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Despejo Do Artista Lso

Date post: 26-Sep-2015
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despejo do artista
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  • 25O despejo do artista Luiz Srgio de Oliveira (pginas 24-37)

    O despejo do artista*

    Luiz Srgio de Oliveira

    Partindo de reflexes acerca dos mitos inventados sobre o ateli do ar-

    tista modernista, o artigo discute as implicaes das novas prticas de

    arte no espao pblico para o fazer artstico, analisando as mudanas

    no processo de produo da arte e os riscos enfrentados pelo artista

    em seu deslocamento em direo ao espao pblico, o que acaba por

    revelar a desnecessidade do ateli do artista.

    Ateli modernista, arte pblica, comunidade.

    1

    Os dedos brincam ao longo da esttua. E todo o ateli que vibra e

    vive. Tenho a curiosa impresso de que, se ele ali est, sem que as

    toque, as esttuas antigas, j terminadas, alteram-se e transformam-se

    porque ele trabalha numa de suas irms. (...) S quando deixo o ateli,

    quando estou na rua, que percebo que nada mais minha volta ver-

    dadeiro. Ser que o digo? Nesse ateli, um homem morre lentamente,

    consome-se, e sob nossos olhos se metamorfoseia em deusas.

    Jean Genet, O ateli de Giacometti1

    Naquele ateli escuro, Rothko parecia mais a vtima de sua obra que

    seu criador. Quanto mais tinha sucesso em sua misso, mais parecia

    excludo de seu prprio produto, como se pudesse revelar o segredo,

    mas dele no partilhar.

    Brian ODoherty, Studio and Cube2

    Na segunda metade da dcada de 1950, Jean Genet foi visitante assduo do ateli de

    Alberto Giacometti em Paris, inicialmente com o objetivo de realizao de um retrato

    proposto pelo artista, mas logo vendo as visitas se espraiarem em amizade e intercm-

    bio intelectual a aproximar dois cones do modernismo: de um lado, Genet (1910-1986),

    poeta, dramaturgo e escritor de Nossa Senhora das Flores (1944), Querelle amar e

    matar (1947), Dirio de um ladro (1949), e peas de teatro como O balco (1956),

    entre outras; do outro lado, Giacometti (1901-1966), autor das indefectveis figuras de

    caminhantes esguios e torturados por sua prpria humanidade. O ateli de Giacometti,

    descrito por Genet como um espao que que vibra e vive, parece querer usurpar as

    prerrogativas dos deuses ao outorgar um sopro de vida a materiais antes inanimados;

    um espao mgico que faz crer que na vida que corre do outro lado da porta, que passa

    nas ruas, nada verdadeiro.

    1 Genet, 2001, p. 92.

    * Texto recebido em maro de 2011 e aceito para publicao em maio de 2011.

    2 ODoherty, 2007, p. 22.

    Ateli Brancusi no Centro Pompidou em Paris.

  • 26 concinnitas ano 12, volume 2, nmero 19, dezembro 2011

    Dentre os mitos que permeiam o universo modernista, o ateli do artista se destaca

    como o espao em que a beleza perseguida e encetada sob a bno dos deuses,

    em processo que no ocorre sem que seja demandada ao artista compensao sacrifi-

    cal, fazendo-o assumir o papel de mrtir do homem [que] morre lentamente, [que]

    consome-se, mito que encontra na tragdia de Vincent Van Gogh sua mais completa

    traduo. O espao mtico do ateli do artista, o lugar de isolamento em que a arte

    ganha existncia, importante elemento na composio mtica do artista, solidamente

    fundada no paradigma inaugurado por Van Gogh, que incorpora uma srie de mudan-

    as no valor artstico, da obra para o homem, da normalidade para a anormalidade, do

    sucesso para a incompreenso, da trivialidade para a raridade.3 justamente nesse

    espao ntimo e silencioso do ateli que o artista constri e exercita sua persona mais

    singular, adiante oferecida ao pblico como complemento de sua obra, como um selo a

    garantir sua procedncia artstica, em conformidade com a percepo do artista pela

    sociedade que incorpora a normalizao do anormal, processo em que a anormalida-

    de [relacionada estritamente ao comportamento do artista] no valorizada como uma

    exceo, mas como a regra.4

    Essa vinculao entre ateli, persona do artista e obra tem sido evidenciada pela recria-

