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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN
LARA TALINE DOS SANTOS
MEN OF COLOR, TO ARMS!: AS TROPAS NEGRAS NA GUERRA CIVIL
AMERICANA (1861-1865)
CURITIBA
2010
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN
LARA TALINE DOS SANTOS
MEN OF COLOR, TO ARMS!: AS TROPAS NEGRAS NA GUERRA CIVIL
AMERICANA (1861-1865)
Monografia apresentada como requisito parcial para concluso do Curso de Histria Licenciatura e Bacharelado, do Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paran.
Orientadora: Martha Daisson Hameister
CURITIBA
2010
AGRADECIMENTO
Agradeo minha amada famlia, sobretudo a minha me, pela confiana em mim
depositada;
Ao namorado e fiel amigo Cristiano, por sempre estar ao meu lado;
professora Martha pela imensa dedicao e ateno;
A todos os colegas que me acolheram, pois eu consigo com uma pequena ajuda
dos meus amigos;
Eloisa e Fabiano pelas noites de rock nroll;
Amanda e Fernanda; irms do corao;
Ao amigo Filipe, sem sua amizade e musicalidade este projeto nunca se tornaria
realidade.
RESUMO
Aps 145 anos de seu trmino, a guerra civil norte-americana - ou Guerra
de Secesso (1861-1865) - continua sendo tema amplamente discutido entre os
pesquisadores - em sua maioria norte-americanos - que prope-se a estudar este
conturbado perodo da histria dos Estados Unidos. O conflito dividiu a nao que
havia sido formada pela Declarao de Independncia (1776) e envolveu os
Estados da Unio do Norte contra os Estados Confederados do Sul, que
almejavam a separao da federao.
A ecloso deste embate marcou profundamente a jovem nao americana
e ainda tema delicado entre os historiadores, visto sua dimenso poltica, social
e econmica.
A partir disso, tem-se como objetivo geral caracterizar a formao dessas
tropas dentro do espao da Unio, buscando compreender seus aspectos bsicos
relativos institucionalizao, treinamento, recebimento de soldo e armamento.
Palavras-chave: Estados Unidos, guerra civil, tropas negras
NDICE
INTRODUO ........................................................................................................6
1 A GUERRA DE SECESSO NORTE-AMERICANA: O EMBATE E NTRE OS
ESTADOS CONFEDERADOS DO SUL E A UNIO.............. ..............................11
2 RALLY MEN OF COLOR, AT ONCE FOR YOUR COUNTRY!: O S
SOLDADOS NEGROS NA GUERRA DE SECESSO .............. ..........................26
Os soldados negros no norte ................................................................................27
Os soldados negros no sul ....................................................................................28
As consequncias da institucionalizao: de acordo com Confiscation Act e o
Militia Act ...............................................................................................................33
Quem eram e o que queriam os soldados negros da Unio e da Confederao?35
3 AS TROPAS NEGRAS EM COMBATE: AS CORRESPONDNCIAS DOS
SOLDADOS E SEUS OFICIAIS ........................... ................................................41
A guerra e a palavra escrita ..................................................................................41
Os soldados negros e a palavra escrita ................................................................42
Os oficiais brancos e as palavras escritas pelos e sobre os soldados negros ......47
Entre o Norte e o Sul, os negros preferem a liberdade .........................................54
CONSIDERAES FINAIS ............................... ...................................................57
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS......................... ............................................60
ANEXOS ...............................................................................................................62
6
INTRODUO
A guerra civil norte-americana, ou Guerra de Secesso, deflagrou-se nos
Estados Unidos da Amrica entre os anos de 1861 e 1865, e envolveu estados na
poro Norte contra aqueles situados mais ao Sul do pas. A ecloso deste
embate transformou a ameaa separatista em realidade, inclusive com a
possibilidade de consolidao do desmembramento do sul em um novo pas; Os
Estados Confederados do Sul. Essa organizao manteve-se apenas entre os
anos 1861 a 1865, entretanto, seu impacto poltico e econmico para toda a
federao foi incalculvel1.
Este conflito foi fruto de profundas divergncias polticas, sociais e
econmicas - que somaram-se a uma a questo central, um divisor de guas: a
escravido. A antiga instituio escravista, herana do perodo colonial, constituiu
o ponto de divergncia mais profundo entre Norte e Sul dos Estados Unidos,
contribuindo para que outros aspectos de desacordo emergissem e acabassem
por encaminhar o jovem pas a secesso.
Este debate acerca da importncia da escravido para o desencadeamento
dos conflitos da secesso especialmente problemtico para os historiadores,
sobretudo, aqueles de origem norte-americana. A relao entre a escravido e a
Guerra Civil tem sido abordada com cuidado, uma vez que consiste em um tema
delicado para a historiografia estadunidense.
A Guerra de Secesso foi o conflito mais brutal de toda a Amrica. Milhares
de pessoas perderam a vida, sendo a maioria soldados das foras armadas norte-
americanas. Inicialmente, esses soldados eram recrutas voluntrios, porm esse
tipo de alistamento angariava poucos homens para as fileiras dos exrcitos do
norte e sul. Na medida em que o enfretamento entre a Unio e os confederados
estendeu-se, o nmero de soldados requeridos tornou-se maior, enquanto que o
nmero de voluntrios sentia visvel decrscimo. Assim, o alistamento obrigatrio
foi institudo. Mesmo com essa medida, um nmero maior de soldados ainda era
necessrio. 2
1 IZECKSOHN, Vitor. Escravido, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano antes da Secesso. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Ps-graduao em Histria Social da UFRJ, n 6, Janeiro-Junho de 2003, Volume 04. p. 47. 2 TRUDEAU, Noah Andr. Op. Cit. pp. 03-20.
7
Foi neste contexto que se deu, em 22 de setembro de 1862, a assinatura
da Proclamao de Emancipao pelo ento presidente Abraham Lincoln. Esse
documento determinava a libertao de todos os escravos oriundos dos estados
confederados, aprovando seu ingresso nas fileiras do exrcito da Unio a partir de
01 de janeiro do ano seguinte. Posteriormente, o alistamento de afro-americanos
no Norte tornou-se obrigatrio. Assim, grande nmero de homens de cor
tornaram-se soldados da Unio, sendo parte significativa deles ex-escravos
oriundos do sul confederado3.
Os estados sulistas, por sua vez, tambm necessitavam contingente
humano para incorporar ao exrcito que partia para a luta contra Unio.
Primeiramente os negros no eram vistos como uma opo vivel, porm o
nmero de homens brancos em idade de servio militar encontrava-se bem
abaixo do que era requerido pelo exrcito. Desta forma, mesmo ameaando sua
lgica escravista, os estados do Sul tambm passaram ao recrutamento de sua
populao negra livre e escrava.
A partir disso, examinar-se- o surgimento e desenvolvimento dos
regimentos de negros na Guerra de Secesso, procurando identificar a forma com
que se deu o ingresso dos homens de cor na instituio militar; seus padres de
recrutamento e constituio formal. Buscar-se-, no menos, delimitar as
diferenas e aproximaes existentes entre os regimentos de brancos e negros
dentro no mbito dos corpos militares, destacando a interao social entre os
soldados de cor e seus comandantes brancos.
Assim, objetiva-se uma anlise do processo de desenvolvimento das tropas
compostas por homens de cor nos Estados Unidos, buscando compreender como
se deu sua institucionalizao. Por fim, se pretende ainda uma anlise da questo
da liberdade para os negros que engrossavam as fileiras do exrcito tanto da
Unio, quanto da Confederao.
A produo historiogrfica atinente ao tema Guerra de Secesso um
campo pouco explorado por autores brasileiros. Entretanto, notvel o trabalho
de alguns autores nacionais, como Victor Izecksohn, autor de Escravido,
federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-
americano antes da Secesso e Deportao ou Integrao. Os dilemas negros
3 Ibidem, pp. 12-20.
8
de Lincoln. A historiografia sobre este tpico tem, portanto, predomnio de
autores norte-americanos e sua vasta literatura atinente ao tema.
Analisando a produo estadunidense, percebe-se a importncia e
singularidade do tema da Secesso - tanto para a opinio pblica, quanto para a
comunidade acadmica tomado como um momento muito delicado na
constituio da nao norte-americana. Neste contexto, interessante notar que
grande parte da vasta produo sobre o tema privilegia uma anlise da vitria da
Unio, sendo escassos os trabalhos que procuram, compreender o porqu da
derrota sulista.
A historiografia norte-americana procurou, igualmente, imortalizar a
imagem de lderes do conflito - como Lincoln e o general Grant - que passaram a
ser tratados como os grandes heris nacionais. Outra caracterstica desta
historiografia relativa sua produo, que parte de uma diviso com relao ao
posicionamento dos autores que se ocupam do tema da guerra civil, uma
verdadeira disputa entre os historiadores 4.
As discordncias iniciam-se quanto as prprias origens do conflito, suas
demandas e seu impacto a longo prazo na constituio da sociedade
estadunidense.5 Entretanto, para alm dessas questes, uma diviso se faz ainda
mais evidente. Esta separao que no ser objeto desse trabalho centra-se
no delicado tema da relao Guerra Civil e abolio. Sobre este tema, a
historiografia tradicional tenta ocultar o estreito vnculo entre o conflito e a questo
abolicionista. Por outro lado, uma segunda grande corrente - a que se toma aqui
como base para esse projeto - assume esse vnculo e trata de desvendar seus
meandros. Com relao formao das tropas de homens de cor durante os
embates da Secesso, os poucos autores inseridos nesta corrente privilegiam a
anlise de alguns tpicos em especial; como a desenvolvimento das tropas,
aspectos de sua constituio formal e a questes sociais.
O autor Noah Andre Trudeau, em Like Men of War. Black Troops in the civil
war (1862-1865), privilegia questes relacionadas concepo dessas tropas,
analisando aspectos sobre o armamento, fardamento e pagamento de soldo. Sua
anlise centra-se, no menos, em aspectos relacionados institucionalizao das 4 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edio). Blackwell Publishing, 2005. pp. 09-11. 5 Ibidem, p. 01.
