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ENTRE O DIÁRIO DE EXÍLIO E OS FILMES-DIÁRIO: UMA …riodeexÍlioeosfilmes... · suas vivências,...

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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016 1 ENTRE O DIÁRIO DE EXÍLIO E OS FILMES-DIÁRIO: UMA ANÁLISE SOBRE A REMEMORAÇÃO NA OBRA DE JONAS MEKAS 1 BETWEEN THE EXILE DIARY AND DIARY-FILMS - AN ANALYSIS ABOUT THE REMEMORATION IN THE WORK OF JONAS MEKAS Rafael Rosinato Valles 2 Resumo: Neste trabalho pretendemos refletir sobre como a construção do processo de rememoração se opera no diário de exílio e nos filmes-diário do cineasta Jonas Mekas. Como objeto de estudo, será analisado o filme-diário Reminiscences of a Journey to Lithuania, por entender que esta obra sintetiza a importância da memória nas escolhas narrativas do cineasta. Palavras-Chave: Cinema. Filme-diário. Memória. Abstract: In this work we intend to reflect on how the construction of the rememoration operates in exile diary and diary-films of the filmmaker Jonas Mekas. As an object of study will analyze the film diary Reminiscences of a Journey to Lithuania, understanding that this work summarizes the importance of memory in the narratives choices of the filmmaker. Keywords: Cinema. Film-diary. Memory. 1. Introdução Jonas Mekas é um cineasta e escritor que encontrou no processo de rememoração das suas vivências, uma forma de encontrar a sua própria busca poética. Diante da sua experiência como prisioneiro nos campos de concentração na Alemanha (1944-45), assumiu a decisão de relatar a sua rotina de trabalhos forçados num diário de exílio. Ao final da Segunda Guerra Mundial, seguiu relatando seu dia a dia nos campos de refugiados (1945- 1949), até migrar para os Estados Unidos, anos depois. 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Memória nas Mídias, do XXV Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal de Goiás, Goiânia, de 7 a 10 de junho de 2016. 2 Doutorando do Programa De Pós-Graduação Em Comunicação Social (PPGCOM), da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Email: [email protected]
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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016

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ENTRE O DIÁRIO DE EXÍLIO E OS FILMES-DIÁRIO: UMA ANÁLISE SOBRE A

REMEMORAÇÃO NA OBRA DE JONAS MEKAS 1

BETWEEN THE EXILE DIARY AND DIARY-FILMS - AN ANALYSIS ABOUT THE

REMEMORATION IN THE WORK OF JONAS MEKAS

Rafael Rosinato Valles 2

Resumo: Neste trabalho pretendemos refletir sobre como a construção do

processo de rememoração se opera no diário de exílio e nos filmes-diário do

cineasta Jonas Mekas. Como objeto de estudo, será analisado o filme-diário

Reminiscences of a Journey to Lithuania, por entender que esta obra

sintetiza a importância da memória nas escolhas narrativas do cineasta.

Palavras-Chave: Cinema. Filme-diário. Memória.

Abstract: In this work we intend to reflect on how the construction of the

rememoration operates in exile diary and diary-films of the filmmaker Jonas

Mekas. As an object of study will analyze the film diary Reminiscences of a

Journey to Lithuania, understanding that this work summarizes the

importance of memory in the narratives choices of the filmmaker.

Keywords: Cinema. Film-diary. Memory.

1. Introdução

Jonas Mekas é um cineasta e escritor que encontrou no processo de rememoração das

suas vivências, uma forma de encontrar a sua própria busca poética. Diante da sua

experiência como prisioneiro nos campos de concentração na Alemanha (1944-45), assumiu

a decisão de relatar a sua rotina de trabalhos forçados num diário de exílio. Ao final da

Segunda Guerra Mundial, seguiu relatando seu dia a dia nos campos de refugiados (1945-

1949), até migrar para os Estados Unidos, anos depois.

1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Memória nas Mídias, do XXV Encontro Anual da Compós, na

Universidade Federal de Goiás, Goiânia, de 7 a 10 de junho de 2016. 2 Doutorando do Programa De Pós-Graduação Em Comunicação Social (PPGCOM), da Pontifícia Universidade

Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

Email: [email protected]

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Ao encontrar o cinema, Mekas também encontrou um novo suporte para potencializar

a sua escrita em formato diário e o seu trabalho de rememoração. Envolto em arquivos

fílmicos e recordações distantes da sua terra natal (Lituânia), Mekas construiu um obra onde

a memória assumiu um papel fundamental não somente para entender a construção do seu

olhar e as suas buscas estéticas e narrativas, mas também para conhecer ao autor por detrás

desta trajetória artística. Passados quase cinquenta anos do seu primeiro filme-diário Walden

(1969), Jonas Mekas trouxe ao cinema uma outra perspectiva para se pensar a posição do

autor neste processo de construção de uma rememoração, assim como o uso dos registros no

formato diário como a construção de lugar de memória.

2. A construção da memória na escrita em formato diário

No ano de 1936, Walter Benjamin escreveu o seu referencial artigo O narrador –

Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, onde buscava analisar a posição do narrador,

a arte de narrar e o seu risco de extinção naquele contexto. Neste período pré-Segunda Guerra

Mundial, Benjamin comenta neste artigo que “são cada vez mais raras as pessoas que sabem

narrar devidamente” (BENJAMIN, 1994, p.197), que conseguem transmitir experiências

vivenciadas pessoalmente ou de histórias que deveriam ser contadas. Para este declínio da

arte de narrar, Benjamin aponta um fator determinante:

Com a Guerra Mundial tornou-se manifesto um processo que continua até

hoje. No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos

do campo de batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência

comunicável. E o que se difundiu dez anos depois, na enxurrada de livros

sobre a guerra, nada tinha em comum com uma experiência transmitida de

boca em boca. (BENJAMIN, 1994, p.198)

Mas o que Benjamin não teria tempo para reconhecer – uma vez que ao fugir dos

oficiais nazistas alemães, suicidou-se em 1940 na fronteira entre a França e a Espanha – é que

outros tipos de narrativas conseguiram emergir dos campos de concentração e dos escombros

da Segunda Guerra Mundial. Livros como O diário de Anne Frank, de Anne Frank e Isto é

um homem, de Primo Levi3, trouxeram a tona uma literatura que ao invés de ser silenciada

pela guerra, se afirmou em decorrência dela. É diante deste contexto que a escrita em formato

3 Ambos livros forma publicados em 1947, no mesmo período em que Mekas já escrevia o seu diário de exílio,

mas que somente foi publicado em livro no ano de 1990.

