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Durkheim - Individualismo e Os Intelectuais

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Durkheim
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299 Revista de Direito do Cesusc. N o 2. Jan/Jun 2007. Documenta. O individualismo e os intelectuais Uma edição realizada a partir do Artigo de Émile Durkheim - L’individualisme et les intellectuels - Revue bleue, 4e série, t. X, 1898, pp. 7-13 http:// classiques.uqac.ca index.html version électronique Por Émile Durkheim (Juillet, 1898) A questão que, há seis meses, divide tão dolorosamente o país está se transformando: na origem, simples questão de fato, ela se generalizou aos poucos. A intervenção recente de um literário conhecido 1 ajudou muito nesse resultado. Parece-me que encontraram o momento oportu- no para renovar, com uma ação de esplendor, uma polêmica que se arrastava em repetições. É a razão pela qual, no lugar de retomar novamente a discussão dos fatos, quisemos, em um sobressalto, nos elevar ao nível dos princípios: é ao estado de espírito dos “in- telectuais” 2 , às idéias fundamentais das quais dizem compartilhar, e não mais ao detalhe de sua argumentação que nos enredamos. Se eles recusam obstinadamente “inclinar sua lógica perante a palavra de um general do exército”, é evidentemente que se atribuem o direito de julgar a questão por eles mesmos; é que eles põem sua razão acima da autoridade, é que os direitos do indivíduo pare- cem-lhes imprescritíveis. É, portanto, seu individualismo que deter- minou sua cisma. Então disseram que, para se restabelecer a paz nos espíritos, e prevenir a volta de semelhantes discórdias, é este individualismo que é preciso enfrentar corpo a corpo. É preciso estancar, uma vez por todas, essa inesgotável fonte de divisões in- testinas. E uma verdadeira cruzada começou contra essa epidemia 1 Ver o artigo do senhor BRU- NETIÈRE: Após o processo, na Revue de Deux Mondes do dia 15 de março de 1898. 2 Notemos de passagem que esta palavra, muito cômoda, não tem o sentido impertinente que lhe atribuíram malignamente. O intelectual não é aquele que tem o monopólio da inteligência; não há função social em que ela não seja necessária. Mas se encon- tra onde ela está, ao mesmo tem- po, meio e fim, instrumento e objetivo; emprega-se a inteligên- cia para estender a inteligência, ou seja, para enriquecê-la de co- nhecimentos, de idéias ou sensa- ções novas. Portanto, ela consti- tue o todo dessas profissões (arte, ciência) e é para expressar esta particularidade que acabou na- turalmente se chamando de inte- lectual o homem que se dedica a ela.
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299Revista de Direito

do Cesusc.No2. Jan/Jun 2007.

Documenta.

O individualismoe os intelectuaisUma edição realizada a partir do Artigo de ÉmileDurkheim - L’individualisme et les intellectuels - Revuebleue, 4e série, t. X, 1898, pp. 7-13http:// classiques.uqac.ca index.html version électronique

Por Émile Durkheim (Juillet, 1898)

A questão que, há seis meses, divide tão dolorosamente o paísestá se transformando: na origem, simples questão de fato, ela segeneralizou aos poucos.

A intervenção recente de um literário conhecido1 ajudou muitonesse resultado. Parece-me que encontraram o momento oportu-no para renovar, com uma ação de esplendor, uma polêmica quese arrastava em repetições. É a razão pela qual, no lugar de retomarnovamente a discussão dos fatos, quisemos, em um sobressalto,nos elevar ao nível dos princípios: é ao estado de espírito dos “in-telectuais”2, às idéias fundamentais das quais dizem compartilhar, enão mais ao detalhe de sua argumentação que nos enredamos. Seeles recusam obstinadamente “inclinar sua lógica perante a palavrade um general do exército”, é evidentemente que se atribuem odireito de julgar a questão por eles mesmos; é que eles põem suarazão acima da autoridade, é que os direitos do indivíduo pare-cem-lhes imprescritíveis. É, portanto, seu individualismo que deter-minou sua cisma. Então disseram que, para se restabelecer a paznos espíritos, e prevenir a volta de semelhantes discórdias, é esteindividualismo que é preciso enfrentar corpo a corpo. É precisoestancar, uma vez por todas, essa inesgotável fonte de divisões in-testinas. E uma verdadeira cruzada começou contra essa epidemia

1 Ver o artigo do senhor BRU-NETIÈRE: Após o processo,na Revue de Deux Mondes dodia 15 de março de 1898.2 Notemos de passagem que estapalavra, muito cômoda, não temo sentido impertinente que lheatribuíram malignamente. Ointelectual não é aquele que temo monopólio da inteligência; nãohá função social em que ela nãoseja necessária. Mas se encon-tra onde ela está, ao mesmo tem-po, meio e fim, instrumento eobjetivo; emprega-se a inteligên-cia para estender a inteligência,ou seja, para enriquecê-la de co-nhecimentos, de idéias ou sensa-ções novas. Portanto, ela consti-tue o todo dessas profissões (arte,ciência) e é para expressar estaparticularidade que acabou na-turalmente se chamando de inte-lectual o homem que se dedica aela.

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pública, contra “essa grande doença do tempo presente”.

Aceitamos de bom grado o debate nesses termos. Nós tam-bém acreditamos que as controvérsias de outrora expressavamapenas superficialmente uma discordância mais profunda; que osespíritos se opuseram muito mais por uma questão de princípioque por uma questão de fato. Portanto, deixemos de lado os argu-mentos de circunstância que são trocados de um lado para outro;esqueçamos o próprio caso e os tristes espetáculos dos quais fo-mos testemunhas. O problema que surge a nossa frente vai muitoalém dos incidentes atuais e deve ser apartado.

I

Há um primeiro equívoco do qual é preciso se livrar antes detudo.

Para fazer mais facilmente o processo do individualismo, ele éconfundido com o utilitarismo estreito e o egoísmo utilitário deSpencer e dos economistas. É tirar proveito de uma boa oportuni-dade. É fácil, de fato, denunciar um ideal sem dimensão, esse mer-cantilismo mesquinho que reduz a sociedade a ser apenas um vastoaparelho de produção e de troca, e é evidente que qualquer vidacomuna é impossível se não há interesses superiores aos interessesindividuais. Concordamos que tais doutrinas sejam tratadas comoanárquicas, nada que não seja merecido. Mas o que é inadmissível,é que se raciocine como se esse individualismo fosse o único queexistisse ou até que fosse possível. Ao contrário, torna-se cada vezmais uma raridade e uma exceção. A filosofia prática de Spencer éde tal miséria moral que não conta com muitos partidários. Quan-to aos economistas, se outrora se deixaram seduzir pela simplici-dade dessa teoria, há muito sentiram a necessidade de moderar origor de sua ortodoxia primitiva e de abrirem-se a sentimentosmais generosos. O Senhor de Molinari é praticamente o único, naFrança, que tem permanecido intratável e, que eu saiba, que nãotem exercido uma grande influência sobre as idéias de nossa épo-ca. Na verdade, se o individualismo não tivesse outros represen-tantes, seria inútil fazer um alarido para combater um inimigo queestá morrendo tranqüilamente de morte natural.

Mas existe um outro individualismo do qual é mais fácil triun-far. Foi professado, há um século, pela grande maioria dos pensa-dores: é o de Kant e de Rousseau, o dos espiritualistas, o que aDeclaração dos direitos humanos tentou, de maneira mais ou me-nos feliz, traduzir em fórmulas, o que é ensinado habitualmenteem nossas escolas e que se tornou a base de nossa catequese moral.

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Acredita-se atingi-lo, é verdade, encoberto pelo primeiro, mas di-fere profundamente deste e as críticas que se aplicam a um, nãoconviriam ao outro. Longe de fazer do interesse pessoal o objetivode sua conduta, vê em tudo que é motivo pessoal a própria fontedo mal. Segundo Kant, estou certo de agir bem apenas se os mo-tivos que me determinam estão ligados, não às circunstâncias par-ticulares em que me encontro, mas à minha qualidade de homem inabstracto. Inversamente, minha ação é nefasta, quando pode ser jus-tificada logicamente somente por minha situação de fortuna oupor minha condição social, por meus interesses de classe ou decasta, por minhas paixões, etc. É por isso que a conduta imoral sereconhece nesse sinal, que é o fato de estar estreitamente ligada àindividualidade do agente e não pode ser generalizada sem revelarabsurdidade. Da mesma forma, se, segundo Rousseau, a vontadegeral, que é a base do contrato social, é infalível, se ela é a expressãoautêntica da justiça perfeita, será resultante de todas as vontadesparticulares; em seguida, constitui uma espécie de média impessoalde onde todas as considerações individuais são eliminadas, poissão divergentes e mesmo antagonistas, elas se neutralizam e se apa-gam mutuamente3. Assim, para um e outro, as únicas maneiras moraisde agir são as que podem convir a todos os homens indistintamen-te, ou seja, que estão implicadas na noção do homem em geral.

