EXPLÍCITOS ENGODOS
Desejo e erotismo na ausência do corpo
Murilo Scoz
Comunicação e Semiótica
PUC/SP
São Paulo
2006
ii
EXPLÍCITOS ENGODOS Desejo e erotismo na ausência do corpo Murilo Scoz
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica sob a orientação da Profa. Dra. Ana Claudia Mei Alves de Oliveira. Comunicação e Semiótica PUC/SP
São Paulo, Agosto de 2006
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BANCA EXAMINADORA
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Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou
parcial desta Dissertação por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.
Assinatura: _________________________________ Local e Data: ______________
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AGRADECIMENTOS
Aos meus colegas de mestrado, em especial Cláudia Garcia, Maria Adélia,
Cláudia Trevisan, Luciana Chen, Artur, Ecila, Ana Amélia, Martinho, Larissa, Edson,
Rafael, Paula, Val, que tornaram este trabalho uma tarefa conjunta.
À Yvana Fechine e Sandra Fischer, por terem me apontado o caminho.
À minha orientadora Ana Cláudia, pela paixão contagiante pela semiótica.
À professora Roti Nielba, que despertou em mim a curiosidade.
Ao professor Eric, pela disponibilidade e paciência.
À professora Norma, pela simpatia e pela simplicidade com que me atendeu.
Ao Diegão, Eric, Andrea, Yuri, Cida, Irene Machado, Edna, Gustavo e
Luciana, pela amizade e acolhimento na conturbada passagem por São Paulo.
À Gabriela Mager e Silvana Bernardes, pela confiança no meu trabalho.
À amiga Sandra Ramalho, pelo carinho, pelo apoio, pela generosidade e por
muito mais.
À minha família (os Scoz, os Xavier, os Stüpp e os Vieira), aos meus avós,
meus irmãos e cunhados, cujo apoio incondicional foi meu maior incentivo.
À Nanda, que sem saber nada sobre semiótica foi minha maior orientadora.
Aos meus pais, por acreditarem em mim, por não medirem esforços, por
sempre terem estado ao meu lado.
vii
O imperador Carlos Magno, já em avançada idade, apaixonou-se por uma
donzela alemã. Os barões da corte andavam muito preocupados vendo que o soberano,
entregue a uma paixão amorosa que o fazia esquecer sua dignidade real, negligenciava
os deveres do Império. Quando a jovem morreu subitamente, os dignitários respiraram
aliviados, mas por pouco tempo, pois o amor de Carlos Magno não morreu com ela. O
imperador mandou embalsamar o cadáver e transportá-lo para sua câmara recusando
separar-se dele. O arcebispo Turpino, apavorado com essa paixão macabra, suspeitou
que havia ali um sortilégio e quis examinar o cadáver. Oculto sob a língua da morta,
encontrou um anel com uma pedra preciosa. A partir do momento em que o anel passou
às mãos de Turpino, Carlos Magno apressou-se em mandar sepultar o cadáver e
transferiu seu amor para a pessoa do arcebispo. Turpino, para fugir àquela
embaraçosa situação, atirou o anel no lago Constança. Carlos Magno apaixonou-se
então pelo lago e nunca mais quis se afastar de suas margens.1
1 Barbey d’Aurevilly in Calvino, I., Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo,
Companhia das Letras, 1990.
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RESUMO
A presente pesquisa examina a construção do erotismo nas imagens
publicitárias que não figurativizam corpos e em que os enunciados não trazem uma
subjetividade autêntica. Configurada esta ausência, o enunciado, que ainda assim
constrói efeitos de sentido sexuais, parece fazê-lo através de elementos indiciais de um
simulacro ausente, de referências a elementos sexuais, ou por um simulacro desse
simulacro. Quando uma imagem publicitária presentifica um corpo autêntico (de uma
top model, por exemplo), a enunciação dá-se intersubjetivamente por um processo que
envolve a objetivação do sujeito da enunciação – o consumidor – mediante a ação
objetivante do sujeito do enunciado. Este processo acontece num circuito de
reconhecimento recíproco baseado na presença, e que passa por um regime de
erotização dos corpos apresentados. Nesta pesquisa, estuda-se a maneira através da qual
se dá a construção do simulacro do erótico na ausênc ia do corpo, e como a sintaxe do
discurso semantiza sexualmente as mercadorias. As hipóteses aqui levantadas tomam a
publicidade como uma linguagem dinâmica, que guarda referências concretas com
textos de outros sistemas, como os das artes cênicas, da pintura e da fotografia, mas
com especificidades retumbantes que caracterizam um campo de estudo singular. A
base epistemológica deste trabalho está na semiótica discursiva, e a bibliografia
fundamental que dá orientação à pesquisa tem origem na sociossemiótica, desenvolvida
por Eric Landowski, na psicologia da percepção, nas teorias sobre a comunicação de
massa, nos estudos em publicidade, e em outras perspectivas teóricas.
Para mostrar a construção do simulacro do erótico na ausência da figuração
do corpo, o presente estudo analisa fotografias publicitárias veiculadas em revistas de
circulação nacional e internacional. Os 110 anúncios selecionados permitiram
compreender a construção do erotismo na publicidade na ausência do corpo, ora através
de referências astuciosas à corporeidade, ora por construções arbitrárias de uma
sexualidade ausente. Esta variação na plausibilidade dos simulacros implica regimes de
interação diferenciados, tanto da ordem da junção quanto da união.
Palavras-chave: semiótica greimasiana, publicidade, erotismo, sintaxe da
união, enunciação.
ix
ABSTRACT
The present research examines the construction of the erotic message in
advertising images which do not show bodies and do not bring an authentic subjectivity.
If an absence is configured, the image, that still has sexual effects, seems to do it
through clues of an absent simulacrum, through references to sexual elements, or
through a simulated simulacrum. When there’s an authentic body on the image (a top
model, for instance), enunciation works between subjects through a process that implies
the enunciation subject – the consumer – as the enunciate subject’s object. This
recognition process is reciprocal and based on presence, depending on the erotic values
of the presented bodies. This research investigates the construction of erotic simulacrum
when there’s no body, and how speech syntax applies sexual connotation to products.
The hypotheses pointed in this study take advertising as a dynamic language, with
substantial references from other systems, like scenic arts, painting and photography,
although with major specificities that configure a unique theme. The epistemological
base of this work is the discursive semiotics, and its fundamental bibliography comes
from social semiotics, developed by E. Landowski, psychology of perception, mass
communication theories, advertisement researches, and others theoretical perspectives.
In order to show how the erotic simulacrum is built without the figuration of
the body, this study analyses ad pictures from national and international magazines. The
110 selected ads allowed a comprehension of the eroticism construction in
advertisement when the body is omitted, through clever references to corporeity, or
through arbitrary constructions of an absent sexuality. This variation in the believability
of simulacra implies differentiated interaction regimes, junction as much as union.
Key-words: discursive semiotics, advertising, eroticism, union syntax,
enunciation.
SUMÁRIO
1 PRELIMINARES: O corpo suprimido .................................................................................... 2
2 A AUSÊNCIA SIGNIFICANTE.............................................................................................. 11
2.1 A semiótica como episteme para a visualidade ................................................ 11
2.2 Percepção e Sintaxe da Linguagem Visual ....................................................... 14
2.3 Anúncios, enunciados e enunciação .................................................................. 16
2.4 Semiotizando o desejo......................................................................................... 21
2.4.1 Olhar e ser olhado ........................................................................................ 25
2.5 Intersubjetividades ............................................................................................. 29
O corpo objeto ....................................................................................................... 29
O corpo sujeito ...................................................................................................... 30
3 DE SIMULACROS DE PRESENÇA À ASÊNCIA ERÓTICA......................................................... 33
3.1 Insinuações e iniciativas ..................................................................................... 33
3.2 Simulacros de presença ...................................................................................... 38
3.3 O sex appeal do inorgânico................................................................................. 55
3.4 O erotismo e a corporeidade .............................................................................. 63
4 CONSUMAÇÃO DO (HI)ATO............................................................................................... 90
BIBLIOGRAFIA................................................................................................................... 95
Sites Consultados.............................................................................................................. 98
2
1 PRELIMINARES: O corpo suprimido
Sexo causa gente.
(Millor Fernandes)
A publicidade, indústria de simulacros2 extremamente dinâmica, em
consonância com as transformações do meio social em que se insere, há muito se
libertou da necessidade de uma argumentação racional em consonância com a lógica
utilitária daquilo a que se refere, produtos que busca vender, ou, colocando de uma
maneira mais tácita e cautelosa, apresentar. De fato, a publicidade pode – ou mesmo
assume que deve – levar ao incremento da demanda de um dado produto, mas a medida
de seu sucesso não pode encontrar-se associada meramente aos demonstrativos
estatísticos das vendas capitalizadas. A publicidade não somente aguça os sentidos dos
consumidores para os produtos, como ajuda a formular o simulacro do produto que é
percebido, e, em última análise, a redefinir aquilo mesmo que se toma como o papel do
indivíduo na sociedade. Os efeitos de sentido que é capaz de criar são concebidos num
discurso que se formaliza de maneira oscilatória, ora mais informativo, ora mais lúdico.
Através deste comportamento pendular, a publicidade reforça estereótipos, ratifica
valores, recupera arquétipos, ressalta, exagera, sublinha, atenua e, sobretudo e em
última instância, diz. Entre controvérsias e contratos, a publicidade está, como sempre
esteve, buscando novas e mais incisivas formas de fazer-se ouvir. Sendo assim, a venda
propriamente dita de um determinado produto, resultado dos efeitos persuasivos do
enunciado publicitário, não é ela que encerra em si a razão de ser da publicidade. Em
outras palavras, pode-se dizer que levar o consumidor a comprar é uma das muitas
conseqüências do anúncio publicitário; sob o delicado véu deste “compre”, “beba”,
“consuma”, observa-se, aquém e além dos enunciados, uma profusão de efeitos de
sentido que transcendem este determinismo da lógica mercadológica. Lógica esta que,
2 Na abertura de Da imperfeição, Greimas lembra seu leitor das refrações da linguagem. Se o parecer é, de fato, imperfeito, muito se deve aos filtros na leitura 2. Partir deste pressuposto é admitir que o ser é a categoria intangível por natureza, sempre além, sempre alhures, sempre à sombra de um parecer e de seus desvios. O que se alcança, o que é minimamente tangível, configura o simulacro , cujas implicações semânticas perfazem o objeto de estudo da semiótica. Este parecer, esta face postiça e diáfana a pairar diante dos olhos, é a soma dos aspectos sempre aquém da totalidade, que mantém o semioticista alerta das coerções dos sistemas de representação.
3
arbitrariamente, a partir de um olhar menos ponderado – e portanto e em certo sentido,
mais crítico – é recorrentemente retratada como impositiva e totalitária. Para Lipovetsky
(2004), esse discurso apocalíptico da crítica contemporânea à publicidade e às
ferramentas persuasivas do marketing (de guerrilha ou não, pouco importa) é
sintomático de um ufanismo que, ressentido no fracasso dos movimentos anti-
capitalistas, ignora inocentemente os limites da persuasão. Segundo o autor, é a própria
predisposição do indivíduo para ser seduzido que determina de maneira peremptória a
dimensão dos efeitos persuasivos dos argumentos publicitários. Efeitos proporcionais à
suscetibilidade, sedução proporcional à “libido”.
Deve-se observar, contudo, logo após esta argumentação preliminar, algo
que parece bastante claro – e que curiosamente, com grande recorrência, é deixado de
lado nas análises da linguagem publicitária – que diz respeito ao fenômeno em si da
interação entre os anúncios publicitários e os consumidores (fenômeno este sobre o qual
se debruça a presente pesquisa): o pressuposto comunicacional da troca, do qual a
publicidade não pode, de maneira alguma, prescindir. É necessária a existência de um
enunciador, de um enunciado e de um sujeito em condição de ser interpelado –
constatação um tanto evidente e inócua, porém apresentada a título de ilustração da
situação que se pretende estudar. Em outras palavras, é pré-requisito fundamental que as
partes estejam presentes, ou melhor, façam-se presentes. Por ser comunicação, a
publicidade engendra, no ato da interação com o consumidor, uma relação que responde
aos regimes da articulação dos estados de presença descritos por Landowski3. Nesta
perspectiva, no “confronto” com um anúncio publicitário, identidade e alteridade regem
a interação. Na enunciação que se faz realizada, cada indivíduo assume seu papel. Isto é
o que permite que sujeito da enunciação e sujeito do enunciado reconheçam-se
reciprocamente. Entretanto, este regime de presenças reciprocamente percebidas leva a
uma questão estrutural, que é a definição do lugar do produto anunciado neste diálogo
estabelecido entre sujeitos. Pode-se concluir que, a rigor, os anúncios publicitários, do
tipo que aqui são estudados, não podem tornar presente o produto em si. Pelo contrário,
ao perceber a inviabilidade de tal presentificação, valem-se de sua ausência no
enunciado para reconfigurá- lo semanticamente no processo da enunciação. A
publicidade, então, figura um sujeito dentro do enunciado que supostamente
experimenta o produto. Esta encenação é a própria mediatização da apreensão pelo
3 E. Landowski. Presenças do outro . São Paulo: Perspectiva, 2002.
4
consumidor do poder dos objetos encenados. Retomando Lipovetsky, longe do culto da
objetividade das coisas.
Ao se apropriar desse efeito imediato do produto sobre o sujeito do
enunciado, a publicidade pode interpelar seu destinatário da maneira que lhe é mais
conveniente. É freqüente a encenação de situações em que modelos aparecem possuídas
pelas sensações despertadas pelo produto – seja um perfume, um vestido ou uma jóia –
pois é esperado que a reação do destinatário seja de um arrebatamento proporcional. A
publicidade pressupõe interação, e neste sentido, o sujeito da enunciação (um “eu”),
quando apresentado a um anúncio publicitário onde figura um segundo sujeito (o do
enunciado, um “tu”), reconhece sua própria presença. Em tal situação, ao observar um
anúncio, o consumidor objetiva a si mesmo, tornando-se então sujeito-objeto da
enunciação. Nestes termos, o anúncio encerra um diálogo manifestado num circuito
sobre o qual o consumidor percebe a si mesmo ao reconhecer-se no simulacro
apresentado. Tendo-se notado a si mesmo, o sujeito do enunciado agora interage com o
sujeito da enunciação, ambos objetivados pelo olhar do outro, ambos presentificados
pela imagem apresentada, pelo anúncio em questão. O contato visual, ou seja, o
momento inicial do reconhecimento da presença do outro é o pressuposto inicial4. Se a
encenação presenciada traz a figurativização de “sujeitos possuídos”, este é o simulacro.
Assim se vê o sujeito da enunciação: possuído pelo produto, seduzido pela imagem.
A impregnação – declarada ou dissimulada – de peças publicitárias visuais
com elementos gráficos que despertam efeitos de sentido de natureza sexual é
recorrentemente verificável. Seja na TV, nos outdoors, nas revistas ou nos jornais,
referenciar o erótico é praxe, e tal constatação sugere que a indústria publicitária parece
crer na efetividade desta prática. A psicanálise problematizaria de forma bem mais
sistemática esta questão, mas parece razoavelmente seguro inferir que a temática sexual
é assunto que interessa à maior parte da população. Sendo assim, e somando-se à
questão os preceitos católicos, os cânones morais e os estigmas culturais aqui
implicados, não seria de se esperar que a expressão da sexualidade na publicidade e a
erotização das imagens passassem à revelia de olhares indiferentes e desinteressados.
Na realidade, o mais crível é o contrário. É culturalmente problemático abordar a
temática sexual: sexo é profano, subversor, vulgar. A censura tácita da cultura sobre o
profano tem efeito proibitivo. Falar de sexo – ou melhor, através do sexo – é sussurrar
4 E. Landowski. Presenças do outro . São Paulo: Perspectiva, 2002.
5
lascivamente ao interlocutor: “não escute o que direi se não estiver preparado para um
pouco de rubor!”.
A recorrência do sexo no discurso publicitário é ponto pacífico. Roupas,
cosméticos, jóias, automóveis, eletrodomésticos, computadores, chocolates, sorvetes e
até pães são passíveis de erotização. Nestes termos (e esta já é uma hipótese bastante
atraente), a publicidade realiza esta operação discursiva de produção enunciativa de
sentidos por entender que o uso de erotismo nos anúncios traz vantagens efetivas, seja
pela possibilidade de conferir ao produto de que se fala um valor lúdico, uma
sensualidade, um sex appeal que transcende seu fim pragmático, seja pelo interesse
pulsional que desperta em seu interlocutor.
O mecanismo persuasivo que se estabelece no uso de tal recurso para
veicular um dado produto pode ter o intuito de instigar seu destinatário – o consumidor
– a manifestar um tipo de comportamento fetichista de consumo, instintivo e impulsivo,
pois tal produto se apresenta como um desiderato. Refém servil de sua castração
simbólica, de sua falta constitutiva, o consumidor consome. E o consumo, a aquisição
de um produto “sexualmente enriquecido”, ofereceria ao indivíduo a possibilidade de
explorar uma nova sensação de satisfação e saciedade, de natureza similar a sexual. É
uma nova necessidade fisiológica, tão nova quanto primária, na medida em que já não
pode ser atendida objetivamente, senão pela subjetivação do produto em si, simulacro
daquilo que falta, daquilo que completa, e que é da ordem do gozo. Seria, por
conseguinte, inalcançável?
Como foi colocado, o erótico está presente em anúncios de produtos de
naturezas diversas; por adequação a cada tipo de produto anunciado, este erótico,
tomado aqui como a colocação da relação interactancial no plano do “desejo”, é
construído de maneiras diferentes. Nos termos apontados por Landowski, na
publicidade, a figurativização de um “outro” entregue aos prazeres da experiência
sexual coloca o espectador-consumidor em “flagrante delito de indiscrição”5, processo
anteriormente descrito, e que será retomado de maneira mais aprofundada nos capítulos
seguintes. O “flerte” assim simulado é a evidência do erótico.
Entretanto, a este mesmo espectador pulsional, dirigem-se também
enunciados construídos no apagar da intersubjetividade. Certos anúncios, mesmo na
5 E. Landowski. op-cit, p. 151.
6
ausência total de qualquer fragmento de um corpo, ou de vestígios que sugeririam sua
presença, fazem referência, seja figurativa ou temática, a efeitos de sentido eróticos.
Esta construção “não humana” de certos simulacros pode estar diretamente ligada à
capacidade humana de transferência e de abstração, entretanto não se resolve somente à
luz da teoria psicanalítica. Tanto presença quanto ausência expõem efeitos de sentido,
comunicam, significam. Contudo, em certos casos, como os estudados a seguir,
ausência e presença dobram-se uma em direção à outra, rompendo a contrariedade
fundamental e dando origem a antíteses discursivas extremamente sofisticadas.
Falamos, agora, de simulacros de presença, ent re os quais observamos aqueles em que
através da figuratividade busca-se remeter justamente a uma presença de fato.
Esta expressão da sexualidade é tema bastante problemático, gerador de
controvérsias e desencontro de opiniões, o que por si traz bastante relevância à
investigação de tais questões. No Brasil, tendo em vista a multiplicidade cultural, a
diversidade de religiões e credos, as características sócio-geográficas do país, bem como
a singular formação multi-étnica de sua população (combinação de ma trizes européias,
africanas, americanas...), a sexualidade e suas manifestações são, curiosamente, reféns
de coerções moralistas bastante pronunciadas, mas sistematicamente questionadas.
Pode-se observar uma grande preocupação com a aparência física, um culto exacerbado
ao corpo e ao “parecer”, em detrimento do “ser”, que se manifesta na maneira de se
vestir, no modo de dançar, no comportamento em grupo, nos rituais festivos (como as
grandes festas populares)... Numa pesquisa do Royal College of Physicians da
Inglaterra, publicada em 2000 pelo Atlas Penguin do Comportamento Sexual Humano,
revela-se que os brasileiros têm relações sexuais com maior freqüência, mais duração e
com maior diversidade de parceiros que os amantes de outros países. Esta efervescência
libidinal aparece nas manifestações culturais, como o carnaval, nas telenovelas, no
cinema brasileiro, na literatura, na legislação e, como não poderia deixar de ser, na
publicidade. De carros a dentifrícios, são inúmeros os produtos que se vêem vinculados
ao sexo em anúncios publicitários.
A exploração do sexo na propaganda, entretanto, não é restrita à terra do
carnaval. No livro Sexo & Marketing, o professor Marcos Cobra, da Fundação Getúlio
Vargas, ironiza que o primeiro gesto de marketing partiu da serpente de Adão e Eva 6, e
que desde então a publicidade tem explorado de maneira crescente e sistemática o
6 M. Cobra. Sexo & Marketing. São Paulo: Cobra, 2002.
7
erotismo e a sexualidade. Para o autor, é difícil dissociar desejo, publicidade e consumo,
pois se a publicidade mediatiza, de alguma forma, a realidade do cotidiano da sociedade
– e isso parece pressuposto do próprio mecanismo publicitário, no sentido de garantir
sua efetividade – não há como deixar de lado a temática da sexualidade.
Entretanto, como instrumento discursivo de persuasão e conquista, o sexo é
causa recorrente de controvérsia, para começar, por sua eficácia. Nos Estados Unidos,
um estudo realizado pela Universidade de Iowa, questiona a eficácia da propaganda
com recursos eróticos ou violentos. A pesquisa, divulgada em 2004, no Journal of
Applied Psychology, comparou a fixação de marcas através de anúncios televisivos. Os
entrevistados (324 homens e mulheres, de 18 a 54 anos) foram distribuídos em três
grupos e expostos, respectivamente, a comerciais com teor sexual, violento ou neutro.