9
tropas de homens de cor. Notavelmente, esse autor apenas d ao leitor um
panorama geral da questo social e das discusses a cerca da insero do
homem negro no exrcito. 6
Diferentemente, o autor Joseph T. Glatthaar, em Forged in Battle: the civil
war alliance of black soldiers and white officers, privilegia justamente essas
questes. Sua anlise, fundamentada na participao dos homens brancos no
comando de regimentos negros, trata de questes de armamento e treinamento a
partir de uma perspectiva da interao entre os diferentes grupos sociais no
mbito das corporaes militares7.
Notavelmente, tanto Trudeau, quanto Glatthaar tm sua anlise baseada
do caso da Unio. A questo confederada discutida, porm no aprofundada.
O autor Steven Hahn, em A nation under our feet. Black political struggles in the
rural south from slavery to the great migration, vai, por sua vez, centrar sua
anlise justamente no Sul dos Estados Unidos, analisando a instituio escravista
confederada e a grande migrao que se deu entre os escravos que, cada vez
mais, abandonavam o sul em busca de uma vida melhor no norte. 8
No mbito da questo da escravido na historiografia sobre a secesso,
interessante a anlise realizada por Eric Hobsbawm, em A era do Capital. O
autor atenta para o fato de que no necessria apenas uma compreenso da
escravido como sendo a causa primordial dos embates entre Sul e Norte. Para
alm dessa questo preciso entender porque a escravido conduziu o pas a
guerra civil e a secesso, ao invs de encontrar uma soluo que levasse a
coexistncia9.
Seguindo esta linha inaugurada por Hobsbawm, so notveis os escritos
que visam compreender a Guerra Civil a partir de uma perspectiva de anlise do
avano do capitalismo nos Estados Unidos, procurando, paralelamente, entender
como, quando e porque a escravido acabou por conduzir a jovem nao a
secesso. Assim, novos trabalhos privilegiam a o vis da histria social e dos
6 TRUDEAU, Noah Andre. Op. Cit. pp. XVII-XX. 7 GLATTHAAR, Joseph. Op. Cit. pp. IX-X. 8 HAHN, Steven. A nation under our feet. Black political struggles in the rural south from slavery to the great migration. Belknap Harvard, 2003. pp. 01-10. 9 HOBSBAWM, Eric. Op. Cit. pp. 153-157.
10
estudos de gnero e afros. 10 Este debate estende-se a vrios tericos e
pensadores. Neste sentido, salientam-se os trabalhos traduzidos para o
portugus, de Eric Foner, em sua obra Nada alm da liberdade. A emancipao e
seu legado 11 e Eugene Genovese, em A economia poltica da escravido12.
O presente estudo baseou-se, basicamente, nesta ampla bibliografia norte-
americana, atrelando essas leituras a anlise de fontes primrias. Esta
documentao, ampla e diferenciada entre si, oriunda dos volumes de
documentos e ensaios do projeto Freedmen and Southern Society 13, da
Universidade de Maryland - EUA. Este grande nmero de documentos encontra-
se transcrito e disponvel no acervo on-line do projeto.
10 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edio). Blackwell Publishing, 2005. pp. 02-13. 11 FONER, Eric. Nada alm da liberdade. A emancipao e seu legado. Trad. Luiz Paulo Rouanet. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. 12 GENOVESE, Eugene. A Economia Poltica da Escravido. RJ: Pallas, 1976. 13 O projeto iniciativa do departamento de histria da Universidade de Maryland, tendo como diretora Leslie S. Rowland e contando com um grande nmero de colaboradores. Seu acervo on-line encontra-se disponvel em: http://www.history.umd.edu/Freedmen/sampdocs.htm
11
A GUERRA DE SECESSO NORTE-AMERICANA: O EMBATE ENTR E OS
ESTADOS CONFEDERADOS DO SUL E A UNIO
Os americanos haviam se transformado em dois povos, um povo para a liberdade e um para a escravido. Entre os dois o conflito era inevitvel. Horace Greely. 14
O sculo XIX foi palco do conflito mais violento do territrio americano. A
Guerra Civil norte-americana, tambm conhecida na historiografia como Guerra
de Secesso, rendeu os combates em que mais se mataram americanos no solo
de seu prprio continente. O conflito deflagrou-se nos Estados Unidos da Amrica
envolvendo os estados do sul contra os estados do norte do pas.
A ecloso deste embate, visando o governo do Estado nacional,
transformou a ameaa separatista em realidade, inclusive com a possibilidade de
consolidao do desmembramento do Sul em um novo pas: Os Estados
Confederados do Sul. Essa organizao manteve-se apenas entre os anos 1861
a 1865, entretanto, seu impacto poltico e econmico para toda a federao foi
incalculvel, dividindo a nao criada pela Declarao de Independncia e pela
Constituio nacional. 15
Entre a 1776, data da Declarao de Independncia, e uma dcada antes
da ecloso da guerra, a grande maioria dos estados dos Estados Unidos da
Amrica vivenciaram um perodo de rpidas e profundas mudanas no mbito
econmico e poltico. Essas transformaes, advindas de processos de
modernizao e industrializao, vinham aliadas a um singular aumento no
nmero de habitantes do pas, contando com grande volume de imigraes,
atreladas a expanso territorial e a urbanizao. Os avanos eram notveis,
porm, as mudanas levaram a conflitos com a ala mais tradicional do governo
norte-americano. Este grupo, quase sempre vinculado aos grandes plantadores
14 Citado em FORNER, Free Soil. Free Labor, Free Men: The ideology of the Republican Party before the Civil War. Oxford University Press: Oxford, New York, 1995. p. 310. 15 IZECKSOHN, Vitor. Escravido, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano antes da Secesso. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Ps-graduao em Histria Social da UFRJ, n 6, Janeiro-Junho de 2003, Volume 04. p. 47.
12
escravistas, buscava conter as mudanas a partir da promulgao de leis de
carter restritivo e de medidas centralizadoras. 16
Apesar dos embates j se darem a tempo considervel no campo poltico e
diplomtico - uma vez que as discusses acerca da expanso territorial e da
escravido j vinham agravando-se desde 1848 17 - os conflitos blicos iniciaram-
se apenas em 1861, com a exigncia dos sulistas de que as tropas da Unio
abandonassem o estratgico Forte Sumter, localizado na Carolina do Sul.
Notavelmente, este foi o primeiro estado a ter sua separao reconhecida e
oficializada em conveno.
Em 1961 os confederados tinham controle de todo o territrio ao Sul dos
Estados Unidos, excetuando dois fortes que estavam sob controle federal. Um
deles, o Forte Sumter, localizava-se em uma ilha no porto de Charleston e
encontrava-se isolado, sem acesso aos mantimentos necessrios para os
homens que ali estavam. Diante desta situao, o presidente da confederao
Jefferson Davis proclamou que as foras nortistas estavam proibidas de atender
ao forte, sob ameaa de represlia armada. Entretanto, as tropas da Unio
avanaram e em 12 de abril de 1861, s 4:30 da manh, o General Beauregard
comandou as foras separatistas em Charleston e iniciou o combate que daria
incio a Guerra Civil norte-americana. 18
At ento o Norte ainda relutava em utilizar foras armadas para intervir na
situao do Sul, entretanto, o episdio do Forte Sumter foi o estopim para a ao
nortista. A operao em Sumter gerou uma onda de verdadeira indignao
patritica 19. Assim, entre os anos de 1860 e 1861, vrios processos similares
levados a cabo, com o Sul aderindo quase em sua totalidade causa da
secesso. 20
Entretanto, importante salientar que nem todos os estados do Sul
aderiram causa separatista. Delaware, Maryland, Kentucky e Missouri no
16 Ibidem, pp. 48-50. 17 ALLEN, H.C. Histria dos Estados Unidos da Amrica. Traduo de Ray Jungman. Rio de Janeiro: Forense, 1968. 18 Ibidem, p. 137. 19 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edio). Blackwell Publishing, 2005. p. 10. 20 IZECKSOHN, Vitor. Deportao ou Integrao. Os dilemas negros de Lincoln. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Ps-graduao em Histria Social da UFRJ, n 20, Janeiro-Junho de 2010, Volume 11. p. 64.
13
saram da Unio, provavelmente por medo de tornarem-se palco do conflito, visto
sua condio fronteiria. Segundo Izechsohn, esses estados, conhecidos como
border states, nesse momento servindo como estados tampes, tiveram papel
de destaque ao manter a guerra, durante certo tempo, restrita a territrios sulistas.
A escravido nessas regies no foi extinta, e acabou por tornar-se um grande
empecilho a abolio no pas. Isso no significa que essa questo fosse
prioridade, pelo contrrio, as discusses sobre igualdade e liberdade ainda
estavam iniciando-se nos Estados Unidos na dcada de 1860. 21
De fato Sul e Norte no eram, em todo, divergentes. Inicialmente, as duas
regies compartilhavam padres populacionais, representao no governo central
e volume de exportaes, vivenciando um processo de desenvolvimento
econmico. notvel que por, mais de uma vez, Sul e Norte aliaram-se; como foi
o caso da guerra empreendida contra o Mxico (1846-1848) e das invases a
Oeste (iniciada por volta da dcada de 1790). Neste contexto, o sul ditava os
rumos de um processo de expanso rumo ao Pacfico que iniciou-se em meados
de 1814 e perdurou at a Guerra Civil.
A marcha para o Oeste como conhecido este processo de expanso
s foi possvel devido ao bloqueio ingls as pretenses norte-americanas com
relao ao resto do continente. A marinha inglesa ainda era forte e impossibilitava
os Estados Unidos de dirigirem-se a outras regies da Amrica. diante desta
situao que nasce uma causa americana unindo estados do Norte e Sul em
torno da Doutrina Monroe22, que defendia a no criao de novas colnias no
Novo Continente, a no interveno europia nos assuntos americanos e
demarcava uma posio de neutralidade dos Estados Unidos com relao a
conflitos ocorridos na Europa. 23
A marcha para o Oeste significou tambm uma expanso em terras que
eram habitadas por indgenas, fato que ocasionou conflitos. Entretanto,
geralmente as guerras geram unidade. Os inimigos frente a metrpole inglesa
e os indgenas que resistiam eram mais fortes do que as diferenas internas
entre nortistas e sulistas.
