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Faculdade Católica de Santa Catarina – Facasc Instituto ... Teologicos... · casc e do Instituto...

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www.itesc.org.br www.facasc.edu.br Faculdade Católica de Santa Catarina – Facasc Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC ISSN 1415-4471
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Faculdade Católica de Santa Catarina – FacascInstituto Teológico de Santa Catarina – ITESC

ISSN 1415-4471

Preço de AssinAturA PArA o Ano 2012Contribuição a partir de R$ 40,00

Forma de PagamentoCheque em nome do Instituto Teológico de Santa Catarina

ou depósito bancário: Banco do Brasil, Agência 3191-7, Conta 09.645-8

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Revisão: Pe. Ney Brasil PereiraEditoração eletrônica e projeto gráfico da capa: Atta

Projeto gráfico: Antônio FrutuosoPrinted in Brasil

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FUNDAÇÃO DOM JAIME DE BARROS CÂMARAFACULDADE CATÓLICA DE SANTA CATARINAINSTITUTO TEOLÓGICO DE SANTA CATARINA

Diretor Geral da Facasc e do ITESC: Pe. Dr. Vitor Galdino FellerVice-Diretor do ITESC e Marketing da Facasc: Pe. Dr. Domingos Volney Nandi

Diretora Acadêmica da Facasc: Ana Cristina Barreto FlorianiDiretor Administrativo da Facasc: Pe. Vilmar Adelino Vicente

Coordenador Pedagógico da Facasc e Secretário do ITESC: Celso LoraschiCoordenador de Pós-Graduação da Facasc: Pe. Tarcísio Pedro Vieira

Corpo Técnico Administrativo:Assistente Administrativo da Facasc e ITESC: Donizeti Mendes Guimarães

Bibliotecária da Facasc e do ITESC: Adriana de Mello TomazSecretária Institucional da Facasc: Aline Maria Pereira

Secretária Acadêmica da Facasc e do ITESC: Crisleine Daiana RadatzRecepcionista da Facasc e do ITESC: Mariana Fritegoto Guaita

Serviços Gerais da Facasc e do ITESC: Geane Teresa Nascimento

[Catalogação na fonte por Daurecy Camilo (Beto)]CRB-14/416

Encontros Teológicos. Revista da Faculdade Católica de Santa Catarina – Fa-casc e do Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC, n. 61, Florianópolis, 2012.

Quadrimestral ISSN 1415-4471

I. Instituto Teológico de Santa Catarina CDU 2 (05)

ENCONTROS TEOLÓGICOSrevistA quAdrimestrAl fundAdA em 1986Diretor: Elias WolffEditor: Vitor Galdino FellerRedator: Ney Brasil Pereira

CONSELHO EDITORIAL: Celso Loraschi – Facasc/ITESC – Florianópolis, SCDomingos Nandi – Facasc/ITESC – Florianópolis, SCEdinei da Rosa Cândido – Facasc/ITESC – Florianópolis, SC Elias Wolff – Facasc/ITESC – Florianópolis, SCHelcion Ribeiro – PUC – Curitiba, PRInácio Neutzling – UNISINOS – São Leopoldo, RSJoão Batista Libânio – ISI-FAJE – Belo Horizonte, MGJosé Artulino Besen – Facasc/ITESC – Florianópolis, SCLilian Blanck de Oliveira – FURB – Blumenau, SCLuiz Carlos Susin – PUC-RS e ESTEF – Porto Alegre, RSMárcio Fabri dos Anjos – Pontifícia Faculdade N. Sra. da Assunção – São Paulo, SPMaria Clara Bingemmer – PUC-RJ, Rio de Janeiro, RJMaria de Lourdes Pereira Dias – UFSC – Florianópolis, SCMarlene Bertoldi – Facasc/ITESC – Florianópolis, SCNey Brasil Pereira – Facasc/ITESC – Florianópolis, SCRudolf von Sinner – EST – São Leopoldo, RSValter Maurício Goedert – Facasc/ITESC – Florianópolis, SCVilmar Adelino Vicente – Facasc/ITESC – Florianópolis, SCVitor Galdino Feller – Facasc/ITESC – Florianópolis, SC

CONSELHO CONSULTIVO:Analita Candaten – Centro de Fomação Scalabriniana – Passo Fundo, RSArmando Lisboa – UFSC – Florianópolis, SC Cecília Hess – UNIVILLE – Joinville, SCÉrico Hammes – PUC-RS – Porto Alegre, RS Evaristo Debiasi – Facasc/ITESC – Florianópolis, SCFábio Régio Bento – UNISUL – Tubarão, SCGabriele Cipriani – CONIC – Brasília, DFJoaquim Cavalcante – Universidade Estadual de Goiás – Itumbiara, GOLuís Dietrich – Facasc/ITESC – Florianópolis, SC Luís Inácio Stadelmann SJ – Facasc/ITESC – Florianópolis, SC Márcio Bolda da Silva – Facasc/ITESC – Florianópolis, SC Mari Hammes – Facasc/ITESC – Florianópolis, SCMarta Magda Antunes Machado – Facasc/ITESC – Florianópolis, SC Paulo Cezar da Costa – PUC-Rio, Rio de Janeiro, RJRoberto Iunskovski – UNISUL – Florianópolis, SCSérgio Rogério Junqueira Azevedo – PUC-PR – Curitiba, PRSiro Manoel de Oliveira – Facasc/ITESC – Florianópolis, SCVilson Groh – Facasc/ITESC – Florianópolis, SC

Nota: O autor de cada artigo desta publicação assume a responsabilidade das opiniões que expressa.