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de diário se colocaram não somente como testemunho de guerra, mas enquanto uma

construção memorialística desta guerra. A partir de relatos breves e fragmentados, feitos em

primeira pessoa e escritos em plena guerra, estes diários revelaram uma forma distinta para se

entender a guerra. Desde uma ótica mais íntima e com um sentido de cotidianidade muito

presente nas suas narrativas, além de não ter o mesmo compromisso em afirmar a sua

condição de relato histórico, como o fizeram os livros de história, o diário procurava assim

embaralhar não somente a relação entre história e memória, mas entre autor e narrador.

Mesmo já tendo uma longa história de existência, se levarmos em conta, por exemplo,

os diários que Samuel Pepys4 (1660-1669) escreveu ainda no século XVII, o diário ainda é

considerado dentro do âmbito literário como uma literatura menor, se comparada a gêneros

maiores, como é o caso de romances, novelas, poemas ou até mesmo contos. Isto se deve

muito ao fato do diário não possuir a priori um rigor narrativo e estilístico que as demais

formas literárias buscam, uma vez que é possível escrever um diário sem ter maiores

ambições literárias. Uma pessoa, por exemplo, pode desenvolver este tipo de escrita tanto

para relatar os produtos que vende diariamente no seu armazém, como para descrever os

dramas vividos no front de uma guerra, como é o caso de Mekas.

Mas é diante desta constatação, que os seus questionamentos se iniciam. “Pode-se

considerar um diário uma obra, no sentido de um trabalho acabado? Qual o local do diário na

literatura? Qual a sua esfera: a privada ou a pública?” (SELIGMANN-SILVA, 2012, p.268)

A partir de questionamentos como estes, o diário ainda segue buscando demarcar o seu

território dentro do âmbito da comunicação e da literatura.

Nesta escrita efêmera, o que se pode afirmar é que não necessariamente está em jogo

um refinamento estilístico, mas sobretudo um relato que consiga transparecer a urgência do

momento vivido pelo autor empírico. Ao invés das estruturas narrativas de início, meio e fim

ou de maiores experimentações na focalização do narrador, um diário deve estar aberto as

circunstâncias que se apresentam ou que são geradas através do contexto histórico no qual o

autor se insere. Frente a uma forma de escrita onde as normas não são bem vindas, a única

regra pré-estabelecida para um diário deve ser o respeito pelo calendário, registrando a data

4 Para maiores informações sobre Samuel Pepys:

http://www.pepys.info/

https://en.wikipedia.org/wiki/Samuel_Pepys

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em que a nota foi escrita. Ao estabelecer esta demarcação, o diário se encontra intimamente

ligado ao tempo e a construção de uma memória.

O interesse do diário é sua insignificância. Essa é sua inclinação, sua lei.

Escrever cada dia, sob a garantia desse dia e para lembrá-lo a si mesmo, é

uma maneira cômoda de escapar ao silêncio, como ao que há de extremo na

fala. Cada dia nos diz alguma coisa. Cada dia anotado é um dia preservado.

Dupla e vantajosa operação. Assim, vivemos duas vezes. Assim, protegemo-

nos do esquecimento e do desespero de não ter nada a dizer. (BLANCHOT,

2005, p.273)

É importante observar que o diário enquanto construção narrativa, carrega pelo menos

três paradoxos: ao mesmo tempo que pode ser uma escrita insignificante e ligeira, sem

procurar maiores transcendências literárias ou filosóficas, ela inevitavelmente se torna um ato

de reflexão sobre o autor e o seu próprio processo de escrita. Por que escrever sobre as nossas

vidas com uma dedicação cotidiana? O que motiva uma pessoa a escrever um diário? Por

detrás de uma escrita fácil, existe no diário um desejo de redescobrimentos, em não ser

indiferente as pequenas vivências cotidianas. “O diário está ligado à estranha convicção de

que podemos nos observar e que devemos nos conhecer” (BLANCHOT, 2005, p.275). Ao

assumir este compromisso, se constroem narrativas, se reelaboram situações que vão muito

além do que um mero relatório de atividades realizadas. Por detrás desta insignificância, se

constrói também um narrador que traz um distanciamento para o autor pensar o seu próprio

caminho pessoal.

É neste sentido que casos como o diário de exílio de Jonas Mekas operam um

processo de reflexão e autodescobrimento através dos textos escritos. É o caso, por exemplo,

do que ele escreve no dia 21 de julho de 1944, quando relata que ele e o seu irmão foram

interceptados por oficiais alemães e levados para os campos de concentração em Elmshorn,

subúrbio de Hamburgo. “Adeus, Viena! Ao menos por agora. Que ingênuos que fomos!

Ainda depois de todos estes anos de guerra não chegamos a entender que ISTO É A

GUERRA REAL!” (MEKAS, 2008, p.51, tradução nossa).

Sua forma breve e por momentos restrita a uma função descritiva, acabam sendo

mescladas com afetos e subjetividades que Mekas carrega consigo mesmo e procura transpor

através da escrita. “O diário possui uma respiração, um ritmo, que expressa e aponta para a

situação anímica e corpórea de seu autor” (SELIGMANN-SILVA, 2012, p.264), tornando

assim os textos escritos no seu mais fiel confidente das angústias, questionamentos e

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fraquezas que assolam o seu dia a dia. Suas notas procuram preencher não somente um

sentimento de solidão, mas também buscam encontrar formas para lidar com a perda, com

um passado que já não pode ser mais alcançado, como afirma Mekas em uma nota escrita no

dia 29 de janeiro de 1948:

É tão difícil escrever...

Se supõe que a literatura é a palavra que adota uma forma clara. Mas o

único que posso fazer é gritar, e esse grito é tão pesado, está tão cheio de

nostalgia e fúria... Ai, esta vida verde e crua... E nem sequer a vida inteira,

somente este dia e um fragmento de vida nas barracas, não literatura. Falta

coragem, as esperanças se derrubam, se fazem pedaços. Posso sentir seu

colapso nos rostos que estão ao meu redor. Todos caminhamos com uma

nostalgia intensa e imensa no nosso interior, temerosos por nossos irmãos lá

em casa... (MEKAS, 2008, p.164, tradução nossa)

Como afirma Blanchot, “escrevemos para salvar os dias, mas confiamos sua salvação

à escrita, que altera o dia” (BLANCHOT, 2005, p.275). O diário possui o dom de tornar algo

supostamente insignificante em algo significante, transcendente. Ao estar intimamente ligada

a uma construção subjetiva, o diário procura trazer um novo sentido as pequenas histórias

vivenciadas pelo seu autor.