21 Ibidem, p. 64. 22 Sobre a Doutrina Monroe, ver PERKINS, Dexter. A History of the Monroe Doctrine. 23 ALLEN, H.C. Op. Cit. pp. 111-121.
14
Tanto Sul, quanto Norte compartilhavam uma mesma concepo para as
polticas mais amplas, voltada ao expansionismo e afirmao da superioridade
branca. Americanos de ambas as regies do pas sonhavam com os Estados
Unidos como potncia dominante no esquecido Hemisfrio Ocidental. 24 Estas
idias estavam diretamente ligadas doutrina do Destino Manifesto25, teoria de
origem calvinista que defendia a crena dos Estados Unidos como nao eleita
por Deus. 26
No mbito econmico, as duas localidades mantinham relaes comerciais.
Porm, progressivamente, a diferenciao econmica entre as duas regies foi
aumentando, sendo que interesses regionais passaram a desestabilizar a
integridade nacional norte-americana 27. Neste contexto, o prprio conflito com o
Mxico, que antes unira as duas regies, agora era motivo de desacordo, uma
vez que esse embate passava a ser criticado frente a um temor de que o
processo expansionista contribusse com a manuteno de uma poltica
escravocrata, aumentando, consequentemente, o poder poltico e influncia
sulista.
O espao mexicano foi, notavelmente, ocupado pelos grandes proprietrios
sulistas, que visavam expandir sua rea de produo. Entretanto, as autoridades
nortistas no gostaram da idia da expanso sulista-escravocrata, apesar de no
terem tomado medidas efetivas contra a ocupao. provvel que o norte no
tenha adotado postura mais ofensiva contra a ao no Mxico por no querer ou
talvez por no poder desenvolver um projeto diferente do projeto sulista na regio.
Porm, preciso salientar que este episdio demonstrou as grandes divergncias
entre os dois blocos polticos, sociais e econmicos dentro da federao. 28
Definitivamente, Sul e Norte possuam aproximaes e relaes. Porm, as
diferenas entre as duas regies intensificavam-se progressivamente. As
afinidades existentes foram suplantas pelas profundas divergncias que
24 Ibidem, p. 112. 25 Sobre o Destino Manifesto, ver WEINBERG, Manifest Destiny: A Study of Nationalist Expansionism in American History. 26 IZECKSOHN, Vitor. Escravido, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano antes da Secesso. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Ps-graduao em Histria Social da UFRJ, n 6, Janeiro-Junho de 2003, Volume 04. pp. 48-64. 27 Ibidem, pp. 47-54. 28 IZECKSOHN, Vitor. Deportao ou Integrao. Os dilemas negros de Lincoln. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Ps-graduao em Histria Social da UFRJ, n 20, Janeiro-Junho de 2010, Volume 11. p. 61.
15
emergiam. Uma vez que os inimigos externos haviam sido superados as tenses
internas voltaram a aflorar novamente.
O Norte vivenciava um perodo de grande desenvolvimento econmico a
partir de um processo industrializao, com preponderncia das indstrias naval e
txtil que orientavam sua produo de acordo com o capitalismo mundial. Era um
perodo de rpida diversificao da economia, com a regio atrelando-se ao
capitalismo comercial mundial a partir de uma verdadeira revoluo de mercado
que incorporou novas atividades e trouxe um grande volume de riquezas para o
Norte. Indstrias nas mais diversas reas, como ferro e ao, botas e sapatos,
papel, comestveis empacotados, armas de fogo, maquinrio agrrio, moblia e
ferramentas, desenvolveram-se rapidamente. O volume de emprstimos
concedidos e seguros vendidos pelos bancos teve aumento exponencial. As
estradas de ferro e a produo de barcos a vapor movimentou a indstria dos
transportes. Servios e bens passaram a movimentar a quantia de 2 a 3 bilhes
de dlares anuais e o volume de exportaes atingiu o valor de 400 milhes de
dlares.29
No mbito social, essa regio, mais populosa, tinha alto nmero de
alfabetizados e um considervel nmero de imigrantes estrangeiros30. Alm disso,
o contexto de desenvolvimento industrial propiciou o surgimento de uma nova
grande classe; a classe dos trabalhadores assalariados.31 Com relao
populao escrava, notvel que na maior parte dos estados do Norte, o nmero
de negros em proporo ao nmero de habitantes era pequeno e pouco
significante economicamente. 32 Enquanto o Sul abrigava, na dcada de 1860,
quase 4 milhes de escravos33, nos estados do Norte este nmero muito inferior.
New Jersey era o estado nortista com o maior percentual de escravos com
relao a populao total, possuindo 3,76% da populao escrava. Enquanto
29 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edio). Blackwell Publishing, 2005. p. 53. 30 KARNAL, PURDY, FERNANDES, MORAIS. Leandro, Sean, Luiz Estevam, Marcus Vincius de. Os EUA no sculo XIX. Histria dos Estados Unidos, das origens ao sculo XXI. So Paulo: Contexto, 2 edio, 2007. pp. 129-136. 31 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edio). Blackwell Publishing, 2005. p. 03. 32 Ibidem, p. 02. 33 ALLEN, H.C. Op. Cit. p. 129.
16
isso, estados como New Hampshire e Massachussets mantinham a porcentagem
de escravos abaixo da margem de 1% da populao. 34
Nos estados do Sul a situao era diferente. Os proprietrios sulistas
encontravam dificuldade em utilizar tecnologias recentes na sua produo e a
inda estavam profundamente ligados a uma idia pastoril, que defende que o
trabalho na terra aquele que detm maior valor para o homem35. Assim, a
agricultura ainda era a principal atividade regional, estando baseada no trabalho
escravo africano. A produo agrria sulista tambm foi afetada pela mesma
revoluo de mercado identificada no Norte. Entretanto, nos estados do Sul ela
teve efeito de expanso e intensificao da agricultura comercial, bem como
colaborou para arraigar a idia da necessidade de uma expanso das grandes
plantations para o Oeste, suplantando as pequenas propriedades destinadas
subsistncia. Neste sentido, importante atentar para o fato de que os grandes
proprietrios das plantations no constituam maioria entre a populao, pelo
contrrio. Porm, eram eles os detentores do poder econmico e do prestgio
social, comandando as decises polticas. 36
Em suma, os diferentes projetos de colonizao a quase inexistncia de
projetos e o mosaico de formas diferenciadas de conceber-se americano, muito
calcado nos tipos humanos, polticos e religiosos diferenciados que j existiam
desde a colnia e que continuaram existindo aps a independncia - evidencia
essas diferenas internas recobertas por uma capa de unidade que era a
federao dos estados. Esses eram muito diferentes entre si, porm mantinham-
se unidos porque gozavam de uma relativamente forte autonomia dentro da
federao. Ou seja, s podiam ser um s, porque o tipo de organizao adotada
permitia que essas diferenas existissem, j que o pressuposto dessa
organizao era a autonomia dos estados. Isso tambm evidencia que no
momento da guerra civil a questo da escravido era to forte que o princpio da
autonomia dos estados da federao foi breca quando o Norte interfere no
modelo de organizao poltica, social e econmica no Sul.
34 Censo disponvel em: http://www.slavenorth.com/ Acesso em: 25 de novembro de 2010. 35 IZECKSOHN, Vitor. Op. Cit. pp. 47-51. 36 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edio). Blackwell Publishing, 2005. pp. 03-05.
17
Para alm dessas questes, notvel que o Sul ainda mantinha fortes
laos com a antiga metrpole inglesa. Laos, sobretudo econmicos, que a
Revoluo Americana de 1776 no foi capaz de cortar imediatamente. A
produo local mantinha-se dependente do mercado britnico, sempre
procurando expandir os domnios de sua monocultura algodoeira e a rea de
abrangncia da comercializao de sua produo agrcola para territrios
situados mais ao Norte, o que de certo modo, representa complementaridade das
produes de ambos os territrios. Assim, a diversificao da economia no era
uma realidade possvel no Sul, enquanto que no Norte ela j era acentuada.
No mbito poltico tambm havia diferenciao entre o Norte e o Sul dos
Estados Unidos. No congresso, o Sul procurava equilibrar as diferenas que
existiam nos planos econmicos e sociais, defendendo e impondo suas
concepes escravistas e agrrias de forma radical.
O Sul escravista ao mesmo tempo controlava o Estado americano
e tornava-se o mais srio adversrio da sua expanso nos anos que
antecederam a Guerra 37.
Desta forma, as divergncias e debates s foram intensificados com o
desenrolar do conflito blico. As vises relativas ao papel desenvolvido pelo
governo central, a forma com que estava dividido o poder federal e o prprio
exerccio da democracia, foram se distanciando e tornando-se contrrias. Assim,
o separatismo chegava poltica e passava a ameaar a unidade da federao. 38
Entretanto, necessrio atentar para o fato de que o ensejo da guerra ia
muito alm das causas polticas. O objetivo do conflito no era apenas a
preservao da Unio, pelo contrrio39. Os motivos da secesso possuam razes
muito mais profundas, que remetiam ao perodo colonial. As diferenas entre
Norte e Sul se davam no plano dos projetos polticos de cada regio, em muito
devido ao da administrao inglesa. A coroa britnica ausentou-se no incio
da colonizao, moldando uma perspectiva de auto-determinao em seus
colonos. Disso decorre no ser nada surpreendente que uma grande rea tenha
37 IZECKSOHN, Vitor. Op. Cit. p. 58. 38 Ibidem, pp. 47-63. 39 ALLEN, H.C. p.129.
18
um projeto poltico, econmico e social muito diferente das linhas gerais do
projeto de seus vizinhos.
A essas diferenas na composio econmica e poltica das duas regies,
somou-se a questo da escravido. Aps a independncia, em 1776, procurou-se
organizar os Estados em uma Unio federalista. Entretanto, essa organizao
deixou de lado demandas cruciais na formao da nao, entre elas a da
escravido.