    o de atelis de artistas dentro dos espaos museolgicos, colapsando as distncias e

    os tempos que apartam os lugares de produo e de exibio da arte. bem verdade que

    nessas transferncias dos atelis para suas reinstalaes nos museus de arte a presena

    do artista apenas residual, espetacularizada na fetichizao de seus apetrechos pro-

    fissionais. Esse espao outrora ocupado pelo artista, carregado do mistrio artstico

    solitrio e da inacessibilidade do impulso criativo,5 espao que j foi domnio absoluto

    do artista e que se organizava em torno de sua presena e decises, agora se oferece

    desenergizado e domesticado apreciao mansa no interior do cubo branco, desemba-

    raado do incmodo da personalidade impertinente do artista.

    Essas reinstalaes parecem tentativa de enfrentamento de contradies apontadas

    pelo artista francs Daniel Buren, para quem a obra de arte s est em seu lugar en-

    quanto no se realiza como obra, enquanto permanece no ateli distante dos olhos do

    pblico; quando em exposio, a obra de arte finalmente se efetiva com tal, mas estar

    fora de lugar. Nesse sentido, para Buren, o universo privado do ateli do artista, em sua

    autorreferencialidade e clausura, seria o refgio da obra antes da obra.

    No ateli, a obra est isolada do mundo real. Enquanto isso, exa-

    tamente neste momento, e somente neste momento, que ela est

    mais prxima de sua prpria realidade. Subsequentemente a obra

    no parar de se distanciar dessa realidade, eventualmente tomando

    emprestadas outras realidades que no poderiam ser antecipadas por

    ningum, nem mesmo pelo prprio artista que a criou. Esta realidade

    pode at mesmo ser totalmente contraditria prpria obra, em geral

    3 Heinich, 1996, p. 146.

    4 Idem, ibidem, p. 143.

    5 Rodenbeck, mar. 2009, p. 54.

  • 27

    acabando por servir a benefcios mercantis e ideologia dominante.

    Dessa maneira, quando a obra est no ateli, e somente nesse mo-

    mento, que a obra est em seu lugar.6

    No entanto, conforme reconhecido pelo prprio Buren, essa formulao se instaura

    como contradio moral, sem chance de superao, uma vez que uma obra de arte

    no produzida para ser mantida enclausurada no ateli do artista, distncia do olhar

    pblico em seu recinto privado, sendo necessrio que seja lanada no mundo, confron-

    tada pela realidade desse outro mundo, mesmo que por mediao e pelos anteparos das

    instituies de arte.

    A reinstalao asseada, assptica e elegante do ateli do escultor romeno Constan-

    tin Brancusi no Centro Georges Pompidou, Paris, em 1997, exemplo consistente dessa

    transferncia andina, que enquanto tem a pretenso de dar visibilidade ao lugar da

    produo da arte, como se revelasse um pouco do processo de criao do artista, aca-

    ba por oferecer ao pblico to somente uma imagem pasteurizada e descontaminada

    [figura 1 - pgina 24], uma vaga referncia do lugar em que Brancusi produziu suas

    magnficas esculturas. O que acaba por ser oferecido ao pblico visitante do Muse Na-

    cional dArt Moderne de Paris menos do que uma sombra do que teria sido o verdadeiro

    ateli de Brancusi na capital francesa, capaz de provocar uma impresso que, como

    muitos escritores atestaram, era irresistvel, com suas paredes brancas e a luz caindo

    sobre objetos preciosos brilhando entre blocos toscos de madeira e pedra. Ele [o ateli]

    parecia ao mesmo tempo um templo e um laboratrio de arte.7

    No incio de 2001, o ateli do pintor irlands Francis Bacon [figura 2 - pgina 28] foi

    inteiramente reinstalado na Hugh Lane Municipal Gallery of Modern Art, em Dublin,

    cidade natal do artista, incluindo a remontagem de pilhas de detritos, de pinceis en-

    durecidos, potes de tinta ressecada, livros e revistas desconjuntados pela manipulao

    descuidada, caixas de papelo, etc., em processo (e esforo que incluiu a construo de

    um anexo para abrigar a remontagem do ateli) que deixa muitas dvidas quanto a sua

    efetividade para melhor leitura e compreenso das pinturas de Bacon, correndo o srio

    risco de ser mera instaurao nos territrios da espetaculizao.

