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Estados Unidos Guerra de Secessão

Date post: 03-Oct-2015
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ LARA TALINE DOS SANTOS MEN OF COLOR, TO ARMS!: AS TROPAS NEGRAS NA GUERRA CIVIL AMERICANA (1861-1865) CURITIBA 2010
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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN

    LARA TALINE DOS SANTOS

    MEN OF COLOR, TO ARMS!: AS TROPAS NEGRAS NA GUERRA CIVIL

    AMERICANA (1861-1865)

    CURITIBA

    2010

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN

    LARA TALINE DOS SANTOS

    MEN OF COLOR, TO ARMS!: AS TROPAS NEGRAS NA GUERRA CIVIL

    AMERICANA (1861-1865)

    Monografia apresentada como requisito parcial para concluso do Curso de Histria Licenciatura e Bacharelado, do Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paran.

    Orientadora: Martha Daisson Hameister

    CURITIBA

    2010

  • AGRADECIMENTO

    Agradeo minha amada famlia, sobretudo a minha me, pela confiana em mim

    depositada;

    Ao namorado e fiel amigo Cristiano, por sempre estar ao meu lado;

    professora Martha pela imensa dedicao e ateno;

    A todos os colegas que me acolheram, pois eu consigo com uma pequena ajuda

    dos meus amigos;

    Eloisa e Fabiano pelas noites de rock nroll;

    Amanda e Fernanda; irms do corao;

    Ao amigo Filipe, sem sua amizade e musicalidade este projeto nunca se tornaria

    realidade.

  • RESUMO

    Aps 145 anos de seu trmino, a guerra civil norte-americana - ou Guerra

    de Secesso (1861-1865) - continua sendo tema amplamente discutido entre os

    pesquisadores - em sua maioria norte-americanos - que prope-se a estudar este

    conturbado perodo da histria dos Estados Unidos. O conflito dividiu a nao que

    havia sido formada pela Declarao de Independncia (1776) e envolveu os

    Estados da Unio do Norte contra os Estados Confederados do Sul, que

    almejavam a separao da federao.

    A ecloso deste embate marcou profundamente a jovem nao americana

    e ainda tema delicado entre os historiadores, visto sua dimenso poltica, social

    e econmica.

    A partir disso, tem-se como objetivo geral caracterizar a formao dessas

    tropas dentro do espao da Unio, buscando compreender seus aspectos bsicos

    relativos institucionalizao, treinamento, recebimento de soldo e armamento.

    Palavras-chave: Estados Unidos, guerra civil, tropas negras

  • NDICE

    INTRODUO ........................................................................................................6

    1 A GUERRA DE SECESSO NORTE-AMERICANA: O EMBATE E NTRE OS

    ESTADOS CONFEDERADOS DO SUL E A UNIO.............. ..............................11

    2 RALLY MEN OF COLOR, AT ONCE FOR YOUR COUNTRY!: O S

    SOLDADOS NEGROS NA GUERRA DE SECESSO .............. ..........................26

    Os soldados negros no norte ................................................................................27

    Os soldados negros no sul ....................................................................................28

    As consequncias da institucionalizao: de acordo com Confiscation Act e o

    Militia Act ...............................................................................................................33

    Quem eram e o que queriam os soldados negros da Unio e da Confederao?35

    3 AS TROPAS NEGRAS EM COMBATE: AS CORRESPONDNCIAS DOS

    SOLDADOS E SEUS OFICIAIS ........................... ................................................41

    A guerra e a palavra escrita ..................................................................................41

    Os soldados negros e a palavra escrita ................................................................42

    Os oficiais brancos e as palavras escritas pelos e sobre os soldados negros ......47

    Entre o Norte e o Sul, os negros preferem a liberdade .........................................54

    CONSIDERAES FINAIS ............................... ...................................................57

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS......................... ............................................60

    ANEXOS ...............................................................................................................62

  • 6

    INTRODUO

    A guerra civil norte-americana, ou Guerra de Secesso, deflagrou-se nos

    Estados Unidos da Amrica entre os anos de 1861 e 1865, e envolveu estados na

    poro Norte contra aqueles situados mais ao Sul do pas. A ecloso deste

    embate transformou a ameaa separatista em realidade, inclusive com a

    possibilidade de consolidao do desmembramento do sul em um novo pas; Os

    Estados Confederados do Sul. Essa organizao manteve-se apenas entre os

    anos 1861 a 1865, entretanto, seu impacto poltico e econmico para toda a

    federao foi incalculvel1.

    Este conflito foi fruto de profundas divergncias polticas, sociais e

    econmicas - que somaram-se a uma a questo central, um divisor de guas: a

    escravido. A antiga instituio escravista, herana do perodo colonial, constituiu

    o ponto de divergncia mais profundo entre Norte e Sul dos Estados Unidos,

    contribuindo para que outros aspectos de desacordo emergissem e acabassem

    por encaminhar o jovem pas a secesso.

    Este debate acerca da importncia da escravido para o desencadeamento

    dos conflitos da secesso especialmente problemtico para os historiadores,

    sobretudo, aqueles de origem norte-americana. A relao entre a escravido e a

    Guerra Civil tem sido abordada com cuidado, uma vez que consiste em um tema

    delicado para a historiografia estadunidense.

    A Guerra de Secesso foi o conflito mais brutal de toda a Amrica. Milhares

    de pessoas perderam a vida, sendo a maioria soldados das foras armadas norte-

    americanas. Inicialmente, esses soldados eram recrutas voluntrios, porm esse

    tipo de alistamento angariava poucos homens para as fileiras dos exrcitos do

    norte e sul. Na medida em que o enfretamento entre a Unio e os confederados

    estendeu-se, o nmero de soldados requeridos tornou-se maior, enquanto que o

    nmero de voluntrios sentia visvel decrscimo. Assim, o alistamento obrigatrio

    foi institudo. Mesmo com essa medida, um nmero maior de soldados ainda era

    necessrio. 2

    1 IZECKSOHN, Vitor. Escravido, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano antes da Secesso. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Ps-graduao em Histria Social da UFRJ, n 6, Janeiro-Junho de 2003, Volume 04. p. 47. 2 TRUDEAU, Noah Andr. Op. Cit. pp. 03-20.

  • 7

    Foi neste contexto que se deu, em 22 de setembro de 1862, a assinatura

    da Proclamao de Emancipao pelo ento presidente Abraham Lincoln. Esse

    documento determinava a libertao de todos os escravos oriundos dos estados

    confederados, aprovando seu ingresso nas fileiras do exrcito da Unio a partir de

    01 de janeiro do ano seguinte. Posteriormente, o alistamento de afro-americanos

    no Norte tornou-se obrigatrio. Assim, grande nmero de homens de cor

    tornaram-se soldados da Unio, sendo parte significativa deles ex-escravos

    oriundos do sul confederado3.

    Os estados sulistas, por sua vez, tambm necessitavam contingente

    humano para incorporar ao exrcito que partia para a luta contra Unio.

    Primeiramente os negros no eram vistos como uma opo vivel, porm o

    nmero de homens brancos em idade de servio militar encontrava-se bem

    abaixo do que era requerido pelo exrcito. Desta forma, mesmo ameaando sua

    lgica escravista, os estados do Sul tambm passaram ao recrutamento de sua

    populao negra livre e escrava.

    A partir disso, examinar-se- o surgimento e desenvolvimento dos

    regimentos de negros na Guerra de Secesso, procurando identificar a forma com

    que se deu o ingresso dos homens de cor na instituio militar; seus padres de

    recrutamento e constituio formal. Buscar-se-, no menos, delimitar as

    diferenas e aproximaes existentes entre os regimentos de brancos e negros

    dentro no mbito dos corpos militares, destacando a interao social entre os

    soldados de cor e seus comandantes brancos.

    Assim, objetiva-se uma anlise do processo de desenvolvimento das tropas

    compostas por homens de cor nos Estados Unidos, buscando compreender como

    se deu sua institucionalizao. Por fim, se pretende ainda uma anlise da questo

    da liberdade para os negros que engrossavam as fileiras do exrcito tanto da

    Unio, quanto da Confederao.

    A produo historiogrfica atinente ao tema Guerra de Secesso um

    campo pouco explorado por autores brasileiros. Entretanto, notvel o trabalho

    de alguns autores nacionais, como Victor Izecksohn, autor de Escravido,

    federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-

    americano antes da Secesso e Deportao ou Integrao. Os dilemas negros

    3 Ibidem, pp. 12-20.

  • 8

    de Lincoln. A historiografia sobre este tpico tem, portanto, predomnio de

    autores norte-americanos e sua vasta literatura atinente ao tema.

    Analisando a produo estadunidense, percebe-se a importncia e

    singularidade do tema da Secesso - tanto para a opinio pblica, quanto para a

    comunidade acadmica tomado como um momento muito delicado na

    constituio da nao norte-americana. Neste contexto, interessante notar que

    grande parte da vasta produo sobre o tema privilegia uma anlise da vitria da

    Unio, sendo escassos os trabalhos que procuram, compreender o porqu da

    derrota sulista.

    A historiografia norte-americana procurou, igualmente, imortalizar a

    imagem de lderes do conflito - como Lincoln e o general Grant - que passaram a

    ser tratados como os grandes heris nacionais. Outra caracterstica desta

    historiografia relativa sua produo, que parte de uma diviso com relao ao

    posicionamento dos autores que se ocupam do tema da guerra civil, uma

    verdadeira disputa entre os historiadores 4.

    As discordncias iniciam-se quanto as prprias origens do conflito, suas

    demandas e seu impacto a longo prazo na constituio da sociedade

    estadunidense.5 Entretanto, para alm dessas questes, uma diviso se faz ainda

    mais evidente. Esta separao que no ser objeto desse trabalho centra-se

    no delicado tema da relao Guerra Civil e abolio. Sobre este tema, a

    historiografia tradicional tenta ocultar o estreito vnculo entre o conflito e a questo

    abolicionista. Por outro lado, uma segunda grande corrente - a que se toma aqui

    como base para esse projeto - assume esse vnculo e trata de desvendar seus

    meandros. Com relao formao das tropas de homens de cor durante os

    embates da Secesso, os poucos autores inseridos nesta corrente privilegiam a

    anlise de alguns tpicos em especial; como a desenvolvimento das tropas,

    aspectos de sua constituio formal e a questes sociais.