Estamos bem distantes aqui dessa apoteose do bem-estar e dointeresse público, desse culto egoísta do eu que se pode censurar noindividualismo utilitário. Ao contrário, segundo esses moralistas, odever consiste em desviar nossos olhares do que nos concerne pes-soalmente, de tudo que está ligado à nossa individualidade empíri-ca, para buscar unicamente o que nossa condição de homem recla-ma, tal como nos é comum com todos os nossos semelhantes.Esse ideal ultrapassa tanto o nível dos fins utilitários que parece, àsconsciências que anseiam por isso, como que impregnado de religi-osidade. Essa pessoa humana, cuja definição é como a pedra-de-toque a partir da qual o bem deve se distinguir do mal, é conside-rada como sagrada, como se diz, no sentido ritual da palavra. Elatem algo dessa majestade transcendente que as Igrejas de todos ostempos emprestam aos seus Deuses; é concebida como investidadessa propriedade misteriosa que produz vazio em volta das coi-sas santas, que as subtrai aos contatos vulgares e as retira da circula-ção comum. E é precisamente daí que vem o respeito da qual fazobjeto. Quem quer que atente contra a uma vida de um homem, àliberdade de um homem, à honra de um homem, nos inspira umsentimento de horror, análogo àquele sentido pelo crente que vêprofanarem seu ídolo. Uma moral desse tipo não é simplesmenteuma disciplina higiênica ou uma sábia economia da existência; é

3 V. Contrat social, liv. Il, cap.III.

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uma religião na qual o homem é, ao mesmo tempo, o fiel e oDeus.

Mas essa religião é individualista, já que tem o homem por ob-jeto, sendo o homem um indivíduo por definição. Não há sistema,cujo individualismo seja mais intransigente. Em parte alguma, osdireitos do indivíduo são afirmados com mais energia, já que oindivíduo é posto ao nível das coisas sacrossantas; em nenhumlugar, é mais ciumentamente protegido contra as agressões de fora,de onde vierem. A doutrina do útil pode aceitar facilmente todasorte de comprometimentos, sem mentir ao seu axioma funda-mental; pode admitir que as liberdades individuais sejam suspensastoda vez que o interesse do maior número exigir sacrifício. Masnão há composição possível com um princípio descartado dessamaneira e acima de todos os interesses temporais. Não há razão deEstado que possa executar um atentado contra a pessoa quandoos seus direitos estão acima do Estado. Se, portanto, o individua-lismo é, em si, um fermento de dissolução moral, deve-se vê-lomanifestar aqui sua essência anti-social. — Concebe-se qual é, destavez, a gravidade da questão. Pois esse liberalismo do século XVIIIque é, no fundo, o objeto do litígio, não é somente uma teoria degabinete, uma construção filosófica; ele se efetivou, penetrou nos-sas instituições e nossos costumes, está enleado a toda nossa vida,e, se, realmente tivéssemos que nos desfazer dele, é toda nossaorganização moral que precisaria ser reformulada.

II

Ora, já é um fato notável que esses teóricos do individualismonão sejam menos sensíveis aos direitos da coletividade que aos doindivíduo. Ninguém insistiu mais vivamente que Kant sobre o ca-ráter supra-individual da moral e do direito; um tipo de ordem àqual o homem deve obedecer porque ela é a ordem sem poderdiscuti-la; e se lhe foi censurado às vezes por ter ultrajado a auto-nomia da razão, pode-se dizer igualmente, não sem fundamento,que ele pôs na base de sua moral um ato de fé e de submissãoirrefletidos. Aliás, as doutrinas se julgam, sobretudo, pelos seus pro-dutos, ou seja, pelo espírito das doutrinas que suscitam: ora, dokantismo provieram a ética de Fichte, que já é impregnada de soci-alismo, e a filosofia de Hegel do qual Marx foi o discípulo. Quantoà Rous-seau, sabemos como seu individualismo é acrescido deuma concepção autoritária da sociedade. Depois dele, os homensda Revolução, ao mesmo tempo em que promulgavam a famosaDeclaração dos direitos, fizeram a França una, indivisível, centrali-zada, e, antes de tudo, talvez seja preciso até ver, na obra revoluci-onária, um grande movimento de concentração nacional. Enfim, a

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principal razão pela qual os espiritualistas sempre combateram a moralutilitária, é que lhes parecia incompatível com as necessidades sociais.

Dir-se-ia que nesse ecletismo não existe contradição? Certamente,não pensamos em defender a maneira pela qual esses diferentespensadores procederam para amalgamar esses dois aspectos deseus sistemas. Se, com Rousseau, começa-se por fazer do indiví-duo uma espécie de absoluto que pode e que deve bastar a si mes-mo, é evidentemente difícil explicar em seguida como o estadocivil pôde se constituir. Trata-se, porém, de saber, por hora, não setal ou tal moralista conseguiu mostrar como essas duas tendênciasse reconciliam, mas se são, em si, conciliáveis ou não. As razões queforam dadas para estabelecer sua unidade podem ser sem valor, eessa unidade ser real; já, o fato de que elas geralmente se encontremnos mesmos espíritos é de se presumir que sejam contemporâneas;daí decorre que devam depender de um mesmo estado social doqual são presumivelmente apenas aspectos diferentes.

E, com efeito, uma vez que se cessou de confundir o individu-alismo com seu contrário, ou seja, com o utilitarismo, todas essaspretensas contradições desvanecem como por encantamento. Essareligião da humanidade tem tudo que necessita para falar aos seusfiéis em um tom não menos imperativo que as religiões que elasubstitui. Em vez de se limitar a bajular nossos instintos, nos in-cumbe um ideal que excede infinitamente a natureza; pois nós nãosomos naturalmente essa sabedoria e pura razão que, livre de qual-quer motivo pessoal, legislaria no abstrato sobre sua própria con-duta. Sem dúvida, se a dignidade do indivíduo proviesse de suasconstituições individuais, das particularidades que o distinguem deoutrem, poder-se-ia temer que ele se tranque em uma espécie deegoísmo moral que tornaria impossível qualquer solidariedade. Mas,na realidade, ele a recebe de uma fonte mais alta e comum a todosos homens. Se tem direito a esse respeito religioso, é porque temem si algo da humanidade. É a humanidade que é respeitável esagrada; ora, não está toda nele. Ela está dispersa em todos seussemelhantes; assim, ele não pode tomá-la como finalidade de suaconduta sem ser obrigado a sair de si mesmo e a se dispersar parafora. O culto do qual ele é, ao mesmo tempo, e objeto e agente,não se dirige ao ser particular que ele é e que carrega seu nome, masà pessoa humana, onde quer que ela se encontre, sob qualquer for-ma que se personifique. Impessoal e anônimo, tal propósito paira,portanto, bem acima de todas as consciências particulares e podeassim servir-lhes de centro de encontro. O fato de não nos serestrangeira (pelo simples motivo de ser humana) não impede queela nos domine. Ora, tudo que é necessário às sociedades para

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serem coerentes, é que seus membros tenham os olhos fixadossobre um mesmo objetivo e se encontrem em uma mesma fé,porém, não é preciso, de forma alguma, que o objeto dessa fécoletiva dependa, por ligação alguma, das naturezas individuais.Em definitivo, o indivíduo assim entendido, é a glorificação, nãodo eu, mas do indivíduo em geral. Tem por incumbência, não oegoísmo, mas a simpatia para tudo que é homem, uma piedademais ampla para todas as dores, para todas as misérias humanas,uma ardente necessidade de combatê-las e de suavizá-las, uma sedemaior de justiça. Não há nesse ponto como comungar todas asboas vontades. Sem dúvida, pode acontecer que o individualismoseja praticado em espírito bem diverso. Alguns o utilizam para finspessoais, empregam-no como meio para encobrir seu egoísmo eesquivar-se mais facilmente de seus deveres para com a sociedade.Mas essa exploração abusiva do individualismo não prova nadacontra ele, da mesma forma que as mentiras utilitárias da hipocrisiareligiosa não provam nada contra a religião.

Mas tenho pressa de chegar à grande objeção. Esse culto dohomem tem por dogma a autonomia da razão e por primeiro ritoo livre exame. Ora, diz-se, se todas as opiniões são livres, por qualmilagre seriam harmônicas? Se elas se formam sem se conhecer esem ter que levar em conta umas das outras, como não seriamincoerentes? A anarquia intelectual e moral seria, portanto, a conse-qüência inevitável do liberalismo. Eis o argumento, sempre refuta-do e sempre renascente, que os eternos adversários da razão reto-mam periodicamente, com uma perseverança que nada desenco-raja, todas as vezes que uma lassidão passageira do espírito huma-no o coloca um pouco mais a sua mercê. Sim, é verdade que oindividualismo não existe sem certo intelectualismo; pois a liberda-de do pensamento é a primeira das liberdades. Mas onde se viuque tenha por conseqüência essa absurda suficiência de si mesmaque trancaria cada um em seu sentimento próprio e produziria ovazio entre as inteligências? O que ele exige, é o direito, para cadaindivíduo, de conhecer coisas as quais pode legitimamente conhe-cer; mas não consagra, de modo algum, um direito qualquer àincompetência. A respeito dessa questão sobre a qual não possome pronunciar em conhecimento de causa, não custa nada à minhaindependência intelectual seguir uma opinião mais competente. Acolaboração dos eruditos é somente possível graças a essa defe-rência mútua; cada ciência pede emprestada incessantemente às suasvizinhas propostas que aceita sem verificação. Mas, é preciso ra-zões a minha razão para que ela se curve frente à de outrem. Orespeito da autoridade não tem nada de incompatível com o

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racionalismo conquanto a autoridade seja fundamentada racio-nalmente.