Cada grupo assistiu a nove anúncios de produtos como refrigerantes, salgadinhos e
sabão em pó. O que a pesquisa constatou foi que, apesar dos participantes lembrarem
vivazmente dos anúncios que exploravam a questão sexual logo imediatamente após a
exibição dos filmes, no dia seguinte, contudo estas marcas são menos lembradas que as
exibidas em anúncios considerados neutros. A conclusão dos responsáveis pelo estudo,
Brad Bushman e Angelica Bonacci, foi que sexo e violência podem atrair mais
audiência, mas desviam a atenção da marca anunciada7.
O estudo é recente, mas bastante relevante. Isto porque os efeitos de sentido
que sugerem sexo na publicidade e a erotização de produtos de diferentes naturezas
parecem lugar comum na agenda do mercado. Em quase todos os suportes, seja nos
veículos impresso, na televisão ou nas ondas do rádio, o discurso publicitário recorre de
forma insistente à temática sexual para dar seu recado. Na impossibilidade de fazer o
sujeito sentir o produto, a publicidade simula sua experimentação, e neste simulacro do
uso se percebe, com enorme freqüência, o erótico manifestando-se. Ao apresentar, por
exemplo, um modelo (sujeito do enunciado), utilizando um produto, sendo apreendido
pelo seu uso, possuído por qualidades inomináveis, absorto num mar de sensações
arrebatadoras, a publicidade lança mão de um expediente que é da ordem do sensível,
em que a apreensão dos sentidos não se dá apenas cognitivamente. Em outras palavras,
uma dimensão estésica está implicada, um sentir o estado do outro, de forma imediata e
recíproca, segundo o regime do ajustamento8. Nestas encenações, percebe-se de maneira
7 Revista Amanhã: Especial: Sexo vende? em http://amanha.terra.com.br/edicoes/193/2especial.asp 8 E. Landowski. Passion son nom. Paris, PUF, 2004.
8
recursiva o sentido de intimidade que marca o anúncio de certos produtos, o que faz
necessária uma atenção à dimensão sensível dos enunciados, buscando dar conta destes
efeitos de erotismo.
A fotografia publicitária não se encerra em si mesmo. Subentende um
momento amplo – um antes e um depois, além do “durante” congelado – e uma
encadeação semântica com outras imagens publicitárias que, como coloca Landowski,
parecem se pensar entre si, remetendo umas às outras. Este paralelismo sugere que cada
imagem publicitária assume o papel de promessa de uma outra, “ainda ausente, mas já
configurável”9. O universo dinâmico de signos, que leva à resignificação dos produtos,
configura o modus operandi da publicidade, e a concatenação entre diferentes anúncios
resulta numa espécie de cadeia de mitos que perfazem o fazer publicitário. Esta
iconografia acompanha a própria estrutura do imaginário, através da discursivização
repetitiva de estereótipos como o do amante vigoroso, do idoso experiente ou do
esportista jovial. Esta concordância temática, que em última análise euforiza valores
como a juventude, a sabedoria, a família, toma a questão da desejabilidade e da
conquista de forma não menos recorrente. É evidente que a temática sexual fala de um
consumidor suscetível ao erotismo, ou seja, “interessado” em tais valores. Entretanto, o
que há de inusitado nesta erotização disseminada dos enunciados publicitários é o papel
narrativo dos próprios produtos, que são agora objetos a se desejar. A conjunção
oferecida, prometida pela publicidade, não é mais somente da ordem do objeto modal
que qualifica o enunciatário à realização de uma performance. É o fim em si, o próprio
objeto de valor. Sua falta implica uma ausência somaticamente manifestada, um desejo
frustrado, pulsional, e esta é a prerrogativa que caracteriza o apelo sexual da
publicidade.
Conforme coloca Landowski, as encenações publicitárias muitas vezes
trazem o simulacro do “corpo desejante”, ou seja, do corpo dado a ver expondo sua
subjetividade. Esta subjetividade convoca o sujeito da enunciação, ou seja, o
consumidor, a também presentificar-se, pois agora se coloca diante de um actante
sujeito numa interação recíproca. Entretanto, a ausência de tal simulacro, justamente o
interesse desta pesquisa, não parece criar obstáculo à tematização erótica na
publicidade. Pelo contrário, encontramos diferentes formas de enunciado elaboradas no
sentido de dar visibilidade aos atributos “desejáveis” que o produto pode apresentar por
9 E. Landowski. Presenças do outro . São Paulo: Perspectiva, 2002.
9
si só, e que, portanto, seriam da ordem do sexual. Desta forma, esta investigação
pergunta como é viabilizada esta temática do erotismo na ausência do corpo? Sendo o
próprio produto colocado, em certos casos, como articulador da reciprocidade erótica de
que falávamos, ou seja, na condição de simulacro de um “sujeito desejante”, de que tipo
de intersubjetividade estamos tratando? Em outra perspectiva, aquela temática erótica
de que se apropria a publicidade seria um apanhado de impropérios metalingüísticos,
cabendo um sentido de legitimidade somente àquele sentido erótico de que falávamos,
dependente de fato da intersubjetividade? Ou o próprio objeto anunciado estaria por fim
viabilizando um desejo erótico? Apostando que a construção do erotismo neste tipo de
anúncios publicitários de corpos ausentes estaria vinculada a um processo de
resignificação do produto, quais os mecanismos que garantiriam estes atributos sexuais?
Neste sentido, investigamos os mecanismos semióticos deste sentido erótico na ausência
do simulacro do corpo que, em termos contratuais, pretende produzir efeitos de sentido
de parecer tão autêntico quanto na presença do mesmo. Para tanto, faz-se inicialmente
necessário adotar uma única acepção para os termos desejo e erotismo, repetidamente
empregados neste estudo, e a partir dos quais a problemática é investigada. Somente
desta forma poderemos contornar os inconvenientes da abrangência destes termos,
cuidado que concomitantemente permite às imagens do corpus guardarem entre si uma
coerência temática mais rigorosa.
As hipóteses apresentadas demandam uma abordagem analítica da
construção do simulacro do erótico na ausência do corpo, bem como da sintaxe do
discurso que semantiza sexualmente as mercadorias. Neste âmbito, cabe também
problematizar: quais os regimes de erotismo vigentes na publicidade? Quais os tipos de
ausência de que falamos? Ainda falamos de erotismo e de sentido sentido na ausência
do corpo, tal como define Landowski? Que efeitos de sentido são gerados a partir destas
estratégias? Quais os vestígios de presença do corpo que dão origem ao erótico no
enunciado? Como somos levados a interagir com tais simulacros e como o sujeito da
enunciação se presentifica na ausência do sujeito do enunciado?
A fotografia publicitária como corpus
O presente trabalho põe à prova um modelo semiótico de análise em
anúncios veiculados em revistas de circulação nacional e internacional, para investigar
os mecanismos de construção do simulacro erótico na ausência da figuração do corpo.
10
Entender o fenômeno da enunciação publicitária passa por um processo complexo de
análise de produção de sentido, resultante da relação dialética entre enunciador e
enunciatário, e seus múltiplos desdobramentos. Nestes termos, avaliar as
especificidades da retórica publicitária num recorte reduzido, mas ainda assim
representativo enquanto corpus, requer um aprofundamento efetivo das noções de
simulacro envolvidas, bem como um rigor metodológico que, para muito além do
determinismo superficial da análise do discurso, dê conta das diversas camadas
interpostas entre (e além das) partes envolvidas. A semiótica greimasiana e, sobretudo
os notáveis avanços no campo do discurso publicitário desenvolvidos por Jean-Marie
Floch e Eric Landowski, reforçam a tese de que o anúncio, assim como toda forma de
enunciação, é um processo de produção de sentido que ganha vulto e relevância no
contato interativo entre as partes envolvidas, e buscar dar conta de tal relação pressupõe
tratar tanto de sua dimensão cognitiva quanto dos aspectos sensíveis implicados.
Para o presente estudo, foram selecionadas cerca de 110 imagens obtidas em
revistas de circulação nacional e internacional, que apesar de atenderem tanto ao
público feminino quanto ao masculino, poderiam ser classificadas como “revistas de
variedades”. Foram elas: Vogue, Cosmopolitan, Elle, Esquire, GQ, TPM, Trip, Arena,
Vizoo, Máxima, Marie Claire, Playboy e Vip, entre os anos de 2003 e 2006. A seleção
dos anúncios baseou-se em dois critérios: em primeiro lugar, os anúncios deveriam ser
veiculados em mídia impressa e, em segundo, fazer algum tipo de referência à
sexualidade na ausência de corpos, seja através da figuratividade, da tematização, ou
mesmo somente através do enunciado verbal. Como era necessário reunir um número
significativo de anúncios, e como estas duas condições inviabilizavam fechar o corpus
numa única publicação (ou Vogue ou Marie Claire, por exemplo) pela maior
prevalência verificada de imagens eróticas que lançam mão de corpos autênticos, fez-se
necessária esta busca transversal entre diferentes publicações, o que poderia caracterizar
um arrefecimento do rigor metodológico. Entretanto, são as recorrências identificadas
entre os anúncios analisados que ratificam a metodologia empregada e apontam para
uma sintaxe do erotismo comum ao heterogêneo grupo de publicações adotado.
11
2 A AUSÊNCIA SIGNIFICANTE
Todo parecer é imperfeito: oculta o ser; é a partir dele que se constroem um querer-ser e um dever-ser, o que já é um desvio do sentido. Somente o parecer, enquanto o que pode ser – a possibilidade –, é, vivível. Dito isso, o parecer constitui, apesar de tudo, nossa condição humana. É ele então manejável, perfectível? E, no final das contas, esta veladura de fumaça pode dissipar-se um pouco e entreabrir-se sobre a vida ou a morte – que importa?
(A. J. Greimas)
2.1 A semiótica como episteme para a visualidade
Estudar a visualidade, sob a perspectiva de um olhar semiotizante, é, para
todos os efeitos, buscar dar conta da experiência sensorial despertada pelos textos
visuais, em todas as suas dimensões. Contudo, quando se aplica o termo visualidade,
fazendo referência a um campo de estudo propriamente dito – que comporte todo tipo
de texto visual – pressupõe-se uma homogeneidade transversal intrínseca que é
referente a todo tipo de objeto imagético. Uma perspectiva como essa pode soar
demasiadamente constritora, ao propor sistematização a objetos tão díspares, na
contramão de suas especificidades singularizantes. Contudo, ainda assim, nos
colocamos a examinar a visualidade a partir de tal olhar semiotizante, por assumirmos o
partido de uma sintaxe fundamental. Uma perspectiva que rompesse com este
pressuposto sintático tangenciaria levianamente as imposições da cognição humana.
Todo o “produzir sentido” tem um compromisso fundamental com a linguagem. Em
outras palavras, as especificidades da linguagem utilizada são sobredeterminantes do
alcance da manifestação criativa, seja ela visual, verbal ou sincrética. A linguagem é
imperativa e irrefutável. Os sistemas lingüísticos, as categorias semânticas, os arranjos
estruturais, os princípios estilísticos, bem como as combinações sintagmáticas possíveis,
dão medida à dimensão sintática que nenhuma linguagem pode preterir. Do pressuposto
saussereano da sintaxe lingüística, tomado no contexto dos enunciados publicitários,
parte o arrazoado geral desta pesquisa.
Contudo, a dimensão sintática da linguagem visual do objeto aqui estudado é
o alicerce metodológico desta análise, não sua finalidade propriamente dita. Fosse esse
12
o escopo adotado, certamente não se daria conta das emanações do objeto, no caso, a
fotografia publicitária, enquanto um todo de sentido. Estaríamos, ao contrário, propondo
um ponto de vista torto e mambembe, cujos apontamentos tergiversariam
reticentemente aquém de tantos outros efeitos de sentido deixados de lado.
Para concatenar, ao longo dos meandros peculiares da fotografia publicitária,
as reiterações que dão significado a cada imagem, o modelo de análise que o presente
estudo utiliza é o da semiótica discursiva.
Existem diversas correntes semióticas com aplicabilidade no estudo do
universo imagético da publicidade. A rigor, ao tratar de semiótica, devem-se ter em
vista as diferentes abordagens metodológicas implicadas, desdobramentos diversos que
não necessariamente apontam para a mesma origem. Contudo, em traços gerais, a teoria
semiótica não se coloca epistemologicamente como ciência em si, mas como uma
disciplina com rigor científico. E esta diretriz geral é característica da semiótica
discursiva, de origem francesa, desenvolvida a partir dos estudos de Algirdas Julien
Greimas e de seu grupo de colaboradores.
A semiótica discursiva utiliza um modelo metodológico de análise que se
fundamenta na fenomenologia, na antropologia cultural e na lingüística estrutural. Desta
última, e este aspecto é assaz determinante, a semiótica empresta noções fundamentais
que balizam as análises dos diferentes tipos de “texto”. Segundo argumenta Barros,
texto é um todo de sentido obtido através da articulação dos elementos constituintes
mínimos, segundo regras combinatórias que os põem em relação. Portanto, o sentido de
um texto é dado pelo resultado das “relações” que estes elementos mínimos estabelecem
entre si, e não somente pelo seu “somatório”. São estes arranjos combinatórios, estes
procedimentos relacionais que articulam e organizam a sua manifestação. Em outras
palavras, o todo é mais que a soma das partes10. Nos textos visuais, como é o caso
específico da fotografia publicitária, esta dimensão da expressão é um fértil terreno para
a investigação da semiótica. De fato, as pesquisas no campo da visualidade tensionaram
a disciplina no caminho de um fazer semiótico sobre os enunciados visuais e, sobretudo
através dos esforços valiosos de Jean-Marie Floch e Felix Thulermann, propiciaram a
edificação de uma semiótica plástica. Sobre o assunto, esclarece Oliveira
10 D. L. P. de Barros, Teoria semiótica do texto. São Paulo, Editora Ática, 1990, p. 7.
13
Considerando que um texto visual, qualquer que esse seja: arquitetura,
escultura, paisagem natural ou pintada, desenhada, gravada, fotografia, é
construído por um arranjo específico de sua plástica, organizada por
mecanismos estruturais particulares de seu sistema com as suas regras,
resultando em uma dada sintagmatização das unidades mínimas; optamos
por denominar plástica a semiótica que se ocupa da descrição do arranjo da
expressão de todo e qualquer texto visual. Trata-se, portanto, de uma
semiótica de caráter geral do ponto de vista de seus fundamentos teóricos e
de seus procedimentos metodológicos.11
A dimensão plástica dos textos visuais erige-se a partir da articulação dos
formantes, as menores unidades da expressão12, por meio de procedimentos relacionais.
O formante pode ser de várias ordens, e sua participação na constituição do plano da
expressão deve ser examinada na articulação com o plano do conteúdo. Tal dicotomia
estabelecida por Ferdinand Saussurre é fundamental na análise de todo e qualquer texto.
Cada um destes dois planos designa “separadamente os dois termos da dicotomia
significante/significado ou expressão/conteúdo que a função semiótica reúne”13, e
guardam entre si relação de pressuposição recíproca. Não existe expressão sem
conteúdo, nem conteúdo sem expressão.
No trajeto da análise, em busca dos efeitos de sentido a apreender, são
verificados traços, elementos, manifestações visuais que são recorrentes e se articulam
no plano da expressão. Estas recorrências ao longo do texto são indicativas das seleções
adotadas pelo enunciador, revelando os procedimentos de concretização do conteúdo
pela matéria significante. As recorrências da expressão, que são também recorrências do
conteúdo, sugerem as isotopias que organizam os eixos semânticos do discurso. Em um
dado texto, isotopias são as reiterações de “quaisquer unidades semânticas (repetição de
temas ou recorrência de figuras) no discurso, o que assegura sua linha sintagmática e
sua coerência semântica” 14. As isotopias garantem a homogeneidade semântica dos
11 A. C. de Oliveira, Semiótica Plástica. São Paulo, Hacker Editores, 2004, p. 12. 14 A. J. Greimas, “Semiótica figurativa e semiótica plástica”. in Significação: revista brasileira de semiótica, n.4, junho de 1984, p.18-46. 13 A. J. Greimas e J. Courtés, Dicionário de Semiótica. Trad. A. D. Lima. São Paulo, Cultrix, s.d., p. 336. 14 D. L. P. de Barros, Teoria semiótica do texto. São Paulo, Editora Ática, 1990, p. 87.
14
textos enunciados, pelas operações que deixam no seu traçado o percurso da
significação15 até o desvelar de seu conteúdo.
2.2 Percepção e Sintaxe da Linguagem Visual
Empreender um estudo acerca da produção de sentidos na fotografia
publicitária é, em primeiro lugar, buscar dar conta de sua sintaxe própria. Os estudos
sobre a linguagem visual fornecem fundamentos teóricos indispensáveis para tal tarefa.
No vórtice deste empreendimento teórico da visualidade, Arnheim, atribuindo ao fazer
perceptivo uma determinante fenomenológica bastante pungente, opõe-se à idéia de
percepção enquanto uma operação intelectiva. Em seus estudos sobre a linguagem
visual, sustenta um ponto de vista menos determinista do “ver”. Segundo o autor:
(...) somos forçados a admitir que a percepção consiste na formação de
“conceitos perceptivos”. Conforme os padrões tradicionais esta terminologia
é incômoda, porque se supõe que os sentidos se limitam ao concreto
enquanto os conceitos tratam do abstrato. (...) A visão atua no material bruto
da experiência criando um esquema correlato de formas gerais, que são
aplicáveis não somente a um caso individual concreto, mas a um número
indeterminado de outros casos semelhantes também. 16
Essa noção do fenômeno da visão leva a abordar a visualidade a partir de
uma gramática do ver, a qual todo texto imagético está atrelado. Segundo Arnheim, o
ver está ligado inextricavelmente a uma busca por sentidos naquilo que é visto:
O pensamento psicológico recente nos encoraja então a considerar a visão
uma atividade criadora da mente humana. A percepção realiza ao nível
sensório o que no domínio do raciocínio se conhece como entendimento. O
ato de ver de todo homem antecipa de um modo modesto a capacidade, tão
15 C. Regina Garcia, Estudos semióticos das lingeries na construção dos regimes de visibilidade da mulher brasileira. Dissertação de mestrado. Orientação Prof. Drª. Ana Claudia de Oliveira. Comunicação e Semiótica, PUC-SP, 2005. 16 R. Arnheim. Arte e Percepção Visual: Uma Psicologia da Visão Criadora . Trad. de Ivonne Terezinha de Faria. São Paulo: Enio Matheus Guazzelli, 1994, p. 39.
15
admirada no artista, de produzir padrões que validamente interpretam a
experiência por meio da forma organizada. O ver é compreender. 17
A partir desta descrição cognitiva do ver como processo subjetivo e
espontâneo, podemos elencar os desdobramentos teóricos de Dondis sobre o
alfabetismo visual18, além das contribuições de Aumont19 acerca dos mecanismos do
ver, no intuito de cristalizar aquilo que definimos como sintaxe da linguagem visual.
Para Dondis, os elementos básicos da comunicação visual são as unidades
morfológicas de um texto imagético, pois
Sempre que alguma coisa é projetada e feita, esboçada e pintada, desenhada,
rabiscada, construída, esculpida ou gesticulada, a substância visual da obra é
composta a partir de uma lista básica de elementos. Não se devem confundir
os elementos visuais com os materiais ou o meio de expressão, a madeira ou
a argila, a tinta ou o filme. Os elementos visuais constituem a substância
básica daquilo que vemos, e seu número é reduzido: o ponto, a linha, a
forma, a direção, o tom, a cor, a textura, a dimensão, a escala e o
movimento. Por poucos que sejam, são a matéria-prima de toda informação
visual em termos de opção e combinações seletivas.20
Em última análise, o emprego de técnicas combinatórias é o que possibilita a
expressão visual do conteúdo. A técnica fundamental é o contraste, por ser a “força que
torna as estratégias compositivas mais visíveis” 21. Elas podem ser organizadas em pares
opostos, de acordo com suas complementaridades num eixo semântico, por exemplo,
equilíbrio e instabilidade. Segundo Dondis, o contraste é a técnica visual mais dinâmica,
que se manifestaria numa relação de polaridade com a técnica oposta, a harmonia. O
equilíbrio seria, depois do contraste, o princípio mais importante das técnicas visuais.
Essa importância está relacionada ao mecanismo de funcionamento da percepção
humana, e na grande necessidade de sua presença. Pode ser definido como uma
estratégia em que existe um centro de suspensão num ponto eqüidistante de dois pesos.
17 Ibidem, p. 39. 18 D. Dondis A. Sintaxe da linguagem visual. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 19 J. Aumont. A Imagem. Trad. de Estela dos Santos Abreu e Cláudio César Santoro. Campinas: Papirus, 1993 20 D. Dondis. Op cit.p. 51. 21 Ibidem, p. 137.
16
A instabilidade manifesta o oposto da idéia de equilíbrio. Podem ser apontadas também
como técnicas compositivas de grande importância: simetria e assimetria, regularidade e
irregularidade, simplicidade e complexidade, unidade e fragmentação, economia e
profusão, previsibilidade e espontaneidade, atividade e estase, sutileza e ousadia,
anulação e destaque, transparência e opacidade, repetição e episodicidade, entre outras.
a b
Figura 1 – Técnicas compositivas: (a) contraste e (b) simetria
Yves Saint Laurent,Vogue, 2003; Afreudite, Vizoo, 2002.
Na fotografia publicitária, assim como em outros textos visuais em que se
apliquem tais procedimentos sintáticos, a análise da dimensão plástica parte da
identificação destes princípios e de sua homologação a um conteúdo pressuposto, pois
como há pouco foi ratificado, não existe expressão sem conteúdo. Um exemplo preciso
de tal aplicação metodológica pode ser encontrado nas análises meticulosas dos
anúncios impressos do cigarro News, desenvolvidas por Jean-Marie Floch. Com
pronunciado rigor científico, seu estudo percorre detidamente os aspectos figurativos da
página do anúncio, recuperando-os sistematicamente na homologação dos efeitos de
sentido implicados no plano do conteúdo.
