulo, doutoradoem Educação, sob orientação da Profª. Drª. Maria Cecília Sanchez Teixeira.

** Doutora em Educação na FEUSP. Professora Adjunto da Universidade do Estado de Mato Grosso(UNEMAT). Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Educação (NEPE), integrantedo CICE-USP.

1. Remeto ao trabalho de Sanchez Teixeira (1994), para melhor entendimento da expressão“rurbano”, como conceito socioantropológico, utilizado por Gilberto Freyre (1982), para de-signar a coexistência de valores e estilos de vida rurais e urbanos.

2. A região de Cáceres foi criada em decorrência do processo de expansão territorial empreendi-do pela coroa portuguesa e fixação da fronteira ocidental do império lusitano. A cidade deCáceres tem, pois, sua origem no século XVIII, por motivos geopolíticos que ocasionaram o mo-vimento de ocupação da região noroeste do rio Guaporé e margem ocidental do rio Paraguai.

Page 151: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

138 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

tenção de compreender a dinâmica sócio/psico/organizacional que permeava ainteração entre a cultura escolar e as culturas dos grupos de alunos.

Para Durand (1989: 29), o imaginário é um sistema dinâmico, organizadorde imagens, cuja função é mediar a relação do homem com o mundo, com o outroe consigo mesmo. Através dele o homem estabelece uma relação significativa como mundo, pondo a descoberto o trajeto antropológico: “incessante troca que existeno nível do imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimaçõesobjetivas que emanam do meio cósmico e social”.

Uma das formas de manifestação do imaginário são as práticas simbólicasque, através de um sistema sociocultural e de suas instituições, traduzem, numapráxis, as produções imaginárias da sociedade e da cultura (Paula Carvalho, 1991).As práticas simbólicas, ao tecerem redes de significado, criam vínculos de solida-riedade e de contato, organizando, assim, a socialidade dos grupos. Nesse senti-do, o referido autor afirma que toda prática simbólica é organizacional e educativa,pois é o seu caráter organizacional que lhe confere o sentido educativo. Organi-zar é, pois, por meio das práticas simbólicas, educar.

Na abordagem culturanalítica aqui adotada, a escola é tratada como siste-ma sociocultural, que expressa tanto a estática dos sistemas sociais como a dinâ-mica dos sistemas culturais. De um lado, os sistemas de parentesco, os sistemaspolíticos e os sistemas econômicos; de outro, os sistemas de personalidade, os sis-temas morais e consuetudinários, os sistemas estéticos, cognitivos e actanciais e,enfim, os sistemas de administração do sagrado. O que implica que seu estudorecobre os estudos dos grupos mais ou menos estruturados, o estudo das relaçõessociais e o estudo das formas que a sociedade global apresenta.

Entendendo que é na vida dos grupos e dos indivíduos que a cultura seinstrumentaliza como circuito entre os polos, como mediação simbólica a uniros sistemas simbólicos-códigos-normas e as práticas simbólicas, Paula Carvalho(1991) assim define a cultura patente e a cultura latente.

A cultura patente diz respeito ao polo das formas organizacionais, estru-turantes, em que se manifestam os códigos, formações discursivas, sistemas deação, isto é, o aspecto lógico-cognitivo, o ideário e as ideações:

“(...) é um nível racional de funcionamento do grupo ou pólo técnico dasinterações grupais, regido portanto pelos perceptos e pelas funçõesconscienciais pragmático-reflexivas” (p. 105).

A cultura latente diz respeito ao polo do plasma existencial ou magma, o ní-vel mais profundo, no qual se manifestam as vivências, o espaço, a afetividade, oafetual, o imaginário e as fantasmatizações. Para o autor,

Page 152: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Educação e diversidade 139

“é o nível afetivo, ou afetual, de estruturação do grupo ou o pólo fantasmático-imaginal das interações grupais, regido, portanto, pelo dispositivo inconscien-te em suas caracterizações analíticas e neuropsicofisiológicas, pelas funçõesconscienciais emanadas do onirismo coletivo...” (p. 123).

Para esse autor, a descrição e o inventário da paisagem cultural do grupo deveser, numa primeira etapa, fenomenológica, por meio de um mapeamento da cul-tura patente (ideário, ideações, códigos, sistemas de ação, formações discursivas,modos de pensar e agir) e, numa segunda etapa, analítica, pelo mapeamento dacultura latente (imaginário, fantasmatizações, vivências, vínculos afetuais, modosde sentir).

Entendendo a mediação simbólica como circuito entre os polos patente e la-tente, o autor mostra que dessa relação surge uma cultura emergente que se mani-festa nos “transdutores híbridos”: as ideo-lógicas, as mito-lógicas, as axio-lógicas, asrito-lógicas, as imagens-desejos, as sensibilidades, os resíduos, as derivações.

Pois bem, uma das heurísticas propostas por Paula Carvalho para apreensãodo imaginário é o Teste Arquetípico de Nove Elementos – AT-9 – criado por YvesDurand (1987: 91) a partir do pressuposto de que seria possível encontrar a or-dem estrutural do imaginário proposta por G. Durand em fatos relevantes dacriatividade imaginária no homem comum.

O AT-9 é um instrumento de sociodiagnóstico que permite mapear a cul-tura dos grupos. Compõe-se de uma parte desenhada (o desenho), de uma parteescrita (o discurso), de um quadro-síntese e de um pequeno questionário.

O desenho e o discurso (narrativa) se constroem estimulados por nove pa-lavras-chave, ou seja, nove estímulos arquetípicos: personagem, queda, espada,refúgio, monstro, elemento cíclico, água, animal e fogo. Têm por característicacomum a universalidade que é dada pelos esquemas substantificados nos arqué-tipos. Funcionam como estímulo para que aflore o problema da angústia do tem-po e da morte, bem como os meios encontrados pelo sujeito para resolvê-los.

Assim, o personagem é o elemento de dramatização que vai encarnar, geral-mente, o herói – objeto de projeção ou de identificação do sujeito – a partir doqual será estruturado o relato. A queda e o monstro devorante são os elementosque permitem colocar o problema da angústia do tempo e da morte. A espada,o refúgio e o elemento cíclico funcionam como motivadores das estruturações,correspondendo a espada ao universo heróico, o refúgio ao místico e o elementocíclico ao sintético. A água, o animal e o fogo são elementos complementares quepodem auxiliar o personagem ou opor-se a ele.

Page 153: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

140 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Considerando que a cultura latente é do domínio arquetipal, enquanto a pa-tente expressa as configurações das variações socioculturais, e a emergente localiza-se nesse trajeto, estudamos aspectos do imaginário dos alunos, apreendidos a partirde diferentes recursos que foram utilizados e que passam então a ser analisados:

a) Registros do cotidiano dos alunos em seus respectivos Diários de Cam-pos, totalizando 484 páginas escritas.

b) Produções textuais dos alunos em diferentes ocasiões na escola.

c) Aplicação de questionários e entrevistas com os alunos.

d) Sessões de leituras de obras de literatura infantil com os alunos, seguidade comentários por escrito.

e) Aplicação do AT-9, com um exame dos universos míticos dos sujeitosselecionados, compreendendo a análise elemencial, funcional, simbólica eestrutural.

Apresentamos, então, um recorte do trabalho, trazendo primeiramente omeio para situar o contexto sociocultural desses alunos, a escola e os atores so-ciais, destacando suas vivências, representações e imaginário, a partir do levan-tamento e da análise de traços da cultura.

Os Alunos e a Cotidianidade Oximorônica

No início do ano, foram distribuídos aos alunos cadernos de 48 folhas paraserem utilizados como Diário de Campo. Foi solicitado que nele “registrassem fa-tos, acontecimentos e situações do dia a dia que julgassem importantes em suavida”. Ao final de 30 (trinta) dias, os cadernos foram devolvidos. O grau deenvolvimento e satisfação no desenvolvimento da atividade atingiu 70% dos alu-nos, enquanto 30% revelaram ou apatia ou dificuldades de escrita. Outro recur-so, com vistas a acercar-me da cultura patente dos alunos, foi a aplicação de umquestionário com 36 questões que envolviam as instituições e fatores responsáveispelo processo de socialização sugeridos por P. Erny (1981).

Um fato que chamou a atenção foi a presença de um cenário místico que semostrou aos “olhos”, dada a unanimidade de representações positivas em relação aolugar onde moram, descrevendo-o como um “lugar maravilhoso, tem um rio lindo.Aqui no Limão tem ar puro, o campo é lindo e bem verdinho”; “cheio de árvores, eu gostode morar nele porque é bonito”; “é calmo, não tem guerra como no Rio de Janeiro”; “aquinós não corremos perigo no trânsito, porque é muito pouco movimento”; “tem uma pai-sagem superlegal, um rio maravilhoso, os sítios são lindos, as pessoas são superbacanas”.

Page 154: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Educação e diversidade 141

São manifestações especificas do “(...) amor humano por lugar ou topofilia”que, segundo Tuan (1980: 106), engloba aqui as respostas ao meio ambiente,desde a apreciação visual e estética ao contato corporal, as relações de saúde e fa-miliares, bem como a análise do impacto da urbanização na qualidade de vida paraa apreciação do campo.

Valorizavam-se, assim, a paisagem natural, a quietude, a ausência de violên-cia, acidentes de trânsito e da poluição, deixando implícito no discurso uma com-paração com o ritmo de vida nos grandes centros. No entanto, uma ressalva muitointeressante foi feita em voz alta por um dos alunos, “é muito bom, só que é muitoperigoso”, completando a seguir que “tem lobisomem”, no que é aplaudido pelamaioria, que acena entusiasticamente com a cabeça.

Estão presentes na comunidade narrativas míticas, que giram num univer-so de águas encantadas:

“(...) Vivente, na água tem mais, porque na água tem muito bicho feio, temterra, tem serpente, tem tudo quanto é coisa que é, na água, duvida de águaquem quisé, porque ali tem tudo que não presta dentro dele, a gente não vêele, mas ele ta vendo a gente la do fundo d’água, é porque ele é bicho, né,d’água, não, você pensa só peixe, mas não é peixe não, tudo” (Dona Satu).

Da. Maria C. T. Barros, a rezadeira da comunidade, amante do rio e da pes-ca, circunspecta, voz pausada e doce, parece contemplar de longe as histórias, quesão marcas do seu “vivido”:

“(...) minha avó, sempre ela dava medo (...) a história do boi d’água mecontaram, é na ponta do rio, ele sai d’água, agora lá no Barrancão tinhaminhocão, porque quando passavam pescando, ele ‘chupava’ a gente”.

Sob o uniforme escolar, lateja essa cultura trazida pelo contexto socioculturaldemonstrada nas “crenças” dos mais antigos, percebendo-se aqui a força educativado mito, ao colocar limites e acenar valores ao homem ribeirinho. O respeito àságuas vinha envolto na crença de que seres sobrenaturais habitavam esse espaço,para proteger as espécies e a própria natureza da ação entrópica do homem.

Comprovando esse cenário místico, surgiu também a imagem do refúgio nadescrição da casa onde moram. O que chamou a atenção foi o valor afetivo dadoà casa enquanto “morada”: “minha casa só tem duas peças, mas cabe minha famíliaque eu gosto muito”; “minha casa é o meu lar, de muita alegria, de amor e de paz”.Revela-se aqui um cotidiano de sadia convivialidade com o que aí existe: “respon-sável pela figuração ‘existencial do refúgio’: só pode ser o espaço natural ou espa-ço da convivialidade, a Natureza ou nossa casa” (Paula Carvalho, 1994: 90).

Page 155: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

142 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Nos Diários de Campo vários são os registros de situações que sinalizam paraa valorização da família. Os laços afetivos e as relações sociais são sempre “come-moradas”, celebradas, segundo os depoimentos que se seguem:

“Hoje deu uma chuva muito boa para nós. Foi bom porque o arroz de meuavô precisava da chuva, porque o arroz do meu avô plantou já estava morren-do”. “Fomos esperar o ônibus na estrada, eu, minha avó e meu irmão estáva-mos brincando de jogar pauzinho para ver quem atirava mais longe (...) meuirmão ganhou e eu fiquei ‘emburrada’” (L., em 16/03/ e 13/04, respectiva-mente).

“Hoje meu avô está feliz, está plantando capim, para colocar as vaquinhasdele” (C. L., 14/05/04).

Nos fios dessa teia familiar costuram-se valores fundamentais como solida-riedade, respeito, consciência ambiental, amor à família, valorização do trabalhoatravés de diferentes atos de socialização, em que esteve presente o contar, o re-compensar, o valorizar que, por sua vez, podem desencadear mecanismos psico-lógicos e comportamentais como a imitação, o hábito, a identificação e, o maisimportante, a formação de atitudes.

Diferentes instituições, como família, meios de comunicação, religião, vêmcumprindo sua função socializadora na comunidade. Por outro lado, pais, avós,parentes, amigos desempenham os papéis de agentes de socialização. O interes-sante nesse processo é a presença de agentes míticos como anjos, demônios, he-róis, entidades “encantadas” que circulam na comunidade.

Ainda que a religião católica seja predominante no local e que os alunosse declarem católicos, ao lado dos cultos, dos preceitos da fé cristã e dos seusrituais encontram-se expressos em seus Cadernos de Campo, outras crenças queconfiguram um sincretismo muito rico na comunidade: a crença no sobrenatural.Essa temática é muito recorrente nas narrativas orais ouvidas dos mais velhos.

O medo3 da destruição da natureza presente nessas histórias fantásticas con-centra-se em torno do rio, senhor da vida e da morte na comunidade, alimentan-do, dessa forma, o imaginário dos alunos. Valores como obediência e respeito são

3. Segundo Delumeau (1993), o medo é um componente maior da experiência humana, ape-sar de todos os esforços que se faz para superá-lo, e sua presença pode ser identificada nos com-portamentos de grupos desde os povos primitivos até a sociedade contemporânea. No caso dosribeirinhos aqui estudados, o medo ligado às águas desconhecidas ainda se mantém profun-damente enraizado na tradição, que segundo o autor se traduz como medo espontâneo per-manente.

Page 156: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Educação e diversidade 143

repassados pela repetição da história no tempo, constituindo-se verdadeiros atospedagógicos presentes no contar, repetir, ensinar, convencer, reprimir, recompen-sar, punir e proibir.

Esses atos organizam e educam, construindo significados. Confirmam oque Paula Carvalho (1990: 86) entende por educação: “prática simbólica basalque realiza a sutura entre as demais práticas simbólicas”. Como já dissemos an-teriormente, as práticas simbólicas são necessariamente educativas porque sãoorganizadoras do real. Nesse universo complexo aqui estampado, a cultura é pro-duzida, reproduzida, criada e reinterpretada no “jogo da diferença”, próprio dequalquer conjunto social.

De forma mais sistematizada, a escola representa o espaço social no qual sedevem transmitir conhecimentos, códigos, normas e padrões de comportamentoda sociedade. A análise das representações dos alunos sobre ela vem nos mostrarum “olhar de dentro”, que nem sempre é levado em conta na análise das organi-zações educativas, isto é, sua dimensão simbólica.

A maioria dos alunos tem uma imagem positiva da escola, nem tanto pelaslições, pelos conteúdos que devem ser aprendidos, mas pela valorização de açõesminúsculas que ali ocorrem, aproveitando todos os momentos disponíveis para o“estar-junto” com os professores e com os colegas, num ambiente afetual que alise constrói (o que não significava um relacionamento sem conflitos).

Inúmeros registros são encontrados nos Diários de Campo sobre a escola,ocupando basicamente 70% de suas folhas para ali colocar seus sucessos, fracas-sos, temores, angústias, desejos, sonhos, tristezas e alegrias.

A amizade e o espaço partilhado podem ser considerados a base da socia-lidade que cimenta o grupo. Na escola, o espaço escolar, enquanto estruturaçãosocietal-afetiva, reafirma, pela ritualização, o sentimento que os grupos têm de-les mesmos. É a socialidade que vem garantir a relação do instituinte com o ins-tituído na dinâmica social.

“De maneira subterrânea, a relação socialidade/espaço continua a existir (...).Creio que se trata, embora de modo ambíguo, do desejo de viver simbolica-mente a relação a um território comum (...), trata-se sempre de sair de simesmo, de romper a clausura do próprio corpo, de ter acesso a um corpocoletivo; enfim, de participar de um espaço mais amplo (...) a socialidade debase assenta-se em espaço partilhado” (Maffesoli, 1988: 159-161).

Page 157: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

144 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Percebe-se no pensamento maffesoliano que a sociedade não é apenas umsistema mecânico de relações econômicas, políticas ou sociais, mas um conjuntode relações interativas baseadas em afetos, emoções, sensações que formam o cor-po social: “observa-se um desejo de estar junto que, sendo não-consciente, nãodeixa de ser poderoso” (Maffesoli, 1996: 73).

Imagens Simbólicas dos Universos Míticos

Passando, agora, a analisar as estruturas do imaginário dos alunos, apreen-didas por meio do teste AT-9, devemos inicialmente fazer algumas observações noque se refere à aplicação e análise dos protocolos. Ao optar pela aplicação do AT-94 em grupos de alunos relativamente jovens, na faixa de 12 a 14 anos, levamosem conta o risco de coletar um material que talvez não traduzisse corretamenteo seu imaginário, em razão da dificuldade de expressarem-se por meio da escri-ta. No entanto, o relato da história contida no desenho é que nos surpreendeu,pois foi mais fácil fazê-la que o próprio desenho. Procurando entender melhor essarelativa facilidade encontrada pelos alunos, deparamos com as implicações da cul-tura oral, de ricos matizes e significações na comunidade, e sua relação com o pro-cesso de redação em questão, encaminhando-nos a uma importante reflexão a serlevada em conta na escola.

Segundo Terzi (1995), crianças de meios iletrados, ao iniciar a aprendiza-gem da língua escrita na escola, já apresentam bom domínio da língua oral. Desdemuito cedo elas não só ouvem histórias e participam de outros eventos, junto aosadultos, onde a comunicação se faz necessária, como também começam, esponta-neamente, a produzir suas estórias. A circulação de lendas, mitos, causos, na comu-nidade estudada, vem favorecer essa organização do pensamento evidenciada nosrelatos dos protocolos. Além de bem estruturados, isto é, com começo, meio e fim,os títulos dos mesmos revelaram coerência e capacidade de síntese. Desse modo,acredito ser de fundamental importância maior aproximação das narrativas oraisna construção da leitura e escrita na escola, uma vez que o desenvolvimento dalíngua oral e da língua escrita se influenciam mutuamente.

4. Cabe ainda registrar, apoiando-me em Badia (1999: 79-80), que a aplicação do AT-9 nestetrabalho teve em vista estabelecer “uma situação experimental de encenação de criatividade, au-torizando portanto um amplo espectro de utilização antropológico (...) tratando-se a aplicaçãoa crianças e adolescentes, funciona como um simples desenho e uma história solicitados porum adulto (...) e não fará correr mais riscos que aqueles envolvidos por todos os trabalhos decriatividades propostos nos quadros escolares”.

Page 158: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Educação e diversidade 145

Assim, pelos relatos, foi facilitada a análise dos protocolos, pois até os títulosjá sugeriam a estrutura imaginária dos autores, como veremos a seguir.

PROTOCOLO NO 01

IDADE: 14 SEXO: masc. SÉRIE: 6a

ESTRUTURA: Microuniverso Heróico Impuro

DESENHO

RELATO

O príncipe e o monstro da caverna

Era uma vez, um príncipe que vivia num castelo muito longe da cidade, umdia ele já estava cansado de morar sozinho no castelo sem ninguém para ajudarele para cozinhar, limpar o castelo com água, limpar a espada dele. Um dia elejá estava querendo dormir quando ele lembrou de uma bruxa que morava ali pertodo castelo, ele levantou e foi correndo lá na casa da bruxa pedir para ela fazer umfeitiço para ele arrumar empregados. A bruxa como era mais esperta ofereceu uma

Page 159: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

146 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

proposta para o príncipe. Ela disse – se você for na caverna do monstro e trouxera espada que está lá para mim eu te dou quantos empregados você quiser. E elefoi para o castelo pensando no que a bruxa disse quando ele chegou no castelo elevestiu a armadura e foi correndo para a caverna do monstro que estava dormin-do ele pegou a espada e chegou perto da cama e enfiou a espada bem no coraçãodo monstro e saiu correndo para fora da caverna quando ele chegou fora da ca-verna ele pegou o fósforo e tacou fogo na porta da caverna quando o monstro ten-tou sair ele morreu carbonizado o príncipe pegou a espada e levou para a bruxa,a bruxa fez o feitiço para o príncipe não demorou uma semana já estava cheio deempregado no castelo o príncipe ficou feliz para sempre.

O autor do protocolo tem grandes ambições. Comparando esses dados comos obtidos por meio de outros instrumentos, podemos observar que tem uma vi-são crítica da escola e a considera um mecanismo de ascensão social.

Perguntado sobre o que gostaria de ser no futuro, respondeu “quero ser as-trônomo”. E para isso diz “não podemos faltar um dia (de escola), porque hojepode ter aula diferente, professores diferentes, diretora diferente, e amanhã, umpaís diferente”.

Nas conversas informais com esse aluno o assunto girava, na maioria das ve-zes, sobre os avanços da ciência; comentava sobre a pesquisa realizada na USP sobrea cura da hepatite B, um avanço da medicina; a notícia da chegada da sonda es-pacial em Saturno no dia anterior; e o surgimento da Rosa Azul no Japão. A prin-cípio, diz ele, “gostava de desenhos, agora assisto noticiário todos os dias”.

A luta interior travada pelo autor, buscando as luzes da ciência, a ascensão,contrastam-se com as limitações impostas pelo meio, sobretudo o econômico. Faztrabalhos como “isqueiro”, como meio de sobrevivência, vendendo traíras (peixesmiúdos) aos turistas. No seu Diário de Campo, várias referências são feitas nessesentido “(...) hoje eu fui pescar isca para uns turistas que estavam parados lá napousada, só que estava ruim, eu só peguei 21 traíras”;“hoje eu não fui na escola,faltei, só que eu fui pescar no rio, não peguei nada, nem isca”. Isso demonstra aprecariedade da vida levada por sua família. Ainda assim, sonha. Sonha com o co-nhecimento.

Nas sessões de leitura, apresenta e comenta os fragmentos que ele mais gos-tou, reforçando esse imaginário de combate, de luta:

I – “Um bicho quer me prender

mas não vai

Page 160: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Educação e diversidade 147

Um bicho quer me caçar

mas não vai

Um bicho quer me comer

mas não vai

Um bicho quer me matar

No seu protocolo, instauram a angústia os seguintes elementos: o refúgio,o monstro, o cíclico e o fogo. A queda e água que “serviram para surgir o pei-xe”, segundo o autor, indicam possibilidades de conversão de valores, própriosà estrutura mística de sensibilidade.

No momento, o autor do protocolo, como o personagem da história, encon-tra-se em luta (exterior/interior) para atingir seus objetivos (o poder), e a escolapoderá estar contribuindo para a afirmação desses propósitos e encaminhando-oà sua busca (de sentido).

PROTOCOLO NO 02

IDADE: 14 SEXO: masc. SÉRIE: 8a

ESTRUTURA: Microuniverso Místico Impuro,pseudodesestruturado

DESENHO

Page 161: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

148 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

RELATO

O Sonho

Um dia uma menina ficou muito assustada com o fogo que vinha destruindoa floresta e com tudo isso acontecendo pegou sua espada de brinquedo e foi para oseu refúgio, no seu refúgio tinha bastante árvores, era muito bonito, ela ficou muitashoras no seu refúgio e foi escurecendo, a noite vinha chegando, ficou um luar ma-ravilhoso, a menina pensou, como que eu vou embora se já escureceu, ela ficou pen-sando em monstros muitos feios, ela pensou vou acender uma fogueira que nada vaime pegar, mas eu estou com muita sede, preciso de um copo de água, ela ficou bemquieta e ouviu um barulho e saiu para fora, e cada vez mais que ela ia andando obarulho ia aumentando e de repente viu uma queda de água muito bonita e ela deuum passo sai das folha uma borboleta bem brilhosa, ela imaginou quanta coisa ruime boa pode acontecer em uma vida de uma menina tão pequena só em um dia. Amenina ficou tão cansada e dormiu.

No outro dia a menina levantou de sua cama e falou o que eu estou fazen-do na minha cama, há poucas horas eu estava na floresta, e sua mãe veio trazer oseu café da manhã na sua cama, a menina contou toda sua estória, a sua mãe fa-lou que foi um sonho muito espetacular e maravilhoso.

Assim como a menina sonhou, nós podemos sonhar por isto devemos teruma noite bem tranqüila para descansar bem.

Numa estrutura mística de sensibilidade já demonstrada no desenho (he-rói deitado), como no próprio título da história, o autor desse protocolo valorizaimagens da intimidade.

Complementando essa análise, a poética do espaço prazeroso e feliz se mos-tra na sessão de leitura do poema preferido, “A casa”, célebre criação de Viníciusde Morais, seguido do comentário: “É bom sempre rir, isto é um dom que Deusnos deu, é a felicidade”. São imagens bem simples, que nos remetem às “ima-gens do espaço feliz”, que segundo Bachelard (1993:19), “(...) visam determi-nar o valor humano dos espaços de posse, dos espaços defendidos contra forçasadversas, dos espaços amados”, confirmando assim o sentimento de topofilia pre-sente no meio.

Apesar de mostrar-se muito temente a Deus, gosta das narrativas locais, des-tacando muitas delas em suas reportagens:

Page 162: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Educação e diversidade 149

I – O MENINO QUE VIRAVA LOBISOMEM

Um dia um menino e sua mãe morava em um lugar muito afastado da popu-lação. Toda noite de lua cheia o menino acordava a meia, ele pulava a suamãe três vezes e depois saia para fora. Ele ficava atrás de um monte de terra,tirava a roupa, virava cobra, o menino começava a sair pelo seu corpo e viravalobisomem. Teve um dia sua mãe desconfiou, o menino quando ele começoua pular, a sua mãe acordou, quando ele foi para fora para ir no monte de terraa mãe dele foi, pegou um rabo de tatu bateu bastante no bicho e o bichodesvirou e virou o menino. O menino nunca mais virou lobisomem.

II – O BICHO PELUDO

Um dia minha mãe acordou a noite com o barulho dos cachorros, a minhamãe foi olhar o que era, ela foi bem quieta, e veio um bicho bem feio, orelhu-do. A minha mãe foi chamar o meu pai, que pegou o revolver e foi ver o queera. Os cachorros estavam arrodeando o bicho, não tinha como meu paiatirar no bicho. Ele deu um tiro pra cima o bicho correu e no outro dia omeu pai contou que era lobisomem.

III – A LUZ

Um dia um pessoal vinha de uma festa, para voltar tinha que passar por umaponte, de repente apareceu uma luz muito grande, o pessoal foi chegandomais perto e a luz foi afastando e de repente a luz sumiu. Ninguém soubefalar o que era.

Percebe-se nas suas narrativas a forte influência dos agentes socializadoresmíticos que transmitem valores como respeito e obediência: considerados pelo alu-no como fundamentais à vida.

Voos mais altos não estão previstos, pois “sempre gostei muita da minhavida; do jeito que é”. A escola poderá talvez potencializar sua estrutura heróica,pois ela representa a verdadeira luta que o autor deve enfrentar, pois lá se encon-tra o outro lado do social, onde ele não se sai tão bem como no seu meio: “a pro-fessora me disse para ficar alegre”; “tem dia que é muito triste porque tem vez queeu não sei uma prova e muitas outras coisas”; “eu gostaria que os computadoresda escola já tivessem funcionando para mim aprender computação, eu acho queé muito importante para um estudante”. A partir dessa última afirmação: será ocomputador o estímulo que falta à sua rotina, a “borboleta”, como símbolo cíclicoa anunciar novos embates em busca de sentido para a vida?

Page 163: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

150 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

PROTOCOLO NO 04

IDADE: 13 SEXO: masc. SÉRIE: 6a

ESTRUTURA: Microuniverso Sintético – Universo ExistencialDiacrônico

DESENHO

RELATO

O Milagre

Certo dia um rapaz resolveu ir pescar, como isca ele levou um baldinho deminhoca. E aí ele ficou embaixo dessa árvore. E nessa árvore tinha um ninho demarreco. E quando o rapaz olhou para cima, vinha caindo um filhote de marre-co caindo do ninho, e quando o passarinho caiu no chão perto da água do rio,veio um crocodilo para te devorar e quando o moço viu, largou da sua pescaria,e foi tentar tirar o passarinho das garras do monstro. E não tinha nada para elebater no monstro. E quando ele olhou para a beira do rio, ele viu uma espada, ecorreu para pegá-la e matou o monstro. E levou o passarinho para sua mãe. Equando ele ia voltando para sua pescaria tinha um fogaréu, perto do rio, e ele fa-lou: Meu Deus, de onde veio este fogo? Ele saiu correndo, jogou as minhocas quetinha no balde e foi correndo com o balde em direção ao rio, pegou o balde, en-cheu de água. E foi apagar o fogo. Demorou muito para ele conseguir apagar ofogo, mas apagou. Graças a Deus. E o rapaz disse: Se eu não visse, coitado do pas-

Page 164: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Educação e diversidade 151

sarinho e coitada da mata, isso foi um milagre. Porque Deus não quis que o mons-tro tirasse a vida do passarinho. E por isso ele mandou a espada, perto do rio, ea água ia ajudar a combater o fogo. O rapaz pegou o seu balde e conseguiu aca-bar com o fogo e Deus não quis que a morte tirasse a vida do passarinho e man-dou a espada para ajudá-lo a combater com o monstro.

O autor projetou-se no personagem que salva o pássaro e, por extensão, aprópria natureza. Há continuidade temporal no relato, havendo uma trajetividadeentre os polos da estrutura heróica (mata o monstro e elimina o fogo) e o da es-trutura mística, potencializada pelo personagem pescador, pela água protetora epelos peixes. São imagens divergentes que acionadas integraram-se numa mesmaação, o personagem luta e depois descansa.

Comparando com os dados obtidos por meio de outros instrumentos, é pos-sível perceber que seu imaginário expressa não só as configurações socioculturais doseu meio que, como vimos, é considerado seguro, como também sua consciênciaambiental. No seu Diário de Campo esteve sempre descrevendo a natureza, a chu-va, como bênção, as plantações, as colheitas, “louvando” a vida no campo.

Trabalhador, este aluno descreve sua rotina deste modo: ajuda o avô na roça,molha café, trata dos porcos, puxa água e depois “vai ler”, deleitando-se com asluzes do saber. Integrado ao meio, filho e neto de pescadores, descreve o lugar ondemora como “maravilhoso, não quero mudar dali por nada, e eu não quero e nemvou morar em lugar algum”. Quem gostaria de ser? “Eu seria eu mesmo”.

Na escola, no entanto, encontra dificuldades, principalmente na escrita,não sendo considerado “estudioso”. Segundo observações de uma professora, é“preguiçoso”, não gosta de estudar. No que diz respeito às atividades solicita-das no decorrer da pesquisa, apresentou excelente desempenho, superando as li-mitações trazidas pelas dificuldades de escrita. Belos textos acompanharam asfotografias selecionadas, revelando sua criatividade, como: “a bananeira”, “o pacudo rio Jauru”, “o carro”, “o arrozal”, “a minha porquinha Neve”, “o rio Jauru”,“o galo rei do terreiro” e “o quadro de cartões telefônicos”, desfazendo assim aimagem de “preguiçoso”.

Suas leituras preferidas concentraram-se no livro Poesia dos bichos, sendoCarlos Drummond de Andrade seu poeta preferido.

I – FESTA NO BREJO

A saparia desesperada

coaxa coaxa coaxa.

Page 165: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

152 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

o brejo vibra que nem caixa

de guerra. Os sapos estão danados.

(...)

A saparia toda de Minas

coaxa no brejo humilde.

Hoje tem festa no brejo!

II – MULINHA

(...)

Sua cor é sem cor.

Seu andar, o andar de todas as mulas de Minas.

Não tem idade – vem de sempre e de antes –

nem nome: é a mulinha do leite.

É o leite, cumprindo ordem do pasto.

III – NOMES

As bestas chamam-se Andorinha, Neblina

Ou Baronesa, Marquesa, Princesa.

O cavalo, simplesmente Majestade.

O boi Besouro,

Tem mesmo o boi chamado Labirinhto.

Assim pastam os nomes pelo campo,

ligados a criação. Todo animal

é mágico.

Realmente, parece que tudo à sua volta reflete a magia que o equilibra emseu mundo de relações.

Considerações Finais

A pesquisa mostrou um olhar cuidadoso à cultura de um grupo de alunosque se manifestou no cotidiano escolar, permitindo deslindar alguns fios simbó-licos – arte, religião, mitos – que tecem a trama de sentidos e significados quesustentam a multiforme e complexa realidade estudada.

