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DOGMÁTICO, SIMBOLISMO DESPÓTICO E FETICHE … · Sabe-se que até o século XVIII as autoridades...

Date post: 09-Nov-2018
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4689 O MAL-ESTAR DO DIREITO: TEOLOGIA PEDAGÓGICA, PENSAMENTO DOGMÁTICO, SIMBOLISMO DESPÓTICO E FETICHE PROCESSUAL LAW AND ITS DISCONTENTS: PEDAGOGICAL THEOLOGY, DOGMATIC THOUGHT, DESPOTIC SYMBOLYSM AND "PROCEDURAL FETISH" Caleb Salomão Pereira Silva RESUMO Resumo: O Direito foi acometido de um mal-estar decorrente da negação e mesmo da contenção de seu potencial utópico e emancipatório. Essa sensação se acentuou a partir da percepção da incapacidade da Modernidade de materializar seus compromissos de progresso e ordem num ambiente de fraternidade e solidariedade. Instrumento fundamental da Modernidade, o Direito foi arrastado e submetido a um processo de aprisionamento no seu mundo construído dogmaticamente à luz das instituições romano-católicas, numa primeira onda, e dos filosofemas e epistemas iluministas, posteriormente. Sua estrutura e sua crise estão ontologicamente associados (i) ao caráter teológico da metodologia pedagógica prevalecente nas instituições de ensino jurídico, (ii) ao racionalismo promitente de certezas supostamente alcançáveis por meio de ritos formalísticos esvaziados da essência teleológica do Direito, bem como (iii) a uma perversa mercantilização da produção do saber jurídico após a segunda transferência de responsabilidade: na Modernidade migrou da Igreja para o Estado, na contemporaneidade saiu do Estado para a iniciativa privada. Essas migrações, promovidas a partir de uma ótica desprovida da ética que o valor do Direito demanda, têm corroído as potencialidades emancipatórias do Direito e retirado do ser humano, seu sujeito, as possibilidades de sua instrumentalização para a construção de uma sociedade sã. PALAVRAS-CHAVES: PALAVRAS-CHAVE: TEOLOGIA – PEDAGOGIA – MODERNIDADE – ENSINO JURÍDICO. ABSTRACT Abstract: Law has been attacked by an illness arising out of the denial and even the restraint of its utopian and emancipative, latent power. Such feeling is emphasized beginning at the sense of incapacity experienced by the Modernity in accomplishing its commitments towards progress and order in an environment of fraternity and solidarity. Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008. Trabalho indicado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito de Vitória (FDV)
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O MAL-ESTAR DO DIREITO: TEOLOGIA PEDAGÓGICA, PENSAMENTO DOGMÁTICO, SIMBOLISMO DESPÓTICO E FETICHE PROCESSUAL

LAW AND ITS DISCONTENTS: PEDAGOGICAL THEOLOGY, DOGMATIC THOUGHT, DESPOTIC SYMBOLYSM AND "PROCEDURAL FETISH"

Caleb Salomão Pereira Silva

RESUMO

Resumo: O Direito foi acometido de um mal-estar decorrente da negação e mesmo da contenção de seu potencial utópico e emancipatório. Essa sensação se acentuou a partir da percepção da incapacidade da Modernidade de materializar seus compromissos de progresso e ordem num ambiente de fraternidade e solidariedade. Instrumento fundamental da Modernidade, o Direito foi arrastado e submetido a um processo de aprisionamento no seu mundo construído dogmaticamente à luz das instituições romano-católicas, numa primeira onda, e dos filosofemas e epistemas iluministas, posteriormente. Sua estrutura e sua crise estão ontologicamente associados (i) ao caráter teológico da metodologia pedagógica prevalecente nas instituições de ensino jurídico, (ii) ao racionalismo promitente de certezas supostamente alcançáveis por meio de ritos formalísticos esvaziados da essência teleológica do Direito, bem como (iii) a uma perversa mercantilização da produção do saber jurídico após a segunda transferência de responsabilidade: na Modernidade migrou da Igreja para o Estado, na contemporaneidade saiu do Estado para a iniciativa privada. Essas migrações, promovidas a partir de uma ótica desprovida da ética que o valor do Direito demanda, têm corroído as potencialidades emancipatórias do Direito e retirado do ser humano, seu sujeito, as possibilidades de sua instrumentalização para a construção de uma sociedade sã.

PALAVRAS-CHAVES: PALAVRAS-CHAVE: TEOLOGIA – PEDAGOGIA – MODERNIDADE – ENSINO JURÍDICO.

ABSTRACT

Abstract: Law has been attacked by an illness arising out of the denial and even the restraint of its utopian and emancipative, latent power. Such feeling is emphasized beginning at the sense of incapacity experienced by the Modernity in accomplishing its commitments towards progress and order in an environment of fraternity and solidarity. Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008. Trabalho indicado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito de Vitória (FDV)

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Fundamental tool of the Modernity, Law has been dragged and subordinated to a process of imprisonment in its world dogmatically built firstly from the standpoint of the Roman-Catholic institutions, and later of the philosophical statements and knowledge that bloomed with the Illuminism. The framework and crisis of Law are ontologically united to (i) the theological vein pertaining to the pedagogic methodology that persists in the institutions of juridical education, (ii) to the rationalism that promises certainties supposedly reachable by means of ritual acts idealistically empty of the teleological essence of Law, as well as (iii) to a vicious commercialization as to the origination of juridical knowledge after the second transfer of responsibility: by the time of the Modernity, it migrated from the Church to the State, in the Contemporaneity, notwithstanding, it left the State and moved to the enterprise. Such migrations, fomented by a sight destitute of ethics which the worth of Law claims for, have consumed the emancipative potentialities from Law and taken from human being, its subject, the possibilities of its instrumental character for the composition of a healthy society.

KEYWORDS: KEY-WORDS: THEOLOGY – PEDAGOGY – MODERNITY – JURIDICAL EDUCATION.

Introdução

Mal-estar é substantivo definido por Houaiss[1] como sensação desagradável de perturbação do organismo; indisposição que não chega a configurar doença; incômodo, indisposição. Noutro sentido, diz-se que é estado de inquietação, de aflição mal definida; ansiedade, insatisfação. Na compreensão do senso-comum, há mal-estar quando algo não vai bem, no sentido shakespeariano ou não; quando há um sentimento de incompletude, de baixa realização e, em muitos casos, de subexploração das potencialidades capaz de gerar sentimento de impotência, de incapacidade para gerir os próprios recursos e habilidades.

Na literatura há dois momentos de acertado uso da expressão para traduzir a sensação de “mal-estar existencial”. O primeiro desses usos se deu na obra de Sigmund Freud, cujo título definitivo em alemão é Das Unbehagen in der Kultur. O substantivo alemão Unbehagen, vertido para o português[2], nos leva a mal-estar. Partindo do original alemão e da versão inglesa da obra, nominada Civilization and its Discontents, o leitor em português conheceu a obra intitulada O mal-estar na Civilização. Segundo Zygmunt Bauman, a obra veiculou reflexões de Freud sobre a modernidade e suas promessas, seus verdadeiros compromissos e suas conseqüências (BAUMAN, 1998, p.7). Bauman, assim como Freud, aproxima ontologicamente as expressões-fenômenos Modernidade e Civilização, chegando mesmo a afirmar que civilização moderna é uma expressão pleonástica, numa redundância originada da confusão ontológica entre substantivo e adjetivo.

Essa confusão semântica é eloqüente e faz-nos refletir sobre a Modernidade como movimento fundador do que se conhece como civilização ocidental, com todo o seu aparato de ordem e controle dirigido pela idéia de progresso e calcado nos postulados da

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razão. Freud referia-se à cultura e à civilização ocidental manipulando símbolos da Modernidade e demonstrando o desconforto existencial decorrente da preeminência dos valores por ela cinzelados nos dois séculos que antecederam sua obra.

Do próprio Bauman partiu o segundo uso da expressão, o que se deu no trabalho denominado O mal-estar da pós-modernidade acima referida. Se Freud diagnosticou o Zeitgeist[3] europeu no começo do século XX, identificando a substituição da primazia da sociedade pela valorização extremada do indivíduo, sensibilizando-se com os eflúvios emanados da sociedade de homens da qual fazia parte e que se preparava para o exercício da barbárie, Bauman critica os extremos do individualismo enganoso e lança argutos olhares para o tempo presente, marcado por percepções do esgotamento e de insuficiência dos valores modernos, o que lhe valeu o epíteto adjetivo de pós-modernidade.

Na modernidade diagnosticada por Freud, após o exaurimento de suas expectativas e o esvaziamento da esperança por ela insuflada, restou um pós, uma sensação de algo irrealizado, de incompletude; uma modernidade incompleta. Esses mal-estares têm se apresentado em escala global, confirmando as impressões desoladoras de Freud e as reflexões crítico-descrentes de Bauman, ora se esgueirando pelas frestas da cultura de massa, ora desorganizando as comportadas intenções de controle sóciopolítico institucionalizadas pelos aparelhos estatais. Sempre, porém, marcando com certo amargor o banquete providenciado pelos arautos da racionalidade luminosa que têm conformado a história da humanidade.

O Direito, considerada sua conformação moderna desenvolvida ao longo do último século – consolidando os ideais dos séculos XVII a XIX –, quando seu caráter positivista foi exacerbado na composição dogmática até do constitucionalismo, movimento essencialmente político que eclodiu anti-dogmático, não se manteve imune às causas do mal-estar, seja aquele diagnosticado por Freud ou seja aquele assistido pela sociedade que ingressou no século XXI. Sua ontologia, calcada em valores organizacionais e teológicos militares e eclesiásticos, deu ao Direito feições compatíveis com os apelos e compromissos da Modernidade, realçando seu viés conservador da ordem como promessa de progresso, lato sensu.