    O autor Noah Andre Trudeau, em Like Men of War. Black Troops in the civil

    war (1862-1865), privilegia questes relacionadas concepo dessas tropas,

    analisando aspectos sobre o armamento, fardamento e pagamento de soldo. Sua

    anlise centra-se, no menos, em aspectos relacionados institucionalizao das 4 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edio). Blackwell Publishing, 2005. pp. 09-11. 5 Ibidem, p. 01.

  • 9

    tropas de homens de cor. Notavelmente, esse autor apenas d ao leitor um

    panorama geral da questo social e das discusses a cerca da insero do

    homem negro no exrcito. 6

    Diferentemente, o autor Joseph T. Glatthaar, em Forged in Battle: the civil

    war alliance of black soldiers and white officers, privilegia justamente essas

    questes. Sua anlise, fundamentada na participao dos homens brancos no

    comando de regimentos negros, trata de questes de armamento e treinamento a

    partir de uma perspectiva da interao entre os diferentes grupos sociais no

    mbito das corporaes militares7.

    Notavelmente, tanto Trudeau, quanto Glatthaar tm sua anlise baseada

    do caso da Unio. A questo confederada discutida, porm no aprofundada.

    O autor Steven Hahn, em A nation under our feet. Black political struggles in the

    rural south from slavery to the great migration, vai, por sua vez, centrar sua

    anlise justamente no Sul dos Estados Unidos, analisando a instituio escravista

    confederada e a grande migrao que se deu entre os escravos que, cada vez

    mais, abandonavam o sul em busca de uma vida melhor no norte. 8

    No mbito da questo da escravido na historiografia sobre a secesso,

    interessante a anlise realizada por Eric Hobsbawm, em A era do Capital. O

    autor atenta para o fato de que no necessria apenas uma compreenso da

    escravido como sendo a causa primordial dos embates entre Sul e Norte. Para

    alm dessa questo preciso entender porque a escravido conduziu o pas a

    guerra civil e a secesso, ao invs de encontrar uma soluo que levasse a

    coexistncia9.

    Seguindo esta linha inaugurada por Hobsbawm, so notveis os escritos

    que visam compreender a Guerra Civil a partir de uma perspectiva de anlise do

    avano do capitalismo nos Estados Unidos, procurando, paralelamente, entender

    como, quando e porque a escravido acabou por conduzir a jovem nao a

    secesso. Assim, novos trabalhos privilegiam a o vis da histria social e dos

    6 TRUDEAU, Noah Andre. Op. Cit. pp. XVII-XX. 7 GLATTHAAR, Joseph. Op. Cit. pp. IX-X. 8 HAHN, Steven. A nation under our feet. Black political struggles in the rural south from slavery to the great migration. Belknap Harvard, 2003. pp. 01-10. 9 HOBSBAWM, Eric. Op. Cit. pp. 153-157.

  • 10

    estudos de gnero e afros. 10 Este debate estende-se a vrios tericos e

    pensadores. Neste sentido, salientam-se os trabalhos traduzidos para o

    portugus, de Eric Foner, em sua obra Nada alm da liberdade. A emancipao e

    seu legado 11 e Eugene Genovese, em A economia poltica da escravido12.

    O presente estudo baseou-se, basicamente, nesta ampla bibliografia norte-

    americana, atrelando essas leituras a anlise de fontes primrias. Esta

    documentao, ampla e diferenciada entre si, oriunda dos volumes de

    documentos e ensaios do projeto Freedmen and Southern Society 13, da

    Universidade de Maryland - EUA. Este grande nmero de documentos encontra-

    se transcrito e disponvel no acervo on-line do projeto.

    10 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edio). Blackwell Publishing, 2005. pp. 02-13. 11 FONER, Eric. Nada alm da liberdade. A emancipao e seu legado. Trad. Luiz Paulo Rouanet. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. 12 GENOVESE, Eugene. A Economia Poltica da Escravido. RJ: Pallas, 1976. 13 O projeto iniciativa do departamento de histria da Universidade de Maryland, tendo como diretora Leslie S. Rowland e contando com um grande nmero de colaboradores. Seu acervo on-line encontra-se disponvel em: http://www.history.umd.edu/Freedmen/sampdocs.htm

  • 11

    A GUERRA DE SECESSO NORTE-AMERICANA: O EMBATE ENTR E OS

    ESTADOS CONFEDERADOS DO SUL E A UNIO

    Os americanos haviam se transformado em dois povos, um povo para a liberdade e um para a escravido. Entre os dois o conflito era inevitvel. Horace Greely. 14

    O sculo XIX foi palco do conflito mais violento do territrio americano. A

    Guerra Civil norte-americana, tambm conhecida na historiografia como Guerra

    de Secesso, rendeu os combates em que mais se mataram americanos no solo

    de seu prprio continente. O conflito deflagrou-se nos Estados Unidos da Amrica

    envolvendo os estados do sul contra os estados do norte do pas.

    A ecloso deste embate, visando o governo do Estado nacional,

    transformou a ameaa separatista em realidade, inclusive com a possibilidade de

    consolidao do desmembramento do Sul em um novo pas: Os Estados

    Confederados do Sul. Essa organizao manteve-se apenas entre os anos 1861

    a 1865, entretanto, seu impacto poltico e econmico para toda a federao foi

    incalculvel, dividindo a nao criada pela Declarao de Independncia e pela

    Constituio nacional. 15

    Entre a 1776, data da Declarao de Independncia, e uma dcada antes

    da ecloso da guerra, a grande maioria dos estados dos Estados Unidos da

    Amrica vivenciaram um perodo de rpidas e profundas mudanas no mbito

    econmico e poltico. Essas transformaes, advindas de processos de

    modernizao e industrializao, vinham aliadas a um singular aumento no

    nmero de habitantes do pas, contando com grande volume de imigraes,

    atreladas a expanso territorial e a urbanizao. Os avanos eram notveis,

    porm, as mudanas levaram a conflitos com a ala mais tradicional do governo

    norte-americano. Este grupo, quase sempre vinculado aos grandes plantadores

    14 Citado em FORNER, Free Soil. Free Labor, Free Men: The ideology of the Republican Party before the Civil War. Oxford University Press: Oxford, New York, 1995. p. 310. 15 IZECKSOHN, Vitor. Escravido, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano antes da Secesso. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Ps-graduao em Histria Social da UFRJ, n 6, Janeiro-Junho de 2003, Volume 04. p. 47.

  • 12

    escravistas, buscava conter as mudanas a partir da promulgao de leis de

    carter restritivo e de medidas centralizadoras. 16

    Apesar dos embates j se darem a tempo considervel no campo poltico e

    diplomtico - uma vez que as discusses acerca da expanso territorial e da

    escravido j vinham agravando-se desde 1848 17 - os conflitos blicos iniciaram-

    se apenas em 1861, com a exigncia dos sulistas de que as tropas da Unio

    abandonassem o estratgico Forte Sumter, localizado na Carolina do Sul.

    Notavelmente, este foi o primeiro estado a ter sua separao reconhecida e

    oficializada em conveno.

    Em 1961 os confederados tinham controle de todo o territrio ao Sul dos

    Estados Unidos, excetuando dois fortes que estavam sob controle federal. Um

    deles, o Forte Sumter, localizava-se em uma ilha no porto de Charleston e

    encontrava-se isolado, sem acesso aos mantimentos necessrios para os

    homens que ali estavam. Diante desta situao, o presidente da confederao

    Jefferson Davis proclamou que as foras nortistas estavam proibidas de atender

    ao forte, sob ameaa de represlia armada. Entretanto, as tropas da Unio

    avanaram e em 12 de abril de 1861, s 4:30 da manh, o General Beauregard

    comandou as foras separatistas em Charleston e iniciou o combate que daria

    incio a Guerra Civil norte-americana. 18

    At ento o Norte ainda relutava em utilizar foras armadas para intervir na

    situao do Sul, entretanto, o episdio do Forte Sumter foi o estopim para a ao

    nortista. A operao em Sumter gerou uma onda de verdadeira indignao

    patritica 19. Assim, entre os anos de 1860 e 1861, vrios processos similares

    levados a cabo, com o Sul aderindo quase em sua totalidade causa da

    secesso. 20

    Entretanto, importante salientar que nem todos os estados do Sul

    aderiram causa separatista. Delaware, Maryland, Kentucky e Missouri no

    16 Ibidem, pp. 48-50. 17 ALLEN, H.C. Histria dos Estados Unidos da Amrica. Traduo de Ray Jungman. Rio de Janeiro: Forense, 1968. 18 Ibidem, p. 137. 19 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edio). Blackwell Publishing, 2005. p. 10. 20 IZECKSOHN, Vitor. Deportao ou Integrao. Os dilemas negros de Lincoln. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Ps-graduao em Histria Social da UFRJ, n 20, Janeiro-Junho de 2010, Volume 11. p. 64.

  • 13

    saram da Unio, provavelmente por medo de tornarem-se palco do conflito, visto

    sua condio fronteiria. Segundo Izechsohn, esses estados, conhecidos como

    border states, nesse momento servindo como estados tampes, tiveram papel

    de destaque ao manter a guerra, durante certo tempo, restrita a territrios sulistas.

    A escravido nessas regies no foi extinta, e acabou por tornar-se um grande

    empecilho a abolio no pas. Isso no significa que essa questo fosse

    prioridade, pelo contrrio, as discusses sobre igualdade e liberdade ainda

    estavam iniciando-se nos Estados Unidos na dcada de 1860. 21

    De fato Sul e Norte no eram, em todo, divergentes. Inicialmente, as duas

    regies compartilhavam padres populacionais, representao no governo central

    e volume de exportaes, vivenciando um processo de desenvolvimento

    econmico. notvel que por, mais de uma vez, Sul e Norte aliaram-se; como foi

    o caso da guerra empreendida contra o Mxico (1846-1848) e das invases a

    Oeste (iniciada por volta da dcada de 1790). Neste contexto, o sul ditava os

    rumos de um processo de expanso rumo ao Pacfico que iniciou-se em meados

    de 1814 e perdurou at a Guerra Civil.

    A marcha para o Oeste como conhecido este processo de expanso

    s foi possvel devido ao bloqueio ingls as pretenses norte-americanas com

    relao ao resto do continente. A marinha inglesa ainda era forte e impossibilitava

    os Estados Unidos de dirigirem-se a outras regies da Amrica. diante desta

    situao que nasce uma causa americana unindo estados do Norte e Sul em

    torno da Doutrina Monroe22, que defendia a no criao de novas colnias no

    Novo Continente, a no interveno europia nos assuntos americanos e

    demarcava uma posio de neutralidade dos Estados Unidos com relao a

    conflitos ocorridos na Europa. 23

    A marcha para o Oeste significou tambm uma expanso em terras que

    eram habitadas por indgenas, fato que ocasionou conflitos. Entretanto,

    geralmente as guerras geram unidade. Os inimigos frente a metrpole inglesa

    e os indgenas que resistiam eram mais fortes do que as diferenas internas

    entre nortistas e sulistas.