Assim, quando alguns homens são intimados a se associar a umsentimento que não é o seu, não basta, para convencê-los, lembrar-lhes esse lugar comum de retórica banal, de que a sociedade não épossível sem sacrifícios mútuos e sem certo espírito de subordina-ção; é preciso ainda justificar na espécie a docilidade que lhes éexigida, demonstrando sua incompetência. Se, ao contrário, trata-se de uma dessas interrogações que depende, por definição, dojulgamento comum, uma abdicação desse tipo é contrária a qual-quer razão e, consequentemente, ao dever. Ora, para saber se podeser permitido a um tribunal condenar um acusado sem ter ouvidosua defesa, não são necessários aclaramentos especiais. É um pro-blema de moral prática pelo qual qualquer homem de bom sensoé competente e do qual ninguém deve se desinteressar. Se, portan-to, nesses últimos tempos, certo número de artistas, mas, sobretu-do, de eruditos acreditaram ter que recusar sua aprovação a umjulgamento, cuja legalidade lhes parecia suspeita, não é que, em suaqualidade de químicos ou filólogos, de filósofos ou historiadores,eles se atribuem quaisquer privilégios especiais e como um direitoeminente de controle sobre a coisa julgada. É que, sendo homens,entendem exercer todo seu direito de homens e reter neles mes-mos um caso advindo da única razão. É verdade que se revelarammais invejosos desse direito que o resto da sociedade; mas é sim-plesmente que, em conseqüência de seus hábitos profissionais, dão-lhe mais importância. Acostumados pela prática do método cientí-fico a reservar seu julgamento enquanto não se sentem esclareci-dos, é natural que cedam menos facilmente às influências da multi-dão e ao prestígio da autoridade.

III

Não somente o individualismo não é anarquia, mas é, doravan-te, o único sistema de crenças que possa garantir a unidade moraldo país.

Ouve-se dizer atualmente, com freqüência, que somente umareligião pode produzir essa harmonia. Essa proposta, que moder-nos profetas acreditam dever desenvolver com um tom místico, é,no fundo, um simples truísmo sobre o qual o mundo pode seacordar. Pois se sabe hoje que uma religião não implica necessaria-mente símbolos e ritos propriamente ditos, templos e padres; todoesse aparelho externo constitui apenas a parte superficial. Essencial-mente, não é outra coisa senão um conjunto de crenças e de práti-cas coletivas de uma particular autoridade. Assim que um fim é

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perseguido por todo um povo, adquire, por conseqüência dessaadesão unânime, uma sorte de supremacia moral que a eleva bemacima dos fins privados dando-lhe, assim, um caráter religioso. Poroutro lado, é evidente que uma sociedade não pode ser coerente senão existe entre seus membros certa comunidade intelectual e moral.Não obstante, quando é lembrada, mais uma vez, essa evidência soci-ológica, não se está mais avançado; pois se é verdade que uma religiãoé, em certo sentido, indispensável, não é menos certo que as religiões setransformam, que a de ontem não seria a de amanhã. O importanteseria, então, de perguntarmo-nos o que deve ser a religião hoje.

Ora, tudo concorre precisamente a fazer crer que a única reli-gião possível é essa da humanidade, cuja moral individualista cons-titui a expressão racional. A que, com efeito, poderia, doravante, seprender a sensibilidade coletiva? À medida que as sociedades tor-nam-se mais volumosas, se espalham sobre vastos territórios, astradições e as práticas são obrigadas, para poder se dobrar à diver-sidade das situações e à mobilidade das circunstâncias, a manter-seem um estado de plasticidade e de inconsistência que não ofereceresistência o suficiente às variações individuais. Estas, sendo bemmenos conhecidas, produzem-se mais livremente e se multiplicam:ou seja, cada um segue mais seu sentido próprio. Ao mesmo tem-po, conseqüência de uma divisão do trabalho mais desenvolvida,cada espírito se encontra voltado em direção a um ponto diferentedo horizonte, refletindo um aspecto diferente do mundo e, por-tanto, o conteúdo das consciências difere de um sujeito para outro.Encaminha-se assim, pouco a pouco, em direção de um estado,que é quase atingido desde já, e em que os membros de um mes-mo grupo social não terão mais nada em comum entre eles senãosua qualidade de homem, senão os atributos constitutivos da pes-soa humana em geral. Portanto, essa idéia da pessoa humana é,nuançada de forma diferente segundo a diversidade dos tempera-mentos nacionais, a única que se mantenha, imutável e impessoal,acima do fluxo cambiante das opiniões particulares; e os sentimen-tos que desperta são os únicos que se encontram praticamente emtodos os corações. A comunhão dos espíritos não pode mais rea-lizar-se sobre ritos e preconceitos definidos, já que ritos e precon-ceitos são levados pelo curso das coisas; assim, não resta mais nadaque os homens possam amar e honrar em comum, a não ser opróprio homem. Eis de que maneira o homem se tornou um deuspara o homem e porque não pode mais, sem mentir a si mesmo,estabelecer outros deuses. E como cada um de nós representa algoda humanidade, cada consciência individual tem em si algo divino,e se encontra assim marcada por um caráter que a torna sagrada einviolável para os outros. Todo o individualismo está aí, e é isso

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que a torna a doutrina necessária. Pois, para sua ascensão, seria pre-ciso impedir os homens de se diferenciar cada vez mais uns dosoutros, nivelar suas personalidades, levá-los de volta ao velho con-formismo de outrora, conter, consequentemente, a tendência dassociedades de se tornarem sempre mais extensas e mais centraliza-das, e pôr um obstáculo aos progressos incessantes da divisão dotrabalho; ora, uma empreitada desse tipo, desejável ou não, ultra-passa infinitamente todas as forças humanas.

Aliás, o que nos é proposto no lugar desse individualismo de-preciado? Louvam-se os méritos da moral cristã e somos convida-dos discretamente a nos juntarmos a ela. Mas ignora-se que a origi-nalidade do cristianismo consistiu justamente em um notável de-senvolvimento do espírito individualista? Enquanto que a religiãoda cidade era totalmente composta de práticas materiais em que oespírito estava ausente, o cristianismo revelou na fé interior, na con-vicção pessoal do indivíduo, a condição essencial da piedade. Foi oprimeiro a ensinar que o valor moral dos atos deve ser medidosegundo a intenção, coisa íntima por excelência, que escapa pornatureza a todos os julgamentos externos e que apenas o agentepode apreciar com competência. O centro mesmo da vida moralfoi assim deslocado de fora para dentro, e o indivíduo erigidocomo juiz soberano de sua própria conduta, sem ter outra satisfa-ção a dar senão a si mesmo e a seu Deus. Enfim, consumindo aseparação definitiva do espiritual e do temporal, abandonando omundo à disputa dos homens, o Cristo o entregou ao mesmotempo à ciência e ao livre exame: assim são explicados os rápidosprogressos que fez o espírito científico a partir do dia em que associedades cristãs foram constituídas. Que o individualismo nãoseja denunciado como inimigo que é preciso combater a todo cus-to! É combatido apenas para retornar a ele, tanto é impossívelescapar dele. Não lhe é oposta outra coisa senão ele mesmo; mastoda a questão é de saber qual é sua medida certa e se há algumavantagem em disfarçá-lo sob símbolos. Ora, se é tão perigoso quan-to se diz, não vemos como ele poderia se tornar inofensivo oubenéfico pelo simples fato de termos dissimulado sua verdadeiranatureza com ajuda de metáforas. E, por outro lado, se esse indivi-dualismo restrito que é o cristianismo foi necessário, há dezoitoséculos, há muitas chances para que um individualismo mais desen-volvido seja indispensável hoje; pois as coisas mudaram desde en-tão. É, portanto, um erro singular apresentar a moral individualistacomo a antagonista da moral cristã; bem ao contrário, deriva dela.Atendo-nos à primeira, não renegamos nosso passado; apenas lhedamos continuidade.