O apego aos dogmas, tão caro ao rígido mundo eclesiástico, assim como o apego à ordem, fundamento também do universo militarista, incrustou-se na superfície do Direito moderno de maneira tão envolvente que todos os espaços de multiplicação do saber jurídico, no Brasil inclusive, permaneceram esterilizados por um discurso dicotômico entre o mundo sóciopolítico conservador e repressor e o universo jurídico-dogmático, supostamente asséptico e objetivamente imparcial. A transposição da crença em dogmas jurídicos se deu como fenômeno conseqüente da substituição das milícias nobiliárquicas e também da Igreja pelo Estado como ente ordenador das sociedades. O mimetismo político entre Igreja e Estado não fugiu à fina percepção de pensadores como Carl Schmitt (2006, p. 35), que categorizou:

Todos os conceitos concisos da teoria do Estado moderna são conceitos teológicos secularizados. Não somente de acordo com seu desenvolvimento histórico, porque ele foi transferido da teologia para a teoria do Estado, à medida que o D’us onipotente

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tornou-se o legislador onipotente, mas, também, na sua estrutura sistemática, cujo conhecimento é necessário para uma análise sociológica desses conceitos.

O pensamento revelado na passagem acima é pressuposto do presente trabalho, no qual se considerará que, realmente, a teoria do Estado nascente do século XVIII absorveu conceitos teológicos, além de militares, e também que, sendo o Direito o elemento estruturante e regulador desse Estado, as estruturas axiológica, teológica e metodológica da teologia chegaram ao Direito por meio de uma teologia política. Confirmando as aspirações deificantes do racionalismo, mesmo com o advento dos filosofemas iluministas o Estado e seu Direito não perderiam essa característica.

Sabe-se que até o século XVIII as autoridades monárquicas e aristocráticas das sociedades européias atribuíam os processos de reprodução do saber às autoridades eclesiásticas. Igualmente, é do senso comum que o desmonte iluminista do século XVIII provocou a transferência dessa atribuição para o Estado. Sendo o Estado de Direito o resultado da construção político-teórica dos filósofos iluministas, muitos deles doutrinados a partir das metodologias escolásticas, alguns afinados com a teologia de então, conseqüente lógico foi o surgimento de uma teologia política, organizadora das novas instituições a partir de velhos modelos, inclusive o conciliarista que inspiraria o constitucionalismo (SKINNER, 1996, p.397), e também de uma teologia pedagógica, constituída pelo caráter permeável das instituições ditas laicas responsáveis pela ação pedagógica sob controle do Estado, que – sem tradição em processos pedagógicos, se viram induzidas a emprestar do clero seu know-how educacional, de perfil doutrinador e totalizante. A práxis pedagógica do universo laico necessariamente incorporaria elementos axiológicos e metodológicos da teologia, elegendo como seu télos também o doutrinamento dos discípulos, senão nos dogmas religiosos, nos novos dogmas que interessavam aos novos detentores do poder político.

Decorrência dessa teologia pedagógica perceptível no mundo do Direito tem sido a própria estruturação da relação ensino-aprendizagem, objetiva e subjetivamente considerada. Nessa relação, sobressai-se um simbolismo despótico, derivado do pretenso domínio exclusivo de um sobre o universo do saber jurídico – hermético, distante, dogmático – do qual o outro tenta se abeirar. A analogia com o sacerdote – íntimo de Deus e conhecedor das verdades sacrossantas – é inevitável, no nível lingüístico e também metalingüístico. Como sói acontecer em relações despóticas, o conhecimento transmitido é hermético e dogmático, razão da segurança do mestre que somente franqueará o acesso ao conhecimento àqueles que se submeterem à sua condução segura e promissora de libertação da ignorância jurídica.

Revelação desse cenário pedagógico jesuítico é a proeminência, no meio jurídico-educacional brasileiro, das disciplinas que tratam dos instrumentos de promoção e garantia dos Direitos. Há uma conformação intelectual – com suporte acadêmico-institucional e mercadológico-editorial – que reconhece valor no destaque conferido ao direito processual em detrimento, inclusive revelada na carga horária nos cursos de graduação em Direito, do direito material. A ortodoxia jurídico-educacional encontrou, no direito processual, o seu fetiche esterilizante da reflexão política, capaz de justificar, pelo abandono do enfoque zetético e valorização do enfoque dogmático, o esvaziamento do Direito de seus valores humanos: o processo importa, podendo por meio dele,

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inclusive, negar o próprio Direito material que se sabe pertencente à parte litigante. A substância, antes de ser garantida pela forma, muitas vezes é, por ela, negada.

Essas quatro reflexões – (i) perpetuação do modelo teológico de relacionamento presente no ensino do direito, decorrência inevitável da teologização dos métodos políticos e pedagógicos ocorrida mesmo no Estado laico, (ii) a valorização do pensamento dogmático em detrimento do pensamento zetético como fio construtor de um Direito que diz perseguir o equilíbrio social, (iii) o poder simbólico que deriva da postura sacerdotal dos profissionais de Direito que se tornam professores de Direito, o que freqüentemente conduz à abusiva violência simbólica no ambiente pedagógico e (iv) o direito processual como revelação de um fetiche dogmático que esvazia de sentido político, pelo apego à simples forma, uma ciência que tem sua origem na política: o constitucionalismo, freqüentemente na história tido como gênese da Lei Magna, é um movimento social e político por excelência – orientarão a construção do pensamento que será exposto nas linhas seguintes.

A metafísica teológica, é inegável, está entranhada na concepção moderna do mundo, apesar dos esforços racionalistas dos renascentistas e dos iluministas, cuja luz não ofuscou o flerte do homem com a idéia de divindade e submissão. A constelação de valores exibida no universo jurídico não ilumina a contento o caminho que trilham os atores da formação jurídico-educacional.

1 Teologia pedagógica: liturgias e educação

A rabugice bem-humorada de Arthur Schopenhauer levou-o a escrever, em meados do século XIX: “Quando observamos a quantidade e variedade dos estabelecimentos de ensino e de aprendizado, assim como o grande número de alunos e professores, é possível acreditar que a espécie humana dá muita importância à instituição e à verdade." (2007, p. 19). É provável que algum arguto observador tenha dito ou venha a dizer, analogamente, diante do grande número de igrejas, que a espécie humana é verdadeiramente religiosa e confere especial status, em seu comportamento social, aos princípios éticos de suas religiões. Talvez nenhuma das duas hipóteses seja verdadeira, mas é correto afirmar que os dois tipos de estabelecimento dedicam-se a práticas semelhantes: doutrinar os seus freqüentadores.

D’us poderia receber, aqui, unicamente tratamento metafórico diante de figuras símiles, em poder, conhecimento e presença, como o rei, o bispo, o burocrata graduado e o professor, este considerado o detentor das luzes do conhecimento. Antes das analogias possíveis, contudo, importa atentar para o fato de que a própria visão humana dos deuses é metafórica. Às narrativas fabulosas da Bíblia – em especial aquelas contidas no Pentateuco -, e também àquelas frutificadas no helenismo, o próprio homem já ofertou interpretações heréticas, a exemplo de Feuerbach (1982, p. 105), para quem o “verdadeiro sentido da teologia é a antropologia”, não havendo diferença entre os predicados do ser divino e os predicados do ser humano, sendo eles, D’us e homem, idênticos.

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Esse entendimento conduz-nos a outro, igualmente elaborado por Feuerbach, desta vez ao desenvolver seu conceito de alienação denunciando a troca de papéis entre criador e criatura, a partir da qual as qualidades humanas são alienadas nas qualidades divinas e por meio da qual o homem atribui aos deuses características que lhe são próprias, conferindo-lhes caráter de onipotência. O homem, assim, não se bastaria como ser pretensamente onipotente, sendo necessário exteriorizar no Outro as suas próprias qualidades. Partindo dessas premissas, Karl Marx diria que o segredo da religião é a humanidade, e não um D’us transcendente (apud MORRISON, 2006, p. 292), síntese que denuncia uma imbricação ontológica entre Criador e Criatura.

Essa correspondência ontologicamente biunívoca certamente conduziu o homem a teologizar – em homenagem a si ou em homenagem a si visto na figura do Outro – suas relações com o próximo. Evidentemente, a analogia pretendida para demonstrar essa transferência de modelo organizacional das instituições ganha realce quando consideramos religiões e sociedades monoteístas, sem nos esquecermos de que o Direito Romano – base metodológica do Direito Canônico – e as instituições do Império Romano, com suas estruturas de poder e de gestão que viriam a inspirar o mundo europeu, em especial a Igreja Católica, possuíam um caráter centralizador e absolutista mesmo tendo se originado de uma sociedade politeísta.

A construção da sociedade européia deu-se sobre postulados teóricos cujos modelos conformaram as sociedades colonizadas, e esses postulados podem ser identificados com (i) o Império Romano e sua assombrosa influência no território europeu, (ii) os efeitos de seu declínio, que permitiu o renascimento de específicas autonomias político-ordenativas em certas regiões da Europa e (iii) a ereção de um modo particularmente novo de organização social estribado em conceitos eclesiásticos, tendo a Igreja Católica como centro de poder. A própria razão iluminista, causa futura da erosão dos fundamentos teológicos explicativos da sociedade, com seus vícios intrínsecos voltados ao atendimento dos interesses de uma determinada ordem social, é tributária desses conceitos, a exemplo do conciliarismo que guiou parte dos séculos de hegemonia católica e que fez perceber o potencial do movimento assemblear, de caráter político-civil, posteriormente denominado constitucionalismo (SKINNER, 1996, p. 394).