Da mesma forma, também é possível afirmar que o diário possui um segundo

paradoxo no seu entendimento. Ao mesmo tempo em que esta forma de escrita privilegia o

momento presente, também é responsável por construir um lugar de memória. Como afirma

Raúl Castagnino, no livro Tiempo y expresión literária:

Há impossibilidade física e metafísica de narrar algo simultaneamente

enquanto ocorre, no seu instante de atualidade real. Toda narração, por mais

imediatez que alcance com o presente (enquanto tempo de ocorrer o fato

narrado), sempre será sua evocação, ou seja, sua memória, sua recuperação

do passado. (CASTAGNINO, 1987, p.50, tradução nossa)

No entanto, mesmo sendo uma evocação do que já passou, elaborada muitas vezes

com verbos conjugados no passado, em situações previamente vividas, o seu conteúdo revela

um frescor de algo recém acontecido, a sua narração expressa uma urgência que não espera

semanas, meses ou anos para ser escrita no papel. O intervalo entre o vivido pelo autor e o

contado através do narrador se torna muito tênue.

É o que ocorre, por exemplo, quando no dia 29 de abril de 1945, Mekas afirma que

“esta manhã a terra estava branca pela neve. Cai granizo, tem água em todas as partes. O frio

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e a humidade atravessam os furos das minhas calças velhas. (...) Tenho os pés congelados”

(MEKAS, 2008, p.87, tradução nossa). A conjugação de verbos no passado e no presente se

misturam nesta mesma nota, o narrado participa ativamente no processo de vivencial do

autor. Suas notas são como retratos fotográficos que procuram captar a fugacidade do

momento, não deixando escapar as particularidades do instante. A visualidade que seus

relatos assumem, a riqueza dos detalhes descritos está intimamente ligada a proximidade e a

urgência que Mekas busca em não deixar desvanecer esses momentos diante da passagem do

tempo.

É inegável que podemos identificar no diário algo como as marcas e traços

do presente de sua escritura. O diário produz páginas que se embaralham

com a vida de seu auto-protagonista. Nele somos tocados pelo ar que este

personagem respirava. Tendemos a ver nele um testemunho, ou seja, um

índice, metonímia, e não uma metáfora, que é tradução imagética e mais

distanciada dos fatos arrolados. (...) Vemos o diário como parte do evento

narrado, e não como observação de segunda ordem – por mais equivocada

que esta percepção possa ser. (SELIGMANN-SILVA, 2012, p.264)

É justamente por este efeito de presente, que a leitura dos diários de Mekas possui um

frescor tão intenso, se torna uma experiência de imersão no dia a dia de um prisioneiro da

Segunda Guerra Mundial. Mekas consegue transmitir em palavras, o suspiro de cansaço que

o assola diariamente, o temor pelas bombas que atravessam os campos, a irritação por um

contexto que lhe foi imposto. Como afirma Emilio Bernini no prefácio da versão argentina de

I had nowhere to go (Ningún lugar adonde ir, 2008), “Mekas escreve seu diário como se não

houvesse uma distância temporal, (...) produz um efeito pelo qual a escritura do presente se

torna o próprio presente” (MEKAS, 2008, p.21, tradução nossa).

O seu diário nos faz, enquanto leitores, estarmos “com” o narrador autodiegético. “É

“com” ele que vemos os outros protagonistas, é “com” ele que vivemos os acontecimentos

narrados” (POUILLON, 1974, p. 54). Sem a existência de um narrador onisciente, o diário

faz da sua leitura um processo constante de estar a deriva, de não saber o que poderá

acontecer no relato seguinte. O diário é uma escrita que se encontra sempre pendente das

vivências do seu autor empírico, de fatores exteriores ou gerados por ele, mas que ao final

acabam determinando o que e como será narrado. Uma escrita diarística se constrói através

de um processo de fluxo contínuo que privilegia esta proximidade entre o momento vivido e

o narrado.

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Justamente por esta impossibilidade de adiantar o que ocorrerá no dia seguinte, diários

como o de Mekas assumem projeções de futuro que atestam ainda mais este efeito de uma

escrita do presente. Frente a iminência da Alemanha ser derrotada na guerra, Mekas aos

poucos começou a evidenciar nas suas notas alguns esboços de ideias do que pretendia fazer

diante de tal circunstância. No dia 9 de maio de 1945, um dia depois de se inteirarem que

Alemanha havia se rendido ante os britânicos e americanos - embora ainda não tivesse se

rendido diante da União Soviética, como relata Mekas -, e mesmo tendo que seguir com os

trabalhos forçados no campo de concentração, Mekas já começava a se inserir numa nova

esfera. “Trabalhamos e temos a cabeça cheia de planos. Não pensamos na beleza da

primavera. Estamos pensando em como fazer para chegar a Inglaterra através de Husum

(MEKAS, 2008, p.88, tradução nossa).

Entre este jogo de temporalidades, Mekas também construía no seu diário, o seu

próprio lugar de memória. Ao assumir a escolha de registrar estes momentos vividos, suas

notas são responsáveis pela elaboração de uma memória e de uma busca, sendo ela

intencional ou não, de conservar estas vivências. Como a uma fotografia que embalsama

(BAZIN, 1991) o tempo, a escrita de Mekas também embalsamou as imagens construidas

através das suas palavras, embalsamou os seus sentimentos e afetos contidos naquele

instante.

O diário de Mekas se insere assim num entendimento da escrita não somente como

um meio, mas também como um suporte para a construção da memória. Conhecer os seus

relatos de exílio é uma possibilidade para descobrir com maior precisão e detalhes, as

vivências que a própria memória subjetiva do autor vai esquecendo com a passagem do

tempo. Por ser seletiva e frente a impossibilidade de recordar tudo - ou algo sequer próximo

disso -, a memória necessita recorrer aos seus suportes para assim recordar situações

supostamente esquecidas. É neste contexto mais amplo de relação com a memória que a

escrita assume um grande protagonismo.

No entanto, é importante observar que ao mesmo tempo em que o diário retém estes

relatos enquanto um lugar de memória e que a escrita se torna um dispositivo confiável

enquanto perpetuação do que foi escrito, também acaba estabelecendo um último paradoxo.

Na sua escrita tão íntima, com um caráter profundamente pessoal e confidente, o personagem

narrado se distancia do seu autor empírico. Na mesma medida em que este diário de exílio

embalsama as suas vivências como prisioneiro de guerra, a passagem do tempo e as

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transformações na vida do autor Jonas Mekas o fazem inevitavelmente assumir um

distanciamento sobre estes relatos.

Tendo-se em conta que o homem é um incessante quehacer (ORTEGA Y GASSET,

1970), um ser histórico que se encontra em constante movimento na construção da sua

própria trajetória, o reencontro com aquele autor que um dia escreveu estas notas, termina

provocando um grande efeito de estranhamento. Não por acaso, no prefácio do livro Ningún

lugar adonde ir, Mekas comenta as impressões iniciais que lhe trouxeram este processo de

reencontro com os textos que havia escrito quarenta anos atrás.