2.3 Anúncios, enunciados e enunciação
Toda análise semiótica do visual, como a que se pretende aqui desenvolver,
deve manter-se atenta a esta dimensão plástica através da qual vemos articulações entre
expressão e conteúdo, no sentido de dar conta da produção de significado nos textos.
17
Entretanto, outro aspecto irrefreável dos estudos semióticos (não especificamente do
campo da visualidade) diz respeito ao conjunto das marcas deixadas no discurso que se
constrói: as estratégias enunciativas. Segundo Fiorin, enunciação é o “ato de produção
do discurso”22, e seu produto, aquilo que chamamos enunciado. Para descrever o que
diz um enunciado, a semiótica preconiza observar “como ele faz pra dizer o que diz”23,
o que implica considerar todo texto estudado como o produto de um fazer competente,
de um conjunto de escolhas conscientes que se revelam nas reiterações. Em outras
palavras, isto implica considerar que cada discurso é um todo de sentido resultante de
um processo enunciativo em que nenhuma opção é inocente.
O enunciado publicitário – enquanto texto – é o produto de um fazer
discursivo contingentemente comprometido com a obtenção de um objetivo
mercadológico, institucional, político, etc. Toda esta intencionalidade por trás de um
anúncio encontra-se registrada em documentos que as agências convencionaram chamar
“briefing”. Nele, constam informações sobre o público alvo, sobre o produto e sobre o
próprio anunciante. São feitos apontamentos estratégicos e metodológicos no sentido de
garantir que os anúncios sejam bem sucedidos, que a mensagem passada seja inteligível
e que, em última análise, o consumidor seja sensibilizado. Estas medidas antecedem
aquilo exatamente de que se ocupa a semiótica: os enunciados. Podem acabar se
manifestando na figuratividade e na temática adotadas, porém investigar a publicidade a
partir da instância da enunciação equivale a buscar nos enunciados publicitários as
reiterações que revelam como estas medidas, estas escolhas e operações sintáticas se
manifestam nos discursos, bem como o que elas dizem daquele que as adotou. Não se
trata de descobrir a verdadeira intenção do destinador do texto, ou seja, aquilo que ele
quis dizer, mas aquilo que ele diz de fato. Nestes termos, segundo a teoria semiótica, o
anúncio publicitário traz projetado em sua estrutura discursiva um eu – que diz – e um
tu – a quem é dito – pressupostos na enunciação: um enunciador e um enunciatário. A
estratégia de manipulação se manifesta entre estes sujeitos, e o enunciado só se torna
operativo através deste par pressuposto. Anúncios que apresentam as vantagens da
aquisição de um determinado produto (figura 2) ilustram de maneira bastante eficiente
este vínculo: verificamos a construção de um enunciador que detém o conhecimento dos
atributos do produto, e de um enunciatário que os desconhece. Este desequilíbrio de
competências possibilita ao enunciador levar o enunciatário a desempenhar o papel 22 J. L. Fiorin, Elementos de análise do discurso . São Paulo: Contexto, 2004, p. 39. 23 D. L. P. de Barros, Teoria semiótica do texto. São Paulo, Editora Ática, 1990, p. 7.
18
narrativo que aquele espera deste. A figura a seguir traz um anúncio originalmente
apresentado em dois momentos que se completam no virar de uma página. No primeiro,
uma sensual jovem parece caminhar manifestando certa surpresa. Na página seguinte,
revelam-se seus curiosos observadores, enfeitiçados pela generosa conformação criada
pelo produto anunciado (sutiãs “maravilha”).
Figura 2 – Vantagens prometidas Wonderbra, Vogue, 2005
As análises dos anúncios selecionados para o corpus partem deste arrazoado
temático da enunciação. Os anúncios foram tomados enquanto discursos, em cuja
dimensão cognitiva identificamos um conjunto de valores investidos. Para identificar as
estratégias enunciativas empregadas, o fazer persuasivo do enunciador e o fazer
interpretativo do enunciatário, faz-se imperativa a investigação do percurso gerativo do
sentido, modelo metodológico que traz um simulacro operacional do modo de produção
e de interpretação do sentido24.
O modelo de percurso gerativo, tal como postulado por Greimas, é
constituído por três patamares sucessivos: o fundamental, o narrativo e o discursivo,
cada qual com um componente sintático e outro semântico. Sobre estes componentes,
complementa Fiorin:
24 J. L. Fiorin, Elementos de análise do discurso . São Paulo: Contexto, 2004.
19
A distinção entre sintaxe e semântica não decorre do fato de que uma seja
significativa e a outra não, mas de que a sintaxe é mais autônoma do que a
semântica, na medida em que uma mesma relação sintática pode receber
uma variedade imensa de investimentos semânticos25.
No elemento mínimo e em seu arranjo relacional, no caminho entre a parte e
o todo, entre expressão e conteúdo, sintaxe e semântica revelam-se e dão sentido aos
textos. Através do percurso gerativo do sentido, sobretudo no patamar das estruturas
discursivas, onde a figuratividade reveste os textos visuais, podemos semiotizar os
anúncios analisados em busca das estratégias enunc iativas empregadas.
Entretanto, não somente ao nível das estruturas semio-narrativas e
discursivas se limitam os estudos semióticos. A abordagem dos textos visuais, assim
como dos demais campos estudados à luz da semiótica estruturalista, acompanha a
evolução na trajetória histórica da disciplina. Segundo Landowski, de uma semiótica
dos discursos enunciados, observou-se uma transição a um modelo analítico vinculado
a uma semiótica das situações. Hoje, os estudos parecem indicar uma nova
reconfiguração da abordagem estrutural, orientada já a uma semiótica da experiência
sensível, e tal tendência, agudamente relevante no estudo da publicidade, objetiva dar
conta da sintaxe e da semântica dos novos fenômenos de que nos ocupamos.
A teoria semiótica discursiva (greimasiana ou estrutural) parte de uma
prerrogativa cognitivista para delimitar os papéis semióticos dos sujeitos em relação.
Como coloca Landowski, é fato conhecido há tempos que a construção dos significados
não emana de relações imediatas entre a linguagem e o mundo natural, mas que ela se
realiza somente na cooperação entre co-enunciadores26. Ao atentar para esta premissa –
a presença de sujeitos – a análise já é, por assim dizer, levada a orientar-se por uma
semiótica da experiência sensível. Sobre estes sujeitos do perceber, imprescindíveis à
comunicação enquanto fenômeno, Aumont comenta:
Ao passar do visível ao visual, já começamos a considerar o sujeito que
olha. (...) falar de informação visual ou de algoritmos é interessante, mas
25 Ibidem, p. 18. 26 E. Landowski. Presenças do outro . São Paulo: Perspectiva, 2002.
20
deixa em suspenso a questão de saber quem constrói esses algoritmos, quem
aproveita essa informação, e porque.27
Esta tomada de consciência a respeito dos sujeitos do perceber é mais que da
ordem de uma orientação sistemática; assume a condição de um dado semiótico
irredutível em nossas pesquisas no campo da visualidade, e seria absolutamente pífio e
rasteiro qualquer estudo desatento a tais especificidades que caracterizam a
comunicação, inclusive a publicitária. De certo modo, isto já equivale a assumir uma
postura diferenciada frente aos objetos estudados. Os anos 90 trouxeram um novo
paradigma metodológico, tanto em razão da publicação do último livro de Greimas, Da
imperfeição, quanto das significativas expressões recuperadas da fenomenologia
francesa do pós-guerra. É a partir deste momento, através de uma visão menos
cognitivista dos processos comunicacionais, que a semiótica estrutural desvia-se, pelo
menos em certo sentido, da tendência ao modelo mediatizado de interação. Em certo
sentido, pois este novo paradigma não representa a ruptura total com a gramática
canônica; busca, na verdade, dar conta de outro regime de sentido, justamente aquele
que se estabelece na co-presença sensível dos actantes. Nos termos propostos por
Landowski, a análise de um sentido que se constrói “em ato”. Em outras palavras,
afastamo-nos metodologicamente neste instante do modelo da junção, pois a maneira de
fazer sentido que caracteriza as interações tidas como não mediatizadas são da ordem do
contato direto entre instâncias definíveis essencialmente em termos estésicos.
Tendo em vista tal dimensão estésica dos objetos estudados, a semiótica
desloca agora seu foco sobre aqueles efeitos de sentido produzidos pelo contato
dinâmico, pela presença interativa apta a fazer sentido em si. Esta nova abordagem –
estaríamos, então, sob a égide de uma nova disciplina? – se distingue das anteriores por
considerar que uma transformação de estado sofrida por um sujeito (resultado de uma
troca comunicacional) pode ser simplesmente, o resultado de sua “exposição” a um
outro presentificado. Este regime de interação dispensaria um vetor, um significante ou
mesmo um objeto de valor a determinar os papéis narrativos, e que seria colocado em
jogo entre actantes: dar-se-ia por contágio.
Na ausência de um agente transmissor que justifique tal contágio, Landowski
propõe que é a própria presença contagiante do outro que precipitaria tal transformação. 27 J. Aumont. A Imagem. Campinas: Papirus, 1993, p. 58.
21
É isso que reconhecemos ao dizer que o tipo de contágio que nos interessa
pressupõe, na falta de causas ou razões, a presença de um sujeito para o
outro. No simples estar-lá de dois atores enquanto corpos-sujeitos, cada um
já oferece a seu parceiro, e percebe dele, uma espécie de texto minimal. 28
O exemplo inicial apresentado pelo autor é o do riso. Em sua opinião, a
hilaridade que arrebata um sujeito pode se dar em razão da decodificação e da
interpretação de um evento, ou mesmo de uma piada, o que seria da ordem de uma
comicidade planejada, adulta e racional. Em outras palavras, segundo um modelo
cognitivo de processamento e mediação. Por outro lado, o mesmo estado de hilaridade
pode nos atingir simplesmente pela presença, diante de nós, de um segundo sujeito já
vitimado pelo cômico: alguém que ri. É o mecanismo estésico, que também podemos
observar operando na euforia do lactante, possuído pelo riso contagiante do outro, da
mãe, ou de outra criança; este estado imanente do outro que possui e contagia aqueles
ao seu redor.
Estendendo-se este regime de interação por contágio a outras formas
intersubjetivas de articulação da experiência estésica, pode-se problematizar a questão
do desejo segundo a mesma perspectiva.
2.4 Semiotizando o desejo
E se o sentir não conviesse ao sujeito? Não se coadunasse com uma subjetividade que diz “eu”? Caso esta não conseguisse captar o sentir enquanto tal exceto com a condição de transformá-lo num pensar? Se o sentir fosse inacessível ao eu? Se todo esforço realizado pelo eu para apropriar-se do sentir conduzisse inevitavelmente a um pensar? Se no sentir estivesse implícita e fosse essencial uma dimensão neutra que nos obriga a dizer: “se sente”, mas nos impede de dizer: “eu sinto”? Se toda tentativa de dizer: “eu sinto” se resolvesse fatalmente num “eu penso”?
(M. Perniola)
28 E. Landowski. Op. cit, p. 7.
22
Quando buscamos, através de um estudo deveras limitado como este,
identificar as formas através das quais se tornam operantes os recursos discursivos de
erotização na publicidade onde não estão figurados corpos autênticos, corremos o risco
de precipitar-nos a projetar juízos demasiadamente abstratos acerca daquilo que aqui
chamamos de erótico, ou mesmo, em termos mais específicos, desejante29. Tentando
contornar tal inconveniente, percebemos a necessidade de sedimentar algumas noções
relacionadas ao que pode ser considerado como da ordem do erótico, o que autorizaria,
por fim, uma sintaxe adequadamente formalizada. É ponto pacífico e consensual que
não é adequado restringir o conceito de erotismo às cercanias de um código estético
cultural ocidental, buscando dar conta, da forma mais abrangente, das diferentes noções
de erotismo existentes. No mínimo, pelo risco da inconsistência 30.
No dicionário de língua portuguesa, a definição do substantivo abstrato
erotismo aponta para recortes lexicais obtidos por uma valorização fórica da
sexualidade31 (distinta da valorização disfórica pressuposta em pornográfico). O termo
é derivado do radical grego Eros, que na mitologia era o nome do deus do amor.
Primitivamente, o substantivo também descrevia o desejo amoroso, e que em seguida é
aplicado a qualquer tipo de desejo vivo, qualquer paixão, qualquer ardente impulso de
qualquer coisa32. Para Freud, assim como para certos psicólogos que nele se inspiram, o
termo erotismo abrange, num sentido muito amplo e variável, a acepção propriamente
sexual além do sentido do desejo em geral.
Deus grego do amor e do desejo, Eros apresentava-se, na tradição mais
antiga dos estudos da mitologia, como a força ordenadora e unificadora do cosmos.
Assim ele aparece na versão de Hesíodo e em Empédocles, pensador pré-socrático. Seu
poder unia os elementos para fazê- los passar do caos ao cosmos, ou seja, ao mundo
organizado. Em tradições posteriores, era tido como filho de Afrodite com Zeus,
Hermes ou Ares, de acordo com diferentes versões. Contudo, Platão o descreveu como
filho de Poro (Expediente) e Pínia (Pobreza); era o deus do instinto básico da vida,
29 O termo “sedução” (bem como os desdobramentos “sedutor” e “seduzido”), que no senso comum ocupa o lugar das expressões aqui empregadas, é evitado pelas especificidades da terminologia própria da gramática narrativa. 30 A priori, a sintaxe erótica dos objetos estudados é autorizada pela dimensão sexual que está presente. Contudo, em função do panorama ambíguo que poderia ser desenhado em torno do referente sexual, faz-se necessária a adoção de alguns conceitos sistematizantes, no sentido de garantir o rigor científico da pesquisa. 31 A. Houaiss, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa . São Paulo: Objetiva, 2001. 32 A. Lallende, Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
23
responsável pela atração entre os corpos, e pela força vital que impulsionava a vida
(Freud referiu-se a esse mesmo deus Eros de Platão como a Libido, força vital de amor).
Para Platão, a essência do amor e do desejo era "sentir falta de", estar em busca
constante, em perpétua insatisfação33. Semioticamente, o trajeto que leva a conjunção
com o objeto desejado (ou com o sujeito amado), capaz de romper a disforia
peremptória da disjunção que abate o insatisfeito, reque r que este adquira competência
para, em seguida, realizar uma performance. Na publicidade, a promessa de tal
conjunção (a obtenção deste objeto modal ou de valor) viabiliza a adoção de um
procedimento de manipulação de um sujeito sobre outro. Para Landowski:
(...) essa falta estruturalmente programada, não podemos esperar supri-la, a
não ser imaginariamente, por meio do consumo de outros simulacros da
mesma natureza, seguindo sempre os mesmos percursos de leitura propostos
como promessas de um gozo que eventualmente será real e que, por essa
mesma razão, é sempre adiado.34
Mas o que é, em termos semióticos, o desejo? Para Rauh e Revault
D’Allones, o desejo é a “tendência para se obter uma emoção já experimentada ou
imaginada” 35. Entretanto, tal simplificação exclui a primazia de certas tendências em
relação às emoções correspondentes posteriores. Neste sentido, parece-nos mais
adequado interpretar o desejo (de um objeto, de um ser humano, de um ato ou de um
estado) sem que nele haja necessariamente a representação dos estados afetivos de seu
fim. Em outros termos, poderíamos então dizer que o desejo é uma tendência
espontânea e consciente em direção a um fim conhecido ou imaginado. Para Lalande, o
desejo difere da vontade, por tornar inviável a coordenação (pelo menos momentânea)
das tendências, e por suspender a oposição entre o sujeito e o objeto – o desejo se dá
entre sujeitos. Além disso, também não considera os meios pelos quais se realizará o
fim pretendido, enquanto que a vontade envolve a consciência de sua própria eficácia. O
contrário do desejo é a aversão, termo que também implica uma tendência imperativa
debelada pela representação de um estado afetivo. Entretanto, a idéia de representação –
aplicada aqui tanto ao deflagrar do desejo quanto ao da aversão – sugere uma lógica 33 P. Grimal, Dicionário da Mitologia Grega e Romana. São Paulo: Bertrand Brasil, 1993. 34 E. Landowski. Presenças do outro . São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 141. 35 Rauh e Revault D’Allones, in A. Lallende, Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 241.
24
cognitivista nos mecanismos descritos, sustentando a improfícua idéia de um erotismo
em conformidade com o regime da junção (o que excluiria a dimensão sensível
anteriormente colocada). Em termos de uma semiótica da dimensão estésica, o desejo
independe de “objetivo estratégico” e de “cálculo” 36, o que implicaria um desejo
unidirecional, intelectivo e distanciado. O que o regime da união sugere é justamente
um “desejo com”, em que a relação sujeito/objeto dá lugar a uma relação intersubjetiva,
entre corpos-desejantes. Como teoriza Landowski:
Independentemente de todos os atrativos específicos que se queira (ou junto
com eles), esse quê do qual depende o nascimento do desejo é, como no
caso do riso, o próprio estado do corpo do outro, apreendido como um todo,
face à nossa própria capacidade de senti-lo em seu estado (hipotético) de
corpo desejante.37
Tal regime de interação parece depender inexoravelmente de uma postura
distinta dos actantes envolvidos. Eis a razão: experimentar o estado somático do corpo
do outro presentificado, ele mesmo agora na condição de sujeito de um sentir próprio,
demanda que o sujeito primeiro desta interação aproxime-se daquele o suficiente para
que a relação estabelecida seja da ordem da troca bi- lateral. Ou seja, que sua condição,
seu estado, suas próprias manifestações somáticas sejam colocadas em jogo, articulando
uma transformação dinâmica e recíproca. É a imediaticidade propriamente dita que
funda tal relação estésica. Não consideramos mais, como única leitura possível, a
apreensão estética de um sujeito cognitivo em contato (distanciado) com um objeto e
seus efeitos de sentido. Para Landowski “não há mais, nesse caso, um observador que
julga e finalmente decide, mas um corpo que experimenta a qualidade sensível da
presença do outro corpo” 38. O corpo-objeto, distante, imagético, estético, dá lugar ao
corpo-sujeito, somatizado, experimentado como a si mesmo, num movimento
proprioceptivo que tem o outro como extensão, que tem no outro referência. Um corpo-
sujeito é, na nossa medida, um corpo que nos aciona como corpos-sujeitos, que nos
interpela ao ser interpelado, e que ao desejar convoca as ordens sensitivas de seu
parceiro a fazê- lo também. Nesse desejar junto, não há lugar, ao menos a priori, para 36 E. Landowski, “En deça ou au-delà des stratégies, la présende contagieuse”. In E.Landowski, Passion son nom. Essais de sócio-sémiotique III, Paris, Presses Universitaires de France, 2004. 37 Ibidem, p. 9 38 Ibidem, p. 9.
25
julgamentos estéticos ou avaliações comparativas. É algo imperativo, irremediável e
absolutamente imediato. Como na Teogonia de Hesíodo, que descreve Eros como o
mais belo dos imortais, capaz de subjugar corações triunfando sobre o “bom senso”
(grifo nosso)39.
Desta feita, no presente estudo, o termo desejo aponta uma modalidade de
tendência (ou de querer) manifestada entre dois corpos-sujeitos que assim se fazem
presentes um ao outro, associada à fruição de um estado afetivo da ordem do gozo, do
prazer sexual40, que, por essas características tem sido bastante explorada nas várias
mídias com seus distintos formatos. Esse gozo, esse prazer é a intencionalidade
almejada pelos construtores de linguagens, como mostra Yvana Fechine em suas
análises da produção de sent ido na televisão41 e Ana Claudia de Oliveira nas análises da
mídia impressa.42 Tal noção implica intersubjetividade, e este é o ponto central das
análises dos anúncios selecionados.
2.4.1 Olhar e ser olhado
It's not the pale moon that excites me, That thrills and delights me, oh, no… It's just the nearness of you. It isn't your sweet conversation That brings this sensation, oh, no… It's just the nearness of you (Hoagy Carmichael)
Através do discurso publicitário, o consumidor é convidado a entrar em
contato com os produtos anunciados e a assumir uma postura comprometida com os
simulacros encenados. Um anúncio que traz a imagem de uma jovem olhando um
produto qualquer, por exemplo uma jóia, ou um perfume, figurativiza tanto o simulacro
do usuário do produto quanto o sujeito do enunciado que, ao desejar o produto,
presentifica-se. Sendo o que for que o produto apresente de sedutor, o consumidor
39 P. Grimal, Dicionário da Mitologia Grega e Romana. São Paulo: Bertrand Brasil, 1993. 40 A noção aqui adotada para o termo desejo deve-se, em grande parte, à contribuição da Profa. Dra. Yvana Fechine na banca de qualificação. 41 Y. Fechine. O sensível expandido: pressuposto para uma abordagem nas mídias. Caderno de Discussão do Centro de Pesquisas Sociossemióticas, São Paulo, 2005. 42 A. C. de Oliveira, O sabor de “O Sabor Pão de Açucar”, in Mídia Br. Livro da XII COMPOS. Porto Alegre, 2003, pp. 145-179.in André Lemos, Ângela Pryston, Juremir Machado da Silva e Simone Pereira de Sá (orgs.).
26
vislumbra na encenação a possibilidade de participar deste jogo, de fazer-se presente, de
ser olhado e, de fato, isso acontece43. O insinuante flerte visual da modelo que encara
seu espectador, possuída pelas sensações despertadas pelo produto, também presentifica
o sujeito da enunciação, colocando-o na condição de objeto. Tal qual o produto no
exemplo anterior, agora o sujeito objetivado é desejado. O foco não incide na
determinação do simulacro construído, os reforços e as insinuações sexistas das
representações caricatas que a publicidade promove. Na verdade, os esforços analíticos
aqui subentendidos traduzem-se no processo que leva o sujeito a se reconhecer e a
interagir com o simulacro.