Nas reformulações dos Iluministas, inspirados por pensadores católicos medievais – a exemplo de Guilherme de Occam, Jean Gerson e Huguccio –, presente estava a percepção de que o Estado nascente, cujo desenho era ensaiado nas cidades-estado italianas, pressupunha a existência de autoridades (HOMEM, 2006, p. 47). A autoridade suprema no período que mediou entre o declínio do Império Romano e o advento do Iluminismo, passando pela ascensão e queda do Estado Absolutista, era D’us, cuja existência e mandamentos conferiam legitimidades às figuras de poder, a exemplo do Rei.

Da figura de autoridade centralizadora, sabe-se, não estava imune nem mesmo o conceito de democracia, pois, embora a semântica sugira, o povo em sua expressão maior dela não fazia parte. António de Sousa Macedo – em Armonia Política dos Documentos Divinos com as Conveniências de Estado: Exemplar de Principes no Governo dos gloriosissimos Reys de Portugal, de 1737 – demonstrou o conceito de Estado nos setecentos: “Um Estado não é outra coisa senão uma sociedade de muitos homens debaixo de um Rei [que é a monarquia] ou de principais [que é a aristocracia],

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ou de toda a multidão [que é a democracia].” (apud HOMEM, 2006, p. 47). Esse desenho hierárquico – militarista e eclesiástico por excelência – moldaria a organização institucional do Ocidente, com ecos em todos os continentes a partir do colonialismo europeu. Todas as instituições estatais que dominariam o mundo ocidental haveriam de amoldar-se a essa geometria.

A Igreja Católica Apostólica Romana converteu-se no principal agente do poder na Alta Idade Média com seus representantes postando-se como porta-vozes do Todo-poderoso. A imagem de representantes de D’us adquiria especial força ao se pensar no medo existencial e espiritual e na ignorância secular que então dominavam as mentes. A Igreja desenvolveu, assim, não apenas uma teologia, mas um modo de gerir as sociedades sobre as quais impôs seu tacão com mitra. Posteriormente, quando a razão teológica sucumbia ante os apelos da razão Renascentista e, pouco depois, também ante os abalos causados pelos teoremas e filosofemas do Iluminismo, as instituições religiosas, monárquicas e aristocráticas, assistiram ao seu desmantelamento e várias atribuições anteriormente reconhecidas à Igreja foram transferidas para as novas instituições moldadas sob a forma da Modernidade. Exemplo desse fenômeno incluiu as atividades de educação, que passaram à responsabilidade do Estado com o advento das revoluções seiscentistas e setecentistas.

O rigor da doutrinação religiosa aplicado pela Igreja em seus tempos de hegemonia sempre foi visto como eficaz, especialmente quando se depara com a portentosa obra educacional da Companhia de Jesus, cuja envergadura se inseriu na cultura ocidental sob formas não apenas devocionais. Os jesuítas desenvolveram metodologia própria para a sua pedagogia de conteúdo confessional e secular, com métodos que se revelaram frutíferos e pelos quais se tornaram “insuperados na história da educação” (BARZUN 2002, p. 66).nsuperados na hists se tornaram "ental sob outras formas nra com a portentosa obra educacional da Companhia de Jesus, cuja em. Ensinando matérias seculares e também a doutrina da Igreja, os jesuítas moldaram a pedagogia ocidental, direta e indiretamente, imprimindo às suas ações pedagógicas um perfil litúrgico aplicado tão eficientemente no doutrinamento pedagógico como o fizeram no doutrinamento teológico. Veja-se o registro do historiador Jaqcques Barzun (2002, p. 66):

Os jesuítas fundaram centenas de escolas. Na Europa de meados do século XVII havias mais escolas e alunos do que em meados do século XIX. Com efeito, logo se ouviram queixas de que havia escolas demais para a população. A todos os jovens, ricos ou pobres, eram facultados os méis para freqüentar a escola, e os méritos do sistema não tardaram a ser comprovados na galáxia de brilhantes espíritos que ele produziu. De Descartes a Voltaire e mais adiante, um considerável número de filósofos e cientistas foi educado pelos jesuítas.

A disciplina própria da doutrinação para o ensino e preservação da fé católica inspiravam a dedicação ao ensino e aprendizagem do conhecimento secular, de modo que o próprio ato de ensinar, a ação pedagógica em sentido lato, desenvolveu processos símiles ao ato de evangelização, em seus pressupostos metafísicos e em sua reprodução

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do argumento de autoridade: Deus, padre e professor se confundiam, assim como as atividades se misturavam. A julgar pelos resultados, ainda que aferrados à liturgia eclesiástica da pedagogia que desenvolveram e emprestaram às instituições educacionais após o seu declínio, os esforços educacionais dos jesuítas – ainda que carregado de opressão simbólica – contribuíram para a transformação de seu mundo, conforme nota Barzun: “Alguns desses brilhantes alunos dedicar-se-iam depois a abalar os dogmas que tinham tão bem aprendido; tornaram-se os líderes do Iluminismo do século XVIII, para quem a Igreja era a ‘coisa infame’ que eles deveriam esmagar” (2002, p. 66).

Os reflexos da ação pedagógica jesuítica, não obstante seu caráter eclesiástico e conservador, criaram bases intelectuais que – mesmo preservando a estrutura simbólica de poder no ambiente pedagógico, à qual se fez referência linhas acima – permitiram a eflorescência de idéias libertárias.

Católica ou protestante, a pedagogia que transitou da Baixa Idade Média para a Idade Moderna ganhou colorações ambíguas, pois continha em sua metodologia os rigorosos elementos litúrgicos próprios dos seus principais atores – quase sempre mestres com formação teológica e estudantes com ânsia de inserção e ascensão social – e também a vontade de conferir à pedagogia um caráter libertário, de perfil messiânico tanto na mensagem quanto na conduta do seu portador. Exemplo dessa pretensão pedagógica libertária contida num ambiente religioso e conservador, portanto autoritário no sentido eclesiástico – é a obra Emílio ou Da Educação, de Jean-Jacques Rousseau, na qual o autor busca definir a educação apropriada para os cidadãos – a terminologia aqui é específica, pois se tratava de uma proposta republicana para o Estado nascente. Tratando a religião como paixão, em seus escritos Rousseau lembra que dois terços da humanidade não são cristãos, nem judeus, nem maometanos, para concluir que Deus não pode ser possessão exclusiva de qualquer seita ou povo, revelando idéias libertárias que conduziram Emílio à condenação pelo bispo de Paris.

No Brasil ecoaram as principais idéias sobre doutrinação religiosa, pela Igreja, e doutrinação pedagógica secular, pela Igreja inicialmente e depois por entidades laicas. Uma sociedade submetida a um governo colonial agravava certos aspectos autoritários de ambas as iniciativas de doutrinação, resultante da mentalidade portuguesa que tratava a possessão como “a fazenda do rei” (SKIDMORE, 1998, p. 44). Aqui também, no século XVI, os jesuítas “se tornaram a influência católica dominante pelo seu controle da educação (suas escolas eram chamadas colégios) e sua criação de missões indígenas” (SKIDMORE, 1998, p. 45). O sistema colonial organizado externa e internamente – respectivamente, a partir de Portugal e com o apoio da elite ansiosa para obter favores do Estado – era orientado pela idéia de que a educação em massa não era possível nem desejável. Segundo Skidmore, “a idéia da educação como um investimento em capital humano, que estava começando a se firmar nos Estados Unidos e na Europa ocidental, era totalmente desconhecida” (1998, p. 46).

A confluência de esforços e interesses privados fizeram eclodir, a partir do século XVIII, uma crise do sistema colonial com profundos reflexos no perfil da sociedade brasileira, atingindo em cheio as instituições educacionais e as práticas pedagógicas coloniais. Um partidário do despotismo esclarecido – Sebastião José de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras, em 1759, e depois Marquês de Pombal, em 1770 – implementou grandes mudanças no Reino Português, incluindo suas colôs, incluindo

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sua coleino Portuguou arqual com profundos reflexos no perfil da sociedade brdos e na Europa ocidental, era totalmnias. Seu projeto de secularização da política, cujo fim era a colocar os assuntos das monarquias católicas acima dos interesses da Santa Fé (VAINFAS, 2000, 378), levou ao alijamento da Companhia de Jesus do centro de influência religioso e educacional também no Brasil, num processo que afastou o protagonista mas preservou os métodos, apesar dos esforços de autores com pendores pedagógicos como Luís Verney, cuja obra O Verdadeiro método de Estudar, de 1746, em muito contribuiu para por fim à hegemonia jesuítica. Considera-se que este fato – a transferência, para o Estado, da responsabilidade de educar os brasileiros – marcou o surgimento do ensino público no Brasil.

Jovens colonos filhos da elite brasileira voltavam da Europa embriagados pelas idéias iluministas. Esse fato criou no Brasil – especialmente na província mineradora de Minas Gerais – um cenário propício às tensões que marcaram a colônia nos fins do século XVIII e início do XIX. As pressões exercidas pelos filhos da elite aliadas ao tormentoso ambiente europeu causado por Napoleão aceleram as transformações na colônia, que cresciam no mesmo ritmo das tensões entre a elite brasileira e seus senhores em Lisboa. Efeito claro das transformações porque passava a Europa, com marcantes influências no Brasil, foi o deslocamento da família real portuguesa e parte de sua corte que, chegando ao Brasil em 1808, contribuíram para o desenvolvimento de uma nova sociedade. Já em 1808 foram fundadas duas faculdades de Medicina – no Rio de Janeiro e na Bahia – e em 1827 as duas faculdades de Direito, em São Paulo e Pernambuco, na cidade de Olinda.

Nesses embriões do ensino superior no Brasil seria gerado o núcleo da futura burguesia local (SKIDMORE, 2000, p. 61). E neles se veria, ao longo dos séculos, a reprodução, qual um atavismo filosófico, das estruturas e metodologias pedagógicas que marcaram – positiva e negativamente – a história da educação, vincadas por um apelo teológico em sua forma e pretensão. O Direito, por seu objeto e potencialidades políticas desde sempre dissimuladas, sucumbiria ao modelo pedagógico tradicional, que o instrumentalizaria com o escopo de formar a elite brasileira, os quadros profissionais do Governo e para a reprodução dos valores caros à classe dominante.