Ao reler estes diários já não sei si se trata de verdade ou ficção. Tudo

retorna com a nitidez de um sonho ruim que te faz saltar da cama; leio isto,

não como minha própria vida, mas como a vida de outro, como se o

sofrimento nunca tivesse sido meu. Como poderia haver sobrevivido? Devo

estar lendo sobre a vida de outro. (MEKAS, 2008, p.47, tradução nossa)

Neste trabalho de rememoração, o diário de exílio revela a um Mekas em 1945 que

não é o mesmo Mekas de 1985, ano em que escreveu este texto reflexivo. Existe não somente

um distanciamento temporal e subjetivo entre aquele prisioneiro de guerra e o homem que

reconstruiu sua vida nos Estados Unidos, mas também um distanciamento na ordem do

campo discursivo. Se deparar com os rastros e as lacunas do seu próprio eu revela um

profundo exercício de subjetividade, de desdobramentos na busca por entender como se

constrói a própria auto representação. Por detrás do sentido confessional do diário, também

existe o seu caráter performático que se amplifica através da construção discursiva.

Não se trata apenas do fato de que o autor do diário elege o que vai

inscrever do real que o cerca. A electio (seleção) retórica é parte de todo o

discurso. O autor cria um universo íntimo e a realidade que o envolve

conforme sua capacidade de transpor e saltar entre imagens e palavras,

palavras e imagens. Tradução, como o próprio Benjamin observou em um

texto famoso, é uma forma: não é mera mimesis, imitação, cópia em outra

língua. (SELIGMANN-SILVA, 2012, p.265)

É justamente nestes fatores de distanciamentos temporais contidos no seu ato de

rememoração, neste jogo de duplicidades quanto a construção do eu no seu discurso, que se

tornaram fatores determinantes para entender o processo de construção da sua obra

cinematográfica. Mekas através do seu diário de exílio não se tornou somente um relator dos

acontecimentos de guerra, mas também construiu a um narrador que permaneceu conservado

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no seu diário, frente a um Mekas autor empírico que seguiu sua trajetória de vida até os dias

atuais. É graças a este encontro com o que foi e com o que está sendo, que Mekas encontrará

uma chave essencial na sua própria obra cinematográfica.

3. O filme-diário e o processo de rememoração

3.1 - O diário em filme

Refletir sobre o que se trata o filme-diário ainda é um campo muito pouco explorado

nos estudos dentro do âmbito cinematográfico. Geralmente relegado a ser uma subárea do

que se entende como cinema documentário ou relatos autobiográficos, as reflexões sobre o

que caracteriza um filme-diário geralmente surgem quando se busca refletir sobre a obra de

Jonas Mekas ou David Perlov5, cineastas referentes dentro deste tipo de produção.

Um autor que procurou se aprofundar nesta relação entre cinema e o diário pessoal na

obra de Mekas foi o americano David E. James. Responsável por escrever livros como

Allegories of cinema – American Film in the Sixties, além de ter sido o editor do livro To free

the Cinema – Jonas Mekas & The New York Underground, James procurou estabelecer uma

divisão entre o que ele define como diário em filme e o filme-diário.

O diário em filme inaugurou funções para o aparato que recusaram radicalmente

tanto o uso industrial quanto o de vanguarda, com as extravagâncias, deficiências e

contradições do novo (não) gênero desafiando as normas hegemônicas do suporte

numa nova prática privada do cinema que integrou à práxis da vida. O filme-diário

devolveu tal prática privada a um contexto público e à produção de um produto,

uma obra de arte esteticamente autônoma. (JAMES, 2013, p.168)

O que James pretende identificar neste artigo intitulado Diário em filme/ Filme-diário:

prática e produto em Walden, de Jonas Mekas é que o diário em filme pode ser definido

basicamente como o registro no qual Mekas ou qualquer outra pessoa possa realizar de forma

periódica sobre as suas vivências cotidianas. O diário em filme se constitui pelo registro

audiovisual de fragmentos da vida cotidiana do autor e que revelam uma prática de fluxo

contínuo, sem o propósito de estabelecer início, meio e fim. Como uma obra aberta que não

procura se restringir a regras, o único fator que delimita o que se pode chamar como diário

5 Para maiores informações sobre o realizador brasileiro David Perlov, acessar o site:

http://davidperlov.com/index.html

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(seja ele literário ou audiovisual), é a identificação da data em que foi realizado, como afirma

Maurice Blanchot.

O diário íntimo, que parece tão livre da forma, tão dócil aos movimentos da vida e

capaz de todas as liberdades, já que pensamentos, sonhos, ficções, comentários de si

mesmo, acontecimentos importantes, insignificantes, tudo lhe convém, na ordem e

na desordem que se quiser, é submetido a uma cláusula aparentemente leve, mas

perigosa: deve respeitar o calendário. Esse é o pacto que ele assina. (BLANCHOT,

2005, p.270)

Sem a necessidade de um encadeamento de imagens ou de uma elaboração narrativa,

o diário em filme privilegia assim a fugacidade do instante, da relação do realizador com o

seu entorno, interagindo com o que está acontecendo naquele exato momento em que está

sendo registrado. É partindo deste princípio que Mekas começa a transpor a sua busca

anterior do diário escrito para a sua experiência cinematográfica. Estava em jogo a

espontaneidade, a improvisação, a libertação de convenções que aprisionavam a sua escrita

fílmica. Para Mekas, o uso da câmera tinha que ser um ato tão simples e direto como a

relação que ele estabelecia com o papel e a caneta. O cineasta buscava assim adaptar para o

cinema uma forma de escrita que assumisse um diálogo com o diário escrito.

No entanto, justamente por esta busca de um registro que privilegie o instante, é que o

diário em filme se diferencia do diário escrito, literário. Enquanto que o primeiro é a escrita

do presente, do registro efetuado pela câmera do que está acontecendo naquele momento, o

segundo já é um registro onde a temporalidade é encarada de outra forma. No diário escrito,

geralmente a conjugação do verbo é efetuado no passado, se escreve diante de um evento que

já ocorreu. Se no diário em filme o registro está aberto a improvisações, tendo que estar

constantemente em alerta diante do que possa ocorrer no momento presente, no diário escrito

é a reflexão sobre o que já aconteceu que assume as rédeas do processo.

Quando você escreve um diário, por exemplo, você se senta, à noite, sozinho, e

reflete sobre seu dia, em retrospecto. Mas ao filmar, ao manter um caderno de notas

com a câmera, o maior desafio consiste em como reagir com a câmera no instante,

durante o acontecimento; como reagir de modo que a filmagem reflita o que senti

naquele momento. (MEKAS, 2013, p.132)

Se o diário escrito se constrói diante de um processo de inflexão e reclusão no ato da

escrita, o diário em filme se afirma através de um processo de expansão, ao ser registrado em

imagens que surgem de acordo a como o realizador se relaciona com o seu entorno. Enquanto

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o primeiro privilegia a subjetividade do que já ocorreu, o segundo busca a instantaneidade do

que está acontecendo.