Primeiramente, a prpria igualdade era limitada, estando negros e ndios
prontamente excludos, sem direito a nenhuma representao poltica. Os negros,
particularmente, eram vistos como passageiros em solo americano, sendo a
escravido uma instituio a ser superada pelas foras do desenvolvimento
econmico e poltico. Assim, a igualdade encontrava-se restrita aos homens
brancos por (...) disporem de prerrogativas extraordinrias, ausente da vida das
demais naes 40. Essas concepes no sofreram modificaes significativas,
mesmo no sculo XIX. Assim, estas questes viriam tona mais tarde,
notavelmente, com o processo de expanso territorial norte-americano, que
mobilizou tanto os estados do Norte, quanto do Sul dos Estados Unidos. 41
A expanso para o oeste havia ampliado a prpria escravido - com um
singular crescimento demogrfico da populao de origem africana concentrada
no Sul - transformando os Estados Unidos da Amrica em um pas
essencialmente escravista, processo que havia se iniciado com a lei de proibio
do trfico negreiro, em 1808, e com o aumento no nmero de escravos no Sul 42.
A escravido, remanescente do perodo colonial, era defendida pelos grandes
proprietrios sulistas, que visavam proteger interesses econmicos ligados as
plantations baseadas no trabalho escravo africano. Esses grandes proprietrios
ainda contavam com o apoio de produtores menores, em uma aliana que visava
continuar a subordinar a populao negra.43 Para tanto, os dirigentes do Sul
utilizavam uma leitura prpria da Constituio e princpios federalistas para
40 IZECKSOHN, Vitor. Deportao ou Integrao. Os dilemas negros de Lincoln. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Ps-graduao em Histria Social da UFRJ, n 20, Janeiro-Junho de 2010, Volume 11. p. 56. 41 Ibidem, pp. 56-58. 42 Ibidem, p. 58. 43 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edio). Blackwell Publishing, 2005. p. 08.
19
garantir a manuteno da escravido em seus estados, compreendida como uma
espcie de mal necessrio a composio da nao norte-americana. Ademais,
como define Victor Izecksohn:
O crescimento constante da populao cativa, aliado expanso
do cultivo algodoeiro, reforou a posio dos setores escravistas que
paulatinamente assumiram uma atitude agressiva na poltica norte-
americana, demandando territrios, financiamento e proteo por parte do
Estado 44.
A partir disso, a elite escravista do Sul cunhou concepes que versavam
sobre a legalidade e necessidade de manuteno da ordem escravista, afirmando
que (...) a escravido garantia a equidade civil dos homens brancos e protegia o
sistema social do Sul das tendncias radicais do proletariado livre 45. Idias como
essa, vindas do Sul, alarmaram os nortistas, que surpreenderam-se e
condenaram as demandas sulistas. Essas entraram em conflito direto com as
idias abolicionistas que surgiam no Norte, inclusive no mbito do congresso
nacional, abrindo as portas para uma linha de pensamento seccional que levou a
guerra civil. Tal demanda abolicionista havia surgido entre os nortistas como
conseqncia direta do processo de expanso do mercado local, que levou a
criao de novos padres de humanitarismo e ao esforo abolicionista no Norte. 46
A partir disso, vlido dizer que a escravido foi fator crucial para a
ecloso da Guerra Civil, promovendo um combate ideolgico entre as duas
pores do pas. A partir disso, os prprios termos do debate poltico da dcada
de 1850 foram reformulados, dividindo ainda mais os Estados Unidos e sendo
fundamental no prprio processo de formao da nao norte-americana.47
Entretanto, necessrio relativizar uma imagem abolicionista defendida por
grande parte da historiografia norte-americana.
44 Ibidem, p. 58. 45 Ibidem, p. 09. 46 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edio). Blackwell Publishing, 2005. pp. 04-08. 47 IZECHSOHN, Vitor. Escravido, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano antes da Secesso. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Ps-graduao em Histria Social da UFRJ, n 6, Janeiro-Junho de 2003, Volume 04. pp. 47-57.
20
A Abolio ganhou respeito no Norte apenas quando seus
oponentes ultrapassados do Sul republicano passaram a tentar silenciar
os inimigos da escravido. Represlias violentas contra os abolicionistas,
aliadas ao desdm e desafio aberto dos sulistas, fortaleceu o movimento
anti-escravido a longo prazo.48
Grande parte dos republicanos nem mesmo chegou a elaborar uma crtica
pesada sobre o tema da expanso da escravido. Muitos assumiam posio mais
moderada, simplesmente preocupados com a expanso da escravido para o
oeste e seu impacto no grau influncia do Sul junto ao senado. 49
A chamada Crise do Missouri, de 1819, foi o estopim dos desacordos entre
Norte e Sul acerca da questo escravista. O estado do Missouri havia solicitado
incluso como estado escravocrata, tendo apoio irrestrito do Sul, fato que causou
grande comoo no Norte. Assim, as disputas entre as duas regies iniciavam-se
no mbito poltico, com o Sul demonstrando que no iria abandonar um projeto de
expanso da escravido para territrios a Oeste. Os defensores da escravido
compreendiam a instituio escravista como um benefcio, um alicerce para a
economia e poltica do Sul. Assim, os representantes sulistas estavam dispostos a
defender a causa da escravido de maneira radical. Desta forma, a organizao
partidria norte-americana passou a ser abalada por conflitos de interesses
regionais, fato que impulsionou um processo de desintegrao da unidade
nacional. 50
Diante do impasse criado pela Crise do Missouri os congressistas optaram
por uma soluo conciliatria. Assim, foi assinado o Compromisso do Missouri,
que admitiu o estado como escravista e ainda regularizou a situao do estado
nortista do Maine, que passou a ser considerado livre. A partir disso, buscava-se
a manuteno de certo equilbrio entre os congressistas do norte e aqueles
oriundos de estados livres e escravocratas. Este episdio demonstrou que a
escravido no configurava-se enquanto uma instituio decadente, pelo
48 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edio). Blackwell Publishing, 2005. p. 04 49 Ibidem, p. 09. 50 IZECKSOHN, Vitor. Escravido, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano antes da Secesso. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Ps-graduao em Histria Social da UFRJ, n 6, Janeiro-Junho de 2003, Volume 04. p.57.
21
contrrio. A escravido possua fora econmica e poltica, amparada por grande
parcela da sociedade sulista que defendia sua expanso. Diante desta situao,
os senadores do Sul uniram-se em prol da defesa da escravido, repudiando
qualquer pretenso nortista de impor limites a prtica escravista. 51
A Carolina do Sul tambm foi importante quanto aos debates acerca a
questo escravista. Aguerrido defensor da escravido, este estado sulista lutava
pela reabertura do trfico de escravos africano e, portanto, contra as diretrizes de
poltica internacional do maior parceiro comercial externo do sul algodoeiro, a
Inglaterra. A elite local defensora arraigada dos princpios federalistas -
desafiava frequentemente a administrao central, protagonizando a chamada
Crise de Nulificao, circunstncia na qual recusou-se a pagar impostos ao
governo federal. Esse episdio demonstrou a fora das elites locais sulistas, que
se unidas poderiam levar o pas a secesso, como de fato o fizeram. 52
Por volta d dcada de 1840, vinte anos antes da ecloso da guerra, a
escravido voltou a ser tema de grandes debates e inflamadas discusses entre
os estados do Norte e do Sul. Com a anexao de territrios anteriormente
pertencentes ao Mxico, a expanso tambm tomou lugar nas discusses,
provocando um realinhamento partidrio53. A ampliao do territrio norte-
americano era amplamente defendida pelos representantes sulistas no
congresso, uma vez que representaria a alargamento de sua fronteira agrcola e
do prprio nmero de escravos necessrios para manter as novas terras
anexadas produtivas. Em contraponto, a opinio pblica nortista encontrava-se
profundamente dividida acerca deste tema. A prpria anexao do territrio do
Texas enquanto estado escravista em 1844 e a guerra empreendida contra os
mexicanos entre 1846 e 1848 foram amplamente contestadas por grupos que
temiam uma expanso da instituio escravista - para o resto do pas. 54
Essas tenses acerca dos temas da escravido e da expanso territorial
foram exacerbadas no ano de 1846, data em que o pas ficou, pela primeira vez,
51 Ibidem, p. 57. 52 Ibidem, p. 63. 53 IZECKSOHN, Vitor. Deportao ou Integrao. Os dilemas negros de Lincoln. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Ps-graduao em Histria Social da UFRJ, n 20, Janeiro-Junho de 2010, Volume 11. p. 61. 54 IZECKSOHN, Vitor. Escravido, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano antes da Secesso. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Ps-graduao em Histria Social da UFRJ, n 6, Janeiro-Junho de 2003, Volume 04. p. 64.
22
beira da secesso. Neste ano, foi promulgada a chamada Emenda Wilmot, na
qual o deputado democrata oriundo do estado da Pensilvnia David Wilmot
demandava a abolio da escravido das regies incorporadas nas quais a
prtica escravista no existia anteriormente, tais como o estado do Missouri. Tal
resoluo, como era esperada, gerou grande revolta entre os representantes
sulistas no congresso, o que obrigou os polticos moderados do Norte a
buscarem, uma vez mais, solues conciliatria e diplomticas, visando a
manuteno da unidade federal. 55
Alm disso, a atuao do prprio governo norte-americano acabou por
agravar as divergncias entre Norte e Sul. A influncia sulista junto ao governo - e
mesmo junto ao prprio presidente - era grande, o que possibilitava a entrada de
polticas favorveis a escravido no mbito da administrao central56 . Um bom
exemplo desta influncia a promulgao da Lei dos Escravos Fugidos em 1850.
Esta legislao continha uma clara concesso aos apelos sulistas, prevendo o
direito dos proprietrios de escravos de readquirirem - por meio de agentes
federais os cativos fugidos e abrigados em estados do Norte. Enquanto isso, os
negros eram formalmente excludos de qualquer meio de defesa legal. Assim,
esta nova lei chocou os estados do Norte. Alm de ferir seus princpios de
autonomia federalista, tal legislao mostrou a fora da bancada sulista e sua
influncia no governo central, alimentando idias conspiratrias sobre a relao
dos deputados sulistas e a administrao federal. Esse episdio foi central para a
criao, no Norte, de concepes radicalmente contrrias aos sulistas, afastando
ainda mais no plano ideolgico e poltico as duas regies. 57
Conflitos localizados comeavam a aparecer em diferentes estados, como
no Kansas, Illinois e outras regies do meio-oeste dos Estados Unidos. Essas
regies, vivenciavam conflitos internos por fazerem fronteira entre Norte e Sul,
convivendo com o embate direto entre as duas regies. No Kansas,
especificamente, esta situao foi agravada por concepes federalistas que
55 Ibidem, p. 64. 56 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edio). Blackwell Publishing, 2005. p. 09. 57 Ibidem, p.64.