Publicação dirigida aos agentes de pastoral das igrejas e aos professores universitários, pesquisado-res e alunos nas áreas da Teologia, das Ciências da Religião e Ciências Humanas em geral, com o objetivo de favorecer a formação religiosa, social e humana, promover o debate e incentivar a troca de informações sobre temas teológicos, pastorais e sociais.

Sumário

Editorial ....................................................................................................... 7

Fraternidade e Saúde PúblicaLuiz Carlos Dias ...................................................................................................... 11

História da saúde no Brasil: dos primórdios ao surgimento do SUSAndré Luiz de Oliveira ............................................................................................. 31

Brasil Século 21: os desafios da saúdeGeniberto Paiva Campos ......................................................................................... 43

Ética e saúde públicaChristian de Paul de Barchifontaine ....................................................................... 57

Bíblia e saúde pública: A Vida com DignidadeEdna Maria Niero e Celso Loraschi ........................................................................ 75

A saúde da IgrejaArlene Denise Bacarji .............................................................................................. 87

Eclo 38,8: Saúde? Paz? Bem-estar? Texto e contexto bíblico do lema da CF 2012Ney Brasil Pereira ................................................................................................... 105

Na saúde e na doençaLuís Stadelmann, SJ ................................................................................................. 119

A Pastoral da Saúde de Santa Catarina e a sua caminhadaMaria Eni Machado Vieira e Lúcia Herta Rockenbach .......................................... 135

Comunicações:Atendimento espiritual no Hospital Universitário, HU, de FlorianópolisLuiz Antonio Frigo ............................................................................................. 145Fraternidade e saúde públicaJúlio Giordani .................................................................................................... 155

Aula inaugural 2012: Modelos e Momentos de IgrejaEdinei da Rosa Cândido .......................................................................................... 159Recensões ..................................................................................................... 169Crônicas ....................................................................................................... 179

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7Encontros Teológicos nº 61Ano 27 / número 1 / 2012

Editorial

Iniciando na quarta-feira de cinzas e concluindo na Sexta-feira santa, o tempo litúrgico da Quaresma é propício para a reflexão sobre a vida pessoal, eclesial e social; para a intensificação da prática da oração e de gestos concretos de solidariedade e de caridade. Evidentemente isso é dever cotidiano do cristão ao longo da sua vida. Mas o período qua-resmal oferece uma espiritualidade privilegiada para intensificar essas práticas, num processo de qualificação da vida cristã, eclesial e social, que expresse sua busca de conversão e de santidade.

Quaresma é um período de retiro espiritual que nos prepara para a celebração pascal e que nos ajuda, simbolicamente, a ressuscitar como Cristo. O roxo, cor litúrgica da quaresma, não significa luto, mas preparação espiritual e conversão. A Páscoa começou a ser preparada com três dias de oração, meditação e jejum, no final do século II da era cristã. Por volta do ano 350, a Igreja aumentou o tempo de preparação para quarenta dias. Surgiu, assim, a Quaresma.

Uma das expressões mais concretas da busca de conversão intensificada no período quaresmal é a prática da solidariedade e da caridade. É a dimensão social da fé. A Igreja católica no Brasil convoca todos os fiéis para expressarem essa dimensão através da Campanha da Fraternidade, CF, realizada todos os anos durante a Quaresma. Desde a primeira CF realizada em Natal, Rio Grande do Norte no ano de 1962, as CF têm como objetivo despertar a solidariedade dos fiéis em relação a um problema concreto que envolve a sociedade brasileira, contribuindo na busca de soluções. As CF visam: educar para a vida em fraternidade, com base na justiça e no amor, exigências centrais do Evangelho; renovar a consciência da responsabilidade de todos pela ação da Igreja na evangelização e na promoção humana, tendo em vista uma sociedade justa e solidária. O “gesto concreto” que acontece na coleta da solidariedade, no Domingo de Ramos, é uma das expressões da vivência da CF.

A cada ano é escolhido um tema que mostra a realidade concreta a ser transformada, e um lema que explicita em que direção se busca a transformação. Neste ano de 2012, o tema “Fraternidade e Saúde Pú-

8 Encontros Teológicos nº 61Ano 27 / número 1 / 2012

EditorialEditorial

blica” e o lema “a saúde se difunda sobre a terra” (Cf. Eclo 38,8), tocam em uma problemática que manifesta a fragilidade das políticas públicas do Estado brasileiro. Trata-se do direito à assistência de saúde digna e eficiente para todos os cidadãos e cidadãs do Brasil. Somos convidados a refletir sobre o SUS, fruto de lutas por melhorias na saúde pública, mas que exemplifica muito bem o descaso com que é tratada a saúde do povo brasileiro. Saúde e doença são realidades de todo ser vivente, e o cuidado dessa realidade é conditio sine qua non para a sua sobrevivência.