Deve ficar claro que, na enunciação publicitária, o sujeito da enunciação é
externo ao enunciado, ou seja, àquilo que se encerra na esfera do anúncio. Ele pode ser
tanto o anunciante quanto o consumidor. No plano do anúncio propriamente dito,
aparece a figura do sujeito do enunciado: uma modelo, um garoto propaganda, ou
mesmo uma personalidade reconhecida, uma figura pública com certa notoriedade. O
sujeito da enunciação, uma vez confrontado com o sujeito do enunciado, é
compulsoriamente levado a presentificar-se, a reconhecer sua própria presença. Assume
o papel de objeto do sujeito do enunciado. Logo, aquilo que o sujeito do enunciado olha
é simulacro do sujeito da enunciação (objetivação do sujeito da enunciação).
Segundo Landowski, é recorrente nos anúncios publicitários a
figurativização de corpos em estado de “possessão”. Esta mediatização dos sujeitos
enquanto corpos possuídos, “comovidos”, é o simulacro mesmo da apreensão do objeto
pelo destinatário. No núcleo de tal estratégia sexualizante, onde o estado do corpo que
nos colocamos a observar é o do corpo desejante, insinuante, possuído uma vez que
sensibilizado, opera a reciprocidade da condição estésica. Esta concupiscência
mediatizada (figura 3), este prazer manifesto, é o gozo que os corpos-sujeitos nos
enunciados publicitários conosco dividem, e no qual temos participação no momento
em que somos interpelados. Conforme explica Landowski: “é a nós que todos esses
corpos comovidos se ‘dão’, pois é diante de nós que eles se abandonam dessa maneira” 44.
43 E. Landowski. Op.cit.. 44 Ibidem, p. 149.
27
Figura 3 – Corpo possuído
Chanel, Vogue 2004
Eis aqui, portanto, o fechamento de um circuito. A configuração mínima
para deflagrar um impulso de natureza sexual entre sujeitos postos em relação está
relacionada aos próprios estados de tais sujeitos, reconhecíveis enquanto corpos
desejantes. Sua presença, e muito pouco mais. Contudo, como observa o próprio
Landowski, algumas operações sintáticas do discurso publicitário envolvendo a
presença de corpos levam às estruturas plásticas exauridas em sua dimensão erótica,
meros corpos objetos, estetizados e que nos colocam em presença de não-sujeitos
(figura 4). Estes corpos dissociados de seu estatuto erótico podem oferecer indícios da
maneira através da qual a publicidade engendra um erotismo efetivo, justamente pela
desarticulação entre presença e subjetividade que operam.
Esta visão objetivante, que parte de uma premissa mais sistemática, no
sentido de acolher uma condição além do estatuto sexual daqueles corpos a que somos
apresentados, pressupõe um regime de interação distinto do apontado acima. O anterior,
observado instaurando-se entre corpos desejantes, confia, à volição libidinosa dos
actantes, a operacionalidade da enunciação. Es te outro, suscitado por textos como o da
figura 4, cuja encenação parece abrandar a temática sexual – que, de maneira diversa,
28
seria instaurada peremptoriamente – se realiza na superficialidade da imagem em si, nos
termos de sua auto-referencialidade. Já não rompe com o aqui e agora da encenação
publicitária da mesma maneira que o faziam os enunciados dos corpos desejantes,
sempre apontando para um aquém ou para um além daquele momento específico
figurativizado. Se o faz, é através de valores outros postos em jogo e que não se referem
aos estados afetivos prometidos na imagem de natureza sexual.
Figura 4 – Corpo estetizado
Gucci, Cosmopolitan, 2004
Muito embora o comprazer-se mediatizado continue sendo observado nos
textos visuais a seguir, garantindo, de certa forma, a trama axiológica do corpus, parece
pertinente também observar como esta dimensão erótica do discurso publicitário é
afetada quando o corpo – combustível mais evidente do desejo e do interesse sexual – é
preterido. Certamente, os anúncios que sustentam um sentido erótico estésico devem
resolver a ausência de um sujeito desejante, observada na figura 4, de modo a garantir
um simulacro de intersubjetividade convincente, pois só na presença sensível de um
outro actante sujeito pode ser deflagrada tal relação. Investindo nesta busca, poderemos
identificar os convites enunciativos da ordem do desejo que a publicidade nos lança e,
29
uma vez convocados, que tipo de estado, tendência ou inclinação manifestamos nos
papéis actanciais que passamos a ocupar; nas palavras de Landowski, o que esta
iconografia “faz de nós ao nos solicitar” 45. Como explica Oliveira, é assim a própria
enunciação, fazendo ser o discurso interativo e o sentido apreendido nessas
convocações46.
2.5 Intersubjetividades
O melhor momento do amor é quando o amante está indo embora de táxi. (Michel Foucault)
O corpo objeto
Nas relações intersubjetivas que vivenciamos no seio da sociedade de
consumo (alvo derradeiro e canhestro da crítica contemporânea ao capitalismo de
mercado), o estatuto que opera – no que diz respeito à construção da noção do que é ou
não desejável – é, de certa forma e parcialmente, o da adequação a preceitos culturais de
ordem estética. Regras, tendências, modelos e princípios são cunhados no desenrolar da
estética sobre a cultura. O ambiente é fértil e ávido por tais referências, porém
movediço. Em tempos de turbo-capitalismo, de acirramento da concorrência, de
necessidade de fluxo de caixa e de novidade, a única constante estética é a certeza da
efemeridade. E quanto mais inalcançável o padrão vigente, menor o número de
indivíduos em adequação a ele. Neste panorama, destacam-se os que efetuam a melhor
(re)construção do simulacro de si mesmos, com base nas referências em voga. Todos os
louros aos que, de uma forma ou de outra, acompanham tais mudanças.
Estes preceitos ou valores, de toda sorte e nem sempre tangíveis, podem ser
verificados tanto nas expressões artísticas contemporâneas47 quanto em manifestações
mais pragmáticas da verve humana, como a publicidade e a moda. O que parece certo é
que tais referências são indicadores indeléveis de um código estético imperativo e
45 E. Landowski. Op. cit. p. 161. 46 A. C. de Oliveira, “As interações na Arte Contemporânea” in Galáxia, São Paulo, v. 4, p. 33-65, 2002. 47 O que, a rigor, não perfaz uma especificidade da sociedade capitalista, e sim um fenômeno extemporâneo, verificável na antiguidade, no renascimento, e mesmo nas experimentações menos prosaicas da modernidade, épocas em que algumas partes do corpo, certas medidas, ou mesmo certa atitude consideradas “atraentes” eram representadas.
30
articulador da intersubjetividade. Curioso que, isto posto, possamos reconhecer uma
dimensão cultural na sintaxe do belo, do sedutor e do que é considerado atraente, aquilo
que, em última análise e de forma inextricável condiciona, narrativamente falando, as
estratégias de manipulação de que se valem os sujeitos. Reconhecida tal “gramática do
belo”, as estratégias de adequação e de “transformação programada do corpo próprio em
imagem para o outro, em ‘corpo-objeto’” 48 podem ser subsumidas em estratégias de
“sedução” do outro, o que parece bastante razoável. Mas, como colocado acima, é um
estatuto que opera parcialmente.
Este universo imagético rege, ao menos de maneira parcial, os
comportamentos dos corpos em seus percursos narrativos em busca da conjunção com
seus objetos de desejo. Além disso, nos termos de suas implicações intersubjetivas, é o
que dá origem ao modelo cultural do “desejável”. Ou seja, um padrão sintático visual de
natureza cognitiva que condiciona o desejo e a atração sexual, que pode ser
objetivamente examinado nos termos das estratégias de sedução da sintaxe narrativa,
cujo objeto de valor posto em jogo parece ser a atratividade ela mesma. Entretanto,
parcial como é, este viés cognitivo das relações interactanciais da ordem do desejo
guarda um distanciamento perigosamente determinista daquilo que de fato a pouco
apontávamos como o aspecto mais decisivo do erotismo: a intersubjetividade. Apontar
um anúncio, uma imagem, um discurso como da ordem do erótico corresponde a
identificar na figuratividade dada um arranjo mínimo de dois actantes sujeitos, que é a
hipótese sustentada por esta dissertação.
O corpo sujeito
Para caracterizar aquilo que definíramos como da ordem do erótico, fez-se
necessário anteriormente recorrer ao regime da união, buscando dar conta da dimensão
estésica da interação entre dois sujeitos, ou seja, dos efeitos de sentido captados por
sujeitos desejantes, emanações somente percebidas no sentir junto, não no fazer
manipulador do sujeito sobre o corpo objeto49.
Admitir que todo anúncio, oferecido como texto ao nosso descomprometido
fazer interpretativo, nos faz sentir antes mesmo que venha a nos fazer processá- lo, tal
48 E. Landowski, Op. cit., p. 15. 49 Ibidem.
31
qual mostra Oliveira, no ato do leitor, que tem diante de si, de seu corpo, e não somente
diante dos olhos, o jornal50, é assentar o princípio fundamental para uma semiotização
do erotismo na publicidade. Isto porque, a partir do próximo capítulo, investir emos
justamente na procura das formas com as quais estes corpos instrumentalizam um
simulacro erótico. Entretanto, mais do que examinar a maneira como os simulacros do
enunciador e do enunciatário, por exemplo, são construídos, ou mesmo que estratégias
enunciativas estão colocadas em jogo no texto, o presente estudo, diante dos anúncios
publicitários aqui selecionados, volta-se à semiotização de como somos levados a
interagir com estes simulacros e como nos posicionamos ao significá-los. Em outras
palavras, que efeitos de sentido são despertados numa encenação erótica em que o corpo
propriamente dito não é dado a ver.
Ao lidar com os simulacros publicitários, lidamos, sobretudo e inicialmente,
com as presenças significantes que estes nos trazem. O corpo no anúncio é,
irredutivelmente, uma manifestação significante em si, e a manutenção deste corpo,
deste efeito de subjetividade (da qual depende o sentido erótico) garante um simulacro
de presença. É nesta astuciosa premissa que os anúncios parecem se apoiar. Segundo
Merleau-Ponty
Um espetáculo tem para mim uma significação sexual não quando me
represento, mesmo confusamente, sua relação possível aos órgãos sexuais ou
aos estados de prazer, mas quando ele existe para meu corpo, para essa
potência sempre prestes a armar os estímulos dados em uma situação
erótica, e a ajustar a ela uma conduta sexual.51
Objetivamos, na fotografia publicitária, tratar dessa situação erótica criada
no ato relacional com o destinatário, resultante da mesma série de eventos estésicos. Os
corpos figurativizados são para ser vistos porque vêem, ou deixam a entender que o
fazem: convocam o enunciatário, presentificando ele mesmo enquanto corpo desejante.
O programa narrativo de um anúncio publicitário em que o corpo sujeito,
presente e significante, se coloca como corpo-desejante, pode ser erigido através de
50 A. C. de Oliveira, “A dupla expressão da identidade do jornal”. In Caderno de textos do GT Produção de sentido nas mídias, Curitiba, v. 1, n. 1, 2006. 51 M. Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção. São Paulo, 1999, p. 217.
32
inúmeras estratégias enunciativas. Uma delas, bastante recorrente, diz respeito às
combinações sintáticas no plano da expressão que convocam as ordens sensoriais
figurativizando o simulacro daquilo a que o enunciador é suscetível. Nos anúncios
analisados no capítulo três, observamos corpos invariavelmente adequados a padrões
estéticos rígidos e exemplares. Entretanto, na ausência desta figuratividade autêntica,
simulacros de toda sorte são construídos, e o que parece garantir a manutenção do
erotismo é justamente o sentido de intersubjetividade que é despertado no e pelo texto.
Tal investigação requer tanto uma abordagem narrativa do regime da junção como do
regime da união, e é esta complexidade da publicidade que nos faz pôr a prova a
eficácia da ampliação da gramática narrativa de Landowski.
33
3 DE SIMULACROS DE PRESENÇA À ASÊNCIA ERÓTICA
Pessoalmente, nada tenho a confessar sobre sexo, além do fato de que o pratico quando tenho vontade, quase sempre com outra pessoa. (Fernando Gabeira)
3.1 Insinuações e iniciativas
É imprescindível, para a deflagração de um sentido erótico minimamente
sensível nos discursos, que se vincule, em alguma instância do enunciado, uma
subjetividade a outra. Em outros termos, a circunstância basilar do surgimento do desejo
é aquela instituída na co-presença. Contudo, não porque esta paridade torne operacional
um jogo de sedução tipo ação-reação, em que um actante tome a iniciativa voluntária de
investir insinuantemente sobre seu parceiro, que em seguida, despertado de sua inércia
refratária, reagiria exibindo um comportamento libidinoso. Na verdade, anterior a
qualquer estratégia desta natureza, o mecanismo aqui referido é o da reciprocidade
imediata.
A apresentação de corpos desejantes nos textos visuais publicitários atende
este pressuposto ao midiatizar, de uma forma mais explícita ou de outra mais sorrateira,
o “espetáculo da intimidade” de actantes “exemplarmente desejáveis” 52. Nestes termos,
invariavelmente, ao elegermos um objeto de estudo pautando-nos na construção
sintática de isotopias sexuais, buscamos, em última análise, traçar um mapa destas
estratégias articuladoras da intersubjetividade. Como observado por Landowski, a
astúcia por trás de tais estratégias parece residir no inviabilizar da identificação dos
papéis e das responsabilidades dos actantes construídos pelo discurso publicitário, o que
implica que esta dialética fundadora do desejo é resultado tanto da manifestação de
certos traços legíveis por parte do objeto apreendido quanto do reconhecimento
“empreendido” destes traços por um sujeito- leitor. A responsabilidade por este jogo de
sedução não pode ser atribuída arbitrariamente a um dos actantes; pressuposta no
galanteio do sedutor, está a libido do seduzido.
52 E. Landowski. Presenças do outro . São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 145.
34
A reciprocidade do desejo
Alguns anúncios publicitários figurativizam ambos os actantes desta
dialética do desejo. A representação do erotismo (figura 1), encerrado num enunciado
sincrético (visual e verbal) pode traduzir sinteticamente a promessa ao enunciatário de
um gozo possível. A lubricidade dos actantes, os espasmos musculares, a tensão das
fisionomias e o contorcer dos corpos dão a dimensão do arrebatamento dos sujeitos do
enunciado pelo produto anunciado. É prática prosaica da publicidade apresentar ao seu
destinatário a encenação da experiência que acompanha a aquisição dos produtos. Neste
sentido, os anúncios mostram-se atentos à suscetibilidade de seus interlocutores às
demonstrações do êxtase alheio. Por identificação com os simulacros construídos,
somos levados a antecipar tais estados de êxtase encenados como se fossem já
experimentados, o que de fato depende, em última análise, da posse do produto.
Figura 1 – Erotismo e reciprocidade Dolce & Gabbana, Vo gue, 2004
No anúncio da figura 1, podemos observar uma transitoriedade dos estados
sensíveis dos corpos figurativizados. Sensibilizando-se reciprocamente em ato, ambos
35
os actantes encontram no contato de seus corpos o “não-vetor” de que depende o desejo.
Eles se entregam sensualmente um ao outro, indiferentes (ou mesmo cientes) aos
olhares indiscretos de um terceiro actante, o sujeito da enunciação, a quem oferecem o
espetáculo de suas intimidades. A hipótese plausível de se saberem olhados revela suas
pulsões exibicionistas na exata medida em que surpreende o enunciatário no exercício
de um voyeurismo enunciativo. Contudo, este triângulo virtual, implícito no arranjo dos
actantes, não é deflagrado no próprio enunciado por um simulacro de embreagem entre
o sujeito da enunciação e os sujeitos do enunciado, e tampouco convoca de maneira
categórica a presença do enunciatário.
O enunciatário surpreendido
No exemplo a seguir, da figura 2, observamos uma mudança significativa no
arranjo plástico dos actantes. A jovem em primeiro plano, que se entrega passiva aos
carinhos de seu parceiro, já não se contenta com a demonstração de interesse deste. Ela
encara o enunciatário, presentificando-o ao romper a surdina da enunciação, que no
exemplo anterior estava somente pressuposta. Ela está certamente ciente de ser
observada, e aceita este interessado olhar. Apática aos encantos de seu parceiro sem
face no enunciado, mas autorizando suas investidas, a alva coquete acena para este
pretendente revelado pelo seu olhar com um torturante convite que não pode ser
atendido. Nesta configuração, os três actantes se posicionam sobre uma mesma linha
perpendicular ao plano da fotografia, como se objetivassem – por julgarem possível –
cruzar as imposições actanciais do enunciado formalizado na página impressa. Tanto o
enunciatário quanto o parceiro sem rosto concorrem pela jovem. Mas sobre o
enunciatário, circunscrito em seu papel actancial, incide a provocação mais frustrante.
Sussurra- lhe a jovem: “este poderia ser você...”
36
Figura 2 – O triângulo amoroso
Jean Paul Gaultier, Vogue, 2004
A reciprocidade entre os actantes, enunciada de maneira bastante sofisticada
num intrincado jogo cênico e de olhares nas figuras 1 e 2, e que é condição para o
arranjo da relação no plano do desejo, pode ser figurativizada através de estratégias
enunciativas menos sutis e, na mesma medida, mais explícitas do que concordamos
chamar de manifestações da sexualidade. Na figura 3, a sutileza de um erotismo
insinuado e o jogo delicado dos olhares dão lugar a uma expressão mais incisiva da
isotopia sexual.
O ato consumado
No nível discursivo da figura 3, observamos um homem e três mulheres
entretidos numa simulação bastante detalhada de uma prática sexual grupal. Porém, a
tematização do comportamento sexual grupal não é necessariamente o elemento mais
37
perturbador53 desta curiosa imagem. O aspecto que parece torná-la tão incomum situa-se
em seu nível narrativo, e se refere ao objeto de valor “virilidade”.
Figura 3 – O “super-amante” Diesel, Elle, 2006
Ao contrário de outras imagens eminentemente eróticas, esta traz
figurativizada de forma quase explícita a sanção ao sujeito do enunciado (o intercurso
sexual obtido) que está em conjunção com o objeto de valor (o grupo de mulheres)
através do objeto modal (o “poder ser” pelo uso da calça da marca Diesel). A conjunção
carnal dos actantes efetiva seu estatuto de sujeitos desejantes através do ato sexual em
53 Segundo Landowski, “(...) não é por acaso que as estratégias de persuasão, ou melhor, de sedução publicitária privilegiam com tanta freqüência o espetáculo da intimidade: trata-se de presentificar estados de “possessão”, ou, ao menos, se a expressão parecer exagerada, de atrair nosso olhar e de tocar nossa sensibilidade recorrendo ao que talvez seja, intersubjetivamente, o mais “perturbador”, isto é, precisamente mediante a evidenciação da perturbação reconhecível no outro quando ele se sente como puro e simples corpo, inteiramente absorvido pela natureza imediata, efetiva ou fantasmática, do objeto, qualquer que seja a natureza deste”.
38
si, não na eminência dele. Esta forma de erotismo, inexoravelmente consumada, situa-se
além (ou aquém) daquelas estratégias discursivas que operam através de um desejo
recíproco e em ato. A imagem do conquistador viril consumando o ato sexual com suas
parceiras não é necessariamente da ordem da sugestão de um comportamento lascivo, o
que compromete aquele caráter dúbio da reciprocidade anteriormente observada,
justamente a astuciosa indistinção entre provocador e provocado. Em certo sentido, é
como se a imagem prescindisse, para a instauração de uma gramática do sexual, da
libido até agora fundamental manifestada pelo enunciatário: ela se resolve em si. É
curioso observar que tal “isolamento” se manifeste justamente na imagem onde a
temática sexual é mais evidente, aquela que há pouco apontamos como da ordem do
perturbador.
Essa ruptura sintática daquele erotismo que havíamos identificado nos casos
anteriores indica uma mudança no programa narrativo das imagens que, a priori, diz
respeito ao grau de erotização das imagens, seu caráter mais ou menos explícito e sua
“responsabilidade” no sexualizar da interação. Contudo, é um indicativo ainda mais
patente da existência de um estatuto actancial do desejo, regido pela noção das
presenças convocadas no ato da significação dos enunciados, ou seja, pela forma como
enunciatário e demais actantes são presentificados semioticamente. Invariavelmente,
estes simulacros se constroem na encenação remissiva ao êxtase, guardando diferenças
entre si que variam pela forma como os actantes são presentificados.
3.2 Simulacros de presença
Tomemos como exemplo a figura 4, uma jovem aos pés de uma estátua,
imersa na iconolagnia54 que exibe despreocupada de qualquer reprovação externa.
Possuída pelo momento, a jovem se volta para si mesma, comprazendo-se na
indiferença marmórea de seu parceiro inorgânico. Sujeitando-se à apatia dele, a jovem
reverencia em submissão o objeto estético a que se agarra, sorvendo do gélido toque que
executa acalanto para suas pulsões. A frustração iminente de seu interesse que não será
correspondido não parece abalar sua concupiscência. Refém de seu próprio fetiche,
torna-se incapaz de distinguir realidade e imaginação. Fecha os olhos e volta-se para as
imagens que lhe passam pela cabeça, para outra presença. Verdadeiro ou falso, pouco
54 Forma de satisfazer a libido vendo e/ou acariciando estátuas .
39
importa: consegue seu prazer na ambigüidade que a consome. Tal encenação onanista,
recorrente na publicidade, experimenta neste exemplo particular um desvio narrativo
que é da ordem justamente de uma semiótica das presenças.
Figura 4 – A presença fantasmática
Emanuel Ungaro, Vogue, 2006
A estátua, um objeto inanimado, não dotado de sensibilidade, um não-
sujeito, é o simulacro acabado de um corpo estetizado, de uma “ausência explícita” em
sua autonomia de objeto plástico55. É totalmente incapaz de retribuir o investimento de
valor que recebe. Mas é próprio desta sorte de ausência, que se materializa num
simulacro fantasmático de um co-actante fictício, convocar uma presença que a resolva.