2 Cientificismo e Razão: A Reprodução do Saber desidratado e o Direito na Gaiola Dogmático-positivista

A fragmentação do conhecimento em especialidades técnicas que se seguiu às formulações iluministas, com o reforço das doutrinas positivistas, emoldurou a educação superior numa instrumentalidade voltada para a realização dos desígnios individualistas e materialistas. Essa instrumentalidade foi forjada sem que se perdesse de vista o potencial catequizador da ação pedagógica. Assim como a prática pedagógica jesuítica visava a preparar os homens da terra brasilis para o serviço de Deus e o serviço d’El-Rei (PAIVA, 2000, p. 44), visava também à reprodução da visão católico-lusitana.

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Decerto o mais destacado aspecto teológico das práticas pedagógicas identificadas na fase religiosa – jesuítica e pluriconfessional – da educação brasileira, bem como na fase pública, é aquele que prometia aos responsáveis pela sua implementação uma tranqüila reprodução dos valores e da mentalidade que conservava a sociedade em seus paradigmas favoráveis à promoção de interesses exclusivistas. Esse aspecto foi percebido por Paulo Freire como “um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e os educadores os depositantes” (FREIRE, 1987, p.58), a partir do que ele desenvolveu seu conceito de educação bancária; e por Louis Althusser, inspirado nas contundentes reflexões de Karl Marx, como um dos aparelhos ideológicos do Estado, que não se confunde com o aparelho repressivo do Estado (ALTHUSSER, 1985, p. 67), pois não funcionam pela violência propriamente dita, mas sim através da ideologia, numa bem engendrada forma de reprodução de padrões culturais. Esse conceito seria reelaborado por Pierre Bourdieu (2004, p. 9).

De fato, o pensamento francês formularia o conceito de violência simbólica para designar a ação pedagógica de um poder arbitrário como escopo de impor um arbitrário cultural, isto é, um valor eleito por certo grupo de poder como incontestável, como axiomático, como um dogma (BOURDIEU et PASSERON, 1982, p. 20). Depositava-se, nos educandos, os arbitrários culturais por meio da violência dissimulada praticada por um dos aparelhos ideológicos do Estado, os meios educacionais. Essa formulação conceitual, em que pesem ressalvas de cunho ideológico, é bastante apropriada para a necessária crítica às metodologias impostas aos processos educacionais no interior dos cursos de Direito.

Visto como a positivação da política com fins de organização e controle social, o Direito, no Brasil, encontrou na formulação de um saber dogmático, abrigado sob proteção dos princípios da legalidade, um indispensável instrumento de (i) desidratação do seu caráter político e (ii) de conservação das estruturas de poder que viabilizavam a imposição de certo modo de organização social. A opção epistemológica dos sistematizadores do ensino jurídico no Brasil, desde o princípio, não fugiu, em primeiro lugar, do molde derivado do Direito Romano e do Direito Canônico, e posteriormente, da perspectiva iluminista inspirada na filosofia moderna positiva e voltada para o conhecimento científico-instrumental.

O ensino jurídico local saiu, então, de um cenário no qual a política cultural da metrópole lusitana inibia qualquer “iniciativa que pudesse significar algum apoio à criação literária e científica”, sendo que “nenhuma instituição educacional e cultural tinha guarida e até modestas tipografias eram proibidas” (SEVERINO, 1999, p. 58), para um cenário emoldurado pelo racionalismo científico de feição naturalista, “uma espécie de idolatria da ciência, desprovida do necessário senso crítico” caracterizando o “cientificismo vulgar que também teve vigência no Brasil” (CRUZ COSTA apud SEVERINO, 1999, p. 61).

Assim, como saldo da modernidade tardiamente conhecida, o ambiente cultural no qual amadureceram os cursos jurídicos no Brasil emparedou o conhecimento de Direito, engaiolando-o a partir de um modelo constituído sobre as ruínas de um sistema canônico de educação e de uma visão científica sem senso crítico:

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[...] pode-se dizer que o embate cultural mais amplo que se configura no Brasil a partir de 1930, é aquele que compõe a cosmovisão católica tradicional. Estas são as duas referências básicas que servirão de parâmetro para as discussões de fundo da cultura brasileira, podendo-se observar então que, enquanto a cosmovisão católica atua em regime de resistência, a visão científica vai se impondo cada vez mais e impregnando todos os setores da vida social e cultural do país. (SEVERINO, 1999, p. 62).

Os pressupostos epistemológicos da racionalidade derivada do positivismo – que antecederam a sistematização promovida por Augusto Comte – fundaram-se num todo de regras e técnicas cuja gênese está no método experimental-matemático da ciência. Esse modelo de racionalidade importado por nossa elite cultural lusitana repete todos os vícios e virtudes já conhecidos na Europa, aqui agravados por condições socioeconômicas depauperadas econômica e culturalmente.

O Direito estava contido no paradigma da modernidade, “um projeto ambicioso e revolucionário, mas também um projeto com contradições internas”, cuja “ousadia de um propósito tão vasto contém em si a semente do seu próprio fracasso” (SANTOS, 2000, 50). Segundo esse mesmo autor, as promessas de progresso material concomitante com libertação individual e coletiva na modernidade foram reduzidas quando sua trajetória se enredou no capitalismo que emergira no século XIV (SANTOS, 2000, 119), algo que atingiu profundamente o modo de conceber a educação – inclusive no Direito – e os próprios processos de produção normativa, na medida em que o apelo por ordem como elemento indispensável à preservação dos interesses da capital conduziu à prevalência da regulação sobre a emancipação.

Boaventura Santos, identifica no paradigma da modernidade uma tensão entre duas formas principais de conhecimento que conduziriam o homem do estado de ignorância ao estado de saber; no conhecimento-emancipação a trajetória sairia do estado de ignorância denominado colonialismo dirigindo-se para o estado de saber denominado solidariedade. No conhecimento-regulação o estado de ignorância é o caos e o estado de saber é a ordem. Segundo o autor: “A hegemonia do conhecimento-regulação significou a hegemonia da ordem, enquanto forma de saber, e a transformação da solidariedade – a forma de saber do conhecimento-emancipação – numa forma de ignorância e, portanto, de caos.” (SANTOS, 2000, 119). A rigidez exigida pelo senso de ordem encontraria no positivismo o meio propício à proliferação do pensamento acrítico.

A salutar tensão entre regulação e emancipação identificada por Boaventura de Souza Santos certamente se originava do conflito entre mudança e conservação de certos paradigmas sóciopolíticos. Com a primazia de um paradigma sobre o outro – especificamente, do paradigma moderno-positivista, o qual desidrata a ciência dos seus componentes humanísticos – assistiu-se à opção, a partir do Estado moderno e seu modo de produzir o Direito, por um modelo de interação com as fontes sociais do Direito baseado num enfoque dogmático, afeito à introdução de axiomas jurídicos como que numa repetição dos construtos teológicos e religiosos de outrora.

Remetendo o leitor à divisão já clássica de Theodor Viehweg, deve-se observar que a opção se deu por um modelo de produção e ensino do Direito que privilegia a

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investigação de um problema a partir do aspecto resposta, num enfoque denominado de dogmático e favorável à instalação e preservação dos dogmas, em detrimento do aspecto pergunta, num enfoque denominado zetético, hipótese em que “aqueles elementos que constituem a base para a organização de um sistema de enunciados que, como teoria, explica um fenômeno, conservam seu caráter hipotético e problemático, não perdem sua qualidade de tentativa, permanecendo abertos à crítica” (FERRAZ JR., 1994, p. 40).

À toda vista, o enfoque dogmático exsurgiu como instrumento adequado à reprodução dos valores já incrustados nas estruturas dominantes da sociedade que elegeu a propriedade e o modo de produção próprio do sistema capitalista como seus guias normativo-reguladores. Noutra percepção, o enfoque zetético foi preterido porque sua natureza perquiridora comungava com os objetivos e pressupostos do conhecimento-emancipação referido.

O Direito, por essa via, tornou-se hospedeiro da ideologia dominante de caráter ora liberal, ora autoritário, mas em todo momento voltado ao atendimento dos interesses exclusivistas em prejuízo das políticas de caráter mais abrangente, democrático e social. A ideologia do Direito assim construída fez surgir o que se tem designado como senso comum teórico dos juristas, a traduzir as “condições implícitas de produção, circulação e consumo das verdades nas diferentes práticas de enunciação e escrituração do Direito” (WARAT, 1994, p.13). Esse senso comum teórico – de matriz racional-positivista cujo método exclui de suas equações tudo o que não seja experimental-matematicamente demonstrado – encontrou seu habitat a partir das formulações justeoréticas do início do século XX e que marcaram as discussões desenvolvidas no Debate de Weimar, quando o positivismo jurídico, liberado por Hans Kelsen, recebeu oposição de diferentes propostas metodológicas, marcando um conflito cuja origem inequívoca estava na “crise, então patente, sobre os pressupostos, método e sentido das ciências humanas, em geral, e do Direito, em particular.” (BERCOVICI, 2003, p.86). Gilberto Bercovici (2003, p. 86) trata da conhecida crise da Teoria do Estado vivida pelos alemães nas primeiras décadas do século XX, e seus efeitos sócio-jurídicos – que perdurariam nas décadas seguintes – estão delineados no seguinte excerto:

O positivismo jurídico de Gerber e Laband esqueceu-se do substrato social do Estado, impondo o método jurídico como o único possível. Embora fosse privilegiado o rigor científico, todos os problemas concretos da Teoria do Estado foram banidos como metajurídicos. A impossibilidade de aplicação do método para Heller ficava evidente: se o método positivista fosse levado realmente a sério, tornaria impossível uma disciplina como a Teoria do Estado.