    21 Ibidem, p. 64. 22 Sobre a Doutrina Monroe, ver PERKINS, Dexter. A History of the Monroe Doctrine. 23 ALLEN, H.C. Op. Cit. pp. 111-121.

  • 14

    Tanto Sul, quanto Norte compartilhavam uma mesma concepo para as

    polticas mais amplas, voltada ao expansionismo e afirmao da superioridade

    branca. Americanos de ambas as regies do pas sonhavam com os Estados

    Unidos como potncia dominante no esquecido Hemisfrio Ocidental. 24 Estas

    idias estavam diretamente ligadas doutrina do Destino Manifesto25, teoria de

    origem calvinista que defendia a crena dos Estados Unidos como nao eleita

    por Deus. 26

    No mbito econmico, as duas localidades mantinham relaes comerciais.

    Porm, progressivamente, a diferenciao econmica entre as duas regies foi

    aumentando, sendo que interesses regionais passaram a desestabilizar a

    integridade nacional norte-americana 27. Neste contexto, o prprio conflito com o

    Mxico, que antes unira as duas regies, agora era motivo de desacordo, uma

    vez que esse embate passava a ser criticado frente a um temor de que o

    processo expansionista contribusse com a manuteno de uma poltica

    escravocrata, aumentando, consequentemente, o poder poltico e influncia

    sulista.

    O espao mexicano foi, notavelmente, ocupado pelos grandes proprietrios

    sulistas, que visavam expandir sua rea de produo. Entretanto, as autoridades

    nortistas no gostaram da idia da expanso sulista-escravocrata, apesar de no

    terem tomado medidas efetivas contra a ocupao. provvel que o norte no

    tenha adotado postura mais ofensiva contra a ao no Mxico por no querer ou

    talvez por no poder desenvolver um projeto diferente do projeto sulista na regio.

    Porm, preciso salientar que este episdio demonstrou as grandes divergncias

    entre os dois blocos polticos, sociais e econmicos dentro da federao. 28

    Definitivamente, Sul e Norte possuam aproximaes e relaes. Porm, as

    diferenas entre as duas regies intensificavam-se progressivamente. As

    afinidades existentes foram suplantas pelas profundas divergncias que

    24 Ibidem, p. 112. 25 Sobre o Destino Manifesto, ver WEINBERG, Manifest Destiny: A Study of Nationalist Expansionism in American History. 26 IZECKSOHN, Vitor. Escravido, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano antes da Secesso. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Ps-graduao em Histria Social da UFRJ, n 6, Janeiro-Junho de 2003, Volume 04. pp. 48-64. 27 Ibidem, pp. 47-54. 28 IZECKSOHN, Vitor. Deportao ou Integrao. Os dilemas negros de Lincoln. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Ps-graduao em Histria Social da UFRJ, n 20, Janeiro-Junho de 2010, Volume 11. p. 61.

  • 15

    emergiam. Uma vez que os inimigos externos haviam sido superados as tenses

    internas voltaram a aflorar novamente.

    O Norte vivenciava um perodo de grande desenvolvimento econmico a

    partir de um processo industrializao, com preponderncia das indstrias naval e

    txtil que orientavam sua produo de acordo com o capitalismo mundial. Era um

    perodo de rpida diversificao da economia, com a regio atrelando-se ao

    capitalismo comercial mundial a partir de uma verdadeira revoluo de mercado

    que incorporou novas atividades e trouxe um grande volume de riquezas para o

    Norte. Indstrias nas mais diversas reas, como ferro e ao, botas e sapatos,

    papel, comestveis empacotados, armas de fogo, maquinrio agrrio, moblia e

    ferramentas, desenvolveram-se rapidamente. O volume de emprstimos

    concedidos e seguros vendidos pelos bancos teve aumento exponencial. As

    estradas de ferro e a produo de barcos a vapor movimentou a indstria dos

    transportes. Servios e bens passaram a movimentar a quantia de 2 a 3 bilhes

    de dlares anuais e o volume de exportaes atingiu o valor de 400 milhes de

    dlares.29

    No mbito social, essa regio, mais populosa, tinha alto nmero de

    alfabetizados e um considervel nmero de imigrantes estrangeiros30. Alm disso,

    o contexto de desenvolvimento industrial propiciou o surgimento de uma nova

    grande classe; a classe dos trabalhadores assalariados.31 Com relao

    populao escrava, notvel que na maior parte dos estados do Norte, o nmero

    de negros em proporo ao nmero de habitantes era pequeno e pouco

    significante economicamente. 32 Enquanto o Sul abrigava, na dcada de 1860,

    quase 4 milhes de escravos33, nos estados do Norte este nmero muito inferior.

    New Jersey era o estado nortista com o maior percentual de escravos com

    relao a populao total, possuindo 3,76% da populao escrava. Enquanto

    29 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edio). Blackwell Publishing, 2005. p. 53. 30 KARNAL, PURDY, FERNANDES, MORAIS. Leandro, Sean, Luiz Estevam, Marcus Vincius de. Os EUA no sculo XIX. Histria dos Estados Unidos, das origens ao sculo XXI. So Paulo: Contexto, 2 edio, 2007. pp. 129-136. 31 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edio). Blackwell Publishing, 2005. p. 03. 32 Ibidem, p. 02. 33 ALLEN, H.C. Op. Cit. p. 129.

  • 16

    isso, estados como New Hampshire e Massachussets mantinham a porcentagem

    de escravos abaixo da margem de 1% da populao. 34

    Nos estados do Sul a situao era diferente. Os proprietrios sulistas

    encontravam dificuldade em utilizar tecnologias recentes na sua produo e a

    inda estavam profundamente ligados a uma idia pastoril, que defende que o

    trabalho na terra aquele que detm maior valor para o homem35. Assim, a

    agricultura ainda era a principal atividade regional, estando baseada no trabalho

    escravo africano. A produo agrria sulista tambm foi afetada pela mesma

    revoluo de mercado identificada no Norte. Entretanto, nos estados do Sul ela

    teve efeito de expanso e intensificao da agricultura comercial, bem como

    colaborou para arraigar a idia da necessidade de uma expanso das grandes

    plantations para o Oeste, suplantando as pequenas propriedades destinadas

    subsistncia. Neste sentido, importante atentar para o fato de que os grandes

    proprietrios das plantations no constituam maioria entre a populao, pelo

    contrrio. Porm, eram eles os detentores do poder econmico e do prestgio

    social, comandando as decises polticas. 36

    Em suma, os diferentes projetos de colonizao a quase inexistncia de

    projetos e o mosaico de formas diferenciadas de conceber-se americano, muito

    calcado nos tipos humanos, polticos e religiosos diferenciados que j existiam

    desde a colnia e que continuaram existindo aps a independncia - evidencia

    essas diferenas internas recobertas por uma capa de unidade que era a

    federao dos estados. Esses eram muito diferentes entre si, porm mantinham-

    se unidos porque gozavam de uma relativamente forte autonomia dentro da

    federao. Ou seja, s podiam ser um s, porque o tipo de organizao adotada

    permitia que essas diferenas existissem, j que o pressuposto dessa

    organizao era a autonomia dos estados. Isso tambm evidencia que no

    momento da guerra civil a questo da escravido era to forte que o princpio da

    autonomia dos estados da federao foi breca quando o Norte interfere no

    modelo de organizao poltica, social e econmica no Sul.

    34 Censo disponvel em: http://www.slavenorth.com/ Acesso em: 25 de novembro de 2010. 35 IZECKSOHN, Vitor. Op. Cit. pp. 47-51. 36 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edio). Blackwell Publishing, 2005. pp. 03-05.

  • 17

    Para alm dessas questes, notvel que o Sul ainda mantinha fortes

    laos com a antiga metrpole inglesa. Laos, sobretudo econmicos, que a

    Revoluo Americana de 1776 no foi capaz de cortar imediatamente. A

    produo local mantinha-se dependente do mercado britnico, sempre

    procurando expandir os domnios de sua monocultura algodoeira e a rea de

    abrangncia da comercializao de sua produo agrcola para territrios

    situados mais ao Norte, o que de certo modo, representa complementaridade das

    produes de ambos os territrios. Assim, a diversificao da economia no era

    uma realidade possvel no Sul, enquanto que no Norte ela j era acentuada.

    No mbito poltico tambm havia diferenciao entre o Norte e o Sul dos

    Estados Unidos. No congresso, o Sul procurava equilibrar as diferenas que

    existiam nos planos econmicos e sociais, defendendo e impondo suas

    concepes escravistas e agrrias de forma radical.

    O Sul escravista ao mesmo tempo controlava o Estado americano

    e tornava-se o mais srio adversrio da sua expanso nos anos que

    antecederam a Guerra 37.

    Desta forma, as divergncias e debates s foram intensificados com o

    desenrolar do conflito blico. As vises relativas ao papel desenvolvido pelo

    governo central, a forma com que estava dividido o poder federal e o prprio

    exerccio da democracia, foram se distanciando e tornando-se contrrias. Assim,

    o separatismo chegava poltica e passava a ameaar a unidade da federao. 38

    Entretanto, necessrio atentar para o fato de que o ensejo da guerra ia

    muito alm das causas polticas. O objetivo do conflito no era apenas a

    preservao da Unio, pelo contrrio39. Os motivos da secesso possuam razes

    muito mais profundas, que remetiam ao perodo colonial. As diferenas entre

    Norte e Sul se davam no plano dos projetos polticos de cada regio, em muito

    devido ao da administrao inglesa. A coroa britnica ausentou-se no incio

    da colonizao, moldando uma perspectiva de auto-determinao em seus

    colonos. Disso decorre no ser nada surpreendente que uma grande rea tenha

    37 IZECKSOHN, Vitor. Op. Cit. p. 58. 38 Ibidem, pp. 47-63. 39 ALLEN, H.C. p.129.

  • 18

    um projeto poltico, econmico e social muito diferente das linhas gerais do

    projeto de seus vizinhos.

    A essas diferenas na composio econmica e poltica das duas regies,

    somou-se a questo da escravido. Aps a independncia, em 1776, procurou-se

    organizar os Estados em uma Unio federalista. Entretanto, essa organizao

    deixou de lado demandas cruciais na formao da nao, entre elas a da

    escravido.