    O ateli do artista se configura, acima de tudo, como lugar privado em que obras de

    arte so produzidas na expectativa de se tornar pblicas, em seu sentido mais generoso

    que engloba at mesmo os limites circunscritos das colees particulares. O ateli do

    artista integra um sistema segmentado, fechado e perfeitamente conectado de produ-

    o, circulao e comrcio da obra de arte, ao lado da galeria, do museu, da crtica e das

    colees. O sistema de arte modernista, alicerado em torno do objeto artstico, im-

    pensvel sem o ateli, lugar de criao desse objeto. Segundo Daniel Buren, em muitos

    casos, o ateli mais necessrio (crucial) para o artista do que a galeria e o museu. De

    fato, ele precede a ambos8 e serve a uma dupla seleo, primeiro a do artista, distante

    O despejo do artista Luiz Srgio de Oliveira (pginas 24-37)

    6 Buren, 2004, p. 18.

    7 Sidney Geist citado por ODoherty, 2007, p. 37.

    8 Buren, 2004, p. 16.

  • 28 concinnitas ano 12, volume 2, nmero 19, dezembro 2011

    dos olhos dos outros, e depois, a dos curadores e marchands.9 Seguramente podemos

    afirmar que o ateli indispensvel no s para o artista, mas para todo o sistema de

    arte modernista, dependente como da produo do objeto de arte.

    Diferentemente de Buren, para quem a obra de arte s encontra sua verdadeira reali-

    dade, mesmo que insustentvel, enquanto ainda mantida no espao de sua criao, o

    ateli do artista, o terico da arte norte-americano Brian ODoherty, tambm artista

    (como Buren ) que se apresenta sob o nome de Patrick Ireland, depois de lembrar que

    uma das primeiras tarefas da galeria separar o artista da obra, enquanto a mobiliza

    para o comrcio, afirma que no ateli as obras so esteticamente instveis (...) vulne-

    rveis a um olhar ou a uma mudana de luz. Elas ainda no determinaram seu prprio

    valor.10 De acordo com ODoherty, esse processo de consolidao dos significados da

    obra de arte

    comea quando [as obras] so socializadas nas paredes da galeria. Se

    o artista o primeiro espectador, o fator inicial de estabilizao

    o visitante do ateli. A visita ao ateli tornou-se clich no moder-

    nismo e assim permanece (...) O visitante do ateli o prefcio do

    9 Idem, ibidem, p. 17.

    Ateli de Francis Bacon em Londres.

    10 ODoherty, 2007, p. 19.

  • 29

    olhar pblico (...) A visita ao ateli pode ser um tremendo sucesso

    ou um desastre, uma muito desejada descoberta ou uma intruso

    horrorosa.11

    Dessa forma, o ateli do artista est extremamente conectado galeria e ao museu de

    arte, sendo impensvel a existncia de um sem a do outro; como, alis, a obra de arte

    que, produzida no isolamento do ateli do artista, acabou por determinar a necessidade

    de criao de um espao de exibio que a acolhesse, que a mantivesse parcialmen-

    te apartada do mundo real, relativamente isolada das realidades e contaminaes do

    mundo mundano, o que deflagrou a necessidade de criao do cubo branco. Como se

    o isolamento que acompanhou a obra de arte em seu processo de gestao e maturao

    no ateli do artista necessitasse agora, quando de seu descolamento da presena do

    criador, de uma correspondncia no espao da galeria, que, mesmo no sendo um am-

    biente absolutamente vedado visitao, s contaminaes do mundo afinal trata-se

    de um espao pblico , funciona como um filtro a selecionar os fluxos de realidades

    aos quais a obra de arte exposta. Dessa maneira, formatou-se o espao da galeria de

    arte moderna, na qual, conforme apontado por Brian ODoherty no clssico No interior

    do cubo branco, o mundo exterior no deve entrar, de modo que as janelas geralmente

    so lacradas. As paredes so pintadas de branco. O teto torna-se a fonte de luz (...) Sem