Page 166: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Educação e diversidade 153

É preciso pensar a educação como conjunto de práticas socioeducativas quereorganizam o real, e neste contexto valorizar outras formas de linguagem, comoa da imaginação, rendendo-se ao encanto do “de primeiro” com que se iniciam asnarrativas locais que tão bem traduzem a face indecifrável do mito, que move oser humano a se mergulhar nele mesmo.

A educação que se dá na escola e a educação que se vivencia no meio socio-cultural apresentam desdobramentos éticos, a saber: entre a organização burocrá-tica, entendida como atividade-meio de controle, na qual veiculam as praxeologiasoficiais, e a organização simbólica, que se dá nos grupos, onde se vivenciam ou-tros saberes, surge a capacidade de reinterpretação cultural5 que perimetra o tra-jeto, constituindo o “sentido” na ação grupal.

Assim, não se trata de contrapô-las, mas de tornarmos-nos sensíveis à suainterpretação. Intérpretes no sentido de que nos recomendam os hermeneutas,“sem a preocupação de juízo de valor”, assumindo uma tarefa mediadora, comose expressa Ricouer a respeito da criação propriamente humana: “o que deve serinterpretado num texto é a proposta de um mundo, o projeto de um mundo queeu posso habitar e no qual se possa revelar as possibilidades que me são mais pró-prias” (apud Ferreira Santos, 2003: 162).

Diante desses resultados aqui expostos, fica evidenciada a necessidade delevar em conta a dimensão simbólica na organização escolar. Ao saber centradona legitimação do instituído, já codificado, elaborado, consagrado na cultura es-colar, acrescenta-se o saber que está às margens, não legitimado, por codificarainda, que é a cultura dos grupos.

A compreensão desse dinamismo traz um novo olhar para a escola, à medi-da que considera a diferença como fator de integração num universo social pola-rizado, no qual a conciliação de contrários põe em equilíbrio o homem e o meio,a natureza e a cultura.

Referências Bibliográficas

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

BADIA, D. D. Imaginário e ação cultural: as contribuições de Gilbert Durand e da Escolade Grenoble. Londrina: UEL, 1999.

5. Reinterpretação cultural é aqui entendida com Herskovits (1952:598): “um processo no qualantigos significados são acrescentados a novos elementos ou mediante o qual valores novos mu-dam a significação cultural das velhas formas”.

Page 167: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

154 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário. Lisboa: Editorial Presença, 1989.

DURAND, Yves. A formulação experimental do AT-9. Revista da Faculdade de Educação daUSP, v. 13, n. 2, p. 133-154, 1987.

ERNY, Pierre. Etnologia da educação. Rio de Janeiro: Zaar Editores, 1981.

FERREIRA SANTOS, Marcos. O crepúsculo do mito: Mitohermenêutica & Antropologia daEducação em Euskal Herria e Ameríndia. 2003. Tese (Livre-Docência) – FEUSP, São Paulo.

MAFFESOLI, M. No fundo das aparências. Petrópolis-RJ: Vozes, 1996.

________. O conhecimento comum. São Paulo: Brasiliense, 1988.

PAULA CARVALHO, J. C. Antropologia das organizações e educação: um ensaio holonômico.Rio de Janeiro: Imago, 1990.

________. Imaginário e cultura escolar: um estudo culturanalítico de grupos de alunos em etno/escolas (Colégio Iavnee Liceu Pausteur/São Paulo) e numa escola urbana (EEPSG João PedroFerraz/Ibirá). Revista de Educação Pública, Cuiabá: UFMT, v. 3, n. 4, p. 39-103, jul./dez.1994.

________. A culturanálise de grupos: posições teóricas e heurísticas em educação e ação cul-tural. Ensaio de titulação. São Paulo: FEUSP, 1991. (mimeo).

SANCHEZ TEIXEIRA, Maria Cecília. Imaginário, cultura e educação: um estudo sócio-an-tropológico de alunos de escolas de 1º grau. 1994. São Paulo: 1994. Tese de livre-docência. Tese(Livre-Docência) – FEUSP, São Paulo.

TERZI, S. B. A oralidade e a construção da escrita por crianças de meios iletrados. In: KLEIMAN,A. (Org.). Os significados do letramento. Campinas: Mercado das Letras,1995.

TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Trad.Lívia de Oliveira. Difel, 1980.

Page 168: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

PARTE III

CULTURAS... PARA ALÉM DO

TEMPO E DA ESCOLA

Page 169: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook
Page 170: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

PRINCÍPIOS PARA UMA EDUCAÇÃO

AFRO-BRASILEIRA

Julvan Moreira de Oliveira

Introdução

Abordar uma reflexão sobre as ideias pedagógicas a partir das culturas afro-bra-sileiras é um grande desafio. A reflexão que realizo aqui busca focalizar alguns pressu-postos que dão base à forma de ser do negro no Brasil. Acredito que esses princípiosauxiliarão à construção de, poderíamos denominar, uma filosofia da educação afro-brasileira, estando de acordo com o que nos aponta as Diretrizes Curriculares para oEnsino de História e Cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena e as leis 11.645/08e 10.639/03 que alteraram o artigo 26 da 9.394/96 (Brasil, 2004).

A Oralidade Afro-brasileira

A literatura oral está no centro da atividade educativa afro-brasileira: os con-tos, as lendas, os mitos, os provérbios, as máximas, os aforismos, os cantos e os jo-gos são instrumentos didáticos para auxiliar a ciência educativa, por outras palavras,assegurar ao mesmo tempo sua instrução e sua educação (Oliveira, 2009: 223-252).

A palavra é uma dimensão vital para os negros, fazendo parte da personali-dade e da cultura. Nela, o espiritual e o material não estão dissociados. É a gran-de escola da vida, como mostra Hampâté Bâ (2003: 197-198):

“Todos estes ensinamentos fundavam-se em exemplos concretos fáceis de ascrianças compreenderem. Algumas cenas que observavam propiciavamaprofundamentos: uma árvore abrindo os galhos em direção ao espaço per-mitia explicar como tudo, no Universo, se diversificava a partir da unidade;um formigueiro ou cupinzeiro ofereciam a ocasião de falar sobre as virtudesda solidariedade e das regras da vida social. A partir de cada exemplo, decada experiência vivida, o bawo e os anciões ensinavam aos meninos comose comportarem na vida e as regras a respeitar em relação à natureza, aossemelhantes e a si mesmos. Eles os ensinavam a ser homens.

* Pofessor do Departamento de Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal deJuiz de Fora; doutor em educação pela FEUSP; licenciado em Filosofia. Integrante do CICE.

Page 171: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

158 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Toda noite depois do jantar, contadores de histórias e griots animavam oserão, alternando contos e crônicas históricas divertidas e gloriosas,entremeadas das façanhas de nossos grandes homens. E nesse momento,não importava a hora: os olhos ficavam bem abertos e ninguém adormecia!”

De acordo com Munanga (apud Oliveira, op. cit.: 225), os povos africanosbanto e nagô, vindos ao Brasil, transmitem suas culturas basicamente através daoralidade. Esta possui uma ação socializadora, pedagógica, modelando ações, con-dutas, normas e divulgando crenças, valores éticos e morais, usos e costumes.

Os nagôs possuem oriki, orin, orin-exá, orin-efé, adura e iba (Sàlámì, 1990).As evocações, oriki (ori= cabeça + ki= louvar), visam saudar a origem daquele aquem se refere. Acredita-se na força vital dos oriki, pois as palavras são portado-ras de energia, de vida.

O louvor a um orixá é sempre o relato de algum episódio em que bênçãos eajudas foram solicitados e alcançados. A utilização dos oriki é indispensável parase ter a presença dos orixás ou dos ancestrais. Os oriki dirigidos a ancestrais vi-sam ao reconhecimento da identidade familiar, pois se faz referência às profissões,aos gostos alimentares e às qualidades da pessoa e da família. Os homens conhe-cedores da história são convidados a prestar homenagens, através da recitação deoriki, em cerimônias de casamentos, de batizados, de ritos fúnebres e em inau-gurações de casas religiosas. No continente africano, os anciãos entoam oriki nosrituais de circuncisão, a fim de que a presença dos ancestrais faça a criança suportara dor (Hampâté Bâ, op. cit.: 191-194).

Os oriki são acompanhados diversas vezes pelos tambores: seja o bata, tam-bor tocado com duas varinhas; bémbé, tocado com uma única varinha; os tam-bores sagrados ogidigbo e gangan, sendo este pendurado no ombro e tocado comuma vara; igbin, utilizado em homenagens ao orixá da criação, Obatalá; e gbédu,utilizado para anunciar a morte.

As cantigas (orin) são formas de ensinamentos através do canto, acompanha-das pelos tambores. Existem orin que são entoados para homenagear os ancestraismasculinos, egungun, e orin entoados para prestar homenagens aos ancestrais fe-mininos, gélédé.

As orações (adura) são os veículos do axé. Os adura têm a função de tra-zer as graças dos orixás. Alguns adura são acompanhados pelo uso de elemen-tos naturais.

Page 172: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Princípios para uma educação afro-brasileira 159

As saudações (iba) são feitas aos orixás, aos ancestrais e aos anciãos. Os ibasão feitos antes de iniciar qualquer ritual. A finalidade dos iba é a obtenção daproteção e auxílio, quando dirigidos aos orixás, e sinal de respeito, quando diri-gidos aos mais velhos.

A importância da oralidade nas culturas afro-brasileiras deve-se à sacralidadeda palavra. A palavra humana, mesmo reduzida às suas funções informativa e ex-pressiva, conserva o axé. Falar não é só comunicar, estabelecer uma relação, mastambém suscitar e criar situações novas.

Nas cerimônias de saída dos iniciados (yaô, para os nagôs, muzenza, para osbantos), durante as quais se ficou recluso durante alguns dias (varia entre 12, 14,17 e 21 dias), há um momento em que o orixá (nagô) ou o inquice (banto) gritao seu nome no terreiro. A dijina1, nome religioso, dá identidade ao iniciado. Nointerior dessas comunidades de tradição afro-brasileira as pessoas se apresentampela dijina.

O conhecimento é adquirido ouvindo as parábolas, os mitos, as históriascontadas. E isto se faz sem a menor pressa, pois tanto a(o) abiã, pessoa que estácomeçando a frequentar o candomblé, quanto a(o) yaô não têm a prática de sefazerem questionamentos.

Os membros das comunidades afro-brasileiras acreditam que quem fazmuitas perguntas não aprende. O aprendizado baseia-se na observação, sem queo iniciado faça questionamentos. Um dos mitos de Exu mostra essa lentidão parase adquirir o conhecimento:

“Exu não tinha riqueza, não tinha fazenda, não tinha rio, não tinha profis-são, nem artes, nem missão. Exu vagabundeava pelo mundo sem paradeiro.Então um dia, Exu passou a ir à casa de Oxalá. Ia à casa de Oxalá todos osdias. Na casa de Oxalá, Exu se distraía, vendo o velho fabricando os sereshumanos. Muitos e muitos também vinham visitar Oxalá, mas ali ficavampouco, quatro dias, oito dias, e nada aprendiam. Traziam oferendas, viam ovelho orixá, apreciavam sua obra e partiam. Exu ficou na casa de Oxaládezesseis anos. Exu prestava muita atenção na modelagem e aprendeu comoOxalá fabricava as mãos, os pés, a boca, os olhos, o pênis dos homens, asmãos, os pés, a boca, os olhos, a vagina das mulheres. Durante dezesseisanos ali ficou ajudando o velho orixá. Exu não perguntava. Exu observava.Exu prestava atenção. Exu aprendeu tudo” (Prandi, 2001: 40).

1. Dijina: termo de origem banto, mas utilizado também no candomblé yorubá.

Page 173: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

160 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Um recurso estilístico utilizado pelos afro-brasileiros é a repetição de pala-vras ou de partes importantes da frase, para descrever uma situação ou para real-çar o significado de um acontecimento. De forma semelhante são as repetições decenas inteiras.

“Se você pergunta a um alto sacerdote: ‘porque isso?’, ele vai te cantar umacantiga ou vai te dizer um odu. Então a cantiga e odu são a resposta. Ele nãodicotomiza; ele não esfacela o conhecimento. Para ele, o conhecimento éuma coisa holística. Ele vai te responder com uma parábola (...). Então,perguntei um dia: ‘Por favor, porque esse perfume?’ e a dagã da casa merespondeu: ‘Adá, ada, ada emoriô, dá dálo que modá’ [cantando]” (Silva,2002: 45).

Observamos também que o africano possui uma memória extraordinária,podendo guardar de cor trechos enormes e reproduzi-los mais tarde, sem preocu-pações com reelaborações constantes. A existência de narradores e cantores que pro-pagam as tradições de forma oral é presente no interior das casas de tradição afro.

Os oráculos de Ifá, guardados pelos babalawo, sacerdotes especialistas no jogodivinatório, são proferidos oralmente. Muita coisa se aprende de cor. Os mitos,os cânticos, as orações foram transmitidos oralmente, de lugar para lugar, de ter-reiro para terreiro, de geração para geração, sendo possível explicar todas as espé-cies de variantes das narrativas.

O babalawo, guardião dos versos sagrados de Ifá, possui a habilidade parao jogo divinatório. A divinação não se trata de um modo teórico de resolver osproblemas da vida e do mundo, mas de achar soluções de ordem prática, a partirde exigências concretas, colocadas diante do orixá. E um dos mitos nos diz que:

“Na criação do mundo, o rei do universo decidiu criar Ifá. Assim, nasceuum menino que foi chamado Aiedegum. Aiedegum nasceu do feiticeiro Meto-Lonfim e de Adje, sua primeira mulher. Aiedegum, quando criança, nãofalava sequer uma palavra. Já era adolescente quando o pai bateu nele comum bastão. O menino, para surpresa geral, disse: ‘Gbê-medji’, palavra queninguém compreendia. Dias depois, quando apanhou de novo, o meninomudo disse: ‘Ieku-meji’. E assim, em diversas ocasiões, foram se completan-do dezesseis palavras ditas por Aiedegum. Então, ele disse: ‘Pai, se eu apa-nhar mais, posso dizer muito mais que uma palavra’. O pai bateu mais nomenino. E Aidegum disse: ‘Vou morrer, mas quero legar-lhe uma herançamagnífica, que há de servir à humanidade para sempre’. Ele explicou que osdezesseis nomes eram nomes de seus futuros filhos. Que cada filho seu tinha

Page 174: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Princípios para uma educação afro-brasileira 161

um conhecimento. Disse que deixaria uma palmeira e que com o caroço deseus frutos se faria o seu jogo, o jogo de Ifá. E assim se poderia consultar ojogo para se predizer o futuro. Assim nasceu o oráculo de Ifá” (Prandi, op.cit.: 447-448).2

Na palavra se inscreve aquele poder de vida ou morte, que se acha subjacenteàs relações entre as pessoas e as coisas do mundo. Chamar uma coisa pelo nomesignifica trazê-la à existência.

A Vida Cotidiana

As cenas da vida diária constituem um quadro permanente de diversas apren-dizagens fundamentais tanto no plano individual quanto no plano social. É umaeducação que se integra na vida do grupo. A aprendizagem se faz em função dasnecessidades da comunidade e dos problemas que se colocam. A escola é a vida,e a vida é a escola.

A existência do indivíduo está marcada pela busca do progresso. Este é com-preendido como acontecimentos positivos no amor, no trabalho, na saúde, na ami-zade, nas conquistas de bens como moradia, etc.

“Ogum e seus amigos Alaká e Ajero foram consultar Ifá. Queriam saber umaforma de se tornarem reis de suas aldeias. Após a consulta foram instruídos afazer ebó, e a Ogum foi pedido um cachorro como oferenda. Tempos depois,os amigos de Ogum tornaram-se reis de suas aldeias, mas a situação de Ogumpermanecia a mesma. Preocupado, Ogum foi novamente consultar Ifá e oadvinho recomendou que refizesse o ebó. Ele deveria sacrificar um cão sobresua cabeça e espalhar o sangue sobre seu corpo. A carne deveria ser cozida econsumida por todo seu egbé. Depois, deveria esperar a próxima chuva eprocurar um local onde houvesse ocorrido uma erosão. Ali devia apanhar daareia negra e fina e colocá-la no fogo para queimar.Ansioso pelo sucesso, Ogum fez o ebó e, para sua surpresa, ao queimar aquelaareia, ela se transformou na quente massa que se solidificou em ferro. Oferro era a mais dura substância que ele conhecia, mas era maleável enquan-to estava quente. Ogum passou a modelar a massa quente. Ogum forjouprimeiro uma tenaz, um alicate para retirar o ferro quente do fogo. E assim

2. Os dezesseis filhos de Orunmilá (Ifá) são: Ocanrã, Ejiocô, Ogundá, Irosum, Oxé, Obará,Odi, Ejiobê, Osá, Ofum, Ouorim, Ejila-Xeborá, Icá, Oturopon, Ofuncanrã e Iretê (Prandi,2001: 444).

Page 175: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

162 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

era mais fácil manejar a pasta incandescente. Ogum então forjou uma faca eum facão. Satisfeito, Ogum passou a produzir toda espécie de objetos deferro, assim como passou a ensinar seu manuseio. Veio fartura e abundânciapara todos. Dali em diante Ogum Alagbedé, o ferreiro, mudou. Muito pros-perou e passou a ser saudado como aquele que transforma a Terra em Di-nheiro” (ibidem: 95-96).

Nas sociedades tradicionais africanas os búzios eram utilizados como dinheiroe são símbolos de prosperidade. Não é por nada que nas roupas dos orixás estãopresentes os búzios.

A prosperidade não é a mesma para todos, pois há influência do orixá decabeça de cada indivíduo. E são os orixás os responsáveis pelo axé, que dará o poderde concretização de algo à pessoa. O axé, força manipulada pelos orixás, está pre-sente nas fontes animal, vegetal e mineral, e é chamado de “sangue vermelho, pretoe branco”.

O axé vermelho (amarelo é variação de vermelho) pode ser animal, sendoencontrado no sangue (humano ou animal); vegetal, no azeite de dendê e nomel; e mineral, no cobre e bronze. O axé branco animal está presente no sêmen,na saliva, no hálito e no plasma; vegetal se encontra na seiva, no álcool e na man-teiga vegetal; e mineral, nos sais, na prata e no chumbo. O axé preto (o azul eo verde são variações do preto) animal se encontra nas cinzas de animais; vege-tal é encontrado no sumo escuro de vegetais; e mineral, no carvão e ferro (San-tos, 1986: 41-43).

A pessoa, estando preenchida pelo axé, tem uma vida mais feliz e próspera.E, no cotidiano, as pessoas têm contato com esses elementos, seja em casa, no tra-balho, no lazer. O sagrado permeia de tal maneira todos os setores da vida que setorna impossível realizar uma separação entre o sagrado e o secular, entre o espi-ritual e o material, nas atividades do cotidiano.

A riqueza, a prosperidade, na visão afro, é possuir a felicidade, sendo estacompreendida como a posse do axé, e a infelicidade é estar privado dessa força.Toda doença, fracasso e adversidade são expressões da ausência de axé.

Em toda natureza reside uma força vital. A pessoa vai adquirindo o conhe-cimento sobre isto no dia a dia. Esta aprendizagem no cotidiano acontece sempressa, como diz Augras (1987: 53): “o saber ancestral deve ser aprendido aospoucos, devagar, não constitui simples aquisição de informações, mas é o modode ser. A aprendizagem das regras caminha junto com o amadurecimento doadepto”.

Page 176: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Princípios para uma educação afro-brasileira 163

E a pessoa aprende as suas possibilidades de desenvolvimento a partir doseu olori, orixá “dono da cabeça”. E cada orixá é a personificação de uma dasforças presentes nas matérias primordiais. O indivíduo aprende no cotidiano aaceitação de si mesmo, aprende suas possibilidades, suas potencialidades e suasdificuldades.

Há aqueles que possuem orixás cujo elemento é a água. “Estas divindadesrelacionam-se com a fecundidade e a riqueza, a feminilidade e a maternidade. Dis-tinguem-se, globalmente, pelo charme, pela sensibilidade, pela emotividade, pelaausência de agressividade” (Lépine, 2000: 147).

A água é muito difícil de se deter, com seu jeitinho quieto escorre por entreas rochas mais resistentes formando fendas e abrindo seu caminho. Olocum, quedetém o poder dos búzios, é a dona dos mares. Olocum é responsável pela fecun-dação do mundo e pela prosperidade da vida.

“O mundo foi criado por Olorum e sua mulher Olocum. Eles tinham amesma idade. Da união de Olocum com Aiê, a Terra, nasceu Iemanjá. Daunião de Iemanjá e Aganju nasceram os outros deuses. Mas Olorum sepa-rou-se de Olocum e por longo tempo ambos brigaram pelo poder de reinarna Terra. Certa vez Olocum quis demonstrar seu poder. Olocum invadiu aterra com suas águas e destruiu parte da humanidade com essa catástrofe. Sónão foi pior porque Olorum, de onde estava, estendeu uma corrente quedescia à terra e os homens subiram às montanhas, salvando-se assim a espé-cie humana. Os sobreviventes consultaram Ifá e fizeram oferendas para apa-ziguar Olocum. Com a corrente usada para salvar os homens, Olorum atouOlocum ao fundo do mar. Lá está ela até hoje, acompanhada de uma gigan-tesca serpente marinha, que, na lua nova, segundo contam, mostra sua cabe-ça fora d’água. Olocum propôs um pacto a Olorum: Olocum não teria maispoder na Terra, mas a cada dia faria os homens sentirem sua força, que brotadas profundezas do oceano. O ser humano tinha que saber, tinha que sentirque seu poder era de vida e morte. Era o que queria Olocum, e Olorumconcordou. Assim, a cada dia, quando alguém se afoga no mar, Olocumrecebe uma vida humana em sacrifício. Todos temem o poder de Olocum.Todos os dias, alguém se afoga no mar” (Prandi, op. cit.: 403-404).

Os traços dados pelas águas, dos rios e dos mares, estão presentes em Iemanjá,Oxum, Obá e Euá. Iemanjá é vaidosa, aprecia joias, perfumes e adora receberpresentes: “Calma, séria, cheia de dignidade. Sensual, fascinante, ela cuida commuita vaidade da aparência” (Lépine, op. cit.: 147). Oxum, divindade da fertili-dade, fecundidade e maternidade: “Delicadas, graciosas, costumam ser muito bo-

Page 177: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

164 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

nitas. São de todo meiguice, de todo sedução; sua voz suave, seus olhos brilhan-tes, seu sorriso alegre num rostinho inocente”. Obá, de temperamento forte, ter-rivelmente ciumenta e possessiva. Obá é grande conselheira, amiga leal. Euá, águaque se transforma em nuvem, portanto é a névoa, sendo ligada também ao ele-mento ar. Euá é o canto, a alegria, de rara beleza e encanto.

O aprendizado das abluções é bastante comum. A água tem importânciafundamental no dia a dia, principalmente nos banhos de purificação do corpo eda alma. O “banho de ervas”, variando de acordo com os fluidos que a pessoa car-rega, e de acordo com o orixá que a pessoa traz, para purificar, limpar e energizar;cada erva possuindo sua finalidade. O “banho de cheiro”, que traz sorte, bons flui-dos e energias positivas. O “banho de cachoeira” ou de mar. A água possui gran-de força.

Há orixás cujo elemento é a terra. “A terra, quente, seca, dura (...) se distin-guem pela aparência pesada e desgraciosa, pelo fracasso na sexualidade e no amor,pela falta de habilidade no trato social e pela agressividade” (ibidem: 148-149). Aterra nos prende ao lado prático da vida, a busca de estabilidade e segurança. Asprincipais características são a paciência, a determinação e a produtividade.

Os orixás ligados à terra são Nanã e Omolu. Ligada aos pântanos, à lama,matéria com a qual foi moldado o primeiro homem, Nanã está associada à ma-ternidade, mas também à morte. Nanã é rabugenta e calma, afastada da sexuali-dade, dedicando sua vida ao trabalho. “Tem hábitos austeros e não tolera preguiça,falta de educação, desordem, desperdício. É previdente, organizada e tem rigoro-sos princípios morais” (ibidem: 148). Intolerante, rabugenta, queixando-se de tudoe de todos.

“Dizem que quando Olorum encarregou Oxalá de fazer o mundo e modelar oser humano, o orixá tentou vários caminhos. Tentou fazer o homem de ar,como ele. Não deu certo, pois o homem logo se desvaneceu. Tentou fazer depau, mas a criatura ficou dura. De pedra ainda a tentativa foi pior. Fez de fogoe o homem se consumiu. Tentou azeite, água e até vinho-de-palma, e nada.Foi então que Nanã Burucu veio em seu socorro. Apontou para o fundo dolago com seu ibiri, seu cetro e arma, e de lá retirou uma porção de lama. Nanãdeu a porção de lama a Oxalá, o barro do fundo da lagoa onde morava ela, alama sob as águas, que é Nanã. Oxalá criou o homem, modelou-o no barro.Com o sopro de Olorum ele caminhou. Com a ajuda dos orixás povoou aTerra. Mas tem um dia que o homem morre e seu corpo tem que retornar àterra, voltar à natureza de Nanã Burucu. Nanã deu a matéria no começo masquer de volta no final tudo o que é seu” (Prandi, op. cit.: 196).

Page 178: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Princípios para uma educação afro-brasileira 165

Omolu, filho de Nanã, abandonado por sua mãe quando nasceu, devido àsua feiura (ibidem: 197), foi criado por Yemanjá. Omolu é a terra quente, dura eseca. É aleijado, tendo sido infectado por doenças nas ruas. Yemanjá, que o haviaacolhido, cuidou de suas feridas. “Falta-lhe tato, diplomacia, bom gosto. Repri-mido, frustrado, torna-se amargo e vingativo (...). Seu relacionamento social édifícil; é agressivo e até cruel e perigoso” (Lépine, op. cit.: 149). Omolu, o senhordas doenças e da morte, vive pelas ruas.

“Quando Omulu era um menino de uns doze anos, saiu de casa e foi para omundo para fazer a vida. De cidade em cidade, de vila em vila, ele ia ofere-cendo seus serviços, procurando emprego. Mas Omulu não conseguia nada.Ninguém lhe dava o que fazer, ninguém o empregava. E ele teve que pediresmola, mas ao menino ninguém dava nada, nem do que comer, nem doque beber. Tinha um cachorro que o acompanhava e só. Omulu e seu ca-chorro retiraram-se no mato e foram viver com as cobras. Omulu comia oque a mata dava: frutas, folhas, raízes. Mas os espinhos da floresta feriam omenino. As picadas de mosquito cobriam-lhe o corpo. Omulu ficou cobertode chagas. Só o cachorro confortava Omulu, lambendo-lhe as feridas. Umdia, quando dormia, Omulu escutou uma voz: ‘Estás pronto. Levanta e vaicuidar do povo’. Omulu viu que todas as feridas estavam cicatrizadas. Nãotinha dores nem febre. Obaluaê juntou as cabacinhas, os atos, onde guarda-va água e remédios que aprendera a usar com a floresta, agradeceu a Olorume partiu” (Prandi, op. cit.: 204-205).

A terra também é representada por Oxumaré, Ogum, Oxossi, Logun-Edé eOssaim. Oxumaré, a grande cobra colorida, faz a ligação do mar com o céu, é omovimento em essência. Oxumaré, assim como Logun-Edé, é andrógino, machoe fêmea. “Oxumaré é inteligente, dinâmico, curioso, observador, indiscreto, irô-nico e maledicente. Elegante e altivo, eloqüente, um pouco exibicionista e esno-be, ele atrai, seduz, fascina (...). Tem muito gosto e aprecia as artes” (Lépine, op.cit.: 149). Ogum, orixá da caça, é a entidade da civilização e da técnica (Sàlámì,1993). Oxossi, assim como Ogum, faz parte da sociedade dos edé, caçadores.Oxossi é o principal orixá da caça. “É dotado de um espírito curioso, observadore de grande penetração. Possui um temperamento introvertido, discreto, uma sen-sibilidade aguçada e é tido por complicado. Tem gosto depurado, qualidades ar-tísticas e criatividade” (Lépine, op. cit.: 151). Ossaim é o orixá das folhas. As folhasdas ervas são portadoras de axé, e sem elas nada se faz. É o orixá que com suasfolhas fabrica remédios e cura doentes. “Possui um temperamento secreto, impre-visível; é sonhador, esquisito, desligado (...). São generosos, afetuosos, muito to-lerantes, mas fazem questão de preservar a sua liberdade” (ibidem: 152).

Page 179: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

166 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

O aprendizado sobre plantas e ervas é muito comum a todos que pertencemàs comunidades de tradição afro-brasileira. O conhecimento sobre essas plantase ervas acontece cotidianamente. O aprendizado sobre as folhas que são calman-tes (ero), as que são excitantes (gun), as “folhas do ar e do vento” (eweafeefe), as“folhas do fogo” (eweinon), as “folhas da água” (eweomi), as “folhas da terra” (eweilê) e as “folhas da floresta” (eweigbo) é comum a qualquer pessoa, por mais sim-ples que seja. O conhecimento de botânica é muito profundo para os afro-brasi-leiros, demonstrado nos estudos de Verger (1995) e Barros (1999, 1993).

Os orixás ligados ao fogo são Xangô e Iansã. Nada mais encantador que aslabaredas de uma fogueira. São brilhantes, quentes e vivazes. São lideres natos,amantes da aventura e da inovação. Não se intimidam diante dos riscos e têm umjeito dinâmico e criativo de encarar a vida.

Xangô é um guerreiro que matou um monstro, um animal feroz que devo-rava os homens e mulheres (Prandi, op. cit.: 250-251). “É orgulhoso, prepotente,teimoso; não ouve conselhos de ninguém e não admite jamais ter-se enganado (...).São atrevidos, valentes, agressivos e mesmo cruéis. Dizem que temem a morte nãopor covardia, mas por amarem demais a vida” (Lépine, op. cit.: 150).

Ele possui um forte referencial interno, dando a impressão de egoísmo, poisvive de acordo com seus próprios princípios. É cheio de energia e criatividade. Nãogosta de ser aprisionado, nem de dar explicações.

“Xangô e seus homens lutavam com um inimigo implacável. Os guerreirosde Xangô, capturados pelo inimigo, eram mutilados e torturados até a mor-te, sem piedade ou compaixão. As atrocidades já não tinham limites. Oinimigo mandava entregar a Xangô seus homens aos pedaços. Xangô estavadesesperado e enfurecido. Xangô subiu no alto de uma pedreira perto doacampamento e dali consultou Orunmilá sobre o que fazer. Xangô pediuajuda a Orunmilá. Xangô estava irado e começou a bater nas pedras com ooxé, bater com seu machado duplo. O machado arrancava das pedras faís-cas, que acendiam no ar famintas línguas de fogo, que devoravam os solda-dos inimigos. A guerra perdida foi se transformando em vitória.Xangô ganhou a guerra. Os chefes inimigos que haviam ordenado o massa-cre dos soldados de Xangô foram dizimados por um raio que Xangô dispa-rou no auge da fúria. Mas os soldados inimigos que sobreviveram forampoupados por Xangô. A partir daí, o senso de justiça de Xangô foi admiradoe cantado por todos. Através dos séculos, os orixás e os homens têm recorri-do a Xangô para resolver todo tipo de pendência, julgar as discordâncias eadministrar justiça” (Prandi, op. cit.: 245).

Page 180: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Princípios para uma educação afro-brasileira 167

Xangô tem pavor da morte e dos eguns (mortos). Ele é oposto à morte,sendo vivo e quente. É orgulhoso, prepotente, teimoso e não ouve conselhos deninguém.

Yansã, divindade dos raios, é a dona dos lugares altos onde sopra o aféfé-iju,vento da morte, arrancando telhados, destruindo casas, derrubando árvores. Se-gundo o mito, é Yansã quem busca para Xangô o pó mágico que produz o raio,provando-o às escondidas, cuspindo fogo pela boca. Ela quem buscou o fogo di-vino, experimentou-o e manipulou-o antes de Xangô. “Dotadas de inesgotávelenergia (...). de intensa vida sexual, provocantes, que conquistam (...). Excêntri-cas, atrevidas, fazem-se notar, usando cores vibrantes, roupas ousadas, jóias vis-tosas (...). Orgulhosas e teimosas, rebeldes e impertinentes, impacientes, coléricas,cruéis, sempre dispostas a brigar” (Lépine, op. cit.: 150). Divindade do movimento,do fogo e do sexo.