23
levaram a criao de dois governos na regio, um representando os ideais do
Norte e outro do Sul. 58
A situao de descontentamento, sobretudo quanto a questo da
escravido, era tamanha entre os dirigentes nortistas que iniciou-se uma
organizao partidria prpria com fins de defender os interesses do Norte junto
ao governo central e barrar a influncia sulista.
Este partido expressava uma aliana entre pequenos e mdios
fazendeiros e grandes industriais e comerciantes. O que mantinha estes grupos unidos era a comum averso ao poder sulista visto como desagregador da nao 59
Dessa forma, o ano de 1858 marca a fundao do Partido Republicano,
com um programa de desenvolvimento industrial e social aliado abolio que
tinha no Sul agrrio e escravista seu entrave. Importante notar que os membros
deste partido definiam a si mesmos em oposio economia baseada no trabalho
escravo praticada no Sul, frisando o carter da elite escravocrata dessa regio
como opressora. Alm dessas questes, o Sul era compreendido como um
entrave ao desenvolvimento da Unio como um todo. Os problemas sociais
identificados no Norte eram compreendidos como fruto da poltica escravista do
Sul, que atrasava a economia norte-americana. 60
O novo partido no demorou a desbancar a antiga maioria sulista -
democrata - na bancada nacional, contando com grande apoio da opinio pblica,
que tendeu a apoiar os republicanos e seu programa firme de oposio a
escravido e a sua expanso61. Assim,
os dois principais no mais conseguiam excluir as divergncias
seccionais do debate parlamentar, dividindo-se em linhas geogrficas
claramente associadas s formas de trabalho livre ou escrava. 62
58 IZECKSOHN, Vitor. Escravido, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano antes da Secesso. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Ps-graduao em Histria Social da UFRJ, n 6, Janeiro-Junho de 2003, Volume 04. p. 62. 59 Ibidem, p. 66. 60 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edio). Blackwell Publishing, 2005. p. 09. 61 Ibidem, p. 09. 62 IZECKSOHN, Vitor. Escravido, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano antes da Secesso. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Ps-graduao em Histria Social da UFRJ, n 6, Janeiro-Junho de 2003, Volume 04. p. 62.
24
Desta forma, a disputa tomava contornos morais, regionalistas e
econmicos.
A partir desse momento os embates entre nortistas e sulistas s se
tornaram ainda mais acirrados, com disputas no legislativo, executivo e judicirio.
Estando o governo central nas mos dos republicanos, sua poltica foi orientada
para o fim da escravido. Para tanto, visava-se o enfraquecimento dos
representante sulistas na bancada federal, fatos que agravavam a difcil
convivncia entre Norte e Sul. O Norte tornava sua posio cada vez mais radical,
enquanto o Sul defendia suas idias escravistas de forma exacerbada. Assim,
em fins de 1850 a Guerra de Secesso era eminente. O Sul entendia a
escravido como um direito constitucional que deveria ser garantido pelo governo
nacional, enquanto o Norte entendia a escravido como uma instituio arcaica e
que estava fadada ao desuso e ao desaparecimento. Diante da medida contrria
tomada pela administrao central em consonncia com tais anseios nortistas, o
Sul viu-se em posio de separar-se do resto da Unio. 63
Somando-se a esse contexto j crtico havia o fato de que os Estados
Unidos estava passando por um perodo eleitoral.
A eleio do republicano moderado Abraham Lincoln, em
novembro de 1860, instigou a crise final atravs da qual a maioria dos
Estados do Sul separou-se da Unio64.
A alada de Lincoln a presidncia desesperou os sulistas, que temiam
restries prtica escravista. Por outro lado, a posse de Lincoln foi o momento
ideal para a ao dos deputados separatistas, que viam no novo presidente um
isolamento do Sul e o gradual enfraquecimento da escravido65. Assim, o jovem
Lincoln se viu diante de um processo de diviso do pas; processo este
frequentemente subestimado pelos republicanos e pelo prprio presidente.
63 IZECKSOHN, Vitor. Escravido, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano antes da Secesso. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Ps-graduao em Histria Social da UFRJ, n 6, Janeiro-Junho de 2003, Volume 04. p. 66-71. 64 Ibidem, p. 71. 65 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edio). Blackwell Publishing, 2005. p. 09.
25
Subestimado principalmente porque os republicanos no contavam com a
extenso do apoio popular aos Estados Confederados do Sul.
Assim, no Norte a escravido tornou-se problemtica, enquanto que no Sul
a manuteno da instituio escravista configurava-se como o nico meio de
manter o modo de vida esboado em ideais aristocrticos. A partir disso, a
secesso tornou-se uma realidade, notavelmente muito mais violenta e radical do
que supunham os dirigentes nortistas. Para restaurar a Unio seriam necessrios
quatro anos de guerra, a destruio da escravido no Sul e a reorganizao da
economia poltica da confederao pela coalizo vencedora 66. Desta forma, a
guerra foi o maior sintoma do abismo existente entre duas regies que possuam
concepes distintas, ao passo que tambm foi o modo de reunificar ou unificar
pela primeira vez os interesses e projetos que eram to discrepantes.
66 Ibidem, p. 74.
26
RALLY MEN OF COLOR, AT ONCE FOR YOUR COUNTRY!: OS SOLDADOS
NEGROS NA GUERRA DE SECESSO
Ns cultivamos o algodo, ns cultivamos o milho; Ns somos soldados de cor Yankes, agora, to certo como vocs nasceram; Quando os mestres nos ouvirem gritando, eles pensaro que a trombeta de Gabriel; E ns marcharemos. 67
No presente captulo realizar-se- um esboo da cronologia da criao das
tropas negras, tanto dos confederados como da Unio. Nessa cronologia, se
analisaro detidamente proclamaes oficias do presidente Lincoln acerca das
tropas de negros, o Militia Act e o Segundo Confiscation Act, fontes primrias para
a elaborao desse captulo. A anlise desses documentos so essenciais para
compreenso do processo de incorporao de homens de cor nos exrcitos norte-
americanos e muito do que ocorrer no ps-abolio.
Com a ecloso do conflito da secesso, o presidente norte-americano
Abraham Lincoln passou a mobilizar foras voluntrias para enfrentar as tropas
separatistas do Sul. Cerca de 75.000 voluntrios atenderam ao apelo presidencial
e juntaram-se ao exrcito da Unio. Entre os homens que apresentaram-se aos
centros de recrutamento, notvel a participao de centenas de negros livres do
Norte e escravos fugidos do Sul. Entretanto, as autoridades governamentais
alegaram que no havia necessidade da incorporao de negros a instituio
militar, uma vez que no cabia a eles lutar em um conflito que era compreendido
como uma guerra apenas de homens brancos. 68
Desta forma, em um primeiro momento, os estados nortistas e sulistas
passaram a um recrutamento macio de suas populaes brancas. Logo,
percebeu-se que o nmero de homens brancos em idade de combate no era
suficiente, problema identificado nos exrcitos tanto do Sul, quanto do Norte.
Assim, passou-se, primeiramente, ao alistamento de homens de outras
67 Verso da cano militar John Browns Body, composto por abolicionistas de Nova York para o 1 regimento de infantaria do Arkansas (descendentes de africanos). In: TRUDEAU, Noah Andr. Like Men of War: Black Troops in the civil war (1862-1865). New York: Castle Books, 2002.p. 99. 68 MCCORMICK, Jayne. The Black Troops of the Civil War. 2001. Disponvel em: http://www.bitsofblueandgray.com/feb2001.htm. Acesso em: 25 de outubro de 2010.
27
nacionalidades. Foram organizadas tropas compostas de alemes, escoceses,
irlandeses, suecos, escandinavos e italianos.69Entretanto, o nmero de alistados
era muito inferior ao demandado, permanecendo o problema da insuficincia
militar. Alm disso, haviam ainda causalidades, epidemias, deseres e
resignaes, que traziam baixas aos efetivos militares. Em vista de tais
problemas, recorreu-se ao recrutamento de homens negros. 70
1. Os soldados negros no norte.
Os estados da Unio foram os primeiros a recrutar descendentes de
africanos. A poltica restritiva aos negros estava sendo, por fora da necessidade,
abandonada. A guerra no era mais um conflito somente dos homens brancos,
agora os negros eram incitados a combater. 71 Entretanto, necessrio relativizar
a idia de que no Norte os negros alistados foram incorporados sem problemas
s corporaes militares. Os desconfortos e embates com oficiais e soldados
brancos eram corriqueiros, havendo grande desconfiana na capacidade das
tropas compostas apenas por homens de cor72.
Entretanto, o desenvolvimento da guerra exigia o recrutamento de
descendentes de africanos. Neste contexto o ano de 1862 mostra-se
paradigmtico, tanto para a organizao de tropas na Unio, quanto na
confederao. No mbito dos estados nortistas, ao final deste ano criou-se a 1
Kansas Colored Volunteer Infantry 73, que manteve-se por um tempo
independente do controle federal. Este regimento contrariou os cticos quanto ao
desempenho dos soldados negros ao sair vitorioso de vrias batalhas, entre elas
a Batalha da Ilha Mound, no estado fronteirio do Missouri. Sendo um border
state74 , o Missouri era fundamental nas pretenses nortistas de vencer os
confederados. Assim, a operao do 1 Kansas Colored Volunteer foi fundamental
69 BURTON, William L. Melting Pot Soldiers. The Unions Ethnic Regiments Norths Civil War. Fordham University Press, 1998. p. 52. 70 Ibidem, p.47. 71 TRUDEAU, Noah Andr. Op. Cit. pp. 03-20. 72 Ibidem, p. 112. 73 Este nome designava o 1 regimento de voluntrios coloridos do Kansas. 74 Os border states (estados tampes) eram estados escravistas situados na Unio. Eram quatro os border states: Missouri, Delaware, Maryland e Kentucky.