Pouco importa se a jovem consegue diretamente de seu contato com a estátua uma
injeção de prazer ou se fantasia a respeito de um parceiro ideal a que a estátua remete. O
certo é que a lacuna convoca o enunciatário a sentir-se presente e em íntimo contato
com o sentir da jovem. De novo, um desejo recíproco, recuperando a presença do
55 E. Landowski. Presenças do outro . São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 161.
40
sujeito da enunciação, lançado novamente para dentro do enunciado. Situação análoga à
da figura 5, em que o mesmo tipo de arrebatamento toma uma outra jovem, inebriada
pelo actante a que se agarra. A demonstração libidinal nestes dois casos revela o valor
subjetal que é investido em objetos inanimados. Na figura 5, especificamente, a
impudica garota investe tal valor no próprio produto anunciado. O enquadramento e a
ardilosa desproporção do produto possibilitam ao enunciador simular um contato entre
os actantes do anúncio absolutamente visceral. Não só a jovem se agarra ao gigantesco
frasco de perfume, extasiada pelo contato de sua pele com a superfície indefectível de
cristal, como ela também parece experimentar o contato direto com o seu próprio
conteúdo licoroso. A imersão, aludida na dança frenética de seu delicado vestido,
aponta uma intimidade absoluta, que somente pode se dar no contato com o líquido,
capaz como nenhum outro estado da matéria de ocupar os espaços e sensibilizar por
completo a pele. Desta forma, vemos acionadas através da dimensão figurativa do
anúncio duas ordens sensoriais, a olfativa e a tátil, intrinsecamente ligadas ao sexual,
engendrando um erotismo que só se torna operante pela simulacro de subjetividade que
o frasco de perfume constrói.
Figura 5 – O corpo possuído
Chanel, Cosmopolitan, 2005
41
Por conseguinte, tanto na figura 4 quanto na figura 5, o enunciatário é
convocado por um simulacro de sua presença contido no enunciado, no dar-se diante
destas ausências programáticas cãs duas jovens, a encenar a convicção de uma presença
autêntica e sub jetal.
Vimos, por meio de diferentes estratégias enunciativas expressas nestas
imagens, desdobramentos de um mesmo estatuto do desejo, articulado no simulacro de
reciprocidade implícita entre os actantes. Em termos semióticos, a qualificação de uma
imagem como da ordem do erótico, isto é, da relação interactancial no plano do desejo,
pressupõe discursivamente aquele arranjo minimal anteriormente descrito que deflagra
uma intersubjetividade indelével. Contudo, entre as diversas estratégias discursivas
erotizantes empregadas pela publicidade, observamos ocorrências de textos visuais onde
um sentido erótico é sugerido através de presenças ainda mais evasivas que estas acima
mostradas. Talvez tenhamos prescindido tal presença nos enunciados publicitários que
identificamos como eróticos em conseqüência cultural do nosso próprio investimento
fetichista sobre as mercadorias, tratadas como “objetos de desejo”, e das quais pode-se
obter uma espécie prosaica de prazer. A hipótese é passível de discussão, mas não
desperta interesse neste momento. Parece mais instigante, do ponto de vista de uma
semiótica das presenças, investigar justamente o que acontece deste ponto em diante: o
que dizem estes simulacros de erotismo e como seus interlocutores os significam.
A linguagem fotográfica, prolífica em tornar presente o que parece da ordem
do “inapreensível e do instantâneo” 56, põe-se à disposição da publicidade nesta
operacionalização dos simulacros de presença. Um exemplo conspícuo do emprego de
princípios constitutivos fotográficos na construção de um simulacro de presença é o da
figura 6. Uma mão em garra aparentemente masculina se estende a partir do ângulo
inferior esquerdo da imagem, buscando alcançar uma caneca contendo a cerveja
anunciada. Todavia, o enquadramento fotográfico, o leve desfocar da imagem e a
perspicaz disposição da alça do copo criam a ilusão ardilosa de um seio feminino. O
enunciado verbal (“Não importa o que você vê. O que importa é o que é. O que importa
é a cerveja.”) confirma a ambigüidade da imagem, apontando duas dimensões distintas
implicadas no discurso: a primeira, das “aparências”, a segunda, da “essência”. Na
discursivização desta oposição semântica de base, verificada no nível fundamental, cria-
se uma imagem ilusória de conteúdo erótico – em referência ao prazer tátil
56 E. Landowski. Presenças do outro . São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 129.
42
proporcionado (e sentido) de tocar as zonas erógenas do corpo do outro – que o próprio
enunciado esclarece, revelando a anedota visual.
Figura 6 – A ilusão esclarecida
Schneider, Playboy, 2004
Temos, desta feita, uma leitura do enunciado que passa por dois momentos
contíguos: o primeiro momento, decorrente da ilusão – arquitetada pelo enunciador –
da presença de um seio feminino, e portanto, de um actante sujeito (a mulher), prestes a
ser apalpado pelo segundo actante sujeito (o homem de quem se vê somente a mão); e o
segundo momento, que se inicia em seguida, no desvelar do pequeno segredo que
mantinha o erótico operante, marcado pela verificação da presença de somente um
actante sujeito (o homem) e de um actante objeto (a cerveja anunciada). Contudo, a
revelação da ausência de uma intersubjetividade verdadeira, e que se dá no próprio
enunciado, não tem efeito retrógrado sobre aquele momento primeiro da sugestão de um
erotismo verídico no anúncio. Tal qual nos anúncios 4 e 5, o “embuste” do falso actante
sujeito (aqui esclarecido, lá mantido) é uma ausência virtualizante de um simulacro de
presença; o falso seio feminino é, nestes termos e para todos os efeitos, um seio, e a
metáfora visual construída no enunciado ressemantiza a dimensão ritual da interação
com o objeto cerveja. A usura57 relativa do uso pragmático do produto – do beber por
57 Sobre a noção de “usura”, cf. A. J. Greimas, Da imperfeição. São Paulo: Hacker Editores, 2002.
43
beber, exaurido de significados – dá lugar a uma forma mítica de apreciação do mesmo
na cadeia de eventos sintagmática da ingestão de cerveja. A figuratividade do anúncio
reforça os valores utópicos do produto, sua “sexualidade”. O enunciatário – que viu seu
investimento erótico fracassar, apanhado na anedota do enunciado – é convocado a
experimentar uma nova configuração dos modos de sociabilidade no beber, e o
constrangimento pela revelação de um erotismo ilusório agora é apenas reminiscente.
Através do simulacro de um seio, o enunciatário entra em conjunção com um simulacro
de mulher, sentido que a publicidade atribui recorrentemente à cerveja. Em última
análise, o bebedor desta cerveja experimenta, através deste gesto absolutamente
ordinário, um sopro libidinal, uma reação simpática e uma excitação sumária, como se o
discernimento o abandonasse, e só lhe acenasse a possibilidade de um seio verdadeiro.
Este tipo de simulacro de presença na publicidade, construído através de
“corpos de papel”, ilegítimos e objetiváveis, opera certamente através de um regime
diferente daquele observado no erotismo acintoso das imagens anteriores, em que a
dimensão estésica é notória. Naquelas imagens, corpos legítimos dando-se a ver
enquanto sujeitos; nesta, um corpo que logo revela-se objeto. Estas observações
preliminares sugerem que, na ausência de um interlocutor dado, figurativizado no
enunciado, as apologias à dimensão sexual dão-se através de um processo de
significação meramente cognitivo, o que, a priori, implicaria um comprometimento do
erotismo.
Esta seria uma hipótese bastante inofensiva, uma vez que, ao analisar
imagens publicitárias, estamos invariave lmente tratando de simulacros de presença de
toda sorte e natureza, em que operam de maneira inextricável tanto uma dimensão
cognitiva quanto outra sensível. Mesmo na ausência inconteste de um actante sujeito no
enunciado, de um corpo desejante, o sensível se faz presente e efetivo no plano da
expressão formalizado. Nestes termos, parece mais pertinente interpelarmos estas
sugestivas imagens buscando esclarecer como a intersubjetividade se põe em tais
circunstâncias. A ausência do corpo verdadeiro, vivo, desejante, inviabiliza o deflagrar
do erotismo? Em que medida esta ausência interfere no despertar da libido? Como o
enunciatário seria convocado a significar, diante de tais simulacros, uma iconicidade58
erótica, porém oblíqua e muitas vezes irônica?
58 O termo iconicidade é aqui usado no sentido de “resultado da produção de um efeito de sentido de realidade” sugerido por J. M. Floch.
44
Na publicidade impressa, alguns recursos são bastante recorrentes quando o
assunto é fornecer ao destinatário uma composição facilmente identificável como de
natureza erótica. Em “Presenças do Outro”, Landowski descreve em seu “quadro de
damas” a instauração do desejo através de uma permuta em ato da sensibilidade
subjetiva. Na tipologia proposta pelo autor, o estado de comoção dos corpos
figurativizados é a chave articuladora das categorias: sujeito socializado, corpo
estetizado, sujeito provocante e corpo possuído, que se revelam e convocam o
enunciatário no estabelecimento de uma trama de olhares bem definida59.
Construindo subjetividades
Como pudemos observar na última imagem analisada, a construção
metonímica de uma presença simulada na ausência de uma intersubjetividade
constituída parece sugerir um regime de interação da ordem do erótico. Recuperando as
impressões colhidas nas imagens anteriores, poderíamos apontar uma característica
recorrente nesta gramática do desejo enunciado, que diz respeito à atenuação daquele
sentido que já identificamos com da ordem do “perturbador”. Os estados de possessão e
o próprio erotismo, que se cristalizam acintosamente em imagens (publicitárias ou não)
figurando a reciprocidade entre corpos desejantes, parecem arrefecer nas imagens em
que as presenças são construídas, ou melhor, simuladas. Na figura 7, um exemplo de
anúncios isotópicos, com programas narrativos similares, que podem ilustrar esta
observação. Ambas as imagens anunciam um produto como objeto modal cuja
manifestação é tornar seu usuário – o enunciador – irresistível nos preâmbulos da
sedução. Os dois enunciados figurativizam a promessa de conquista através da
competência doada pelo produto. Os dois prometem a mesma coisa. Entretanto, entre
um e outro, uma indiscutível variação da expressão, que se reflete na homologação do
conteúdo.
O anúncio 7a traz dois jovens – um rapaz e uma garota – entrelaçados no
exercício de suas lascividade pueris. Ambos mostram interesse sexual. A jovem, mais
determinada, agarra seu parceiro pela virilha, que retribui a ousada investida com um
olhar cúmplice de aceitação. O permissivo rapaz carrega a jovem nos braços, porém
pelas costas, como o faria se portasse uma carga a atravancar seus movimentos. O texto
59 E. Landowski. Presenças do outro . São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 156.
45
verbal reitera este sentido aparentemente disfórico de uma parceira que se torna um
fardo enfadonho e limitante, pois é esta ironia que sustenta como a conquista
ambicionada tornar-se-á banal.
a b
Figura 7 – O erótico suavizado
Plugg, Esquire, 2004; Axe, Playboy, 2005
Em 7b, a mesma promessa de sucesso no jogo da conquista toma forma
numa construção lúdica que usa fios e extensões elétricas. Entretanto, dificilmente
afirmaríamos que o erotismo em 7a é da mesma ordem que em 7b. Não podemos
apontar, na segunda, nenhuma construção visual que seja operante pela iconicidade dos
formantes (como na figura 6), e que remeta imediatamente a presença sensível de um
corpo desejante. Podemos, certamente, observar a distinção de gênero entre os tais fios:
o que se coloca no centro da imagem, com suas proeminências fálicas, seria o
masculino, e os demais, ao seu redor, os femininos. De novo, a estratégia é prometer ao
enunciatário um sucesso avassalador, um super-poder de conquista e atração que, neste
caso específico, se vê figurativizado na atitude “libertina” das serpenteantes extensões,
abduzidas coletivamente pelos encantos penetrantes do usuário do produto. Contudo, a
astúcia deste enunciado reside na referência a um erotismo não imediato, cristalizado de
fato no processo cognitivo de apreensão do sentido. Vale lembrar que se trata de um
anúncio de desodorante da marca Axe, direcionado ao público masculino, dividido em
46
três páginas subseqüentes, e todos os objetos utilizados animam-se pela iminência da
idéia da penetração . Em todas elas o mesmo conceito (“o efeito Axe”) é figurativizado
de maneiras diferentes, sempre na ausência de um corpo, mesmo que construído. O
comportamento sexual destes objetos inanimados corresponde, em última análise, a
simulacros de intersubjetividades deflagrados pelo implacável fazer do hipnótico elixir
anunciado. Não poderá haver indiferença frente a encantos tão irresistíveis. Toda
resistência será subjugada
a b
Figura 8 – “O efeito Axe”
Axe, Playboy, 2005
O que observamos entre 7a e 7b-8a-8b não foi a suavização eminentemente
visual de um erotismo explícito, através de um enunciado mais espirituoso e inventivo,
estratégia que poderíamos relacionar com uma ética implicada no fazer publicitário. O
mais relevante, nesta configuração actancial dos anúncios de “Axe”, é a apresentação de
um simulacro de intersubjetividade totalmente construído na ausência do corpo. A vida
e o comportamento sexual adquirido pelos objetos cênicos utilizados não se apóiam em
analogias antropomórficas, capazes de sustentar uma referência direta a um sujeito
sensível. Este rearranjo lúdico da dimensão plástica sexualizante, evidente na figura 6,
por exemplo, implica tanto um sentido sexual velado quanto um enunciatário que
cognitivamente abrevie habilmente as substituições que tornam o enunciado operante.
Em outros termos, convoca um enunciatário desejoso de tais benesses prometidas,
47
ciente dos mecanismos que regem o jogo da conquista, e que identifique a construção de
sentidos conotativos nos enunciados.
Em todos os exemplos até aqui analisados, evidenciamos ao menos dois
simulacros de corpos (regidos por suas pulsões sexuais, a construir o sentido erótico)
encerrados no enunciado. À exceção da figura 2, em que o sujeito da enunciação está
presentificado efetivamente pelo olhar da jovem, participando ativamente do jogo
sensual da coquete, contabilizando três actantes interagindo, as demais imagens
parecem figurativizar um erotismo realizado nas cercanias do próprio discurso, que a
rigor independe da presença sensível do enunciatário. Contudo, como foi sugerido nas
observações iniciais deste capítulo, estes pequenos espetáculos de intimidade que nos
são dados a ver nos interpelam e nos convidam a participar deste erotismo percebido,
como se nele sempre estivéssemos envolvidos. A gramática destes enunciados de
sentido erótico pressupõe uma intersubjetividade da qual somos cúmplices, não
testemunhas. Mesmo na figura 1, em que identificamos a reciprocidade do desejo já
figurativizada entre dois amantes que nos ignoram (enunciatários), o mínimo que
podemos dizer é que, através da imagem, eles se dão a ver.
Sendo assim, nas imagens seguintes poderemos observar operações
discursivas que buscam justamente figurar alguns corpos que, ignorando ou convocando
o enunciatário, constroem um simulacro de intersubjetividade a deflagrar o sentido
erótico. É o caso específico da figura 9, em que podemos identificar um corpo de uma
jovem mulher “exemplarmente desejável”, dando-se a ver diante do enunciatário,
presentificado por seu olhar insinuante.
48
Figura 9 – O enunciatário “fisgado”
St. Paul Girl, GQ, 2005
Fica claro neste enunciado que a jovem dirige-se a seu interlocutor fora do
plano da fotografia, assumindo o papel semântico de sujeito provocante num simulacro
de “embreagem” com o enunciatário60. A jovem presentifica o sujeito da enunciação,
rompendo seu estatuto distanciado de observador despercebido, e envolvendo-o no jogo
que perfaz sua tática de sedução. Ao mesmo tempo, o sujeito da enunciação, que
também atrai sua parceira, assume o papel actancial de objeto de desejo desta. Já não
existe um agente deflagrador do desejo, pois o estatuto que passa a operar é o estésico.
O enunciado em questão constrói um sentido de reciprocidade através de um simulacro
de subjetividade (a jovem no anúnc io) que confronta o seu destinatário. Não existe
provocação, culpa ou responsabilidades. Não se trata de uma encenação sexual entre
dois actantes sujeitos. O sentido de desejo é construído tanto nas insinuações de um
quanto no deflagrar da libido do outro61, pois está implícita no enunciado a presença de
60 E. Landowski. Presenças do outro . São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 160. 61 Em 1976, Nagisa Oshima filmou “O Império dos Sentidos”, polêmico filme baseado numa tórrida e extenuante relação amorosa entre uma prostituta (Sada) e seu senhorio (Ishida). Numa passagem, Sada
49
um enunciatário a responder o interesse da jovem. Este arranjo rompe com o modelo
actancial observado na figura 1. A intersubjetividade, antes no enunciado, agora se dá
no plano da enunciação. Deixa de ser enunciada para tornar-se enunciativa, sendo que
somente um corpo desejante encontra-se figurado.
Situação análoga, porém mais pungente, encontramos em 10a e 10b: um
único corpo desejante, que se contorce possuído por sensações extasiantes, dá-se a ver
ao enunciatário. O que permite alinharmos 10a e 10b ao anúncio da figura 9 já não é o
jogo de olhares. Sem fitá- lo diretamente, a jovem em 10a e 10b convoca a presença do
enunciatário de maneira distinta. A proximidade à câmera, a provável posição do
fotógrafo, a maneira como a fotografia é manuseada numa revista, todos estes aspectos
pragmáticos supõem um enunciatário no papel actancial “virtual” de parceiro da jovem,
de seu amante em pleno intercurso sexual. Já não se trata de um espetáculo de
intimidades flagrado, mas de um espetáculo de intimidades vivido, projetado e tornado
plausível na intersubjetividade enunciativa. Desta feita, podemos inferir, a partir deste
reduzido grupo de imagens, que o sentido de co-presença de dois sujeitos (prerrogativa
da reciprocidade) pode realizar-se no enunciado ou na enunciação. No segundo caso, em
que o enunciatário torna-se o par pressuposto de um outro actante que o invita (seja pela
trama de olhares ou por outro recurso), a dimensão estésica é capital na distribuição
imediata dos papéis actanciais, uma vez que é o sentir do destinatário, interpelado por
imagens tão provocantes, que está em questão. Nos anúncios “Axe”, é na dimensão
cognitiva que o enunciado parece ganhar sentido. Tanto em 10a quanto em 10b, os
mesmos papéis actanciais sugeridos na figuratividade do anúncio são reiterados no
enunciado verbal “grind it in deeper”, em que o enunciador faz uso de um imperativo
verbal (“enfie”) modulado por um advérbio (“mais fundo”) para dirigir uma orientação
ambígua ao enunc iatário: é assim que se deve tomar uma Corona e é assim que se deve
“possuir” uma mulher.
questiona Ishida sobre sua potência sexual inabalável, pois esta seria sua maior fonte de excitação e a razão para o comportamento lascivo dela. Surpreso, o amante retruca: “a culpa é sua!”.
50
a b
Figura 10 – A intimidade vivida Corona, Playboy, 2003
No exemplo da figura 11, uma ligeira mudança na configuração dos papéis
actanciais. Uma jovem nua, usando apenas um relógio róseo-metálico e um par
(subentendido) de sandálias de salto, esparrama-se sobre uma cadeira entregue aos
prazeres da masturbação. O onanismo encenado na imagem, subsumido no comprazer-
se solitário de uma única subjetividade, é redefinido pela co-presença do produto
anunciado, o relógio róseo-metálico, que perfaz o companheiro utópico para um
momento de tamanha individualidade: o “tempo para mim”. A necessidade de prazer da
jovem e o fulgor de sua libido, que poderiam ser indicadores de uma “devassidão”
constrangedora, ficam somente entre ela e seu relógio. Cúmplice de sua concupiscência,
ele a envolve e a acompanha. Já o enunciatário, que observa esta cumplicidade,
experimenta certa retração, ignorado pela jovem ensimesmada. Resta- lhe testemunhar,
retirando do espetáculo presenciado alguma excitação, algum prazer visual, ou mesmo
experimentar o êxtase da jovem, em resposta a sua presença sensível. O que importa,
nesta análise, é atentar para a ausência de um actante sujeito, que acaba substituído pelo
fazer sentir do relógio. Em outras palavras, através do relógio, que envolve e faz a
jovem sentir, um simulacro de sujeito faz-se presente. A jovem em questão simula o
próprio estado comovido do enunciatário, prometendo a este a conjunção com seu
imaginário erótico, através da homologação deste frenesi sexual.
51
Figura 11 – O parceiro ideal
Accurist, Vogue, 2005
Temos, assim, algumas possibilidades de arranjo actancial:
Figura 12 – Arranjos actanciais
52
A maneira como o sujeito da enunciação é convocado por um corpo
desejante no enunciado define o sistema actancial que sobredetermina a interação.
Inevitavelmente, nas imagens analisadas, em que o sentido erótico é despertado,
observamos relações interssomáticas estabelecendo-se semioticamente. Na figura 12,
estão contemplados alguns arranjos actanciais observados, ilustrando os papéis
narrativos dos sujeitos da enunciação e do enunciado. Contudo, como fica claro a partir
da figura 11, o modo de presença dos actantes num enunciado erótico nem sempre se
constrói através de arranjos tão elementares. No positivismo de um esquema, corremos
o risco de ignorar possibilidades sintáticas que só podem ser verificadas no contato
direto com os sujeitos presentes nas imagens. Entretanto, partimos de 12a e de 12b, para
ocuparmo-nos em seguida de outra sorte de anúncios: exatamente aqueles em que a
relação se define entre actantes cuja subjetividade é simulada, ou seja, construída por
simulacros de embreagens na ausência de um corpo desejante verdadeiro.