A CF 2012 tem como objetivo geral: Refletir sobre a realidade da saúde no Brasil em vista de uma vida saudável, suscitando o espírito fraterno e comunitário das pessoas na atenção aos enfermos, e mobilizar pela melhoria no sistema público de saúde. E como objetivos específi-cos: Disseminar o conceito de bem viver e sensibilizar para a prática de hábitos de vida saudáveis; Sensibilizar as pessoas para o serviço aos enfermos, o suprimento de suas necessidades e a integração na comunidade; Alertar para a importância da organização da pastoral da Saúde nas comunidades: criá-la onde não existe, fortalecer onde está incipiente e dinamizá-la onde já existe; Difundir dados sobre a realidade da saúde no Brasil e seus desafios, como sua estreita relação com os aspectos socioculturais de nossa sociedade; Despertar nas comunidades a discussão sobre a realidade da saúde pública, visando a defesa do SUS e a reivindicação do seu justo financiamento; Qualificar a comunidade para acompanhar as ações da gestão pública e exigir a aplicação dos recursos públicos com transparência.

Com esses objetivos a Igreja, discípula de Cristo, quer qualificar a acolhida das pessoas enfermas, aproxima-se delas, solidariza-se, a exemplo do Mestre que viveu a solicitude e o cuidado com os doentes, como nos mostra a parábola do Bom Samaritano. A Igreja entende que na pessoa do doente está acolhendo e solidarizando-se com o próprio Cristo: “Estive doente e cuidaste de mim” (Mt 25, 36). Ela sabe que não é justo delegar o alívio do sofrimento dessas pessoas somente à medici-na. Por isso, o cuidado dos doentes é também missão da Igreja, e ela a realiza por meio de suas pastorais como a Pastoral da Saúde, a Pastoral dos Enfermos, a Pastoral da Criança, a Pastoral da Sobriedade e a Pastoral dos Idosos... Por essas pastorais, a Igreja procura fazer chegar aos doentes a Redenção que Cristo realizou de todo o gênero humano, dando-lhes condições para superarem a doença e força para suportarem o sofrimento, encontrando nele um sentido de fé e de esperança.

9Encontros Teológicos nº 61Ano 27 / número 1 / 2012

Editorial

Dessa forma, a Quaresma possibilita uma dupla conversão: para Deus, no sentido de aprofundar as convicções da fé em Deus e no seu Reino; e para o próximo, no sentido de fortalecer as práticas de solida-riedade para com os mais necessitados.

Este número de “Encontros Teológicos” quer celebrar um outro importante acontecimento para a Igreja em Santa Catarina. É o primei-ro número que publicamos após o credenciamento, pelo Ministério da Educação e Cultura, da Faculdade Católica de Santa Catarina – Facasc, ocorrido em fins de dezembro de 2011, e após a autorização do Curso de Teologia da Facasc, ocorrido em fins de janeiro de 2012. Com esses fatos, novos desafios se apresentam para o ensino da Teologia por esta instituição acadêmica. E dentre eles está a necessidade de intensificar a relação entre Teologia e Sociedade, no sentido de fazer com que o labor teológico seja uma contribuição efetiva para a reflexão sobre os problemas que afligem a vida de todos e para a busca de caminhos a fim de que aconteçam as mudanças sociais necessárias para a melhoria das condições de vida do povo brasileiro. Assumir e promover a CF 2012 é uma das formas de colaborar para que isso aconteça.

Publicamos aqui os artigos: Fraternidade e Saúde Pública, de Luiz Carlos Dias; História da saúde no Brasil: dos primórdios ao surgimento do SUS, de André Luiz de Oliveira; Brasil Século 21: Os desafios da saúde, de Geniberto Paiva Campos; Ética e Saúde Pública, de Christian de Paul de Barchifontaine; Saúde da Igreja, de Arlene Denise Bacarj; o lema da CF 2012, Eclo 38,8: Saúde? Paz? Bem-estar?, de Ney Brasil Pereira; um estudo bíblico, Na saúde e na doença, de Luís Stadelmann, SJ; Ainda, duas comunicações: Atendimento Espiritual no Hospital Uni-versitário de Florianópolis – HU, de Luiz Antônio Frigo; Fraternidade e Saúde Pública, de Júlio Giordani. Publicamos também a Aula inaugural ministrada na Facasc: 2012: Modelos e Momentos de Igreja, por Edinei da Rosa Cândido e, ainda, Recensões e Crônicas.

Esperamos, dessa forma, contribuir para que nossos leitores pos-sam bem compreender e assumir a CF 2012 como uma forma concreta de intensificar e fortalecer a sua vida cristã, eclesial e social.

Pe. Elias Wolff

Encontros Teológicos nº 61Ano 27 / número 1 / 2012, p. 11-30.

Resumo: A vida, recebida como dádiva, é vivida com alegrias e sofrimentos. A realidade da saúde e da doença compõe essa condição da vida humana. Para quem tem fé em Deus, o desenvolvimento de uma espiritualidade do sofrimento é uma grande força nos momentos de enfermidade. Essa fé permite compreender a presença de Cristo junto aos doentes, nos evangelhos, com os seus atos de cura como sinais do reino da vida que Deus quer para todos. A missão da Igreja é continuar e explicitar em no nosso tempo esses sinais, solidarizando-se com todos os enfermos. Nesse sentido é que a Igreja participa das lutas por melhorias na saúde pública da população brasileira. E para isso ela realiza a CF 2012 com o objetivo de “Refletir sobre a realidade da saúde no Brasil em vista de uma vida saudável, suscitando o espírito fraterno e comunitário das pessoas na atenção aos enfermos, e mobilizar por melhoria no sistema público de saúde”.