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Estamos no momento em melhor estado para compreenderpor que razão alguns espíritos crêem dever opor uma resistênciaobstinada a tudo quanto lhes parece ameaçar a crença individualis-ta. Se qualquer empreitada dirigida contra os direitos do indivíduoos revolta, não é somente por simpatia pela vítima; também não épor temer que, eles mesmos, sofram semelhantes injustiças. Mas éque tais atentados não podem permanecer impunes sem compro-meter a existência nacional. Com efeito, é impossível que se produ-zam em liberdade sem irritar os sentimentos que eles violentam; ecomo esses sentimentos são os únicos que nos sejam comuns, nãopodem se enfraquecer sem que a coesão da sociedade seja abalada.Uma religião que tolera os sacrilégios abdica qualquer império so-bre as consciências. A religião do indivíduo não pode, portanto,deixar-se ultrajar sem resistência, pois corre o risco de arruinar seucrédito; e como constitui o único laço que nos liga uns aos outros,uma fraqueza desse gênero não pode dissociar-se de um início dedissolução social. Assim, o individualista, que defende os direitosdo indivíduo, defende ao mesmo tempo os interesses vitais dasociedade; pois impede que se empobreça de forma criminosaessa última reserva de idéias e de sentimentos coletivos que consti-tuem a própria alma da nação. Devolve à sua pátria o mesmoserviço que o velho Romano fazia outrora à sua cidade quandodefendia, contra os inovadores temerários, os ritos tradicionais. Ese há um país entre todos os outros em que a causa individualistaseja verdadeiramente nacional, é o nosso; pois não há outro quetenha tão estreitamente solidarizado seu destino com o destino dessasidéias. Fomos nós que demos sua fórmula mais recente, e foi denós que os outros povos a receberam; é por isso que passávamos,até o presente momento, por ser seus representantes mais autoriza-dos. Portanto, não podemos renegá-las hoje, sem renegar a nósmesmos, sem nos diminuirmos aos olhos do mundo, sem come-ter um verdadeiro suicídio moral. Antigamente, questionava-se senão conviria talvez consentir em um eclipse passageiro desses prin-cípios, de modo a não abalar o funcionamento de uma adminis-tração pública, que todo mundo, aliás, reconhece ser indispensávelà segurança do Estado. Não sabemos se a antinomia se mostrarealmente sob essa forma aguda; mas, em todo caso, se uma esco-lha é verdadeiramente necessária entre esses dois males, seria tomara pior sacrificar assim o que foi até hoje nossa razão de ser históri-ca. Um órgão da vida pública, por mais importante que seja, éapenas um instrumento, um meio em vista de um fim. De queserve conservar com tanto cuidado o meio, se se afasta do fim? Eque triste cálculo é renunciar, para viver, a tudo que faz o preço e adignidade da vida,

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Et propter vitam vivendi perdere causas!

IV

Na verdade, nós tememos que tenha havido certa leviandade namaneira pela qual foi engajada essa campanha. Uma similaridadeverbal pôde fazer crer que o individualismo derivava necessaria-mente de sentimentos individuais, inicialmente egoístas. Na realida-de, a religião do indivíduo é de instituição social, como todas asreligiões conhecidas. É a sociedade que nos atribui esse ideal, comoo único fim comum que possa atualmente reunir as vontades. Reti-rá-la de nós, enquanto não há nada que se possa pôr no lugar, é,portanto, lançar-nos nessa anarquia moral que se quer precisamentecombater4.

Seria preciso, todavia, que considerássemos como perfeita edefinitiva a fórmula que o século XVIII forneceu do individualis-mo e que conservamos, erroneamente, quase sem alterações. Sufi-ciente há um século, ela precisa agora ser ampliada e complementa-da. Apresenta o individualismo apenas pelo seu lado mais negativo.Nossos pais tinham-se outorgado a tarefa de libertar o indivíduodas entravas políticas que atrapalhavam seu desenvolvimento. Aliberdade de pensar, a liberdade de escrever, a liberdade de votarforam, portanto, postas por eles na categoria dos primeiros bensque era preciso conquistar, e essa emancipação era certamente acondição necessária para todos os progressos ulteriores. Não obs-tante, levados pelos ardores da luta, certos do objetivo que perse-guiam, acabaram não vendo nada mais além, e por erigirem, emuma espécie de fim último, esse término próximo de seus esforços.Ora, a liberdade política é um meio, não um fim; tem preço apenaspela forma que é aplicada; se não serve a algo que a ultrapassa, elanão é somente inútil; torna-se perigosa. Arma de combate, se aquelesque a manuseiam não sabem empregá-la em lutas fecundas, nãotardam a voltá-la contra eles mesmos.

E é justamente por esse motivo que caiu hoje em certo descré-dito. Os homens da minha geração se lembram qual foi nossoentusiasmo quando, há uns vinte anos, vimos finalmente cair asúltimas barreiras que continham nossas impaciências. Infelizmente,porém! O desencantamento veio logo, pois foi preciso sem demo-ra confessar que não se sabia o que fazer dessa liberdade tão labo-riosamente conquistada. Aqueles para quem nós a devíamos servi-ram-se dela apenas para se retalharem uns aos outros. Foi a partirdesse momento que se sentiu levantar sobre o país esse vento detristeza e de desânimo, que se tornou mais forte de dia em dia e queacabaria por abater as coragens menos resistentes.

4 Eis como se pode, sem contra-dição, ser individualista dizendoao mesmo tempo que o indivíduoé um produto da sociedade, maisdo que sua causa. É que o indivi-dualismo em si é um produto so-cial, como todas as morais e to-das as religiões. O indivíduo re-cebe da sociedade até as crençasmorais que o divinizam. Foi oque Kant e Rousseau não com-preenderam. Quiseram deduzirsua moral individualista, não dasociedade, mas da noção do indi-víduo isolado. A empreitada eraimpossível, e daí decorrem ascontradições lógicas de seus sis-temas.

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Documenta.

Assim, não podemos nos contentar apenas com esse ideal ne-gativo. É preciso ir além dos resultados conquistados, mesmo quepara conservá-los. Se não aprendemos enfim a pôr em prática osmeios de ação que temos nas mãos, é inevitável que se depreciem.Usemos, portanto, de nossas liberdades para buscar o que é preci-so fazer, para suavizar o funcionamento da máquina social, tãorude ainda aos indivíduos, para pôr ao seu alcance todos os meiospossíveis de desenvolver suas faculdades sem obstáculos, para tra-balhar, enfim, tornar realidade o famoso preceito: A cada um se-gundo suas obras! Reconhecemos até que, de maneira geral, a li-berdade é um instrumento delicado, cujo manuseio deve ser apren-dido e exercido pelos nossos filhos; toda a educação moral deve-ria ser orientada nesse objetivo. Vê-se que a matéria não faltarápara nossa atividade. Mas, se é certo que precisaremos, doravante,nos propor novos fins além daqueles que foram atingidos, seriainsensato renunciar aos segundos para melhor perseguir os primei-ros: pois os progressos necessários são possíveis somente graçasaos progressos efetuados. Trata-se de completar, de estender, deorganizar o individualismo, não de restringi-lo e de defendê-lo.Trata-se de utilizar a reflexão, não de lhe impor silêncio. Somenteela pode nos ajudar a sair das dificuldades atuais; não percebemoso que poderia substituí-la. Entretanto, não é meditando sobre aPolítica tirada da Escritura santa que encontraremos os meios de or-ganizar a vida econômica e de introduzir mais justiça nas relaçõescontratuais!

Nessas condições, o dever não aparece já traçado? Todos aquelesque acreditam na utilidade, ou até mesmo simplesmente na neces-sidade das transformações morais realizadas há um século, têm omesmo interesse: devem esquecer as divergências que os separame reunir seus esforços para manter as posições conquistadas. Umavez a crise atravessada, será certamente oportuno lembrar-se dosensinamentos da experiência, para não cair novamente nessa ina-ção esterilizante da qual carregamos atualmente a pena; mas isso, éa obra de amanhã. Para hoje, a tarefa urgente e que deve passarantes de todas as outras, é de salvar nosso patrimônio moral; umavez que estiver em segurança veremos em fazê-lo prosperar. Queo perigo comum nos sirva ao menos para sacudir nosso torpor ea nos fazer retomar gosto pela ação! Com efeito, já vemos pelopaís iniciativas que despertam, boas vontades que se procuram.Que venha alguém que os reagrupe e os conduza ao combate etalvez a vitória não demore. Pois o que deve nos tranqüilizar emcerta medida, é que nossos adversários são fortes apenas por nos-sas fraquezas. Eles não têm nem essa fé profunda nem esses ardo-res generosos que levam irresistivelmente os povos às grandes rea-

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ções como às grandes revoluções. Não pensávamos em contestarsua sinceridade! Mas como não perceber tudo aquilo que sua con-vicção tem de improvisado? Não são nem apóstolos que deixamtransbordar suas cóleras ou seu entusiasmo, nem eruditos que nostragam o produto de suas pesquisas e de suas reflexões; são letra-dos, cujo um tema interessante os seduziu. Portanto, parece impos-sível que esses jogos de diletantes tenham sucesso para reter muitotempo as massas, se soubermos agir. Mas, igualmente, que humi-lhação se, não tendo que lidar com parte mais forte, a razão aca-basse perdendo, mesmo que temporariamente!