“Iansã usava seus encantos e sedução para adquirir poder. Por isso entregou-se a vários homens, deles recebendo sempre algum presente. Com Ogum,casou-se e teve nove filhos, adquirindo o direito de usar a espada em suadefesa e dos demais. Com Oxaguiã, adquiriu o direito de usar o escudo,para proteger-se dos inimigos. Com Exu, adquiriu os direitos de usar o po-der do fogo e da magia, para realizar os seus desejos e os de seus protegidos.Com Oxossi, adquiriu o saber da caça, para suprir-se de carne e a seus filhos.Aprimorou os ensinamentos que ganhou de Exu e usou de sua magia paratransformar-se em búfalo, quando ia em defesa de seus filhos. ComLogumEdé, adquiriu o direito de pescar e tirar dos rios e cachoeiras os frutosd’água para a sobrevivência sua e de seus filhos. Com Obaluaê, Iansã tentouinsinuar-se, porém, em vão. Dele nada conseguiu. Ao final de suas con-quistas e aquisições, Iansã partiu para o reino de Xangô, envolvendo-o,apaixonando-se e vivendo com ele para a vida toda. Com Xangô, adquiriuo poder do encantamento, o posto da justiça e o domínio dos raios” (Prandi,op. cit.: 296-297).

O fogo possui a capacidade de atrair as pessoas. Essa atração se deve à ex-trema necessidade que o homem tem do fogo. É ele quem aquece o alimento, acasa e oferece conforto no dia a dia. Mas o fogo deve estar controlado para nãocausar danos irreparáveis.

E um dos espaços mais utilizados pelas pessoas é a cozinha. Ao redor do fo-gão o aprendizado acontece.

Page 181: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

168 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

O ar é outro elemento primordial. Conta-se nos mitos que Olorum (Senhordos Céus), também denominado Olodumare (Todo-poderoso), a massa infinitade ar, respirou, e de seu sopro nasceu a umidade, dela a água, desta a terra...

“No início não havia a proibição de se transitar entre o Céu e a Terra. Aseparação dos dois mundos foi fruto de uma transgressão, do rompimentode um trato entre os homens e Obatalá. Qualquer um podia passar livre-mente do Orum para o Aiê. Qualquer um podia ir sem constrangimento doAiê para o Orum.Certa feita um casal sem filhos procurou Obatalá implorando que desse aeles o filho tão desejado. Obatalá disse que não, pois os humanos que nomomento fabricava ainda não estavam prontos. Mas o casal insistiu e insis-tiu, até que Obatalá se deu por vencido. Sim, daria a criança aos pais, masimpunha uma condição: o menino deveria viver sempre no Aiê e jamaiscruzar a fronteira do Orum. Sempre viveria na Terra, nunca poderia entrarno Céu. O casal concordou e foi-se embora. Como prometido, um belo dianasceu a criança. Crescia forte e sadio o menino, mas ia ficando mais e maiscurioso. Os pais viviam com medo de que o filho um dia tivesse curiosidadede visitar o Orum. Por isso escondiam dele a existência do Céu, morandonum lugar bem distante de seus limites. Acontece que o pai tinha uma plan-tação que avançava para dentro do Orum. Sempre que ia trabalhar em suaroça, o pai saía dizendo que ia para outro lugar, temeroso de que o meninoo acompanhasse. Mas o menino andava muito desconfiado. Fez um furo nosaco de sementes que o pai levava para a roça e, seguindo a trilha das semen-tes que caíam no caminho, conseguiu finalmente chegar ao Céu.Ao entrar no Orum, foi imediatamente preso pelos soldados de Obatalá.Estava fascinado: tudo ali era diferente e miraculoso. Queria saber tudo,tudo perguntava. Os soldados o arrastavam para levá-lo a Obatalá, e ele nãoentendia a razão de sua prisão. Esperneava, gritava, xingava os soldados.Brigou com os soldados, fez muito barulho, armou um escarcéu. Com orebuliço, Obatalá veio saber o que estava acontecendo. Reconheceu o meni-no que dera para o casal de velhos e ficou furioso com a quebra do tabu. Omenino tinha entrado no Orum! Que atrevimento! Em sua fúria, Obatalábateu no chão com seu báculo, ordenando a todos que acabassem com aquelaconfusão. Fez isso com tanta raiva que seu opaxorô atravessou os nove espa-ços do Orum. Quando Obatalá retirou de volta o báculo, tinha ficado umarachadura no universo. Dessa rachadura surgiu o firmamento, separando oAiê do Orum para sempre. Desde então, os orixás ficaram residindo noOrum e os seres humanos, confinados no Aiê. Somente após a morte pode-riam os homens ingressar no Orum” (ibidem: 515-516).

Page 182: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Princípios para uma educação afro-brasileira 169

Obatalá, o céu, o ar, o princípio masculino, a parte superior da cabaça bran-ca, e Oduduwa, o princípio feminino, ás águas e a terra, a parte inferior da caba-ça, são identificados com Oxalá, com manifestações ou qualidades de Oxalá, oorixá funfun. Oxalá é o cosmos, a origem de tudo.

Oxalá manifesta-se também como jovem, Oxaguian, o nascente; e comovelho, Oxalufan, o poente. Oxaguian é um jovem guerreiro, mas não é agressivoe brutal. É alto, robusto, com porte majestoso e olhar altivo. Oxalufan é um ve-lho guerreiro que viajou e lutou muito. Ele tem presença discreta, sendo frágil,delicado, não procura se impor.

Oxalá, ligado ao ar, possui “inabalável tranqüilidade, lentidão de suas re-ações emocionais, o autocontrole. Odeia barulho, desordem, confusão, brigas,sujeira (...). É observador e, embora quieto, percebe tudo e não esquece nada”(Lépine, op. cit.: 147).

As Proibições e Punições

A sanção é um componente permanente da ação educativa tradicional. Nãose pode dizer que a sociedade africana é antiética e permissiva. Qualquer ato éacompanhado de uma sanção positiva ou negativa, quer seja natural ou sobrena-tural. O medo das consequências desagradáveis leva o indivíduo a respeitar o con-junto da legislação positiva (leis, regras, precedências, exortações) e negativa (tabus,proibições). Consequentemente, a sanção é parte integrante do processo educativo(Oliveira, op.cit.: 216).

No instante em que o recém-nascido respira pela primeira vez, todas as ener-gias se ligam ao seu corpo. Neste momento, a pessoa tem traçado o seu destino,o seu caminho. Este é determinado pelo orixá de cabeça. Cada pessoa traz umalista de odus que lhe são próprios. Verger (1999: 90) diz que “o orixá representa,para aquele que será por ele possuído, uma possibilidade de exteriorizar seu com-plexo apenas na medida em que ele herdou do Orixá, ancestral divinizado, omesmo temperamento e as mesmas tendências profundas que o predispõem acomportar-se inconscientemente como ele”.

O orixá impõe a seu iniciado algumas normas que regularão seu comporta-mento durante toda a vida. Estas normas, euó (èèwò) para os de cultura yorubá,quizila para os bantos, são as proibições impostas à pessoa. O não cumprimentodos odus pessoais deve ser reparado com punição.

Page 183: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

170 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Os odus correspondem aos dezesseis filhos de Ifá e ligados aos quatro elemen-tos primordiais:

Água: Ejiocô, Oxé, Osá e Ofuncanrã.

Terra: Irosum, Obará, Ejila-Xeborá, e Icá.

Ar: Ejiobê, Ofum, Ogundá e Oturopon.

Fogo: Ocanrã, Eritê, Odi e Ouorim.

Ocanrã é a Insubordinação, odu ligado a Exu. Ejiocô é a Dúvida, ligado aObá e Ibeiji. Ogundá é a Obstinação, ligado a Ogum. Irosum é a Calma, ligadoa Iemanjá e aos Eguns. Oxé é o Brilho, odu ligado a Oxum e Logun-Edé. Obaráé a Riqueza, odu de Xangô, Oxossi e Logun-Edé. Odi é a Violência, de Omolu eOxossi. Ejiobê é a Intranquilidade, de Oxaguian. Osá é a Alienação, de Iemanjáe Iansã. Ofum é a Doença, odu de Oxalufan. Ouorim é a Pressa, ligado a Iansã eExu. Ejila-Xeborá é a Justiça, de Xangô. Ofuncanrã é a Meditação, de Nanã eOmolu. Icá é a Sabedoria, de Oxumaré e Euá. Oturopon é o Discernimento, li-gado a Ossaim e Iroko. Irete é a Paz, odu de Orunmilá e Oxalás.

Há um destino que cada pessoa carrega desde o nascimento, destino este queé a repetição de um fato mítico acontecido em gerações passadas, com os orixás.O tempo sendo cíclico, tudo se repete.

A pessoa, ao conhecer seu odu, aprende as histórias que se repetirão em suavida, ela aprende o que deve fazer e o que deve evitar a fim de ter uma vida semproblemas e dificuldades. Ao aprender sobre seu odu, a pessoa aprende tambémseus interditos. Para cada dezesseis odus há vários interditos.

Paula Xavier (2004: 136) nos mostra que os Versos Sagrados de Ifá se consti-tuem nos instrumentos de interpretação das combinações dos dezesseis maioresodus, OjuOdu, o que dão 256 configurações possíveis. Os menores odus, Omo Odu,juntamente com os maiores, combinados, dão um total de 4.096 Poemas Sagra-dos. Esses poemas são a estrutura do pensamento ioruba, contendo os segredos douniverso, da natureza e dos seres humanos.

A pessoa aprende como ela deve se vestir, os animais com os quais pode ounão pode se alimentar, aprende sobre os ingredientes, os temperos e bebidas quepode ou não utilizar, os alimentos que lhe são permitidos e os que deve evitar,aprende sobre as cores que poderá usar e as que não devem ser utilizadas.

E para cumprir os seus desígnios, a pessoa utiliza a divinização. Consultaum babalaô, pai do segredo, que poderá empregar algum dos jogos divinatórios,

Page 184: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Princípios para uma educação afro-brasileira 171

o ikin ou o opele, utilizando-se de dezesseis coquinhos (sementes do dendezeiro),ou o sistema mais adotado no Brasil, no qual o babalorixá e/ou a iyalorixá jogao erindilogun, utilizando dezesseis búzios. Paula Xavier (ibidem: 132-156) estu-dou os procedimentos comuns desses jogos divinatórios.

Os que são iniciados possuem uma nova família. A “família de santo” subs-titui a família biológica. “As relações deixam de ser ‘naturais’ para se tornarem cul-turais” (Augras, 1989: 24), criando conflitos quando da quebra dos interditos. Aparticipação dos iniciados nas cerimônias deve ser com o “corpo limpo”, o queleva à obrigação do cumprimento dos interditos e do seguimento dos odus. A pes-soa deve conhecer o que lhe é proibido. Esse conhecimento é muito importante,pois a ignorância traz sofrimentos e conflitos.

Algum mal que atinja uma pessoa pode ter origem na quebra de alguma des-sas proibições, ou também pode ter sido causado pelas “senhoras do pássaro danoite” (Moura, 1994). Um dos mitos diz que:

“As Iá Mi Oxorongá são as nossas mães primeiras, raízes primordiais daestirpe humana, são feiticeiras. São velhas mães-feiticeiras as nossas mãesancestrais. As Iá Mi são o princípio de tudo, do bem e do mal. São vida emorte ao mesmo tempo, são feiticeiras. São as temidas ajés, mulheresimpiedosas. As Oxorongá já tiveram tudo o que se tem para viver. As Iá Miconhecem as fórmulas de manipulação da vida, para o bem e para o mal, nocomeço e no fim. Não se escapa ileso do ódio de Iá Mi Oxorongá. O poderde seu feitiço é grande, é terrível. Tão destruidor quanto é construtor e po-sitivo o axé, que é a força poderosa e benfazeja dos orixás, única arma dohomem na luta para fugir de Oxorongá.Um dia as Iá Mi vieram para a Terra e foram morar nas árvores. As Iá Mifizeram sua primeira residência na árvore do orobô. Se Iá Mi está na árvoredo orobô e pensa em alguém, este alguém terá felicidade, será justo e viverámuito na Terra. As Iá Mi Oxorongá fizeram sua segunda morada na copa daárvore chamada araticuna-da-areia. Se Iá Mi está na copa chamada araticuna-da-areia e pensa em alguém, tudo aquilo de que essa pessoa gosta serádestruído. As Iá Mi fizeram sua terceira casa nos galhos do baobá. Se Iá Miestá no baobá e pensa em alguém, tudo o que é do agrado dessa pessoa lheserá conferido. As Iá Mi fizeram sua quarta parada no pé de Iroco, a gameleira-branca. Se Iá Mi está no pé de Iroco e pensa em alguém, essa pessoa sofreráacidentes e não terá como escapar. As Iá Mi fizeram sua quinta residêncianos galhos do pé de Apaocá. Se Iá Mi está nos galhos do Apaocá e pensa emalguém, rapidamente essa pessoa será morta. As Iá Mi fizeram sua sexta

Page 185: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

172 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

residência na cajazeira. Se Iá Mi está na cajazeira e pensa em alguém, tudo oque ela quiser poderá fazer, pode trazer a felicidade ou a infelicidade. As IáMi fizeram sua sétima moradia na figueira. Se Iá Mi está na figueira e al-guém lhe suplica o perdão, essa pessoa será perdoada pela Iá Mi. Mas todasas coisas que as Iá Mi quiserem fazer, se elas estiverem na copa da cajazeira,elas o farão, porque na cajazeira é onde as Iá Mi conseguem seu poder. Lá ésua principal casa, onde adquirem seu grande poder. Podem mesmo ir rapi-damente ao Além, se quiserem, quando estão nos galhos da cajazeira. Por-que é dessa árvore que vem o poder das Iá Mi, e não é qualquer pessoa quepode manter-se em cima da cajazeira. Elas vieram para a Terra. Eram duzen-tas e uma e cada qual tinha o seu pássaro. Eram as mulheres-pássaros, donasdo eié, eram as mulheres-eleié, as donas do eié.Quando chegaram, foram direto para a cidade de Otá, e os babalaôs manda-ram preparar uma cabaça para cada uma. Elas escolheram sua ialodê, suasacerdotisa. Foi a ialodê quem deu a cada eleié uma cabaça para guardar seupássaro. Então, cada Iá Mi partiu para sua casa com seu pássaro fechado nacabaça, e lá cada uma guardou secretamente sua cabaça até o momento deenviar o pássaro para alguma missão. Quando Iá Mi abre a cabaça, o pássarovai, seja aonde for, aos quatro cantos do mundo ele vai e executa sua missão.Se é para matar, ele mata. Se é para trazer os intestinos de alguém, ele esprei-ta a pessoa marcada para abrir seu ventre e colher seus intestinos. Se é paraimpedir uma gravidez, ele retira o feto do ventre da mãe. Ele faz o que lhefor ordenado e volta para sua cabaça. Iá Mi, então, recoloca a cabaça em seulugar secreto. Mas, se a pessoa possui um encantamento contra a feiticeira,ela deve dizer a seguinte fórmula: ‘Que aquela que vos enviou para me pe-gar, não me pegue’. Assim, por mais que tente, o pássaro não poderá execu-tar sua tarefa. Sua dona terá de ir em busca do auxílio das outras Iá Mi. Elavai à assembléia e relata seu problema. As ajés, as feiticeiras, devem trabalharcom ela, porque não podem realizar suas tarefas sozinhas. Então, Iá Mi levaum pouco do sangue da pessoa que quer prejudicar. Todas as outras Iá Mi opõem na boca e o bebem. Depois, elas se separam e não deixam dormir avítima. O pássaro é capaz de carregar um chicote, pegar um cacete, tornar-se alma do outro mundo, e até mesmo pode ter o aspecto de um orixá; tudopara aterrorizar a pessoa à qual foi enviado. Assim são as Iá Mi Oxorongá”(Prandi, op.cit.: 348-351).

As Iya Mi, nossas mães, nossas ancestrais femininas, vieram para a terra noslongínquos tempos. Gostam de ser adoradas e são representadas por pássaros no-turnos e aves de rapina: coruja, águia, gavião, falcão, etc.

Page 186: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Princípios para uma educação afro-brasileira 173

Os Ritos de Iniciação

Ritos de iniciação são momentos críticos que cristalizam o processo educativoem redor de temas fortes que mobilizam as energias dos atores e da sociedade. Fre-quentemente, os observadores têm escrito apenas sobre as provas de resistênciafísica. Devemos assinalar que todos os ritos de iniciação não comportam neces-sariamente essas provas. Mas, sobretudo, esse olhar corre o risco de ocultar o es-sencial, a integração do indivíduo graças a uma educação moral e social específicaque o fará aceder com um estatuto específico na sociedade (Munanga apud Oli-veira, op. cit.: 167).

As culturas africanas possuem sociedades iniciáticas, masculinas e femininas.A criança, ao ser iniciada, recebe ensinamentos básicos que serão aprofundadosdurante toda sua vida, como mostra Hampâté Bâ (op. cit.: 135-136):

“Quando cheguei à idade de sete anos, uma noite, depois do jantar, meu paime chamou. Ele me disse: ‘Esta será a noite da morte de sua primeira infân-cia. Até agora, sua primeira infância lhe dava liberdade total. Ela lhe davadireitos sem impor qualquer dever, nem mesmo o de servir e adorar a Deus.A partir desta noite, você entra em sua grande infância (...). Naquela noitenão consegui dormir. Estava perturbado por essas palavras misteriosas: ‘mortede minha primeira infância’. O que poderia significar aquilo? Quando oshomens morrem, faz-se um buraco no chão onde são colocados sob a terra,como os grãos dos cereais. Meu pai ia enterrar minha ‘pequena infância’? Eusabia que o milhete, o milho e o amendoim que enfiávamos na terra reapa-reciam sob forma de talos novos, mas nunca tinha visto nem ouvido falarque um homem, como um cereal, tivesse germinado e crescido para fora deseu túmulo. O que aconteceria com minha primeira infância? Germinariaem algo novo? Acabei por adormecer, a cabeça cheia de questões insolúveis.Tive um sonho, o primeiro do qual guardo uma lembrança viva: eu me vianum cemitério onde, de todos os túmulos, saiam bustos de homens”.

A iniciação tem repercussão social enorme nas sociedades yorubá, banto ejêje. Os ritos de iniciação são como símbolos em ação. São práticas periódicas, decaráter social, submetidas a regras precisas. Os ritos de iniciação não são ações pu-ramente humanas, se constituindo em ações divinas, uma imitação do que fize-ram os deuses. Por isso, devem ser repetidos como uma ação divina.

As pessoas, ao imitarem as ações divinas, têm a intenção de participar do di-vino, possibilitar a comunhão com o transcendente, buscar o contato com o sa-grado. É no rito que a repetição da ação divina é mimetizada. No rito, as pessoas

Page 187: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

174 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

fazem o que no mito fazem os deuses. Nos ritos de iniciação os indivíduos nãosomente nascem, mas também renascem ou se iniciam em uma nova forma de serou de agir. Iniciar-se é morrer para voltar a nascer.

Entende-se dessa maneira o simbolismo de alguns ritos africanos de inicia-ção, como a imersão na água. “E a origem do povo conta-se através de várias ver-sões de um mesmo mito, as quais se referem a um tempo em que só havia águano universo” (Lopes, 2000: 32). A imersão na água é acompanhada de um perío-do de reclusão, de volta à cabana, de retorno à gruta ou recinto sagrado, simboli-zando esse retorno ao útero, o ovo materno.

Outras práticas, como desnudar-se, descuidar do próprio corpo, privar-sede muitas coisas e adonar-se, simbolizam a morte que antecede o renascimento.“Vários procedimentos sagrados são adotados para impregnar o corpo do ini-ciado com o mesmo axé contido no complexo do orixá. Ele torna-se um recep-táculo humano para a manifestação da força e da energia do ancestral” (PaulaXavier, 2004: 157).

De modo geral, os ritos de iniciação tentam expressar a passagem a uma novavida, religiosa e social. Eles inauguram um modo de ser ou uma prática como asemeadura, a colheita, a caça, etc. Expressam a sacralidade das práticas iniciadas.

Os ritos de iniciação são expressões coletivas naturais do sagrado. Mesmo asiniciações sendo individuais, a característica é comunitária. E vários atos acontecemdurante a iniciação: o sacrifício, a oração, a purificação, etc. Paula Xavier (ibidem:158) nos faz uma descrição dos procedimentos do rito de iniciação entre os yorubá:

“Há um procedimento lógico pontuado pelos seguintes estágios: reclusãodo noviço, envolvimento social no processo iniciático, limpeza ritual docorpo do iniciado para a introjeção do axé ancestral, sacrifícios rituais, reve-lação do novo nome do iniciado, realização do jogo divinatório do novoiniciado e reaprendizado das atividades cotidianas cuja memória fora sepul-tada no processo de iniciação.”

A iniciação é um tempo de integração pessoal. Uma expressão simbólica danova realidade é o nome outorgado.

Ancestralidade

A ancestralidade nas comunidades afro-brasileiras é de natureza divina, comforte união entre as divindades e os primeiros antepassados históricos (Oliveira,op. cit.: 199-252). Diz o mito que:

Page 188: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Princípios para uma educação afro-brasileira 175

“No começo não havia separação entre o Orum, o Céu dos orixás, e o Aiê,a Terra dos humanos. Homens e divindades iam e vinham, coabitando edividindo vidas e aventuras. Conta-se que, quando o Orum fazia limitecom o Aiê, um ser humano tocou o Orum com as mãos sujas. O céuimaculado do Orixá fora conspurcado. O branco imaculado de Obatalá seperdera. Oxalá foi reclamar a Olorum. Olorum, Senhor do céu, DeusSupremo, irado com a sujeira, o desperdício e a displicência dos mortais,soprou enfurecido seu sopro divino e separou para sempre o Céu da Terra.Assim, o Orum separou-se do mundo dos homens e nenhum homem po-deria ir ao Orum e retornar de lá com vida. E os orixás tinham saudade desuas peripécias entre os humanos e andavam tristes e amuados. Foramqueixar-se com Olodumare, que acabou consentindo que os orixás pudes-sem vez por outra retornar à Terra. Para isso, entretanto, teriam que tomaro corpo material de seus devotos” (Prandi, op. cit.: 526).

Olorum, também conhecido como Olodumare, é o Princípio Universal quedeu vida a tudo o que existe. Ele é o portador do sopro de vida, mas não man-tém um relacionamento com os humanos. Os orixás são quem se comunicam comas pessoas.

Obatalá vivia unido a Odudua no interior de uma cabaça. O primeiro naparte de cima e a segunda na parte de baixo. Segundo Santos (op. cit.: 60), “o àiyéé o nível de existência ou o âmbito próprio controlado por Odùduwà, poder fe-minino, símbolo coletivo dos ancestrais femininos, enquanto o orun é o nível deexistência ou o âmbito próprio controlado por Obàtálá, símbolo coletivo do po-der ancestral masculino”.

Acredita-se que Nimrod, o egípcio, teria levado os povos negros que habi-tavam ao sul do Egito para o oriente. Odudua reuniu um grupo de seguidores,denominados ooye (os que foram salvos), sobreviventes de um dilúvio, e os levoupara o ocidente, se estabelecendo em Ilê Ifé (Sàlámì, 1999: 17). Odudua, por sermuito querido e adorado, tornou-se um orixá. A cidade de Ilê Ifá é reconhecidacomo sendo o local do início do mundo. Com a morte de Odudua, o reinado foidividido entre seus filhos, ancestrais dos vários grupos yorubá. Muitos desses an-cestrais foram pessoas de grande valor social, sendo também divinizados pelos seuspovos.

As cidades yoruba tinham como rei algum descendente de Odudua, e, seo rei fosse o último da família, a escolha se dava entre os nobres da cidade, pre-ferencialmente o mais admirado e reconhecido em seus valores. Os reis yorubasão assim a aliança entre o espiritual e o mundo terreno. Os reis, chamados de

Page 189: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

176 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

ÓmóOdudua, filhos de Odudua, possuem anciãos, oloye, que transmitem aos reisos anseios da comunidade.

Há outros mitos, transmitidos oralmente, que vê na figura de Oraniã o he-rói divinizado que criou o mundo terrestre (Prandi, op. cit.: 432-439).

Ogum, filho de Odudua, voltou de batalhas acompanhado de uma lindamulher, Lacangê. Tanto Ogum quanto Odudua tiveram relações sexuais comLacangê. Ela teve um filho, Oraniã, que nasceu com a pele do lado direito bempreta, como a pele de Ogum, e a pele clara do lado esquerdo, como a pele deOdudua. Oraniã fundou a cidade de Oyo. Rocha Leite (1982: 232) comenta doOpaOranmiyan, bastão de Oraniã, que ele observou na cidade de Ifé, na Nigéria:

“Este é um dos mais belos monumentos que pudemos observar na Nigéria.Está localizado em Ifé, num grande terreno que permite livre circulação daspessoas. Trata-se de uma coluna cilíndrica de pedra, com cerca de quatrometros de altura, segundo cálculo visual (Verger fala de 3,60 m e PalauMarti em mais ou menos 5 m), possuindo diâmetro que possibilita ser abra-çado por uma pessoa. Está plantado verticalmente e afina na parte superior,onde se inclina ligeiramente. Possui pequenos buracos simétricos enfileirados,de baixo a alto, em uma de sua faces, nos quais estão incrustadas tachas deferro, formando um desenho que lembra vagamente uma delgada forquilha(...) Para Johnson (1976), assinala a tumba do herói. As tachas de ferro sãointerpretadas como impressões feitas pelo próprio ‘Oranmiyan’ para marcaros anos de seu reinado.”

Não há uma distinção tão evidente entre os ancestrais divinos e históricos.Com o olhar sobre a dimensão histórica, observa-se que antepassados bem dis-tantes adquiriram uma configuração mítica.

Antepassados que estiveram ligados às primeiras experiências de organiza-ção da sociedade, de poder, de organização de coleta e caça, num tempo bem dis-tante que se torna difícil precisar a dimensão mítica e histórica. Com um olharsobre a dimensão divina, observa-se que a criação do mundo e dos seres huma-nos tem a participação ativa, a ação direta da Divindade.

As divindades se manifestam de várias formas, especificamente nos diver-sos domínios naturais, sendo portadoras de energias vitais. Esses entes sagradosatuam como os quatro elementos primordiais (terra, água, fogo e ar), nas maisvariadas exteriorizações: nas montanhas, nas florestas, nos mares, nos rios, etc.

Page 190: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Princípios para uma educação afro-brasileira 177

Essas divindades apresentam forte humanização, fazendo com que o sagra-do adquira uma dimensão histórica. Os orixás se relacionam com as práticas eco-nômicas, sociais, políticas e ideológicas.

Os ancestrais, divindades ou antepassados, são energias próprias da nature-za. E o conhecimento é dotado de uma dimensão ancestral. A educação configu-ra-se na absorção e na transmissão dos valores civilizatórios concebidos pelosancestrais.

Os Conteúdos a Serem Transmitidos SãoElaborados pelo Grupo

O desenvolvimento do sistema educativo tradicional é endógeno. Isso não sig-nifica que contributos externos sejam recusados, mas estes são assimilados, digeri-dos, e o seu aparecimento não se traduz numa desintegração dos mecanismos sociais.

A educação é o negócio de todos. Cobre um caráter coletivo e social por-que ele não é apenas de responsabilidade da família, mas também do clã, da al-deia, da etnia. A educação da criança compete ao grupo, ela está sujeita à açãoeducativa de todos, à disciplina coletiva. Certamente, a família próxima tem umpapel específico, em especial os pais e os avós. Certamente, as aprendizagens dasespecialidades recorrem mais aos que dominam as técnicas em causa. Mas é a co-letividade aldeã como um todo que participa no processo educativo. Esta multi-dão de atores exerce certamente uma multidão de influências diversas sobre acriança, mas os resultados são convergentes na medida da coesão do grupo.

Aqui ainda, as sociedades à iniciação introduzem uma exceção de dimensão.Existe, com efeito, um pessoal especializado que possui um saber esotérico, reser-vado a alguns. Mas contrariamente à escola ocidental, não se trata aqui de profis-sionais da educação. Fora dos períodos de iniciação, esses pedagogos vivem comotodos os outros membros do grupo. A escola ocidental, em contrapartida, funcio-na como um corpo estranho com profissionais que pertencem apenas a ela. Osmembros da comunidade são solicitados eventualmente apenas para reuniões e fes-tividades e não para o processo educativo em si.

Devemos fazer-nos uma observação específica sobre o lugar das pessoas ido-sas. Nas sociedades tradicionais, a velhice é percebida como um valor. O avançoem idade é percebido como uma progressão de fase em fase. O indivíduo é con-cebido como alguém que vai adquirindo um acréscimo do ser perpétua e conti-nuamente. A morte é apenas a passagem do estágio da velhice à fase superior deantepassado.

Page 191: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

178 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Há Integração Entre os Conteúdos

Os processos tradicionais da educação não recortam os elementos de forma-ção e não isolam as disciplinas: as provas físicas, a educação moral, filosófica e ide-ológica, a formação intelectual e cultural, as atividades econômicas e a transmissãodas habilidades técnicas, etc. estão unidas. Pode-se dizer que o todo está em tudo.É uma educação completa e polivalente, que tem em conta a totalidade da pessoa esuas necessidades de educação e de instrução. Explora todas as facetas pedagógicas.É assim que através de um conto, por exemplo, ensina-se a criança ao mesmo tem-po a língua (vocabulário e fraseologia), a arte de contar (linguagem e retórica), ascaracterísticas dos animais (zoologia), os comportamentos humanos ou as condu-ções dos homens através das dos animais (psicologia), o canto, o viver em socieda-de (moral, civismo). Uma epopeia oferece a ocasião correta de estudar a genealogia,a história, a geografia, cosmogonia, botânica, sem esquecer as lições morais e o ci-vismo. A agricultura, a caça ou a pesca é explorada para desenvolver noções de umou o outro ramo das ciências naturais, tais como a etologia, a hidrologia, a física, aecologia, a climatologia, a geologia, a pedologia, etc.

A Educação Se Dá em Todos os Lugares e emTodos os Momentos da Vida

A educação de tipo tradicional dá-se por toda a parte e não tem um lugarespecialmente destinado para esse efeito, como ocorre no ensino ocidental. Todosos lugares são explorados: lugares de trabalho e lugares de descanso, lugares de reu-niões públicas e lugares de intimidade familiar, etc.

Contudo, onde a iniciação é uma verdadeira instituição, o campus de ini-ciação é um lugar privilegiado: a educação aqui é bem delimitada, consagradadurante o período de iniciação.

A educação tradicional se confunde com a vida concreta do grupo, é ligadaa todos os momentos desta vida. Não há nem horários, nem feriados, nem esco-laridade, mas uma impregnação constante. Assim, o indivíduo formado por todaa parte também é formado todo o tempo, contrariamente ao ensino ocidental queé dispensado a períodos dados, certas horas do dia, certas épocas do ano, e mes-mo um período bem definido da vida. Como no caso precedente, as sociedadesà iniciação fazem às vezes exceção. O tempo no qual os neófitos estão num cam-po de iniciação é um tempo muito específico, que o consagrado participa, ou seja,um tempo no qual não são aplicadas as regras da vida corrente. Esses períodos são

Page 192: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Princípios para uma educação afro-brasileira 179

de duração muito variável de acordo com as regiões, de acordo com os tipos deiniciação. Pode-se dizer que esse tempo específico é mais especializado que o tempoescolar da escola ocidental.

As Artes Integradas ao Processo Educativo

A arte africana preenche várias funções: religiosa, econômica, política eeducativa. Os elementos de arte plástica combinam-se com representações dra-máticas e danças específicas, bem como pedaços adequados da literatura oral. Apertinência dessa combinação participa da coerência e do caráter multidimensionaldas aprendizagens (Oliveira, op. cit.: 215-216).

Os orixás são representados por objetos, cada um deles com uma estética bemcaracterística, com suas cores, suas formas bem definidas. Esses objetos são as es-culturas, os colares, etc., que são portadores e transmissores de conhecimentosmuito específicos.

Além desses objetos, temos as músicas e as danças cheias dessa dimensãoestética. Os valores artísticos se manifestam na execução das músicas, nos toquesdos atabaques e nas danças.

O que mais caracteriza a arte afro-brasileira é a sua comunicabilidade, ime-diata e ampla, inerente à estética africana. Essa marca vem dos tempos coloniais.Os africanos, ao chegarem ao Brasil, trazidos à força, eram destinados à cidade ouao meio rural. Os que eram destinados à cidade tornavam-se negros domésticos, eos levados ao meio rural eram os negros de campo. Nos dois ambientes existiamos negros de ofício.