Abstract: Life, received as a gift, is lived with joys and pains. Human life is composed of the reality of health and illness. For him who has faith in God, the building of a spirituality of suffering is of a great help in times of infirmity. This faith helps to perceive the presence of Christ with the ill in the Gospels; in his healing acts which are signs of the kingdom of life that God wants for all. The mission of the Church is to continue to make these signs known in our times and being in solidarity with all the ill. It is in this sense that the Church participates in the struggle for betterment in public health of the Brazilian populace. That is the reason behind the CF2012 which has the aim of “reflecting on the subject of the situation of health in Brazil toward the goal of a healthy life, raising up a fraternal and community spirit among people for the care of the ill, and to mobilize for betterment in the public health system.

Fraternidade e Saúde PúblicaLuiz Carlos Dias*

* Membro do clero da Diocese da São João da Boa Vista. Fez a graduação dos cursos de Filosofia e de Teologia no CEARP em Ribeirão Preto e Mestrado em Filosofia na PUG, em Roma. Atualmente, exerce o cargo de Secretário Executivo Nacional da CF e CE, na CNBB.

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Fraternidade e Saúde Pública

Introdução

Neste ano com o tema “Fraternidade e Saúde Pública”, a Cam-panha da Fraternidade toca diretamente em uma problemática que ma-nifesta, de modo palpável, uma das grandes fragilidades das políticas públicas do Estado brasileiro. E trata-se de uma questão crucial à própria vida, pois o desrespeito ao direito à assistência de saúde digna e eficiente, assegurado pela nossa Constituição a todos os cidadãos e cidadãs, coloca em risco muitas vidas.

A temática nos convida a empreendermos uma séria reflexão sobre o SUS. Fruto de uma bela história de lutas por melhorias na saúde pública do Brasil, está pautado por princípios diretores e organizativos que o posicionam entre os melhores, elaborados pelos governos que procuram apresentar proposta de saúde pública de caráter universal.

No entanto, os problemas atuais verificados no SUS, servem como exemplo de como, em nosso país, leva muito tempo para se concretiza-rem as políticas públicas, mesmo as essenciais para a vida, como as do atendimento da saúde da população. Na maioria das vezes, as melhorias se efetivam após duros embates e ao custo de muitas vidas inocentes, como acontece com o SUS. O intuito desta Campanha é contribuir para a melhoria do nosso sistema de saúde.

Ao tratar da saúde e da doença, realidades que tocam a vida das pessoas, das famílias e da sociedade em geral, impondo, a todos esses níveis, grandes limitações e dificuldades, esta Campanha também quer oferecer uma palavra de esperança em relação ao tema do sofrimento humano, especialmente na doença.

Com esta Campanha, a Igreja no Brasil espera servir o nosso povo, contribuindo para que “a saúde se difunda sobre a terra” (Cf. Eclo 38,8), lema que aponta para o objetivo que se visa alcançar.

1 A dádiva da vida, a saúde e a doença

A vida é uma grande dádiva. No entanto, o ser humano em sua jornada existencial se depara com situações e fatos que o desafiam. O sofrimento, as doenças e a morte são exemplos dessas realidades duras e desafiadoras, pois se constituem em ameaças à vida e contrariam os naturais anseios de uma vida com bem-estar.

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Luiz Carlos Dias

Essas realidades desafiadoras, que provocam sofrimento, levam o ser humano à percepção de sua fragilidade e, normalmente, à procura por auxílio. No caso de quem adoece isso é evidente, pois, para reco-brar a saúde, precisa de cuidados de outros. Essa experiência nos ajuda a entender o fato de as línguas antigas utilizarem um mesmo vocábulo para expressar tanto “saúde” como “salvação”, como encontramos no latim salus.

Nesse sentido, a doença é, por excelência, um apelo à fraternida-de e à solidariedade. É uma realidade que atinge a todos, não poupa a juventude e nem os que têm melhores condições de vida. E o sofrimento de uma pessoa, quando enferma, se constitui em oportunidade para o exercício do cuidado do outro. A solidariedade em momentos como esse faz-se necessária, pois tais gestos aliviam e consolam quem é acometido pelo sofrimento.

2 O horizonte do sofrimento

A compreensão cristã sobre a vida é otimista, entende que o ho-mem é destinado à alegria, apesar de se deparar com variadas formas de sofrimento e de dor1. Essas experiências são diversas em sua natureza: moral ou psicológica, provenientes de flagelos sociais ou de catástrofes naturais e provocadas por doenças. “Entre os sofrimentos, os provoca-dos pela doença são uma realidade constantemente presente na história humana, tornando-se, ao mesmo tempo, objeto do profundo desejo do homem de se libertar de todo o mal”2.

Diante disso, é significativo que os Evangelhos mostrem a solici-tude do Senhor para com as pessoas doentes e sofredoras. “Por isso, o Senhor, nas suas promessas de redenção, anuncia a alegria do coração ligada à libertação dos sofrimentos (Cf. Is 30,29; 35,19; Br 4,29). Ele é, de fato, ‘aquele que liberta de todos os males’” (Sb 16,8)3.