28
ao expulsar as tropas sulistas da regio, fato que rendeu a esta infantaria
honrarias e fama entre os militares.75 Exemplo da importncia dada a este
destacamento, que em meados de 1863 o 1 Kansas Colored Volunteer j
integrava formalmente o servio militar norte-americano76, sendo um dos
regimentos negros da Unio a angariar este posto, a lado de tropas de destaque,
como as do Distrito de Columbia e Ohio. 77
O estado do Kansas figura, desta forma, entre os estados que
organizaram tropas de homens de cor mesmo sem uma oficializao da gesto
Lincoln, demonstrando a fora do princpio federalista norte-americano, regido
pela idia de autonomia dos poderes das localidades e dos estados. Os estados,
diante da falta de ao do governo quanto s demandas por mais homens,
resolveram organizar sua defesa de forma independente. Em seus estados,
governadores passaram a agir de forma autnoma para garantir a integridade
territorial e conter as foras confederadas78. Assim, quando se d uma legislao
especfica acerca dos regimentos negros, essa lei vem apenas regulamentar uma
realidade j existente h tempo considervel nos estados da Unio, uma vez que
a utilizao de soldados negros se dava desde o incio dos conflitos, porm sem a
organizao em unidades.79
2. Os soldados negros no sul.
Apesar da grande desconfiana e averso quanto integrao de negros a
instituio militar, os estados do Sul frente ao avano nortista passaram
tambm ao recrutamento de descendentes de africanos. Assim, o ano de 1862
marca a primeira organizao sulista quanto s tropas negras, com o First
Louisiana Native Guards sendo formalmente integrado ao exrcito dos Estados
Unidos. Este constituiu o primeiro regimento totalmente negro, exceto no
oficialato, a entrar na USCT durante a Guerra Civil. Era um grupo motivado,
mesmo com todo o racismo por parte dos oficiais brancos. Porm, ainda estavam
75 MCCORMICK, Jayne. Op. Cit. s/p. 76 As tropas negras que integravam o servio militar norte-americano era designadas pela sigla USCT United States Colored Troops (Tropas de cor dos Estados Unidos) 77 TRUDEAU, Noah Andr. Op. Cit. pp. 103-115. 78 BURTON, William L.Op Cit..pp. 15-17. 79 Ibidem, pp, 03-05.
29
sendo testados em trabalhos manuais menores, para s depois serem
empregados na batalha contra a Unio80.
No ms de maio do mesmo ano iniciou-se o recrutamento de negros para o
corpo militar do estado confederado da Carolina do Sul, a fim de integrar homens
de cor ao primeiro regimento do estado. Estes soldados em sua maioria
encontravam-se em situao de grande pobreza. Muitos enfrentavam dificuldades
quanto ao que vestir e calar. Mesmo assim, nenhum uniforme foi providenciado
para tais soldados, muito menos qualquer tipo de pagamento ou soldo. 81
Desta forma - mesmo repletos de tenses sociais - os estados sulistas de
New Orleans e Louisiana, frente s vitrias da Unio que quebravam com o rgido
regime escravista local, foram igualmente pioneiros no que tange ao armamento
de tropas negras. Entretanto, haviam restries e pesados encargos financeiros.
As armas eram pessoais, porm s poderiam ser usadas para defesa de algum
posto. Os custos com uniformes, por sua vez, ficavam a cargo do prprio soldado,
sendo que o soldo dos homens negros era muito inferior ao dos recrutas brancos. 82
Um grande nmero de escravos nem mesmo chegava a pisar em um
campo de batalha, sendo a maioria era empregada na construo de fortificaes
e defesas. Outros - como aqueles que compunham a defesa do estado
confederado do Tennessee - marchavam como servos de seus proprietrios ou
trabalhavam em funes de cozinheiros, enfermeiros, trabalhadores nas ferrovias
ou na indstria blica confederada83. Esses escravos, apesar de integrados ao
exrcito, continuavam a ser propriedade de seus senhores, sendo utilizados nas
foras armadas em trabalhos similares aos que tinham nas plantations e outras
atividades que empregavam a mo de obra escrava. Esses negros no eram
compreendidos como soldados, e sim como necessidade militar, sendo
indispensvel envi-los - ao fim do conflito - novamente aos seus senhores84.
Chegou-se a aventar em meados de 1864 a possibilidade dos sulistas
empregarem escravos no exerccio militar prometendo, aqueles que
eventualmente sobrevivessem ao conflito, a liberdade ao trmino da guerra. 80 Ibidem, p. 09. 81 MCCORMICK, Jayne, Op. Cit. s/p. 82 BURTON, William L.Op Cit..p. 09. 83 Ibidem, p. 09. 84 TRUDEAU, Noah Andr. Op. Cit. pp. 109-112.
30
Entretanto, esta medida no chegou a ser aplicada, uma vez que as tropas as
quais se prometeu a liberdade no chegaram a atuar no embate com os
nortistas85.
A partir de 1862 a dependncia do exrcito com relao a essas tropas
formadas por negros passou a tornar-se cada vez maior, exigindo uma
regulamentao, por parte do governo Lincoln, com relao sua constituio
formal. Uma ao neste sentido contrariava a poltica de no institucionalizao
empregada pela administrao Lincoln desde os primrdios do conflito com o Sul.
O presidente adotou tal postura, em muito, pela atitude evasiva do governo
quanto questo escravista. Lincoln compreendia o peso dessa questo e as
controvrsias que ela geraria, sobretudo nos border states, no quais a escravido
ainda era uma prtica comum, enraizada socialmente. neste contexto que
insere-se a relutncia de Lincoln em permitir o alistamento de negros no exrcito
da Unio. 86
Inicialmente, a administrao Lincoln resistiu a qualquer esforo no sentido
de armarem-se os negros. Apesar de seu desejo pessoal de integrar negros as
tropas da Unio, o presidente no via essa necessidade, uma vez que o
alistamento voluntrio ainda supria as necessidades nortistas e o sul no havia
ainda angariado vitrias significativas. neste contexto que so promulgados em
17 de julho de 1862 o Segundo Confiscation Act e o Militia Act. Ambos os atos
so aprovados pelo congresso norte-americano com o objetivo de alargar os
poderes do presidente para usar milcias de homens negros.
A promulgao do Militia Act dava ao presidente total autoridade para
aprovar o recrutamento de competentes descendentes de africanos que atuariam
no exrcito e na marinha, alm de conceder-lhe o direito de nomear os oficiais
que ficariam no comando de tais milcias. Este documento tinha como finalidade
estabelecer:
(...) padres federais para a organizao das milcias, um ato a mais para prover a defesa nacional, estabelecendo uma milcia uniforme ao longo dos Estados Unidos 87.
85 MCCORMICK, Jayne, Op. Cit. s/p. 86 Idem, Ibidem. 87 Militia Act (1862). Disponvel em: http://www.history.umd.edu/Freedmen/milact.htm Acesso em: 28 de outubro de 2010. Traduo livre.
31
Para tanto, buscavam-se situar modelos quanto ao recrutamento,
treinamento e armamento de todos os soldados, brancos e negros. O alistamento,
segundo o Militia Act deveria estender-se a todos os homens entre 18 e 45 anos,
sendo que aps seis meses de ingresso na milcia esses soldados deveriam estar
armados com rifles ou mosquetes, munidos de balas em uma mochila ou bolsa88.
Entretanto, a rea de atuao dos soldados negros nortistas continuava, no raro,
restrita a construo de trincheiras e outros trabalhos fsicos.
O Militia Act estabeleceu tambm forma com que deveria se dar a
convivncia entre brancos e negros no mbito militar, reiterando que os negros
no deveriam ser tratados como iguais, sendo que este tratamento diferenciado
se estenderia a questo do soldo. Uma das alegaes discriminatrias refere-se
ao fato dos soldados negros no haverem integrado o exrcito no incio do conflito
da secesso e, portanto, no haviam lutado desde os primeiros embates. Por
esse motivo, alegava-se no possurem direito ao mesmo valor de soldo dos
brancos.
Os valores baixos pagos a todos os soldados, eram ainda mais baixos para
os soldados negros. Os soldados brancos recebiam U$ 13,00 mensais, com um
adicional de U$3,50. J os soldados negros recebiam U$10 mensais, entretanto,
U$3 eram descontados por conta dos uniformes, restando apenas 7 dlares para
cada soldado89.
O Segundo Confiscation Act, por sua vez, visava acabar com o dilema
relativo incorporao de escravos na corporao militar. Assim, os poderes de
Lincoln, com relao s milcias negras, foram alargados para melhor se
combater as foras confederadas, como explicita-se na seo onze do
documento:
(...) o Presidente dos Estados Unidos autorizado para
empregar muitas pessoas de descendncia africana como pode julgar
necessrio e prprio para a supresso desta rebelio, e para este
88 Idem, Ibidem. 89 MCCORMICK, Jayne, Op. Cit. s/p.
32
propsito pode ele organizar e os usar de tal maneira como ele julgar
melhor para o bem-estar pblico. 90
A proclamao trata, igualmente, da situao dos cativos nos estados que
haviam deixado a Unio. Assim, o Segundo Confiscation Act constituiu um
esforo inicial no sentido de emancip-los. Os confederados que no se
adequassem s exigncias do Ato em at 60 dias aps sua aprovao seriam
punidos por crime de traio contra os Estados Unidos da Amrica, tendo como
pena a libertao de seus escravos. Assim, o documento constituiu uma tentativa
de enfraquecimento da poltica separatista da Confederao, propondo metidas
de retaliao aos estados que se unissem aos rebeldes. Alm disso, institua-se
uma poltica de remisso para aqueles que resolvessem reitegrar-se a Unio,
como explicitado na seo 13:
o Presidente autorizado por este meio, a qualquer hora daqui
por diante, atravs de proclamao, estender a pessoas que podem ter
participado na rebelio existente em qualquer Estado ou parte, perdo e
anistia, com tais excees e a tal tempo e em tais condies como ele
pode julgar expediente para o bem-estar pblico.91
Os acts constituam uma ingerncia na autonomia dos estados, entretanto,
sua promulgao acenava com uma sada honrosa para os que resolvessem
mudar de idia e reintegrar-se a Unio. O Segundo Confiscation Act planejava
uma ciso na Confederao, j que aqueles agentes individuais ou coletivos
que temendo as medidas do confiscation regulamentavam as suas tropas negras,
punham-se em oposio queles que ainda assim desafiavam os decretos do
presidente.