Exemplos desta “ausência” que se preenche de subjetividade aparecem no
primeiro grupo de anúncios do esquema a seguir (13a), em que uma presença virtual é
sugerida por um elemento cênico, que só assume um papel actancial pelo investimento
de valor feito por sujeitos de fato presentes no enunciado. Já no segundo grupo (13b), a
presença do enunciatário – convocado pelos sujeitos do enunciado – resolve a ausência
na esfera da enunciação.
53
a
b
Figura 13 – Simulacros de intersubjetividade
Estas imagens, que em certa medida constroem uma ilusão de co-presença, o
fazem recuperando esta subjetividade oculta através de outro actante sujeito. Entretanto,
em algumas imagens evidentemente eróticas, sequer um sujeito dado se faz presente no
enunciado. Nestas imagens, observamos diversos recursos enunciativos que logram a
falta do corpo desejante e, com astúcia, dão um sentido de sexualidade ao discurso. O
simulacro encenado, invariavelmente, resgata a presença de um corpo desejante
recuperando figurativamente algum aspecto de sua existência. Esta referência recorrente
a um corpo fantasmático, fictício e, portanto, ausente, ratifica a promessa iconográfica
da publicidade já identificada por Landowski. Para o autor, os enunciados publicitários
estão sempre apontando para um alhures, mais real e mais perfeito, pois são “imagens-
54
testemunhas” que “remetem a um vasto espetáculo no qual somos convidados a
participar diretamente”62.
Na figura 14, uma construção gestáltica de figura-fundo dá forma a um vulto
fantasmático e deixa poucas dúvidas acerca dos atributos estéticos do corpo feminino a
que se refere. Contudo, este negativo bidimensional de uma presença autêntica e
inegável já é, concomitantemente, uma forma de ausência. Através dela, abre-se uma
lacuna em que a consumidora pode projetar sua própria subjetividade e antever, como se
estivesse diante de um espelho mágico, as benesses a que terá acesso. Nos limites
invejáveis da exígua silhueta apresentada, está confinado o simulacro de corpo
almejado.
Por sinal, o contorno é o valor prometido pelo produto anunciado, um
depilador íntimo da marca Remington. Além da depilação precisa e delicada de pêlos,
um cuidado estético deveras relevante para se vestir um biquíni, o produto também dá
forma e contorno ao simulacro de sua usuária, figurativizada numa mulher bem depilada
e esbelta numa construção concreta da promessa: é o enunciado verbal “novo depilador
para biquíni da Remington” que dá forma a seus pêlos pubianos.
Figura 14 – O vulto
Remington, Marie Claire, 2004
62 E. Landowski. Presenças do outro . São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 138.
55
Não parece haver dúvida que diante de uma imagem tão eloqüente, uma
dimensão erótica seja instaurada. A presença significante da jovem que nos fala de sua
desejabilidade é indissociável do cândido e ao mesmo tempo enigmático contorno.
Expondo-se diante de seu interlocutor, liberta de seus pudores pela certeza do
anonimato, a bela jovem revela sua intimidade com plácida altivez. É ao enunciatário
que cabe fechar o circuito da co-presença, pois é a ele que ela se refere. Em outras
palavras, é por ele que ela é.
Temos, neste último anúncio, uma recuperação relativa do modelo actancial
que está ilustrado no anúncio “grind it deeper” (10b), pois em ambos inexiste no
enunciado um segundo actante sujeito. Tanto lá como cá, é na esfera da enunciação que
uma subjetividade se vincula a outra. Contudo, este último anúncio parece caracterizar
uma variação semiótica do modelo identificado, pois a intersubjetividade enunciativa
que caracteriza este tipo de arranjo encontra-se parcialmente obliterada pelo modo
inexato de presença da jovem fantasmática. A partir da identificação deste jogo
semântico entre presença e ausência, deste tipo de subjetividade inacabada ou “parcial”,
devemos investir na análise destes corpos quiméricos, o que não necessariamente
implica verificar a legitimidade do erotismo, mas o seu mecanismo semiótico.
3.3 O sex appeal do inorgânico63
A partir deste momento, concentraremos nossos esforços no estudo de
imagens eloqüentes com grande referência ao sexual, que nos seduzem, ou melhor,
buscam nos seduzir, através de encenações em que esta subjetividade está ausente.
Trataremos agora de simulacros de sujeitos que nos convocam sem se revelar a si
mesmos. Sujeitos fugidios, invisíveis, incompletos ou inexistentes, cuja imanência
sensível pode ainda nos surpreender.
No apagar da co-presença sensível entre actantes sujeitos, ou da encenação
desta co-presença (como é o que ocorre através da fotografia publicitária), o simulacro
erótico é agora um simulacro “simulado”. Aos olhos de seus destinatários, estas
encenações insopitavelmente sexuais ganham forma na ausência de corpos legítimos,
através da capciosa construção de “corpos de papel” (falsos, parciais, ilegítimos...), que
63 O título desta seção é tomado emprestado do livro homônimo de Mario Perniola, em que é descrita uma forma de sexualidade transversal, entre os sujeitos e os objetos.
56
deflagram nossa libido aquiescente em busca de pequenos prazeres visuais, como se
desmascarassem embaraçosamente nossas perversões adormecidas. Estes corpos
somente tornam-se operantes (desejantes) mediante a referência a uma subjetividade
plausível (por conseguinte, verdadeira). Entretanto, o sentido de erotismo vinculado a
tais simulacros experimenta um esmorecimento proporcional ao “comedimento” de sua
iconicidade. Em outros termos, é como se o sexual perdesse a propriedade de nos falar
diretamente, de “apresentar” aqueles sujeitos a nos comover, para nos interpelar através
de “representações” de corpos privados de sua subjetividade, o que configuraria um
regime de interação da ordem da junção. Tomemos o exemplo abaixo a partir deste
ponto de vista.
Figura 15 – Subjetividades construídas La Olla Caliente, Arena, 2003
Não podemos apontar na imagem acima nenhuma estratégia enunciativa que
busque remeter a um simulacro de corpo pela iconicidade plástica no plano da
expressão. Pelo contrário, a construção do sentido sexual, que no exemplo da figura 6 se
dá através de uma metáfora visual de um seio e de um recurso metonímico de
linguagem, na figura 15 passa por uma simulação de subjetividades de outra ordem. O
anúncio é de um restaurante erótico espanhol chamado “La Olla Caliente”. Traz a
imagem de um prato retangular, decorado com ramos verdes e sementes vermelhas,
sobre o qual o encaixe engenhoso de dois camarões faz alusão a uma posição sexual. O
57
que está figurativizado, portanto, não é mais da ordem de um corpo estético que se dá a
ver ao enunciatário, na certeza de sua desejabilidade. O simulacro apresentado é o da
intersubjetividade real, narrativizada pelo comportamento libidinoso dos actantes. Em
outros termos, o enunciado personifica duas subjetividades pela simulação da volição
dos camarões, animando-os a manifestar um desejo que autoriza uma espécie de
“metamorfose” semiótica. Eis ali, deitados sobre o prato, dois indivíduos aprazendo-se
reciprocamente. Entretanto, tal é o desvio figurativo, a restringir qualquer vínculo com
corpos reais, que o sentido erótico resultante somente torna-se operante numa dimensão
cognitiva. É o ardil insólito do preparador que está sendo revelado pelo prato, uma
apimentada e excitante iguaria. Tais encantos gustativos convocam diferentes ordens
sensoriais, remetendo a uma desejabilidade sinestésica que já não é somente da ordem
do paladar, mas do prazer sexual. A deleitosa refeição resultante é o objeto de valor
oferecido pelo anúncio, um simples quitute que acaba por se tornar afrodisíaco no fazer
competente do restaurante.
Diferentemente da imagem 14, a imagem 15 apresenta um arranjo actancial
sexual dentro do enunciado. O destinatário é o espectador interessado do espetáculo, e
seu papel actancial é similar ao apresentado no esquema 12a. Contudo, a erotização
deste enunciado passa necessariamente por um fazer cognitivo do enunciatário, ciente
tanto da provocação que lhe esta sendo feita quanto do distanciamento figurativo que
atenua o impacto da conotação sexual.
Esta intersubjetividade enunciada é um simulacro rasteiro da presente, por
exemplo, na imagem 1, que ilustrava a reciprocidade do desejo, operando de maneira
contundente na presença figurada de dois corpos autênticos, cálidos, sensíveis. Como já
foi colocado, na ausência de tais qualidades contagiantes, o sentido de erotismo e a
construção de um simulacro de sexualidade passam a ocorrer mais proeminentemente
numa dimensão cognitiva. O mesmo tipo de intersubjetividade pode ser observado na
imagem 16, anúncio que personifica actantes sujeitos através de objetos subjetivados
discursivamente. É na atribuição de uma qualidade intelectiva a estes actantes objetos
(inanimados por natureza) que o simulacro de erotismo deste enunciado ganha sentido.
58
Figura 16 – “É você?”
Mont Blanc, Vogue, 2005
Como alguém que pressente a chegada de seu amante, antecipando o contato
entre seus corpos, captando suas vibrações sensíveis, seu perfume e seu calor, o actante
sujeito pressuposto no enunciado verbal “é você?” é projetado na corporeidade objetal
do primeiro relógio. O amante anunciado, ainda a revelar sua presença total, é o
simulacro que o segundo relógio materializa. A estratégia se assemelha à utilizada no
anúncio da figura 15, em que já tínhamos ensejados dois sujeitos dotados de uma
intelecção volitiva; aqui e lá, podemos tomar estas subjetividades construídas como
simulacros de um actante sujeito que presentifica o enunciatário, envolvendo-o no
universo iconográfico de cada texto, como se ocupassem contingentemente o lugar e o
papel que lhe cabem. Nestas condições, os argumentos colocados parecem indicar que a
subjetividade do enunciatário é que se encontra figurada em cada um destes simulacros
de intersubjetividade.
A partir dos exemplos 14, 15 e 16, amostras bastante representativas dos
simulacros de subjetividade engendrados no discurso publicitário, podemos acrescentar
ao modelo da figura 12, as categorias ilustradas abaixo. Nestas, ao contrário do que
59
verificamos naquele modelo, os actantes sujeitos no enunciado são subjetividades
construídas, simulacros de subjetividade que capitalizam esta não autenticidade. Estes
simulacros de presença convocam o enunciatário a significar os enunciados na
“ausência” dos corpos (processo semiótico que implica uma referência a um actante
externo) e despertam aqueles efeitos de intersubjetividade identificados nas demais
figuras.
Na presença de um actante sujeito simulando um estado “debreado”, vimos
que o enunciatário pode ser convocado de várias formas: como parceiro pressuposto
deste actante (figura 10a e 10b), como seu objeto de fantasia e parceiro imaginário
(figura 11), etc. Contudo, na ausência deste actante sujeito em enunciados eróticos (17b
e 17c), o que verificamos são simulacros de presença no lugar daqueles sujeitos
autênticos anteriormente identificados. Estes efeitos de intersubjetividade podem
acontecer, assim como indicado no modelo da figura 12, entre dois actantes enunciados
ou entre um actante enunciado e o enunciatário (17c). Neste caso, temos um simulacro
de sujeito provocante dando-se a perceber como corpo desejável a um outro actante, o
enunciatário.
Figura 17 – Simulacros de subjetividade
60
Desta feita, a partir da proposta de Landowski acerca dos regimes de visão
engendrados pelos actantes, observamos no corpus analisado que os estados embreados
e debreados dos actantes figurativizados dão forma a intersubjetividades que podem se
resolver tanto no enunciado quanto na enunciação.
No percurso das análises até aqui desenvolvidas, observamos modos de
presença plenamente resolvidos, precipitando subjetividades postas em relação tanto no
enunciado quanto na enunciação. Progressivamente, estes sujeitos deram lugar a
simulacros de presenças que, ainda construindo uma temática erótica, remetiam a
subjetividades efetivas. Estes simulacros de presença operam segundo o mesmo estatuto
apontado na oposição acima, sem, contudo, fazerem uso de actantes sujeitos autênticos.
Pelo contrário. Os corpos de que se valem parecem eximir-se de uma responsabilidade
intelectiva, como se buscassem justamente apresentarem-se como meros corpos
desejantes, actantes “sujeitos” reprimidos, exauridos de suas falibilidades, de suas
indulgências, subsumidos a seu “sex appeal” residual, este derradeiro atributo
quintessencial que os torna desejáveis e que melindra uma intersubjetividade parca, mas
irrefutável.
Na figura 18, observamos uma situação singular. Os objetos utilizados não
têm vida, volição ou outra qualidade intelectiva destacada pelo enunciado. São dois
artefatos inanimados colocados lado a lado, quase como resultado dos caprichos do
acaso. O enunciado destaca os atributos pragmáticos do produto, referentes à
lubrificação dos órgãos sexuais (temática de difícil abordagem, que poderia dar origem
a um anúncio agressivo e vulgar), lançando mão de uma figuratividade absolutamente
inócua. Entretanto, o sentido sexual deste enunciado se baseia na eminência da conexão
entre o tubo e a embalagem, elementos que metaforizam, respectivamente, os órgãos
sexuais masculino (o que penetra) e feminino (que é penetrado).
61
Figura 18 – Sexualidade metafórica
Johnson & Johnson, Playboy, 2003
Um princípio guestáltico argutamente utilizado dá sentido ao anúncio.
Alinhados à mesma altura, um tubo de KY gel e uma embalagem do produto buscam
mostrar a capacidade lubrificante da fórmula anunciada pela alusão a uma penetração
que se consumará apesar da incompatibilidade patente. É evidente que temos muito
conteúdo para pouco continente, e que tal movimento magoaria a frágil embalagem
cartonada. Contudo, ao sugerir a possibilidade da operação pela contigüidade dos
objetos, o enunciado revela um atributo da ordem do extraordinário que o produto
apresenta: a competência de viabilizar esta improvável penetração. Não se fala aqui de
subjetividades que se constroem ou de corpos mimetizados realisticamente na dimensão
figurativa do anúncio. A ênfase está numa penetração subentendida, que é arquitetada
de maneira simples, quase ingênua. Ainda assim, indubitavelmente, o que está em jogo
é uma valorização eufórica do prazer, do conforto no ato sexual e do gozo, aspectos
mais abstratos de um erotismo que se revela na semântica fundamental do enunciado.
Esta estratégia discursiva se assemelha à apresentada no anúncio dos relógios que se
aproximam, pois constrói, de maneira análoga, um simulacro de intersubjetividade
enunciada: dois sujeitos que se encontram e se relacionam no enunciado. Entretanto,
nesta imagem do lubrificante, a analogia fica inteiramente por conta da dimensão visual.
Sem um enunciado verbal que a corrobore, a imagem ganha sentido de forma similar a
que observamos em 7b, 8a e 8b, ou seja, pela identificação de uma relação
62
semissimbólica de construção do masculino e do feminino implícita na forma dos
objetos utilizados. A conotação sexual do anúncio se dá pela soma de um novo sentido
(de um novo conteúdo) ao plano da expressão existente na imagem, através de uma
relação de intersecção entre dois significantes que compartilham um traço comum: a
penetração. Um significante, o tubo, está figurado. O outro, o falo, é referenciado. Esta
construção metafórica do significado do texto é bastante recorrente na literatura, que
explora amplamente a função poética do discurso. Para tanto, é necessário que haja uma
relação entre o significado que se acrescenta e o significado já presente na dimensão
denotativa do signo utilizado64.
Neste caso citados no parágrafo anterior, os objetos inanimados são alçados
a condição de actantes sujeitos do enunciado. Articulam, desta forma, um simulacro de
intersubjetividade enunciada. Neste tipo de arranjo, como já foi colocado, o enunciatário
é convidado a experimentar tais posições actanciais por se reconhecer no simulacro.
Seja o relógio, o parafuso ou o tubo de lubrificante, todos estes objetos presentificam o
enunciatário e figuram-no como beneficiário de suas promessas mirabolantes. Nestes
exemplos, as estratégias discursivas parecem passíveis de uma semiotização centrada na
dimensão cognitiva dos textos. Contudo, nem todo anúncio recorre a estas mesmas
estratégias para a edificação de um sentido erótico. Ao preencher uma ausência, estas
imagens de objetos “animados” constroem um tipo de subjetividade, e em certos casos,
a semiotização do resultado destas operações exige uma atenção aos aspectos sensíveis
implicados. Isto porque, eventualmente, alguns anúncios formalizam estes sentidos de
subjetividade por meio de metáforas da ordem do ilusório, que conduzem mais
incisivamente à corporeidade, revestindo os objetos utilizados (ausências) no véu
figurativo de uma presença real. No exemplo do anúncio anterior, o acréscimo
metafórico de um sentido fálico ao tubo (ExCxC), não constrói uma imagem cuja
iconicidade revela um significado sexual explícito. Pelo contrário, é justamente o
distanciamento figurativo entre falo e tubo que atenua a “abrasividade” da imagem.
Entretanto, lá está o sentido sexual, garantido pelo traço comum aos dois significantes.
Neste ponto, deparamos com uma questão sistemática em nosso estudo: qual seria, em
termos semióticos, a diferença entre o “sexual” o “erótico”? O anúncio do lubrificante
pertence a um grupo de imagens que nos fala de uma sexualidade inicialmente “muda”,
64 J. L. Fiorin. Metaphore et métonymie: deux processus de construction du discours. In: J. M. Gressin (org.). Dictionnaire international de termes littéraires. Limoges, Association Internationale de Littérature Comparée/ Université de Limoges, http://www.ditl.info/arttest/art8000.php.
63
que se manifesta, torna-se operante, nos sensibiliza por meio de um processo cognitivo
de identificação dos significantes. As imagens de um outro grupo, ainda na ausência da
intersubjetividade, falam-nos desta mesma sexualidade ao recuperar sentidos de
presença – indispensáveis ao mecanismo dialógico do erotismo – e instauram uma
relação interactancial da ordem do desejo. A conotação sexual parece patente nos dois
grupos. De uma forma ou de outra, fala-se de sexo, de êxtase, de conquistadores e
conquistados, de aprazer e comprazer-se. Entretanto, o sentido erótico parece depender
da instauração de um vínculo entre o sujeito do enunciado e o da enunciação, baseado
num desejo recíproco. Neste sentido, a construção metafórica da figura 18,
evidentemente sexual, não chega, contudo, a caracterizar aquilo que tomamos como um
sentido erótico entre actantes.
3.4 O erotismo e a corporeidade
Só acredito naquilo que posso tocar. Não acredito, por exemplo, em Luiza Brunet. (Luiz Fernando Veríssimo)
Nos anúncios analisados até o momento, vimos diferentes formas de
exploração do sexual. Partimos de simulacros de presença evidentes, em que o registro
do erótico correspondia àquele sentido de reciprocidade entre corpos desejantes adotado
no capítulo 2, e identificamos formas mais brandas de manifestação do sexual,
arrefecendo no percurso cognitivo das construções conotativas.
Buscaremos, a partir de agora, dar conta justamente deste último tipo de
encenação, em que os corpos estão ausentes, ou desprovidos de subjetividade, parciais e
improváveis, a engendrar efeitos de sexualidade. Para tanto, e isto parece determinante,
estes singulares anúncios constroem formas de presença, substitutos semióticos dos
corpos verdadeiros, no intuito de deflagrar um sentido sexual. Entretanto, o erotismo
depende do efeito de veracidade, “da ilusão referencial” na construção destes simulacros
de corpos, o que, com efeito, tem ligação com o tipo de relação entre os significantes
presentes nos textos e os respectivos significados.
Segundo Greimas, os dispositivos de representação, como a escrita e as artes
plásticas, fazem reconhecer uma relação entre dois sistemas, duas “realidades”, através
64
de um mecanismo de homologação. Tal mecanismo pode resultar de um processo
arbitrário de relação entre representante e representado, como é o caso da escrita
ocidental, com suas unidades discretas arranjando-se em grupos significantes, ou de um
processo motivado, a exemplo dos sistemas icônicos de representação, como a
fotografia.65 A partir da relação entre plano da expressão e plano do conteúdo, Floch
propõe uma distinção entre os sistemas simbólicos e os sistemas semióticos
propriamente ditos. Os sistemas simbólicos, ou arbitrários, apresentam conformidade
total entre os dois planos: a cada elemento da expressão corresponde um – e somente
um – elemento do conteúdo, a tal ponto que não é mais interessante para a análise a
distinção dos planos, visto que têm a mesma forma 66. Nos sistemas semióticos, a
relação de conformidade entre os planos é nula, tal como acontece com as línguas
naturais. Entre estes dois sistemas, aquém das relações arbitrárias, além da não
correspondência, Floch identifica os sistemas semi-simbólicos, que se definem pela
conformidade não entre os elementos isolados dos dois planos, mas entre categorias da
expressão e categorias do conteúdo. Por exemplo, nas pinturas do período renascentista,
fica tácita a relação da categoria superior/inferior, no plano da expressão, com a
categoria semântica céu/inferno no conteúdo. Quando falamos de simulacros de
presença num enunciado visual, tratamos de significantes e de aspectos da expressão
implicados na construção de um sentido de subjetividade e de sua manifestação
sensível. Estes significantes são homologáveis aos sentidos de presença apreendidos nos
termos dos processos de representação acima descritos. Desta feita, e não poderia ser
diferente, os anúncios publicitários que não figurativizam corpos desejantes, efetivam
sua temática sexual através da construção de representações, sejam elas motivadas ou
arbitrárias, de corpos perfeitamente desejáveis.
O corpo simbólico
Alguns anúncios constroem simulacros de corpos atribuindo arbitrariamente
aos elementos figurativizados, um sentido sexual que estes não possuem. Esta
construção “artificial” de sujeitos valorados sexualmente dá-se através da relação
absolutamente simbólica entre elementos da expressão e do conteúdo. Geralmente, este 65 A. J. Greimas, Semiótica figurativa e semiótica plástica , in Semiótica Plástica / org. Ana Cláudia de Oliveira. São Paulo: Hacker Editores, 2004. 66 J. M. Floch. Alguns conceitos fundamentais em Semiótica geral. 1ed. São Paulo: Ed. CPS, 2001.