Os negros domésticos realizavam as tarefas da casa. Eles faziam de tudo. Osnegros de campo formaram a mão de obra agrícola, realizando o trabalho braçal naslavouras, arando, plantando, colhendo, etc.:

“O Brasil não se limitou a recolher da África a lama de gente preta que lhefecundou os canaviais e os cafezais; que lhe amaciou a terra seca; que lhecompletou a riqueza das manchas de massapé. Vieram-lhe da África ‘donasde casa’ para seus colonos sem mulher branca; técnicos para as minas; artífi-ces em ferro; negros entendidos na criação de gado e na indústria pastoril;comerciantes de panos e sabão; mestres, sacerdotes e tiradores de reza (...)houve não só banda de música de negros, mas circo de cavalinhos em que osescravos se faziam de palhaços e de acrobatas. Muitos acrobatas de circo,sangradores, dentistas, barbeiros e até mestre de meninos – tudo isso foram

Page 193: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

180 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

os escravos no Brasil; e não apenas negros de enxada ou de cozinha (...). Efelizes dos meninos que aprenderam a ler e a escrever com professores ne-gros, doces e bons” (Freyre, 2004: 391-505).

Os negros de ofício eram esses oficiais que exerciam as funções de carpintei-ros, pedreiros, ferreiros, escultores, torneiros, alfaiates, tecelões, e com a litografiatransferiam para a pedra e depois reproduziam os desenhos (Rugendas, 1972: 147-149). A arte e os ofícios africanos influenciaram essas práticas nas diversas regiõesbrasileiras. Os artistas, os mestres em ofício de oleiros, ferreiros e outras práticas comoa fabricação de instrumentos de música, de esculturas de madeira, nos trabalhos deferro, cerâmica e cestaria têm forte marca dos africanos bantos, hábeis no trabalhocom ferro (Ramos, 1979: 199) e no trabalho com a madeira (ibidem: 234).

O mais importante é a questão da natureza interior, da alma afro-brasileira,na consecução de toda produção artística. Quando um negro modela em barrouma imagem, não é por um dom apenas técnico, mas há um envolvimento espi-ritual. Toda arte afro-brasileira está integrada com a espiritualidade.

No ato criador a presença de uma inteira compreensão do espiritual que regea figura a ser representada se impõe. A sensibilidade e o caráter místico são a for-ça maior da expressão, vistos também na música e na literatura.

Referências Bibliográficas

APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio de Ja-neiro: Contraponto, 1997.

AUGRAS, Monique. Quizilas e preceitos: transgressão, reparação e organização dinâmica domundo. In: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de. Candomblé: desvendando identida-des. São Paulo: EMW, 1987.

______. O duplo e a metamorfose: a identidade mítica em comunidades nagô. Petrópolis:Vozes, 1983.

______. O que é tabu. São Paulo: Brasiliense, 1989.

BARROS, José Flávio Pessoa de. EwéÒrìsà: uso litúrgico e terapêutico dos vegetais nas casasde candomblé jêge-nagô. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

______. O segredo das folhas: sistema de classificação de vegetais no candomblé jêje-nagôdo Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 1993.

BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

______. As religiões africanas no Brasil. São Paulo: Pioneira, 1985.

BORGES, Paulo. Imaginário e mitologia. In: ARAÚJO, Alberto Filipe; BAPTISTA, FernandoPaulo (Orgs.). Variações sobre o imaginário: domínios, teorizações, práticas hermenêuticas.Lisboa: Instituto Piaget, 2003. p. 45-70.

Page 194: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Princípios para uma educação afro-brasileira 181

BRAGA, Júlio. Na gamela do feitiço: repressão e resistência nos candomblés. Salvador:EDUFBA, 1995.

______. O jogo dos búzios: um estudo da adivinhação no candomblé. São Paulo: Brasiliense,1988.

BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais epara o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: Ministério da Edu-cação/Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial/Instituto Nacional deEstudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2004.

FERRETTI, Mundicarmo. Desceu na Guma: o caboclo do Tambor de Mina no processo demudança de um terreiro de São Luís: a casa de Fanti-Ashanti. São Luis: Sioge, 1993.

FERRETTI, Sérgio. Querebentan de Zomadonu: etnografia da Casa das Minas. 2. ed. SãoLuis: EDUFMA, 1996.

FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime daeconomia patriarcal. 49. ed. São Paulo: Global, 2004.

HAMPÂTÉ BÂ, Amadou. Amkoullel: o menino Fula. São Paulo: Palas Athena/Casa das Áfri-cas, 2003.

______. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph. História geral da África I. São Paulo: Ática,1982.

______. Confrontações culturais: entrevista concedida a Philippe Decraene. Thot, São Pau-lo: Palas Athena, n. 80, p. 3-12, abr. 2004.

LÉPINE, Claude. Os estereótipos da personalidade no candomblé nagô. In: MOURA, CarlosEugênio Marcondes de. Candomblé: religião do corpo e da alma: tipos psicológicos nas reli-giões afro-brasileiras. Rio de Janeiro: Pallas, 2000. p. 139-163.

LOPES, Nei. Logunedé: santo menino que velho respeita. Rio de Janeiro: Pallas, 2000.

MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de. As senhoras do pássaro da noite: escritos sobre areligião dos orixás V. São Paulo: EDUSP, 1994.

MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versusidentidade negra. Petrópolis: Vozes, 1999.

______. Os Basanga de Shaba: ensaio de antropologia geral. São Paulo: FFLCH/USP, 1983.(Col. Antropologia, n. 7).

______. (Org.). Superando o racismo na escola. 3. ed. Brasília: Ministério da Educação/Se-cretaria de Educação Fundamental, 2001.

______. Negritude: usos e sentidos. São Paulo: Ática, 1988.

OLIVEIRA, Julvan Moreira de. Africanidades e educação: ancestralidade, identidade e oralidadeno pensamento de Kabengele Munanga. 2010. 298 f. Tese (Doutorado em Educação) – Pro-grama de Pós-graduação em Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo. Disponível em:<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-20042010-153811/pt-br.php>.

PAULA XAVIER, Juarez Tadeu de. Versos sagrados de Ifá: Núcleo Ordenador dos Com-plexos Religiosos de Matriz Ioruba nas Américas. 2004. 313 f. Tese (Doutorado em Psico-logia Social) – Programa de Pós-graduação em Integração da América Latina da Universidadede São Paulo, São Paulo.

Page 195: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

182 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

______. Os candomblés de São Paulo. São Paulo: EDUSP, 1991.

RAMOS, Artur. As culturas negras no Novo Mundo. Brasília: INL/MEC, 1979.

______. As religiões africanas no Brasil: Contribuição a uma sociologia das interpenetraçõesda civilização. São Paulo: EDUSP/Pioneira, 1972.

______. O negro brasileiro. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1940.

______. Introdução à Antropologia Brasileira (2 v.). Rio de Janeiro: Livraria Casa do Es-tudante do Brasil, 1962.

ROCHA LEITE, Fábio Rubens. A questão ancestral: notas sobre ancestrais e instituiçõesancestrais em sociedades africanas. 1982. 524 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculda-de de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo.

______. A questão da palavra em sociedades negro-africanas. Thot, São Paulo: Palas Athena,n. 80, p. 35-41, abr. 2004.

RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977.

______. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. Rio de Janeiro: Compa-nhia Editora Nacional, 1938.

RUGENDAS, João Maurício. Viagem pitoresca através do Brasil. São Paulo: LivrariaMartins, 1972.

SÀLÁMÌ, Síkírù. A mitologia dos orixás africanos: coletânia de àdúrà (rezas), iá (saudações),oríkì (evocações) e orin (cantigas) usados nos cultos aos orixás na África. v. I. São Paulo:Oduduwa, 1990.

______. Poemas de Ifá e valores de conduta social entre os yorubá da Nigéria (Áfricado Oeste) 1999. 374 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras eCiências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo.

______. Ogun e a palavra da dor e do júbilo entre os yorubá. 1993. 263 f. Dissertação(Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universi-dade de São Paulo, São Paulo.

SANTOS, Inaicyra Falcão dos. Corpo e ancestralidade: uma proposta de dança-arte-educa-ção. Salvador: EDUFBA, 2002.

SANTOS, Juana Elbein dos. Os nagô e a morte: pàdè, àsèsè e o culto égun na Bahia. Petrópolis:Vozes, 1986.

SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. São Paulo:EDUSP, 1992.

______. A manilha e o libambo: a África e a escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

SILVA, Vagner Gonçalves da. Construção e legitimação de um campo do saber acadêmico.Revista USP, São Paulo: Universidade de São Paulo, n. 55, p. 83-111, set.-nov. 2002.

VANSINA, Jan. A tradição oral e sua metodologia. In: KI-ZERBO, Joseph. História geralda África I. São Paulo: Ática, 1982.

VERGER, Pierre Fatumbi. Ewe: o uso das plantas na sociedade ioruba. São Paulo: Compa-nhia das Letras, 1995.

Page 196: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

DEAMBULAÇÕES CONTEMPORÂNEAS:FOGO CIGANO, CULTURAS E EDUCAÇÃO*

Sueli Aparecida Itman Monteiro**

Agradeço às energias cósmicas que se fundiramas minhas próprias energias neste trabalho.

Ao longo de duas décadas tenho realizado, a partir de uma pedagogia doolhar e da escuta, estudos sobre as diversas culturas que se entrelaçam aos coti-dianos escolares. A recolha de pistas anunciadas pelas muitas vozes, mesmo quedissonantes, realiza a sinfonia dos sonhos por uma educação sensível. O desejo daacolhida e da realização do direito, da igualdade na diversidade, do acesso aos co-nhecimentos acumulados pela humanidade, assim como o sonho pelo acesso aosprocessos criativos da arte e às novas linguagens tecnológicas, todos se expressamna ritualização da vida escolar, complexamente colocada em circulação.

Dentre os tantos espaços escolares vivenciados, encantou-me o cotidiano deuma escola situada em cidade da Região Central do Estado de São Paulo. Ali bus-quei reconhecer as culturas das diversas tribos contemporâneas amalgamadas naquelecenário. Motivava-me o reconhecimento do visível e do invisível que circundavama questão do fracasso, da evasão e da exclusão escolar e como aquelas pessoas, comlógicas tão distintas e distantes, pensavam, sentiam e agiam a partir desses fenôme-nos. Ao longo de dois anos lá me plantei para ver a “relva crescer” (Maffesoli,1985) e tive o privilégio de acompanhar a vida de vários adolescentes, membrosde tribo cigana que parte do ano se fixava nas redondezas da escola. Pelo intensodesejo de adentrar aos mistérios que circundavam as vivências daquela tribo ciganacontemporânea, realizei pesquisa a fim de mapear, através do contato inicialmenteestabelecido com os pequenos ciganos que frequentavam a escola, suas formasorganizativas, seus aspectos patentes e latentes, identificando aí as paisagens men-tais que povoavam seus sonhos, devaneios e representações simbólicas acerca doque significava a permanência, ou não, na escola.

* Subprojeto realizado como uma das temáticas investigadas no Projeto Integrado financiado peloCNPq e elaborado por nós, membros do Grupo de Pesquisadores do CICE (Centro de Estu-dos de Culturanálise de Grupo e Educação) – FEUSP.

** Doutora pela FEUSP, pós-doutorado pela Universidade de Lisboa. Docente do Departamentode Psicologia da Educação da FCLAr-UNESP.

Page 197: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

184 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

De parte da direção e de alguns professores, o fato de anunciar meu interesseem conhecer os modos de pensar, sentir e agir dos “ciganinhos” trazia-lhes alívio,na medida em que, apesar dos esforços empreendidos com a finalidade de promovê-los ao final do ano letivo, a maioria daqueles adolescentes abandonava os estudos emmeio ou assim que concluía a quinta série. A direção, oficiosamente, autorizava osprofessores a passarem tarefas aos garotos para que fossem realizadas durante a par-te do ano em que viajavam com a tribo, não lhes atribuindo, inclusive, faltas noperíodo de ausência, porque entendiam ser esta a melhor forma de evitar que re-provassem ou evadissem do círculo escolar. Para aqueles educadores, a pesquisa queme propus a realizar permitiria a compreensão do fenômeno da evasão escolar es-pecificamente vivenciado pelos adolescentes ciganos.

Ao iniciar os primeiros contatos com aqueles meninos e meninas, soube quevárias eram as notícias circulantes na mídia local evidenciando a permanência da tribocigana na cidade, bem como o sentimento de repúdio originado a partir de protestosde descontentamento demonstrados pela comunidade e autoridades locais. Assim,passo a descrever, sem pressa, o cotidiano e os achados socioantropológicos que fuiidentificando ao longo do tempo em que estive próxima daquela tribo cigana, a partirdo reconhecimento à cultura2 que os religava enquanto pessoas tão especiais.

Um Momento de Atenção ao Dizível

Ancorada no que Pierre Erny (1982) conceitua como pesquisa etnográficae etnológica3, alcei voos ao desconhecido.

2. A cultura de um grupo constitui-se a partir das histórias, formações e ideais, que são vividos deforma particularmente diversa e complementar, enquanto fenômeno, ou ação, ambos decorren-tes dessa relação mais ampla estabelecida, porque se integram e são incorporados através dos as-pectos intelectuais, reativos e afetivos do seu grupo de pertença (Coelho, 1997: 194-195).

3. Para Pirre Erny (1982: 123) “(...) a prática ‘de campo’, isto é, a observação direta, a entrevistasob suas diferentes formas, a pesquisa, a coleta de documentos, de informações de primeira mão,de objetos, de gravações sonoras, de fotografias ou filmes... se prolonga em tarefas de organiza-ção, de classificação, de descrição, de exposição e de primeira elaboração dos dados... é o domí-nio próprio da etnografia”. Complementar à etapa de realização da pesquisa etnográfica, “(...) aetnologia representa a síntese e a abstração. Partindo de dados fornecidos pela etnografia, ela re-compõe em um todo sistemático, e segundo uma lógica de exposição consentânea com o modode abordagem escolhido pelo pesquisador, as informações de que se dispõe sobre a etnia deter-minada, sobre um grupo de etnias vizinhas ou aparentadas, sobre a história de uma população,sobre um certo tipo de homens, sobre uma área cultural, sobre um aspecto limitado de uma cul-tura: uma instituição, um costume, uma técnica, uma crença, um objeto, um produto, etc.”.

Page 198: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Deambulações contemporâneas 185

Os caminhos que me levaram às tendas do Senhor Thomaz possuíam umabeleza agressivamente natural. Nessa região começava a despontar um bairro detrabalhadores onde as condições infraestruturais deixavam a desejar. O local tinhauma vegetação nativa constante. Despontavam algumas casas de pequeno portecom suas fachadas caiadas. Alguns trechos já haviam recebido benfeitorias de água,luz e guias de sarjeta. Era um local ermo, cujo silêncio era rompido pelos lati-dos dos cães, o “cocoricó” das galinhas que andavam soltas com suas crias e aindaas algazarras das lindas crianças ciganas – não me refiro aqui ao conceito debeleza que prevalece na região, onde uma criança para ser bela tem de estarimaculadamente limpa e bem trajada –, as quais livremente corriam pelos ata-lhos daquele bairro.

Lembro-me de que nesse dia, ao parar em um bar, distante do acampa-mento cerca de um quilômetro, a fim de saber com certeza onde o mesmo es-tava localizado, o proprietário do estabelecimento, homem simples, acabou porensinar-me como lá chegar; porém, em nossa despedida, num tom de brinca-deira, referiu-se aos ciganos dizendo: “Tome cuidado com eles, não é que elesroubem, eles pegam”. Ao chegar ao acampamento cigano, fui inicialmente rece-bida por uma moça alva de longas saias vermelhas (Ângela). Expliquei o que melevara até lá e ela conduziu-me ao Senhor Thomaz, dizendo-me que somente elepoderia decidir sobre o assunto. Enquanto caminhava sob as tendas do acampa-mento, senti uma emoção imensa, algo estranho, como se aquele também fossemeu lugar, meu espaço de fato. Aquelas tendas amplas, de intensa luminosidadeazulada, e o som do riso cristalino das pessoas davam-me a sensação de estar le-vitando. A proximidade e a falta de demarcações entre as tendas criavam um gran-de espaço central comum a todos.

E... no centro desse espaço estavam os olhos verdes mais penetrantes quejá divisei... E, neles, o chefe... majestosamente presente... o Senhor Thomaz. Re-almente, senhor dono de uma beleza consciente e dignamente anciã. Parecia-me um faraó egípcio com aquela tez morena. Olhou-me interrogativamente. Eeu, entendendo minha invasão, procurei explicar-lhe, muito sincera, os senti-mentos há pouco experimentados. Senti que o toquei. A seguir expliquei-lhe quedesejava conhecer parte do universo cultural de seu povo. Percebi que ele me en-tendeu. Contou-me que a vida não estava fácil para ele, pois seu povo estava a so-frer muitas discriminações por parte dos habitantes da cidade. A menção feita aoseu povo cigano dizia respeito a um grupo aproximado de vinte e quatro pessoas,organizadas em dois aglomerados de tendas, distantes um do outro menos de cemmetros. Essa família era composta por cinco pessoas com mais de cinquenta anos,

Page 199: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

186 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

seis entre vinte e quarenta anos, cinco entre doze e dezenove anos, três entre seise doze anos, e cinco pessoas entre zero e cinco anos. Contou-me, ainda, que eramcontinuamente pressionados pelo fato de morarem em tendas. Autoridades e parteda população local exigiam que sua família as desmontasse. Falou-me que, poresses tantos fatos ultimamente ocorridos, estava perdendo o desejo de ficar naquelalocalidade. Outros parentes seus, aproximadamente duzentos ciganos, já haviamdeixado a cidade naquele final de semana em busca de outros lugares onde a dis-criminação não fosse tão acentuada.

Nesse momento, observando mais detalhadamente os espaços organizados,percebi uma pequena construção ao fundo das tendas. Notando meu olhar, res-pondeu-me que se sentira obrigado a iniciar aquela construção como forma deproteger seu povo das imensas agressões que sofriam. Foi essa a maneira que eleencontrou para “acalmar os ânimos da população”, pois a exigência feita pelas au-toridades da cidade consistia em que sua tribo desmontasse as tendas fixadas emterreno próprio, com escritura em seu nome e com recibos de impostos totalmentepagos. Ele entendia que, mesmo não desejando morar em casa de alvenaria, só ofato de as autoridades observarem que estava sendo construída uma casa já lhe davaalgum tempo para “respirar”. Para o Senhor Thomaz, a tenda era a expressão má-xima de liberdade. Ela lhe dava flexibilidade para circular e ir para onde desejas-se. Ele entendia que a pessoa que morava numa casa passava a acumular muitospertences, ficando presa, dependente e temerosa de perdê-los. Caso desejasse des-locar-se, necessitaria carregá-los, o que implicaria perda da liberdade, lentidão nodeslocamento e gasto desnecessário de energia física. Segundo o Senhor Thomaz,essa pessoa deixaria de viver em plenitude, e o acúmulo desnecessário de bens aca-baria por se tornar sua prisão (essa fala inúmeras vezes foi confirmada por homense mulheres da tribo).

Para o grupo, viajar, conhecer novos locais, acampar, trabalhar em outrascidades era uma questão fundamental; diziam que era tão necessário quanto res-pirar. “Se não puder viajar, ser livre para ir aonde quiser, fico como passarinhona gaiola, morro de tristeza” (Senhor Thomaz). As viagens mencionadas já nãoeram como aquelas que seus antepassados outrora realizaram, porque iam sem-pre adiante. Contemporaneamente, os ciganos passaram a se fixar em uma loca-lidade e, ao contrário do relatado, passaram a construir casas, a fim de guardaremnelas seus pertences em função das viagens que realizavam durante o ano. O mes-mo fazia outra família cigana fixada em bairro próximo dali. Ainda assim, mora-vam em suas tradicionais tendas, pois para eles a tenda continuava a ser o símboloda mobilidade, da liberdade, da irreverência.

Page 200: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Deambulações contemporâneas 187

Figura 1 Anciã ao fundo da tenda e a jovem cigana em destaque.

Uma tônica constante na fala dos mais velhos – contrariando o desapego queos mais jovens faziam questão de demonstrar – tratava-se da importância de serempreservadas as tradições culturais do povo cigano, pois eram elas que os uniam e osidentificavam entre os demais grupos sociais. Eles diziam ter orgulho de ser umpovo que não tinha nacionalidade e territorialização demarcada – não se conside-ravam brasileiros –, eles se referiam às outras pessoas do bairro chamando-as de“brasileiros”.

Após todas essas conversas obtive o consentimento para visitar a família doSenhor Thomaz, depois de prometer-lhe que nada daquilo que ouviria ou veriaseria usado contra a mesma. Ele deixou claro que a mais ninguém permitiria pe-netrar no dia a dia da tribo, evitando com isso expô-la ao perigo bisbilhoteiro, mascomo sentira que eu era uma pessoa diferente, que não estava ali “para o mal”,então resolvera correr esse risco. E assim passei a visitar com certa regularidadea família do Senhor Thomaz. Visitei-os em situações muito comuns, em dias de“não fazer nada”, e em dias especiais, quando se confraternizavam. Eles prefe-riam que eu os visitasse às terças ou quartas-feiras, pois as quintas e sextas-fei-ras e os sábados eram considerados dias de trabalho, ocasião em que havia maismovimento nos centros das cidades. Os domingos eram considerados dias defesta, de “comilança e bebedeira”, e as segundas-feiras eram “dias de curtir res-saca” – dias do ócio -, deixando de ser um bom dia para se receberem visitas.

Page 201: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

188 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Quando inquiridos a respeito das características de seus trabalhos, explica-vam que o trabalho dos homens adultos consistia em vender objetos de cobre pelasruas da cidade e o das mulheres era o de saírem para ler a sorte dos transeuntes.Quando falavam sobre as atividades que desenvolviam, o faziam com orgulho.Certa vez, quando chegava ao acampamento, pude presenciar a saída das ciganas,de seus maridos e filhos. Pelo que observei, deduzi que naquele dia provavelmentea característica do trabalho seria outra. Como possuíam carros (uns mais novos,outros já mais velhos), estavam saindo em grupos. As vestes que usavam para esse“trabalho” eram bem surradas e até mesmo sujas, dando-lhes uma aparência deindigência. Essa visão das ciganas era bem diferente de quando ficavam no acam-pamento, pois eram vaidosas, cheirosas, cheias de “balangandans”. Quanto àscrianças, saiam quase seminuas. Cheguei a ver a nora de Senhor Thomaz tiran-do as roupas da criança de dois anos antes de saírem. Falando assim, pode-se pen-sar: “Coitadinhas destas crianças!” Porém, um observador mais atento poderiadizer que, se, por um lado, elas eram “utilizadas” pelos pais para ganharem o sus-tento do grupo, por outro, notei nessas mesmas crianças “coitadinhas” uma liber-dade de ação que não encontrara em outras crianças, filhas da “prisão domiciliar”contemporânea.

Nas brincadeiras, as crianças ciganas eram muito criativas e solidárias, tudoera de todos e qualquer objeto virava uma brincadeira, estimulando-lhes a fanta-sia. Na alimentação eram independentes, autossuficientes, e possuíam vontadeprópria. Até mesmo os pequeninos de dois e três anos serviam-se da comida deque tinham vontade e alimentavam-se sozinhos, ou a criança maior acabava divi-dindo com a menor o alimento que tinha no prato. As mães ciganas realmenteeram privilegiadas, diria até mesmo que poupadas, pela maneira como concebiama criança. Aparentemente a vinda de uma criança era sempre desejada, e a edu-cação dada a ela era partilhada por todos. A impressão que tenho é a de que crian-ças, adultos e mais velhos ocupavam lugares definidos na organização do grupo e, poristo mesmo, dentro de suas diferenças, eram amplamente respeitados, porque signi-ficavam partes diferentes de uma mesma totalidade.

Em outra visita por mim realizada, provavelmente a que mais me impres-sionou, perturbou, sensibilizou, lembro-me, ainda hoje, dos lamentos de DonaZoraide, a esposa do Senhor Thomaz – aparentemente viviam um casamentomonogâmico. Digo que fiquei sensibilizada porque pela primeira vez os vi mo-rando fora de suas tendas. A polícia estivera no acampamento e exigira que suastendas fossem desmontadas. A edícula, ainda em construção, já tinha as paredeslevantadas e as lajes colocadas, porém sem a calefação necessária. Era ali que es-

Page 202: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Deambulações contemporâneas 189

tavam dormindo. As tendas foram todas amontoadas, seus pertences comprimi-dos uns aos outros, molhados pela chuva da noite anterior, e tudo cheirando abolor. Estavam inconsoláveis. Contaram que alguns vizinhos, simpáticos à perma-nência deles naquele bairro – por acreditarem que os ladrões da região haviam semudado de lá desde o momento em que os ciganos se fixaram –, tentaram inter-ceder junto às autoridades em favor dos mesmos, mas nada adiantara. Nesse diaeu fora até lá com a proposta de lhes mostrar as fotos e a filmagem que realizarano acampamento dias antes. Foi quando me disseram que, para acelerar a cons-trução da casa, haviam vendido o aparelho de vídeo, o fogão de seis bocas, o chu-veiro elétrico e vários outros eletrodomésticos. Além desses bens de conforto, emcada tenda onde morava um ancião havia pelo menos uma cama de madeira mon-tada. Assim, para assistirem ao vídeo que eu levara, tivemos de ir ao outro agru-pamento de tendas, a essa altura já semidesmontadas.

Naquele dia, o Senhor Thomaz estava deprimido e irritado. Isso ficou aindamais evidente quando começamos a ver a filmagem e um dos garotos atrapalhou suavisão, não lhe permitindo enxergar o que se passava na tela. Imediatamente orde-nou ao garoto que saísse da frente, porque também ajudara a pagar aquele apa-relho. Ao apresentar-lhes as filmagens realizadas tentei recuperar alguns momentosda mesma, a fim de que me explicassem seus significados, contudo nada obtive,talvez pelo momento difícil que viviam, ou então porque desejassem preservar ossegredos grupais. Quando já me preparava para ir embora, uma das ciganas per-guntou se eu conhecia o nome de algum remédio para dor de dente. Respondi-lhe que, pelo inchaço em seu rosto, deveria tentar consultar um dentista. Ela medisse que tratamentos particulares eram muito caros e, além do mais, os dentis-tas da cidade se negavam a atendê-los porque eram ciganos. Falei-lhe sobre o aten-dimento gratuito de uma Faculdade de Odontologia da cidade, e ela respondeu-meque já tentara, mas não conseguira ser atendida. Ofereci-lhe “carona” para que fos-se até lá, mas ela me disse que não adiantava lutar contra a discriminação sofrida,afinal seu povo já estava acostumado a viver com esse estigma.

Tal qual o exemplo desse relato, de uma vivência recoberta pela quebra dedireitos, dias antes o filho de nove anos do Senhor Thomaz levara, durante a aula,um tapa da professora. O Senhor Thomaz foi até a escola em que o menino es-tudava para reclamar. Após seu relato, a diretora lhe disse que aquilo era assimmesmo e que a professora deveria estar muito nervosa no dia do ocorrido. A par-tir dessas e de outras vivências, não procuravam pelos direitos legais que seriamseus, quer seja pela violência simbólica sofrida quando do desmonte das tendas,quer seja pela falta de atendimento na área da saúde, ou ainda pelo tapa sofrido

Page 203: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

190 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

pelo menino. Disseram-me estar acostumados a conviver com a discriminação im-posta pela sociedade e, apesar de existir “gente boa como eu”, os fatos vinham ocor-rendo dessa maneira ao longo de muitos anos. Portanto, não adiantava querermudá-los. Após tal conversa presenteei-lhes com uma cópia da filmagem por mimrealizada. Quando já me despedia de todos, Dona Zoraide perguntou-me se de-sejava que lesse minha mão. Respondi-lhe que agradecia a gentileza, mas que te-mia saber sobre o meu futuro. Argumentou-me que “era besteira não querer sabero que já estava escrito no meu destino”. Refletindo sobre seu oferecimento – lera minha sorte, seu trabalho – entendi que aquele ato continha uma forma de gra-tidão, de troca e talvez até mesmo de manifestação de carinho pelo tempo que mededicara a ouvi-los em seus lamentos e dores.

Outro detalhe interessante foi o fato de, no princípio das minhas visitas àtribo, as mulheres me chamarem de “cumadre” (tom pejorativo dado às “donasda cidade”, aquelas para quem pedem comida, roupas, etc.) e depois, algum tem-po transcorrido, passar a ser chamada de “querida”. Não conseguia perceber se ain-da existia algum tom pejorativo nessa denominação, mas gostei de ser “querida”.

Durante o período em que visitei a família cigana, pude perceber que elestinham alguns hábitos semelhantes aos da cozinha brasileira no que se refere à ali-mentação. Gostavam de carne animal, arroz beneficiado e verduras. A dieta quefaziam diariamente era pobre em vitamina A e cálcio. Constatei ausência de fru-tas e ovos. Tomavam café, porém não identifiquei leite na alimentação. Já em diasde festa, a comida era absurdamente farta. Gostavam de carneiro e porco assado.O ritual de preparação dessas carnes me pareceu pagão: fincavam-se paus no chãode forma a ser construída uma espécie de altar, medindo aproximadamente trêspor três metros; depois fincavam-se os animais (inteiros), previamente limpos, emestacas tão grandes quanto os paus do “altar”, posicionando-os de tal forma quepudessem receber indiretamente o calor do fogo no centro desse “altar”. O donoda festa tinha de rodar a carne, porém, nas outras extremidades, onde tambémdeviam ser rodados os paus em que estavam os outros animais, ficavam posi-cionados amigos e parentes, revezando-se na tarefa de tempos em tempos. Os de-mais alimentos pareciam-se com os da cozinha árabe, repolho, carne, arroz, porémpreparados com muita pimenta. Todas essas iguarias, inclusive as carnes – e as res-pectivas cabeças dos animais –, eram dispostas sobre a grande mesa montada paraa ocasião e acompanhadas por muitos legumes, verduras e pães. Alguns alimen-tos eram servidos em pratos ou bandejas de alumínio, e a carne assada era servi-da diretamente sobre as toalhas. Parecia um banquete no oásis de um deserto.

Page 204: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Deambulações contemporâneas 191

Num dos rituais que presenciei, quando as pessoas começaram a se sentirbem alimentadas, uma torta doce redonda foi levada à mesa e, com uma faca, odono da festa fez-lhe quatro furos – em sinal de cruz – enchendo-os com vinho,e chamando a seguir o “Senhor João” (primo do Senhor Thomaz e chefe de ou-tra família cigana) para, num ritual de entrelaçamento de braços e alternância detomada do vinho, festejar algo que o grupo até então não me permitira saber osignificado. Concluído esse momento, o doce foi dividido apenas entre os mem-bros da tribo. A seguir, o Senhor Thomaz trouxe uma bandeja de prata conten-do incenso com cheiro forte de ervas, passou aquela bandeja enfumaçada sobre suacabeça e a do “Senhor João”, falou algumas palavras em seu dialeto e, pelos aplau-sos, pude perceber que um pacto havia sido selado.

Nesse ritual, as mulheres se mantiveram a distância, só participando domomento de saborear o doce. Antes, apenas as mais jovens se ocuparam da pre-paração dos alimentos e de outros afazeres – sempre ajudadas por uma emprega-da diarista “brasileira”. Pude perceber que a velhice cigana era muito respeitada,poupada e até mesmo louvada. Tal afirmação se deve à observação de que os jo-vens atendiam a todos os pedidos dos anciãos. Outro detalhe que me dava tal cer-teza era o fato de que ao chegar à festa o ambiente estava revestido de tristeza echoro. Contaram-me que “Dona Nina”, a tia mais idosa da tribo, de 84 anos, tevesua pressão arterial aumentada, desmaiou e seus filhos a levaram a um hospital.Por conta do ocorrido, o Senhor Thomaz pediu desculpas pela pouca manifesta-ção de alegria e pela música tocada em baixo volume, própria para dança de sa-lão. Os jovens ciganos timidamente passaram a ensaiar alguns passos. A dançacigana, que para eles era sinal de alegria, de comemoração, de acontecimento fe-liz, só poderia ocorrer a partir do momento em que recebessem boas notícias so-bre a saúde de “Tia Nina”.