    sombras, branco, limpo, artificial o recinto consagrado tecnologia da esttica.12

    Dois atelis clssicos tiveram grande influncia na formatao dos espaos de exibio

    da arte no modernismo: os de Constantin Brancusi e Piet Mondrian em Paris e Nova

    York, embora sejam bastante distintos: o de Brancusi, um ateli de acumulao que

    nos prope a esttica da redundncia, enquanto o de Mondrian se caracteriza como

    um ateli de despojamento monstico a nos orientar em direo esttica da elimi-

    nao, enfatizando que o puritanismo de Mondrian foi transposto para o cubo branco,

    no qual o visitante sempre transgressivo. O que quer que interferisse em sua vida

    era removido. Na parede, cada pintura autocontida (...) tinha uma cota de espao ao

    redor.13

    Certamente o rigor do ateli de Mondrian, em seu despojamento radical que tendia

    a eliminar qualquer elemento (de qualquer ordem ou categoria) que pudesse trazer

    distrbio ou distrao para o equilbrio perseguido pelo artista, parece mais bem evi-

    denciado nas arquiteturas e fisicalidade dos espaos de exposio modernistas. A ideia

    de que cada obra de arte precisa de um espao em torno que lhe seja prprio e exclusivo

    para evitar contaminaes seguramente um dos preceitos perseguidos nas montagens

    de exposio. No entanto, a esttica da redundncia do ateli de Brancusi igualmen-

    te (seno mais) rigorosa quanto aquela apresentada no ateli de Mondrian; rigor que

    denotava a tentativa de mais controle sobre a recepo da obra de arte, no permitindo

    que ela se distanciasse do ateli, o que o transformava em espao de exposio: foi, de

    fato, um ateli que se transformou em galeria, e Brancusi, em seu diretor.14

    O despejo do artista Luiz Srgio de Oliveira (pginas 24-37)

    11 Idem, ibidem, p. 19.

    12 ODoherty, 2002, p. 4.

    13 ODoherty, 2007, p. 34-35.

    14 Idem, ibidem, p. 38.

  • 30 concinnitas ano 12, volume 2, nmero 19, dezembro 2011

    Em passado mais recente, a desenfatizao da arte fundada na produo do objeto

    de arte, em especial as tradicionais pinturas e esculturas, gerou a crise do ateli que

    acompanha pari passu a crise do espao da galeria de arte, espao que se havia trans-

    formado em meio de arte: a pintura foi o melhor amigo da galeria branca, o avatar do

    modernismo. No importa quo radical fossem suas inovaes, a tela era docilmente

    pendurada na parede. Com o declnio da pintura como modo dominante, entretanto, a

    pureza do espao branco ficou comprometida.15

    A crise do modernismo, inaugurada com a morte emblemtica de Jackson Pollock em

    1956 e instaurada em definitivo nos anos 60, acabou por transformar substancialmente

    a natureza da produo da arte, jogando o ateli tradicional em crise de inadequao

    ou mesmo de desnecessidade, parecendo inviabilizar sua permanncia como espao

    preferencial para a produo da arte, parecendo embargar o ateli do artista por sua

    prpria inutilidade. Some-se a isso as novas demandas polticas deflagradas no campo

    das artes e teremos um cenrio no qual o artista parece itinerar sem-teto e sem pouso

    em busca de interao social que d mais sentido existncia de sua arte.

    A crise do modernismo, materializada na desmaterializao do objeto artstico, acen-

    tuou a inadequao do espao do ateli para a gerao de uma arte mais avanada,

    promovendo como consequncia a inviabilidade do ateli, acabando por decretar o

    despejo do artista.

    2

    Para ser contempornea, a arte deve ser especfica ao mximo e fun-

    cional, isto , deve relacionar-se com o mundo real poltica, show

    business, msica, prtica analtica, medicina, etc. Isso no significa

    que a arte deva ser subserviente a essas atividades; refiro-me a sua

    mtua transgresso.

    Anatoly Osmolovsky, Rejection of Museums!16

    Um sentido de lugar se mantm distante para a maioria de ns. E essa

    deficincia pode ser vista como a causa primeira de nossa perda de

    contato com a natureza, da desconexo com a histria, da vacuidade

    espiritual e do estranhamento diante de ns mesmos.