A fabulosa construção teórica de Kelsen, e de outros teóricos juspositivistas, efetivamente concebeu o cenário propício ao desenvolvimento de um senso comum teórico, dominante no Direito, que refutou as abordagens do Direito fora do seu método. O Direito, de feições positivas, se prestaria ao enrijecimento dos dogmas liberais, como se deu, elidindo-se o anacronismo, nos tempos de ataques da burguesia às monarquias européias por meio do Constitucionalismo, impedindo que o exercício de enfoques zetéticos flexibilizassem a sólida construção teórica que sustenta o Direito contemporâneo.

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Esse sectarismo que se instalou no Direito, alijando as reflexões interna corporis de valores metajurídicos, censurou abruptamente o caráter emancipatório que nele naturalmente se poderia entrever a partir das considerações de que o Direito é receptáculo, é depositário dos anseios políticos de uma dada sociedade politicamente organizada. Capturado, em sua origem, por estruturas de poder que reconhecem sua importância para a fixação das regras de ordenação social, o Direito se vê engaiolado numa cela de dogmas cuja imutabilidade vem assegurada pela educação jurídica que se organiza na reprodução destes dogmas e que se realiza por meio de ações pedagógicas concebidas para afastar a problematização necessária sobre a raison d’être contemporânea do Direito, que deveria enfatizar seu caráter emancipatório. Ensimesmado em seu dogmatismo, o Direito permite que sobre ele sejam feitas reflexões críticas tão contundentes quanto verdadeiras, como a que se segue:

Produz-se uma linguagem eletrificada e invisível – ‘o senso comum teórico dos juristas’ – no interior da linguagem do direito positivo, que vaga indefinidamente servindo ao poder.

Resumindo: os juristas contam com um emaranhado de costumes intelectuais que são aceitos como verdades de princípios a ocultar o componente político da investigação das verdades. Por conseguinte se canonizam certas imagens e crenças para preservar o segredo que esconde as verdades. O sendo comum teórico dos juristas é o lugar do secreto. As representações que o integram pulverizam nossa compreensão do fato de que a história das verdades jurídicas é inseparável (até o momento) da história do poder. (WARAT, 1994, p.15)

O pensamento político brasileiro nutriu-se dessa tensão entre um Direito asséptico, desidratado e dogmático, escamoteador de sua gênese, de seu meio e de seu fim, e aquele Direito que se sonhou emancipador, que estabeleceria uma relação simbiôntica com a política, que se manteria permeável pelos anseios sociais, superando o conservadorismo liberal, estático o suficiente para evitar ameaças ao status quo, que marcaria o pensamento hegemônico brasileiro.

Conforme se disse acima, o caráter teológico do Estado aspergiu suas concepções no Estado, no Direito e na própria pedagogia do Direito. Ilustra bem esse pensamento político, no caso brasileiro num momento de transformações sociais e políticas do século passado, os comentários feitos por Francisco C. Weffort sobre um dos formuladores das políticas do Estado Novo, Oliveira Viana, que “não apoiava a ditadura pela ditadura; antes se enquadrava na ‘visão ibérica de inspiração católica [...] uma visão leiga da sociedade e da política, embora informada por valores ligados à tradição católica medieval” (WEFFORT, 2006, p.270). Oliveira Viana, aliás, reconhecia a influência das encíclicas Rerum Novarum e Quadragesimo Anno na sua atuação no Ministério do Trabalho do Estado Novo (WEFFORT, 2006, p. 271). Sem qualquer crítica de cunho religioso, o destaque se faz unicamente com o objetivo de sublinhar o perfil teológico das ações do Estado, que não excluíam as ações pedagógicas no campo do Direito, ações estas que construiriam uma ortodoxia jurídico-educacional capaz de atuar como agente fossilizador do próprio Direito.

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3 Simbolismo despótico: o poder simbólico em sala de aula

Para obnubilar a percepção do positivismo jurídico, calcado na dogmática do Direito, como uma forma inacabada de epistemologia das regras de conduta e organização social e humana, indispensáveis se mostrariam, desde os primórdios da pedagogia do Direito no Brasil, estratégias semelhantes àquelas adotadas pelos religiosos que doutrinavam os fiéis nos dogmas centrais da fé, cuja implementação visa ao afastamento das dúvidas. Nesse sentido, certos mitos comporiam as fundações da pedagogia que reproduziria os valores jurídicos, a exemplo dos mitos da certeza e da neutralidade e imparcialidade do Direito.

Se a liturgia do ensino religioso exigia a disciplina inspirada pela história, postura e aspecto onisciente do clérigo, nada mais apropriado para a práxis da metodologia pedagógica tradicional e para a reprodução dos dogmas nas mentes e corações dos futuros operadores do Direito do que a presença de um ser que encarna aquelas mesmas qualidades. Se o clérigo representava, na pedagogia teológica, as instituições divinas e o próprio Deus, traduzindo o verbo numa linguagem hermética e autoritária, porque dogmaticamente inquestionável, na pedagogia jurídica indispensável seria o docente capaz de, numa linguagem hermética e enigmática, porque igualmente dogmaticamente inquestionável, reproduzir os arbitrários culturais constituídos pelas instituições a quem serve, desde as instituições ditas educacionais até o Estado.

Essa analogia pretendida entre teologia e política, teologia e Direito e, por conseqüência, entre liturgia religiosa e pedagogia teológica com a pedagogia do Direito serve também para nos fazer relembrar do Direito como um fenômeno androcêntrico, tendo no homem, em gênero, seu principal protagonista, justamente porque a sociedade também assim se revela. Sob o ponto de vista ontológico e legislativo, interpretativo e educacional, o Direito baseia-se nas premissas divinas de onisciência e onipotência, repetindo uma característica da cultura ocidental judaico-cristã, na qual se sobressai o poder simbólico do patriarca, do pater familiae e da Divindade, sempre conferindo um caráter falocrático a toda a estrutura jurídico-estatal, numa repetição das estruturas militares e eclesiásticas. Esse caráter certamente deriva do fato anotado por Boaventura de Souza Santos: ‘Para além de ocidental e capitalista, a ciência moderna é sexista” (SANTOS, 2000, p.87).

A teologia contida nessa pedagogia de feições androcêntricas, mesmo quando protagonizada por representantes do sexo feminino, ganha contornos fenomenológicos que se expressam pela instituição de processos de ensino e aprendizagem calcados numa pressuposta expressão de poder do ensinante como decorrência de sua também pressuposta superioridade existencial, a ser ratificada além dos muros da instituição de ensino. Pode-se afirmar que mais que em outro curso superior, no Direito ocorre mesmo um abuso daquela prática de considerar apto ao exercício do processo de ensino – e somente deste, já que se esquece que se dá um processo de mão dupla nos fenômenos educacionais – um profissional bem sucedido em suas atividades jurídicas, do qual se presume que, por saber fazer, poderá saber ensinar. Dessa presunção, entre outros

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fatores, decorre a falsa inferência de que os profissionais do Direito estão preparados para o sensível processo educacional. A prática desautoriza a presunção.

Essa ratificação tem como necessária, para credibilidade do processo educacional, que o docente incorpore o arquétipo do guerreiro vitorioso: saindo de seu gabinete ou escritório, o bem-sucedido profissionalmente advogado, promotor de justiça, procurador, defensor ou magistrado, dirige-se ao templo do ensino em seu bólido reluzente e chega à sala de aula embevecido pelos símbolos do poder, consciente de que ele próprio encarna esse poder, simbolizando-o, ao ostentar poder econômico e social – obtido a partir do jogo de poder que o Direito permite – e receber do Estado e da Sociedade uma fração de seu poder.

No ambiente próprio para o exercício da ação pedagógica, adota um professoral discurso positivista calibrado por uma bem encenada crença no mito da certeza, da imparcialidade e da neutralidade do Direito e seus agentes. Ali, diante de tanto simbolismo – utópico, litúrgico, lingüístico etc. -, seu censurável distanciamento da realidade social se esfumaça; diante daquele ser absolutamente superior, num ambiente constituído para viabilizar acriticamente a reprodução do senso comum teórico dos juristas, toda reflexão questionadora é inibida, todo enfoque zetético tornado herético, o aluno vê materializar-se – ainda que sem compreender – o conceito de Bourdieu e Passeron: “Toda ação pedagógica é objetivamente uma violência simbólica, enquanto imposição, por um poder arbitrário, de um arbitrário cultural.” (BOURDIEU e PASSERON, 1982, p.20).

O professor, se olhasse para sua atividade docente com os olhos dos dois autores por último referidos, ver-se-ia como parte de um sistema de ensino que é “capaz de dissimular sua função social de legitimação das diferenças de classe sob sua função técnica de produção das qualificações” (KIPPER, 2001, p.146), pois conforme Bourdieu e Passeron, também citado pela autora, “cada agente, sabendo ou não, querendo ou não, é reprodutor de ações que são produto de um modus operandi do qual ele não é o produtor e nem tem o domínio consciente” (KIPPER, 2001, p.148).

Essa estrutura de reprodução de valores está a serviço, ao mesmo tempo em que é orientada, de uma crença dogmatizante segundo a qual o Direito e suas estruturas estão aptos a promover a Justiça, e os que atuam no Direito – verdadeiros sacerdotes do saber jurídico – teriam a capacidade de dotar de certeza o bruxuleante e incerto mundo jurídico. Revela-se, também na crença da capacidade do Direito de gerar certezas, seu caráter teológico e reforça a simbologia do poder contida no exercício das funções jurídicas: aquele homem, engravatado, bem-sucedido intelectual e financeiramente é um representante da fonte primária de certezas, ele é figura semi-divina. O aluno, aprendiz de homem-de-certezas, anseia por obter do professor a certeza jurídica, tanto quanto o fiel almeja receber o consolo pelas palavras dogmáticas do sacerdote e, em última instância, do próprio D’us. Esse perfil divinizante conferido ao Direito ao longo dos séculos, e que atingiu o ápice no positivismo dogmático, impôs os que ousam desenvolver o processo de “ensinagem”[4] do Direito uma dura realidade: seus “fiéis”, de modo geral, não almejam aprender, mas tão somente ser “ensinados”.