Não é por acaso que este tipo de diário em filme, tanto na obra de Mekas como nos

home movies que registram celebrações familiares, eventos com amigos ou algum registro de

viagem, o registro se torna um processo de interação entre o realizador e o que está sendo

registrado. Desde os olhares diretos para a câmera das pessoas que estão sendo filmadas,

assim como o uso da câmera na mão que abdica do tripé na busca por aproximar-se mais das

pessoas, o diário em filme assume um sentido celebratório sobre a fugacidade do instante em

que se registra.

3.2 - O filme-diário

Desde os seus primeiros anos nos Estados Unidos, Mekas seguiu registrando os seus

diário em filme sem assumir, teoricamente, nenhuma pretensão específica com este material.

Não estava nos seus planos ordenar narrativamente ou elaborar um filme, fator este que se

reforçava pelo excesso de atividades que estava assumindo como produtor na Film Makers´

Corporative, Film Makers´ Cinematheque, assim como nas suas atividades na Anthology

Film Archives e na revista Film Culture.

Na sua militância pela afirmação de uma nova geração de cineastas independentes nos

Estados Unidos no início dos anos sessenta, Mekas se resignava a deixar os seus registros

pessoais em segundo plano. No entanto, mesmo com pouco tempo disponível para si, ele

seguiu registrando. “Tive apenas pedaços de tempo que me permitiram filmar apenas pedaços

de película. Todo o meu trabalho pessoal tomou a forma de notas” (MEKAS, 2013, p.131).

No entanto, a medida em que decidiu rever este material anos depois, o sentido que

assumiu o registro começou a sofrer alterações que iriam determinar o rumo da sua obra.

Enquanto estudava esse material e pensava sobre ele, tornei-me consciente da forma

de um filme-diário e, é claro, isso começou a afetar a minha maneira de filmar, meu

estilo. E em certos momentos isso me ajudou a ter uma paz de espírito. Eu disse

para mim mesmo: “Bem, muito bem – se não tenho tempo para dedicar seis ou sete

meses à produção de um filme, não vou me abalar; irei filmar notas curtas, dia a dia,

todos os dias”. (MEKAS, 2013, p. 132)

Mesmo fincando pé no presente, no registro cotidiano e sem maiores pretensões que

não fossem pequenas notas que registrassem o seu dia a dia, Mekas também começava a

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embalsamar o tempo e a construir uma memória. Guardando nas suas prateleiras o material

filmado, Mekas construía um acervo de imagens que além de ser o seu diário em filme,

também se tornava a preservação da memória de momentos vividos pelo realizador com seus

amigos, familiares e lituanos exilados.

Quando Mekas decide se confrontar a este material anos depois, ele também

confronta a elaboração da sua memória, levanta reflexões sobre a passagem do tempo,

materializa o sentido do que se conhece como filme-diário. “Se o diário em filme vivia no

presente da percepção imediata, em seu presente o filme-diário confronta as ruínas de um

tempo agora irrecuperavelmente perdido” (JAMES, 2013, p.189).

O filme-diário se torna não somente o reencontro de Mekas com os seus arquivos,

mas também a sua afirmação como algo mais profundo que ser um filmador: Mekas se afirma

como narrador e realizador. Se nos diário em filme, o registro falava por si só e a

narratividade se expressava de forma mais elementar, enquanto a escolha do que enquadrar, a

exposição da luz e a velocidade dos quadro por segundo, nos seus filmes-diários, os recursos

narrativos e técnicos irão incrementar a sua paleta de cores. É neste ato de rememoração que

se tornam os seus filmes-diário, que Mekas constrói um sentido de fluxo e encadeamento de

imagens que terminam resignificando a sua própria memória.

Ao agregar um referencial testemunhal e sonoro que busca revisitar o passado, os

arquivos acabam ganhando uma dimensão muito mais profunda, se comparado à

possibilidade de assistir somente ao diário em filme, as imagens em bruto. Diferentemente do

diário em filme, o filme-diário na obra de Mekas revela intencionalidades, incorpora

questionamentos, reflexões que muitas vezes não se mostram evidentes nas imagens.

A subjetividade específica e o peso da memória são, no trabalho de Mekas,

largamente dependentes da voz, bem como os títulos escritos, a sonata para piano e

as canções populares para colorir as imagens que vemos. Se a autobiografia de

Mekas é muito mais um texto-imagem do som em que as imagens são coloridas

como as memórias emocionais, as imagens estão sujeitas a serem controladas e

definidas pelas articulações da voz. A voz determina a maneira pela qual as imagens

são vistas. (TURIM, 1992, p.203, trad. nossa)

Outro fator que agrega a esta construção narrativa contida nos seus filme-diário se

refere a um certo ordenamento dos arquivos. Mesmo que em linhas gerais nos seus filme-

diário, Mekas resista em buscar uma maior organicidade narrativa do material, optando por

um sentido aparentemente mais aleatório que cronológico, como ocorre em As I was Moving

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Ahead...6(2000), em outros trabalhos como Reminiscences of a Journey to Lithuania (1972) e

Lost, Lost, Lost (1976), a construção narrativa traz entendimentos reveladores sobre a

biografia do autor.

É o que ocorre, por exemplo, em Lost, Lost, Lost, a medida em que Mekas, ao optar

por um ordenamento cronológico dos seus arquivos, termina revelando a sua própria

transformação como exilado nos Estados Unidos. Enquanto que na primeira parte do filme,

Mekas se detém a registrar a outros lituanos exilados em Nova York, assim como evidenciar

sua resistência em fazer parte de um gueto com estes exilados, a parte final de Lost, lost, lost

revela anos depois a um Mekas integrado na cultura americana, se afirmando no meio

artístico nova-iorquino. Sem esta busca cronológica, o entendimento desta transformação

teria sido mais difícil.

Diferentemente do diário em filme, onde o que estava em jogo era o valor do registro

em si enquanto ato de filmar o seu cotidiano como um diário de notas sem nenhum

ordenamento que não fosse o cronológico, no filme-diário entra em jogo o encadeamento de

imagens, como elas se relacionam entre si e como estas lidam com as camadas sonoras e

retóricas do cineasta. Mesmo que Mekas tenha buscado realizar uma montagem aleatória em

determinados filmes, ainda assim é possível evidenciar uma elaboração narrativa que se

constrói entre os arquivos e o que está fora dele (em fatores extra diegéticos, como é o caso

do uso da voz em off, das cartelas com textos sobre a imagem, da trilha sonora). Existe no

filme-diário uma intenção de tornar materiais tão heterogêneos e independentes entre si, em

um trabalho que assuma uma certa unidade dentro desta diversidade contida nos arquivos e

na sua narrativa.