    Miwon Kwon, One Place after Another17

    Cada vez mais e mais artistas buscam aventurar-se no universo dos espaos pblicos

    como lcus de instaurao de sua criao artstica, em experincias que se sucedem

    tanto no Brasil quanto mundo afora, em projetos que se caracterizam, em sua maioria,

    pelo interesse artstico em coletividade, colaborao e comprometimento objetivo com

    15 Idem, ibidem, p. 39.

    16 Osmolovskyly, nov. 2004, p. 646.

    17 Kwon, 2002, p. 158.

  • 31

    um grupo social especfico.18 Esse transbordamento em direo ao mundo ocorre como

    se o artista tivesse sido expelido de seu antigo domnio, de seu antigo abrigo o ateli

    modernista. Como se o acmulo de realidades a invadir o ateli do artista exemplo

    mximo oferecido por Kurt Schwitters e sua Merzbau acabasse por contaminar aquele

    espao at ento reservado ao isolamento da arte antes de sua afirmao como arte.

    Como se diante dessas invases o artista se visse obrigado a seguir as pistas daquela

    contaminao de realidades. Ou, mais do que isso, como se diante do abarrotamento de

    realidades, o espao fsico do ateli no mais comportasse o artista, e o despejasse, o

    desalojasse, o desabrigasse. E essa seria a nova realidade a ser enfrentada pelo artista

    na contemporaneidade: um desabrigado itinerante a buscar, com sua arte, respostas s

    realidades com as quais confrontado. Essa mudana do paradigma do lugar do artista

    na sociedade foi intuda por Albert Camus, falecido nos primeiros dias de 1960, para

    quem, ao contrrio da presuno corrente, se existe algum homem que no tem o

    direito solido, o artista.19

    Na esteira desse processo de despejo de seu prprio ateli, o artista tem voltado sua

    produo em direo s comunidades, empurrado por um chamamento para que assuma

    responsabilidades maiores no mbito da sociedade.

    Segundo a crtica e historiadora norte-americana Lucy R. Lippard, as prticas de arte

    pblica crtica sugerem uma arte acessvel de qualquer espcie que cuida, desafia,

    envolve e consulta a audincia para a qual ou com a qual produzida, respeitando a

    comunidade e o ambiente.20 Em seu processo de produo, essa arte se deixa banhar

    por prticas dialgicas, salientando que essa produo de arte realizada com a co-

    munidade, afirmando-se como prticas de participao democrtica. Nesse cenrio em

    que as comunidades so trazidas para o centro das inquietaes no prprio processo de

    criao, cumpre-se igualmente um deslocamento de audincias, conforme explicitado

    por Mary Jane Jacob:

    Posto que os artistas tm dado maior considerao audincia no

    desenvolvimento de seus projetos, trazendo para dentro de seus

    trabalhos aqueles usualmente ausentes das instituies de arte (...)

    muitos da audincia [tradicional] da arte tm escapado. [Dessa ma-

    neira] a audincia no tem sido ampliada, mas substituda. De fato,

    essa mudana na composio da audincia, bem como sua posio no

    centro criativo, que faz dessa arte pblica algo to novo.21

    Como apontado por Miwon Kwon, muitos dos envolvidos em tais esforos no veem

    suas obras dentro do universo histrico da arte pblica. Ao contrrio, inscrevem suas

    prticas uma forma contempornea de arte poltica ativista e socialmente conscien-

    te no escopo da vanguarda esttica [dos anos 60].22 De maneira a enfatizar o des-

    colamento da arte produzida no espao pblico na contemporaneidade daquela mais

    O despejo do artista Luiz Srgio de Oliveira (pginas 24-37)

    18 Bishop, fev. 2006, p. 178.

    19 Citado por Gablik, 2002, p. 158.

    20 Lippard, 1997, p. 264.

    21 Jacob, 1996, p. 59.

    22 Kwon, 2002, p. 106.

  • 32 concinnitas ano 12, volume 2, nmero 19, dezembro 2011

    tradicional de carter celebratrio, a performer e terica da arte Suzanne Lacy cunhou

    a expresso novo gnero de arte pblica artes visuais que usam tanto meios tradi-

    cionais como no tradicionais para comunicar e interagir com uma audincia ampliada

    e diversificada acerca de questes diretamente relevantes para suas vidas.23 Para Lacy,

    essa nova arte pblica apoia-se sobretudo no compromisso. Com isso, os artistas pas-

    sam a articular seus projetos (quase no possvel falar em obra, tal o grau de desmate-

    rializao desses processos) em estreita colaborao com as comunidades, catapultadas

    eventualmente para a posio de coautores.