Por vezes, a postura dos alunos em sala de aula assemelha-se à dos fiéis ante o sacerdote, à das ovelhas ante o pastor: exibem necessidade de certezas, de condução, e não de uma construção dialética de respostas possíveis ante a realidade fática e seus

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efeitos jurídicos. Por exemplo, uma aula que fuja dos tradicionais métodos didático-expositivos, baseada em estudos de casos, com o docente abstendo-se de professar sua opinião de autoridade e de sublinhar a opinião dominante nos tribunais sobre o assunto específico, certamente causará grande insatisfação na maioria dos alunos, pois não terão saciada sua segurança jurídica, por certezas. O senso comum teórico que circunda e envolve o Direito e seus processos de ensino e de aprendizagem são contrariados se a simbologia teológico-jurídica contida na figura do professor não realizar as expectativas de certezas.

4 Processo como fetiche e consumação dogmática

Num dos surtos de radicalismo propiciados pelos ideais iluministas, surgiram teses que defenderiam a abolição dos profissionais do Direito como forma de preservar as leis das deturpações das interpretações (RODRIGUEZ, 2005,p.57). Seyés, com seu élan revolucionário, formulou reflexões sobre a substituição das gens de loi, pois os Códigos – outra iniciativa radical iluminista – falariam por si diante dos júris populares. Tal não se deu, e os profissionais do Direito, vulgo operadores do Direito, se converteram nos destinatários e intérpretes dos enunciados normativos, operando o Direito especialmente no campo instrumental estruturado por normas e no âmbito de um dos poderes do Estado. De fato, no desenvolvimento da organização do Direito como ciência social aplicada, erigiu-se um valor inegociável: o Estado não tolera a justiça feita pelas próprias mãos dos cidadãos. Além de traçar a norma de conduta, a um outro poder do Estado se reconheceu o monopólio da função pacificadora a ser exercida diante das situações litigiosas (THEODORO JÚNIOR, 2006, p.6).

Segundo a processualística italiana, lide é o conflito de interesses caracterizado por uma pretensão resistida, ocasião em que o Estado é chamado a aplicação à lei ao caso concreto, seu objetivo imediato, e restabelecer a paz entre os particulares e, com isso, manter a paz da sociedade (THEODORO JÚNIOR, 2006, p.6). O processo é o método desenvolvido pelo Estado para o exercício de tão nobre função, valorizada às alturas depois de ameaçada pelo pragmatismo democrático dos iluministas franceses, conforme comentado. E a este método – do qual derivam as normas processuais, dentre as quais muito se destacam aquelas de natureza civil, que recebem o nome de formais ou instrumentais, em apoio àquelas ditas materiais ou substanciais – as linhas abaixo dedicarão algumas reflexões.

Em nome da ordem jurídica justa, que tem caráter material, diga-se, de modo intermitente, ao longo dos tempos, certas disciplinas jurídicas têm exibido notável, conveniente e adulada hipertrofia. O caso do processo civil, contudo, é realmente raro, especialmente porque se apropria de dois valores reconhecidamente lógicos e fundamentais – a saber: a efetividade da tutela do Direito e a finalidade do processo – e desenvolve-se dentro de si mesmo, num deplorável eclipsar, em termos acadêmicos, das abordagens do Direito material e de temas metajurídicos, essenciais, é certo, para melhor preparar as gens de loi. Saber derivado, que se posiciona como adjetivo das disciplinas substantivas que compõem a ciência do Direito, tem adquirido grandeza absolutamente proporcional à inaptidão administrativa e legislativa dos poderes constituídos.

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Os Direitos, materialmente considerados, de qualquer dimensão e com destaque para aqueles de natureza fundamental e social, não recebem do Poder Executivo a atenção prometida, e os Legisladores se esmeram em demonstrar grande vocação ao arbítrio quando legislam sem a bússola constitucional. No Judiciário, há décadas assiste-se a um demorado e genérico pedido de vistas, o que levou à criação – como parte do próprio Poder Judiciário! – de um Conselho Nacional de Justiça, supostamente concebido para reduzir os apelos nem sempre bem-intencionados por um controle externo do Judiciário.

Arqueando sob filosofemas e epistemas juspositivistas, o Processo é autopoiético, no sentido luhmanniano, em termos de dogmas que balizam seus procedimentos. Ao encontro dessa assertiva, vai o termo fetiche aplicado no título deste capítulo. Ilhado em pretensas e exageradas importância e auto-suficiência, o processualismo se dogmatiza naturalmente, uma vez que seu exercício está embebido de duas certezas dogmaticamente concebidas pelo Direito positivo a partir do enquadramento epistemológico positivista: a objetividade e certeza do próprio Direito e a imparcialidade do aplicador, o Poder Judiciário.

Dessa crença fetichista derivam evidências de onipotência ou, no mínimo, de certeza e conveniência de uma atuação alheia ao sistema sóciopolítico. A síndrome do sacerdote – isolado em seu claustro e, portanto, alheio ao seu entorno, mas discursivamente fiel a D’us – é revelada na ontologia do processo, pois sua vocação para a pacificação social parece não ser condicionada, aos olhos de muitos de seus teóricos, pela sociedade no qual ele opera e sobre a qual gera seus efeitos só processualmente, e não materialmente, considerados.

Fornida por uma bem aparelhada indústria editorial, abrigada sob benesses fiscais de expressiva potência e duvidosa utilidade prática, uma vez que os livros técnicos da área jurídica são dos mais caros no mercado editorial, essa disciplina dominou de tal forma o cenário jurídico-educacional que se assistiu a uma inaceitável, mas eloqüente e reveladora, inversão: o acessório superou o principal, o adjetivo suplantou o substantivo, o instrumental tomou o lugar do material.

Expressando eloqüentemente uma ignorância humanística, as instituições de ensino jurídico, como que a decretar o reconhecimento da incapacidade dos seus alunos para o exercício intelectual sobre o conteúdo material do Direito e suas inegáveis interações com as humanidades, optaram por uma super-oferta – talvez para atender a uma super-demanda, pois estamos falando também de sociedades empresariais que precisam sustentar-se pelo lucro – de cursos nos quais pontifica a disciplina processo civil, o que ainda ocorre tanto na composição do currículo da graduação quanto na pós-graduação, stricto e latu sensu.

Convoca a atenção a linguagem peculiar desenvolvida no âmbito desse que é o ramo mais hipertrofiado das ciências adjetivas do Direito. O veio teórico-processual conhecido por instrumentalidade das formas traz um encontro semântico de conteúdo pleonástico à primeira vista. É que nesse âmbito, pôs-se em discussão, ao uso de letras garrafais, uma obviedade ontológica: o processo civil deve suas origens à necessidade do direito de instrumentalizar seus modais deônticos, ou seja, intrinsecamente direito é dotado de instrumentalidade, especialmente se se tratar de Direito Processual. O processo, nessa teoria, trai a sua forma e, “entre dois valores – forma do ato processual

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e objetivo a ser alcançado –, adota-se este último sem qualquer hesitação.” (BEDAQUE, 2006, p. 59). O instrumento teria nascido, então, incapaz de cumprir sua finalidade instrumental.

Curioso notar que, nos primórdios, discutia-se até mesmo a autonomia desse ramo do Direito. Entretanto, o processo civil, assim como, no exemplo acima, uma sua subárea, a instrumentalidade, ganhou o mundo acadêmico e profissional com ares de relevância somente possível num cenário científico-pedagógico profundamente debilitado por décadas de ausência de reflexões sobre cidadania, humanidades e Direitos cuja efetividade não deveria depender tanto, como de fato não dependem, de um instrumento de força do Estado. Por isso mesmo, a doutrina do processo avança e passa a se desenvolver sobre os aspectos formais e materiais da instrumentalidade, num reconhecimento de circunstancial e possível insuficiência da instrumentalidade formal diante da apreciação, pelo Poder Judiciário, de um caso concreto, seja no confronto da questão processual com uma norma substancial (BRASIL JÚNIOR, 2007, p.63), ou seja por simples inadequação dos enunciados processuais.

Atente-se, é claro, para a instrumentalidade do instrumento, ou a instrumentalidade das formas do instrumento – pois o processo, em que pese o nó semântico epistemologicamente importado da processualística européia, e sua operação no nível das formalidades ameaçadoras para o próprio Direito material, revela uma preocupação com efetividade dos Direitos, conforme disserta Theodoro Júnior (2006, p. 9):

Idéias como instrumentalidade e efetividade passaram a dar tônica do processo contemporâneo. Fala-se mesmo de ‘garantia de um processo justo’, mais do que um ‘processo legal’, colocando no primeiro plano idéias éticas em lugar do estudo sistemático penas das formas e solenidades do procedimento.

Desburocratizar o procedimento e acelerar o resultado da prestação, segundo Theodoro Júnior, têm sido o propósito das reformas do Código de Processo Civil, numa positivação de mais esforço para substantivar o adjetivo: a busca por um processo civil de resultados. Evidencia-se, novamente, o esforço intelectual da teoria desse ramo do Direito, por extrair dos estreitos limites de sua teologia, uma mitificação de feições fetichistas, exibida na omissão, pela semântica, na própria natureza do processo e seus procedimentos. Afinal, ao se reconhecer ontologicamente o processo, é inevitável reconhecer também sua natureza de resultados, sempre justos na ótica de um jurisdicionado e dialeticamente injustos sob o ponto de vista de outro.