As ações de Jesus em benefício desses enfermos, com inúmeras curas, foram os sinais mais eloqüentes da manifestação da presença do Reino de Deus na história. Tanto, que a cura dos enfermos foi inserida

1 Cf. Christifideles Laici, n. 53.2 CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Instrução sobre as orações para

alcançar de Deus a cura. São Paulo, Paulinas, N. 3, p. 5.3 Idem. Instrução sobre as orações para alcançar de Deus a cura. São Paulo, Paulinas,

N. 3, p. 5.

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Fraternidade e Saúde Pública

entre as principais atividades do Senhor, juntamente com o ensino nas sinagogas e o anúncio da boa nova do Reino. Ele curava toda espécie de doença e enfermidade das pessoas com as quais se encontrava , sem qualquer discriminação (cf Mt 4,23-25)

Detalhe importante: vemos, nos Evangelhos, que as ações de Jesus em relação aos doentes são de um exemplar ecumenismo. Atendeu a todos, não se detendo nos doentes do território de Israel. Curou também os de fora, desde o leproso samaritano, o único que voltou para agradecer (Lc 17,11-19), até os considerados “pagãos”, como a mulher Cananéia que intercedia por sua filha (Mt 15,21-28) ou o centurião romano, que pedia pelo seu servo (Lc 7,1-10).

Enfim, curou a todos em suas enfermidades, a ponto de transfor-mar esse seu ministério em sinal messiânico, na resposta aos discípulos de João Batista, que vieram interpelá-lo, em nome do seu mestre: “És tu aquele que há de vir, ou devemos esperar outro? Em resposta disse Jesus: “Ide contar a João o que estais ouvindo e vendo: cegos recuperam a vista, paralíticos andam, leprosos são curados, surdos ouvem, mortos ressuscitam e aos pobres se anuncia a Boa Nova” (Mt 11,3-5).

3 A Igreja e os doentes

Continuadora das ações do Mestre, a Igreja sempre teve um grande apreço pelos doentes e enfermos. Recentemente, Bento XVI afirmou, “A Igreja, à qual é confiada a tarefa de prolongar no espaço e no tempo a missão de Cristo, não pode desatender estas duas obras essenciais: a evangelização e a cura dos doentes no corpo e no espírito”4.

A ação evangelizadora da Igreja é sua razão de ser. Ela é impulsio-nada pelo Espírito a testemunhar e anunciar a boa nova da vida em Jesus Cristo e o Reino do Pai. Ela experimenta-se amada por Cristo, que saiu de si e veio junto à humanidade marcada por situações de morte e pecado. Com gestos de alteridade e gratuidade, sobretudo em sua doação total na cruz, Ele mostrou que o pecado só é vencido pela graça5, o que gera a gratuidade e leva a responder ao mal com o bem (cf. Rm 12,7-21).

4 BENTO XVI. Discurso na celebração do dia mundial do doente. L’Osservatore Romano, 13/02/2010.

5 Cf. DGAE, n. 12.

15Encontros Teológicos nº 61Ano 27 / número 1 / 2012

Luiz Carlos Dias

No centro deste anúncio se encontra o convite para que as pessoas tomem consciência desse amor vivificador de Deus, oferecido em seu Filho, morto e Ressuscitado6. Nesse sentido, o discípulo missionário precisa estar enraizado em Jesus Cristo, para acolher e testemunhar o mistério divino como contínuo transbordar do amor do Pai pelo Filho, no Espírito7.

Dessa forma, a Igreja, comunidade constituída no amor e a ser-viço do amor, tem a caridade como sua grande tarefa. Como enfatizam as novas Diretrizes, mesmo tendo a mudança de época como o maior desafio a ser enfrentado, ela necessita trilhar o caminho do amor-serviço aos sofredores8. A interpelação advinda do outro que sofre, constitui-se em um caminho de convergência, para que, nesse auxílio, haja integra-ção de todas as formas de paixão pela vida, com o intuito de vencer os tentáculos da cultura de morte9.

Esse caminho foi indicado pelas Conclusões de Aparecida, para que a Igreja seja fiel à sua opção em prol da vida. Esse caminho a con-duz para as profundezas da existência, ao nascer e ao morrer, à criança e ao idoso, ao sadio e ao enfermo. Assim, a evangelização e o cuidado dos doentes, além de se mostrarem autênticos deveres, edificam toda a comunidade eclesial.

4 A experiência da Igreja ao aproximar-se dos doentes

Existe o consenso de que o socorro ao ser humano em situação de sofrimento é um dever ético, pela dignidade da pessoa. Nesse debruçar-se sobre a dor humana, podemos entrever uma oportunidade singular para que as Igrejas façam uma bela experiência ecumênica dando as mãos, no socorro aos necessitados. É um campo que pode, efetivamente, unir todas as religiões e todas as pessoas de boa vontade, mesmo as que não praticam nenhuma religião.

É uma causa humana por excelência, e a parábola do bom sama-ritano nos convida a caminhar nessa direção. Infelizmente, quem deixa

6 Cf. DAp, nn. 347-348.7 Cf. DGAE, n. 16.8 Cf. DGAE, n. 27.9 Cf. DGAE, n. 67.

16 Encontros Teológicos nº 61Ano 27 / número 1 / 2012

Fraternidade e Saúde Pública

de socorrer o homem assaltado e ferido à beira da estrada são pessoas religiosas, um sacerdote e um levita, e quem o acode é um samaritano, considerado inimigo religioso pelos judeus e mal visto aos olhos de Deus (Lc 10, 25-37). Jesus transforma o samaritano em modelo para o cum-primento do mandamento do amor ao próximo: “Vai e faze tu também a mesma coisa” (Lc 10,37)

A Igreja, comunidade ouvinte da Palavra do Senhor, é desafiada a se fazer samaritana, assumindo com solicitude o cuidado dos doentes. Ela entende não ser justo delegar o alívio do sofrimento dessas pessoas somente à medicina. Em sua missão, por meio das pastorais que servem nesta área da saúde, como: a Pastoral da Saúde, a Pastoral dos Enfermos, a Pastoral da Criança, a Pastoral da AIDS e a Pastoral dos Idosos, a Igreja procura responder às grandes interrogações da vida, que se colocam com mais intensidade em momentos de sofrimento e de morte10.