    As prticas diferenciadas dessa nova arte pblica acabaram por acarretar o deslocamen-

    to do artista de sua posio de isolamento, aparentemente por inadaptao ao mundo,

    paralisado por interesses obscuros que preferem a arte desconectada da realidade, e em

    consequncia, menos crtica.

    Os novos processos de cooperao introduziram dinmica nada habitual ao processo

    criativo da arte, substituindo procedimentos que centralizavam nas mos e mente de

    um ser singular, pretensamente dotado de dons especiais o artista , por um processo

    de negociaes, sob a injuno de interesses mltiplos, que empurram o artista para

    a posio de mediador; nesse novo cenrio, o artista, acostumado a ser um produtor

    de objetos estticos, agora transformado em facilitador, educador, coordenador e

    burocrata24 de encontros com a comunidade que podem resultar em obra permanen-

    te, efmera ou, mesmo, em obra nenhuma, nos quais o processo o que importa e

    efetivamente valorizado: a prevalncia do verbo sobre o nome, como observado por

    Miwon Kwon.

    Dessa forma poderamos reconhecer que estamos diante de um processo de incluso

    social, algo to decantado nas relaes das sociedades contemporneas complexas com

    suas mirades de periferias. No caso especfico da arte, parece tratar-se exatamente da

    incluso social de uma categoria profissional que, por livre arbtrio induzido, vinha-

    -se mantendo margem: o artista.

    A arte, ao ser percebida em sua potencialidade de dilogo e expresso em direta cone-

    xo com as comunidades no territrio ampliado da sociedade, busca dedicar-se, atravs

    do dilogo e das negociaes, ao levantamento, compreenso e questionamento de

    demandas, anseios, desejos e sonhos dessas comunidades. Ao abandonar as grandes

    narrativas do discurso da arte em favor de um dilogo no plano do cotidiano, em que

    coisas simples so ditas de forma simples por pessoas simples (que no mais acreditam

    em sua prpria genialidade) de maneira que sejam compreendidas por pessoas igual-

    mente simples, observamos um processo de horizontalizao da arte, sinnimo para

    democratizao, em substituio relao verticalizada que colocava o artista fora de

    alcance do mundo, isolado em outro plano.

    23 Lacy, 1996, p. 19.

    24 Kwon, 2002, p. 51.

  • 33

    Por outro lado, o projeto desenvolvido pelo artista em contato direto com a comunidade

    caracteriza-se como prtica artstica ps-ateli, deixando de ser exercida/desenvolvida

    no confinamento do ateli e passando a realizar-se in situ, situao em que tempo e

    espao so comprimidos no processo de produo, circulao e consumo da arte. No

    processo mais tradicional de produo da arte, que envolve a confeco de objetos de

    arte no ateli, a circulao e o consumo desses objetos acarretam seu deslocamento

    para que possam ser exibidos em museus ou galerias de arte, perfazendo assim (parcial-

    mente) o ciclo da obra, at que venha repousar em uma coleo. Nas prticas ps-ateli

    da nova arte pblica crtica, desenvolvida em colaborao com as comunidades, no so

    mais as obras que se deslocam, mas os artistas que, deixando os ambientes protegidos

    dos atelis, se inserem nas comunidades para com elas realizar projetos de arte com-

    partilhados. Nesse contexto, os projetos eventualmente obras so desenvolvidos nos

    prprios locais em que so consumidos, e, na maioria das vezes, a prpria comunidade

    interagente e coautora tambm o nico pblico de arte, empurrando o pblico se-

    cundrio,25 conforme identificado por Claire Doherty, para uma situao de no lugar.

    3

    To logo o culto da arte orientada para os negcios dos anos 80

    acabou, muitos viram a necessidade de um renascimento moral. Hoje,

    a tenebrosa mercadoria est em processo de expurgo, e a correo

    promovida como um novo valor esttico supremo. Como consequn-

    cia, a infraestrutura da arte de vanguarda a galeria, o galerista e

    o colecionador est sendo substituda por uma alternativa: o es-

    pao sem fins lucrativos, o curador e a fundao. Sintonizado com o

    recente enrabichamento do pas com o ativismo conciliatrio, a arte

    se transformou em valor meramente instrumental para esse conglo-

    merado institucional to valoroso quanto o peso de seus benefcios

    sociais.