    Primeiramente, a prpria igualdade era limitada, estando negros e ndios

    prontamente excludos, sem direito a nenhuma representao poltica. Os negros,

    particularmente, eram vistos como passageiros em solo americano, sendo a

    escravido uma instituio a ser superada pelas foras do desenvolvimento

    econmico e poltico. Assim, a igualdade encontrava-se restrita aos homens

    brancos por (...) disporem de prerrogativas extraordinrias, ausente da vida das

    demais naes 40. Essas concepes no sofreram modificaes significativas,

    mesmo no sculo XIX. Assim, estas questes viriam tona mais tarde,

    notavelmente, com o processo de expanso territorial norte-americano, que

    mobilizou tanto os estados do Norte, quanto do Sul dos Estados Unidos. 41

    A expanso para o oeste havia ampliado a prpria escravido - com um

    singular crescimento demogrfico da populao de origem africana concentrada

    no Sul - transformando os Estados Unidos da Amrica em um pas

    essencialmente escravista, processo que havia se iniciado com a lei de proibio

    do trfico negreiro, em 1808, e com o aumento no nmero de escravos no Sul 42.

    A escravido, remanescente do perodo colonial, era defendida pelos grandes

    proprietrios sulistas, que visavam proteger interesses econmicos ligados as

    plantations baseadas no trabalho escravo africano. Esses grandes proprietrios

    ainda contavam com o apoio de produtores menores, em uma aliana que visava

    continuar a subordinar a populao negra.43 Para tanto, os dirigentes do Sul

    utilizavam uma leitura prpria da Constituio e princpios federalistas para

    40 IZECKSOHN, Vitor. Deportao ou Integrao. Os dilemas negros de Lincoln. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Ps-graduao em Histria Social da UFRJ, n 20, Janeiro-Junho de 2010, Volume 11. p. 56. 41 Ibidem, pp. 56-58. 42 Ibidem, p. 58. 43 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edio). Blackwell Publishing, 2005. p. 08.

  • 19

    garantir a manuteno da escravido em seus estados, compreendida como uma

    espcie de mal necessrio a composio da nao norte-americana. Ademais,

    como define Victor Izecksohn:

    O crescimento constante da populao cativa, aliado expanso

    do cultivo algodoeiro, reforou a posio dos setores escravistas que

    paulatinamente assumiram uma atitude agressiva na poltica norte-

    americana, demandando territrios, financiamento e proteo por parte do

    Estado 44.

    A partir disso, a elite escravista do Sul cunhou concepes que versavam

    sobre a legalidade e necessidade de manuteno da ordem escravista, afirmando

    que (...) a escravido garantia a equidade civil dos homens brancos e protegia o

    sistema social do Sul das tendncias radicais do proletariado livre 45. Idias como

    essa, vindas do Sul, alarmaram os nortistas, que surpreenderam-se e

    condenaram as demandas sulistas. Essas entraram em conflito direto com as

    idias abolicionistas que surgiam no Norte, inclusive no mbito do congresso

    nacional, abrindo as portas para uma linha de pensamento seccional que levou a

    guerra civil. Tal demanda abolicionista havia surgido entre os nortistas como

    conseqncia direta do processo de expanso do mercado local, que levou a

    criao de novos padres de humanitarismo e ao esforo abolicionista no Norte. 46

    A partir disso, vlido dizer que a escravido foi fator crucial para a

    ecloso da Guerra Civil, promovendo um combate ideolgico entre as duas

    pores do pas. A partir disso, os prprios termos do debate poltico da dcada

    de 1850 foram reformulados, dividindo ainda mais os Estados Unidos e sendo

    fundamental no prprio processo de formao da nao norte-americana.47

    Entretanto, necessrio relativizar uma imagem abolicionista defendida por

    grande parte da historiografia norte-americana.

    44 Ibidem, p. 58. 45 Ibidem, p. 09. 46 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edio). Blackwell Publishing, 2005. pp. 04-08. 47 IZECHSOHN, Vitor. Escravido, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano antes da Secesso. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Ps-graduao em Histria Social da UFRJ, n 6, Janeiro-Junho de 2003, Volume 04. pp. 47-57.

  • 20

    A Abolio ganhou respeito no Norte apenas quando seus

    oponentes ultrapassados do Sul republicano passaram a tentar silenciar

    os inimigos da escravido. Represlias violentas contra os abolicionistas,

    aliadas ao desdm e desafio aberto dos sulistas, fortaleceu o movimento

    anti-escravido a longo prazo.48

    Grande parte dos republicanos nem mesmo chegou a elaborar uma crtica

    pesada sobre o tema da expanso da escravido. Muitos assumiam posio mais

    moderada, simplesmente preocupados com a expanso da escravido para o

    oeste e seu impacto no grau influncia do Sul junto ao senado. 49

    A chamada Crise do Missouri, de 1819, foi o estopim dos desacordos entre

    Norte e Sul acerca da questo escravista. O estado do Missouri havia solicitado

    incluso como estado escravocrata, tendo apoio irrestrito do Sul, fato que causou

    grande comoo no Norte. Assim, as disputas entre as duas regies iniciavam-se

    no mbito poltico, com o Sul demonstrando que no iria abandonar um projeto de

    expanso da escravido para territrios a Oeste. Os defensores da escravido

    compreendiam a instituio escravista como um benefcio, um alicerce para a

    economia e poltica do Sul. Assim, os representantes sulistas estavam dispostos a

    defender a causa da escravido de maneira radical. Desta forma, a organizao

    partidria norte-americana passou a ser abalada por conflitos de interesses

    regionais, fato que impulsionou um processo de desintegrao da unidade

    nacional. 50

    Diante do impasse criado pela Crise do Missouri os congressistas optaram

    por uma soluo conciliatria. Assim, foi assinado o Compromisso do Missouri,

    que admitiu o estado como escravista e ainda regularizou a situao do estado

    nortista do Maine, que passou a ser considerado livre. A partir disso, buscava-se

    a manuteno de certo equilbrio entre os congressistas do norte e aqueles

    oriundos de estados livres e escravocratas. Este episdio demonstrou que a

    escravido no configurava-se enquanto uma instituio decadente, pelo

    48 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edio). Blackwell Publishing, 2005. p. 04 49 Ibidem, p. 09. 50 IZECKSOHN, Vitor. Escravido, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano antes da Secesso. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Ps-graduao em Histria Social da UFRJ, n 6, Janeiro-Junho de 2003, Volume 04. p.57.

  • 21

    contrrio. A escravido possua fora econmica e poltica, amparada por grande

    parcela da sociedade sulista que defendia sua expanso. Diante desta situao,

    os senadores do Sul uniram-se em prol da defesa da escravido, repudiando

    qualquer pretenso nortista de impor limites a prtica escravista. 51

    A Carolina do Sul tambm foi importante quanto aos debates acerca a

    questo escravista. Aguerrido defensor da escravido, este estado sulista lutava

    pela reabertura do trfico de escravos africano e, portanto, contra as diretrizes de

    poltica internacional do maior parceiro comercial externo do sul algodoeiro, a

    Inglaterra. A elite local defensora arraigada dos princpios federalistas -

    desafiava frequentemente a administrao central, protagonizando a chamada

    Crise de Nulificao, circunstncia na qual recusou-se a pagar impostos ao

    governo federal. Esse episdio demonstrou a fora das elites locais sulistas, que

    se unidas poderiam levar o pas a secesso, como de fato o fizeram. 52

    Por volta d dcada de 1840, vinte anos antes da ecloso da guerra, a

    escravido voltou a ser tema de grandes debates e inflamadas discusses entre

    os estados do Norte e do Sul. Com a anexao de territrios anteriormente

    pertencentes ao Mxico, a expanso tambm tomou lugar nas discusses,

    provocando um realinhamento partidrio53. A ampliao do territrio norte-

    americano era amplamente defendida pelos representantes sulistas no

    congresso, uma vez que representaria a alargamento de sua fronteira agrcola e

    do prprio nmero de escravos necessrios para manter as novas terras

    anexadas produtivas. Em contraponto, a opinio pblica nortista encontrava-se

    profundamente dividida acerca deste tema. A prpria anexao do territrio do

    Texas enquanto estado escravista em 1844 e a guerra empreendida contra os

    mexicanos entre 1846 e 1848 foram amplamente contestadas por grupos que

    temiam uma expanso da instituio escravista - para o resto do pas. 54

    Essas tenses acerca dos temas da escravido e da expanso territorial

    foram exacerbadas no ano de 1846, data em que o pas ficou, pela primeira vez,

    51 Ibidem, p. 57. 52 Ibidem, p. 63. 53 IZECKSOHN, Vitor. Deportao ou Integrao. Os dilemas negros de Lincoln. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Ps-graduao em Histria Social da UFRJ, n 20, Janeiro-Junho de 2010, Volume 11. p. 61. 54 IZECKSOHN, Vitor. Escravido, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano antes da Secesso. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Ps-graduao em Histria Social da UFRJ, n 6, Janeiro-Junho de 2003, Volume 04. p. 64.

  • 22

    beira da secesso. Neste ano, foi promulgada a chamada Emenda Wilmot, na

    qual o deputado democrata oriundo do estado da Pensilvnia David Wilmot

    demandava a abolio da escravido das regies incorporadas nas quais a

    prtica escravista no existia anteriormente, tais como o estado do Missouri. Tal

    resoluo, como era esperada, gerou grande revolta entre os representantes

    sulistas no congresso, o que obrigou os polticos moderados do Norte a

    buscarem, uma vez mais, solues conciliatria e diplomticas, visando a

    manuteno da unidade federal. 55

    Alm disso, a atuao do prprio governo norte-americano acabou por

    agravar as divergncias entre Norte e Sul. A influncia sulista junto ao governo - e

    mesmo junto ao prprio presidente - era grande, o que possibilitava a entrada de

    polticas favorveis a escravido no mbito da administrao central56 . Um bom

    exemplo desta influncia a promulgao da Lei dos Escravos Fugidos em 1850.