Pude observar que os mais velhos eram poupados e as velhas senhoras não“trabalhavam” nos centros das cidades visitadas pela tribo. Eram resguardados dasinúmeras tarefas domésticas. Homens e mulheres diziam-se aposentados e man-tinham-se com o lucro obtido pelo “trabalho” dos membros mais jovens. Perce-bi, através desses exemplos, que os ciganos envelheciam com dignidade, rodeadosde cuidados e de afetos. Quando perguntei a uma das senhoras se sentia falta desua atividade anterior, ela respondeu-me que já havia trabalhado muito, ajudaraa tribo durante muitos anos e que, agora “aposentada”, chegara a vez de as mo-ças “de sangue jovem” cumprirem seus papéis. Ainda comentando com algumassenhoras sobre questões de saúde relativas ao problema de “Tia Nina”, pude sa-ber que, em geral, as pessoas idosas da tribo sofriam de males como hipertensão

Page 205: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

192 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

arterial, diabete, insuficiência renal, problemas preocupantes ligados ao uso de ali-mentos fartos em gordura, sal e açúcar. Seu João já apresentava sinais de pouquíssimacirculação em uma das pernas, por causa da diabete; Dona Beatriz não ia para a ci-dade sem seu remédio (alopático) regulador da hipertensão arterial.

Ainda falando dessa mesma festa, realizada num 12 de outubro (coincidenteàs comemorações católicas do dia de Nossa Senhora Aparecida), obtive algumasexplicações que tentavam justificar o evento. Uma delas se referia ao fato de “o ra-paz, dono da festa, ter alcançado a graça de estar com a esposa, cardíaca, em per-feita saúde”; outra explicação foi a de que essa era uma festa realizada todos os anosnesse mesmo dia; e ainda outra se referia à saúde de Dona Zoraide, que se cura-ra de um mal súbito.

Curiosamente, ao fundo da tenda principal onde se realizava a festa, haviauma estátua de Nossa Senhora Aparecida. Quando perguntei à Dona Beatriz omotivo pelo qual aquela estátua estava em destaque, ela me respondeu que “os ci-ganos eram cristãos”, mas como os padres não permitiam que frequentassem asigrejas, eles cultuavam as crenças em suas tendas. Paralelamente a essa tentativade convencer a mim sobre “o cristianismo cigano” pude me inteirar de alguns as-suntos que Dona Beatriz tratou com as jovens da tribo. Através de uma interaçãoamplamente amistosa, quase maternal, ela ficava apontando quais as meninas que,sob seu ponto de vista, já estariam prontas para o casamento, dentre elas, Ângela,menina muito bonita, aparentando ter entre quatorze e dezesseis anos (mas quena realidade tinha doze anos) e que usava saias longas, amplas e coloridas, cola-res e lenço brilhante nos cabelos (tal qual suas outras amigas). Esse assunto, mepareceu, trazia certo constrangimento às meninas, mas era um constrangimentoconivente com algo que, sabiam, estava por acontecer.

No caso de Ângela, soube, tempos mais tarde, que, no período dessa festa,já havia se enamorado de um cigano e que até mesmo já estava grávida. Isso erado domínio grupal, na medida em que sua mãe predissera tal acontecimento mesesantes e que, com muita naturalidade, esperavam a consumação de tal fato (essedepoimento foi obtido a partir da fala, cheia de censuras, da vice-diretora da es-cola onde Ângela cursava a quinta série, que abandonou logo após ter se casado).Em suas conversas com essa professora, Ângela dizia já não se sentir uma cigana,pois adquirira hábitos das pessoas da cidade; no entanto, acreditava que se casa-ria dentro em breve com o rapaz cigano, a partir das predições de sua mãe. Essasconversas, em tom de brincadeira, promovidas pelos mais velhos e dirigidas aosmais jovens criavam, em conjunto com a proximidade em que viviam, um climasensual que mantinha acesa a vida, ou seja, a saúde do grupo. Pude observar ainda

Page 206: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Deambulações contemporâneas 193

a alegria e a naturalidade com que os belos jovens, vestidos com calças escuras, decorte reto e camisas de tons azul ou verde, já levemente alcoolizados, entravam em“bandos” no único banheiro existente no acampamento. Podia-se ouvir de longeas brincadeiras e as gargalhadas que davam sob a alegre conivência dos mais ve-lhos, que, ao mesmo tempo em que os chamavam de “loucos”, davam boas gar-galhadas por causa das atitudes dos mais moços.

A festa desse dia foi muito oportuna, pois tive a chance de observar detalha-damente todos os membros do grupo, convivendo ao mesmo tempo, e pude ob-servar a nítida diferença em seus traços fisionômicos. Parte desse grupo de ciganosapresentava a tez, os olhos e os cabelos claros; outros ciganos tinham cabelos e olhosescuros e a pele clara; e, ainda, boa parte deles trazia pele e cabelos bem escuros,alterando apenas a cor dos olhos, que podiam ser muito claros ou muito escuros.A explicação para isso veio de Marcos, belíssimo cigano com passos de lince e co-ração de menino a quem algumas pessoas da cidade atribuía poderes paranormais.Contou-me que parte da tribo era originária do norte da Itália, e os demais daIugoslávia ou Egito. Saíram de regiões diferentes e foram se juntando ao longo docaminho. Os mais velhos carregavam um sotaque muito forte; os mais jovens pra-ticamente já o haviam perdido, dominando perfeitamente as duas línguas desdecrianças.

Desde o início de minha aproximação, percebi que, em sinal de camarada-gem para comigo, o Senhor Thomaz tinha o cuidado de usar o idioma brasilei-ro; os outros membros falavam muito em seu dialeto e utilizavam o mesmo parafazerem anedotas a meu respeito, fato que levava o Senhor Thomaz a repreendê-los continuamente. Um dia disse-me ser o chefe daquela família e, por isso, de-veriam respeitá-lo e a quem fosse seu convidado, pois ele sabia o que era melhorpara a tribo. Falou isso apontando para os cem metros adiante (área aproximadaque a tribo ocupava). Esse seu gesto se revestiu de uma grandiosidade que pare-cia indicar seu poder sobre um mundo imensamente maior do que aquele pequenoespaço físico, um mundo fantástico a representar todo o universo cultural de suaetnia, o qual lhe conferia um poder maior, cósmico, invisível, poder este que eupressentia e respeito ainda hoje...

Um Momento de Reinterpretação ao Dizível

Os dados obtidos nas visitas realizadas à família cigana estão longe de per-mitir uma análise que esgote os aspectos patentes e latentes da cultura desse grupo,porém levantam alguns indícios sobre a sua cotidianidade. Como estava envolvi-

Page 207: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

194 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

da em “Projeto Integrado” que se empenhava no “estudo do imaginário de esco-las de primeiro grau”, canalizei meu trabalho para a escola inicialmente mencio-nada. Restou-me, então, dentro desse estudo antropológico sobre a organizaçãoeducativa, estabelecer mediações entre as duas cotidianidades.

Apresento, assim, detalhes únicos para mim, que diante de suas pequenezase da banalidade de suas aparências remeteram-me à intensidade da vida diária dafamília cigana e a algumas intersecções com o universo escolar.

Penso que, apesar de ter detectado expressões orais e gestuais entre os maisjovens, que se caracterizavam pelo aparente desapego às tradições ciganas, outrosfatos “indicaram uma invariância das atitudes” grupais (Maffesoli, 1985: 23) queapontarei a seguir.

Dentro de uma “dialética entre profano e sagrado” (Maffesoli, 1985: 26), pre-senciei a “hierofania” e sua “ambivalência” a partir da presença simultânea e contra-ditória de um “ícone” cristão ao lado da prática de um ritual pagão (de um lado, aimagem da santa e, do outro, o pacto que usava a torta – o trigo da torta doce maiso vinho). Na imagem da santa, identifico o “sistema D” – a duplicidade –, e no ri-tual do pacto vejo a comunhão, a fé obscura, o sagrado para o grupo. Tal qual essemecanismo de utilizar a imagem da santa como forma de convencer a mim – re-presentante da sociedade estigmatizadora – sobre suas boas intenções para o exer-cício de um “cristianismo tribal”, ardil semelhante foi utilizado no início daconstrução da edícula, bem como no que trata das diversas formas de trabalho datribo – inclusive os possíveis pequenos furtos –, que Maffesoli (1985: 42) nos lem-bra como “a prática da ilegalidade versus a moral uniforme” da sociedade. Taispráticas, exercidas pelas mulheres ciganas, marido e crianças, faziam parte de umsistema D – da duplicidade grupal –, em que existia uma conivência grupal aliadaa uma dupla intenção, responsável pelas múltiplas faces de um mesmo fato, umadelas cuidadosamente obscura. Como exemplo disto, lembro aqui o próprio desdo-bramento de personalidade grupal, que os levava a construir a casa ao lado da ten-da – sinal da duplicidade que denotava uma “recusa branda” para com as segregaçõessofridas (Maffesoli, 1985).

Posso dizer sobre a “nobreza de massa feita de cinismo” (Maffesoli, 1985:42), que levava os membros da tribo a se acomodarem aos valores menospreza-dos pela sociedade em geral, levando as ciganas inicialmente a me chamarem de“cumadre”, enquanto resultado do humor criado pela própria socialidade, comoforma de resistência ao que poderia ameaçá-las.

Page 208: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Deambulações contemporâneas 195

Quanto à história de Ângela – na predição feita por sua mãe –, identifiqueia crença na imutabilidade do destino.

Sua evasão da escola pública poderia tanto ser resultado do abandono de um“projeto exterior”, reformista, que não alteraria as bases da socialidade na tribo depertença, quanto ser o “eterno retorno” à educação vital, originada enquanto me-canismo de defesa contra uma educação oficial, então despossuída do encanta-mento que a educação recebida através de sua cultura possuía. Penso que, “dentrode uma perspectiva monodimensional, reformista” (Maffesoli, 1985: 27, 65, 70),própria do projeto apresentado pela escola pública, não cabe o fascínio exercidopela magia que levou a mãe de Ângela a prever seu destino, prática essa que fa-zia parte do seu dia a dia. Ainda falando sobre o “eterno retorno”, menciono aquia viagem daqueles que se mudaram para outros lugares, a fim de fugirem ao es-tigma exacerbado daquela sociedade. Seria esse ato de deslocamento mais um traçosubterrâneo do nomadismo próprio do antigo ritual cigano da “andança”, a aflorarenquanto mais “um mecanismo de defesa da própria socialidade”? (Maffesoli,1985: 71).

Quanto ao papel ocupado pelo Senhor Thomaz no grupo, pude perceberque a tribo projetava naquela figura uma relação ambígua de rendição ao seu po-der e, ao mesmo tempo, um fascínio pelo significado que assumia para todos.Numa coexistência do politeísmo social, expressão daquela força existente a par-tir do “jogo da diferença”, em que cada um – crianças, adultos e mais velhos –desempenhava seus vários papéis (Augras, 1989: 2), estabelecia-se uma relação detroca (sensual, de bens) que dava vida à socialidade tribal (Maffesoli, 1985).

Para a família cigana, a comunhão grupal se dava na alegria e na tristeza.Como exemplo, pude perceber neles tanto o prazer demonstrado no ato do “es-tar junto” na festa ocorrida em 12 de outubro e no ato de viver o momento doritual do pacto, quanto no forte sentimento de tristeza provocado pela falta desaúde da tia anciã, símbolo da longevidade do grupo. No momento da festa, aalegria fazia parte do ritual de comunhão dos alimentos se modulando “em fan-tasmas lancinantes” (Maffesoli, 1985: 47) a partir da comida – a carne assada –,colocada diretamente sobre a toalha da mesa, “numa mediação com os lençóis, queservem para o amor e a procriação”.

A saúde grupal ficava ali garantida a partir da teia de sensualidades estabe-lecida pelos jogos entre os mais velhos e os mais jovens, que assegurava a conti-nuidade da socialidade a partir de um “imoralismo dinâmico” (Maffesoli, 1985:49). Em razão de tais fatos e ideário, a sociedade local os apontava como promís-

Page 209: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

196 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

cuos pela “leviandade com que educavam seus jovens”. Havia, assim, uma estigma-tização oficial, que acabava por induzir a população a episódios tais como o da fal-ta de atendimento de saúde para a cigana com dor no dente. O grupo cigano, emresposta, apresentava uma atitude de silêncio resistente (“resistência passiva”),aparentemente emoldurada por uma aceitação resignada da tragédia da vida.

A rejeição a essa discriminação e a essa violência social vividas pelo grupoeram as tônicas do “discurso pelo qual a comunidade se fundava... no interesse doaqui e agora” (Maffesoli, 1985: 36).

O elemento constitutivo dessa socialidade era externado a partir da troca debens, de afeto fraterno ou sensual (Maffesoli, 1985).

A liberdade (para viver e se deslocar), a solidariedade e o direito ao ócio re-presentavam a poesia que “(...) proporciona documentos para uma fenomenologiada alma”, poesia esta,que “encontra o seu repouso nos universos imaginados pelodevaneio grupal” (Bachelard, 1988: 14-15).

Os sinais de reconhecimento aparente da cultura cigana, que levavam seusmembros a se identificarem entre si e a evocarem a ajuda mútua, concretizavam-se a partir do uso das roupas típicas (já descritas) pelas mulheres e de grandesanéis pelos homens. A tenda os localizava e os identificava no espaço que ocupa-vam, o que me leva a fazer mais algumas considerações:

Se existe uma “memória espacial”, que se constitui em “(...) reserva de energiainsondável e misteriosa”, porque é “(...) a encarnação de um solo para se enrai-zar” (Maffesoli, 1985: 53-54), então os ciganos, tendo a vivência no mundo a par-tir da alma nômade que os conduz à história de andanças, podem ser consideradosde todo o mundo (universais), ou então de lugar algum.

Se todo o imaginário grupal, que dá força às lendas, aos contos, aos fantasmaspopulares, necessita da territorialização bem definida, pois “o espaço é a forma apriori do fantástico”, então a “poesia do solo” (Maffesoli, 1985: 54-55) feita peloSenhor Thomaz, ao apontar as cercanias da tribo e assumir, diante de mim, sua re-lação qualitativamente ambígua, enquanto chefe da família, dava a ele e a seu povoa territorialização imediata da cultura acomodada àquele espaço específico; porém,dentro da própria contraditorialidade existencial, o tempo tríbio (Poirier, 1987), quepermeava-lhe a tradição, também negava a possibilidade da aparente decadência dogrupo. Acredito que isso os poupava cosmicamente da “decadência da cidade” (a qualse caracteriza pelas expectativas não realizadas com o encontro na cidade). Assim,creio eu que a possibilidade já enunciada sobre a domesticação do povo ciga-no, aparentemente evidenciada pela redundância da fixação ao solo, se levado

Page 210: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Deambulações contemporâneas 197

em conta o jogo da razão provisória, pode ser reinterpretada como uma pers-pectiva imediata para a necessidade da “afronta à morte” dentro da “mitologiado encontro” (Maffesoli, 1985: 55, 61), contudo traz em sua essência a pers-pectiva de territorialização universal dentro de um tempo mítico.

Algumas Considerações

Na época da realização deste trabalho, o mesmo representou um fim desti-nado a um começo, em que nada se mostrou absoluto e definitivo. O provisóriode nosso epistema permitiu-me melhor organizar ideias sobre as culturas contem-porâneas a respeito dos grupos, em suas diferentes formas de sentir, pensar e agirna sociedade.

Para a tribo cigana, o ensino público gerado nas várias escolas frequenta-das por seus membros possibilitou-lhes, durante parte do ano, o acesso a umsaber próprio da cultura hegemônica. Era do que precisavam para continuarema trocar e vender os objetos produzidos pela tribo. Contudo, fatos ocorridos nocotidiano escolar constituíram-se em limitadores de suas práticas simbólicas, tor-nando-se agentes alimentadores da exclusão, da repressão e do estigma social so-fridos. Por outro lado, a escola onde realizei parte desta pesquisa, apesar da tentativade suprir as falhas provocadas pela organização oficial de ensino, pela falta de for-mação para o reconhecimento das culturas diversas, ignorou valores primordiais datribo cigana traduzidos na importância da liberdade de espaço, da crença sincrética,da musicalidade, da oralidade, da sensualidade diferenciada e do ideário fundanteda vida grupal. Perdeu, assim, a rara oportunidade da realizar a troca e o apren-dizado de conhecimentos milenares sobre valores ético-grupais, saúde, arte e edu-cação. Já para a tribo cigana, a educação pública, regida a partir de uma razãoracionalizante, mesmo que propagadora de um discurso oficial em prol dos direitosda pessoa, pelas atitudes banais e invisíveis geradas em seu cotidiano, acabou porsegregar-lhes enquanto diferentes, afastando-os e se deixando afastar da oportu-nidade de uma troca complexa de saberes diversos, profundamente necessários auma proposta que se permita acolher na diversidade os conhecimentos tradicio-nais, as representações simbólicas, a arte, enquanto espaço de inventividade, bemcomo as novas linguagens tecnológicas contemporâneas, que possibilitariam aosgrupos a comunicação, o acompanhamento e o aprendizado, mesmo que à dis-tância.

Assim, na inconclusão e na provisoriedade do trabalho aqui realizado, creioque ficaram evidenciados alguns aspectos da cultura escolar e os lados patente elatente (Paula Carvalho, 1991) daquela organizacionalidade tribal cigana, ainda

Page 211: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

198 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

que o significante de seus símbolos tenha, em alguns momentos, timidamente seenunciado através da dimensão concreta (cósmica, onírica, poética), que permi-tiu, ao indizível de suas representações indiretas e de seus signos alegóricos, suaepifania (Durand, 1988).

O fogo pagão, que solidariamente me uniu à família cigana através da comi-lança e da sensualidade grupal, eternizou-se em mim.

Referências Bibliográficas

AUGRAS, M. A favor do politeísmo epistemológico. Rio de Janeiro: UFRJ, 1989. Mimeo-grafado.

BACHELARD, G. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

COELHO, Teixeira. Dicionário crítico de política cultural: cultura e imaginário. São Paulo:Iluminuras, 1997.

DURAND, G. A imaginação simbólica. São Paulo, Cultrix: Edusp, 1988.

ERNY, P. Etnologia da educação. Rio de Janeiro, Zahar, 1982.

MAFFESOLI, M. A conquista do presente. Rio de Janeiro: Rocco, 1985.

PAULA CARVALHO, J. C. A culturanálise de grupos: posições técnicas e heurísticas em edu-cação e ação cultural. 1991. Tese (Titular) – FEUSP, São Paulo, 1991.

POIRIER, Jean. Heterocultura e sociedades africanas. Paris: [s.n], 1987. Mimeografado.

Page 212: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

O DESAFIO DE JUNTAR LETRAS, REVER E

APROFUNDAR CONHECIMENTOS NA VELHICE:IMAGINÁRIO E REALIDADE

Altair Macedo Lahud Loureiro

Se as alterações não forem efetuadas para abrigar as necessidadesemergentes no tempo, podem acontecer situações ameaçadoras à vida

dos educandos e dos educadores (...).Both (2001: 9-10)

Introdução: Imaginário, Velhice e Educação

O fenômeno da velhice e o processo do envelhecimento, para ser entendido,precisa ser visto como um composto pluridimensional, com a dimensão física, ocorpo com sua constituição e degenerescência natural; a constituição biológica doser humano, com suas heranças genéticas, que nas pesquisas caminham para suaprevisão e controle; a característica psíquica, com suas idiossincrasias, pecados eculpas; a dimensão antropológica, vendo o velho como ser da humanidade; e socio-cultural contextualizado no tempo e no espaço, que o faz portador de uma gamade pré-conceitos, conceitos, medos e audácias pleno de mitos, das pressões e inti-mações, proibições/interdições, direitos e deveres.

O ser humano, que até pouco tempo morria aos 30 anos, hoje já vive 100anos ou mais. É a longevidade acontecendo, mas que, paradoxalmente, não vemtendo a atenção exigida. Se, por um lado, existe evidente satisfação comemoradada humanidade por essa conquista, por outro, ela se apresenta como situação queatormenta, com o possível abandono deste homem agora longevo, da perda da au-tonomia, da falta de condições pessoais múltiplas para enfrentar a diversidade ea novidade de demandas e possíveis exclusões socioculturais do agora novo ho-mem velho. O descaso ou incompetência do poder público, a desumanidade ouparca situação financeira e de condições outras da família – hoje modificada na

* Doutora em Educação-Antropologia do Imaginário, pela Universidade de São Paulo compesquisas financiadas pela CAPES. Docente do Programa de Pós-graduação stricto sensu emGerontologia da Universidade Católica de Brasília – UCB. Aposentada da Universidade deBrasília – UnB. Conselheira de Educação do CEDF – Brasília, DF.

Page 213: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

200 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

sua estrutura –, a desatenção do sistema de ensino e a desusada pedagogia, aindaem vigor no processo ensino-aprendizagem com idosos, são tintas fortes a borrara tela dessa realidade, como se disse, festejada.

A criança e o jovem precisam saber que serão os velhos longevos de amanhã,se não morrerem no caminho.

Entender a velhice desde cedo levará à postura humana perante os idosos dehoje, os avós e bisavós dentro e fora da família. Mas no sistema de ensino as ma-trizes curriculares estão apertadas com componentes ou conteúdos a ensinar semter espaço para tratar, mesmo que transversalmente, o processo do envelhecimento,o fenômeno da velhice e as realidades do velho, que somente deixaremos de serse morrermos antes.

“Sem dúvida”, como registra Andrade (2002: 29) no seu relatório de pes-quisa realizada em Portugal:

“(...) o problema da (...) inserção dos mais velhos na vida social e da prepara-ção para o envelhecimento é um problema geral; consideramos, contudo, queo tratamento dessa problemática deverá passar a estar inserido na escola”.

Ideia compartilhada com Yamazaki (1994, apud Andrade, 2002: 29), queclassifica a educação para a idade avançada, em resposta ao rápido envelhecimentoda população japonesa, como um fenômeno explosivo.

Jacobs (1975, apud Andrade, 2002: 29) afirma que “ a altura mais favorá-vel para se dar início a um programa de educação para o envelhecimento é o pe-ríodo de formação, por excelência, da infância e juventude”.

Por seu lado é importante a atenção com a formação tardia, aprofundamentoe aquisição de novos conhecimentos na velhice. Os velhos também precisam secompletar ante a realidade natural humana da sua incompletude e da longevidadepossível neste tempo e que se pretende se estenda para bem mais, muito mais,desde que com qualidade nesta sobrevida.

O sistema de educação, as didáticas e as escolas ainda não se deram conta deque precisam educar, formar um homem que viverá bem mais do que o que até aquiviveu a humanidade; formar para muito mais tempo de vida e para enfrentar e vencersituações inimagináveis e diferentes de tudo o que já foi visto e vivido. Ao lado destadistonia aparece a necessidade da educação continuada, ampliada, promotora dacompletação constantemente perseguida pelo ser humano incompleto na sua natu-reza, mas caracterizado pela capacidade de mudar e aprender sempre; aprender coisasnovas nunca antes a ele ensinadas ou com ele descobertas diante da novel situação;aperfeiçoar e ampliar conhecimentos; instrumentalizar o velho para se adequar e ou

Page 214: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

O desafio de juntar letras, rever e aprofundar conhecimentos... 201

alterar criticamente o predisposto no tempo e no espaço. O velho não deve apenasse adequar, mas também, sempre que suas condições permitam, pode e deve alte-rar o mundo em que vive, nesta vida ampliada.

Um homem menino hoje poderá chegar a ser o centenário de amanhã, maso sistema atrelado à sociedade, que é lenta para mudar paradigmas e desfazerpreconceitos e estigmas, ainda o vê como um ser que terá apenas que ser enten-dido e considerado na infância, adolescência e maturidade, não chegando a de-senvolver critérios de ensinamentos para que ele aprenda a viver a sua velhice ea conviver intergeracionalmente, dentro de sua própria casa, família, comuni-dade e sociedade. Essa atitude condicionaria a perda do preconceito, esmaeceriao estigma e enfraqueceria os estereótipos sociais, quando não os extirparia total-mente, quanto ao ser velho.

“As instituições não estão preparadas para mediar o desenvolvimento (...).As conquistas nas áreas biomédicas redimensionaram a expectativa de vida,mas os recursos sociais sobre os sujeitos e as instituições não se ajustaram naperspectiva do ser humano longevo. Nem ao menos as escolas (...) estãoinclinadas a atender às novas exigências para a gestão educacional justa paracom todas as idades” (Both, 2001: 9-10).

O ser humano aprende desde que nasce até que morre, e pode ainda ensi-nar. Nessa assim estendida formação, os métodos serão revistos, os currículos re-feitos e o “paidos” deverá se completar ou alterar com o prefixo “geronto”, querdizer, pedagogia para crianças e adolescentes, andragogia para adultos, mas umagerontogogia precisa ser criada, desenvolvida, cultivada e utilizada com idosos,tanto em “desenvolvimento tardio”, aqueles que não tiveram chance no momentoprevisto pela sociedade, mais especificamente pelo sistema da educação, mas tam-bém para, ou com, aqueles que estão ávidos em ainda aprender, se atualizar eaprofundar seus talvez desusados ou fora de moda conhecimentos, habilidades edestrezas; destreza que agora, na velhice, precisa ser de outra forma, com outroritmo, pois a degenerescência física é uma realidade enquanto um cérebro ativoainda pulsa a exigir renovação e consequentes novas aprendizagens.

A autoestima emergirá em sujeitos idosos que entendam sua identidade eautoconceito refeito ou reforçado por ações educativas precisas na medida do en-tendimento das características do processo de envelhecimento. Todo o processode ensino aprendizagem exige dose grande de aprofundados estudos e pesquisastanto na renovação e adequação de métodos como no entendimento do ser quese quer educado, partícipe da ação e pensamento de tal processo. A complexida-de permeia o processo, tanto do envelhecimento quanto do ensino-aprendizagem,que se constituem de forma dinâmica; aquele no decurso da vida e esse de forma

Page 215: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

202 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

seriada, gradual e eminentemente pessoal, sem esquecer que o homem é um só-cio e que em sociedade precisa viver e interagir, sendo como é um ser de interação.

Não fora essa interação, o processo da vida seria menos complexo, pois é natroca, no convívio, que o homem se vai completando, o que só se completará namorte. A incompletude do homem é o que o faz procurar sempre mais crescer ese atirar para novas e renovadas ações e buscas. Não adianta querermos simplifi-car as coisas, tanto mais quando se trata de entender e atender à velhice. Somen-te na complexidade estaremos propugnando para uma formação adequada ao serhumano envelhecendo ou já envelhecido, o velho. Os conhecimentos são tambémpassíveis de envelhecimento, de contestações e mesmo de descrédito ou inade-quação em momentos diferentes e espaços diversos da vida e do mundo.

Causa tristeza encontrar idosos analfabetos. Mas causa satisfação ao encon-trar grupos de idosos aos 60, 70, 80 anos ou mais se dedicando ao desafio de juntarletras, de colocá-las pela primeira vez em “carreirinha”, como disse a idosa donaCoragem, de segurar um lápis e de aos poucos ir ganhando o alargamento da suavisão de mundo, lendo jornais e livros. Ler e escrever passam a ser motivos parao projeto de vida para muitos idosos.

Aqui entra o trabalho das Universidades Abertas à Terceira Idade (UnATIs)e de centros ou núcleos de convivência que têm se dedicado a aprimorar seusmétodos deslocando a proeza de alfabetizar crianças para se dedicar a essa alegria,que não era sem tempo, tardia em relação aos outros, satisfação no apagar das luzescom o clarão das letras que se tornam de repente legíveis, que se abraçam na di-ficuldade de mãos calejadas que dificultam a coordenação motora, ágeis a empu-nhar enxadas pesadas, movimentar tornos, pilar feijão, etc., e que agora precisamse tornar leves para manusear um simples lápis ou caneta.

Um Grupo de Idosos AnalfabetosEm minhas pesquisas tive a oportunidade de estar com um grupo de ido-

sos que buscavam aprender a ler e escrever, se alfabetizar em um centro de con-vivência em Cuiabá. Muito aprendi sobre educação de idosos, convivendo comeles. Encontrei um local alegre e descontraído voltado à dita terceira idade, paraidosos. Ao chegar ao Centro fui, prontamente, reconhecida, pois lá já havia es-tado uma outra vez para conhecer o trabalho ali realizado, sua organização, ati-vidades desenvolvidas com os idosos e esta atividade de alfabetização. Já daquelafeita os idosos, a direção e os professores do Centro me receberam muito bem.Comecei a falar com os idosos que logo se colocaram à disposição com ressal-va: “não sabemos nada!”.

Page 216: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

O desafio de juntar letras, rever e aprofundar conhecimentos... 203

Como? Perguntei eu: há quantos anos vocês estão vivendo neste mundo?Como não sabem nada? Vocês têm a sabedoria da idade, e eu posso aprendercom vocês! Começo então a conversar, a exercer (....), o inaudível, a vislumbraro invisível e a tocar o intangível, a procurar entender o ininteligível, e deleito-me e assombro-me calada com as belas, felizes ou escabrosas histórias criadas,vividas e relatadas e as associações/simbolizações efetuadas pelos idosos com oselementos do Arquétipo Teste de Nove Elementos – o AT-9, teste criado por YvesDurand –, nos seus desenhos/dramatizações pictóricas, ditos, de início, impos-síveis de serem feitos e até mesmo de interpretá-los, como coloca Yves Durandna sua obra (1988: 139).

O “discurso” yvesdurandiano, exigido na segunda parte do teste AT-9, co-meça a se processar pelos sujeitos-autores: idosos alfabetizandos, sujeitos de umainstrução dita “tardia” por Both (2001), mas que sempre será oportuna e em tem-po hábil, mesmo que na prorrogação da partida do jogo da vida. A riqueza dasvidas vividas – bem ou mal vividas, mas existências com mais de sessenta anos,até mais que oitenta –, se descortina na minha presença e aguça a minha, semprealerta e disposta, imaginação – no que preciso cuidado para não colocar excessosnas análises, pois que a imaginação se ascende ao ouvi-los cheios de saudades eaté de horrores do seu passado. Belezas e felicidades também passam como em umfilme cor-de-rosa desbotado pelo tempo, mas retocado, recuperado pela emoçãode reviver os fatos, revisitar/reabitar lugares, sentir odores e aromas, que revivemsituações na memória, memória que afeta o imaginário dos alunos idosos, imagi-nário repartido comigo. Um privilégio!

Estavam em classe treze alunos idosos na faixa de 60 a mais de 80 anos, masum negou-se a participar alegando: “não quero esquentar a cabeça”. Os demais,doze, todos desenharam e contaram a história – pois, na condição de alfabeti-zandos, não puderam escrever a história, motivo pelo qual tive de escutá-los umpor um, e por vezes todos juntos ansiosamente a contar a história imaginada, nemsempre imaginada, mas acontecida no passado e agora rememorada no presente,com saudades, alegria e mesmo com certa tristeza contida. Ao trazer a realidadeacontecida no passado para o presente, essa história se atualiza e sofre a influên-cia do desejo do que gostariam que tivesse acontecido, assim se apresentando comuma dose de imaginação e de retoques oportunos. Como crianças queriam seratendidas, por mim, em primeiro lugar; queriam saber a nota que eu daria pelodesenho. Detiveram-se no desenho de cada elemento do teste, pois parece que nãoatinaram que se tratava de uma dramatização com um relato escrito ou falado.

Page 217: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

204 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Assim sendo, após terem concluído o desenho, do qual se orgulhavam, já queque reiteradas vezes declararam que não conseguiriam fazê-lo, pedi que me con-tassem a estória do desenho, tarefa que eles não conseguiam, de pronto, imagi-nar e/ou associar: como desenhar uma história? Para eles, somente desenhar já éuma proeza, uma façanha: conseguiam cumprir uma tarefa que, paulatinamen-te, foi se tornando prazerosa. Aos poucos colocavam mais detalhes e minúcias nasimagens pictóricas, nem sempre relacionados com o solicitado no teste, mas como gosto do divertimento somado ao prazer de cumprir uma tarefa em sala de aula,tarefa formal de ensino-aprendizagem. Novidade para eles, com mais de sessentaanos e, até, mais de oitenta anos, mas de qualquer forma uma atividade para os,inadequadamente, chamados inativos, pois que, cheios de vontade e energia, quecom coragem, se lançam à aventura de aprender/mudar, de aprender a ler e es-crever. Trata-se de uma habilidade nova, quem sabe apenas não explorada no pas-sado, mas desejada: decodificar os escritos e registrar/escrever suas visões já opacas,ou nubladas pelas pressões, ao longo da longa vida.