Jean JaurèsAs ProvasCaso Dreyfus(1898)

Prefácio

Reúno neste volume, os artigos publicados na Petite République,sobre o caso Dreyfus. Antes de tudo, quero agradecer aos leitoresdo jornal que possibilitaram que entrasse detalhadamente em umcaso complicado e que aceitaram me seguir em deduções relativa-mente extensas.

Evidentemente, o proletariado não quer mais se ater a fórmulasgerais. Tem, sobre a evolução da sociedade, uma concepção deconjunto; e a idéia socialista aclara a sua frente o caminho. Ele quer,no entanto, também conhecer a fundo e até as mínimas engrena-gens, o mecanismo dos grandes eventos. Sabe que se não desenre-da as complexas intrigas da reação, fica a mercê de todas as menti-ras demagógicas: e ele acaba de revelar a medida de sua forçaintelectual desvendando um complô, em que Rochefort era o re-presentante do abade Garnier.

Apreender a direção geral do movimento econômico que sedirige ao socialismo e penetrar pela análise o detalhe da realidadecomplexa e movente, eis, para o proletariado, o inteiro pensamen-to. E, doravante, em todas as grandes crises nacionais, será precisocontar com ele.

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Um primeiro e grande resultado foi atingido. O processo derevisão está iniciado e a corte de cassação foi acionada com odossiê do caso. Mas a luta não terminou: e haveria extremo perigoem adormecer-se. Os homens que tramaram o abjeto processocontra Picquart para impedir a abertura da revisão, recorrerão semdúvida às mais audaciosas tentativas, às mais criminais, para bara-lhar e deturpar a revisão iniciada, para desconcertar e desorientar aopinião. Desarmar-se enquanto eles procedem às mais suspeitosasmanobras, seria trair a verdade mais uma vez. Seria trair igualmen-te a classe trabalhadora sobre a qual a forte reação militar esgotariasuas vinganças. Portanto, a batalha continua.

Não é que não tenhamos nenhuma razão precisa para pôr emdúvida, no caso Dreyfus, a boa fé e a coragem da corte de cassa-ção. É possível que ela entenda a importância de seu dever e de seupapel, que queira declarar a verdade, revelar todos os crimes etodas as vergonhas, corrigir os erros e rejeitar as violências da jus-tiça militar. Mas também é possível que se embata a rudes obstácu-los e que seu vigor desfaleça. Ela encontrará a sua frente duas difi-culdades principais. Primeiramente, o terreno do caso Dreyfus estácomo que congestionado por decisões judiciárias absurdas e iní-quas, que podem parar ou atrapalhar, ao menos, o andamento dainvestigação. Esterhazy foi absolvido depois de uma verdadeiracomédia judiciária; mas, enfim, foi absolvido e é, sem dúvida, ina-propriado chamá-lo novamente para se explicar. A câmara dasacusações absolveu Esterhazy, du Paty de Clam e a Senhora Pays,apesar das esmagadoras incriminações da informação Bertulus, pelafalsificação Speranza; a corte de cassação, apesar de ter desacredi-tado esses estranhos pareceres; foi no fundo obrigada a confirmá-los e, mesmo que, para a falsificação Blanche uma trilha permane-ça aberta aos processos, um grande bloco obstruí o longo cami-nho.

Enfim, a autoridade militar apossou-se do coronel Picquart porum processo jesuítico, mas que talvez não seja literalmente ilegal.Ela tentará, sem dúvida, pelo “petit bleu”, reter para si o caso Dreyfus,e opor à revisão a condenação criminal, mas legal, do coronel Pic-quart, estrangulado entre quatro paredes.

No terreno que a corte de cassação deve vasculhar, não há umúnico fragmento de verdade que não seja encoberto por umamentira judicial. A corte de cassação terá a coragem de rompercom essas mentiras legais para procurar a verdade? Poderá conci-liar a função legal que lhe é designada pelo Código com a funçãoquase revolucionária que lhe delegam os eventos?

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Ela é a guardiã da lei: ora, a lei trabalhou até aqui nesse caso, poruma aplicação monstruosa, contra a verdade.

A corte de cassação poderá restabelecer a verdade semcontrariar a lei? E como desemboscará Esterhazy e du Paty dosabrigos legais que a traição governamental estabeleceu para o es-pião e o falsário? Eis a primeira dificuldade.

Há uma outra. A corte de cassação descobrirá certamente, emsua investigação, terríveis verdades. É impossível que a extensa sériede falsos produtos pelos escritórios da guerra possa ter sido fabri-cada sem a cumplicidade, ou ao menos sem a complacência dosgrandes chefes. Além do mais, o delito do general Mercier é certo,por ter comunicado aos juízes, em violação da lei, peças desconhe-cidas do acusado e retirando até essas peças a um outro dossiê queo do caso Dreyfus. Sobre o general Mercier pesam, portanto, asresponsabilidades mais graves.

A corte de cassação terá a energia para atacar os grandes chefes,os grandes culpados? E sabendo que, para eles a luz seria mortal,ousará tudo elucidar?

Mais uma vez, não há nas minhas palavras nenhuma intençãoofensiva contra a corte de cassação. É possível que ela se eleveacima de qualquer temor, acima de qualquer falsa prudência e quetenha a absoluta coragem da absoluta verdade.

Digo apenas que os prolongados crimes do alto exército ea longa seqüência de mentiras judiciais criaram uma situação tãoterrível que talvez, atualmente, nenhuma força organizada da soci-edade possa resolver o problema sem o fervoroso concurso daopinião.

Qual a instituição que permanece em pé? Foi demonstrado queos conselhos de guerra julgaram com a mais deplorável parcialida-de; Foi demonstrado que o Estado Maior cometeu abomináveisfalsificações para salvar o traidor Esterhazy e que o alto exércitocomungou, com todo tipo de falsificações, da traição.

Foi demonstrado que os poderes públicos, por ignorância oucovardia, foram, durante três anos, arrastados pelo reboque damentira.

Foi demonstrado que os magistrados civis, do presidente Dele-gorgue ao procurador Feuilloley, se esforçaram, por artifícios deprocesso, a encobrir os crimes militares.

E o sufrágio universal em si soube apenas e demasiada-mente, em sua expressão legal e parlamentar, até o clarão do golpe

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de lâmina, entregar às mentiras e ao falso a investidura nacional.

Sim, qual é a instituição que permanece em pé? Resta apenasuma: é a França. Ela foi surpreendida um momento, mas reagiu emesmo se todas as tochas oficiais se apagam, seu claro bom sensoainda pode dissipar a noite.

É ela e apenas ela que fará a revisão. Entendo, então, queos órgãos legais, a corte de cassação, os conselhos de guerra sãodoravante incapazes da verdade absoluta, se a consciência francesanão exigir diariamente toda a verdade.

Eis porque, bem longe de desarmar hoje os cidadãos queiniciaram o combate contra as violências e as fraudes da justiçamilitar, devem redobrar seus esforços para despertar e aclarar opaís. Eis porque também nós persistimos em fornecer ao proleta-riado os elementos de discussão e de prova que recolhemos.

Muitos de nossos adversários da primeira hora aceitaram nosdizer que tinham ficado abalados por nossa demonstração. Mas hásempre uma dúvida que os assalta: Como será possível, dizem, quesete oficiais franceses tenham condenado um outro oficial semprovas decisivas? Na verdade, um argumento tão geral excluiria apriori qualquer erro judiciário. Mas é falso que haja sempre e emtodo caso entre oficiais essa estreita solidariedade.

Sim, quando devem se defender contra civis ou contra simplessoldados, formam um bloco. Mas há entre eles terríveis rivalidadesde carreira, de amor próprio e de ambição. Quantas vezes, nocampo de batalha, até mesmo os generais traíram uns aos outros,para não deixar para um rival todo o resplendor da vitória!

Ora, há alguns anos, havia implacáveis lutas de clã no exército.O partido clerical, tendo perdido durante o período republicanoda República a direção das administrações públicas, dos serviçoscivis, tinha se refugiado no exército. Ali, as antigas classes dirigentes,os descendentes do exército de Coudé se agrupavam em uma cas-ta altiva e fechada. Ali, a influência dos jesuítas, recrutadores paci-entes e sutis do alto exército, se exercia soberanamente. Fechar aporta ao inimigo, ao republicano, ao dissidente, protestante ou ju-deu, tinha se tornado a palavra de ordem.

Há alguns anos, a imprensa católica assinalava o número cres-cente dos judeus que pela Escola politécnica ou a Escola de Saint-Cyr ingressavam no exército. Drumont tinha iniciado uma espéciede guerra civil contra os oficias judeus.

Ora, eis que um judeu, o primeiro de sua raça, penetra no Esta-do Maior, bem no coração do lugar. Depois dele, outros virão

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sem dúvida: e no antigo domínio que se reservava a aristocraciaexcluída por um período de suas funções, eis que um intruso vemse instalar.