    Esta legislao continha uma clara concesso aos apelos sulistas, prevendo o

    direito dos proprietrios de escravos de readquirirem - por meio de agentes

    federais os cativos fugidos e abrigados em estados do Norte. Enquanto isso, os

    negros eram formalmente excludos de qualquer meio de defesa legal. Assim,

    esta nova lei chocou os estados do Norte. Alm de ferir seus princpios de

    autonomia federalista, tal legislao mostrou a fora da bancada sulista e sua

    influncia no governo central, alimentando idias conspiratrias sobre a relao

    dos deputados sulistas e a administrao federal. Esse episdio foi central para a

    criao, no Norte, de concepes radicalmente contrrias aos sulistas, afastando

    ainda mais no plano ideolgico e poltico as duas regies. 57

    Conflitos localizados comeavam a aparecer em diferentes estados, como

    no Kansas, Illinois e outras regies do meio-oeste dos Estados Unidos. Essas

    regies, vivenciavam conflitos internos por fazerem fronteira entre Norte e Sul,

    convivendo com o embate direto entre as duas regies. No Kansas,

    especificamente, esta situao foi agravada por concepes federalistas que

    55 Ibidem, p. 64. 56 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edio). Blackwell Publishing, 2005. p. 09. 57 Ibidem, p.64.

  • 23

    levaram a criao de dois governos na regio, um representando os ideais do

    Norte e outro do Sul. 58

    A situao de descontentamento, sobretudo quanto a questo da

    escravido, era tamanha entre os dirigentes nortistas que iniciou-se uma

    organizao partidria prpria com fins de defender os interesses do Norte junto

    ao governo central e barrar a influncia sulista.

    Este partido expressava uma aliana entre pequenos e mdios

    fazendeiros e grandes industriais e comerciantes. O que mantinha estes grupos unidos era a comum averso ao poder sulista visto como desagregador da nao 59

    Dessa forma, o ano de 1858 marca a fundao do Partido Republicano,

    com um programa de desenvolvimento industrial e social aliado abolio que

    tinha no Sul agrrio e escravista seu entrave. Importante notar que os membros

    deste partido definiam a si mesmos em oposio economia baseada no trabalho

    escravo praticada no Sul, frisando o carter da elite escravocrata dessa regio

    como opressora. Alm dessas questes, o Sul era compreendido como um

    entrave ao desenvolvimento da Unio como um todo. Os problemas sociais

    identificados no Norte eram compreendidos como fruto da poltica escravista do

    Sul, que atrasava a economia norte-americana. 60

    O novo partido no demorou a desbancar a antiga maioria sulista -

    democrata - na bancada nacional, contando com grande apoio da opinio pblica,

    que tendeu a apoiar os republicanos e seu programa firme de oposio a

    escravido e a sua expanso61. Assim,

    os dois principais no mais conseguiam excluir as divergncias

    seccionais do debate parlamentar, dividindo-se em linhas geogrficas

    claramente associadas s formas de trabalho livre ou escrava. 62

    58 IZECKSOHN, Vitor. Escravido, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano antes da Secesso. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Ps-graduao em Histria Social da UFRJ, n 6, Janeiro-Junho de 2003, Volume 04. p. 62. 59 Ibidem, p. 66. 60 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edio). Blackwell Publishing, 2005. p. 09. 61 Ibidem, p. 09. 62 IZECKSOHN, Vitor. Escravido, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano antes da Secesso. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Ps-graduao em Histria Social da UFRJ, n 6, Janeiro-Junho de 2003, Volume 04. p. 62.

  • 24

    Desta forma, a disputa tomava contornos morais, regionalistas e

    econmicos.

    A partir desse momento os embates entre nortistas e sulistas s se

    tornaram ainda mais acirrados, com disputas no legislativo, executivo e judicirio.

    Estando o governo central nas mos dos republicanos, sua poltica foi orientada

    para o fim da escravido. Para tanto, visava-se o enfraquecimento dos

    representante sulistas na bancada federal, fatos que agravavam a difcil

    convivncia entre Norte e Sul. O Norte tornava sua posio cada vez mais radical,

    enquanto o Sul defendia suas idias escravistas de forma exacerbada. Assim,

    em fins de 1850 a Guerra de Secesso era eminente. O Sul entendia a

    escravido como um direito constitucional que deveria ser garantido pelo governo

    nacional, enquanto o Norte entendia a escravido como uma instituio arcaica e

    que estava fadada ao desuso e ao desaparecimento. Diante da medida contrria

    tomada pela administrao central em consonncia com tais anseios nortistas, o

    Sul viu-se em posio de separar-se do resto da Unio. 63

    Somando-se a esse contexto j crtico havia o fato de que os Estados

    Unidos estava passando por um perodo eleitoral.

    A eleio do republicano moderado Abraham Lincoln, em

    novembro de 1860, instigou a crise final atravs da qual a maioria dos

    Estados do Sul separou-se da Unio64.

    A alada de Lincoln a presidncia desesperou os sulistas, que temiam

    restries prtica escravista. Por outro lado, a posse de Lincoln foi o momento

    ideal para a ao dos deputados separatistas, que viam no novo presidente um

    isolamento do Sul e o gradual enfraquecimento da escravido65. Assim, o jovem

    Lincoln se viu diante de um processo de diviso do pas; processo este

    frequentemente subestimado pelos republicanos e pelo prprio presidente.

    63 IZECKSOHN, Vitor. Escravido, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano antes da Secesso. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Ps-graduao em Histria Social da UFRJ, n 6, Janeiro-Junho de 2003, Volume 04. p. 66-71. 64 Ibidem, p. 71. 65 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edio). Blackwell Publishing, 2005. p. 09.

  • 25

    Subestimado principalmente porque os republicanos no contavam com a

    extenso do apoio popular aos Estados Confederados do Sul.

    Assim, no Norte a escravido tornou-se problemtica, enquanto que no Sul

    a manuteno da instituio escravista configurava-se como o nico meio de

    manter o modo de vida esboado em ideais aristocrticos. A partir disso, a

    secesso tornou-se uma realidade, notavelmente muito mais violenta e radical do

    que supunham os dirigentes nortistas. Para restaurar a Unio seriam necessrios

    quatro anos de guerra, a destruio da escravido no Sul e a reorganizao da

    economia poltica da confederao pela coalizo vencedora 66. Desta forma, a

    guerra foi o maior sintoma do abismo existente entre duas regies que possuam

    concepes distintas, ao passo que tambm foi o modo de reunificar ou unificar

    pela primeira vez os interesses e projetos que eram to discrepantes.

    66 Ibidem, p. 74.

  • 26

    RALLY MEN OF COLOR, AT ONCE FOR YOUR COUNTRY!: OS SOLDADOS

    NEGROS NA GUERRA DE SECESSO

    Ns cultivamos o algodo, ns cultivamos o milho; Ns somos soldados de cor Yankes, agora, to certo como vocs nasceram; Quando os mestres nos ouvirem gritando, eles pensaro que a trombeta de Gabriel; E ns marcharemos. 67

    No presente captulo realizar-se- um esboo da cronologia da criao das

    tropas negras, tanto dos confederados como da Unio. Nessa cronologia, se

    analisaro detidamente proclamaes oficias do presidente Lincoln acerca das

    tropas de negros, o Militia Act e o Segundo Confiscation Act, fontes primrias para

    a elaborao desse captulo. A anlise desses documentos so essenciais para

    compreenso do processo de incorporao de homens de cor nos exrcitos norte-

    americanos e muito do que ocorrer no ps-abolio.

    Com a ecloso do conflito da secesso, o presidente norte-americano

    Abraham Lincoln passou a mobilizar foras voluntrias para enfrentar as tropas

    separatistas do Sul. Cerca de 75.000 voluntrios atenderam ao apelo presidencial

    e juntaram-se ao exrcito da Unio. Entre os homens que apresentaram-se aos

    centros de recrutamento, notvel a participao de centenas de negros livres do

    Norte e escravos fugidos do Sul. Entretanto, as autoridades governamentais

    alegaram que no havia necessidade da incorporao de negros a instituio

    militar, uma vez que no cabia a eles lutar em um conflito que era compreendido

    como uma guerra apenas de homens brancos. 68

    Desta forma, em um primeiro momento, os estados nortistas e sulistas

    passaram a um recrutamento macio de suas populaes brancas. Logo,

    percebeu-se que o nmero de homens brancos em idade de combate no era

    suficiente, problema identificado nos exrcitos tanto do Sul, quanto do Norte.

    Assim, passou-se, primeiramente, ao alistamento de homens de outras

    67 Verso da cano militar John Browns Body, composto por abolicionistas de Nova York para o 1 regimento de infantaria do Arkansas (descendentes de africanos). In: TRUDEAU, Noah Andr. Like Men of War: Black Troops in the civil war (1862-1865). New York: Castle Books, 2002.p. 99. 68 MCCORMICK, Jayne. The Black Troops of the Civil War. 2001. Disponvel em: http://www.bitsofblueandgray.com/feb2001.htm. Acesso em: 25 de outubro de 2010.

  • 27

    nacionalidades. Foram organizadas tropas compostas de alemes, escoceses,

    irlandeses, suecos, escandinavos e italianos.69Entretanto, o nmero de alistados

    era muito inferior ao demandado, permanecendo o problema da insuficincia

    militar. Alm disso, haviam ainda causalidades, epidemias, deseres e

    resignaes, que traziam baixas aos efetivos militares. Em vista de tais

    problemas, recorreu-se ao recrutamento de homens negros. 70

    1. Os soldados negros no norte.

    Os estados da Unio foram os primeiros a recrutar descendentes de

    africanos. A poltica restritiva aos negros estava sendo, por fora da necessidade,

    abandonada. A guerra no era mais um conflito somente dos homens brancos,

    agora os negros eram incitados a combater. 71 Entretanto, necessrio relativizar

    a idia de que no Norte os negros alistados foram incorporados sem problemas

    s corporaes militares. Os desconfortos e embates com oficiais e soldados

    brancos eram corriqueiros, havendo grande desconfiana na capacidade das

    tropas compostas apenas por homens de cor72.

    Entretanto, o desenvolvimento da guerra exigia o recrutamento de

    descendentes de africanos. Neste contexto o ano de 1862 mostra-se

    paradigmtico, tanto para a organizao de tropas na Unio, quanto na

    confederao. No mbito dos estados nortistas, ao final deste ano criou-se a 1

    Kansas Colored Volunteer Infantry 73, que manteve-se por um tempo

    independente do controle federal. Este regimento contrariou os cticos quanto ao

    desempenho dos soldados negros ao sair vitorioso de vrias batalhas, entre elas

    a Batalha da Ilha Mound, no estado fronteirio do Missouri. Sendo um border

    state74 , o Missouri era fundamental nas pretenses nortistas de vencer os

    confederados. Assim, a operao do 1 Kansas Colored Volunteer foi fundamental

    69 BURTON, William L. Melting Pot Soldiers. The Unions Ethnic Regiments Norths Civil War. Fordham University Press, 1998. p. 52. 70 Ibidem, p.47. 71 TRUDEAU, Noah Andr. Op. Cit. pp. 03-20. 72 Ibidem, p. 112. 73 Este nome designava o 1 regimento de voluntrios coloridos do Kansas. 74 Os border states (estados tampes) eram estados escravistas situados na Unio. Eram quatro os border states: Missouri, Delaware, Maryland e Kentucky.