    Yishai Jusidman, inSITE26

    A democracia no uma alternativa a outros princpios da vida asso-

    ciativa. Ela a prpria ideia da vida em comunidade.

    John Dewey, Creative Democracy27

    Se o ateli do artista foi refgio, torre de marfim, santurio ou algo que o valha,

    um lugar protegido do mundo capaz de levar o artista a acreditar que, em seu domnio,

    podia quase tudo, a transferncia do campo da prtica artstica para o espao pblico

    carreou mudana imediata de posicionamento do artista diante do processo artstico e

    da prpria sociedade. Diferentemente do ateli, o espao pblico o espao de nego-

    ciao por excelncia.

    O despejo do artista Luiz Srgio de Oliveira (pginas 24-37)

    25 De acordo com Claire Doherty, a audincia secundria seria formada pela segunda cama-da de pblico de um projeto de participao comunitria, em seguida s comunidades participantes transformadas em coautores. Doherty, 2004, p. 9.

    26 Jusidman, jan.-fev. 1995, p. 46.

    27 Citado por Wright, nov. 2004, p. 545.

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    Ao desenvolver seus projetos diretamente nos espaos pblicos, o artista, despejado de

    seu ateli modernista, lanado por inteiro em um processo de interao que demanda

    negociao com o outro, algum que geralmente desconhece quase por completo.

    Alm dessa negociao desabrigada e suas implicaes, o artista passa ainda a correr

    o risco de ser levado a articular a arte para alm de suas reais possibilidades, ressig-

    nificando a envelhecida crena na ao redentora da arte, em sua capacidade curativa

    no enfrentamento das mazelas sociais. Nesse processo, muitas vezes o artista passa

    a acreditar e aceitar o papel de algum que, sendo reconhecido como criativa, inte-

    lectual, simblica, expressiva, financeira e institucionalmente, entre outros aspectos,

    empoderado, capaz de promover o bem-estar e a bem-aventurana daquele que

    definido a priori como estando em necessidade de empoderamento.28

    Esse seguramente apenas um dos riscos que a arte e o artista passam a correr quando

    deixam os ambientes protegidos do ateli para enfrentar o mundo. No caso, o risco de

    serem os dois arte e artista instrumentalizados na gerao de prticas compensat-

    rias de sociedades francamente injustas que se recusam a distribuir com equidade suas

    prprias riquezas.

    Esse messianismo, ou evangelismo esttico, como destacado por Grant Kester, parece

    negligenciar as causas superestruturais e sistmicas que esto na origem dos problemas

    enfrentados por muitas comunidades perifricas, cujas resolues esto muito alm

    das reais possibilidades de interveno da arte. Em geral bem intencionado, o artista,

    ao intervir nesses ambientes sociais, acredita estar em posio de remediar esses

    infortnios [sociais], e de fornecer ao indivduo o capital social necessrio para uma

    vida civilizada.29

    Mary Jane Jacob e Michael Brenson, curadores da importante mostra Culture in Action,

    realizada em Chicago em 1993, deram alguns bons exemplos dos discursos messinicos

    de quem cr e prega o carter curativo da arte:

    No apenas estradas, pontes e edifcios necessitam agora ser con-

    sertados na Amrica; tambm as estradas e pontes entre as pessoas.

    Construir a infraestrutura humana e social a meta da arte baseada

    na comunidade.30

    Nos anos 90 o papel da arte pblica mudou daquele que promovia a

    renovao do ambiente fsico para aquele que aperfeioa a sociedade,

    da promoo da qualidade esttica para contribuir com a qualidade

    da vida, de uma posio de enriquecer vidas para salvar vidas.31

    Aps enfatizar as armadilhas espreita das boas intenes do artista quando, em co-

    laborao com as comunidades, prope servios simplrios nunca solicitados e que so

    28 Kester, jan.1995, p. 10.

    29 Idem, ibidem, p. 11.

    30 Brenson, 1995, p. 29.

    31 Jacob, 1995, p. 56.

  • 35

    amarrados em interaes frvolas, Stephen Wright aponta a possibilidade de uma ao

    mtua profcua fundada na diversidade complementar, na qual o artista traz para o

    processo de colaborao suas melhores habilidades, tais como o senso de autonomia

    individual altamente desenvolvido, enquanto os movimentos sociais das comunidades