Pela atitude de serviço e proximidade ao doente, a Igreja quer anun-ciar que Cristo foi solidário com a dura realidade do sofrimento humano, pois o assumiu sobre si com profundo amor, em livre obediência ao Pai. E realizou a Redenção de todo o gênero humano ao assumir a paixão e morte de cruz e carregar sobre si todos os pecados, para cancelá-los e, ressuscitando, vencer todos os males. Desse modo, o sofrimento redentor de Cristo leva o homem a reencontrar-se com seus próprios sofrimentos. E, com a luz intensa advinda da ressurreição, aquele que sofre descortina um caminho de vida em meio às trevas dos sofrimentos: verdadeira “boa notícia” para todos, especialmente para os doentes e moribundos.

5 Nova terra e novo céu, a bela imagem de Ap 21

Com esse testemunho e anúncio, a Igreja, ao longo de sua história, suscitou entre as pessoas, de maneira nova e profunda, a capacidade de vivenciar de diversos modos o sofrimento, o que é decisivo para a “hu-manização da humanidade”. Pois, como disse Bento XVI, “a grandeza da humanidade determina-se essencialmente na relação com o sofrimento e com quem sofre”11.

Se é justo todo o empenho para superar o sofrimento, mesmo com a consciência de que não é possível eliminá-lo totalmente, a atitude de

10 Cf. DAp. n. 418.11 Cf. Spe Salvi, n. 38.

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Luiz Carlos Dias

fuga dessa realidade dolorosa não contribui para o amadurecimento do ser humano e nem para se criar uma rede de solidariedade ao redor dos que sofrem.

De fato, a capacidade de sofrer encontra-se estreitamente relacio-nada à natureza da esperança que o ser humano alimenta em si12. Nesse sentido, encontramos um anúncio no livro do Apocalipse, que responde aos mais profundos anseios da humanidade: “A morte não existirá mais, e não haverá mais luto, nem grito, nem dor, porque as coisas antigas passaram” (Ap 21,4). A resposta se completa com a bela expressão apo-calíptica “um novo céu e nova terra”. É uma imagem densa de esperança de vida que supera as dores, os sofrimento e a morte, pois, se o homem é mortal, ele é também nascido para a eternidade.

Essa passagem do Apocalipse fortalece a Igreja em sua missão, pois tem a garantia do Senhor que assegura, “Eu faço novas todas as coisas” (Ap 21,5). E faz novas todas as coisas por sua ação de doação gratuita à humanidade, a qual é incessante e contínua, atualizada na Eu-caristia e na vida dos que se fazem autênticos discípulos-missionários de Jesus Cristo. Assim, o Reino de Deus se torna presente na história e na vida das pessoas e da sociedade, pois o novo céu e a nova terra começam já, mesmo que ainda não encontrem acabamento perfeito nos meandros da história.

6 A participação da Igreja na história da saúde pública no Brasil

Desde os primórdios do processo de colonização, a Igreja, no exer-cício de sua missão, tem prestado relevantes serviços à saúde, em nosso país. De fato, com a chegada dos portugueses, não demorou a implantação do modelo das Santas Casas de Misericórdia. As primeiras apareceram na capitania hereditária de São Vicente, em 1543, fundada por Braz Cubas e, em Salvador, em 1549, por iniciativa de Tomé de Souza.

O avanço da colonização levou à criação de outros estabelecimen-tos hospitalares pelos Senhores chamados “homens bons”, associados às Irmandades da Misericórdia. Tais irmandades eram sociedades civis, geralmente católicas, que se propunham a realizar determinadas obras de assistência social.

12 Cf. Ibid., n. 39.

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Fraternidade e Saúde Pública

Capítulo importante nessa história escreveram os religiosos, en-viados para o “novo mundo”. Especialmente os Jesuítas, que desenvol-veram importante trabalho de intercâmbio entre as técnicas europeias de tratamento, que aqui introduziram, e as cultivadas pelos nativos da terra, baseadas no potencial terapêutico da rica flora dos trópicos.

7 Contribuições da Igreja no Brasil para a Saúde Pública pela CF

Esta é a terceira vez que a Igreja vem contribuir, por meio da Campanha da Fraternidade, junto à sociedade brasileira, para o avanço na qualidade da saúde da população e a melhoria do atendimento público de saúde.

Em 1981, a Campanha foi realizada com o tema, “Saúde e Fraternidade” e o lema ‘Saúde para Todos’. Essa Campanha contribuiu para a reflexão nacional do conceito ampliado de saúde. Na época, o papa João Paulo II escreveu, em sua mensagem para a CF, que a “boa saúde não é apenas ausência de doenças: é vida plenamente vivida, em todas as suas dimensões, pessoais e sociais. Como o contrário, a falta de saúde, não é só a presença da dor ou do mal físico. Há tantos nossos irmãos enfermos, por causas ine-vitáveis ou evitáveis, a sofrer, paralisados, ‘à beira do caminho’, à espera da misericórdia do próximo, sem a qual jamais poderão superar o estado de ‘semimortos’ ”13.