65
tipo de encenação vincula um sentido sexual ao discurso através de investimentos
semânticos reiterados tanto no enunciado verbal quanto no visual. No anúncio da figura
19, identificamos um enunciado que exemplifica muito claramente este tipo de
encenação.
Figura 19 – O não-sujeito
Siemens, Marie Claire, 2005
O que ocorre é uma projeção arbitrária de um sentido sexual sobre actantes
objetais, uma modalização realizante que provoca mais que uma atualização subjetal
dos produtos anunciados. Implica, na verdade, a dissolução das propriedades
idiossincráticas da subjetividade, sublimadas agora na objetidade das coisas: o “sex
appeal” do inorgânico. Esta categoria de imagens revela uma hibridização entre aquilo
mesmo que nos acostumamos a identificar como da ordem do sexual, ou seja, do
interesse motivado pelo encontro de subjetividades, o desejo erótico propriamente dito,
66
com aquilo que é da ordem do querer objetal, inorgânico, cadenciado pela dimensão
pragmática da aquisição, da posse e do usufruto do inanimado. No exemplo do não-
sujeito da figura 19, bem como no anúncio 20, observamos este investimento de valores
sexuais no produto.
Entretanto, neste grupo de anúncios, os efeitos de erotismo não parecem
obtidos, mas pressupostos. Já é esperado que o enunciatário apresente uma inclinação de
ordem sexual em seu comportamento consumidor, pois o produto ali anunciado
manifesta uma qualidade erótica, ou seja, eminentemente sexual, que lhe é atribuída de
maneira arbitrária. No caso específico do anúncio da figura 31, o elemento que
corrobora esta qualidade, a saliência em forma de “x” que cruza o aparelho celular, na
verdade desempenha um papel articulador, pois apenas trata de ratificar a sua
“desejabilidade”. Situação análoga, talvez mais contundente, ocorre através da imagem
da maçã mordida no pequeno visor, reiteração simbólica de um valor sexual do produto.
Já não falamos de um sentido erótico sensível, mas despertado de forma mediada por
uma construção frasal e por um símbolo inteligível.
Contudo, a viabilidade de tal texto, a lógica por trás do “sex appeal” de um
objeto inanimado, tem a ver com a excitação insólita experimentada pressupostamente
pelo enunciatário do anúncio, uma predisposição parafílica (cultural, social, psicológica,
ou de outra ordem qualquer) aos desvios fetichistas da sociedade de consumo. De fato,
uma excitação desta ordem, pouco ou nada tem que ver com o sexual de que tratávamos
até aqui. Esta outra sexualidade, que verificamos implicada nas figuras 19 e 20, segue
estatuto absolutamente singular. Sobre o tema, Perniola afirma:
O que sucita inquietude e constitui um enigma é exatamente a confluência
num único fenômeno de duas dimensões opostas, o modo de ser da coisa e a
sensibilidae humana: parece que as coisas e os sentidos já não lutam entre si,
mas tenham tecido uma aliança graças à qual a abstração mais distanciada e
a excitação mais desenfreada sejam quase inseparáveis e muitas vezes
indistinguíveis. 67
Somos levados a crer numa excitação somática que só pode se realizar
através desta sexualidade “branca”, desta conjuntura metafísica que não opõe o sujeito à 67 M. Perniola, O sex appeal do inorgânico. São Paulo: Studio Nobel, 2005, p. 21.
67
coisa, mas que os tem lado a lado, desprendidos do positivismo de suas limitações
paradigmáticas.
A aliança entre os sentidos e as coisas permite o acesso a uma sexualidade
neutra, que implica uma suspensão do sentir: esta não é uma anulação da
sensibilidade, que provocaria queda de toda tensão, mas o ingresso em uma
experiência deslocada, descentrada, livre da intenção de atingir um objetivo.
Sentir-se como uma coisa que sente quer dizer, antes de mais nada,
emancipar-se de uma concepção instrumental da excitação sexual que a
considera naturalmente direcionada para a obtenção do orgasmo.68
Aqui, o erotismo desprende-se do corpo e da subjetividade, suprimidos,
consagrando os valores inscritos no objeto. À medida que concebemos esta sexualidade
neutra e passamos a aceitar sua efetividade, anuímos, em última análise, à cristalização
de um não-sujeito absolutamente operante. Em outras palavras, existiria ainda aqui um
sentido erótico, mesmo que de outra ordem, sustentado nas qualidades plásticas e
(principalmente) míticas de um objeto definido contingentemente como corpo. Este
não-sujeito dá-se a ver totalmente, pois seu “sex-appeal” decorre justamente de seu
magnetismo plástico, de sua desejabilidade inorgânica, de sua infalibilidade.
Diferentemente dos anúncios com corpos autênticos, que valoravam sobretudo as
formas do corpo, os atributos formais aqui relevantes para a caracterização de um
sentido erótico (seja ele qual for) são justamente aqueles que um corpo jamais
apresentaria.
Na figura 20, outro exemplo bastante similar. O diferencial destacado pelo
verbal, uma propriedade “sedutora”, marca uma indefinição que opera um jogo
capcioso: tanto o produto quanto seu enunciatário (seu potencial usuário) podem estar
sendo descritos na expressão “nascido para seduzir”, o que cria um sentido de
identificação. O produto, irresistível ao consumidor, o consumidor irresistível aos seus
pares.
68 Ibidem, p. 22.
68
Figura 20 – Sedução sem corpo Siemens, Cosmopolitan, 2005
Outros exemplos bastante expressivos podem ser observados no esquema
abaixo. Em grupo, estas imagens reforçam a idéia de uma sexualidade em que pesam
fatores distintos daqueles intersubjetivos. São os produtos, objetos inanimados, que
apresentam as qualidades sexuais anteriormente atribuídas aos corpos ou aos seus
simulacros.
69
a b
c d
Figura 21 – Objetos do desejo
Mont Blanc, Vogue, 2005; Lord Taylor, Elle, 2005; Citroën, Vogue, 2004; Pirassununga, Playboy, 2003.
Ainda nesta categoria de imagens, observamos enunciados publicitários que
se valem de um expediente centrado no simulacro de subjetividade. A rigor, estes
anúncios são marcados por um processo distinto, fundamentado numa temática
subjetivante, em que os objetos cênicos – ou mesmo os produtos anunciados –
70
apresentam um comportamento subjetal, animados por uma sexualidade volitiva que
não possuem, mas que manifestam discursivamente. Como pode ser observado na figura
22, este simulacro de erotismo não busca nível algum de iconicidade nas imagens
produzidas. Pelo contrário, o que estes simulacros de subjetividade configuram é da
ordem de um animismo dos produtos apresentados, da personificação através do
comportamento libidinoso: objetos-sujeitos, cuja sexualidade o enunciado constrói. De
fato, cabe ao enunciatário aceitar a arbitrariedade um tanto absurda destas imagens.
Figura 22 – Crime passional Heineken, Esquire, 2005
71
Neste interessante anúncio, composto por cinco imagens subseqüentes,
temos uma pequena narrativa de notável riqueza temática. Um sujeito, por razões
passionais, atenta contra a vida de sua amada. Ele, mais um na multidão, enamorado
justamente dela, desejada por todos, ao alcance de poucos. Possuído pela paixão, ele
espreita sua amada na calada da noite. Tomado pela febre de seu sentimento, perde a
cabeça... Acaba atentando contra a vida dela. A vítima, donzela vulnerável, cai a verter
seus humores, atraindo a curiosidade mórbida de uma multidão estarrecida. De volta à
cena do crime, ele acaba apanhado. Será reconhecido? Ela sobreviveu...
Este argumento temático extenuantemente aplicado na literatura policial e no
cinema noir pouco interesse nos despertaria, não fossem os protagonistas uma garrafa
de cerveja e um abridor, simulacros de actantes sujeitos exercitando suas pulsões, suas
libidos, suas paixões... Não são pessoas nem parecem com pessoas, no entanto
comportam-se como se o fossem. A arbitrariedade destes anúncios, em que os papéis
narrativos cabem a objetos inanimados, se dissolve no sentido conotativo do discurso
empregado. Aos signos denotados “garrafa” e “abridor”, são atribuídos novos sentidos,
e a não pertinência destes, a estranheza que causam, permite o reconhecimento da
conotação. Já não temos simplesmente os objetos “abridor” e “garrafa”. A encenação
nos traz, na verdade, dois sujeitos. Um verdadeiro universo paralelo, fantasioso, mas no
qual o objeto de desejo do aturdido abridor, motivador da desmedida paixão, é o mesmo
produto que nos é anunciado, um elo entre dois mundos, uma cerveja avassaladora, que
cobra de seu apreciador (como cobrou do desiludido instrumento) uma insana
reverência. As minúcias deste anúncio, o jogo de luzes e a inusitada cenografia dão
forma a um espetáculo amoroso irredutivelmente plausível que leva o destinatário a
confabular hipóteses que justifiquem o ocorrido. Na figura seguinte, duas configurações
semelhantes.
72
a b
Figura 23 – Inocência perdida
Portal Chueca.com, Arena, 2003.
Estas duas fotografias bastante despretensiosas fazem parte de um conjunto
de anúncios do site espanhol Chueca.com, um portal de relacionamentos voltado ao
público homossexual. Em ambas observamos bastante comedimento cênico, pouca
iluminação e uma notável simplicidade. No entanto, o que se encontra de fato reiterado
nestas imagens é a mesma motivação de ordem sexual que animava o abridor do
anúncio anterior. Em 23b, um pequeno urso-confeito avermelhado rompe o invólucro
plástico da embalagem que o aprisionava e vai acomodar-se ao lado de outro pequeno
urso-confeito avermelhado, cobrando deste o conforto da conformidade com os demais.
Na verdade, fugindo do espaço que lhe havia sido reservado, o pequeno ator rompe com
um estatuto, com um propósito que já não lhe interessa servir. Está aqui implicado um
querer que impulsiona a performance, um querer homossexual: um desejo do mesmo,
do semelhante, do proibido, ainda nascente e inocente, próprio dos primeiros anos, da
idade das descobertas, da concupiscência inocente permitida às crianças. Embora seja
indiscutível a iconicidade patente em 23a, o arranjo dos elementos cênicos – dois
bonecos de uma mesa de pebolim – também implica uma volição sexual manifestada
por objetos inanimados. Esta prosopopéia publicitária, que não é da ordem do
antropomorfismo, mas da subjetivação, é o traço marcante destas imagens, e pode ser
verificada também nos anúncios seguintes.
73
a
b
c
Figura 24 – Objetos-sujeitos
Johnson & Johnson, Playboy, 2003; Nokia, Playboy, 2004; Devassa, Playboy, 2004
74
O corpo motivado
Os corpos nos anúncios a seguir são o resultado de estratégias enunciativas
com grande apelo conotativo. Na ausência de sujeitos históricos, autênticos, os
enunciados remetem ao sentido de presença através do acréscimo de novos significados
àqueles signos denotados que já traziam uma relação de expressão e conteúdo (ERC). O
que passamos a observar agora, são signos cujo plano da expressão já é um signo, ou
seja, signos conotados. Desta feita, para deflagrar do sentido de corporeidadede, é
necessário haja uma relação entre o significado que se acrescenta (corpo desejante) e o
significado já presente nos significantes utilizados (ERCRC). Quando esta operação for
o resultado de uma relação de semelhança, temos uma conotação sexual da ordem da
metáfora. Quando for o desdobramento discursivo de uma relação de contigüidade ou
coexistência, o que se coloca é uma sexualização da ordem da metonímia69.
Corpo metonímico
Na figura 25, o simulacro de presença insinua-se de maneira singular e,
como resultado, percebemos um erotismo menos velado que nas imagens simbólicas.
Isto parece decorrer da identificação dos traços figurativos de uma corporeidade, que
nos permite reconhecer mais rapidamente uma tematização erótica.
69 J. L. Fiorin. Metaphore et métonymie: deux processus de construction du discours. In: J. M. Gressin (org.). Dictionnaire international de termes littéraires. Limoges, Association Internationale de Littérature Comparée/ Université de Limoges, http://www.ditl.info/arttest/art8000.php.
75
Figura 25 – Erotismo e corporeidade Axe, Playboy, 2003
Nesta imagem, temos a fachada de um prédio, à qual se prendem dois varais.
No varal da esquerda, um par de meias e outro de calças aparentemente masculinas. No
outro, à direita, uma blusa feminina e uma calcinha. O slogan do anúncio é o mesmo das
campanhas anteriores: “o efeito Axe”. Como aquelas, segue o mesmo princípio
anteriormente identificado: o usuário do produto é dotado de um irresistível sex appeal,
como se passasse a portar aquele anel descoberto por Turpino. Neste flagrante
fotográfico, a blusa da moradora do apartamento à direita parece responder ao
irresistível perfume do morador do apartamento à esquerda, remanescente em sua roupa.
Sensibilizada pelo encanto, a atrevida blusa manifesta um movimento bastante
inusitado, confirmando a competência mítica do produto já apontada nos anúncios com
apontadores, parafusos e extensões. Entretanto, nesta imagem em particular, a
insinuação sexual fica por conta de elementos cênicos que recuperam uma corporeidade
figurativa inexistente nos anúncios precedentes. Isto porque tanto a calça masculina
quanto a blusa feminina remetem aos corpos que os ocuparam por guardar semelhança
com suas formas. Estes atributos formais são, no mínimo, indícios incontestáveis de
duas subjetividades não mostradas. Em algum lugar além daquelas janelas, no universo
iconográfico paralelo criado pelo anúncio, dois indivíduos de sexos diferentes esperam
suas roupas secar. Um deles – o homem – usa um desodorante que o torna irresistível.
Este alhures para o qual aponta a imagem, esta história prévia de que a imagem é uma
76
singela precipitação, sugere uma intersubjetividade autêntica por trás da prosopopéia
que nos é apresentada. Ainda assim, falamos aqui de um erotismo que se constrói no
flagrante fotográfico, no comportamento lascivo da blusa e na permissividade da calça.
Curioso que a posição das duas peças poderia mesmo ter resultado simplesmente do ato
corriqueiro e desinteressado de estender a roupa no varal; a mulher o teria feito depois,
o que causou o inusitado encaixe das peças.
Esta libido enunciada, entendida aqui como a energia sexual contagiante que
anima o actante sujeito, pede inequivocamente um sujeito desejante como par
pressuposto. Esta dialética do desejo – libido mais sujeito desejante – que abordamos
sob a fórmula da intersubjetividade recuperada no enunciado, alça-se além da dimensão
cognitiva acintosamente relevante nas representações simbólicas. Através desta
corporeidade mais crível da figura 25, o enunciado apresenta, na ausência de corpos,
uma encenação intersomática que se torna significante por sua dimensão sensível. O
enunciatário é convocado a assumir uma das posições actanciais “lacunares”; como se
pudesse antecipar, na imediatidade da apreensão em ato, as carícias que receberia se
usasse o produto, ele vislumbra sua própria imagem, sua própria subjetividade
mediatizada no simulacro publicitário.
Retomemos o anúncio 18, aquele em que um tubo de lubrificante investia
contra uma embalagem de papel, e o tipo de presença a que dava forma. Assim como o
anúncio 25, ele encena uma intersomaticidade artificial através da presença de dois
simulacros de actantes sujeitos. No anúncio 18, a subjetividade é uma instância
construída obliquamente, pela analogia entre os objetos utilizados e órgãos sexuais. Já
no anúncio 25, como foi colocado no parágrafo anterior, o simulacro apóia-se numa
alusão sensível a corpos que se movem, se tocam e manifestam suas libidos, e que, de
qualquer forma, estão pressupostos no interior daquelas paredes. Entretanto, salvo tais
aspectos dissonantes, ambas as imagens constroem simulacros de intersubjetividade que
são encenados para um terceiro actante: o enunciatário. Contrária a esta categoria de
intersubjetividade enunciada, temos aquela que aciona o enunciatário enquanto sujeito
desejante segundo um arranjo actancial que agora se dá no plano da enunciação (16c).
Nesta categoria, observamos uma disposição de actantes que se assemelha à da figura 9
(em que a jovem garçonete fita o destinatário e oferece- lhe uma cerveja), e cujo
desdobramento já havíamos identificado no anúncio do vulto negativo do aparelho de
depilação (figura 14). Este actante sujeito apresentado é uma espécie de menção
77
figurativa de um indivíduo alhures, uma referência a sua presença, uma impressão
icônica que guarda o formato de seu corpo e que atesta sua existência. Tal arranjo
minimal, que figurativiza um único actante em traços parcos de sua materialidade,
implica efeitos de subjetividade que tocam a própria subjetividade do destinatário. À
medida que o simulacro de presença vai sendo despido de sua corporeidade orgânica,
assume gradativamente a condição de uma presença que já não é completa. Este
simulacro de presença simulado pode ser observado nas figuras 26 e 27, ambas a
recuperar semioticamente corpos através de vestígios de sua existência. O mesmo
mecanismo também operava no anúncio das roupas no varal.
A figura 26 traz um anúncio comemorativo dos trinta anos da revista
Playboy. Nele, alguns guardanapos, um jogo de talheres, um bolo branco com duas
depressões e velas recém apagadas no topo. A sugestão de uma desembaraçada mulher
transitando nas imediações daquela mesa com os seios lambuzados em glacê substitui a
encenação de uma corporeidade efetiva, figurativizada na plasticidade erótica de um
corpo desejável. O texto visual resgata esta subjetividade fugidia através das “pegadas”
impressas no bolo. O erotismo por trás da imagem se cristaliza no vácuo deste corpo
elíptico, cuja identidade o enunciado verbal ajuda a definir: “Grazi na Playboy 30 anos.
O nosso presente para você”. De maneira similar ao que acontece no anúncio 25, esta
imagem faz referência à existência real de um corpo que a explica. Entretanto, este
modo de operação do erotismo prescinde mais profundamente da alusão figurativa a um
corpo e, diferentemente do que também ocorre no anúncio do gel lubrificante, não
constrói subjetividades através da personificação de objetos inanimados. Eis nesta
imagem um simulacro de presença puramente vestigial dando forma a uma encenação
erótica assaz saliente.
78
Figura 26 – “Pegadas” da presença
Playboy, Playboy, 2005
A fotografia revela que algo precedeu aquele momento, determinando tal
sentido sexual. Um evento furtivo, consumado, que escapou do flagrante, mas deixou
deliberadamente provas de sua ocorrência. A frustração pelo atraso ganha dimensão
ainda maior no subliminar traçado da fumaça das velas, que há muito pouco ainda
queimavam. Foi realmente por pouco... Na verdade, a imagem parece mesmo sugerir
que no avançar sobre as próximas páginas da revista, o destinatário poderá deparar-se
com a donzela caramelada, que ariscamente se esquiva de seus pretendentes.
Este quadro é análogo ao da imagem 27, anúncio quase monótono de um
desodorante feminino, que apresenta um sinal residual de um ato sexual já consumado,
um erotismo procrastinado, reminiscente, também possível na ausência do corpo.
79
Figura 27 – O erótico vestigial
Klimax, Esquire, 2003
A figura 28 opera a mesma sorte de estratégia, sugerindo através de uma
imagem admiravelmente sintética um corpo e suas implicações fisiológicas. Da mesma
forma que os dois anúncios anteriores, este enunciado sincrético é um desdobramento,
um resultado de uma situação anterior catalisada pela presença já desfeita do corpo.
Como a fotografia do bolo que fora impressionado pelos seios, esta imagem da roupa
íntima maculada remete a um modo de presença com aspecto incoativo, que rompe a
duratividade do enunciado e pressupõe uma causalidade, uma seqüência de ações e
fatores que antecederam a encenação capturada. Este aspecto incoativo da presença é
que vincula o corpo ao enunciado. Entretanto, é interessante observar que a ausência do
corpo neste anúncio parece operar justamente uma suavização da temática tratada, da
ordem do escatológico. Este mesmo processo de amenização da presença, ou melhor, da
manifestação do corpo, tem repercussão nas análises seguintes, e é particularmente
relevante nas investigações acerca do quão explícito um anúncio é.
80
Figura 28 – “Rastro” da presença
Andrex, Vogue, 2004
O inusitado anúncio apresenta um produto para a higiene íntima feminina. O
corpo invisível que preenche a calcinha (ausência que cria um simulacro de presença)
propicia ao enunciado ilustrar o problema que o produto pretende resolver, sem de fato
figurativizar os aspectos fisiológicos subentendidos. O diminuto texto, estrategicamente
colocado na vertical, traz os seguintes dizeres: “Você está tão limpa quanto pensa que
está?”
Corpo metafórico
De fato, as imagens acima analisadas, em que observamos vestígios de
presenças construindo simulacros de corpos, despertam o sentido erótico fazendo alusão
a uma corporeidade oculta, alhures ou ausente. Desta feita, construir simulacros de
corporeidade mostrou-se um procedimento “sexualizante” extremamente eficaz. Nesta
categoria de imagens que passamos agora a analisar, verificamos o mesmo investimento
discursivo numa sintaxe do corpo no sentido de deflagrar uma interação actancial da
ordem do desejo. Entretanto, a valoração semântica da corporeidade nestes próximos
81
anúncios não aponta para um corpo autêntico que o enunciado mantém oculto. Pelo
contrário, os simulacros de corpo nestas imagens estão dados na imediaticidade do
enunciado. Estes simulacros de corpos são concebidos pela competência semiótica do
enunciador, que é da ordem do “sexualizar”. Através de insólitas capturas fotográficas,
um sentido erótico imprevisto passa a existir. Este erotismo mordaz, que se revela
inusitadamente, surpreende as ordens sensoriais do destinatário, melindradas por
simulacros simulados de corpos desejantes que na verdade não estão lá, nem alhures:
corpos que não existem.