Não posso me furtar a comparar o incomparável da vida humana: as diver-sas e diferentes fases, e reforço minha tese de que o ser humano aprende e que ovelho é um velho, mas humano, que vive apenas uma fase diferente da vida: a glo-riosa e vitoriosa conquista da velhice, e que pode aprender. Quantos ficaram pelocaminho sem o privilégio de nela chegar. Tirei leite de pedra e com o auxílio dogravador e a rapidez para escrever, anotar os contos, registrei o discurso, preen-chi a folha 1 (um) de identificação – e a última parte do teste, o pequeno questio-nário e o quadro das representações, funções e símbolos atribuídos aos elementosdo teste. O gravador somente foi usado, como recurso – considerando a situaçãodo ainda não domínio da escrita –, quando permitido previamente pelo alfabeti-zando. Não se percebe, inicialmente, na visão de conjunto, uma estória desenha-da, e sim figuras/imagens que, por vezes, nada têm a ver com os elementos do teste:“fusão e confusão” (Hillman, 2001: 108) podem estar acontecendo! Em se tratan-do de idosos que não dominam as letras, não leem nem escrevem, ainda – sãoaprendizes, alfabetizandos –, as letras ainda são confundidas e soltas, como disseuma das alunas: “eu ainda não as domino! Eu ainda não consigo colocá-las emcarreirinha, de mãos dadas, como diz meu bisneto”.

A pseudodesestrutura mítica parece acontecer. O imaginário do grupo, quese deixa ver nessa olhada inicial, remete à presença de um imaginário com estru-tura “defeituosa” (Y. Durand, 1988). Resta saber se: desestrutura verdadeira oupseudodesestrutura. É preciso garimpar para encontrar brilhando os diamantes depossíveis nós aglutinadores de imagens, talvez fiapos de coerência mítica que re-

Page 218: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

O desafio de juntar letras, rever e aprofundar conhecimentos... 205

meterão às tendências ou presenças de diferentes estruturas nos microuniversosmíticos que compõem o universo mítico do grupo. É bom lembrar que a curio-sidade que nos move nesta investigação é a de descobrir o imaginário nas repre-sentações de um grupo de idosos que frequentam curso de alfabetização, emCuiabá. Imaginário entendido, com Gilbert Durand (1989), como o conjuntorelacional de imagens a subjazer as ações, pensamentos e ideias.

Exerço a comparação com a infância ou, mais especificamente, com o aluno-criança que nessa fase da vida desenvolve a coordenação motora, a destreza, orien-tado pelo professor ou em brincadeiras manuais várias, domando sua mãozinha eaprendendo paulatinamente a segurar o lápis – para eles – pesado, mas que aospoucos vão exercitando a mão e o seguram, de repente, com a suavidade requeridapara a escrita. Na velhice, ao contrário, o exigido para a mesma tarefa se processacom a dificuldade de pegar com suavidade um leve lápis, com mãos calejadas pelasárduas e pesadas tarefas da vida, da lida, como eles dizem, do trabalho rude queexerceram: domésticas, merendeiras, camareiras, sertanistas, pedreiros, etc. A exigên-cia para a realização da proeza, da escrita, se houve, já se desfez pelo desuso ou nuncase desenvolveu nesta medida, pela carência do exercício necessário, da postura docorpo e adestramento da mão, que se sabe domável, notadamente naqueles/nestesque, mesmo chamados velhos, são idosos – com mais idade – que, plenos de dese-jo/motivação genuína, têm ânsia de aprender, de saber: actante atrativo na análiseactancial sugerida por Yves Durand (1988).

A educação/instrução é uma pulsão, um desejo, mas também pressão domeio cósmico e social, que só será deglutida/entendida/assimilada na hora ouquando esta pressão ressoar ou encontrar ressonância nos desejos interiores, naspulsões. Quando a motivação acontecer. É preciso estarem maduras a situação eas condições pessoais e culturais para que o processo de aprendizagem e a trans-ferência da mesma se realizem, para que aconteça a capacidade de raciocínio maiordecorrente do domínio das letras ordenadas, para a leitura e domínio da mão, paraa firmeza do traçado das letras no papel de forma legível, da escrita. Lembro a le-tra da canção de Dom e Ravel: “Você também é responsável”, “(...) Então meensine a escrever, Eu tenho a minha mão domável; Eu sinto a sede do saber (...)”.

Somem-se as idades, desconsiderem-se momentaneamente as fragilidadesvisíveis e embarque-se nesta viagem de tanto tempo passado, mas que, presente,nos traz e faz emocionados aprendizes da vida, que em qualquer idade, tambémna velhice, precisa ser considerada e bem vivida; nos mostra os reflexos da exis-tência vivida. Quanta vida, morte, alegria, tristeza e coragem!

Page 219: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

206 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Mas Que Invasão a Minha!

É preciso muito cuidado para não romper o fio já tênue que faz aterrissarno presente real, as notícias velhas como novas, frescas, mas que a um sopro po-dem se desvanecer e perder o “rumo da prosa”, trocar datas, substituir, em umailógica cronologia, os personagens, os nomes e sobrenomes; a confusão conside-rada por James Hillman (2001). É preciso paciência, mas mais que tudo amaros outros, estes outros já enrugados, fungando com nariz correndo, olhos purgan-do, com vozes fracas e sorrisos largos, alguns sem dentes, que mãos trêmulas pro-curam esconder, na vergonha preconceituosa ou vaidosa da ainda consciência dovalor da beleza e da juventude de uma face lisa e de uma boca que sorri com to-dos os alvos e perfilados dentes, hoje inexistentes ou poucos. Mas alguém já dis-se, uma cara lisa não faz biografia! Os bordados ou tracejadas linhas no rosto quecontinua a jornada, as rugas que se abertas uma a uma deixam saltar de si histó-rias vividas, vida construída na dor e na alegria da existência longeva. Escuto egravo; claro que, como já disse, com a permissão concedida antecipadamente pelodepoente idoso.

Fragmentos Pontuados: Histórias Revividas eRegistros no AT-9

Reparto alguns fragmentos pontuados das histórias que ouvi, esquecendo-me por vezes da academia e sentindo com o coração, ouvindo com os ouvidosd’alma.

Dona Zizi, alcunhada por nós “a artista”, com 71 anos, dramatiza:

“Era uma vez, um arco do céu que o corta ao meio, deixando do lado decima o sol e a lua e na parte de baixo a terra e a água. Tudo isto é o céu, queas nuvens, personagens, movimentam e modificam. O arco.”

A artista conta que faz teatro e que em seu desenho fez um arco-íris, queteima em chamar de o arco do céu, que segundo ela nasce e se esconde onde ogado morre e as plantas secam. Conforme Chevalier e Gueembrant (1989: 77)“o arco íris é caminho e mediação entre o céu e a terra, é a ponte de que se ser-vem os deuses e heróis, entre o Outro-Mundo e o nosso”. Intitulou sua obra dearte/desenho de: “Céu”. Nesse céu colocou uma queda, o arco que nasce e cai dooutro lado, fazendo a volta no mundo e reaparecendo em outro lugar. Lembro aquiPaula Carvalho (1999: 38) que compara a vida ao sol, “que mesmo em se pon-do, no crepúsculo, continua Além, auroral, e sua morte é aparente, na verdade,

Page 220: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

O desafio de juntar letras, rever e aprofundar conhecimentos... 207

mudança de registro, dimensão e hemisfério”. As nuvens desenhadas por dona Ziziao lado do quadro são os personagens que se movimentam conforme o sol e a luadesenhados e ditos como algo que roda , “(...) o sor que luméia o céu” , o que re-mete ao elemento cíclico/movimento, do teste.

Clarear e iluminar parecem metáforas obsessivas no imaginário dessa idosasujeito-autor do teste, o que remete à presença de um nó aglutinador de imagensheróicas. No desenho, o quadro está delimitado, separado, com o arco-íris sepa-rando a água da terra, do sol e da lua, que estão colocadas uma sobre a outra emordem. A desestrutura aparece no desenho, mas no discurso apresenta-se diminuí-da ou diluída, deixando aparecer “nós” ora heróico, ora místico, o que remete à pre-sença de um imaginário pseudodesestruturado, com tendência ao heróico impuroou ao disseminatório diacrônico(?).

Dona Duda, uma senhorinha simpática, aberta ao diálogo, conta com fa-cilidade seus problemas passados, sem mágoa ou ressentimento. Conta que aosdoze anos e seis meses de idade – sinal de que guardou o fato indelével na suamente – foi estuprada por um garimpeiro, à beira de um riacho, quando leva-va à casa de um parente uma encomenda da mãe. Seu pai, que a maltratavamuito, descobriu o malfeitor e fez o casamento deles. Teve nove filhos com omesmo homem que a estuprou na infância. Aprendeu a amá-lo e cuidou deleaté sua morte, há vinte anos.

Dona Tetê, uma senhora viúva de 61 anos, semialfabetizada, entusiasmadae falante, faz teatro uma vez por semana. Tem quatro filhos e mora sozinha. Comodiz: “Moro com Deus, meu anjo da guarda – uma cadelinha – e o riquinho/pas-sarinho”. Ela frequenta o Centro há dois anos.

Dona Zezé, alcunhada Dona Coragem, de 81 anos e analfabeta, intitulousua história: “Meu passado, própria vida, história do meu lugar”. Ela conta:

“Era uma vez uma menina que costumava ir a um açude cheio de peixes,onde os animais, gado e passarinhos iam beber água. Sua mãe sempre lherecomendava para ter cuidado, pois uma cobra andava/aparecia por lá. Umdia a cobra cascavel, com maracá no rabo (monstro), apareceu para pertur-bar. O monstro queria pegar o homem (a menina), que ao vê-lo corre, parao ‘esconderiu’, para o mato, para se esconder do monstro; cai (queda) e pegaum pau (espada) e mata a cobra. O monstro foi morto pelo homem (perso-nagem). O peixe, assim, pode ser pescado. Ao lado do açude/rio, no fogopara espantar os bichos e guiar iluminar o caminho, o homem assa o peixeque, ‘se eu lá estivesse, ajudaria ele a comer’.”

Page 221: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

208 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

O desenho: em um primeiro momento/olhada no desenho realizado por donaCoragem, parece-nos tratar-se de um desenho explodido, de estarmos diante de umaestrutura defeituosa, de um imaginário desestruturado. No entanto, ao ouvir a his-tória coerente e a explicitação e posição das imagens desenhadas na sua proxi-midade, e a pertinência com o desejado, dito no discurso oral, a coerência míticaemerge, deixando ver o nó que aglutina as imagens, por vezes relembradas, darealidade passada (pressões do meio cósmico social), por vezes de um imaginá-rio de uma octogenária analfabeta, mãe de oito filhos casados que vivem forade Cuiabá, que mora sozinha, é muito alegre, pronta a conversar e a aprender:lúcida e saudável. Seu discurso relatado ao ser questionada sobre a violência tam-bém se expressa coerente com o discurso do teste.

Ela relata que foi quatro vezes assaltada por “marginais” dentro da própriacasa. “Nada sofri, pois disse: ‘atire, mate, carregue a minha vida’, e ele fugiu semme machucar. Estou feliz!”. No primeiro dia em que estive na sala de aula do pro-jeto de alfabetização, dona Coragem me disse: “estou lutando com as letras. Elasainda me dominam, mas eu vou dominá-las, colocá-las em carreirinha. Ave Ma-ria, é o meu sonho”. Conta a história de um menina – que o sujeito-autor diz serela mesma, mas que também diz ser um homem (“fusão e confusão”, Hillman) –que costumava ir a um açude. No açude tinha peixes (animal) e, ao lado, umjuazeiro (“uma árvore lá do meu lugar”), mas uma cobra cascavel, com maracá norabo (monstro), aparecia sempre para perturbar. A mãe da menina sempre avisa-va para ter cuidado (o sujeito-autor fala relembrando sua própria vida real passa-da no Ceará). Nesse açude o gado (animal) vinha beber água, assim como ospassarinhos (elemento animal, do teste). Um dia, a menina/homem corre para omato para se esconder, fugindo do monstro, e o personagem cai (a octogenáriainsiste em dizer que ela não caiu, e não cai); ao cair, o personagem pega um pau(espada) e mata a cobra (monstro), faz um buraco com uma faca (outra espada)e enterra a cobra. O sujeito-autor fala que “o negócio é ter coragem”. Diz que seestivesse lá ajudaria o homem/menina a comer o peixe que, depois da cobra morta,pode ser pescado e assado no fogo (elemento fogo, do teste). Esse mesmo fogoserve para espantar os bichos e guiar no mato, iluminar o caminho.

Como registra James Hillman em sua obra A força do caráter e a poética deuma vida longa (2001), na velhice acontece de os idosos confundirem o real coma fantasia e fundirem os dois em um só, em uma só imaginação ou coisa. Assim,dona Coragem lembra, rememora a realidade passada de sua própria vida, mascumprindo ainda, nos seus 81 anos, o pedido do teste, ela inventa/imagina umaestória, com o colorido diferencial da imaginação que tudo pode, que retoca arealidade ao seu bel-prazer, e assim desenha os nove elementos solicitados e os

Page 222: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

O desafio de juntar letras, rever e aprofundar conhecimentos... 209

explica separadamente, apontando as imagens representacionais registradas noprotocolo, com o cuidado de identificá-los (talvez, se soubesse escrever, teria co-locado o nome em cada um), dizendo não saber desenhar bem, mas que “tudoera importante ser desenhado e não tiraria nada...”, porque a faz lembrar. Elamostra no registro pictórico: “aqui está o peixe dentro d’água, mas o mais impor-tante é..., como se diz..., como é o seu nome (o nome do elemento do teste)?”.Ela se pergunta para cumprir a ordem do teste e lembra: “o personagem”. Conti-nua apontando os registros imagéticos no desenho/protocolo: “aqui vem o pas-sarinho e o gado beber água e aqui é a cascavel com o maracá no rabo”. E continua:“este é o homem, a cobra, a fogueira, a faca, a espada, o ‘esconderiu’, o açude, opé de juazeiro”. E diz: “eu fui ajuntando tudo”. A realização do teste lhe trouxe aoportunidade de lembrar e relembrar e de lamentar não saber escrever.

Outra conta: Um dia o homem viu a cobra (monstro) e correu fugindo dela –“o monstro queria pegar o homem”; ao correr, o homem caiu, mas eu não caí, diz aoctogenária. Ao cair, o homem imaginado, e a menina real do passado, pegou umpau (espada) e matou a cobra. “O monstro foi morto pelo homem”. Quer dizer,o personagem no qual ela se projeta como homem venceu o monstro Yvesdurandiano,conforme a teoria que embasa o teste, a Antropologia do Imaginário de G Durand:venceu o medo da morte. A realização do teste lhe trouxe a oportunidade de lembrare relembrar e de lamentar não saber escrever e deu-nos a chance de vislumbrar nelafiapos de coerência mítica para identificar um imaginário com estrutura disseminatóriadiacrônica.

A Reciprocidade do Ensinar e Aprender: UmaExperiência com Mestrandos e AlunosIdosos na UCB

No estágio docente do mestrado em gerontologia da Universidade Católicade Brasília (UCB), onde atuo como professora, tenho a oportunidade, compar-tida com outra professora do curso2, de ver mestrandos exercitando o processo en-sino-aprendizagem com alunos idosos da Universidade Aberta à Terceira Idade(UnATI/UCB). São momentos de revisão e aprofundamento dos conhecimen-tos trazidos pelos idosos da classe, mas também a oportunidade de aprender no-vidades sobre saúde, postura, alimentação, higiene bucal, corporal e da alma,sexualidade, socialidade e satisfação pessoal. É gratificante ver pessoas ávidas por

1. Professora-doutora Maria Lis Cunha.

Page 223: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

210 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

escutar e realizar tarefas propostas por nosso mestrando. A pluralidade da consti-tuição da teoria gerontológica permitiu que as palestras/aulas das quintas-feiras àtarde sejam diversificadas e planejadas em conjunto com os professores da turmae desenvolvidas por médicos, enfermeiros, nutricionistas, fisioterapeutas, educa-dores, psicólogos e outros.

São momentos de satisfação recíproca desfrutados com pessoas velhas e compessoas que se interessam e se formam para conviver, transmitir e compreender avelhice e as necessidades de aprendizagem dos velhos, contribuindo na busca pre-sente de completude.

É interessante notar que a turma era constituída de idosos bem idosos e develhos na velhice ainda verde. Homens em menor quantidade e mulheres comformação anterior diversificada, tendo mesmo analfabetos entre eles, ao lado depós-graduados. Essas diferenças contribuíram para a riqueza do trabalho que seadequou aos alunos idosos. Desta forma foram se entendendo e arrolando per-guntas e interferências que evidenciaram ou deixaram patente as características deuma gerontogogia. Eles se demonstravam, em algumas ocasiões, impacientes quan-do queriam perguntar algo que por vezes nada tinha a ver com o que se discutia,mas que respeitado era pela preocupação de conhecer aquele indivíduo que, es-tando no grupo, não perde sua individualidade. O uno no múltiplo, morinia-namente, é respeitado.

Participações espontâneas nos surpreenderam pela profundidade da coloca-ção. Não raro, algum aluno idoso se levantava e tomando o giz escrevia no qua-dro sua opinião sobre o tema ou algum pensamento que reteve na memória dealgum livro que leu. Isto foi estimulado mesmo que o conteúdo previsto tivessede se limitar em virtude do tempo disponível para aquela palestra/aula. O Lan-che após as palestras foi sempre um estímulo à frequência às aulas. Os papos apósas palestras foram ilustrativos das características a respeitar em uma gerontogogia.Graças à UnATI/UCB, isto foi possível na conciliação do mestrado em geron-tologia e ela.

(I(I(I(I(In)Conclusãon)Conclusãon)Conclusãon)Conclusãon)ConclusãoRetiro, de tudo o que foi visto e registrado, que é preciso: uma pedagogia di-

ferente para que o processo de ensino-aprendizagem com idosos aconteça, umaumaumaumaumagergergergergerontogogiaontogogiaontogogiaontogogiaontogogia; respeitar o ritmo do idoso; dar-lhe atenção redobrada, pois ele as-sim a cobra e espera do professor, e ter redobrada paciência; que a estimulação dealguma forma atinja os motivos interiores e particulares de cada aluno idoso; lem-

Page 224: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

O desafio de juntar letras, rever e aprofundar conhecimentos... 211

brar que eles viveram em uma época em que a “nota” era importante na sala de aulae considerar a possibilidade de atribuir nota a cada trabalho; ordenar as ações con-juntas, dando vez e voz a todos os idosos envolvidos no processo; colocar-se comoaprendiz que ensina e aprende na reciprocidade intergeracional saudável de qual-quer sala de aula ou local onde o processo se realize; respeitar as histórias e realida-des de cada um; deixar nascer ou renascer a satisfação por ter cumprido uma tarefado processo de se alfabetizar; mostrar que é aos poucos que se dá a aprendizagem,processo dinâmico, seriado, gradual e individual; aplaudir sempre a vontade, a ener-gia e a coragem de se lançarem a aprender a ler e escrever nessa fase da vida; de es-tarem dispostos a adquirir uma habilidade nova ou recuperar uma esquecida ouinexplorada em fases anteriores; fazer deles cidadãos dignos, reforçar a cidadania evê-los como sujeitos de direitos, aprendentes sempre; considerar as diferenças cul-turais e procurar entender com eles as situações expostas e as palavras diferentes uti-lizadas no seu discurso de idoso que quer aprender, mas que pode ensinar; escutá-losem suas queixas e elogios ao processo mais amplo de viver a velhice ou ao processode envelhecimento pelo qual estão passando e que dele não poderão fugir, mas simdar-lhes ou deixar acontecer com suavidade e maior qualidade a vida.

Conhecer o complexo fenômeno da velhice, a diversidade nada simples doprocesso de envelhecimento, as realidades díspares dos idosos, assim como dominaras teorias e estratégias do processo de ensino aprendizagem e desvendar o imagi-nário do grupo, é fundamental nesta situação multiversa, neste desafio de fazeracontecer o decodificar das letras entrelaçadas com significado, leitura e escrita eo aprofundamento e descoberta de conhecimentos novos.

Deixar ressurgir na memória as emoções que pontuaram sua história e terpresente que alfabetizar não significa apenas colocar letras em carreirinha e saberentendê-las automaticamente, mas deixar claro o valor de recuperar ou fazer sur-gir com o domínio das letras e números a autoestima talvez amassada pela socie-dade impiedosa com os analfabetos, ou com os fragilizados em geral, o valor desentirem-se gente e de se situarem no mundo e na sociedade como cidadãos,interagindo com o “outro”, “outro” este no qual se forma e reforça. Enfatizar queser velho é um privilégio neste mundo em que tantos morrem cedo.

Mas o mais importante é deixá-los sentir o amor que lhes devotamos; deixá-los se sentirem amados e considerados no ato de aprender, como partícipes do pro-cesso de ensino e aprendizagem. Neste mundo que se quer amoroso, não estimulara negativa competição, e sim estimular a solidariedade saudável em todas as idades,notadamente na velhice. Deixar claro que ele é um velho e que como cidadão temdireitos e deveres para consigo mesmo, com o “outro” e com a sociedade.

Page 225: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

212 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Referências Bibliográficas

ANDRADE, F. de J. Uma experiência de solidariedade entre gerações: contributos para aformação pessoal e social dos alunos de uma escola secundária. Lisboa: Instituto de InovaçãoEducacional – IE, 2002.

BOTH, A. Educação gerontológica: posições e proposições. Erechim: São Cristóvão, 2001.

________; CASARA, M. B.; CORTELLETTI, I. A. (Orgs.). Educação e envelhecimentohumano. Caxias do Sul, RS: EDUCS, 2006.

CECCIM, R. B.; MERHY, E. E. Um agir micripolítico e pedagógico intenso: a humanizaçãoentre laços e perspectivas. Revista Interface: comunicação, saúde, educação, Botucatu, SP:Fundação Uni/UNESP, v. 13, supl. 1, 2009.

CHEVALIER, J.; GUEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes,gestos, formas, figuras, cores, números. 2. ed. Trad.Vera da Costa e Silva et al. Rio de Janeiro:José Olimpio, 1998.

DURAND, Y. L’exploration de l’imaginaire: introduction a la modelisation des universmytiques. Paris: L’espace Bleu, 1988.

DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia ge-ral. Lisboa: Editorial Presença, 1989.

HILLMAN, J. A força do caráter e a poética de uma vida longa. Trad. Eliana Sabino. Riode Janeiro: Objetiva, 2001.

LOBO, C. M. N.das N.; CARVALHO, S. R. A. de. Educação de jovens e adultos: vivênciase experiências. Niterói/RJ: Editora Intertexto, 2004.

LOUREIRO, A. M. L. A velhice, o tempo e a morte: subsídios para a continuidde dos es-tudos. Brasília: EdUnB, 1998.

________; FALEIROS, V. P. (Orgs.). Desafios do envelhecimento: vez, sentido e voz.Brasília: UNIVERSA, 2006.

________. Terceira idade: ideologia, cultura, amor e morte. Brasília: EdUnB, 2004.

________. (Org.) O velho e o aprendiz: o imaginário em experiências com o AT-9. São Paulo:Zouk, 2004.

MARTINS, F. M.; SILVA, J. M (Orgs.). Para navegar no século 21: tecnologias do imagi-nário e cibercultura. Porto Alegre: Editora Sulina, 1999. p. 119-135.

MORAGAS, R. Gerontologia social: envelhecimento e qualidade de vida. São Pulo: Paulinas,1997.

MORIN, E. Da necessidade de um pensamento complexo. In: MARTINS, F. M.; SILVA, J.M. (Orgs.). Para navegar no século 21: tecnologias do imaginário e cibercultura. Porto Ale-gre: Editora Sulina, 1999. p. 19-42.

OLIVEIRA, G. N. et al. Novos possíveis para a militância no campo da saúde: a afirmaçãode desvios nos encontros entre trabalhadores, gestores e usuários do SUS. Revista Interface:comunicação, saúde, educação. Botucatu, SP: Fundação Uni/UNESP, v. 13, supl. 1, 2009.

Page 226: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

O desafio de juntar letras, rever e aprofundar conhecimentos... 213

PAULA CARVALHO, J. C. de. Velhice, alteridade e preconceitos: dimensões do imagináriogrupal com idosos. Revista Interface: comunicação, saúde, educação, Botucatu, SP: Funda-ção Uni/UNESP, n. 5, p. 29-40, ago. 1999.

TANUS, M. I. J. Mundividências. história de vida de migrantes professores. São Paulo:UNIC/Zouk, 2002.

TOLOTTI, M. Passageiros do outono: reflexões sobre a velhice. Caxias do Sul, RS: Editorada Universidade, 2005.

Page 227: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook
Page 228: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

OS MORADORES DE RUA COMO CONSTRUTORES

DE UMA PEDAGOGIA URBANA

Antonio Busnardo Filho

Este trabalho é a primeira reflexão da pesquisa de pós-doutorado, realizadona Universidade Federal Fluminense, campus Gragoatá, sob a supervisão da pro-fessora doutora Iduína Mont’Alverne B. Chaves, e tem por principal objetivo oconhecimento do imaginário dos moradores de rua e sua representação de refú-gio, como forma de humanizar o espaço urbano e de construir cidadania, consi-derando o trajeto desse grupo de pessoas como fator de integração da cidade. E,assim, entender o espaço urbano como um campo pedagógico, como um espaçode formação do indivíduo contemporâneo. Considerando-se esse grupo excluídocomo de pouca importância na constituição da socialidade e na representação so-cial das cidades, a representação do “Refúgio” para os moradores de rua pode pa-recer um tema ou uma pesquisa irrelevante, porque, a princípio, não é possívelestabelecer ligação direta entre o tema e a importância para o urbanismo, nem suaimportância pedagógica, já que morador de rua não constrói casa nem ensina nadaa ninguém. No entanto, o conceito de refúgio, cujas imagens simbólicas são ana-lisadas pelos estudiosos do Imaginário, pode ser ampliado quando somado àquiloque é senso comum, à visão de um grupo social desconsiderado pela sociedade –um grupo social extremamente presente, porém não visível.

Esse grupo desprezado, ao transformar a rua em local de morada, agrega aoespaço público a dimensão do privado, ampliando esse conceito – qual o limiteentre o público e o privado? As pessoas que normalmente se deslocam pela cida-de em vários momentos exercem, ou executam, atividades privadas em locais pú-blicos, como comer, por exemplo. As refeições sempre foram consideradas comoum horário sagrado e de reunião familiar, como um momento de união e decompartilhamento do alimento; portanto, momento extremamente subjetivo eprivado. Quando essa atividade é levada às ruas, não significa perda de impor-tância nem diminuição da dimensão simbólica, mas serve para mostrar que oespaço da subjetividade ou da individualidade independe do local. Comer narua significa transformar o espaço público em espaço privado, por um breve mo-mento. Significa, também, intensificar o espaço subjetivo por meio de uma ati-

* Doutor pela FEUSP. Membro do CICE-FEUSP.

Page 229: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

216 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

tude endopsíquica. Todos aqueles que comem – almoçam, jantam, lancham – nasruas mantêm um silêncio absolutamente profundo e um ar distante, numa abstra-ção completa do local público; ou, então, compartilham a refeição com pessoas ami-gas, num estreitamento de laços afetivos. Nesse exato instante, o espaço público ésacralizado por extensão ao sagrado que há no compartilhamento da comida.

Para os moradores de rua, o espaço público é uma constante; é o espaço ondeacontecem e se desenrolam suas vidas. Não é somente o que lhes restou, mas o es-paço que lhes pertence pelos mais variados motivos. Na vida desses cidadãos nãohá acasos como há nas vidas dos cidadãos comuns. Tudo para os moradores de ruaé consequência; raramente uma opção. Assim, de consequência em consequência,o espaço público amplia-se numa dimensão privada.

A ampliação do espaço público em espaço privado demonstra uma das ten-sões existentes no espaço urbano, ao mesmo tempo que expõe uma característicaoximorônica da cidade, que não é mais do que a figuração de uma conjunção deopostos, permitindo uma terceira situação, uma situação intermediária que ques-tiona os limites – nem privado, nem público, mas um espaço subjetivado. Nestesentido, o morador de rua “foge” ou perde o espaço individualista de uma con-dição social “normatizada” e “normalizada” pelas condutas, que não é mais do queuma prisão moral; porém, “fugir” dessa prisão é ser estigmatizado pela socieda-de; por tal motivo, pode-se dizer que:

“o território individualista se torna uma prisão. Em lugar de servir de basepara uma possível partida torna-se lugar de fechamento. (...) Aterritorialização parental pode ser um paraíso indiferenciado, mas é tam-bém uma regressão que não deixa de induzir as patologias de toda ordem,nas quais o século XX não foi avaro (...) numa perspectiva universalista,querendo ultrapassar os diversos ‘territórios’ comunitários, a modernidadeexacerbou o ‘território’ individual e da mesma forma estigmatizou onomadismo, quer dizer, aquilo que ultrapassa a lógica da identidade pró-pria do indivíduo” (Maffesoli, 2004: 82-83).

A atividade de andar de um lado para o outro não tem a dimensão do prazerque tinha para o flâneur que caminhava por não ter nada o que fazer, fugindo dotédio da vida; nem se assemelha à caminhada de quem simplesmente está passean-do a contemplar os edifícios e as praças, como os turistas. Para o morador de rua, oespaço por onde caminha é um espaço conhecido, um espaço privado que transfor-ma a cidade em sua casa; assim, caminham pelas ruas como se caminhassem den-tro de suas casas, pelos cômodos – da sala para a cozinha, para o quarto, etc. Tecemcom esse andar um espaço íntimo, questionando, sem saber, a falta de humanida-

Page 230: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Os moradores de rua como construtores... 217

de desse espaço público. De um espaço que, se em algum momento se preocupoucom o homem, sempre demonstrou a relação de poder – religioso ou político – eque desde o modernismo, principalmente, demonstra o poder econômico e o po-der da especulação imobiliária. Parece que a cidade contemporânea pertence a quem“possui” o edifício; a cidade é dos e para os proprietários. No entanto, a posse dolote urbano não impede o uso do espaço urbano, porque a cidade é e existe, funda-mentalmente, para todos. Se ela não se humaniza para a totalidade da população,ela também não se humaniza para os proprietários de seus lotes. A humanização doespaço urbano só será possível quando atender à necessidade de todos os seus habi-tantes, incluindo os moradores de rua; garantindo-lhes locais para que possam fa-zer sua higiene diária; locais onde possam dormir sem correrem risco de morte; locaisonde possam cozinhar e ter água para lavarem seus pertences. Esses locais devem serpontos de apoio, com assistência de profissionais competentes, e não ter o assis-tencialismo como os existentes nos abrigos, que em última instância repetem osmodelos das instituições correcionais. Para que isso seja viável e se construa dentrode uma visão humana, que leva em consideração o direito desse cidadão que tem arua como sua morada, é necessário que se reconheça o significado de “refúgio” parao morador de rua, e como esse refúgio se constrói nos trajetos feitos pelos morado-res de rua, na cidade.

É importante notar que a errância do morador de rua traz também outroquestionamento para a humanização do espaço urbano, com forte apelo antro-pológico, que é a questão do “enraizamento”. O que até então foi consideradocomo padrão para a aquisição e a manutenção dos bens, o enraizamento estáti-co, os que vivem à margem, os seres dos limites, os seres da errância e dos cami-nhos, que constroem o espaço – neste caso, o espaço urbano –, no deslocamento,buscando sempre o alhures e desprezando a estagnação burguesa, permitem ecriam o “enraizamente dinâmico” (Maffesoli, 2004), que só reconhece o limite emconsequência do deslocamento. Partindo dessa ideia, o morador de rua é o ele-mento principal para a compreensão, a humanização e a delimitação do espaçourbano contemporâneo, podendo ser até considerado como um arquétipo do in-divíduo pós-moderno, que tem em seus ideais o deslocamento como agente estru-turador das relações sociais, e como fator pedagógico, de uma educação fática.

No mundo contemporâneo, as ruas das grandes metrópoles têm uma dimen-são afetiva que faz com que os transeuntes se sintam em um espaço mais pessoal,independentemente dos índices de violência, já que a rua é o grande espaço deconvivência e de trocas sociais. Os indivíduos que habitam as grandes cidadespassam mais tempo nas ruas, deslocando-se para o trabalho, ou mesmo trabalhan-do, do que em suas casas, junto a seus familiares.

Page 231: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

218 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Os motivos que levam um indivíduo às ruas são os mais variados, podendoser desde a perda do emprego até uma desilusão amorosa; porém, o sentido é sem-pre o da queda. Se há uma queda social, a queda pessoal é muito maior. A pessoaaos poucos perde seu status de cidadão, de trabalhador, de indivíduo, chegandopraticamente a uma anulação, pessoal e psíquica, quase completa. Refugia-se,como princípio de esquecimento – que ao mesmo tempo é de integração como grupo e de sobrevivência –, na bebida. Depois, cada vez mais, num esqueci-mento que se torna quase uma negação total do passado e da própria vida. Comisto, afasta qualquer possibilidade de futuro, vivendo apenas as circunstânciasdo presente.