O processo tem seu curso, e seus recursos, justamente para atingir a um resultado, qual seja, assegurar seus objetivos imediato e mediato: restabelecer a paz entre os particulares e manter a paz da sociedade. Equivale a dizer: o processo caminha para resultado, desde sua concepção. Movimenta-se teologicamente, rumo a resultados supostamente previsíveis. Sendo assim, qual o significado epistemológico da expressão processo civil de resultados justos? A indagação ganha tons invectivos quando vemos o Poder Judiciário, estribado no discurso processualístico, alienadamente exibir estatísticas que apontam para o incremento do acesso à justiça¸ estimulado quase

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sempre por uma prestação jurisdicional desbussolada que não gera resultados justos, mas perpetua agressões a Direitos. Veja-se o que ocorre, exempli gratia, no caso dos Direitos do Consumidor, em que as empresas que mais os ferem recebem sanções esdrúxulas ao mesmo tempo em que mantêm em seus balanços a rubrica despesas com processos judiciais.

José Rogério Cruz e Tucci, escorado em Alcalá-Zamora y Castillo afirma que “um dos fatores que mais complicam, sob vários aspectos, o estudo do direito é a imprecisão terminológica” (TUCCI, 1998, p.41). Ao se entregar a formulações cerebrinas lastreadas numa linguagem nitidamente redundante, o processo encontra-se em crise, mesmo, com reflexões de Cruz e Tucci, quando é “o nível de desenvolvimento de uma ciência afere-se pelo refinamento do respectivo vocabulário” (CRUZ E TUCCI, 1998, p.42) e sugere um esgotamento de sua capacidade fetichista, o que pode significar uma humanização do processo como efetivo instrumento de amparo àqueles que têm no Judiciário o último recurso, com o perdão do trocadilho, para assegurar os seus direitos. Contudo, o desempenho desse Poder tem se prestado mais a justificar sua manutenção e crescimento, pois, por meio de seu instrumento-maior, o processo, a efetividade que se realiza de modo precário e narcisante, é a do próprio instrumento, quando sua teleologia deveria apontar para a efetividade material, inibindo práticas lesivas ao universo jurídico do cidadão. O fetiche o impede.

5 Conclusão: Educação e Laissez-faire

O ensino superior brasileiro, jurídico ou não, e suas vastas deficiências – materiais, intelectuais e éticas – é o resultado concreto da teologia pedagógica identificada nas práticas de ensino que, divorciadas das preocupações com a educação, balizam a gestão educacional desde muito tempo. O ensino superior, em verdade, representa a foz desorganizada da torrencialidade de deficiências oriundas da errática pedagogia praticada nos níveis anteriores do processo educacional. Assolado por décadas de dogmatismo, fetichismo e promessas não cumpridas, o ensino superior brasileiro agoniza ante o abandono do Estado e a voracidade do anarco-capitalismo, agora erodindo os pressupostos princípios da educação. Convém tecer reflexões sobre o tema.

5.1 Lógica liberal, pedagogia do atraso

O esvaziamento das funções do Estado atingiu frontalmente o Direito à educação, e isso por duas vias: (a) endividado e empobrecido o Estado, os cânones econômicos neoliberais impuseram uma política de crescente estado mínimo segundo a qual a administração dos recursos financeiros seria guiada por investimentos em outros setores – normalmente ligados ao pagamento de dívidas e infra-estrutura e classificados de essenciais segundo a lógica do Consenso de Washington, após o que não restaram recursos para investir em educação e (b) essa minimização do Estado e o esvaziamento

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do poder político, submetido ao poder econômico, não permitiu sequer a instituição de políticas públicas visando à simples preparação da economia e das sociedades para o mercado educacional, isto é, o Estado não apenas deixou de promover diretamente investimentos expressivos em educação superior, mas também não criou estruturas de aferição da qualidade do serviço educacional ofertado pelas instituições privadas de ensino superior e, ainda menos, mecanismos efetivos de sanção.

A confluência desses dois efeitos do giro neoliberal, ao permitir a universalização do ensino superior, debilitou profundamente o sistema educacional universitário, pois o submeteu a uma lógica apequenada, utilitarista e destruída dos valores que poderiam apontar para a pedagogia emancipatória. Reitera-se o registro: as políticas minimalistas, impostas como moeda para o jogo do indisciplinado capital transnacional, afetaram toda a estrutura educacional, acentuando deficiências do sistema público desde as séries iniciais e criando oportunidades aos investidores para atender a uma demanda deliberadamente reprimida.

Dos cursos de ensino superior, é provável que nenhum tenha se proliferado tanto quanto os cursos jurídicos nos últimos anos. Schopenhauer repetiria aquela sua frase sobre o aparente amor à instrução e à verdade. Isso se deve, certamente, aos custos relativamente baixos na instalação do curso de Direito, além do retorno financeiro expressivo, uma vez que – em decorrência do imaginário popular relacionado a este curso – a grande demanda permite, mesmo num ambiente econômico quase saturado pelo excesso de oferta, a fixação de mensalidades rentáveis. A demanda, sendo medíocre, permite que a qualidade se sobreponha à qualidade, o que induz à existência de cursos que não cumprem o mínimo esperado, senão pelo estudante, pelo sistema que pretenderá recebê-lo como profissional.

O sistema educacional universitário privado, com a anuência – ou cumplicidade – do Ministério da Educação, no Brasil, lançou-se à ampliação da oferta do curso de Direito sem destinar qualquer consideração diferenciada das peculiaridades do curso e suas implicações sociais. Certos vícios pedagógicos denunciados, e.g., por Marcos Tarciso Masetto (MASETTO, 2003) abundam naquelas instituições de ensino superior que decidiram, baseadas unicamente em questões mercadológicas, montar um curso de Direito. Há uma lógica, de rasas feições capitalistas, que desconsidera qualquer ajuste de estrutura e das práticas pedagógicas às vicissitudes sóciohistóricas que afetam o mundo jurídico, no qual os egressos destes cursos vão interagir.

O mercado editorial brasileiro que se dedica à área jurídica, por sua vez, também nunca se esmerou por promover edições de livros cujas idéias e autores formulem críticas científica e socialmente adequadas e necessárias à superação do discurso dogmático e reducente-positivista. Nesse sentido, as editoras do ramo converteram-se em convenientes cúmplices de uma estrutura decrépita cuja crise já se faz sentir. As empresas que dominam o mercado editorial jurídico se empenham com maior vigor na promoção dos livros didáticos de conteúdo estéril e infenso a críticas de maior amplitude sóciohistórica, porque excessivamente dogmáticos, restando aos autores cujo posicionamento intelectual é crítico as editoras menores, com poder de marketing e de distribuição diminutos, sem falar na tímida penetração nas instituições de ensino superior e nas estruturas do Poder Judiciário. O mercado editorial francamente privilegia a literatura propícia à prática de educação bancária, para referirmos à expressão antitética à abordagem sócio-cultural e plural que o Direito tem desprezado.

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Guiado por essa lógica, seria ingênuo considerar que os gestores da área educacional, outra vez com ressalva às exceções confirmadoras da regra, dedicariam tempo e dinheiro ao aperfeiçoamento pedagógico de seus docentes, exigindo-lhes conduta profissional – no sentido de aplicação das melhores técnicas no cumprimento do seu mister – ética e intelectualmente qualificadas na relação com o corpo discente.

Já nos processos seletivos dos cursos de Direito – dada a quantidade de oferta supra mencionada – há um vício de gênese que termina por alastrar-se ao longo do curso, e conseqüentemente, após a graduação. Ávidas por preencher suas vagas nos cursos jurídicos, as instituições de ensino afrouxam os critérios de ingresso, permitindo que os candidatos muitas vezes desclassificados intelectualmente – por culpa do próprio sistema – adentrem suas salas de onde passarão a contribuir financeiramente para a instituição na expectativa, via de regra atendida, de obter o seu diploma de bacharel após o decurso do prazo de cinco anos.

Essas características são potencialmente nocivas aos universitários que buscam aprender ciências jurídicas porque (a) impedem o desenvolvimento de estruturas curriculares preocupadas com outros aspectos do processo de educação, que transcendem a técnica, a exemplo do aprendizado afetivo-emocional, de habilidades sócio-pessoais e desenvolvimento de atitudes ou valores (MASETTO, 2003, p.81), além de reflexões insertoras do cidadão em seu meio; (b) o objeto essencial do Direito – a cidadania – depende, para sua completa realização, de formação humanística, valor materialmente ausente dos cursos jurídicos na configuração em que hoje são ofertados aos consumidores e (c), por último, mas não menos importante, até mesmo o aprendizado do conhecimento técnico-jurídico tem sido prejudicado pela insuficiência de gestão empresarial, metodológica e didática reconhecida na expressiva maioria destes cursos, nos quais a preocupação-guia não tem sido a preparação profissional – e ainda menos pessoal – daquele que busca formação em Direito.

5.2 Sintomatologia do mal-estar na pedagogia do Direito

Vê-se, portanto, que é assertiva de facílima comprovação a de que o sistema educacional na área jurídica não tem funcionado massivamente a contento, nem mesmo no que diz respeito às questões técnico-profissionais. A descrença em certas categorias profissionais operativas do Direito, a desvalorização das carreiras, inclusive aquelas de caráter liberal e o mau funcionamento da máquina jurídico-pedagógica são evidências de um mal-estar crescente.

A Ordem dos Advogados do Brasil – OAB e outras instituições, a exemplo dos Tribunais de Justiça, dos Ministérios Públicos e de órgãos da administração pública, que aplicam provas em concursos – cuja função é medir especificamente o percentual de acerto de questões extraídas do currículo técnico – não se cansam de exibirxx números tristemente eloqüentes sobre aprovação e nível intelectual dos candidatos aos respectivos cargos para os quais a formação jurídica é pré-requisito.