    so altamente proficientes em termos de ao coletiva, na tentativa e expectativa de

    compor habilidades complementares, em que as inabilidades de um parceiro comple-

    mentam as habilidades do outro.32

    Essa tentativa de melhor distino entre competncias, habilidades e identidades

    tambm enfatizada por Hal Foster, quando analisa o novo papel do artista em seus

    processos de interao comunitria. Para Foster necessrio evitar a superidentificao

    com o outro, ao mesmo tempo em que a reflexividade pode levar ao hermetismo e at

    mesmo ao narcisismo, em que o outro obscurecido, e o eu, proclamado, e tambm

    pode conduzir a uma total negao de qualquer engajamento.33

    Foster pergunta tambm se essa distncia ainda desejvel ou mesmo possvel, para

    responder logo em seguida que provavelmente no, mas uma superidentificao re-

    dutiva com o outro igualmente indesejvel. Muito pior, entretanto, a aniquiladora

    desidentificao do outro.

    Diante dessas ponderaes que opem de um lado a excessiva identificao e de outro

    a total impermeabilidade reflexiva que nos distancia de qualquer possibilidade de en-

    tendimento do outro, acreditamos ser possvel encontrar um caminho que aponte para

    uma interao crtica, em que o artista procure efetiva interao com as comunidades,

    sem perder de vista, no entanto, sua prpria identidade de artista, tentando trazer para

    o processo de colaborao suas melhores habilidades e recebendo em troca competn-

    cias em territrios do saber que no foram por ele desenvolvidas. A viabilizao dessa

    interao crtica pode ser potencializada pelo prprio distanciamento sociocultural

    existente entre artista e comunidades, em geral mantidos apartados por interesses to

    distintos.

    De qualquer maneira, so muitos os riscos a rondar as prticas cotidianas do artista que,

    ao ser despejado de seu ateli-bolha-apartada-do-mundo, deixou para trs no apenas

    sua condio de isolamento, mas igualmente sua impermeabilidade s complexas redes

    de expectativas e projees que tentam instrumentalizar sua arte. Conforme observado

    por Miwon Kwon, esse artista itinerante (...) no mais um criador de objetos atado ao

    ateli, trabalhando agora essencialmente sob demanda,34 precisar de muita cautela

    e perspiccia para simplesmente no naufragar diante das iluses e armadilhas dos

    contextos conforme se lhe apresentam.

    Portanto, essa transposio do ateli para o mundo , por certo, conjuntura de mui-

    tos riscos. Enquanto os objetos de arte, criado pelos artistas a partir de seus atelis-

    O despejo do artista Luiz Srgio de Oliveira (pginas 24-37)

    32 Wright, nov. 2004, p. 535-537.

    33 Foster, 2005, p. 148.

    34 Idem, ibidem, p. 146.

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    -enclaves no mundo, circulavam por diferentes situaes e universos, abrigados pelas

    instituies de arte galerias, museus e colees , involucrados em sua autonomia,

    tanto uns quanto outros artistas e obras pareciam protegidos. Nessa nova situao,

    o artista e no mais a obra que se expe; que se expe aos riscos e s armadilhas da

    incompreenso, da superficialidade, da simplificao, da manipulao e do equvoco.

    Luiz Srgio de Oliveira (UFF, Niteri, Brasil) artista e professor-associado III do Depar-

    tamento de Arte e do Programa de Ps-Graduao em Cincia da Arte da UFF, do qual

    coordenador desde 2008; lder do Grupo de Pesquisa (CNPq) Arte e Democracia: produo

    e circulao da arte na contemporaneidade; doutor em Histria e Teoria da Arte pelo

    Programa de Ps-Graduao em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFRJ (2006),

    com tese sobre estudos crticos da produo e recepo da arte na esfera pblica; mestre

    em Arte pela New York University (1991) e graduado em Artes Visuais (pintura) da EBA/

    UFRJ (1978). Em 2005 atuou como pesquisador associado junto University of San Diego;

    Em 2009 organizou com Martha DAngelo o livro Walter Benjamin: arte e experincia (Nau

    Editora/Eduff). / [email protected]

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