  • 28

    ao expulsar as tropas sulistas da regio, fato que rendeu a esta infantaria

    honrarias e fama entre os militares.75 Exemplo da importncia dada a este

    destacamento, que em meados de 1863 o 1 Kansas Colored Volunteer j

    integrava formalmente o servio militar norte-americano76, sendo um dos

    regimentos negros da Unio a angariar este posto, a lado de tropas de destaque,

    como as do Distrito de Columbia e Ohio. 77

    O estado do Kansas figura, desta forma, entre os estados que

    organizaram tropas de homens de cor mesmo sem uma oficializao da gesto

    Lincoln, demonstrando a fora do princpio federalista norte-americano, regido

    pela idia de autonomia dos poderes das localidades e dos estados. Os estados,

    diante da falta de ao do governo quanto s demandas por mais homens,

    resolveram organizar sua defesa de forma independente. Em seus estados,

    governadores passaram a agir de forma autnoma para garantir a integridade

    territorial e conter as foras confederadas78. Assim, quando se d uma legislao

    especfica acerca dos regimentos negros, essa lei vem apenas regulamentar uma

    realidade j existente h tempo considervel nos estados da Unio, uma vez que

    a utilizao de soldados negros se dava desde o incio dos conflitos, porm sem a

    organizao em unidades.79

    2. Os soldados negros no sul.

    Apesar da grande desconfiana e averso quanto integrao de negros a

    instituio militar, os estados do Sul frente ao avano nortista passaram

    tambm ao recrutamento de descendentes de africanos. Assim, o ano de 1862

    marca a primeira organizao sulista quanto s tropas negras, com o First

    Louisiana Native Guards sendo formalmente integrado ao exrcito dos Estados

    Unidos. Este constituiu o primeiro regimento totalmente negro, exceto no

    oficialato, a entrar na USCT durante a Guerra Civil. Era um grupo motivado,

    mesmo com todo o racismo por parte dos oficiais brancos. Porm, ainda estavam

    75 MCCORMICK, Jayne. Op. Cit. s/p. 76 As tropas negras que integravam o servio militar norte-americano era designadas pela sigla USCT United States Colored Troops (Tropas de cor dos Estados Unidos) 77 TRUDEAU, Noah Andr. Op. Cit. pp. 103-115. 78 BURTON, William L.Op Cit..pp. 15-17. 79 Ibidem, pp, 03-05.

  • 29

    sendo testados em trabalhos manuais menores, para s depois serem

    empregados na batalha contra a Unio80.

    No ms de maio do mesmo ano iniciou-se o recrutamento de negros para o

    corpo militar do estado confederado da Carolina do Sul, a fim de integrar homens

    de cor ao primeiro regimento do estado. Estes soldados em sua maioria

    encontravam-se em situao de grande pobreza. Muitos enfrentavam dificuldades

    quanto ao que vestir e calar. Mesmo assim, nenhum uniforme foi providenciado

    para tais soldados, muito menos qualquer tipo de pagamento ou soldo. 81

    Desta forma - mesmo repletos de tenses sociais - os estados sulistas de

    New Orleans e Louisiana, frente s vitrias da Unio que quebravam com o rgido

    regime escravista local, foram igualmente pioneiros no que tange ao armamento

    de tropas negras. Entretanto, haviam restries e pesados encargos financeiros.

    As armas eram pessoais, porm s poderiam ser usadas para defesa de algum

    posto. Os custos com uniformes, por sua vez, ficavam a cargo do prprio soldado,

    sendo que o soldo dos homens negros era muito inferior ao dos recrutas brancos. 82

    Um grande nmero de escravos nem mesmo chegava a pisar em um

    campo de batalha, sendo a maioria era empregada na construo de fortificaes

    e defesas. Outros - como aqueles que compunham a defesa do estado

    confederado do Tennessee - marchavam como servos de seus proprietrios ou

    trabalhavam em funes de cozinheiros, enfermeiros, trabalhadores nas ferrovias

    ou na indstria blica confederada83. Esses escravos, apesar de integrados ao

    exrcito, continuavam a ser propriedade de seus senhores, sendo utilizados nas

    foras armadas em trabalhos similares aos que tinham nas plantations e outras

    atividades que empregavam a mo de obra escrava. Esses negros no eram

    compreendidos como soldados, e sim como necessidade militar, sendo

    indispensvel envi-los - ao fim do conflito - novamente aos seus senhores84.

    Chegou-se a aventar em meados de 1864 a possibilidade dos sulistas

    empregarem escravos no exerccio militar prometendo, aqueles que

    eventualmente sobrevivessem ao conflito, a liberdade ao trmino da guerra. 80 Ibidem, p. 09. 81 MCCORMICK, Jayne, Op. Cit. s/p. 82 BURTON, William L.Op Cit..p. 09. 83 Ibidem, p. 09. 84 TRUDEAU, Noah Andr. Op. Cit. pp. 109-112.

  • 30

    Entretanto, esta medida no chegou a ser aplicada, uma vez que as tropas as

    quais se prometeu a liberdade no chegaram a atuar no embate com os

    nortistas85.

    A partir de 1862 a dependncia do exrcito com relao a essas tropas

    formadas por negros passou a tornar-se cada vez maior, exigindo uma

    regulamentao, por parte do governo Lincoln, com relao sua constituio

    formal. Uma ao neste sentido contrariava a poltica de no institucionalizao

    empregada pela administrao Lincoln desde os primrdios do conflito com o Sul.

    O presidente adotou tal postura, em muito, pela atitude evasiva do governo

    quanto questo escravista. Lincoln compreendia o peso dessa questo e as

    controvrsias que ela geraria, sobretudo nos border states, no quais a escravido

    ainda era uma prtica comum, enraizada socialmente. neste contexto que

    insere-se a relutncia de Lincoln em permitir o alistamento de negros no exrcito

    da Unio. 86

    Inicialmente, a administrao Lincoln resistiu a qualquer esforo no sentido

    de armarem-se os negros. Apesar de seu desejo pessoal de integrar negros as

    tropas da Unio, o presidente no via essa necessidade, uma vez que o

    alistamento voluntrio ainda supria as necessidades nortistas e o sul no havia

    ainda angariado vitrias significativas. neste contexto que so promulgados em

    17 de julho de 1862 o Segundo Confiscation Act e o Militia Act. Ambos os atos

    so aprovados pelo congresso norte-americano com o objetivo de alargar os

    poderes do presidente para usar milcias de homens negros.

    A promulgao do Militia Act dava ao presidente total autoridade para

    aprovar o recrutamento de competentes descendentes de africanos que atuariam

    no exrcito e na marinha, alm de conceder-lhe o direito de nomear os oficiais

    que ficariam no comando de tais milcias. Este documento tinha como finalidade

    estabelecer:

    (...) padres federais para a organizao das milcias, um ato a mais para prover a defesa nacional, estabelecendo uma milcia uniforme ao longo dos Estados Unidos 87.

    85 MCCORMICK, Jayne, Op. Cit. s/p. 86 Idem, Ibidem. 87 Militia Act (1862). Disponvel em: http://www.history.umd.edu/Freedmen/milact.htm Acesso em: 28 de outubro de 2010. Traduo livre.

  • 31

    Para tanto, buscavam-se situar modelos quanto ao recrutamento,

    treinamento e armamento de todos os soldados, brancos e negros. O alistamento,

    segundo o Militia Act deveria estender-se a todos os homens entre 18 e 45 anos,

    sendo que aps seis meses de ingresso na milcia esses soldados deveriam estar

    armados com rifles ou mosquetes, munidos de balas em uma mochila ou bolsa88.

    Entretanto, a rea de atuao dos soldados negros nortistas continuava, no raro,

    restrita a construo de trincheiras e outros trabalhos fsicos.

    O Militia Act estabeleceu tambm forma com que deveria se dar a

    convivncia entre brancos e negros no mbito militar, reiterando que os negros

    no deveriam ser tratados como iguais, sendo que este tratamento diferenciado

    se estenderia a questo do soldo. Uma das alegaes discriminatrias refere-se

    ao fato dos soldados negros no haverem integrado o exrcito no incio do conflito

    da secesso e, portanto, no haviam lutado desde os primeiros embates. Por

    esse motivo, alegava-se no possurem direito ao mesmo valor de soldo dos

    brancos.

    Os valores baixos pagos a todos os soldados, eram ainda mais baixos para

    os soldados negros. Os soldados brancos recebiam U$ 13,00 mensais, com um

    adicional de U$3,50. J os soldados negros recebiam U$10 mensais, entretanto,

    U$3 eram descontados por conta dos uniformes, restando apenas 7 dlares para

    cada soldado89.

    O Segundo Confiscation Act, por sua vez, visava acabar com o dilema

    relativo incorporao de escravos na corporao militar. Assim, os poderes de

    Lincoln, com relao s milcias negras, foram alargados para melhor se

    combater as foras confederadas, como explicita-se na seo onze do

    documento:

    (...) o Presidente dos Estados Unidos autorizado para

    empregar muitas pessoas de descendncia africana como pode julgar

    necessrio e prprio para a supresso desta rebelio, e para este

    88 Idem, Ibidem. 89 MCCORMICK, Jayne, Op. Cit. s/p.

  • 32

    propsito pode ele organizar e os usar de tal maneira como ele julgar

    melhor para o bem-estar pblico. 90

    A proclamao trata, igualmente, da situao dos cativos nos estados que

    haviam deixado a Unio. Assim, o Segundo Confiscation Act constituiu um

    esforo inicial no sentido de emancip-los. Os confederados que no se

    adequassem s exigncias do Ato em at 60 dias aps sua aprovao seriam

    punidos por crime de traio contra os Estados Unidos da Amrica, tendo como

    pena a libertao de seus escravos. Assim, o documento constituiu uma tentativa

    de enfraquecimento da poltica separatista da Confederao, propondo metidas

    de retaliao aos estados que se unissem aos rebeldes. Alm disso, institua-se

    uma poltica de remisso para aqueles que resolvessem reitegrar-se a Unio,

    como explicitado na seo 13:

    o Presidente autorizado por este meio, a qualquer hora daqui

    por diante, atravs de proclamao, estender a pessoas que podem ter

    participado na rebelio existente em qualquer Estado ou parte, perdo e

    anistia, com tais excees e a tal tempo e em tais condies como ele

    pode julgar expediente para o bem-estar pblico.91

    Os acts constituam uma ingerncia na autonomia dos estados, entretanto,

    sua promulgao acenava com uma sada honrosa para os que resolvessem

    mudar de idia e reintegrar-se a Unio. O Segundo Confiscation Act planejava

    uma ciso na Confederao, j que aqueles agentes individuais ou coletivos

    que temendo as medidas do confiscation regulamentavam as suas tropas negras,

    punham-se em oposio queles que ainda assim desafiavam os decretos do

    presidente.