O Ato tambm trata da relao entre os escravos e as tropas da Unio, que
estavam avanando no territrio sulista. Notavelmente, o nmero de escravos a
buscar refgio nos acampamentos nortistas era cada vez maior, e os oficiais no
sabiam como lidar com a situao. Diante desta conjuntura, a seo nove
90 Second Confiscation Act (1862). Disponvel em: http://teachingamericanhistory.org/library/index.asp?document=559 Acesso em: 28 de outubro de 2010. Traduo livre. 91 Idem, Ibidem.
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decretava que todos os negros refugiados entre a Unio deveriam ser
compreendidos enquanto prisioneiros de guerra, sendo prontamente libertados92.
Entretanto, necessrio compreender que apesar de constituir os
primrdios da poltica de emancipao dos escravos, o Segundo Confiscation Act
no ofereceu nenhuma garantia de manuteno dos direitos civis dos ex-
escravos, uma vez que o objetivo da emancipao era servir aos interesses
nortistas e governamentais, no garantir melhores padres de vida aos
descendentes de africanos. De fato, o documento apoiava a emigrao de negros
para a Amrica Central e do Sul, aonde, supostamente, se adaptariam melhor ao
clima tropical e poderiam desfrutar de sua condio de homens livres, como fica
explicito na seo 12 do Ato. Alm disso, o Segundo Confiscation Act restringiu a
libertao dos escravos apenas aos estados rebeldes, sendo que os negros
fugidos dos border states, leais a Unio, seriam prontamente devolvidos aos seus
senhores.
Assim, o Segundo Confiscation Act apresenta-se como uma tentativa do
governo Lincoln de promover uma emancipao gradual e compensada dos
escravos, a fim de no perder o apoio dos estratgicos border states. Entretanto,
foi justamente o trao abolicionista contido nessas medidas que retirou os estados
do Tennessee e Vrgina da Unio. 93
3. As conseqncias da institucionalizao: segundo Confiscation
Act e o Militia Act.
A questo do recrutamento de homens de cor estava agora em mbito
nacional, com Lincoln dobrando a poltica governamental de excluso do negro
das corporaes militares. Desta forma, a emancipao se dava
progressivamente, iniciando-se ainda em 1862 com a promulgao de uma
proclamao de emancipao preliminar. A assinatura deste documento
transformava a guerra em um conflito no apenas para salvar a Unio, mas
92 Idem, Ibidem. 93 The Historical Times Illustrated Encyclopedia of the Civil War. FAUST, Patricia (ed), Harper and Row, New York, 1986.
34
tambm para abolir a escravido. Processo que vai conduzir a emancipao
oficial dos escravos, em 1 de janeiro de 1863. 94
A partir disso, o ingresso de homens negros ao exrcito da Unio foi
regularizado. Negros passaram a ser oficialmente alistados e agrupados em
tropas sob o comando de oficiais brancos. Porm, apesar da boa receptividade
da emancipao entre alguns comandantes brancos, os negros no encontraram
todas as fileiras do exrcito amistosas a sua integrao. Muitos oficiais,
temerosos de perder o controle sobre seus homens, no concordavam com o
armamento e institucionalizao dessas tropas de homens negros, agora livres.
Prticas concebidas sob a gide do preconceito racial eram freqentes. Para
esses comandantes, os negros eram homens ignorantes e o trabalho de
organizar, educar e disciplinar tais soldados deveria incluir rgidas punies fsicas
e psicolgicas, mesmo quando os deslizes eram mnimos. notvel que
inmeros oficiais brancos no acreditavam que os negros teriam coragem
suficiente para lutar, muito menos, que poderiam realizar com destreza tal
funo.95 Assim, os maiores problemas enfrentados pela USCT relacionavam-se a
castigos excessivamente severos e abusivos e a desconfiana por parte dos
oficiais brancos.96
Entretanto, os rumores sobre o avano das tropas de descendentes
africanos passavam a percorrer todo o pas. Os regimentos negros angariavam,
cada vez mais, elogios e reconhecimento por parte dos prprios comandantes
brancos, que salientavam a sua coragem e bravura - uma vez que bem treinados,
disciplinados e conduzidos por esses oficiais. Porm, sempre existiam tenses e
animosidades entre os tais chefes militares e os soldados negros. Inicialmente, o
choque cultural foi imenso e levou a criao de concepes racistas e
preconceituosas. Para muitos oficiais brancos, os soldados negros possuam
fortes traos de ingenuidade e imaturidade. Assim, os ex-escravos eram
compreendidos como seres primitivos. 97
94 MCCORMICK, Jayne, Op. Cit. s/p. 95 Idem, Ibidem. 96 GLATTHAAR, Joseph T. Forged in Battle: the civil war alliance of black soldiers and white officers. New York: Fist Meridian Printing, January, 1991. p. 113. 97 TRUDEAU, Noah Andr. Op. Cit. p. 109.
35
4. Quem eram e o que queriam os soldados negros da Unio e da
Confederao?
Cerca de 180.000 negros ingressaram no exrcito da Unio, sendo muitos
deles ex-escravos98. No raro, encontravam-se entre esses homens, alguns que
possuam notvel conhecimento a cerca das letras e da matemtica. Importante
salientar que nem todos estavam necessariamente comprometidos com uma
agenda poltica sendo recrutados de modo mais ou menos coercitivo ou por
visarem benefcios mais diretos. O exrcito, para esses homens de cor, era visto
como uma promessa de alada financeira e reconhecimento social, bem como de
esperana de um futuro melhor. 99
No norte, apesar da integrao de negros ao exrcito, as discusses sobre
a questo da igualdade ainda no haviam sido desencadeadas. As unidades
negras eram separadas dos regimentos brancos e como j dito - seus
comandantes no poderiam ser oficiais de cor100. Desta forma, havia uma
manuteno da concepo da raa negra como inferior, havendo grande
desconfiana quanto ao desempenho como soldados. A opinio pblica e as
tropas brancas, em geral, baseavam-se em esteretipos raciais, compreendendo
os negros como infantis, selvagens e limitados. Estes, s tiveram seu ingresso no
servio militar tolerado devido confiana da opinio pblica de que a raa
inferior seria fortalecida nos campos de batalha. 101
Mesmo assim, alguns poucos oficiais negros conseguiam galgar postos
elevados entre os brancos, transpondo e fragilizando as barreiras impostas pelo
preconceito, pelo menos no mbito do exrcito. notvel que a populao
alimentava um temor generalizado quanto as prticas militares realizadas por
soldados de cor. Para tanto, o governo norte-americano teve de tomar medidas
que impediam os soldados negros de conviverem com as populaes locais, visto
a grande desconfiana que geravam entre os moradores.
A Unio adotara uma poltica que visava preparar as tropas negras para o
combate, incluindo a criao de campos de treinamento especficos para esses
98 Ibidem, p. XVIII. 99 GLATTHAAR, Joseph T. Op. Cit. p. X. 100 Idem, pp. IX-X. 101 GLATTHAAR, Joseph. Op. Cit. pp. 101-117.
36
soldados. o caso do renomado Camp William Penn, localizado na cidade da
Philadelphia, no estado nortista da Pensilvnia. Fundado em 1863, este campo de
permanncia, sendo exclusivo para treinamento das tropas negras, representou
uma conquista sobre todo o preconceito que permeava as concepes sobre os
negros no exrcito. Apenas neste campo foram graduados 11 regimentos
compostos por negros comandados por experientes oficiais brancos, aspecto que
auxiliou na manuteno de concepes relacionadas ao trabalho em grupo,
fundamental para um bom treinamento dessas tropas. Era necessrio, antes de
tudo, compreender os negros como homens, soldados em potencial, para ento
passar a design-los para misses, atribuindo-lhes responsabilidades e elevando
sua moral. 102
Um treinamento eficaz no menor espao de tempo possvel era aspecto
essencial dentro das pretenses nortistas na guerra. Neste contexto, o curso e
durao do conflito dependiam, em muito, da habilidade dos soldados negros
armados de baionetas e mosquetes, sendo necessria rapidez e preciso nas
suas aes. Entretanto, uma das reas mais crticas e negligenciadas do
treinamento era justamente a que cabia a utilizao de armas de fogo. Enquanto
os soldados brancos possuam armas individuais e recebiam as instrues
adequadas quanto ao seu uso, aos negros eram impostas diversas barreiras,
sobretudo, por um temor ainda existente quanto conduta desses indivduos. A
este panorama, somava-se o fato de que os senhores proibiam o acesso de seus
escravos a armas de fogo, como muito soldados eram ex-escravos, no raro,
regimentos completos nunca haviam sequer tocado em um mosquete.
Outro aspecto fundamental na organizao das tropas negras dizia
respeitos a formaes tticas. Essas eram repetidas exaustivamente nos campos
de treinamento, pelo menos naqueles que formaram as primeiras tropas de
negros que entraram na guerra, uma vez que com o desenvolver do conflito o
tempo disponvel para exerccio adequado das tropas foi sendo diminudo
drasticamente, quando no atrapalhado pela ecloso de conflitos localizados.
Sem tempo para treinar, eram repassadas a essas tropas apenas tticas bsicas
de sobrevivncia no campo de batalha. Para alm desse problema, os
comandantes de tropas negras ainda tinham que lidar com as ordens vindas dos
102 TRUDEAU, Noah Andre. Op. Cit. pp. 125-129.
37
oficiais superiores. Estes, geralmente, empregavam as tropas negras em
trabalhos manuais que no se ligavam diretamente ao exerccio blico. Isso
reduzia drasticamente o tempo e a direo do treinamento dos regimentos
compostos por homens de cor. 103
Apesar do consistente programa de treinamento, que inclua cartilhas e
manuais, as tropas compostas por homens negros ainda enfrentavam problemas
institucionais no Norte, sobretudo relativos questo do pagamento de soldo.