O diário em filme inaugurou funções para o aparato que recusaram radicalmente

tanto o uso industrial quanto o de vanguarda, com as extravagâncias, deficiências e

contradições do novo (não) gênero desafiando as normas hegemônicas do suporte

numa nova prática privada do cinema que o integrou à praxis da vida. O filme-

diário devolveu tal prática privada a um contexto público e à produção de um

produto, uma obra de arte esteticamente autônoma. (JAMES, 2013, p.168)

Enquanto que no filme em diário existia um fim privado, onde os arquivos estavam

6 No início do segundo capítulo de As I was Moving Ahead, Mekas comenta com a voz em off que “tudo é

acaso. Estou repassando todos os rolos de som, escolhendo um, escolhendo outro; montando-os; unindo-os ao

acaso, igual às imagens. Da mesma maneira que uno as imagens. Da mesma... Exatamente da mesma maneira

em que as filmei inicialmente: por casualidade, sem plano algum, somente segundo o capricho do momento, o

que naquele momento senti que devia gravar. Uma ou outra coisa, sem saber por que” (trad. do autor).

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destinados a se manter no acervo particular de Mekas, no filme-diário existe uma intenção

clara de tornar este acervo em filmes que não somente se afirmem através de uma construção

estética e narrativa, mas que também evidenciem um processo de rememoração.

4. Análise sobre o filme-diário Reminiscences of a Journey to Lithuania (1972), de Jonas

Mekas

No ano de 1972, quando Jonas Mekas decidiu regressar para a Lituânia pela primeira

vez, lhe propuseram uma equipe técnica e câmeras para registrar este momento e assim fazer

um filme. Mekas não pensou duas vezes em recusar esta proposta. Estava em jogo algo mais

profundo que um bom enquadramento ou uma boa iluminação do registro fílmico. Por detrás

destas filmagens, era necessário captar uma vivência que somente ele conseguiria

documentar com a sensibilidade que o momento exigia. A partir desta convicção nasceu o

filme Reminiscences of a Journey to Lithuania.

Sabia que, embora as imagens filmadas por esses técnicos, seguindo minhas

instruções, tivessem sido “melhores” profissionalmente, elas teriam destruído o

tema que eu estava perseguindo. Quando você vai para casa, pela primeira vez em

25 anos, você sabe, de alguma forma, que as equipes de cinema oficiais não

pertencem àquele lugar. Por isso escolhi a minha Bolex. Minha filmagem tinha de

permanecer totalmente privada, pessoal e “não profissional”. (MEKAS, 2013,

p.138).

No mesmo ano, já com o filme finalizado, Mekas recebeu a visita de um representante

do governo soviético em Nova York, que insistiu em assistir a versão final de

Reminiscences... “Como você se atreve a fazer e mostrar um filme como este para o mundo!

Por que você não mostra as fábricas? Por que você não mostra o progresso?”

(ENGELBACH; KONIG, 2009, p.169, trad. nossa), perguntou o representante soviético.

Mekas não titubeou em responder que “neste filme estou interessado apenas em minha mãe e

minhas memórias de infância, isto é tudo. Este é o meu passado” (ENGELBACH; KONIG,

2009, p.169, trad. nossa).

Mesmo com a Segunda Guerra Mundial terminada há mais de duas décadas, Mekas

seguia vivendo um atravessamento da História sobre o seu caminho. Agora dentro de um

contexto da Guerra Fria, de um enfrentamento entre Estados Unidos e União Soviética,

Mekas se encontrava num estado limiar entre a questão sociopolítica destes dois países.

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Diante das restrições que a União Soviética havia imposto a refugiados da Segunda Guerra

Mundial que migraram para países fora do eixo comunista existente no leste europeu, Mekas

enfrentou um longo processo de mais de vinte anos até poder retornar para Lituânia.

A rememoração que Mekas estabelece através do uso da voz em off se tornam

determinantes para entender a este contexto e a essência do filme. Logo na introdução de

Reminiscences..., são mostradas imagens de Mekas com o seu irmão Adolfas, percorrendo ao

bosque de Catskills, nos Estados Unidos. Simultaneamente a estas imagens, surge a voz de

Mekas, comentando as suas impressões sobre este momento.

A princípios daquele outono, em 1957 ou 1958, uma manhã de domingo, fomos aos

Catskills, ao bosque. Caminhamos entre a folharada, afastando-a com uma vara.

Andamos longamente, entramos no profundo do bosque. Foi bom caminhar assim,

sem pensar, sem pensar em nada sobre os últimos dez anos. E me dizia a mim

mesmo que poderia caminhar assim, sem pensar nos dez anos de guerra, na fome,

em Brooklyn. E quase, e talvez, por primeira vez, enquanto caminhamos pelo

bosque, aquele dia de princípios de outono, foi a primeira vez que não me senti

sozinho na América. Igual que pensei que ali estavam o solo, a terra, e as folhas; e

as árvores, e a gente, e que, da mesma maneira, eu estava, pouco a pouco, me

convertendo em parte de tudo aquilo. Por um momento, esqueci meu lugar. Este era

o começo do meu novo lugar. “Me liberei das cordas do tempo, outra vez”, me

disse. (trad. nossa)

Os bosques remetiam as suas origens, a juventude vivida no meio rural no interior da

Lituânia. No entanto, nesta primeira parte do filme, o uso da voz em off de Mekas ressalta

ainda mais a sua desconformidade com a situação vivida como exilado nos Estados Unidos.

A começar pelas imagens registradas sobre os imigrantes lituanos em Nova York, chama a

atenção o contraste entre o que é mostrado e o que é dito por Mekas no filme. As imagens

não mostram propriamente tristeza, solidão ou melancolia dos lituanos exilados, mas

justamente pessoas dançando, bebendo, tocando música, compartilhando este exílio em

conjunto. Simultaneamente a estas imagens, Mekas afirma, com o uso da voz em off:

Em algum lugar ao final da Atlantic Avenue, ali, em algum lugar costumavam fazer

piqueniques. Costumava observá-los, aos velhos imigrantes e aos novos. E me

pareciam serem animais tristes e moribundos num lugar ao\ que não pertenciam

exatamente, num lugar que não reconheciam. Ali estavam, em Atlantic Avenue, mas

estavam completamente em outro lugar. (trad. nossa)

Logo na sequência seguinte do filme, é o próprio Mekas que aparece sobre a imagem,

em registros feitos em 1950, ao comprar a sua primeira câmera Bolex 16mm. Imagens estas

que mostram a um Mekas com fisionomia séria e sozinho, distante da comunidade lituana.

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“Queria fazer um filme contra a guerra. Queria gritar, gritar que havia uma guerra, porque

caminhava pela cidade e pensava que ninguém sabia que havia uma guerra”, afirma Mekas

sobre estas imagens, o que termina revelando o quanto custou a ele próprio assumir a sua

condição de refugiado, em adaptar-se a uma sociedade que não havia vivido da mesma forma

que ele a Segunda Guerra Mundial. Diante de imagens que revelavam o cotidiano da

sociedade americana nas ruas de Nova York, Mekas comenta:

Pensava que ninguém sabia que havia lugares no mundo em que a gente não pode

dormir, onde a porta foi posta abaixo pela noite pelas botas dos soldados e da

polícia; um lugar assim do qual eu mesmo vinha. Mas nesta cidade ninguém sabia

nada de tudo isto.