É preciso fazer cessar rapidamente o escândalo. A princípiovagos rumores, teorias gerais são propagadas: por qual imprudên-cia a nação francesa acolhe, no cerne de sua instituição militar, araça maldita, o povo de traição que, não podendo mais crucificarDeus retirado das alturas, vai crucificar a Pátria? E tão logo noEstado Maior evasões de documentos são constatadas, é em dire-ção do judeu que se voltam secretamente os olhares:

Ah! Que sorte se fosse ele! Ah! Que favor da Providência, quegraça divina se o primeiro judeu maculasse, apenas por sua presen-ça, o santuário do Estado Maior: a traição havia se alojado! Por elee nele todos os outros seriam desacreditados para sempre.

Assim, quando du Paty de Clam constata entre a escriturado bordereau e a escritura de Dreyfus algumas vagas analogias, todasessas raivas malevolentes, tendo encontrado seu centro, se precipi-tam e se organizam. É a repentina cristalização do ódio.

Em que medida du Paty de Clam e Henry, os dois líderes doprocesso Dreyfus foram eles mesmos enganados por essa influên-cia? Houve da sua parte complacência ardente no preconceito ge-ral? Ou será por parcialidade, em plena consciência, que eles assal-taram o inocente? Certamente, nós o saberemos somente quandoa investigação for levada a fundo: Ainda nos é impossível saberqual foi a parte da influência meio voluntária, qual foi a parte decálculo celerado.

Mas o que é seguro desde já é que, nos escritórios da guerra, oscorações e os cérebros estavam, há muito, prontos para a conde-nação do judeu. Eis, sem dúvida, a principal causa do erro.

Mas ela não bastava. Foi preciso ainda a ambiciosa tolice de umministro medíocre e orgulhoso. O general Mercier, a princípio he-sitante, foi aos poucos influenciado por um sistema combinado deelogios e ameaças.

Esse pobre espírito presunçoso pretendia, “com seu faro deartilheiro”, resolver sem estudo, os problemas técnicos mais árdu-os, exaltados na Câmara pelos aplausos que seguiram sua fala ba-nal. Ele acreditou que podia, através do caso Dreyfus, ter um gran-de papel: Dominar os judeus, salvar a França das condutas de trai-ção, conquistar as boas graças da Igreja e o apoio de Rochefort, eranovamente construir, sobre uma base mais sólida, a fortuna deBoulanger. Quando seus próximos do clero viram que ele sorria

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ao pensar nisso, ele os sacudiu comunicando aos jornais o nomedo oficial prevenido. Mais tarde, o Eclair gabou-se de que foi pre-ciso conseguir com muita insistência seu assentimento. Mas quandose decidiu, quando foi entregue à Libre Parole, quando pôs toda suafortuna ministerial nessa carta, a todo custo, quis ganhar a partida.

Se acrescentarmos a isso a tolice de todo o pessoal judiciáriodo exército, lembrarmos da lamentável imbecilidade de Bessond’Ormescheville e de Ravary, compreenderemos que nesses cére-bros fatigados, o erro mais grosseiro possa ter germinado.

E por uma sorte de fatalidade, aconteceu que no conselho deguerra que deve julgar Dreyfus, não há nenhum oficial de artilharia.Talvez um oficial da artilharia pudesse ter feito observar aos juízesque o bordereau continha detalhes inaplicáveis a um artilheiro. Hánotadamente a respeito do freio hidráulico, substituído pelo autordo bordereau pelo freio hidropneumático, um erro que um oficialde artilharia não poderia ter cometido.

Ninguém, no conselho, pôde avisar os juízes. E estes, deliberan-do sob a comunicação imperativa de peças secretas, condenaramcomo na manobra.

Assim, longe de nos espantarmos com a condenação de Dreyfusinocente, tantos erros e crimes colaboraram para sua perda queteria sido milagre que escapasse.

Como aqueles que se espantam da condenação de Dreyfus nãoacham mais estarrecedor que em pleno século XIX, em meio àFrança republicana, sob um regime de opinião pública e de con-trole, o Estado Maior possa ter acumulado em segredo, durantetrês anos, os crimes que a confissão de Henry rebentou à luz dodia? Sim, durante três anos, como em um antro profundo e inaces-sível à luz, o alto exército da França pode fabricar falsificações,proceder a todo tipo de manobras mentirosas, e talvez até de selivrar, pelo crime, de Lemercier-Picard e de Henry, e foi preciso, seposso dizer assim, um acidente, uma luz inesperada, para que esseprocedimento rotineiro de celerado fosse suspeitado pelo país.

Sob a República francesa, com o governo parlamentar,com a liberdade da imprensa e da tribuna, os obscuros crimes dasrepúblicas italianas, assassinas e envenenadoras, puderam continuardurante três anos. Esta guerra se assemelha, com seus documentosfalsos, à reprodução da guerra malevolente com taças envenena-das que praticavam os Italianos dos séculos XV e XVI. Eis o estra-nhamento, eis o surpreendente e não que Dreyfus inocente tenhasido condenado.

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É preciso, portanto, apartar esse tipo de preconceito e olhardiretamente os fatos. Ora, pelo exame dos fatos, é certo que Dreyfusé inocente. Os dirigentes puderam afirmar sua culpabilidade. En-quanto o fizeram em termos gerais, sua afirmação escapava a qual-quer discussão. Mas assim que tentam precisar e produzir uma prova,esta prova rui. Todas as vezes que recorrem ao famoso dossiê, épara fazer surgir à superfície do poço misterioso ou uma tolice ouuma falsificação.

Será preciso crer que um feitiço lhes foi lançado? Todos osbordões sobre os quais se apóiam se partem entre suas mãos; émadeira podre. E quando a revisão for feita, quando o processoreiniciar à luz do dia, será difícil, ou melhor, será impossível para oEstado Maior levantar um ato de acusação e afundar-se-á no nada.

Assim, agora desesperado para encontrar acusações sérias con-tra Dreyfus, o alto exército tenta, com ajuda da fraqueza dos go-vernantes e a cumplicidade malévola do Elysée, uma diversão su-prema buscando desonrar e desgraçar o coronel Picquart.

Daí, a monstruosa acusação de falsificação levantada contra elea respeito do “petit bleu”. Com antecedência, na seqüência mesmodos artigos reunidos hoje nesse volume, nós respondemos a essaacusação. Acrescento apenas, nesse curto prefácio, que essa maqui-nação malévola foi preparada há muito tempo. Evidentemente, opróprio Estado Maior a acha arriscada. Enquanto esperançava quepoderia salvar-se e impedir a revisão sem recorrer a essa supremamalevolência, ele a adiou e foi somente quando a revisão ameaça-dora já pairava sobre si, que atacou nesse lance desesperado.

Mas há muito o meditava e preservava. Há muito, os dois falsá-rios, Henry e du Paty, preparavam contra Picquart a acusação defalsificação.

Ela se torna pública primeiramente na carta que Henry es-creve ao coronel Picquart em junho de 1897, e na qual fala da“tentativa de subornar dois oficiais do serviço para fazer-lhe dizerque um documento classificado no serviço, era da escrita de umapersonalidade determinada.” Henry que já havia confeccionado afalsa carta contra Dreyfus preparava naquele momento falsos tes-temunhos contra Picquart.

As deposições de Lauth, tão pérfidas e tão incoerentes, carre-gam a marca de uma influência incompleta.

Em seguida, em novembro de 1897, é a falsa notícia Blancheem que Esterhazy e du Paty dizem ao coronel Picquart : “Temosprovas que o ‘bleu’ foi fabricado por Georges.” Assim, é a partir de

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uma falsificação que a acusação de falsificação começa a provar: éuma falsa peça que serve de berço à mentira ainda balbuciante.Mas a partir de então, contra os mentirosos e os falsários, se elevaessa terrível questão: Como não denunciaram oficialmente, desdea primeira hora, o coronel Picquart?

No processo Esterhazy, em janeiro de 1898, quando é precisoa todo custo salvar o cavaleiro, o ilustre Ravary, em seu relatório,tenta lançar a dúvida sobre a autenticidade do “petit bleu”. Mas aquestão aqui é mais urgente ainda: Esterhazy é acusado de traição.O antigo chefe do serviço de informações pretende ter recebidode seus agentes uma peça que estabelece relações suspeitas entreEsterhazy e Sr. de Schwarzkoppen.

Se essa peça é falsa, Esterhazy é vítima da mais abominávelmaquinação. Se é autêntica, há contra ele uma presunção grave. Oprimeiro dever dos investigadores e dos juízes é, portanto, esclare-cer a autenticidade do “petit bleu”. Mas não, eles se contentam cominsinuações pérfidas. Não ousam denunciar formalmente comofalsa uma peça que sabem autêntica. Eles se limitam em desacredi-tar por insinuações. Jamais maquinação mais celerada se espalhoutão cinicamente.

Assim esperaremos, para discutir novamente e mais a fundoessa miserável acusação, saber se o Estado Maior persiste nessamanobra. É tão repugnante de engajar uma discussão séria com osorganizadores de uma cilada, que adiaremos a nova discussão defundo que poderíamos produzir.