No raro, essas tropas no recebiam o pagamento adequado e, muitas vezes,
prometido. No eram poucos os soldados que encontravam-se em situao de
grande pobreza, pelo contrrio. Assim, muitos revoltaram-se contra a situao de
no recebimento do soldo. Uma ao nesse sentido acarretava atitudes do
oficialato branco, que tinha suas decises marcadas pelo exagero e pelas
motivaes raciais. Um dos exemplos mais salientes desse problema o protesto
organizado pelos soldados da 11 U. S Colored Heavy Artillery104, tropa que levou
a cabo um manifestao de grandes dimenses reivindicando pagamento
igualitrio entre soldados brancos e negros. 105
Entretanto, notvel que os comandantes de tropas de cor nortistas
levavam vantagem substancial sobre seus homlogos do Sul. As unidades
organizadas pelos oficiais brancos do norte possuam nmero significativo de
negros letrados, o que facilitava a leitura, por exemplo, de manuais de
treinamento. Alm disso, nos campos de treinamento localizados ao Norte dos
Estados Unidos, o tempo disponvel para a disposio e treinamento das tropas
de negros era, quase sempre, maior. 106
Desta forma, as diferenas entre as tropas formadas no Norte e no Sul
eram evidentes. Os soldados da Unio, assim como seus companheiros brancos,
possuam noes de disciplina e estrutura militar. A funo da prpria disciplina
era, acima de tudo, transformar homens de cor em soldados do Exrcito dos
Estados Unidos da Amrica. Mas o fator crucial era que esses negros, em grande
nmero, ex-escravos, haviam provado da liberdade e no hesitariam em lutar
para defend-la. Alguns comandantes dessas tropas faziam, inclusive, questo de 103 GLATTHAAR, Joseph. Op. Cit. pp. 99-106. 104 Este nome designava o 11 regimento de artilharia pesada de homens de cor dos Estados Unidos. 105 Ibidem, pp. 111-116. 106 Ibidem, p. 101.
38
marcar a diferena entre o escravo e o soldado, entendendo a importncia desta
distino sobretudo, disciplinar - para o desempenho do regimento.
Enquanto isso, seus irmos do Sul continuavam atrelados lgica
escravista, uma vez que, frequentemente, o ingresso em uma milcia no
significava o rompimento dos laos escravistas com os grandes senhores. Assim,
para muitos desses homens a estrutura militar, com os brancos acima dos negros,
representava uma mera extenso da relao entre o senhor e seus escravos.
Esta concepo abria espao para uma reao por razes raciais - de inmeros
soldados negros contra a autoridade dos oficias brancos. 107
Desta forma, os Confederados evitavam ao mximo esse tipo de
organizao, Entretanto, a presena de um grande nmero dessas tropas no
exrcito da Unio no passou despercebida pelos confederados. Os regimentos
de cor eram cada vez mais requisitados para a defesa das novas possesses que
a Unio vinha tomando dentro de territrio sulista, domnios esses, notavelmente,
escravistas108.
No Sul, ao organizarem-se as primeiras tropas compostas por negros,
restringiu-se sua rea de atuao. Soldados negros deveriam ser empregados
unicamente em servios de apoio. 109 Isso no significa que os descendentes de
africanos ao sul tambm no almejassem lutar pela defesa de territrios das duas
parcelas em contenda, pelo contrrio. No eram poucos os negros, seja do sul ou
do norte, que entendiam a guerra civil em termos regionais. Muitos estavam
dispostos a lutar do lado dos brancos para defender seus lares. Entretanto, havia
grande temor em armarem-se os negros em meio a uma populao to grande de
descendentes africanos. Por este motivo, os soldados negros nem sempre
recebiam treinamento ou soldo110.
Entretanto, a condio do Sul de dependente das tropas formadas por
negros levou o governo confederado a tomar medidas que conservassem tais
regimentos sob a autoridade a organizao blica sulista. Desta forma, em 1863
o Sul j passava a incorporar regimentos negros ao seu servio militar regular,
demonstrando a importncia dessas tropas nas pretenses confederadas. Assim,
107 Ibidem, pp. 108-120. 108 BURTON, William L.Op Cit. pp. 10-20. 109 TRUDEAU, Noah Andr. Op. Cit. pp. XVIII-XIX. 110 Ibidem, p. XIX.
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o 2 Regimento da Carolina da Norte foi o primeiro a fazer parte, oficialmente, da
USCT. Atrelado a isso, ocorria uma mudana na prpria viso sulista das tropas
negras, da sua competncia e capacidade. Cada vez mais oficiais salientavam a
obedincia e capacidade dos negros de realizar satisfatoriamente todas as
funes dadas a um soldado branco, inclusive lutar. 111
As tropas compostas por negros tambm estavam alterando as
concepes nortistas. Com participao decisiva em vrias batalhas, soldados
negros passaram, paulatinamente, a angariar mais respeito e admirao no
mbito militar dos estados da Unio. Tornavam-se inmeros os elogios dos
comandantes brancos, que salientavam o patriotismo e coragem de seus
comandados negros. Os soldados de cor eram tidos como exemplo da eficcia de
programas de treinamento atrelados disciplina, fundamental para manter os
soldados em suas posies, no importando a condio favorvel, ou no, da
batalha. As comparaes com regimentos brancos eram inevitveis, uma vez que
era notvel que a maioria dos soldados brancos entendia o ingresso na instituio
militar como um dever patritico, enquanto que os negros viam a oportunidade
como uma honra e um privilgio. 112
Em maio de 1863, a Unio j contava com, aproximadamente, 160
regimentos e 10 baterias de artilharia leve compostas por negros. notvel que
houveram, inclusive, oficiais negros condecorados pelo Congresso norte-
americano. Foram cinco oficiais da marinha nortista e dezoito de campo a serem
homenageados com medalhas de honra ao mrito. Um nmero expressivo, visto
o contexto de preconceito e restrio a ao de soldados de descendncia
africana. 113
Os dados quantitativos relativos ao nmero de negros integrados aos
exrcitos do Norte e do Sul durante o conflito da secesso so variveis.
Entretanto, a autora Jayne McCormick aponta para um nmero de alistados que
ficaria em torno de 178 a 210 mil negros. Os estados separatistas do Sul e os
border states foram responsveis pelo alistamento de, aproximadamente, 135 mil
negros. A Unio, com grande volume de negros incorporados ao exrcito,
empregou apenas em sua marinha 50 mil descendentes de africanos. De todos 111 TRUDEAU, Noah Andr. Op. Cit. pp. 115-118. 112 GLATTHAAR, Joseph T.Op. Cit.. pp. 99-108. 113 MCCORMICK, Jayne. Op. Cit. s/p.
40
esses alistados somando-se os efetivos do Sul e do Norte - cerca de 36 mil
perderam a vida durante o conflito da secesso.114
114 DAVIS, Burke. The civil war, strange and fascinating facts. Disponvel em: http://www.civilwarhome.com/casualties.htm . Acesso em: 26 de outubro de 2010.
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AS TROPAS NEGRAS EM COMBATE: AS CORRESPONDNCIAS DO S
SOLDADOS E SEUS OFICIAIS
Eu nunca acreditei em negros antes, mas
por Jesus, eles so como o inferno quando
lutam. 115
1. A guerra e a palavra escrita
Com o advento da Guerra Civil, os estados da Unio adotaram postura que
visava desestabilizar os separatistas. O objetivo era manter os estados do sul
isolados poltica e economicamente do restante dos Estados Unidos. Para tanto,
pretendeu-se um bloqueio que impedisse os sulistas de receberem munies e
mantimentos. Tambm as comunicaes entre reas pertencentes s duas
faces beligerantes foram afetadas pela guerra. O servio postal no sul foi
cortado, os selos dos estados separatistas no possuam validade no Norte e as
cartas endereadas ao sul frequentemente retornavam aos seus remetentes.
O United States Postal Service116, (USPS) criado em 1775 por Benjamim
Franklin, tinha importncia vital em termos militares em um perodo de guerra,
mas tambm era importante para as famlias dos combatentes em um combate
que, muitas vezes, mal compreendiam. Assim, o sul - seus habitantes e seu
contingente militar - foram profundamente afetados pelo bloqueio nortista no
USPC. Entretanto, sempre se encontraram meios de transpor o bloqueio. Muitas
cartas chegaram aos seus destinos no norte por meio de navios tipo de bandeira
de trgua. Essa estratgia funcionou satisfatoriamente at o norte passar a
efetuar o bloqueio tambm dos portos confederados. A partir desse momento,
novas estratgias para a entrega de correspondncias foram criadas, utilizando-
se, sobretudo, de portos estrangeiros. Por esse motivo, essas cartas demoravam
muito tempo para alcanar seus destinos. Mesmo assim, essa ainda era a nica
115 Frase proferida por um oficial branco comandante de um regimento do First Kansas Colored. In: TRUDEAU, Noah Andr. Like Men of War: Black Troops in the civil war (1862-1865). New York: Castle Books, 2002.p. 108. Traduo livre. 116 Servio Postal dos Estados Unidos.
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forma de muitas pessoas manterem contato com familiares ou amigos que foram
afastados pela diviso do pas. 117
A comunicao entre soldados e seus familiares era particularmente difcil,
j que instaurado o conflito, as correspondncias militares eram prioridade. A
princpio, para a entrega de correspondncias pessoais, seria relativamente fcil
encontrar os soldados em seus acampamentos, nos quais permaneciam por
semanas. Entretanto, com o recrudescimento das batalhas, era cada vez mais
difcil localizar as tropas que encontravam-se em constante movimento. Desse
modo, a entrega das correspondncias tornava-se um desafio. Entretanto, os
familiares, amigos e os prprios soldados no front de batalha no desistiam de
estabelecer a nica forma de contato possvel com seus entes queridos. Assim,
apesar de todos esses complicadores, aos quais se somam os no poucos
extravios, sobreviveram ao tempo e s vicissitudes um volume considervel de
cartas para o perodo da Guerra Civil.
correspondncia rec