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Decorre desse primeiro item a proliferação microbiana de cursinhos preparatórios para o exame exigido pela OAB, oferecidos não raro pelas próprias instituições de ensino superior e em suas próprias instalações, numa eloqüente e atrevida assunção de incapacidade funcional e de descumprimento contratual. A utilidade desses cursinhos já foi comprovada, tendo como efeito colateral a confirmação da insuficiência didático-pedagógica dos cursos de graduação em Direito. Uma aberração foi oficializada, possivelmente por razões nada republicanas: com o advento da Portaria 2.146/04, do Ministério da Educação, o estudante que se dedica a um curso com fins exclusivos de preparação para concursos obtém o título de especialista, não em curso preparatório, mas numa disciplina que, dentre as tantas que ele cursou, ele escolha e para a qual prepare um trabalho de conclusão de curso.

A proliferação citada gera um perverso efeito até para o mercado que demanda serviços jurídicos, que tem dificuldades em contratar quadros profissionais competentes que unam conhecimentos técnicos a habilidades essenciais ao exercício qualificado das profissões jurídicas. A regra tem sido: findos os cinco anos, o recém-formado não está preparado para nada além de funcionar como um estagiário mais qualificado. Cada vez mais são contratados, sob remuneração vil, advogados, ou bacharéis em Direito, literalmente colocados à margem do mercado de serviços jurídicos, evidenciando que o país tem vivido uma impune fraude coletiva em termos de prestação de serviços de educação, ou melhor, de ensino jurídico.

Conseqüente lógico dessa conjuntura é a massiva expressão de desejo, muitas vezes frustrado em decorrência do despreparo acachapante, dos egressos dos cursos de graduação por ingressar nas carreiras públicas como meio de profissionalizar-se no seu ramo. Sentem-se inseguros para ingressar num mercado concorrido que exige habilidades que a instituição pela qual obtiveram o grau não lhes proporcionou. Nem se diga que isto é reflexo apenas da conjuntura econômica, pois o mercado se ressente de egressos do sistema jurídico-educacional preparados para compor seus quadros, sabendo que a sua formação será completada no exercício da profissão, mas sem deixar de apresentar exigências mínimas.

O aprendizado indigente é que não comporta a demanda inteligente da maioria dos centros de negócios, que necessitam de soldados do capital devidamente preparados para proteger os interesses dos empresários e investidores, ou o seu contrário, pois essa demanda inteligente também é feita por outras entidades, a exemplo de organizações não-governamentais e também por pessoas físicas. Essas, talvez por não terem, ainda, profissionalizado suficientemente suas demandas, têm sido mais complacentes com as deficiências dos recém-formados.

Quase inexistentes são os esforços de interdisciplinaridade considerando o currículo do próprio curso de Direito, o que muitas vezes impede que o estudante se veja dentro de um sistema de conhecimento específico que opera em articulação orgânica interdisciplinar, ou ainda, que ele perceba uma certa transversalidade de matérias propedêuticas que costuram o corpo de conhecimentos jurídicos. Se assim é interna corporis, o que dizer do diálogo do curso de Direito com outras disciplinas que são, por assim dizer, auxiliares no exercício das atividades profissionais jurídicas? No ambiente corporativo, e.g., é indispensável que o profissional do Direito domine rudimentos de saberes como contabilidade, economia empresarial, finanças empresariais, marketing,

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tecnologia da informação, recursos humanos etc. Sem isso, o diálogo com seus clientes internos fica prejudicado.

As grades curriculares não têm dedicado nenhuma atenção a essas demandas específicas, sem que desperte qualquer reação, de qualquer autoridade ou interessado direto. Pesquisa como forma de complementação das atividades intelectuais desenvolvidas pelos discentes é exercício que não tem encontrado espaço na gestão acadêmica de muitas instituições de ensino superior. Muito freqüentemente, o próprio docente não possui as habilidades intelectuais, ou a própria experiência, para realizar ou conduzir a realização de pesquisas, ou ainda lhe falta estrutura administrativa e tempo para tanto.

Há pouco tempo, a Resolução 09/2004, do MEC, decerto arqueando sob as pressões dos setores políticos subsidiados pelas instituições de ensino superior, prestou suspeito desserviço aos estudantes e ao sistema jurídico brasileiro ao promover lamentável substituição do trabalho acadêmico exigível ao final do curso, fixando como obrigação a entrega de um trabalho sem qualquer densidade científica e eximindo o formando de empreender outros esforços intelectuais.

Para além de uma irresponsável política educacional guiada pela lógica do mercado e implementada a partir de 1995 pelo Ministério da Educação – e segundo a qual educação é serviço e seu oferecimento pode se sustentar numa relação mercadológica de baixa qualidade –, o indigente cenário atual dos cursos jurídicos é fruto não apenas da vocação das instituições de ensino superior de tratar educação como simples negócio e da omissão do Estado na regulação da atividade, mas também do despreparo dos docentes, que permanecem – com as exceções que toda regra comporta – aferrados a hábitos antiquados de ensino, sem o refinamento de sua ação docente que deveria, como Marcos Masetto adverte, evoluir para a uma atuação de mediação de aprendizagem ou de ensinagem, no feliz neologismo aplicado por Selma Garrido Pimenta, concentrando-se nas demandas pessoais e intelectuais do aprendiz, e não nas vaidades intelectuais daquele que deseja apenas ensinar, despreocupando-se com a aprendizagem (MASETTO, 2003, p.76). Efetivamente, na área jurídica educacional é perceptível um grande distanciamento dos docentes em relação às questões pedagógicas. As práticas didáticas não se renovam e parecem sempre estar imbuídas de uma auto-suficiência míope e nefasta, refratárias à evolução como os milenares dogmas religiosos.

A simbologia contida na imagem dos profissionais da área jurídica e a curtida opinião de relevância histórica da república dos bacharéis, também contribuem para um certo flerte vaidoso dos egressos do ensino médio com os cursos jurídicos. Essa mesma simbologia tem, tradicionalmente, aparelhado os professores universitários do núcleo jurídico das instituições de ensino com certa prepotência intelectual verificada mesmo na relação estabelecida nos processos de ensino e de avaliação, normalmente meros exercícios de poder que permitem a prática da complacência daquele que muito sabe para com aquele não sabe. O docente jurídico assume, via de regra, uma posição de antístite perante o aluno, visto como um súdito fiel cujo único dever é colher as maravilhas do seu discurso hermético, dogmático e promissor das maravilhas do seu discurso hermético, dogmático e promissor das maravilhas e certezas do Direito.

Não há como olvidar Karl Marx quando diz que as atividades econômicas determinam as idéias: as relações de poder estabelecidas por estes profissionais em seus ambientes

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de trabalho, são normalmente transferidas par ao ambiente de aulas, numa reprodução do ambiente opressor criticado por Freire, Bourdieu e outros.

Justamente por essa simbologia do poder contida nas profissões jurídicas – lembrar que os professores dos cursos jurídicos são, quase todos, profissionais do Direito que dissertam verbalmente sobre sua profissão –, os cursos de Direito agonizam sob conhecidas distorções pedagógicas, que parecem radicalizar o enrijecimento epistemológico e metodológico e aumentar o caráter refratário às mudanças que os tempos em transformação exigem daqueles que se decidem por contribuir com a formação intelectual, profissional e pessoal dos jovens egressos dos vestibulares – ou de outras formas de ingresso nos cursos superiores, sendo este mais um sinal de radicais mudanças no cenário acadêmico brasileiro.

A equação revista acima tem se prestado, historicamente, à manutenção do paradigma dogmático-positivista. Mais que isso, as estruturas do ensino superior jurídico, com seus protagonistas e coadjuvantes, têm se constituído num local perfeito para naturalizar entre os discentes a falsa idéia e a fluida percepção, captada subliminarmente, de que há um império do monismo pedagógico-jurídico, não existindo vida além do positivismo-dogmático reducente que nos trouxe até aqui, como se esse aqui fosse o satisfatório resultado da realização de todas as promessas feitas ao homem que se quer contemporâneo. Esse locus tem sido, inclusive, impermeável à ética, um dos fundamentos ontológicos do Direito.

A pedagogia do Direito continua com os grilhões que lhe foram postos quando de seu surgimento no Brasil colônia. O apelo intelectual do positivismo tem um quê de teológico, pois a ele os homens se apegaram na esperança de que sua estrutura lógico-semântica precisa e polida lhes assegurasse um mundo livre de tantas incertezas.

Ocorre que a matéria de que é feito o Direito, - humana, demasiadamente humana, como diria certo filósofo – é caótica e, por mais que pretenda, o Direito criado pelo homem à imagem de sua relação com D’us não promove o modo asséptico de organizar o mundo. O Direito é plural. O Direito é transversal. O Direito é caos em esforço de organização. Somente a partir da percepção do caos o Direito poderá aspirar a estabelecer alguma ordem pluriarticulada capaz de conter em si a humanidade ética, moral e culturalmente dispersa. A pedagogia do Direito tem essa potencialidade. É preciso, porém, por abaixo as pretensões de completude e reconhecer suas deficiências que somente serão tratadas a partir do reconhecimento de que é Direito é a política positivada.

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[1]Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Objetiva, 2002.

[2] Langenscheidts Taschen-wörterbuch Portugesiesisch. München: Langenscheidt KG, 1988.

[3] “Espírito da época”, cfe. Langenscheidts Taschen-wörterbuch Portugesiesich. München: Langen-scheidt KG, 1988.

[4] Rica expressão aplicada por Selma Garrido Pimenta e Léa das Graças Camargos Pimenta, no livro Docência no ensino superior, São Paulo: Cortez Editora.


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