Seria fácil demonstrar pelas próprias palavras do Sr. Lauth, afalsidade de várias partes de seu testemunho e a autenticidade do“petit bleu”. Mas nos agrada esperar que o Estado Maior produzanovas peças falsas que sem dúvida confeccionou para essa tentati-va suprema.

A esta hora, nos basta advertir mais uma vez os cidadãos paraque não permitam que o coronel Picquart seja julgado às escuras.Que o acusem em pleno dia; não pedimos outra coisa e temos acerteza que a infâmia desses acusadores rebentará. Não mais qua-tro paredes! Eis a palavra de ordem dos republicanos, das pessoashonestas. Que seja nosso grito de guerra! E apenas pela força daluz, venceremos. E nossa grande França generosa enfrentando maisuma vez as potências da reação e do escuro, obterá reconhecimen-to do gênero humano.

JEAN JAURES. 29 de setembro de 1898.

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Neste ano, completam-se 110 anos da virada jurídica do AffaireDreyfus. E a seção Documenta da Revista de Direito do Cesusc ocu-par-se-á com essa que foi, muito provavelmente, a disputa jurídicamais publicizada durante o século dezenove no mundo ocidental.

O episódio inicial dessa disputa foi a condenação, por alta trai-ção, de um oficial judeu de alta patente do exército francês, o capi-tão Alfred Dreyfus (1859 – 1935). A partir da suspeita de espiona-gem em favor do serviço secreto alemão, Dreyfus foi acusado,ainda em 1894, de ser o autor anônimo de um documento, umafolha, conhecida apenas como bordereau (memorando), que supos-tamente conteria informações sobre as posições militares dos fran-ceses em área de fronteira com a Alemanha. De suspeito, Dreyfusrapidamente se tornou condenado. Sofreu degredação pública, emato constituído pelo alto comando do Estado-Maior, e foi rapida-mente transformado em manchete nacional como atesta a primei-ra página do Le Petit Journal de 13 de janeiro de 1895: Le Traite:Dégradation d´Alfred Dreyfus. Na seqüência, Dreyfus foi encerrado naIlha do Diabo (Guiana Francesa) para cumprir pena de prisão per-pétua. Finalmente, os enfrentamentos no campo jurídico-políticose arrastaram até 1906, ano em que Dreyfus foi reconduzido, comglórias militares, à patente militar que havia perdido anos antes.

O Caso Dreyfus se tornou notório ao ganhar as páginas dejornais do mundo, e os anos de 1898 e 1899 foram decisivos paraa conquista dessa expressão internacional. Mais precisamente emjaneiro de 1898, Emile Zola, já um ilustre escritor amigo do povo,após várias tentativas de sensibilização da opinião pública, conquis-tou a atenção esperada ao publicar na capa de um dos principaisjornais da época (L´Aurore) o panfleto J’Accuse. O ataque desferi-do foi estrategicamente endereçado ao Presidente da República,Félix Faure (1841-1899) e logo se tornou uma das principais peçaspublicitárias, juntamente com os editoriais de Clémenceau a justifi-car uma nova onda de interesse público sobre o Affaire. Parteexpressiva da intelectualidade francesa aderiu à defesa de Dreyfus eesta adesão militante inaugurou o surgimento de dois grandesmovimentos de idéias e propaganda: os dreyfusards, predominante-

Affaire Dreyfus,Direitos Humanos e oIndividualismo Moderno

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mente associados à esquerda, às forças progressistas e anticlericais,e os anti-dreyfusards, claramente conservadores, militarizados e liga-dos à igreja. Panfletos, artigos de revista, matérias de jornal, concla-mações, discussões acaloradas, brigas de patifarias, ameaças, pri-sões e outros vários expedientes teatralizantes tornaram-se corri-queiros, tendo como palco a rua, os Liceus, os Salões, os Cafés, asreuniões de família, enfim, os espaços de realização da vida ordi-nária do País.

A exarcebação passionalista desse momento eternizou o AffaireDreyfus, e um caso que durante três anos havia sido visto com certodistanciamento pela opinião pública francesa e européia se tornaraentão, de uma hora para outra, um devorador de rotinas institu-cionais e pessoais de toda uma nação. O novo campo de eventua-lidades, a nova regra passou a ser combater os amigos de Dreyfusatravés de manobras políticas, jurídicas e de propaganda. Viva oExército! Viva a França! anunciava um panfleto de autoria creditadaa certo Grupo Patriótico de Toulouse, ligado ao Comitê Nacionalista. OutroPanfleto expunha em letras garrafais: Dreyfus é um Traidor! Viva aRepública! Abaixo os traidores! E em meio a essas expressões nacio-nalistas figuravam as fotos dos amigos da França e da República,General Mercier, o Ministro de Guerra Cavaignac, o General Zur-linden, o General Billot e o General Chanoine.

Todavia, a resposta adversária não deixava para menos. Emclaríssimo ato de reivindicação do espírito da nação, um panfletoeditado exatamente como o dos oponentes espetacularizava: Dreyfusé Inocente! Viva a França! Viva a República! Viva o Exército! Abaixo ostraidores! E aqueles que se anunciavam como os defensores do Di-reito, da Justiça e da Verdade eram destacados por fotos tão bemproduzidas quanto o de seus inimigos anti-dreyfusards. Eram eles:Zola, Scheurer-Kestner, Clémanceau, Yves Guyot, Reinach, Laza-re, Labori, Pressensé, Jaurès e ao centro, o Coronel Picquart. Ou-tro exemplo notório foi o surgimento do Manifesto dos Cento e Qua-tro, uma espécie de panfleto que trazia em seu cabeçalho os dizeres:Os assinantes protestam contra a violação das formas jurídicas do processo de1894 e contra os mistérios que cercam o caso Esterhazy [grifo nosso] epersistem na reivindicação da revisão. Entre os vários estudantes, profes-sores e personalidades da vida política e cultural francesa figura-vam nomes como o de Émile Durkheim, Charles Péguy, ÉmileDuclaux, Célestin Bouglé, e Lucien Herr.

E os desgraçados... quem são? Além do próprio Dreyfus, e ocoronel Picquard, Zola, e a família de Dreyfus, além de váriosoutros dreyfusards que tocaram diretamente nas feridas do Affaire.

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Do outro lado, mas partilhando do mesmo palco diabólico, o ge-neral Du Paty de Clam, o major Walsin-Esterhazy, o general Mer-cier, o tenente-coronel Henry e vários outros oficiais do Estado-Maior levados por culpa, orgulho, medo ou ingenuidade ao olhodo furacão.

Dreyfus, traidor da Nação ou o maior exemplo de injustiçacontra os Direitos Humanos proporcionada por uma das princi-pais Repúblicas Livres do mundo civilizado? Ainda que assuma-mos hoje uma irresistível vocação cosmopolita por conta do virtu-alismo da internet e do baratemaento e popularização dos trans-portes intercontinentais, não me sinto necessariamente autorizadonem interessado na emissão de uma resposta que seja favorável oucontrária a qualquer dos partidários mortos ou vivos que disputa-ram ou ainda disputam o Affaire Dreyfus. Mesmo que hoje a mesmatecnologia que nos permite falar sobre a crise do oriente médiocom certa intimidade e autoridade de quem, diante de uma tela decomputador, se sente verdadeiramente lá, seja a mesma tecnologiaque pode nos tornar espectadores privilegiados dos eventos signi-ficantes da Terceira República Francesa, é preferível deixar essa que-rela novecentista para os franceses e seus inimigos. O mesmo im-pulso que nos faz assinar feeds de sites e blogs do planeta inteiro quedigam mais dos lugares que gostaríamos de estar e não podemos,produz o efeito reverso, e nos atinge em cheio no sentimento deque eventos tão significantes como aqueles vistos no Iraque doséculo vinte e um ou da Paris do final do século dezenove tambémocorrem ou ocorreram aqui ao nosso lado, e precisam de umacapacidade de redescrição, mesmo que retórica, para que nos sejapossível requerer algumas lições válidas se o que se coloca à frentenos exige melhores respostas diante do que podemos considerarperigoso.

Em todo o caso, talvez a razão arendtiana (alguns dirão, razãocética ou ainda cínica) nos informa melhor sobre uma terceiraforma de posicionamento em relação aos ensinamentos desse caso.Ao que me parece, algumas rápidas e brilhantes passagem das Ori-gens do Totalitarismo, livro de Hannah Arendt de 1949, podem tra-duzir e encerrar o Affaire Dreyfus como nenhum outro foi capaz defazê-lo. Valem as citações:

[...] Dreyfus nunca foi absolvido de acordo com a lei, e o processo Dreyfusnunca foi realmente encerrado. A reintegração do acusado nunca foi reconhecidapelo povo francês, e as paixões originalmente suscitadas nunca se acalmaraminteiramente.