A discussão sobre a saúde foi retomada na CF de 1984, com o tema ‘Fraternidade e Vida’ e o lema ‘Para que todos tenham vida’, partindo da citação bíblica: “pois eu estava com fome e me destes de comer... doente e cuidastes de mim” (Mt 25,35-36). Essa Campanha buscou ser um sinal de esperança para as comunidades cristãs e para todo o povo brasileiro, a fim de que, num panorama de sombras e de atentados à vida, experimentassem a luz de Cristo, que vence o egoísmo, o pecado e a morte, reforçando os princípios norteadores da valorização da vida, desde o seu início até seu fim natural.

13 JOÃO PAULO II, Mensagem ao povo brasileiro por ocasião da abertura da CF1981. http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/speeches/1981/march/documents/hf_jp-ii_spe_19810309_campagna-fraternita_po.html. Acesso em: 10/08/2011.

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Luiz Carlos Dias

Tais iniciativas constituem-se em marcos importantes da ação da Igreja, tanto no campo da saúde como no da saúde pública, em nosso país. É amplo o leque das atividades ligadas à área da saúde, exercidas no âmbito da Igreja. Com satisfação, percebe-se que essas ações pasto-rais acabam tornando-se um contributo da Igreja para o país cumprir as ‘Metas do Milênio’, com as quais o governo brasileiro comprometeu-se perante a comunidade internacional, mobilizando diretamente vários de seus setores.

8 A Campanha da Fraternidade de 2012

Partindo do lema “Fraternidade e Saúde Pública”, esta CF focaliza especialmente o SUS (Sistema Único de Saúde). Inspirado em belos princípios, como o seu caráter universal e a proposta de atender a todos, indiscriminadamente, o SUS deveria ser modelo para o mundo. Hoje, no entanto, com algumas exceções, assemelha-se a um autêntico caos, sobretudo aos olhos dos mais necessitados de seus serviços. Entendendo ser um anseio da população, especialmente da mais carente, a CF 2012 aborda o tema da saúde com os seguintes objetivos:

Objetivo Geral

Refletir sobre a realidade da saúde no Brasil em vista de uma vida saudável, suscitando o espírito fraterno e comunitário das pessoas na atenção aos enfermos, e mobilizar por melhoria no sistema público de saúde.

Objetivos específicos:

a) Disseminar o conceito de bem viver e sensibilizar para a prática de hábitos de vida saudáveis;

b) Sensibilizar as pessoas para o serviço aos enfermos, o supri-mento de suas necessidades e a integração na comunidade;

c) Alertar para a importância da organização da pastoral da Saúde nas comunidades: criá-la onde não existe, fortalecer onde está incipiente e dinamizá-la onde já existe;

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Fraternidade e Saúde Pública

d) Difundir dados sobre a realidade da saúde no Brasil e seus de-safios, como sua estreita relação com os aspectos socioculturais de nossa sociedade;

e) Despertar nas comunidades a discussão sobre a realidade da saúde pública, visando a defesa do SUS e a reivindicação do seu justo financiamento;

f) Qualificar a comunidade para acompanhar as ações da gestão pública e exigir a aplicação dos recursos públicos com trans-parência14.

9 A Saúde Pública em nossos dias

É sabido que o SUS vem sendo motivo de várias reportagens nos MCS, que expõem suas fragilidades. São enormes filas, pessoas enfer-mas em macas à espera de um leito, morte de pessoas sem atendimento, dificuldades na realização dos exames. Também são apresentadas defi-ciências estruturais nas unidades de atendimento, falta de profissionais etc. Um quadro realmente caótico e desanimador. No entanto, apesar de suas deficiências, não podemos simplesmente fustigar o SUS. Este sistema representa um avanço, um grande avanço para a saúde pública no país. Vejamos.

1) No Conceito

Houve um grande avanço do ponto de vista conceitual, pois antes da Constituição, denominada “cidadã”, de 1988, o atendimento da saú-de pública no Brasil era organizado segundo o modelo previdenciário, desenvolvido em alguns países da Europa, especialmente na Alemanha. Nessa concepção, os benefícios são correspondentes à contribuição das categorias de profissionais e das empresas em que trabalham. Nesse esquema, têm assegurado o direito, ao atendimento de saúde, somente os contribuintes. Assim, é natural pensar que a qualidade dos serviços fornecidos será proporcional ao montante destinado ao convênio.

Entretanto, o SUS foi constituído para oferecer saúde para todos, indistintamente. Os princípios doutrinais que o inspiram, são: a universa-lidade, a integralidade e a equidade. O princípio da universalidade traduz o que estabelece a Constituição, quando diz, no início da Seção II: ‘A

14 Cf. Texto-Base CF 2012, pp. 11-12.

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saúde é direito de todos’. ... atendimento a todo e qualquer cidadão... Do princípio da integralidade decorre a exigência de acesso de todo e qualquer cidadão a todos os serviços de que o Sistema de Saúde dispõe. O princípio da equidade visa assegurar que as ações e os serviços ... sejam oferecidos a todo cidadão, sem privilégios15.