    O Ato tambm trata da relao entre os escravos e as tropas da Unio, que

    estavam avanando no territrio sulista. Notavelmente, o nmero de escravos a

    buscar refgio nos acampamentos nortistas era cada vez maior, e os oficiais no

    sabiam como lidar com a situao. Diante desta conjuntura, a seo nove

    90 Second Confiscation Act (1862). Disponvel em: http://teachingamericanhistory.org/library/index.asp?document=559 Acesso em: 28 de outubro de 2010. Traduo livre. 91 Idem, Ibidem.

  • 33

    decretava que todos os negros refugiados entre a Unio deveriam ser

    compreendidos enquanto prisioneiros de guerra, sendo prontamente libertados92.

    Entretanto, necessrio compreender que apesar de constituir os

    primrdios da poltica de emancipao dos escravos, o Segundo Confiscation Act

    no ofereceu nenhuma garantia de manuteno dos direitos civis dos ex-

    escravos, uma vez que o objetivo da emancipao era servir aos interesses

    nortistas e governamentais, no garantir melhores padres de vida aos

    descendentes de africanos. De fato, o documento apoiava a emigrao de negros

    para a Amrica Central e do Sul, aonde, supostamente, se adaptariam melhor ao

    clima tropical e poderiam desfrutar de sua condio de homens livres, como fica

    explicito na seo 12 do Ato. Alm disso, o Segundo Confiscation Act restringiu a

    libertao dos escravos apenas aos estados rebeldes, sendo que os negros

    fugidos dos border states, leais a Unio, seriam prontamente devolvidos aos seus

    senhores.

    Assim, o Segundo Confiscation Act apresenta-se como uma tentativa do

    governo Lincoln de promover uma emancipao gradual e compensada dos

    escravos, a fim de no perder o apoio dos estratgicos border states. Entretanto,

    foi justamente o trao abolicionista contido nessas medidas que retirou os estados

    do Tennessee e Vrgina da Unio. 93

    3. As conseqncias da institucionalizao: segundo Confiscation

    Act e o Militia Act.

    A questo do recrutamento de homens de cor estava agora em mbito

    nacional, com Lincoln dobrando a poltica governamental de excluso do negro

    das corporaes militares. Desta forma, a emancipao se dava

    progressivamente, iniciando-se ainda em 1862 com a promulgao de uma

    proclamao de emancipao preliminar. A assinatura deste documento

    transformava a guerra em um conflito no apenas para salvar a Unio, mas

    92 Idem, Ibidem. 93 The Historical Times Illustrated Encyclopedia of the Civil War. FAUST, Patricia (ed), Harper and Row, New York, 1986.

  • 34

    tambm para abolir a escravido. Processo que vai conduzir a emancipao

    oficial dos escravos, em 1 de janeiro de 1863. 94

    A partir disso, o ingresso de homens negros ao exrcito da Unio foi

    regularizado. Negros passaram a ser oficialmente alistados e agrupados em

    tropas sob o comando de oficiais brancos. Porm, apesar da boa receptividade

    da emancipao entre alguns comandantes brancos, os negros no encontraram

    todas as fileiras do exrcito amistosas a sua integrao. Muitos oficiais,

    temerosos de perder o controle sobre seus homens, no concordavam com o

    armamento e institucionalizao dessas tropas de homens negros, agora livres.

    Prticas concebidas sob a gide do preconceito racial eram freqentes. Para

    esses comandantes, os negros eram homens ignorantes e o trabalho de

    organizar, educar e disciplinar tais soldados deveria incluir rgidas punies fsicas

    e psicolgicas, mesmo quando os deslizes eram mnimos. notvel que

    inmeros oficiais brancos no acreditavam que os negros teriam coragem

    suficiente para lutar, muito menos, que poderiam realizar com destreza tal

    funo.95 Assim, os maiores problemas enfrentados pela USCT relacionavam-se a

    castigos excessivamente severos e abusivos e a desconfiana por parte dos

    oficiais brancos.96

    Entretanto, os rumores sobre o avano das tropas de descendentes

    africanos passavam a percorrer todo o pas. Os regimentos negros angariavam,

    cada vez mais, elogios e reconhecimento por parte dos prprios comandantes

    brancos, que salientavam a sua coragem e bravura - uma vez que bem treinados,

    disciplinados e conduzidos por esses oficiais. Porm, sempre existiam tenses e

    animosidades entre os tais chefes militares e os soldados negros. Inicialmente, o

    choque cultural foi imenso e levou a criao de concepes racistas e

    preconceituosas. Para muitos oficiais brancos, os soldados negros possuam

    fortes traos de ingenuidade e imaturidade. Assim, os ex-escravos eram

    compreendidos como seres primitivos. 97

    94 MCCORMICK, Jayne, Op. Cit. s/p. 95 Idem, Ibidem. 96 GLATTHAAR, Joseph T. Forged in Battle: the civil war alliance of black soldiers and white officers. New York: Fist Meridian Printing, January, 1991. p. 113. 97 TRUDEAU, Noah Andr. Op. Cit. p. 109.

  • 35

    4. Quem eram e o que queriam os soldados negros da Unio e da

    Confederao?

    Cerca de 180.000 negros ingressaram no exrcito da Unio, sendo muitos

    deles ex-escravos98. No raro, encontravam-se entre esses homens, alguns que

    possuam notvel conhecimento a cerca das letras e da matemtica. Importante

    salientar que nem todos estavam necessariamente comprometidos com uma

    agenda poltica sendo recrutados de modo mais ou menos coercitivo ou por

    visarem benefcios mais diretos. O exrcito, para esses homens de cor, era visto

    como uma promessa de alada financeira e reconhecimento social, bem como de

    esperana de um futuro melhor. 99

    No norte, apesar da integrao de negros ao exrcito, as discusses sobre

    a questo da igualdade ainda no haviam sido desencadeadas. As unidades

    negras eram separadas dos regimentos brancos e como j dito - seus

    comandantes no poderiam ser oficiais de cor100. Desta forma, havia uma

    manuteno da concepo da raa negra como inferior, havendo grande

    desconfiana quanto ao desempenho como soldados. A opinio pblica e as

    tropas brancas, em geral, baseavam-se em esteretipos raciais, compreendendo

    os negros como infantis, selvagens e limitados. Estes, s tiveram seu ingresso no

    servio militar tolerado devido confiana da opinio pblica de que a raa

    inferior seria fortalecida nos campos de batalha. 101

    Mesmo assim, alguns poucos oficiais negros conseguiam galgar postos

    elevados entre os brancos, transpondo e fragilizando as barreiras impostas pelo

    preconceito, pelo menos no mbito do exrcito. notvel que a populao

    alimentava um temor generalizado quanto as prticas militares realizadas por

    soldados de cor. Para tanto, o governo norte-americano teve de tomar medidas

    que impediam os soldados negros de conviverem com as populaes locais, visto

    a grande desconfiana que geravam entre os moradores.

    A Unio adotara uma poltica que visava preparar as tropas negras para o

    combate, incluindo a criao de campos de treinamento especficos para esses

    98 Ibidem, p. XVIII. 99 GLATTHAAR, Joseph T. Op. Cit. p. X. 100 Idem, pp. IX-X. 101 GLATTHAAR, Joseph. Op. Cit. pp. 101-117.

  • 36

    soldados. o caso do renomado Camp William Penn, localizado na cidade da

    Philadelphia, no estado nortista da Pensilvnia. Fundado em 1863, este campo de

    permanncia, sendo exclusivo para treinamento das tropas negras, representou

    uma conquista sobre todo o preconceito que permeava as concepes sobre os

    negros no exrcito. Apenas neste campo foram graduados 11 regimentos

    compostos por negros comandados por experientes oficiais brancos, aspecto que

    auxiliou na manuteno de concepes relacionadas ao trabalho em grupo,

    fundamental para um bom treinamento dessas tropas. Era necessrio, antes de

    tudo, compreender os negros como homens, soldados em potencial, para ento

    passar a design-los para misses, atribuindo-lhes responsabilidades e elevando

    sua moral. 102

    Um treinamento eficaz no menor espao de tempo possvel era aspecto

    essencial dentro das pretenses nortistas na guerra. Neste contexto, o curso e

    durao do conflito dependiam, em muito, da habilidade dos soldados negros

    armados de baionetas e mosquetes, sendo necessria rapidez e preciso nas

    suas aes. Entretanto, uma das reas mais crticas e negligenciadas do

    treinamento era justamente a que cabia a utilizao de armas de fogo. Enquanto

    os soldados brancos possuam armas individuais e recebiam as instrues

    adequadas quanto ao seu uso, aos negros eram impostas diversas barreiras,

    sobretudo, por um temor ainda existente quanto conduta desses indivduos. A

    este panorama, somava-se o fato de que os senhores proibiam o acesso de seus

    escravos a armas de fogo, como muito soldados eram ex-escravos, no raro,

    regimentos completos nunca haviam sequer tocado em um mosquete.

    Outro aspecto fundamental na organizao das tropas negras dizia

    respeitos a formaes tticas. Essas eram repetidas exaustivamente nos campos

    de treinamento, pelo menos naqueles que formaram as primeiras tropas de

    negros que entraram na guerra, uma vez que com o desenvolver do conflito o

    tempo disponvel para exerccio adequado das tropas foi sendo diminudo

    drasticamente, quando no atrapalhado pela ecloso de conflitos localizados.

    Sem tempo para treinar, eram repassadas a essas tropas apenas tticas bsicas

    de sobrevivncia no campo de batalha. Para alm desse problema, os

    comandantes de tropas negras ainda tinham que lidar com as ordens vindas dos

    102 TRUDEAU, Noah Andre. Op. Cit. pp. 125-129.

  • 37

    oficiais superiores. Estes, geralmente, empregavam as tropas negras em

    trabalhos manuais que no se ligavam diretamente ao exerccio blico. Isso

    reduzia drasticamente o tempo e a direo do treinamento dos regimentos

    compostos por homens de cor. 103

    Apesar do consistente programa de treinamento, que inclua cartilhas e

    manuais, as tropas compostas por homens negros ainda enfrentavam problemas

    institucionais no Norte, sobretudo relativos questo do pagamento de soldo.