Mas há uma dimensão inconsciente que permite o reconhecimento dos ar-quétipos e permite, também, a compreensão do sentido de vida desses cidadãos,que se poderá resgatar pelos relatos de suas histórias de vida, que permitirão o co-nhecimento dos anseios adormecidos e a compreensão dos aspectos simbólicos queestruturam a vida dos moradores de rua, e que podem ser percebidos como fon-te de resistência e, muitas vezes, de abnegação consciente. Nesse processo o indi-víduo que se perde na cidade, ou que se perde da cidade conhecida, encontra outradimensão da cidade – uma dimensão em que as normas são transgredidas e asobrigações acabam. A única regra é sobreviver. Todo dia será sempre mais um dia;o dia mais importante. Nessa cidade vive-se um dia de cada vez. É um espaço emque os planos e os projetos pessoais inexistem.

Da extrema ordem burocrática que estrutura a vida e as cidades no dia a dia,o indivíduo que se transforma em um morador de rua conhece outra estrutura,uma estrutura caótica que tem sua própria “lógica”, permitindo construir umaoutra cidade, ou revelar outra dimensão da cidade burocratizada. Essa outra di-mensão do urbano levantada neste momento é que a cidade não representa maiso espaço estático das construções e da tranquilidade da moradia; a cidade é o tra-jeto que o morador de rua faz todos os dias. A cidade se transforma em um espa-ço dinâmico, construído pelo andar, pelo caminhar, pelo deslocamento individualde cada morador (de rua).

O espaço que se cria a partir dos passos dos moradores de rua coloca emquestão a noção do bem público, do uso público do espaço urbano. Consideran-do-se que a cidade é de todos e para todos, o que se postula é o direito ao espaçopúblico, consequentemente, esse espaço deverá ser pensado como uma dimensãodo privado, porque os moradores de rua vivem suas vidas privadas em um espa-ço público. Todos os seus pertences – que são muito poucos –, suas intimidades,seus desejos estão constantemente à mostra. Se não são vistos é porque o cidadão

Page 232: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Os moradores de rua como construtores... 219

“normal e digno”, que faz parte de um grupo de pessoas que constroem um úni-co itinerário urbano durante sua vida – da casa para o trabalho, do trabalho paracasa –, vira o rosto para não enxergar a miséria. Assim, a privacidade dos mora-dores de rua depende da negação do “homem normal”. Mesmo havendo umanegação que afasta, moral e eticamente, esse incômodo social, a presença dosmoradores de rua é marcante; não é a outra face da moeda, porque esta é o pro-cesso de denegação social, mas é o rodopiar da moeda lançada num jogo de azar.

A denegação sofrida pelos moradores de rua torna-os cada vez mais presen-tes, fazendo com que a sociedade institucionalizada tenha um olhar panóptico – nosentido dado por Foucault – sobre eles. O paradigma do panoptismo não é maispara salvaguardar a cidade da peste, nem é mais o modelo da figura arquitetônicade Bentham, na qual um vigia a muitos, com o auxílio da luz que atravessa as ce-las expondo a sombra dos detentos, e induzindo “no detento um estado consci-ente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático dopoder” (Foucault, 1987: 166); agora o panoptismo está disseminado pela socie-dade definindo as “relações de poder com a vida cotidiana dos homens” (idem:169-170), porque não é somente um edifício onírico, “é o diagrama de um me-canismo de poder levado à sua forma ideal; seu funcionamento, abstraindo-se dequalquer obstáculo, resistência ou desgaste, pode ser bem representado como umpuro sistema arquitetural e óptico: é na realidade uma figura de tecnologia polí-tica que se pode e se deve destacar de qualquer uso específico” (idem: 170).

Esse instrumento de poder baseado na visibilidade permite ao cidadão “nor-mal” ou ao homem institucional transformar os moradores de rua em “fantasmas”que devem ser mantidos a distância. São os fantasmas urbanos que arrastam ascorrentes da incompetência política e do descaso social.

A existência dos moradores de rua é um fato tipicamente urbano. Desde aAntiguidade há registros de pessoas que viviam de esmola e habitavam as ruas, eparece que a causa é sempre muito semelhante, é a perda da posse ou do local demoradia causada pela expropriação que privilegia o privado em detrimento dopúblico; é o êxodo dos desvalidos para as cidades, originando grupos mendican-tes e de andarilhos urbanos. Durante a Idade Média, houve uma profissionalizaçãoda mendicância, muitas vezes, incentivada pela Igreja que via no despojamentototal dos bens materiais e terrenos e na humilhação da esmola um caminho parao aperfeiçoamento da Alma. Surgem, nesse período, as ordens mendicantes – porvolta do século XII. O exemplo mais conhecido de despojamento dos bens ma-teriais é o de São Francisco de Assis, que reuniu ao seu redor um grupo de esmoler,originando a Ordem Franciscana.

Page 233: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

220 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

No período Industrial, a migração do campo para as cidades, que progre-diam em meio à fumaça e às chaminés das fábricas, intensificou-se. O sonho demelhoria de vida era mera ilusão. Os migrantes rurais não preenchiam os pré-requisitos dos trabalhadores das fábricas, não eram mãos de obra especializadase, consequentemente, não sabiam operar as máquinas. Isso causou um “inchaço”nas cidades, que não absorveram esses imigrantes, empurrando-os para as peri-ferias, para o limite entre o campo e a cidade. Essa população passou a viver deforma subumana, numa área degradada onde as doenças proliferavam em virtu-de da falta de higiene, constituindo uma população de miseráveis que sobrevivi-am de pequenos biscates e de esmolas. Surgem, nesse período, as primeiras leis deamparo social e, nessa mesma época, a sociedade industrial impede qualquer tipode organização política dessa população, porque ela formava um exército de mãode obra de reserva que sempre poderia suprir um serviço que não precisasse de es-pecialização, nas fábricas, a um custo muito baixo – era o lumpemproletariado quese formava. É claro que, dessa população, famílias inteiras acabavam nas ruas pormotivo de despejo, principalmente.

Esses dois momentos apontados como significativos na origem dos mora-dores de rua servem para ilustrar as semelhanças das causas, independentementeda época. Sempre haverá um sentido de expropriação do privado que causará atransformação do público.

O espaço público privatizado pelos moradores de rua depende de algumascaracterísticas próprias do sentido de refúgio; a primeira é o sentido de proteção,de segurança para se poder descansar. É encontrar um local onde se possa dormirem paz e ter sua integridade física preservada. Esses locais serão os “pontos” pre-feridos pelos moradores de rua; principalmente, se o sentido de proteção englo-bar também a proteção contra as intempéries, se estiver próximo a pontos de água,se facilitar a possibilidade de se conseguir comida e se houver a oportunidade deuma fonte de renda. O que se pode destacar como elementos definidores dos “pon-tos” são: a segurança – marquises, toldos, saguões de prédios comerciais, baixiosde viadutos, mocós – e a água. Quando os moradores de rua têm de dormir emlogradouros públicos, a proteção contra a violência é dada pelo máximo de expo-sição, ficando assegurada pelo intenso movimento de pedestres, pela forte ilumi-nação e, principalmente, pelo grupo.

Parece haver nesse comportamento algo de primordial, de arquetípico, se seconsiderar numa digressão que a concepção do refúgio é a necessidade de prote-ção e de aconchego para a construção da cultura, do ser, e para a manutenção davida, como algo inerente ao homem. O refúgio sempre foi um espaço de prote-

Page 234: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Os moradores de rua como construtores... 221

ção e de troca de experiências. Sob a égide da proteção, o homem construiu e re-presentou seus símbolos culturais e compreendeu o significado de fora, como lo-cal de perigo e ameaças, e de dentro, como aconchego e proteção. Essa percepçãocolocou o homem em contato consigo mesmo e com seus semelhantes e permi-tiu o nascimento da cultura. No primeiro momento do nomadismo, o sentido derefúgio pode ter sido encontrado no próprio grupo, numa busca de proteção esobrevivência. O grupo se reunia para a caça, para a luta e para se resguardar doescuro profundo e ameaçador da noite.

O convívio social permitiu as trocas de experiências, criando cultura e di-vidindo as tarefas; o grupo se organizou e o refúgio adquiriu a forma arquetípicacircular. Do círculo ao redor do fogo às formas espaciais dos aglomerados hu-manos, a representação da proteção uterina, inconscientemente, surgiu. Porém,no processo de humanização, o excesso de especializações dividiu o fenômenosociocultural e a formação do indivíduo em “fatias” (histórica, psicológica, demo-gráfica, sociológica, etc.), o que privilegiou a dimensão patente das organizaçõessociais em detrimento do imaginário – que passou a ser considerado como “a loucada casa” –, e permitiu a Levi-Strauss dizer que “um especialista é um homem quesabe cada vez mais sobre cada vez menos coisas, tanto e tão bem que, no limite,saberia tudo sobre nada” (apud Morin, 1998: 55).

Seguindo as propostas de E. Morin e de G. Durand, o que se pretende comeste trabalho é conhecer a força da dimensão latente numa organização paten-te; isto é, a interferência do instituinte – enquanto ruído – na ordem do insti-tuído, numa organização sociocultural do espaço urbano que migra das “franjas”para o “núcleo duro” da cultura do grupo (tanto do grupo patente quanto do gru-po latente, os moradores de rua, se for possível essa distinção, enquanto aspec-to didático, apenas).

Se a fragmentação e a especialização trouxeram uma visão reducionista dofenômeno, o que se pretende é, por meio de uma mudança paradigmática, noesteio de E. Morin e G. Durand, compreender a complexidade – que agrega tan-to o polo das especializações quanto o polo das generalidades – na formação dohomem que não é totalmente biológico nem totalmente cultural, mas que, no en-tanto, o que há de mais biológico na sua formação é o que mais se impregna decultura, permitindo que biológico e cultural se unam através das normas, proibi-ções, valores, símbolos, mitos, ritos, etc., possibilitando compreender que:

“o conceito de homem tem dupla entrada: uma entrada biofísica, uma en-trada psicossociocultural; duas entradas que remetem uma à outra.À maneira de um ponto de holograma, trazemos, no âmago de nossa singu-

Page 235: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

222 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

laridade, não apenas toda a humanidade, toda a vida, mas também quasetodo o cosmo, incluso seu mistério, que, sem dúvida, jaz no fundo da natu-reza humana” (Morin, 2000: 41).

Essa “dupla entrada” no conceito de homem definirá o duplo sentido de sím-bolo, enquanto representação latente do pensamento dos moradores de rua, re-velando seus mitos e seu imaginário influenciados pela intervenção social doinstituído. Levantados, portanto, os mitos e conhecendo-se o imaginário do gru-po, a compreensão do espaço urbano dar-se-á como um espaço imaginário neces-sário a um processo de ritualização da sociedade das grandes cidades, desdobrando oid social analisado pelos “mitólogos”, o ego social passível da psicosociologia e osuperego, o “consciente coletivo”, enquanto domínio das análises institucionais, dascodificações jurídicas e das reflexões pedagógicas.

Este estudo centra-se nas representações do superego social – as instituiçõese as pedagogias epistemológicas –, não segundo o molde tradicional de análisesociológica, mas procurando o id antropológico do grupo, que Jung denominoude “inconsciente coletivo”, e os seus arquétipos estruturadores, enquanto instân-cias numinosas; no entanto, é preciso lembrar com Durand que essas representa-ções inconscientes não são anômicas, mas têm um traço fundamental anexado àlógica de toda esta “sistêmica” que faz com que esses arquétipos sejam plurais:

“constituindo, às vezes, o politeísmo fundamental dos valores imaginários(M. Webwe, H. Corbin, D. Miller, etc.) e o caráter ‘dilemático’ (Cl. Lévi-Strauss) que reveste todo o termo mythicus. Desde o nascimento do mito,suas instâncias são plurais. Elas são absolutamente heterogêneas no seunomos irredutível. O politeísmo funcional que transparece nos conflitosda psique individual é ainda mais vigoroso entre as instâncias da psiquecoletiva” (1996, 136).

Isto faz com que as imagens simbólicas transformem o inconsciente coleti-vo do grupo em cultura, ou melhor, na cultura do grupo, representada tanto pelaconstrução da sociedade grupal como pelos monumentos, pelas cidades, identi-ficando essa pulsão dos arquétipos, na memória do grupo. Pode-se, então, dizerque o real “modela” o ideal, mas que o “ideal”, enquanto força do imaginário, regeo real. É em consequência da busca do ideal – enquanto representação do laten-te, do imaginário – que essa arquesociologia (Durand, 1996) se estrutura e que ébase para este estudo.

Ao se ater à dimensão simbólica do grupo em busca do mapeamento doimaginário é que entende o conceito de cidade ou mesmo de bairro enquantoum espaço de refúgio que abrange o indivíduo na sua particularidade, e o gru-

Page 236: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Os moradores de rua como construtores... 223

po, considerando-se aqui os moradores de rua, na sua socialidade. Partindo-sedo conceito de refúgio, enquanto representação do imaginário, é preciso enten-der que qualquer alteração ou mudança nesse aspecto provoca um sentimentode ameaça e insegurança que gera uma ambiência de angústia.

É preciso dizer que o resgate dos elementos simbólicos a partir de várias fon-tes documentais – reportagens de jornais, o trabalho das entidades assistenciais,as sondagens de opiniões públicas, as entrevistas eventuais com transeuntes e comos próprios moradores de rua, etc. – serve para constatar não apenas as estrutu-ras de imagens de um indivíduo ou de um grupo, mas a verdade de um imaginá-rio coletivo, já que estas representações simbólicas emanam do inconsciente e têma força dos arquétipos.

As estruturas arquetipais que pertencem à cidade pertencem, também, aosbairros, numa equivalência liliputiana; ou seja, da dimensão macro para a dimen-são micro – da cidade para a casa, passando pelo bairro –, os arquétipos queestruturam o refúgio são os mesmos. Essa equivalência foi muito bem demons-trada no trabalho de Helen Rosenau (1988) sobre a cidade ideal. Ideal, enquan-to proposta de perfeição e harmonia, na representação das cidades, remete à ideiade um espaço físico organizado de tal modo que nada perturbe a paz e a tranqui-lidade de seus habitantes. Isto sempre foi, e continua sendo, o desejo do ser hu-mano manifestado pela representação arquetípica da “Jerusalém Celeste” ou daregião oriental da oitava ambiência, a cidade de Jâbalqâ (Corbin, 1983). Nestesentido, a cidade – ou ao menos a idéia de cidade –, enquanto um refúgio ex-tremamente protetor e distante de qualquer perigo, integra o Universo Místi-co, pertencendo ao Regime Noturno de Imagens, segundo Gilbert Durand(1989), constituindo-se, por conseguinte, em um centro paradisíaco.

Qualquer lugar em que o homem habite é o seu mundo, o seu centro dereferência, seu espaço protetor. Esta é a primeira ideia que se pode ter sobre aidealização de um espaço; principalmente, do espaço urbano. Mas, também, énecessário pensar que a cidade enquanto um refúgio protegido da agressividadedo outro – não pela ausência do outro, mas porque no seu interior o outro não éestrangeiro – tem o controle desse refúgio como a invenção de uma cosmogonia;a cidade é o local onde se domina o destino e onde se luta contra a morte por meiode um eufemismo ritualizado, abolindo o tempo pelo artifício da arte. Enquantolugar de sacralização dos ritos, a cidade é um centro religioso que adquire a anu-lação de suas diferenças pela comunhão das festas, multiplicando e sobrepondodimensões sobre outros espaços “utópicos”.

Page 237: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

224 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Essa dimensão mística de urbe que protege, no seu interior, o indivíduo daagressividade polariza a agressividade da comunidade para o exterior – daí não sepoder separar a representação “mística” do refúgio social da sua representação“heróica”.

Aqueles que não pertencem à comunidade são considerados estranhos e,consequentemente, são indivíduos externos ao grupo – um perigo contra o qualse deve lutar para que a manutenção da paz e a segurança do refúgio não se alte-rem. A estrutura heróica se confirma porque a comunidade da polis implica umadversário mítico ou real. Por essa dupla dimensão é que se pode dizer que o “equi-líbrio entre o elemento ‘místico’ e o elemento ‘heróico’ faz da cidade um refúgioonde as ressonâncias imaginárias são mais profundas” (Michel, 1972: 259).

No processo de criação da ordem da cidade – que é uma qualificação dosespaços interno e externo – por meio da expulsão do caos para o exterior, o re-sultado é o surgimento de um estado impuro e dicotômico entre cidadão e estran-geiro – estranho, enquanto não pertencente ao grupo das instituições patentes,como os moradores de rua –, numa redundância entre eupatrida e metecos –metoikos. Esse refúgio que polariza os universos místico e heróico exige um pro-cesso de exclusão que não é acidental. Os muros desses espaços vitais são consti-tuídos por limites morais encontrados na cultura do grupo. Esses limites revelam,também, o imaginário que os sustenta e que define a dimensão social e o espaçourbano permitidos aos moradores de rua. No entanto, somente o deslocamentodos moradores de rua permite a verdadeira percepção do espaço urbano e a di-mensão mítica da cidade contemporânea, transformando o seu espaço em umadimensão didática e pedagógica para aqueles que entendem o estranho como parteconstituinte de si mesmo.

Referências Bibliográficas

CORBIN, Henry. Face de Dieu, Face de l’homme: herméneutique et soufisme. Paris:Flammarion, 1983.

DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. Tradução de HélderGodinho. Lisboa: Editorial Presença, 1989.

________. Introduction à la mythodologie: mythes et sociétés. Paris: Albin Michel, 1996.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhe-te. Petrópolis, RJ: Vozes, 1987.

JUNG, Carl Gustave. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Tradução de Maria LuízaAppy e Dora Mariana R. Ferreira da Silva. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

Page 238: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Os moradores de rua como construtores... 225

MAFFESOLI, Michel. O instante eterno: o retorno do trágico nas sociedades pós-moder-nas. Tradução de Rogério de Almeida e Alexandre Dias. São Paulo: Zouk, 2003.

MICHEL, Michel-Yves. Les refuges sociaux de la ville – éléments de symbolique urbaine: lacité, le centre et l’espace vert. In: BURGO, Jean (Org.). Le refuge II. Paris: Lettres Modernes,1972. (CIRCÉ).

MORIN, Edgar. Sociologia: a sociologia do microssocial ao macroplanetário. Tradução deMaria Gabriela de Bragança e Maria da Conceição Coelho. Lisboa: Europa-América, 1998.

________. Os setes saberes necessários à educação do futuro. Tradução de CatarianEleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. São Paulo: Cortez; Brasília,DF: Unesco, 2000.

ROSENAU, Helen. A cidade ideal: evolução arquitetônica na Europa. Tradução de Wandade Ramos. Lisboa: Ed. Presenças, 1988.

Page 239: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook
Page 240: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

MACHADO DE ASSIS: IMAGINÁRIO TRÁGICO E

ÉTICA DA OCASIÃO1

Rogério de Almeida 2

Qual o sentido da vida, do mundo, de tudo o que existe? É possível conhecera realidade, os objetos concretos – para retomar uma expressão de Kant – como coisaem si? O que podemos conhecer do que é externo à nossa consciência, às relaçõesintersubjetivas? Essas questões postas pela teoria do conhecimento (Hessen, 1976)parecem sempre insolúveis, pois, de fato, a realidade, os objetos, o mundo concre-to, externos a nós, não exprimem, não contêm nenhum sentido, nenhum signifi-cado, nenhum princípio ou finalidade, estando sempre condenados à singularidadecasual de suas existências. Não perfazem um conjunto, não conhecem a repetição,não suspeitam da diferença ou mesmo possuem razão. Simplesmente existem.

Em contrapartida, o homem aparece dotado das faculdades do que enten-demos por conhecimento. Não só é capaz de produzir como necessita da produ-ção de sentidos, de significados, é dotado de razão, de intuição, de sensibilidade,percebe, pensa, analisa, sintetiza, correlaciona, cria analogias, enfim, imagina. Masnão se pode inferir dessa constatação que o homem viva fora da realidade ou emum mundo duplicado, processo que colocaria o homem em uma realidade à par-te do mundo concreto.

Portanto, instaura-se um paradoxo insolúvel na questão do conhecimento:a existência é sem sentido, sem princípio e sem finalidade, ou, em outras palavras,incognoscível, enquanto o homem não só está apto a conhecer, como de fato co-nhece, mas, de tudo o que pode conhecer, só não o pode o que se refere à exis-tência em si, seja a própria, seja qualquer outra.

É esse paradoxo que expressa o trágico da existência humana. De maneirafilosófica, o que se afirma é “o caráter vão do pensamento, que não reflete senãosuas próprias ordens, sem avaliação sobre uma qualquer existência; donde tam-bém uma certa inaptidão do próprio homem à existência” (Rosset, 1989: 104).

1. Este ensaio vincula-se à pesquisa financiada pela FAPESP, na modalidade Auxílio à Pesquisa,e ao programa de pós-graduação da Faculdade de Educação da USP.

2. Bacharel em Letras e Doutor em Educação, ambos pela USP. Professor da Faculdade de Edu-cação. Membro do CICE, Lab_Arte e GEIFEC.

Page 241: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

228 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Assim, se a existência não expressa ou contém sentido, princípio ou finali-dade, a cultura humana, em contraparte, os produz o tempo todo e em larga es-cala, situando o homem num mundo que lhe é hostil, terrificante, ameaçador.Nesse sentido, o homem surge aparatado de uma gramática3 (Steiner, 2003) quese especializa em gerar sentidos, em criar imagens, obras, pensamentos que auxi-liem na mediação com o mundo objetivo.

Assim, no choque entre o universo concreto – destituído de inteligência,instinto, vontade, razão, sentido, etc. – e o homem – constituído de todas essasfaculdades – é o imaginário que se engendrará como espaço humano que possi-bilita o desenvolvimento da cultura, como uma espécie de consciência comum,de sociedade ou de grupos.

Para Durand, é a angústia diante da finitude e do tempo que passa que con-duz o homem a buscar uma equilibração imaginária do mundo. O autor toma aangústia como ponto de partida para o imaginário, assim como Morin (1973),que faz da consciência da morte e do tempo a origem dos processos de simbo-lização inerentes às culturas humanas. Para Durand (1997: 121), a “negatividadeinsaciável do destino e da morte” é que conduz “a carne, esse animal que vive emnós”, a meditar sobre o tempo.

É por meio dessa meditação que irrompe o imaginário, como estratégia derecusa, de combate, de adesão, de inversão da negatividade inicial, ou ainda de es-quecimento ou busca de domínio do tempo, aniquilando sua fatalidade ou acele-rando o seu fim. Diante do tempo, a função fantástica cria o espaço, o imaginárioeufemiza a angústia e o homem encontra o lenitivo para sua finitude nas imagensque projeta ao mundo e que dele extrai, como num círculo sem começo ou fim.

Se a imagem re(a)presenta concreta e sensivelmente um objeto material ouideal, que pode ser conhecido, reconhecido e pensado (Wunenburger, 1997: 1),então o imaginário não pode ser considerado como oposto ao real (ou sua dupli-cação), já que incorpora o mundo objetivo em sua própria dinâmica, em que oobjetivo só pode ser apreendido em relação a um subjetivo. Essa dinâmica se dápelo trajeto antropológico.

“O ‘trajeto antropológico’ é a afirmação de que, para que um simbolismopossa emergir, ele deve participar indissoluvelmente – numa espécie de

3. “(...) defino gramática como a organização articulada de uma percepção, uma reflexão ouuma experiência; como a estrutura nervosa da consciência quando se comunica consigomesma e com os outros” (Steiner, 2003: 14).

Page 242: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Machado de Assis: imaginário trágico e ética da ocasião 229

contínuo ‘vai-e-vem’ – das raízes inatas na representação do sapiens e, nooutro ‘pólo’, das intimações várias do meio cósmico social. A lei do ‘trajetoantropológico’, tipo de uma lei sistêmica, mostra bem a complementaridadena formação do imaginário entre o estatuto das capacidades inatas dosapiens, a repartição dos arquétipos verbais em grandes estruturas ‘domi-nantes’ e seus complementos pedagógicos exigidos pela neotenia humana(Durand, 1994: 28).

Assim, na relação sujeito-objeto, o sujeito é tão carregado de experiênciasobjetivas quanto a objetividade o é de olhares subjetivos. Porque “há oposiçãoentre esses termos, mas eles estão abertos inevitavelmente um ao outro de modocomplexo, isto é, ao mesmo tempo, complementares, competitivos e antagonis-tas” (Morin, 1979: 135). O mundo constitui o homem que o constitui e o ho-mem constitui o mundo que o constitui – a fórmula realiza-se sempre em viade mão dupla, sem que haja uma antecedência de lógica causal, pois o sentidose expressa justamente na linha imaginária que liga um polo a outro, no exten-so caminho de gradações, diferenciações, equilíbrios e coexistências que perfazas extremidades.

A imaginação dispõe os símbolos mirando estabelecer um equilíbrio vital,psicossocial, antropológico (Durand, 1988: 100). Essa função eufemizadora daimaginação, que busca melhorar o mundo por meio da criação dinâmica de ima-gens, diversifica-se numa retórica antitética, em que à morte, por exemplo, opõem-se os valores de uma luta pela vida, ou se desenrola numa dupla negação, com aantífrase eufemizando a morte em repouso, sono, promessa de vida eterna.

Esses símbolos tendem a se organizar em discursos, em narrativas, comoas que se encontram na pintura, no poema, nas palavras de ordem, num con-junto de leis, em uma melodia musical; e essa narrativa, para além de seu sen-tido concreto, imediato, conformado pelas contingências socioculturais oubiográficas, guarda um sentido figurado, simbólico, identificável através do re-conhecimento das metáforas, das unidades significantes que constituem umaredundância simbólica.

Esses passos que estão na base da gramática cultural de criação, transmissão,apropriação e interpretação de sentidos (Ferreira Santos, 2004), organizam a cons-ciência que uma dada cultura tem de si própria e da realidade por meio de ima-gens, como as que aparecem nas obras literárias, por exemplo, e permitem que secompreendam os valores, os arranjos, as contradições, os controles, os contornosdessa mesma sociedade. A obra de Machado de Assis nos dá em filigrana imagens

Page 243: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

230 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

dessa sociedade que uma parte importante e considerável de sua fortuna críticaaborda, como atestam as leituras de Alfredo Bosi (2006, 2007), Raymundo Faoro(2001) e Roberto Schwarz (1990).

No entanto, se de um lado Machado de Assis, principalmente em sua fasemadura e por meio de seus narradores e/ou autores supostos, nos mostra ironica-mente como essa sociedade compõe-se de um imaginário impregnado por umaideologia proveniente do liberalismo progressista, calcado na distinção social, queconvive contraditoriamente com valores oligárquicos, escravocratas e patriarcais,em que as batatas dos vencedores se dissimulam em uma pseudoordem social, deoutro atesta continuamente que as convenções dessa sociedade e de sua culturarepousam em um imaginário trágico: ausência de qualquer princípio, de qualquersentido norteador, tanto da existência, como todo, quanto da sociedade, em seuarranjo particular.

Isso significa que, no horizonte trágico adotado por Machado, o desejo depermanência, de controle, de ordem, de princípios e finalidades que organizamimaginariamente as sociedades humanas não passa de uma recusa ao dado trági-co da existência (Almeida, 2010). O homem é uma “errata pensante” (capítuloXXVII de Memórias Póstumas) no “enxurro da vida”, um esfomeado que, dianteda morte, não pede outra coisa senão viver (como no delírio de Brás Cubas). Essapotência de vida, instaurada num imutável cenário de morte, não pode obter maisque a “voluptuosidade do nada”, a qual será transfigurada em sonhos de grande-za, sede de nomeada, fuga da obscuridade, tão bem caracterizados na figura domedalhão ou nos anseios de Brás Cubas.

Nessa perspectiva e em convergência com o pensamento de Gilbert Durand,resta ao homem, diante da constatação da finitude e do tempo que passa (dadotrágico), resolver imaginariamente sua situação num mundo que lhe é hostil, dotá-lo de sentido, organizá-lo em imagens, discursos, narrativas, pensamentos, instau-rar uma cultura que sobreviva à curta duração de uma vida e possa ser legada àsgerações futuras.

No entanto, se Durand valoriza a potência eufemizadora das produções sim-bólicas da cultura, Machado faz o pêndulo pender para o lado do pior, reforçan-do o dado trágico e denunciando as “boas intenções” das construções imaginárias,ou escancarando o “apoderamento” ideológico dessas construções. Se o imaginá-rio nega, eufemiza ou equilibra a insaciabilidade da morte com a criação de sen-tidos para a existência, Machado reverte o processo e reconduz o imaginário daexistência à impertubável ausência de sentido da morte.

Page 244: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Machado de Assis: imaginário trágico e ética da ocasião 231

Essas faces do tempo que o imaginário diurno ou noturno dissolverá pormeio da antítese (oposição), da antífrase (inversão) ou da harmonização dos con-trários é o horizonte sobre o qual se desenvolve a realidade objetiva das narra-tivas machadianas. Esse dado existencial mostra-se inexorável, insolúvel e jamaisé descartado pelas suas estratégias ficcionais, que continuamente desconstrói asestratégias de eufemização criadas pela imaginação humana. É a “vergonha darealidade” de Deolindo, do conto Noite de Almirante, é o emplasto de Brás Cu-bas, é a ilusão de Camilo em A Cartomante, é o Humanitas de Quincas Borba,é a ciência d’O Alienista, a ingenuidade de satã em A Igreja do Diabo. Em to-dos esses casos, encontra-se um desejo de controle, de verdade, de escapatóriadas faces do tempo, do dado existencial, trágico, que caracteriza a realidade,tentativas de se evadir da crueza da morte (e da vida), percebida objetivamenteno fluxo do tempo que passa, mas negada subjetivamente pela brecha antropo-lógica (Morin, 1973: 96):

“Assim, entre a visão objetiva e a visão subjetiva existe, pois, uma brecha,que a morte abre até à dilaceração e que é preenchida pelos mitos e pelosritos de sobrevivência, que, finalmente, integram a morte. Portanto, com osapiens nasce a dualidade do sujeito e do objeto, laço inquebrável, rupturaintransponível, que, posteriormente, todas as religiões e filosofias vão pro-curar, de mil maneiras, transpor ou aprofundar.”

A eterna contradição humana, as imagens pendulares, o chocalho de BrásCubas (Dixon, 2009), as simetrias, as coincidências de opostos, as várias ediçõesda vida, as janelas que se equivalem, enfim, um modus operandi constante na ela-boração ficcional machadiana parece atestar justamente essa brecha antropológi-ca, um movimento contínuo, trajeto antropológico, que circula entre a consciênciaobjetiva e a subjetiva. O trágico, portanto, não está nessa brecha, já que a brechaatesta justamente o desejo subjetivo de transpor, ainda que imaginariamente, aconsciência de tempo e de morte. O trágico está na aceitação subjetiva dessa afir-mação objetiva da morte.

O que mostra a objetividade da morte? Que o tempo passa e não cessa depassar, que tudo que é vivo nasce e morre, seja planta, animal ou homem, que essacondição de transformação não cessa nem se modifica (eterno retorno), ou seja,“nada existe de permanente, a não ser a mudança” (Heráclito), que não há finali-dade ou razão para a existência, que tudo é acaso e singularidade, que o homemnão é o resultado de um progresso evolutivo dotado de planejamento ou progresso,mas uma variedade da matéria viva.

Page 245: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

232 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

E o que nos mostra a consciência subjetiva que recusa a morte? Um desejode permanência que se reveste de numerosas fabulações (desde a crença na imor-talidade da alma até a possibilidade de permanência nos filhos, nas obras, na his-tória, etc.). Esse desejo de permanência também se alastra, de um lado, para o queé organizado coletivamente pelo homem (instituições, legislações, tecnologias,enfim, cultura), e de outro, para seus sentimentos (amor, felicidade, fidelidade,enfim, uma moral que estabilize o que é efêmero). A subjetividade também nosmostra o desejo de atribuir sentido à vida, seja por meio de argumentações, nar-rativas, imagens, enfim, de tudo o que resulta da prática da razão, da sensibilida-de e da imaginação.

Na obra machadiana, o conflito entre o desejo de permanência (de negaçãoda morte) e a aceitação da objetividade da morte (fatalidade da existência) não só éfrequente como expressa o movimento pendular de seu imaginário, que, por ser trá-gico, não adere jamais a qualquer princípio, finalidade ou sentido provenientes deuma existência que não conhece sentido, finalidade ou princípio. A duração tem-poral de uma vida, diante do trágico da existência, não tem qualquer significadoou importância. Só o tem para a consciência que a vive e para a sociedade que areconhece por meio de seus valores, dos sentidos convencionados por dada épo-ca, local e cultura.