Figura 29 – Sintaxe de um corpo desejante
Kibon, Trip, 2004
O que fica patente, a partir de tal exemplo, é que num momento anterior à
verificação cognitiva da autenticidade destes simulacros, sustenta-se um erotismo
ilusório. Efetivamente não há um actante sujeito autêntico. Para todos os efeitos, na
imagem 29, existe um corpo que se mostra, voluptuoso e perfeitamente desejável,
materializado nas circunvoluções delicadas dos apetitosos sorvetes. A concretude
orgânica daquele corpo que deixamos para trás, no pleno exercício de sua subjetividade
82
ou “em sua pura presença de objeto plástico” 70, se esvai na fantasia entorpecente destes
enunciados capciosos. Estas convincentes quimeras parecem contar com a indulgente
anuência de seu interlocutor, o que implica um enunciatário suscetível a tais simulacros.
Uma libido assim tão ávida, que ignora o chiste fraudulento da imagem, distorce os
aspectos figurativos dos produtos anunciados e alimenta o fascínio do enunciatário,
deve ser considerada em dois momentos distintos: no imediatismo da apreensão
ilusória, e no processamento resolutivo da metáfora visual.
Figura 30 – O corpo convincente
Heineken, GQ, 2003
Ocultando ou distorcendo a totalidade plástica dos elementos cênicos
usados, esta categoria de imagens opera metáforas visuais absolutamente convincentes,
sem, no entanto obliterar completamente o reconhecimento dos produtos anunciados.
Isto porque parece evidente que a construção destes desejáveis corpos não pode ofuscar
os requintes de sua execução. Em outras palavras, estas imagens ilusórias devem ser, ao
mesmo tempo, corpo e objeto, pois somente no equilíbrio desta equação semiótica tais
simulacros fazem sentido. A estratégia discursiva de construir um simulacro de corpo 70 E Landowski. Presenças do outro . São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 161.
83
desejante poderia levar uma campanha publicitária ao fracasso, caso resultasse no
abandono das propriedades idiossincráticas do produto, uma vez que, em última análise,
é dele (produto) que os anúncios falam.
De fato, simulacros de corpos desejantes são recorrentemente usados na
fotografia publicitária sem que o produto acabe esmaecido, convertido numa espécie de
apêndice mudo dos actantes sujeito. Invariavelmente, o anúncio investe numa
valorização do produto, ressaltando seus atributos práticos, simbólicos, míticos71... No
esquema a seguir, podemos observar exemplos valiosos desta publicidade “erótica”,
encenando simulacros de corpos desejantes “sexualmente enriquecidos” pelo uso do
produto. Em todas estas imagens, verificamos a presença de pelo menos um actante
sujeito plenamente reconhecível em sua dimensão estética e em sua dimensão sensível.
Nestes anúncios, o jogo de olhares desempenha um papel central. Nos olhos que nos
olham, nós mesmos, corpos revelados, surpreendidos, contagiados. Os exemplos a
seguir mostram como a publicidade usufrui de maneira prodigiosa dos efeitos de
inserção do destinatário que o contato visual estabelece, o que ganha especial grandeza
nos anúncios 31a e 31b. São anúncios similares do mesmo produto, compostos cada um
por três páginas seqüenciais. Neles, uma voluptuosa jovem, simulacro da provável
destinatária do produto, gozando os benefícios do uso de um sutiã modelador
“maravilha”, torna-se subitamente o centro das atenções. Pela posse e uso do produto, a
jovem experimenta a impertinência curiosa dos homens e a hostilidade recalcada das
mulheres. O transe reverente dos olhares, que no virar da página é justificado nos
atributos da jovem, dirige-se primeiramente à própria consumidora, antecipando através
do anúncio, a exata sensação do uso do produto. O valor prometido é ser desejável.
Entretanto, no segundo momento, o anúncio que há pouco colocava sua interlocutora no
ponto convergente dos olhares, a apanha em seu contrapé. De surpresa, na dança das
folhas, ela agora está entre a multidão, olhando, invejando, querendo o produto. Na
seqüência das páginas, o enunciado fala de privação, não de posse, para depois prometer
o restabelecimento de uma ordem que na verdade nunca existiu.
71 Para mais sobre a temática dos investimentos de valor nos produtos, cf. J.M. Floch, Semiotica, marketing e comunicazione. Paris: Presses Universitaires de France, 1990.
84
a
b
c d e
Figura 31 – Olhos que me olham.
Wonderbra, Cosmopolitan, 2005; Gillette, Trip, 2004; Candies, Esquire, 2005
85
Independentemente da motivação específica de cada um destes actantes
sujeitos, os anúncios do esquema 31 parecem ratificar que estes repetidos olhares nos
presentificam, nos vigiam e nos convocam, operando, além dos simulacros de corpos,
simulacros de embreagens. Em outras palavras, subjetividades conscientes do
sofisticado arranjo intersomático em que estão envolvidos. Existem outros anúncios em
que apenas fragmentos de corpos são apresentados, e em que não existe um jogo de
olhares assim posto. Diferentemente do que ocorre no grupo de imagens apresentado na
figura 31, o erotismo e o jogo do desejo nestas imagens de fragmentos parecem não
depender mais daquela distribuição de olhares. Os sujeitos dados a ver não se
apresentam inteiramente: são parciais, desdobramentos semióticos da construção de
simulacros de corpos “perfeitamente desejáveis” através de pistas de sua totalidade
(figura 32).
a b
c d
Figura 32 – Corpos fragmentados
Canesten, Vogue, 2006; Kibon, Playboy, 2004; Skol, Playboy, 2004
86
Esta parcialidade e esta segmentação sugerem um sentido de objetivação dos
corpos, uma impessoalidade que poderia precipitar uma simplificação de seus papéis
actanciais. Entretanto, mesmo estes fractais discursivos (pequenos prazeres visuais para
o deleite do enunciatário) apontam para actantes sujeitos pressupostos no enunciado, o
que, de qualquer forma, implica uma interação do tipo intersubjetiva com o destinatário.
Estas interessantes imagens parecem adequar-se a uma espécie de arranjo
temático/figurativo, através do qual um sentido erótico passa a existir. Tal arranjo
implica a interação entre subjetividades. Os corpos metafóricos parecem revestir-se de
uma “desejabilidade” que independe da autenticidade deste sentido subjetal. Ele é
simulado, e tem que revelar o embuste por trás de sua construção para tornar-se
operante, pois esta condição faz parte de sua proposta. Ainda assim, a corporeidade
artificial resultante parece tirar proveito daquela mesma fragmentação fotográfica dos
corpos, apontada na figura 32, para garantir, agora metonimicamente, a origem de um
efeito de sentido erótico. É o que já havíamos identificado nas figuras 29 e 30, e que
podemos conferir ainda nas imagens a seguir.
a b
Figura 33 – Evidentes embustes
Volvo, GQ, 2003; BICE, Arena, 2003
A figura 6, no começo deste capítulo, já revelava os meandros astuciosos de
um enunciado publicitário a arquitetar uma falsa presença. O caneco de cerveja na base
do anúncio, que explicava a ilusão e garantia a descoberta da farsa, tal qual uma legenda
elucidativa que a imagem parecia solicitar, traduz a estratégia discursiva sobre a qual há
pouco versávamos quando da análise da necessidade de um simulacro que fosse corpo e
87
objeto ao mesmo tempo. Os exemplos da figura 33 guardam esta propriedade de
maneira bastante perspicaz, sem dar margem a uma expressão falha comprometa o
reconhecimento do produto. Em 33a, a sorrateira iluminação permite a visualização do
painel do veículo, e em 33b, as propriedades cromáticas e matéricas do “falo” mantêm o
pão identificável. Neste anúncio em particular, a astúcia discursiva ganha relevo por
aspectos simbólicos bastante evidentes. A alusão ao órgão masculino, signo de
virilidade e vida, é reforçada semanticamente pelo valor “mitológico” atribuído ao pão,
substância que alimenta o corpo e o espírito. Além disso, em riste, o fálico mantimento
fala da geração da vida, da prontidão, do ato sexual a se precipitar, o que estabelece
duplamente o vínculo entre os dois significantes que o verbal traz: “pão” e “vida”.
Abaixo, alguns exemplos de “falsos” corpos femininos.
a b
c
Figura 34 – Exemplos abundantes
Francesco Biasia, Vogue, 2005; Playboy, Playboy, 2003; Bic, Caras, 2005
88
É evidente que nenhuma destas imagens intenta subjugar o discernimento do
enunciatário. Entretanto, a plausibilidade dos simulacros aqui observados sugere que,
independente deste processamento cognitivo e do desvendar do chiste, um contágio
efetivo tem vez na materialidade sensível do corpo construído. A pressuposição de
dimensão estésica deve-se às propriedades icônicas da linguagem visual, sem as quais
metáfora alguma recuperaria um simulacro convincente de presença. Eis que, diante de
tais imagens, deste corpo que “soa” tão real, que sensibiliza, mas que não sente, posto
que privado de uma subjetividade autêntica, o destinatário é apanhado de surpresa a
revelar sua lascividade, sua animosidade erótica, ilusoriamente compartilhada, num
deflagrar constrangedor de sua libido. Partindo do quadrado semiótico acerca da
veridicção nos enunciados de estado, observamos que diante destes anúncios, o “jogo da
verdade” produzido passa pelas seguintes etapas:
Figura 35 - Desvendamento da mentira
Deste modo, o estado inicial despertado por estas imagens metafóricas é o de
uma notória excitação. Entregando-se à fantasia da presença, o enunciatário é
convocado, como o fora por aqueles olhares curiosos das imagens anteriores, a assumir
diante da evidência de um corpo, sua condição de sujeito desejante. Entretanto, no
arrefecer dos sustentáculos visuais da presença, a excitação fracassa gradativamente até
ceder lugar a um estado contemplativo dos pormenores estruturais da imagem, de sua
gramática e de sua constrangedora argúcia. Frustrado pelos investimentos
despropositados, pela intangibilidade de um desdobramento para o fatídico encontro,
89
resta ao enunciatário experimentar o torpor da não presença, da capciosa e ao mesmo
tempo manifesta ilusão.
90
4 CONSUMAÇÃO DO (HI)ATO
O nosso amor é tão bonito ela finge que me ama e eu finjo que acredito. (Nelson Sargento)
À medida que estes objetos recobrem-se discursivamente no véu ilusório da
metáfora visual, passam a apresentar-se em consonância com o estatuto semiótico
próprio do corpo. Expostos a tais imagens, apanhamo-nos surpreendidos por fenômenos
da ordem da presença: como classifica Landowski, diante do destinatário, um corpo
“perfeitamente desejável”. Contudo, revelada a melindrosa arquitetura das imagens, os
sugestivos simulacros construídos reduzem-se à reminiscência de um corpo sensível que
nunca chegou a existir, uma presença falsa, facilmente percebida. Tal sentido de
ilegitimidade precipita, ou melhor, recupera uma questão que parecia esgotada, mas que
se mostra essencial à semiotização da dimensão sexual nos textos imagéticos: que
erotismo é esse, afinal, operante por meio de uma ausência? Para responder esta
questão, são necessárias algumas considerações. É certo que as imagens agrupadas neste
estudo, a encenar de alguma forma a temática do desejo sexual, bem como os corpos
que trazem, não são percebidos pelos sujeitos da mesma forma que os corpos históricos,
legítimos e co-presentes. O sentido de reciprocidade, que na intervenção fotográfica é
obliterado, passa a ser simulado. Diante do destinatário, um “simulacro” de presença:
um corpo ali, mas alhures. É o que explica Oliveira, ao somar às categorias actorial e
espacial, uma terceira, temporal. Em grupo, situam todo texto histórica e
axiologicamente em dada sociedade, em dada cultura.
Tal crivo conceitual nos induz a acreditar que à semiotização da fotografia, é
mais relevante a dimensão cognitiva, e que a atenção mais detida aos aspectos sensíveis
daria origem a uma análise pouco apropriada. Entretanto, um olhar assim estruturado
não foge ao positivismo de uma “autópsia” fotográfica, de um diagnóstico distanciado e
objetivante que reduz a imagem a uma manifestação estática, desprovida de vida e
deslocada do mundo a que se refere. No presente estudo, o discurso fotográfico é
tomado justamente na sua convergência com o mundo natural, do qual empresta suas
categorias, suas figuras, seus temas, mas do qual também é fragmento. Os princípios
91
operatórios dos dois sistemas considerados (o fotográfico e o das relações humanas em
ato) guardam entre si correspondências que se justificam no homem em si. Em outras
palavras, é o próprio homem, enquanto instância última destes processos de
significação, que estabelece o estatuto de suas interações. Neste sentido, é de se esperar
que as formas de representação do mundo, como a música, a literatura, as artes
plásticas, falem do homem, através do homem e como o homem. Este vínculo – a
cobrar do semioticista uma aproximação que reconfigura a abordagem analítica e põe
em evidência aspectos eminentemente sensíveis – é também operante na fotografia, que
coloca seu interlocutor diante de uma realidade outra que a do presente imediato,
através de uma figuratividade que é o referente textualizado do próprio mundo.
Se estas imagens insinuantes, pulsantes e vivazes, amiúde nos convocam a
tomá-las como formas de manifestação daquilo mesmo que nos cerca em nosso mundo,
no qual estamos sempre a sentir, não seria mais apropriado, em termos semióticos,
adotar diante delas, uma postura menos sequaz? Não seria a proximidade, condição
menos proselitista, o ônus egóico que pode viabilizar uma apreensão mais integral?
Cientes de tais aspectos e imbuídos deste “espírito semiótico”, tomamos
nossas imagens de corpos como simulacros de subjetividades com os quais interagimos.
As formas diferentes de discursivização das subjetividades implicam formas diferentes
de relações actanciais. Como foi mostrado no princípio do capítulo 3, existem maneiras
diversas de se arranjar discursivamente os actantes de um enunciado. Quando o
enunciatário vê-se convocado a tomar parte do arranjo, como actante sujeito,
observamos medidas enunciativas que garantem insinuações e iniciativas sensuais
absolutamente ambíguas. Não mais cabe buscar nos anúncios aquilo que no
enunciatário desperta ou prostra a libido; tal tarefa torna-se absolutamente irrelevante,
pois toda a sagacidade destas imagens reside no insopitável coquetismo de seus atores.
A rigor, todas as imagens analisadas que tematizam relações da ordem do desejo, ou
seja, relações eminentemente eróticas, constroem inapelavelmente um sentido de
reciprocidade. Através do sentir junto mediatizado nestes simulacros de relação
intersubjetiva, observamos o eloqüente apelo erótico das imagens que figurativizam
sujeitos perfeitamente desejáveis. Já nas imagens em que vigora o sentido de ausência, o
sexual aparece explorado de maneira indireta. A estesia como condição do sentido
erótico dá lugar a um sentido sexual cognitivo, fecundo somente na recuperação dos
corpos ausentes. É este mecanismo que verificamos operando no anúncio do aniversário
92
da revista Playboy, através da imagem das marcas deixadas no bolo pelos seios de uma
mulher, bem como na série sobre o efeito Axe, com conexões elétricas, lápis e
parafusos.
Também na ausência de corpos que tocam nossa subjetividade,
identificamos aqueles anúncios em que um estatuto subjetal é atribuído arbitrariamente
a objetos inanimados, possibilitando que apresentem atrativos semânticos a nos
sensibilizar pelas mesmas vias do sentido erótico. Em todos estes casos, a conotação
sexual é decorrente de aspectos temáticos mais que de aspectos propriamente estésicos,
uma vez que a presença sensível do corpo, enquanto manifestação plástica de uma
subjetividade autêntica, está suprimida nestes enunciados. Nos anúncios em que um
sentido vestigial de presença é construído, uma questão “logística” condiciona o
deflagrar do erótico: existe um sujeito desejante, mas ele não aparece. Nos anúncios em
que a subjetividade é simbólica, como a dos aparelhos celulares Siemens, não há sequer
a possibilidade de vinculação a um corpo, pois todo investimento semântico é dirigido
ao objeto, ao produto. De fato, é natural que estes anúncios obliterem desta maneira
qualquer sentido de corporeidade, qualquer vestígio de presença, pois buscam
justamente atribuir ao produto aquilo que é próprio do sujeito, ou seja, sua
desejabilidade. Como resultado desta operação, a sensualidade de um celular ou de um
automóvel torna-se plausível, pois aquilo que reconhecemos como da ordem do
desejável – o corpo em si – não tem lugar nesta realidade encenada. É tarefa infecunda
buscar um sentido sexual naquilo que somos levados a sentir diante de imagens como
estas. Na verdade, este tipo de discurso dificilmente poderia ser apontado como erótico.
Sua temática sexual parece muito mais impulsionada por valores estéticos que o produto
apresenta – e que são ofertados ao destinatário – que por seus aspectos sensíveis de
corpo desejante. Tal estratégia valorativa aponta para uma disposição de alma que é
esperada do enunciatário, ou seja, uma suscetibilidade aos atrativos simbólicos do
objeto, que leva à aquisição de bens materiais pelo deleite extático de sua posse. O
anúncio que mostrava um aparelho celular sobreposto ao adjetivo “sexy” ilustra de
forma tácita o novo apanágio simbólico dos produtos. Natural que esta aquiescência à
desejabilidade do inorgânico precipitasse enunciados em que produtos-objeto cedem
lugar a produtos-sujeito no exercício de suas paixões e vicissitudes. É a situação
observada no anúncio do caso de amor entre o abridor e a garrafa, em que o desejo, o
ciúme e a cólera, afligiram e, portanto deram vida, a um objeto inanimado. É esta
93
mesma construção de um objeto-sujeito que dá ânimo aos actantes do anúncio do
perfume Chance Chanel. Nele, uma jovem se rende aos encantos de um gigantesco
vidro de perfume, revelando uma parafilia de que padece voluntariamente. Entretanto, o
traço que diferencia de maneira abissal estas duas imagens é justamente a presença de
um corpo. O sentido erótico da imagem do perfume Chanel deve-se, em primeiro lugar,
ao estado de possessão encenado pela jovem no pleno exercício de sua lascividade. É
esta demonstração de êxtase que toca o destinatário e lhe cobra um olhar comprometido,
um olhar sensível. Apesar da brilhante narratividade e da riqueza figurativa do anúncio
da cerveja e do abridor, parca seria a descrição de sua dimensão erótica. A rigor, fala-se
de uma relação interactancial da ordem do desejo, mas o corpo, que contagia e faz sentir
por sentir, está ausente.
Todos estes dissonantes anúncios mantêm uma articulação pela não
figurativização de um sujeito desejante. Como pôde ser verificado ao longo das análises,
e em especial nos apontamentos dos parágrafos anteriores, os anúncios com vestígios de
corpos, bem como aqueles em que operava uma subjetivação de objetos inanimados,
não propiciam o surgimento de um sentido efetivamente erótico, nos termos colocados
no capítulo dois. Na verdade, o tipo de referência sexual de que se valem estes anúncios,
que define um traço comum e permite agrupá-los, não é o mesmo observado naqueles
anúncios em que os corpos estão presentes. Nestes, o próprio corpo enquanto fenômeno
sensível está sujeito a uma leitura erotizante. É ele mesmo que fornece o substrato
visual em que se agarra o olhar libidinoso. Naqueles, vigora uma sexualidade
discursivizada cognitivamente.
O terceiro grupo de imagens analisado, sob a provisão do epíteto “ilusório”,
parece ocupar uma posição semiótica entre os dois anteriores. Nestas imagens,
metáforas visuais criam fragmentos de corporeidade plausíveis o bastante para deflagrar
um sentido de presença. A percepção da ausência, da ilusão referencial, mostrou-se
programática e absolutamente inevitável. Contudo, no hiato entre a alusão e a resolução
da anedota visual, transita um sentido erótico autêntico, sensível. Como os anúncios de
erotismo simbólico, estes também criam uma sexualidade quimérica cujo subproduto é
o próprio fetichismo da mercadoria. Entretanto, ao contrário dos enunciados do grupo
anterior, estes ressemantizam os artigos anunciados (canetas, pães, sorvetes...)
imprimindo-lhes atributos sexuais mediante um astucioso jogo onde a iconicidade
exerce papel decisivo. Por parecerem corpo, estas imagens já não comportam mais um
94
olhar resignado e objetivante. Elas exigem de seu destinatário uma mesura, uma
resposta à presença de um outro sujeito, que no átimo do ingênuo mistério engendrado,
pode passar pelo atrevimento, pela indiscrição ou pela reverência. Diante deste corpo
que parece sentir e parece saber-se sentido, resta ao próprio enunciatário assumir seu
papel de corpo desejante, o que pulveriza o distanciamento de um olhar objetivante, tal
qual naquelas primeiras imagens com corpos presentes. Lá como cá, é na ambigüidade
dos sentidos captados que o enunciado repercute seu erotismo. Como verdadeiras
coquetes, ao mesmo tempo profanas e reservadas, estas figuras metafóricas criam
simulacros de corpos que parecem sempre reclamar seu estatuto verdadeiro, sua
objetidade. Não seria medida ainda mais eficiente para garantir a indefinição do flerte,
simular o coquetismo ao invés de encená- lo, possibilitando ao seu interlocutor decifrar a
ardilosa operação?
A rigor, a ilegitimidade deste insólito barroco – que cria a ilusão de presença
– é também a medida admoestatória que abranda o impacto do anúncio. Isto é de
particular relevância na atenuação do conteúdo sexual nas imagens. Desta feita,
denunciando o próprio engodo e mantendo o embuste “decifrável”, a imagem flerta com
o vulgar e com o obsceno sem constranger qualquer código moral. Este mecanismo
explica porque certos anúncios com um sentido de corporeidade ilusório são tão
explícitos, enquanto outros, repletos de corpos perfeitamente desejáveis, valem-se de
sugestões muito mais sutis ao sexual.
95
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