    No raro, essas tropas no recebiam o pagamento adequado e, muitas vezes,

    prometido. No eram poucos os soldados que encontravam-se em situao de

    grande pobreza, pelo contrrio. Assim, muitos revoltaram-se contra a situao de

    no recebimento do soldo. Uma ao nesse sentido acarretava atitudes do

    oficialato branco, que tinha suas decises marcadas pelo exagero e pelas

    motivaes raciais. Um dos exemplos mais salientes desse problema o protesto

    organizado pelos soldados da 11 U. S Colored Heavy Artillery104, tropa que levou

    a cabo um manifestao de grandes dimenses reivindicando pagamento

    igualitrio entre soldados brancos e negros. 105

    Entretanto, notvel que os comandantes de tropas de cor nortistas

    levavam vantagem substancial sobre seus homlogos do Sul. As unidades

    organizadas pelos oficiais brancos do norte possuam nmero significativo de

    negros letrados, o que facilitava a leitura, por exemplo, de manuais de

    treinamento. Alm disso, nos campos de treinamento localizados ao Norte dos

    Estados Unidos, o tempo disponvel para a disposio e treinamento das tropas

    de negros era, quase sempre, maior. 106

    Desta forma, as diferenas entre as tropas formadas no Norte e no Sul

    eram evidentes. Os soldados da Unio, assim como seus companheiros brancos,

    possuam noes de disciplina e estrutura militar. A funo da prpria disciplina

    era, acima de tudo, transformar homens de cor em soldados do Exrcito dos

    Estados Unidos da Amrica. Mas o fator crucial era que esses negros, em grande

    nmero, ex-escravos, haviam provado da liberdade e no hesitariam em lutar

    para defend-la. Alguns comandantes dessas tropas faziam, inclusive, questo de 103 GLATTHAAR, Joseph. Op. Cit. pp. 99-106. 104 Este nome designava o 11 regimento de artilharia pesada de homens de cor dos Estados Unidos. 105 Ibidem, pp. 111-116. 106 Ibidem, p. 101.

  • 38

    marcar a diferena entre o escravo e o soldado, entendendo a importncia desta

    distino sobretudo, disciplinar - para o desempenho do regimento.

    Enquanto isso, seus irmos do Sul continuavam atrelados lgica

    escravista, uma vez que, frequentemente, o ingresso em uma milcia no

    significava o rompimento dos laos escravistas com os grandes senhores. Assim,

    para muitos desses homens a estrutura militar, com os brancos acima dos negros,

    representava uma mera extenso da relao entre o senhor e seus escravos.

    Esta concepo abria espao para uma reao por razes raciais - de inmeros

    soldados negros contra a autoridade dos oficias brancos. 107

    Desta forma, os Confederados evitavam ao mximo esse tipo de

    organizao, Entretanto, a presena de um grande nmero dessas tropas no

    exrcito da Unio no passou despercebida pelos confederados. Os regimentos

    de cor eram cada vez mais requisitados para a defesa das novas possesses que

    a Unio vinha tomando dentro de territrio sulista, domnios esses, notavelmente,

    escravistas108.

    No Sul, ao organizarem-se as primeiras tropas compostas por negros,

    restringiu-se sua rea de atuao. Soldados negros deveriam ser empregados

    unicamente em servios de apoio. 109 Isso no significa que os descendentes de

    africanos ao sul tambm no almejassem lutar pela defesa de territrios das duas

    parcelas em contenda, pelo contrrio. No eram poucos os negros, seja do sul ou

    do norte, que entendiam a guerra civil em termos regionais. Muitos estavam

    dispostos a lutar do lado dos brancos para defender seus lares. Entretanto, havia

    grande temor em armarem-se os negros em meio a uma populao to grande de

    descendentes africanos. Por este motivo, os soldados negros nem sempre

    recebiam treinamento ou soldo110.

    Entretanto, a condio do Sul de dependente das tropas formadas por

    negros levou o governo confederado a tomar medidas que conservassem tais

    regimentos sob a autoridade a organizao blica sulista. Desta forma, em 1863

    o Sul j passava a incorporar regimentos negros ao seu servio militar regular,

    demonstrando a importncia dessas tropas nas pretenses confederadas. Assim,

    107 Ibidem, pp. 108-120. 108 BURTON, William L.Op Cit. pp. 10-20. 109 TRUDEAU, Noah Andr. Op. Cit. pp. XVIII-XIX. 110 Ibidem, p. XIX.

  • 39

    o 2 Regimento da Carolina da Norte foi o primeiro a fazer parte, oficialmente, da

    USCT. Atrelado a isso, ocorria uma mudana na prpria viso sulista das tropas

    negras, da sua competncia e capacidade. Cada vez mais oficiais salientavam a

    obedincia e capacidade dos negros de realizar satisfatoriamente todas as

    funes dadas a um soldado branco, inclusive lutar. 111

    As tropas compostas por negros tambm estavam alterando as

    concepes nortistas. Com participao decisiva em vrias batalhas, soldados

    negros passaram, paulatinamente, a angariar mais respeito e admirao no

    mbito militar dos estados da Unio. Tornavam-se inmeros os elogios dos

    comandantes brancos, que salientavam o patriotismo e coragem de seus

    comandados negros. Os soldados de cor eram tidos como exemplo da eficcia de

    programas de treinamento atrelados disciplina, fundamental para manter os

    soldados em suas posies, no importando a condio favorvel, ou no, da

    batalha. As comparaes com regimentos brancos eram inevitveis, uma vez que

    era notvel que a maioria dos soldados brancos entendia o ingresso na instituio

    militar como um dever patritico, enquanto que os negros viam a oportunidade

    como uma honra e um privilgio. 112

    Em maio de 1863, a Unio j contava com, aproximadamente, 160

    regimentos e 10 baterias de artilharia leve compostas por negros. notvel que

    houveram, inclusive, oficiais negros condecorados pelo Congresso norte-

    americano. Foram cinco oficiais da marinha nortista e dezoito de campo a serem

    homenageados com medalhas de honra ao mrito. Um nmero expressivo, visto

    o contexto de preconceito e restrio a ao de soldados de descendncia

    africana. 113

    Os dados quantitativos relativos ao nmero de negros integrados aos

    exrcitos do Norte e do Sul durante o conflito da secesso so variveis.

    Entretanto, a autora Jayne McCormick aponta para um nmero de alistados que

    ficaria em torno de 178 a 210 mil negros. Os estados separatistas do Sul e os

    border states foram responsveis pelo alistamento de, aproximadamente, 135 mil

    negros. A Unio, com grande volume de negros incorporados ao exrcito,

    empregou apenas em sua marinha 50 mil descendentes de africanos. De todos 111 TRUDEAU, Noah Andr. Op. Cit. pp. 115-118. 112 GLATTHAAR, Joseph T.Op. Cit.. pp. 99-108. 113 MCCORMICK, Jayne. Op. Cit. s/p.

  • 40

    esses alistados somando-se os efetivos do Sul e do Norte - cerca de 36 mil

    perderam a vida durante o conflito da secesso.114

    114 DAVIS, Burke. The civil war, strange and fascinating facts. Disponvel em: http://www.civilwarhome.com/casualties.htm . Acesso em: 26 de outubro de 2010.

  • 41

    AS TROPAS NEGRAS EM COMBATE: AS CORRESPONDNCIAS DO S

    SOLDADOS E SEUS OFICIAIS

    Eu nunca acreditei em negros antes, mas

    por Jesus, eles so como o inferno quando

    lutam. 115

    1. A guerra e a palavra escrita

    Com o advento da Guerra Civil, os estados da Unio adotaram postura que

    visava desestabilizar os separatistas. O objetivo era manter os estados do sul

    isolados poltica e economicamente do restante dos Estados Unidos. Para tanto,

    pretendeu-se um bloqueio que impedisse os sulistas de receberem munies e

    mantimentos. Tambm as comunicaes entre reas pertencentes s duas

    faces beligerantes foram afetadas pela guerra. O servio postal no sul foi

    cortado, os selos dos estados separatistas no possuam validade no Norte e as

    cartas endereadas ao sul frequentemente retornavam aos seus remetentes.

    O United States Postal Service116, (USPS) criado em 1775 por Benjamim

    Franklin, tinha importncia vital em termos militares em um perodo de guerra,

    mas tambm era importante para as famlias dos combatentes em um combate

    que, muitas vezes, mal compreendiam. Assim, o sul - seus habitantes e seu

    contingente militar - foram profundamente afetados pelo bloqueio nortista no

    USPC. Entretanto, sempre se encontraram meios de transpor o bloqueio. Muitas

    cartas chegaram aos seus destinos no norte por meio de navios tipo de bandeira

    de trgua. Essa estratgia funcionou satisfatoriamente at o norte passar a

    efetuar o bloqueio tambm dos portos confederados. A partir desse momento,

    novas estratgias para a entrega de correspondncias foram criadas, utilizando-

    se, sobretudo, de portos estrangeiros. Por esse motivo, essas cartas demoravam

    muito tempo para alcanar seus destinos. Mesmo assim, essa ainda era a nica

    115 Frase proferida por um oficial branco comandante de um regimento do First Kansas Colored. In: TRUDEAU, Noah Andr. Like Men of War: Black Troops in the civil war (1862-1865). New York: Castle Books, 2002.p. 108. Traduo livre. 116 Servio Postal dos Estados Unidos.

  • 42

    forma de muitas pessoas manterem contato com familiares ou amigos que foram

    afastados pela diviso do pas. 117

    A comunicao entre soldados e seus familiares era particularmente difcil,

    j que instaurado o conflito, as correspondncias militares eram prioridade. A

    princpio, para a entrega de correspondncias pessoais, seria relativamente fcil

    encontrar os soldados em seus acampamentos, nos quais permaneciam por

    semanas. Entretanto, com o recrudescimento das batalhas, era cada vez mais

    difcil localizar as tropas que encontravam-se em constante movimento. Desse

    modo, a entrega das correspondncias tornava-se um desafio. Entretanto, os

    familiares, amigos e os prprios soldados no front de batalha no desistiam de

    estabelecer a nica forma de contato possvel com seus entes queridos. Assim,

    apesar de todos esses complicadores, aos quais se somam os no poucos

    extravios, sobreviveram ao tempo e s vicissitudes um volume considervel de

    cartas para o perodo da Guerra Civil.

    correspondncia rec


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