[...] o próprio Dreyfus, na verdade um arrivista, que se gabava junto aos

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seus amigos que altas somas da fortuna da família ele gastava com as mulheres;os seus irmãos, pateticamente oferecendo de início toda a sua riqueza, e depoisreduzindo a oferta a 150 mil francos, para a soltura do parente, sem nuncarevelarem ao certo se desejavam fazer um sacrifício ou simplesmente subornar oEstado-Maior; [...] há o aventureiro Esterhazy, de antiga linhagem, tão com-pletamente entediado por esse mundo burguês, que buscava alívio tanto no hero-ísmo quanto na velhacaria. [....] o que o levou à ruína não foi a traição nem osonho ardente de uma grande orgia em que 100 mil ulanos prussos, embriaga-dos, cavalgariam furiosos através de Paris, mas sim o reles desfalque do dinheiro deum parente. E o que falar de Zola, com seu apaixonado fervor moral, sua atitudepatética um tanto fútil, e a sua declaração melodramática, à véspera da fuga paraLondres, em que diz ter escutado a voz de Dreyfus implorando-lhe esse sacrifício?

Ao fim das contas, Hannah Arendt, parece tomar algum parti-do do caso e justifica:

Dreyfus podia ou devia ter sido salvo apenas à base de uma coisa. Asintrigas de um Parlamento Corrupto, a estéril podridão de uma sociedade emcolapso e a sede de poder do clero deveriam ter sido enfrentadas diretamente peloaustero conceito jacobino de uma nação baseada nos direitos humanos - essavisão republicana da vida comunal que afirma que (nas palavras de Clemen-ceau), quando se infringem os direitos de um, infringem-se os direitos de todos.Confiar no Parlamento ou na Sociedade era perder a luta antes de começá-la.

“Finalmente, Clémenceau convenceu Jaurès de que a violação dos direitoshumanos de um homem era a violação dos direitos de todos. [....] É verdade quetantos os discursos de Jaurès como os artigos de Clémenceau cheiravam à antigapaixão revolucionária pelos direitos humanos. Também é verdade que essa pai-xão era suficientemente forte para reagrupar o povo na luta, mas antes tiveramde convencer-se de que o que estava em jogo não era somente a justiça e a honrada república, mas também seus próprios interesses de classe.

Esse esquema de análise possui algumas sutilezas que merecemser aqui discutidas, mesmo que brevemente. Em primeiro lugar,Hannah Arendt mantém seu argumento muito próximo do modocomo o profere uma importante testemunha ocular do caso, efalamos de Émile Durkheim. Como se verá no documento queabre essa seção Documenta, L’individualisme et les intellectuels justificauma crítica ao conceito de individualismo cosmopolita em Kant eRousseau, mas como forma menos nociva e descartável, se com-parada como o tipo de individualismo radical dos utilitaristas oudos economistas políticos. Ainda que para Durkheim fosse neces-sária uma completa revisão da moral social em França naquelemomento para que se pudesse acabar com o estado de anomia emque a sociedade se encontrava, os direitos humanos deveriam serdefendidos como uma espécie de mínimo ético. Mas Durkheim,

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como se poderá ver trata de questões como liberdade, verdade ejustiça, desde uma perspectiva intencionalmente abstracionista. Malfaz referência aos personagens do Affaire, ou melhor, nem cita onome Dreyfus. Hannah Arendt, por sua vez, teoriza, mas historici-za, fazendo questão de citar fatos, coisas, pessoas e lugares e comisso, obviamente, gera um efeito analítico muito mais ácido.

Assemelha-se muito ao pessimismo reticente de Durkheim aoenfatizar os fracassos da Terceira república, mas do mesmo modo,sugere uma discreta satisfação pelo fato de homens como Clé-menceau e Jaurès terem sido, mesmo que pateticamente, tão obsti-nados com o destino jurídico, político e universalista que tão bempoderia ter rapidamente colocado um fim àquela comédia de lon-gos anos. Diz Arendt:

O que mais nos perturba no caso Dreyfus é que não foi apenas a ralé queteve de agir com métodos extraparlamentares. Toda aquela minoria, emboralutasse como lutava pelo Parlamento, pela democracia e pela república, eratambém forçada a travar sua luta fora da Câmara. [...] Em outras palavras,toda a vida política da França durante a crise Dreyfus se passou fora doParlamento.

A decepção com tantos lances desmedidos, ardilosos, tanta cor-rupção, manipulação e teatralismo que redundou num pedido declemência do próprio Dreyfus em 1901, e a restitutição do EstadoMilitar como um poder em exercício muito maior do que a pró-pria França fez com que Arendt, que lá no fundo poderia ter rea-firmado a maturidade dos valores democráticos de um poderosoEstado de Direito, produzisse uma peça de análise política tão cru-amente realista e mordaz. Eis a mão do pai que acaricia cessandode bater num filho que, por sua vez, assume a sua própria covardiaao deixar de enfrentar a tirania de um ilegítimo pátrio poder, comomuitos fizeram. Ao final das contas, ao redor do pai, nenhum dosfilhos, mesmo que fossem titânicos, possuíam a coragem de en-frentar tal força. A política, a disputa se fez em meio ao Tártaro.Povo, ralé, clérigos, parlamentares, militares, militantes, professorese intelectuais, jornalistas, operários, juizes, compuseram uma fraçãodo mínimo necessário para evitar o total fiasco.

Por fim, os documentos que agora apresentamos ao leitor so-mam um diálogo com aqueles que vêem incompatibilidade entrea crítica dos Direitos Humanos e a reivindicação de sua validade,como hoje nos reportamos, através de sua expressão como con-junto de leis e ferramentas jurídicas eficaciais de um verdadeiroEstado de Direito.

É Durkheim que irá sugerir que se não é possível tratar cientifi-

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camente todos os complexos fenômenos sociais, que ao menos segaranta a compreensão de que o individualismo, (aquele gasto con-ceito que remonta a Kant e Rousseau e que foi a bandeira ideoló-gica do jacobinismo) além de não ser mera anarquia seria o únicosistema de crença capaz de gerar a unidade moral do qual estavanecessitando a França. Mesmo que essa afirmação nos pareça in-coerente se a opusermos com conceitos durkheiminianos comoos de solidariedade orgânica e representações coletivas, devemosser pacientes e seguir com a leitura que nos indica que Durkheimdefende a idéia de uma Religião civil, capaz de expressar um con-junto de crenças e de práticas coletivas que partem de uma autori-dade coletiva. Além disso, sabemos pela obra de Durkheim, quenenhuma das tradicionais instâncias institucionais da sociedade con-seguiria ou teria legitimidade para incorporar tal autoridade. Nema igreja, nem o exército, a família ou a moderna indústria, muitomenos o indivíduo ou o Estado. Seriam as corporações profissio-nais, e mais precisamente a moderna divisão do trabalho social,que poderiam servir como modelos aproximativos da possibilida-de de se ver e compreender o indivíduo e o individualismo comosinônimo de humanidade e humanitarismo. Com a divisão detrabalho [...] cada espírito se encontra voltado em direção a um ponto diferentedo horizonte, refletindo um aspecto diferente do mundo e, portanto, o conteúdodas consciências difere de um sujeito para o outro. Ora, Durkheim acalentaa esperança de que, uma vez que os indivíduos de um mesmogrupo social estão fadados, pela complexa divisão de trabalho, ase desidentificarem cada vez mais uns em relação aos outros, so-mente lhes restará uma qualidade a ser partilhadas, a de homem,constituído como pessoa humana em geral. E de forma categóri-ca, conclui sua crítica à tradição idealista das gerações de Kant eRousseau numa precisa abordagem conciliarista. Trata-se, diz Du-rkheim de [...] estender, de organizar o individualismo, não de restringi-lo ede defendê-lo.

Esse texto foi publicado em julho de 1898 na Revue Bleue;logo em seguida, em setembro do mesmo ano, Jean Jaurès coloca-va nas ruas a volumosa obra Les Preuves, cujo prefácio aqui repro-duzimos. Com o cuidado de quem está se deslocando por umcampo minado, Jaurès tenta, a todo custo, convencer os váriossegmentos implicados com o Affaire de que na verdade o errojudiciário pode ser revertido em benefício da própria França. Pro-letários, (e Jaurès é um dos mais expressivos socialistas franceses) aCorte de Cassação, a Imprensa, o Parlamento, a França e, sobretu-do a opinião pública são as alvos da retórica empregada por Jau-

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rès nesse documento. Até mesmo Paty de Clam, Esterhazy e Mer-cier foram agraciados pelo gesto estrategicamente bem colocadoda dúvida. Os que se mantêm abjetos para Jaurès são aquelasforças que mais facilmente poderiam ser associadas ao arcaísmo eao conservadorismo exacerbado, no caso, o alto comando do exér-cito e o clero. Ambos facilmente opostos como unidades desloca-das num Estado que havia completado o seu processo de seculari-zação. O Les Preuves foi a expressão primeira da necessidade detransparência aos processos jurídicos. É um dos primeiros textoscoligidos a organizar, constituir corpo e imprimir uma hermenêu-tica dreyfusista às peças jurídicas, às provas e aos documentos queforam aparecendo ao longo daquele período. Voilà!

O Editor


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