Frente a este tom mais ríspido e distante em relação aos americanos, Mekas termina

assumindo um outro tom quando ao final da primeira parte demonstra uma dose maior de

afeto, ao mostrar os refugiados que assim como ele, vieram parar em Nova York. Existem

nestas imagens um processo de identificação, confirmada pelo uso da voz em off de Mekas,

que afirma ainda sentir-se como refugiado, assim como “o mundo está cheio de gente como

nós. Todos os continentes estão cheios de refugiados”.

Diante dos lituanos que, segundo o cineasta, viviam o seu próprio mundo no exílio,

dos americanos que não tinham a dimensão do que foi a guerra, Mekas ainda buscava um

caminho. Ao contrário da segunda e terceira parte deste filme, esta parte inicial se concentra

em imagens dos primeiros anos de Mekas nos Estados Unidos. É no uso da voz em off que o

cineasta termina evidenciando as fraturas da sua trajetória em relação ao contexto que o fez

vir para a América. “Ainda estou na minha viagem rumo ao lar. Te queríamos, mundo, mas

nos fizeste coisas terríveis”, afirma Mekas, ao final da primeira parte.

Se neste início existe um estranhamento e uma certa distância por parte de Mekas

frente ao seu entorno e a sua condição de exilado, a segunda parte de Reminiscences... revela

um tom completamente diferente. Com a imagem introdutória intitulada 100 vislumbres de

Lituânia, agosto de 1971, a segunda parte assume o reencontro de Mekas não somente com o

seu país de origem, com a sua família e seus amigos, mas sobretudo com a sua memória e os

seus afetos. É justamente esta questão que ele logo trata de frisar, quando afirma que:

Claro, vocês gostariam de saber algo sobre a realidade social. Como vai a vida ali,

na Lituânia soviética? Mas que sei sobre isto? Sou uma pessoa refugiada voltando

ao meu lar, em busca do meu lar, voltando a momentos do passado, buscando

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alguns rastros reconhecíveis do meu passado. O tempo em Semeniskiai permanece

suspenso para mim. Permanece suspenso até meu regresso. Agora, lentamente,

começa a mover-se outra vez. (trad. nossa)

Nesta segunda parte, Mekas procura realizar suturas entre o desejo de reencontrar

lugares, amigos e familiares e a busca por resgatar um passado interrompido bruscamente

quando teve que fugir do país. Neste caminho, se torna inevitável um processo de

estranhamento entre os referenciais que Mekas possuía de vinte e cinco anos atrás e os que

hoje o confrontavam, enquanto uma constatação da passagem do tempo. É o que ocorre

quando diante de imagens que revelam a cidade de Semeniskiai, Mekas comenta logo no

início da segunda parte do filme que:

A medida que íamos nos aproximando mais e mais dos lugares que tão bem

conhecíamos, de repente, frente a nós, vimos um bosque. Não reconheci os lugares.

Quando partimos não havia árvores. Plantamos pequenos lentiscos por todas as

partes, sim, e agora os pequenos lentiscos haviam crescido, convertendo-se em

enormes árvores. (trad. nossa)

Ou quando comenta sobre a sua mãe:

Mamãe se queixa de que lhe falha a memória. Não pode encontrar uma colher. Tem

dez, mas esta manhã é incapaz de encontrar nenhuma. “O único que tem que saber

sobre a velhice” disse, “é que não podes encontrar tuas colheres quando envelhece”.

Mekas saia assim do plano das evocações a sua terra natal e da sua família que

caracterizaram os seus anos prévios de exílio na Alemanha e Estados Unidos, para ingressar

no campo das constatações. As suas reflexões assumem a um contexto que não se revela mais

o mesmo desde que foi embora. Neste retorno a Lituânia, existe em Mekas um sentimento

que se mescla entre constatar a passagem do tempo, revelar estas lacunas deixadas por ter

ficado tanto tempo fora de casa e procurar resgatar momentos da sua juventude. Na mesma

medida em que Reminiscences... mostra situações como a família Mekas cantando e

dançando antigas canções lituanas em frente a casa ou quando decide refazer um ritual

familiar de medir as estaturas dos integrantes da família, Mekas também constata de que

forma a passagem do tempo afetou a sua relação com as pessoas que fizeram parte da sua

juventude.

Em dois momentos em especial, o exílio de Mekas nos Estados Unidos emergem

justamente dos seus amigos de juventude. Uma situação ocorre na casa do seu amigo Kostas,

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quando para passar o tempo, ele e seu amigo decidiram pegar alguns instrumentos com os

quais trabalhavam no campo. Ao pegar um tipo de arado que já não utilizavam mais no

campo e decidirem reproduzir sobre a grama o que faziam na juventude, o seu amigo Kostas

comenta ““Agora grava isto para que vejam os americanos quão miseravelmente vivemos”. E

claro, pensou que isto tinha muita graça” (trad. do autor). Este comentário de Mekas exposto

na última frase, como reação ao comentário de Kostas, não somente revela alguém que

conhece e viveu nos dois lados (EUA e URSS), mas também de alguém que ao viver nos

subúrbios de Nova York, possui conhecimento de causa para afirmar que os Estados Unidos

não se resumem ao american way of life. As imagens iniciais da primeira parte de

Reminiscences... comprovam isto.

Esta mesma menção aos Estados Unidos ocorre na sequência em que Mekas, ao

comentar que dormiu na casa da sua amiga Petras, relata que “pela manhã, Petras voltou a

levar o feno ao celeiro, estava meio que se escondendo. Disse: “Não conte na América que

dormimos sobre o feno”. Pareceu-lhe muito gracioso” (trad. do autor). Em outro comentário

muito sutil nesta frase final, Mekas evidencia a projeção de Petras sobre um mundo que ela

imaginava ser muito diferente nos EUA em relação ao que vivia na república soviética.

Enquanto Kostas pedia para Mekas denunciar a situação de vida na Lituânia soviética,

Petras pedia para isto ser omitido. Em ambos pedidos, a presença de Mekas na sua terra natal

incitava nos seus amigos as diferenças entre o que era viver na União Soviética e o que

poderia ser a vida nos Estados Unidos. Como um lituano exilado que vive na América e

estava de passagem, Mekas evidencia um processo de distanciamento, é visto como alguém

que já não pertence mais a este lugar.