Enfim, se nenhuma moral, se nenhum horizonte referencial é capaz de di-zer o que o homem é, ele só pode dizer de si a partir de seus próprios valores,convencionalmente criados e partilhados na vida social. E o que, no imagináriomachadiano, aparece como valor? Brilhar, obter reconhecimento público, elevar-se sobre o anonimato, enfim, aproveitar-se da ocasião para narrar a si, para cons-truir-se, para gozar dos benefícios da ordem social e cultural instituída e na qualestá inserido. Em outras palavras, somente a dimensão estética pode tirar o ho-mem do niilismo.

Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, é esse o conselho que o pai do prota-gonista lhe dá. É esse o intento por trás do desejo de ser ministro ou de criar oemplasto que consagraria seu nome nos rótulos e nas propagandas e que, afinal,não tem tempo de elaborar.

Mas o momento que melhor sintetiza essa construção do indivíduo parao brilho social está no conto Teoria do Medalhão. Polêmico pelo que afirma, dú-bio pela ironia com que afirma, o conto é um receituário de como se tornar cé-lebre, de como escapar da obscuridade comum, de como pôr em uso uma éticada ocasião.

Page 246: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Machado de Assis: imaginário trágico e ética da ocasião 233

A narrativa se concentra no diálogo de pai e filho, no dia em que este com-pleta vinte e um anos. O pai distribui conselhos a Janjão para que se dedique ao“nobre ofício” de medalhão, feito que ele mesmo não conseguiu. O discurso éambíguo, pois os passos para se tornar medalhão apontam para a necessária debili-dade do pensamento: nada de ideias próprias, nada de originalidade, criatividadeou reflexão, mas a valorização da “perfeita inópia mental”, atributo que o pai reco-nhece, positivamente, no filho.

Alcides Villaça (2008: 38-45) compila a “receita de um medalhão” a partirdas fórmulas de comportamento e dos pré-requisitos ensinados no conto:

1. Regime do aprumo e do compasso – trata-se do equilíbrio, da gravidadee da moderação, não do espírito, mas tão somente do corpo, como artifício querepresenta o lugar do instituído.

2. Regime debilitante – disciplina que visa atenuar ou extinguir as ideiaspróprias, substituindo-as pelas dominantes, ou seja, as já difundidas e aceitas pelaconvenção. “O recado é duro, em seus implícitos: o destino do pensamento crí-tico é a melancolia, a consciência infeliz, o infortúnio da solidão moral; melhor étrocar tudo pelo gozo descomplicado do aplauso alheio e das vantagens que cer-cam um ‘homem de posição’” (Villaça, 2008: 40).

3. Bases retóricas – prática de uma linguagem admirada pelo senso comum:expressiva, por um lado, mas, por outro, sem intensidade conceitual, como exem-plificam as citações que remetem à certa tradição cultural. Funcionam como osditados populares, fórmulas prontas para serem usadas de acordo com a ocasião;mas, se estes remetem a um domínio popular, as citações expressam as bases re-tóricas consagradas por certa elite cultural, que se confunde com os setores do-minantes da sociedade, esferas do poder.

4. Publicidade – estratégia para tornar visível o espaço ocupado na socieda-de. O que chama atenção no trecho é que tal prática, exaustivamente difundidanos dias atuais, é acompanhada de exemplos que não envelheceram em nada,podendo constar em qualquer manual de relações públicas:

“Se esse dia é um dia de glória ou regozijo, não vejo que possas, decente-mente, recusar um lugar à mesa aos repórteres dos jornais. Em todo o caso,se as obrigações desses cidadãos os retiverem noutra parte, podes ajudá-losde certa maneira, redigindo tu mesmo a notícia da festa; e, dado que por umtal ou qual escrúpulo, aliás desculpável, não queiras com a própria mãoanexar ao teu nome os qualificativos dignos dele, incumbe a notícia a algumamigo ou parente” (Teoria do Medalhão).

Page 247: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

234 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

5. O medalhão e o público: espelhamentos – quando se chega finalmente àcondição de medalhão, o prêmio é o reconhecimento público. Em vez de farejaras ocasiões para aparecer, são as ocasiões que o buscarão, para gozarem do prestí-gio do medalhão. De fato, há uma troca entre o medalhão, que ganha notorie-dade e aplausos, e a cena social, que se engrandece com o brilho dos medalhões.

6. Política e partidos – o medalhão parece encontrar na cena política o meioideal para brilhar, desde que, como afirma o pai, compreenda que tanto faz serliberal ou conservador, o importante é adotar um discurso de metafísica política,que apele às emoções e não ao pensamento, ou seja, que não diga nada, apenasjogue com as convenções próprias ao meio. Como afirma Villaça (2008: 44):

“A carreira vitoriosa do medalhão depende, fundamentalmente, de um meiosocial cujos princípios mais conservadores são também os mais estratificados,em uma compreensão da História como eterna repetição do mesmo, apenasvariada nas circunstâncias que nada afetam a substancial mobilidade. Taisóbices à idéia de evolução ou progresso, nos campos da História, da Civili-zação e da Política, estão outra vez em Maquiavel e Schopenhauer com asdiferenças que cabem entre o pragmatismo positivo do primeiro e a perspec-tiva pessimista do segundo.”

7. Ironias e chalaças – o último conselho do pai a Janjão é para não usar aironia, “feição própria dos céticos e desabusados”; é preferível a “boa chalaça amiga,gorducha, redonda, franca”. A lição é, sem dúvida, paradoxal, pois é impossívelnão remetê-lo ao próprio conto. Como nota Villaça (2008: 45), há ironia nosensinamentos do pai, mas também há o retrato indiscutível da realidade do tipo(medalhão) e do meio (convenção): “a estabilização do sentido é quase impossí-vel, dada a mescla, em tom de descompromisso, entre o avanço do humor e aimplacabilidade da análise”. De fato, não há inversão de sentido, uma das acepçõesda ironia, nem mesmo seu deslocamento, o que acenaria para uma “causa secre-ta”, um discurso a ser recomposto. Mas humor: ao mesmo tempo em que cons-tata a fisiologia do medalhonismo, ri da constatação, pois ao mostrar o ridículode uma figura que inegavelmente goza de prestígio social, acaba por acusar as re-gras do jogo (convenção) que gera tal figura, a aprova e dela se aproveita, toman-do de empréstimo o próprio prestígio que a ela conferiu. Mas o humor é tambémdestrutivo, pois apaga qualquer possibilidade de se escapar à convenção. Ou seadere à ocasião, e goza os aplausos e benefícios do destaque social, ou se recolhea uma outra convenção qualquer, como a da reflexão, da originalidade e das ideiaspróprias, por exemplo, que se de um lado podem parecer positivas, ao menos aosque cultivam o gosto pelo olhar crítico, de outro são incapazes de escapar ao ar-tifício de toda convenção, além de se ver privada do reconhecimento social.

Page 248: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Machado de Assis: imaginário trágico e ética da ocasião 235

Assim, os sete passos para se tornar um medalhão receitados ao longo danarrativa subscrevem-se à própria concepção de mundo apresentada pelo pai, logono início do conto:

“A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogra-dos inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as espe-ranças de outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar ascoisas integralmente com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir pordiante.”

Ouvimos ressoar a “aprovação incondicional da vida” e o “eterno retorno”nitzscheanos. A vida como loteria define bem o que é convenção, expõe uma di-nâmica que se assemelha ao jogo. A disposição trágica está em aceitar esse dado,do qual não há como escapar. Em vez de se buscar transformação social, opera-seuma reeducação pessoal; em vez de se tentar impor uma vontade pessoal, modi-ficando a realidade, aceita-se a necessidade de adequar o impulso subjetivo àconstatação da realidade objetiva.

Diante da brecha antropológica expressa pelo incessante movimento pen-dular entre subjetividade e objetividade, entre alma interior e alma exterior, en-tre desejo de permanência e constatação da objetividade da morte, o trágico é,portanto, a aceitação de toda convenção que preenche essa brecha, da figuraçãoconcreta e simbólica, cultural e ideológica, material e abstrata que faz circular sen-tidos onde a própria noção de sentido inexiste. Assim, a ficção machadiana, aoexpor essa fissura, a eterna contradição humana, traz à tona a defesa de uma es-colha: a da aprovação.

Essa aprovação trágica afirma que nada, efetivamente, muda (eterno retor-no do mesmo), embora a mudança não pare nunca de acontecer. O paradoxotorna-se compreensível quando observamos que o que chamamos de mudança nãopassa de uma agitação de superfície, que em profundidade nada muda, pois nãohá verdade, princípio ou finalidade na existência, apenas acaso. Qualquer mudançaé superficial: podemos desviar um rio de seu curso, mas não podemos mudar oacaso de existirem rios e cursos, nem as relações de dependência que mantêm entresi. Em poucas palavras: não se pode mudar o acaso; ou, antes: qualquer mudan-ça resulta sempre em injetar acaso ao acaso.

E o que nos restaria? A escolha que o conto parece apontar é a do brilho,do espetáculo, do aplauso, enfim, do reconhecimento que tão bem expressa a fi-gura do medalhão: estar “acima da obscuridade comum”.

Page 249: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

236 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Essa ética da ocasião encontra-se implicitamente em Montaigne e explici-tamente em Maquiavel, dois dos grandes e de quem Machado era leitor atento;indiretamente em Pascal, principalmente em sua aposta; nos moralistas do XVIIe XVIII, como La Rochefoucauld ou Vauvenargues4; mas o pensador que melhorelabora essa ética da ocasião é Baltasar Gracián, que em 1647 escreve OráculoManual y Arte de Prudencia5, coletânea de trezentos aforismos que aconselham ohomem a agir de maneira prudente, sagaz e oportunista, de modo a se beneficiardas circunstâncias.

De Gracián podemos reter algumas passagens que apontam para essa éticada ocasião e se aproxima da Teoria do Medalhão, como no aforismo 120, em queensina viver de maneira prática: “O gosto da maioria impõe-se como modelo aser seguido. Acomode-se ao presente ainda que lhe pareça melhor o passado (...).Valorize mais o que a sorte lhe concedeu do que lhe negou”. Ou este outro, 240,sobre o uso da tolice: “há ocasiões que o melhor saber consiste em mostrar nãosaber. Não é preciso ignorar, mas sim afetar que se ignora. (...) Para ser admira-do, é aconselhável vestir pele de asno”. Conselho que reverbera o do pai de Janjão,quando pede para o filho não cultivar ideias próprias, apelando para sua inópiamental.

Sobre a ética da ocasião, há o aforismo 288:

“Viver conforme a ocasião. Governar, argumentar, tudo deve se dar de acor-do com a oportunidade. Querer quando se pode, porque a ocasião e o tem-po não esperam. Não viva segundo regras fixas, se não for em favor da virtu-de, nem intime leis precisas ao desejo, pois amanhã terá de beber da águaque despreza hoje. Há alguns tão paradoxalmente impertinentes que que-rem adaptar as circunstâncias às suas manias, e não o contrário. Mas ossábios sabem que o rumo da prudência consiste em se portar conforme aocasião.”

4. Sobre o diálogo entre Machado e Maquiavel, recomendo: Janjão e Maquiavel: a “Teoria doMedalhão”, de Alcides Villaça, reunido em GUIDIN, M. L.; GRANJA, L.; RICIERI, F.(Orgs.). Machado de Assis: ensaios da crítica contemporânea. São Paulo: Editora Unesp, 2008.A respeito da sua proximidade com os moralistas, remeto às análises de Alfredo Bosi, prin-cipalmente às que estão em Ideologia e Contraideologia: temas e variações. São Paulo: Com-panhia das Letras, 2010.

5. Há algumas edições publicadas em português, além do original disponível tanto em livroquanto em sites da internet. Para as presentes citações, optei por traduzir diretamente dooriginal, referenciando o número do aforismo.

Page 250: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Machado de Assis: imaginário trágico e ética da ocasião 237

Se Maquiavel se dirige aos príncipes para instruí-los a conservar o poder con-quistado, Gracián volta-se ao homem comum, ensinando-o a se adaptar às circuns-tâncias, a viver de acordo com a ocasião, a sobressair da obscuridade por meio danotoriedade, da aprovação, do status social.

A notoriedade do medalhão equivale à força do poder do Príncipe, deMaquiavel. São essas as proporções que diferem o ensinamento do pai de Janjãodaquele do filósofo italiano, ressalva que aparece no final do conto para estabele-cer o paralelo. Em ambos, a mesma estratégia de uma permanência que, se nãopode ser atingida, no entanto pode ser prolongada ao longo da vida, seja comomedalhão, seja como príncipe. Num caso, é o brilho como escolha diante do acasoda existência e da convenção social; no outro, é a conservação do poder. Em am-bos, a mesma ética da ocasião, que investe em aproveitar o que o imaginário so-cial oferece com predomínio e prevalência, em adaptar-se ao jogo das convenções,por meio de uma narração de si que coincida com o real partilhado e que afirmaa vida pela aceitação do que é dado viver.

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Rogério de. O Trágico em Machado de Assis: uma pedagogia da escolha. In:FERREIRA-SANTOS, M.; GOMES, E. S. L. Educação & religiosidade: imaginários da di-ferença. João Pessoa: Ed. Universitária UFPB, 2010.

BOSI, Alfredo. Brás Cubas em três versões. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

________. Machado de Assis: o enigma do olhar. São Paulo: Ática, 2007.

DIXON, Paul. O chocalho de Brás Cubas: uma leitura das Memórias Póstumas. São Paulo:Nankin/Edusp, 2009.

DURAND, Gilbert. L’Imaginaire: essai sur les sciences et la philosophie de l’image. Paris:Hatier, 1994.

________. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

FAORO, Raymundo. A pirâmide e o trapézio. São Paulo: Globo, 2001.

FERREIRA SANTOS, Marcos. Crepusculário: conferências sobre mito-hermenêutica e edu-cação em Euskadi. São Paulo: Zouk, 2004.

HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Coimbra: Arménio Amado Editor, 1976.

MORIN, Edgar. O paradigma perdido: a natureza humana. Lisboa: Europa-América, 1973.

________. O enigma do homem. Rio de Janeiro, Zahar, 1979.

ROSSET, Clément. Lógica do pior. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.

SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades,1990.

STEINER, George. Gramáticas da criação. São Paulo: Globo, 2003.

Page 251: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

238 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

VILLAÇA, Alcides. Janjão e Maquiavel: a “Teoria do Medalhão”. In: GUIDIN, M. L.; GRAN-JA, L.; RICIERI, F. (Orgs.). Machado de Assis: ensaios da crítica contemporânea. São Pau-lo: Editora Unesp, 2008.

WUNEMBURGER, Jean-Jacques. Philosophie des images. Paris: PUF, 1997.

Page 252: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

MUSEUS E EDUCAÇÃO

João de Deus Vieira Barros*

Contemporaneidade é o presente histórico (...) no tempo físico, opresente é a mais irrelevante de todas as dimensões (...) O presente,

enquanto dimensão do tempo físico é, pois, um irremediável estado depassagem (...) Contemporaneidade é a dimensão presente do tempo

histórico (...) São contemporâneas coisas, pessoas, fatos, ideias, aconte-cimentos que fazem parte da vivência de um tempo. Quanto dura?

Depende dos limites que lhes coloquemos.

Beatriz Fétizon

O tema deste trabalho incita-nos a uma incursão, ainda que breve, nos me-andros do tempo. Não há como falar de museus e educação sem nos referirmos àtemporalidade. O museu nada mais é que a tentativa humana de coagulação dotempo. O sonho humano de parar ou aprisionar o tempo está materializado nosmuseus.1 Na condição de educador me preocuparei apenas em apresentá-lo comoum lugar de educação não formal, no entanto, sem perder de vista as enormes pos-sibilidades que os museus oferecem como parceiros ou complementares da edu-cação escolar.

Mas o que é educação não formal? O que a diferencia da educação formalou escolar? Para os fins da presente reflexão é suficiente apreender da educaçãonão formal, conforme nos lembra Gohn (1999), sua atuação de forma difusa,menos sistemática e burocrática que a escolar. Não possui uma centralização unifi-cada e institucionalizada que determina currículos e fiscalizações.

Enfim, a educação não formal e a informal – esta, sim, absolutamente assiste-mática e sem espaço e tempo predeterminados para acontecer, estando, portan-to, presente em todos os momentos e lugares das vidas das pessoas – possuem em

* Doutor e pós-doutor em Educação. Professor do Departamento de Educação II e dos Pro-gramas de Pós-graduação em Educação/Cultura e Sociedade, da Universidade Federal doMaranhão (UFMA).

1. Não é objetivo deste trabalho discorrer sobre a origem e a evolução dos museus. Pretende-mos tão somente fornecer alguns aspectos da relação museu e educação, apontando carac-terísticas do mesmo na contemporaneidade que podem torná-lo espaço de aprendizagemnão formal e de complemento à educação escolar.

Page 253: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

240 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

comum o fato de acontecerem predominantemente fora dos espaços das escolas,tendo como transmissores do saber os não-professores, ou seja, agentes educativosque, em virtude do cargo, função ou papel social que ocupam no mundo do tra-balho ou na sociedade, respectivamente, tornam-se multiplicadores potenciais ouefetivos do conhecimento, ajudando a escola em sua função precípua de educar.Dentre as agências de educação não formal encontram-se cinemas, galerias de artee museus. E entre os meios de educação informal podemos apontar, por exem-plo, as tradições culturais e os esportes populares quando são praticados em prai-as, ruas e outros espaços informais.2

Voltando à questão do tempo, para Fétizon (2006: 164), “o presente é umirremediável estado de passagem. Só adquirirá estabilidade histórica – completae intocável – quando se tornar passado”. E mais, a contemporaneidade:

“É o recurso humano genial de enfeixar as três dimensões do tempo – passado,presente e futuro – num único espaço-tempo humano, irreal e imperfeito emque as três dimensões, numa larga margem temporal, se tornam uma – e umaestável e significativa sede temporal de nossa vida; sede e dimensão em quevivemos e nos construímos como seres reais e realmente existentes. (idem).

Portanto, os museus de um modo geral, em especial os museus históricos,possuem uma característica única: situam-se permanentemente no tempo físicodo presente, mas, contraditoriamente, almejam guardar ou aprisionar o passadohistórico, já que o passado físico é, irremediavelmente, passado. Contraditoriamen-te, também, os museus são espaços-tempo objetivamente situados na contem-poraneidade e, como tal, têm possibilidade de enfeixar os três tempos: passado,presente e futuro. Em nenhum lugar somos mais convidados a antever o que virádo que em um museu. O acervo dos museus, relativo a qualquer período históri-co, tanto nos leva a devanear3 sobre um tempo do qual não somos testemunhasquanto nos convida a sonhar com um futuro. Isso nos leva mesmo a pensar em

2. Esse debate é bastante profícuo e poderia ser ampliado numa outra ocasião. É importante per-ceber que em alguns momentos há uma imbricação de todas as formas de educação, sendoimpossível separá-las no tempo e no espaço. Na escola, a despeito da supremacia da formali-dade, a educação informal pode ocorrer, por exemplo, nos recreios, festas e rituais. A educa-ção não formal pode acontecer dentro da escola, por exemplo, quando esta abre suas portaspara a comunidade, oferecendo cursos de pequena duração, em geral, profissionalizantes.

3. Devaneio no sentido bachelardiano, em A Poética do Devaneio, como um estado femininoda alma. Sonhamos no masculino, na medida em que sonhos, para o autor, são, no fundo,racionalizações. Mas devaneamos no feminino, o que associa o devaneio ao repouso, acon-chego. O devaneio também abre possibilidade de alteração do estado de consciência levan-do-nos a recriar. Enfim, uma simbiose entre memória e imaginação.

Page 254: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Museus e educação 241

duas situações: uma que seria a possibilidade de existência de um museu somen-te com objetos contemporâneos. E isso parece que as denominadas feiras já reali-zam. Feiras de novidades eletrônicas, de utilidades domésticas, de arquitetura, demáquinas e outros utensílios. Tecnologia, sonhos e devaneios se entrelaçando4.

A segunda situação seria um museu de objetos futuros. O simples desejohumano já não seria, assim, a antecipação do futuro?

Não quero me estender demais nessas digressões. No entanto, valho-me detrês exemplos: J. C. de Melo Neto, poeta pernambucano, já escreveu um livrodenominado Museu de Tudo. De que trataria um livro de poemas com tal singu-laridade? Convido os presentes que desconhecem tal obra a imaginarem. O can-tor e compositor Cazuza, na música “O tempo não pára”, nos brinda com osversos: “Eu vejo o futuro repetir o passado. Eu vejo um museu de grandes novi-dades. O tempo não pára”. Eu próprio já escrevi um texto cujo título é “Museude Gestos”5. Como e onde seria tal museu?

E tudo isso nos leva a indagar sobre uma outra concepção de museu, ade-mais vislumbrada por artistas6, à margem de um pensamento científico ou decunho eminentemente pedagógico. Um museu em que presente, passado e futu-ro coexistissem, privilegiando toda a produção do imaginário7 humano. Tudo issopara além de uma crença de que “museu é lugar de coisas velhas” ou de que “lu-gar de velho é no museu”, como vociferam bocas inadvertidas. Em ambos os ca-sos a revelação de duplo preconceito: tanto com os velhos (idosos) quanto com omuseu enquanto espaço da memória e das realizações humanas.

De modo geral, como se entrelaçam museu e educação?

Já vimos que o museu é, antes de tudo, um espaço educativo, não somentepor nele encontrarmos parcela significativa da cultura material da humanidade,mas por ele ter-se tornado um lugar de encontro, por excelência. É o encontro, eé pelo encontro que acontece o aprendizado. “O museu deve ser fórum, lugar de

4. Interessante notar que objetos de uma feira fatalmente virarão objetos de museus.

5. Texto publicado pelo jornal O Imparcial, de São Luís do Maranhão, em 1992. Confira-ona íntegra ao final deste trabalho.

6. Refiro-me aos artistas anteriormente citados.

7. Imaginário como sinônimo de conjunto de imagens humanas produzidas pela cultura: querimagens materiais, concretas (objetos); quer imagens simbólicas, abstratas em suas essên-cias. Portanto, imagens constantemente atualizadas pela capacidade humana de imaginar,renovar, realizar.

Page 255: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

242 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

encontro, espaço de debate, um lugar em que as coisas se produzem e não ape-nas o já produzido e já comunicado”, como nos lembra a pesquisadora MagaliAbreu8. Portanto, uma das importantes características do museu como espaçoeducativo está justamente em sua possibilidade de uso como locus de socializaçãoe de socialidade. Lugar em que as pessoas se encontram não apenas para realizarvisitas burocráticas, mas lugar de descoberta e, sobretudo, de autodescoberta, vistoque hoje já não é mais possível uma educação que proporcione apenas o conhe-cimento, mas também o autoconhecimento.

Não podemos nos esquecer de que um museu (e refiro-me especialmente aosmuseus históricos e artísticos) é um guardião da produção cultural, em especial,da cultura material de um povo. Portanto, lugar que proporciona ao ser um en-contro com a história humana, com o passado coletivo e também com as raízesde uma identidade nacional, por consequência com uma identidade individual.

Um museu há de ser um espaço em que nos encontremos conosco mesmos,com um passado e com um fazer coletivos que influenciaram a contemporaneidade.A história não é produto de uma única classe ou etnia. Os museus devem possibili-tar aos que os frequentam a chance de um encontro com nossas origens e raízes cul-turais, portanto, simbólicas – mas que reverberam ou repercutem como imagenstrans-históricas e que chegam até nós com a força viva dos acontecimentos que, vin-dos de um passado, de certa forma ecoam até os nossos dias.

Dessa forma, os museus como espaços educativos devem ser capazes depossibilitar o gosto e a apreciação da cultura material e simbólica, bem comoo gosto pela sua preservação e perpetuação. O gosto e capacidade de aprecia-ção tanto do belo quanto do repugnante, pois objetos, por mais que sejam an-corados em suportes da materialidade, carregam em si o peso da história einvocam realizações, tragédias e sentimentos ofuscados pelo próprio passar dotempo. Objetos de museus devem possibilitar a revivência do passado e seuprolongamento até nós.

Vejamos o que nos diz Messentier (2005: 170) a respeito da relação memó-ria/aprendizagem:

“Como todos sabem não há aprendizagem sem memória. O processo deconstrução da memória social é, portanto, um elemento que contribui parao êxito de uma sociedade no equacionamento dos problemas com os quaisse confronta (...).”

8. Na revista eletrônica do Museu da Cidade.

Page 256: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Museus e educação 243

Ou ainda:

“Para o desenvolvimento da humanidade, também foram fundamentais aescrita, a organização de bibliotecas e, seguindo nesse caminho até chegarao computador, a criação dos mais variados tipos de suporte da memóriasocial, porque estes instrumentos ampliaram a capacidade e aceleraram oprocesso de aprendizagem social” (idem).

E conclui esse autor que a construção da memória social é decisiva para aformação de identidades coletivas.

Portanto, o museu há de ser um lugar que proporcione a construção ouperpetuação/sedimentação dessa memória social, reelaborada ou relida a cadamomento histórico, mas com a finalidade de ajudar a construir a identidade co-letiva. E isso é um dos interesses da educação. Tomando-se o cuidado de queessa memória, sendo nacional, respeite a pluralidade, uma vez que “o mesmoobjeto patrimonial pode constituir-se em uma referência de diferentes identi-dades” (idem: 171).

Por exemplo, São Luís é referência para os ludovicenses, maranhenses, bra-sileiros e é patrimônio mundial da humanidade.

O autor nos lembra ainda que “o patrimônio edificado possibilita um con-tato coletivo da multidão anônima das cidades com referências da memória so-cial” (idem: 172). E é esse caráter público que favorece tendências à socialização,pois possibilita a apreensão do sentido de história por todos (idem).

Posso dizer que o acervo de um museu também se presta a isso.

Para concluir este trabalho gostaria de inserir uma crônica9 que publiqueidezoito anos atrás, a qual realiza uma especulação sobre um museu absolutamenteimaginário. Talvez mesmo um museu de devaneios. Em que medida a educaçãoescolar não necessita de um museu (ou museus) como o que descrevo a seguir, paraque se consiga atingir uma educação formal mais afinada com os gestos da hu-manidade, levando o educando a perceber a grandiosidade e mesquinharia dedeterminados gestos humanos?

Vejamos o texto, integralmente:

“Quem nunca se traiu pelas palavras? Ou por um gesto?Imagino um museu diferente: de gestos. Um outro mais estranho ainda:

9. Trata-se de “Museu de Gestos”, crônica que publique no jornal O Imparcial, de São Luísdo Maranhão, no dia 28 de julho de 1992.

Page 257: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

244 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

de palavras10. E um outro mais impossível: de sonhos. Não sei qual seriamais efêmero.No Rio de Janeiro existe o ‘Museu do Imaginário’, resultado de estudosiniciados há décadas pela psiquiatra Nise da Silveira, a partir de trabalhosrealizados por ‘doentes mentais´. Não deixa de ser um museu de sonhos,manifesto em forma de artes plásticas, desenhos, pinturas. A doutora Nise éuma seguidora de Jung e trabalha de há muito com a simbologia das ima-gens pictóricas oriundas das ditas ‘mentes doentias’, e o resultado é fantásti-co, pois muitos quadros são verdadeiras obras de arte. Aliás, arte e loucuraandam muito próximas e até existe no Instituto de Psicologia da Universida-de de São Paulo cadeira com esse título: ‘Arte e Loucura’.Voltemos, então, às perguntas iniciais: ‘Quem nunca se traiu pelas palavras?Ou por um gesto?’.Tenho um museu de palavras e gestos. Quem não o tem?Quantas vezes fomos vítimas de uma traição por outros, através de falsaspalavras ou gestos maliciosos que deram a entender a outras pessoas sobrefatos que, justamente, desejamos ocultar?Quem, na infância, não ouviu palavras que no mesmo instante estavamsendo desmentidas, discretamente, por um piscar de olhos da mãe para opai, ou vice-versa? Depois, dormíamos, sonhávamos e, no dia seguinte, acor-dávamos e quem sabe até pensássemos que tudo não passara de um sonho.Especulemos, agora, nosso museu de gestos.Como seria? Deveria, sem dúvida, haver um critério para sua formação.Primeiro teríamos de selecionar as peças desse museu, enfim, que gestosselecionar... Depois procuraríamos saber a quantidade de gestos e, final-mente, onde guardar todos esses gestos.Privilegiaríamos os gestos simbólicos ou os diretos? Os gestos individuais oucoletivos?Poderiam conviver lado a lado o gesto sublime de Cláudia11 amamentando afilha com o gesto duro de um pai repreendendo o filho, sem nem se como-ver com as lágrimas que escorrem por aqueles olhos?

10. Importante lembrar que não faz muitos anos foi inaugurado em São Paulo, na Estaçãoda Luz, o Museu da Língua Portuguesa, que, em sua essência, é um museu de palavras.Portanto, há quinze anos, quando escrevi essa crônica, sequer imaginava que algum diaexistiria no Brasil um museu de palavras.

11. Trata-se de uma jovem mãe de São José de Ribamar, MA, que ganhara a primeira filha,cujo gesto de amamentá-la em público, exibindo os seios, chamou-me a atenção pela su-blimidade de tal expressão.

Page 258: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

Museus e educação 245

Talvez fosse ideal um museu departamentalizado, não com gestos expostosaleatoriamente. Haveria a seção dos gestos simbólicos (e é tão difícil dizerqual não é), individuais e coletivos: como o do estudante oriental que sepostou diante do trator na praça da ‘Paz Celestial’ ou o do romeiro que pagapromessa carregando enorme pedra na cabeça, durante a procissão de SãoJosé de Ribamar. O primeiro simboliza a coragem; o segundo, o sacrifício, aautoflagelação, diríamos, em nome da fé.Haveria outras seções, como a dos gestos bruscos, dos violentos gestos, a dosgestos calmos, como o leve levantar das mãos de Hermínio12 pedindo ‘bên-ção, meu padrinho’, nas calmas manhãs de Ribamar.Haveria, ainda, a seção dos gestos sublimes, dos nefastos, dos negligentes...Deveria haver um espaço só para gestos obscenos? E um lugar só para osgrandiosos gestos?Quem sabe houvesse uma seção para os gestos ingênuos, outra para os ges-tos maliciosos: aqueles que dizem e não dizem, são e não são.Talvez fosse necessário colecionar também os gestos ligados ao corpo huma-no. Sorrisos de todos os tipos quantos13 não seriam? Piscares. Abrir e fecharde bocas. Mãos acenando, caindo, mãos se esfregando, acariciando, aper-tando o próprio corpo ou partes dele. Pernas bambas... Seriam tantos gestos.Pernas firmes, correndo, paradas.Esse museu seria imenso. Se resolvêssemos catalogar e colecionar esses gestosdiacronicamente, então, talvez acabássemos por contar a própria história dahumanidade: a história feita de gestos, de grandes e de pequenos gestos, degestos grandiosos e mesquinhos que levaram o mundo ao que é.Gestos. Gestos. Gestos. A história e a própria vida resultam deles: sucessão,um puxando o outro.A verdade é que cada um de nós guarda um museu de gestos: somos projetore tela. Em que espaço selecionar, catalogar e reunir tudo isso?Só existe um: o espaço mental. Nele, individual ou coletivamente, cabemtodos os gestos da humanidade.14

12. Hermínio era um deficiente mental idoso que vivia na mesma cidade e chamava de pa-drinho ou madrinha a todas as pessoas que o tratavam com dignidade e respeito. Costu-mava compor inúmeras músicas de bumba-boi de orquestra, imitando com a boca os sonsdos instrumentos de sopro.

13. “Quanto”, na publicação anterior.

14. “Só existe um: o espaço mental. nele. individual ou coletivamente. cabem todos os ges-tos da humanidade.”, na publicação original.

Page 259: CulturasContemporaneas Imaginario Educacao eBook

246 Culturas Contemporâneas, Imaginário e Educação: Reflexões e Relatos de Pesquisa

Referências Bibliográficas

BACHELARD, G. A poética do devaneio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

BARROS, J. D .V. Museu de gestos. O Imparcial, São Luís, 28 jul. 1992. Opinião, p. 4.

FÉTIZON, B. Desafios epistemológicos e educacionais na contemporaneidade. In: ENCON-TRO DE EDUCADORES DO MARANHÃO, 2., 2006, São Luís, MA. Anais... São Luís,MA, 2006. p. 163-177.

GOHN, Maria da Glória. Educação não formal e cultura política. 3. ed. São Paulo: Cortez,2005.

MESENTIER, Leonardo M. Patrimônio urbano, construção da memória social e da cidada-nia. Revista Memória, Natal: UFRN, n. 28, p. 167-177, 2005.


Recommended