Em situações como estas, se evidencia as rasgaduras que o contexto sócio histórico

operou na trajetória de Mekas. Reminiscences... é um filme que revela estas fraturas de um

exilado em busca do que restou do lugar e das pessoas que marcaram a sua juventude. Frente

a estas mudanças construídas nos seus vinte e cinco anos de ausência, é o seu trabalho de

rememoração que procura prevalecer neste filme, ao procurar manter uma busca incessante

por não esquecer as suas vivências no período anterior ao exílio. Mekas afirma no filme, com

o uso da voz em off:

Todos havíamos ido ao mesmo colégio. Invernos longos, profundos e frios nos

quais atravessávamos os campos, os rios gelados, os bosques. Caminhávamos até o

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colégio com nossos narizes congelados, nossas caras ardendo no gélido vento e a

neve. Mas aqueles foram dias belíssimos! São invernos que nunca esquecerei.

Onde estão agora, meus velhos amigos do colégio? Quantos de vocês seguem

vivos? Por onde estão espalhados? Pelos camposantos, pelas salas de tortura, pelas

prisões, pelos campos de trabalhos forçados da civilização ocidental. Mas vejo

vossas caras tal e como eram antes. Na minha memória nunca mudaram.

Permanecem jovens, sou eu quem está envelhecendo. (trad. nossa)

Se na primeira e segunda parte do filme, Mekas revela as consequências que esta

rasgadura operou na sua vida e no seu entorno, ao ter que fugir de casa para não ser pego

pelos alemães nazistas, a terceira parte procura confrontar diretamente esta rasgadura. Mekas

e o seu irmão Adolfas decidem regressar justamente aos campos de concentração onde

estiveram durante a Segunda Guerra Mundial. Ambos vão a Elmshorn, na Alemanha, onde

encontram os lugares onde estiveram presos. Logo na introdução da terceira parte, Mekas

mostra o seu irmão em meio a grama, rodeado de árvores, que naquele momento do registro

não remetiam aos campos de concentração. Mekas comenta com a voz em off:

Adolfas está deitado exatamente no lugar onde costumavam estar nossas camas no

campo de trabalhos forçados. Quando perguntamos para a gente, ninguém lembrava

que ali houvesse tido um campo de trabalhos forçados. Somente a grama o recorda.

(trad. nossa)

O filme mostra na sequência a Gebruder Neunert, uma das fábricas onde trabalharam

em conjunto com prisioneiros de guerra franceses, russos e italianos. Mekas revela nas

imagens que a fábrica segue estando em funcionamento, até mostrar a um dos capatazes que

segue trabalhando ali e que reconheceu a Adolfas. Chama a atenção nas reflexões de Mekas

nesta sequência, o fato dele não assumir um tom que enfatize um ajuste de contas, ou que

revelasse ressentimentos ou atitudes mais emocionais diante deste reencontro, frente a um

local onde lhe “batiam por trabalhar lento e por responder”, como ele próprio afirma. Nesta

sequência, Mekas mostra inclusive ao seu irmão falando com o capataz, comentando com a

voz em off que “falamos de muitas coisas. Era um capataz jovem e bom”.

Num lugar onde não se guardavam rastros evidentes do que foram os campos de

concentração, coube a memória de Mekas reconstruir estes rastros, mostrar que num lugar

onde naquele momento se encontravam pessoas livres e assalariadas trabalhando, um dia foi

um lugar de trabalhos forçados. Mesmo sem pretender assumir um caráter de denúncia,

Mekas evidenciava como a passagem do tempo pode apagar não somente a História, mas a

memória de lugares que fizeram parte de um contexto de guerra.

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Ao final desta sequência, Mekas mostra imagens de crianças que estão em frente a

fábrica e que procuram interagir com o registro da câmera. Estas imagens acabam

estabelecendo uma relação de contraste com o que Mekas reflete através do uso da voz em

off.

Fora (da fábrica), enquanto meu irmão olhava, recordava e rememorava, havia

crianças ao seu redor. Pareceu-lhe muito estranho toda esta gente estranha que

vinha a ver isto, de pé, observando. Pareceu-lhe realmente muito estranho.

Auslander.

Oh, sim! Corram, crianças, corram! Eu também sai correndo daqui uma vez, mas

corria pela minha vida. Espero que nunca tenham que correr por vossas vidas.

Corram, crianças, corram! (trad. nossa)

Reminiscences... é um filme que evidencia o quanto as rasgaduras operadas pelo

contexto histórico ainda eram determinantes no trabalho de rememoração de Mekas sobre a

sua trajetória. Mesmo vinte e sete anos após haver deixado o seu país e mais de vinte anos

vivendo nos Estados Unidos quando realizou este filme, as reflexões do realizador lituano

ainda revelam uma resistência em resignar-se a sua condição de exilado.

5. Considerações finais

Mais que ser uma literatura menor, a escrita em formato diário proporciona a

possibilidade para se refletir sobre questões tanto de ordem narrativa (entender o eu como um

outro), passando por questões históricas (ao trazer a possibilidade de embalsamar o tempo),

assim como trazer a possibilidade em construir um campo memorialístico (criando assim a

um lugar de memória). É dentro deste contexto mais amplo que a obra diarista de Jonas

Mekas (tanto no âmbito da literatura como do cinema), se propõe a potencializar o diário não

somente como simples anotações confidenciais, mas como uma busca poética que se afirma

no seu desejo em realizar um trabalho de rememoração.

Mekas é um autor que encontrou na escrita do seu diário de exílio uma possibilidade

real para refletir sobre a sua própria condição como prisioneiro de guerra e como exilado

político no período pós-guerra. Seus textos deste período podem ser considerados hoje um

importante referente para se conhecer tanto a memória de um prisioneiro na Segunda Guerra

Mundial, como também a descobrir uma construção artística que nos proporciona um outro

olhar sobre a guerra.

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Mas se já não bastasse a relevância desta obra literária, Mekas conseguiu ir mais a

fundo, ao encontrar no meio audiovisual a possibilidade em poder se aprofundar em certos

entendimentos sobre a construção diarista. Através dos registros fílmicos dos diários em filme

e do trabalho de rememoração buscados na elaboração dos seus filmes-diário, Mekas foi um

dos precursores no cinema de uma escrita audiovisual pensada e elaborada em primeira

pessoa. Se hoje o documentário contemporâneo está muito focado em obras onde a

subjetividade do realizador se encontra evidenciada dentro do próprio relato, isto em parte se

deve a filmes como Reminiscences of a Journey to Lithuania e a cineastas como Mekas, que

mostraram como a memória pessoal também pode se afirmar como um testemunho histórico.

O que torna filmes como Reminiscences... tão vigentes hoje para se pensar a

construção do ato de rememoração é a possibilidade para se entender as fissuras e as lacunas

que a passagem do tempo operam sobre a trajetória do seu realizador. Este filme-diário revela

o quanto a memória não é algo estanque, mas um fluxo de recordações, agenciamentos e

esquecimentos que tornam o seu reencontro com o passado em algo tão instigante e

conflitivo.

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