Mas o SUS também se estrutura a partir de princípios organiza-tivos, que apontam para a descentralização conjugada com uma admi-nistração centralizada em cada esfera de governo:

a) Regionalização – objetiva levar as ações do campo da saúde o mais próximo possível da população. Deste modo, os servi-ços se organizam em diversos âmbitos ou regiões, nas esferas municipal, estadual e federal.

b) Hierarquização – as ações de saúde devem estar articuladas entre si de forma hierarquizada, desde o nível de atenção primária, passando pelo nível de atenção secundária, até o nível de atenção terciária. Alguns autores ainda consideram didaticamente a existência de serviços de atenção quaternária (como hospitais especializados e com alto nível tecnológico, sendo geralmente instituições de ensino e pesquisa).

c) Descentralização – quer distribuir as responsabilidades quanto às ações e serviços de saúde entre os vários níveis de governo,

d) Racionalização e Resolução – são princípios norteadores para que ações e serviços de saúde sejam definidos e organizados de modo a responder aos problemas de determinada região.

e) Complementaridade do setor privado – a Constituição “cidadã” prevê recorrer à contratação de serviços privados, por meio de contratos ou convênios, no caso de insuficiência do setor público. E que a escolha recaia sobre as instituições sem fins lucrativos. Há, porém, três condições: celebração de contrato; adequação da instituição privada aos princípios e às normas técnicas do SUS; os serviços privados sejam ofertados, com a mesma lógica organizativa do SUS.

15 Cf. Texto-Base CF 2012, n. 118.

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Fraternidade e Saúde Pública

2) No controle externo:

Na estrutura do SUS está implícito o seu controle pela sociedade, com garantias constitucionais, sobretudo por meio de entidades represen-tativas. Para isso, foram constituídas instâncias como os Conselhos e Con-ferências de Saúde, segundo as esferas governamentais. “Os Conselhos e as Conferências de Saúde merecem atenção especial, por serem espaços de participação democrática por meio dos quais se pode avançar na melhoria dos serviços públicos. Os Conselhos têm caráter deliberativo e a função de exercer o papel de formulação, acompanhamento e controle permanente das ações do governo em seus três níveis... São convocados pelo poder executivo ou, extraordinariamente, pelo Conselho de Saúde”16.

A composição dos Conselhos deve ser paritária entre os diversos atores sociais (50% usuários, 25% trabalhadores e 25% gestores e pres-tadores de serviço) (Res. 333, CNS, 2003)17.

3) Pelo gigantismo do sistema

É o maior sistema de atendimento público de saúde do mundo, pois a população do Brasil já se aproxima dos 200 milhões de pessoas. Disponibiliza mais de 50 mil unidades, denominadas Assistência Médica Sanitária (AMS), entre públicas e particulares ou filantrópicas (especial-mente as Santas Casas de Misericórdia). As estimativas indicam que o SUS realiza 12 milhões de internações/ano nos quase 432 mil leitos disponibilizados (35,4% públicos e 64,6% particulares ou filantrópicos) e mais de 100 milhões de procedimentos ambulatoriais. Seu orçamento alcança a cifra de 67 bilhões de reais18.

4) Pelos seus programas de atendimento à saúde

Entre as ações do SUS, merece destaque a Política de Humani-zação de Serviços de Saúde (PNHAH), lançado em 2001, e a Estratégia de Saúde da Família.

16 Cf. TB CF 2012, n. 120.17 Resolução 333 do Conselho Nacional de Saúde, novembro de 2003. Acesse em:

www.conselhosaude.gov.br. In TB CF 2012, n. 119 (f). 18 Cf. FORTES, P. A. C. SUS, um sistema fundado na solidariedade e na equidade, e

seus desafios. Revista: Vida Pastoral, janeiro/fevereiro – 2011, ano 52, n. 276, p. 24. Cf. Texto-Base CF 2012, nn. 109-113.

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O primeiro, intenta proporcionar melhor padrão de atendimento e assistência aos usuários do SUS, procurando introduzir, nas relações entre profissionais e usuários, valores e atitudes que se traduzam em respeito à vida. Trata-se de uma perspectiva humanística traduzida pela expressão “Humaniza SUS”. A finalidade é proporcionar acolhida e respeito, de acordo com a dignidade da pessoa que procura atendimento para a sua saúde19.

Com o programa Estratégia de Saúde da Família (ESF), o SUS procura promover ações que resultem em benefício à saúde das pessoas e da comunidade. Essas ações se pautam pelo caráter preventivo, de recupe-ração ou reabilitação, de doenças mais comuns. Para a operacionalização dessa estratégia são compostas equipes com profissionais das principais áreas do atendimento à saúde, que se encarregam de um determinado número de famílias residentes em certa área geográfica20.

No campo de urgências e emergências, surgiu o SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência), que atende atualmente mais da metade da população brasileira21. Foi criado também o programa da Farmácia Popular, que disponibiliza medicamentos com até 90% de desconto e, desde março de 2011, a população pode adquirir sem nenhum custo, ou seja, gratuitamente, vários medicamentos para o tratamento da hipertensão e do diabetes22.

10 Os desafios do SUS

Apesar dos avanços constatados, são notórias as deficiências do atendimento e serviços ofertados pelo SUS. A implantação des- des-te sistema de Saúde, segundo seus princípios básicos, exige maior aporte de recursos financeiros, melhor organização, diminuição dos desperdícios e das irregularidades, e estabelecimento de prioridades no atendimento em benefício das classes sociais mais desfavorecidas, social e economicamente23.

19 Cf. Fortes, P.A.C., art. cit., pp. 25-26.20 Cf. BRASIL, Ministério da Saúde. O que é o Humaniza SUS. Disponível em <portal.

saude.gov.br/portal>. In Ibid, pp. 26-27.21 Cf. Texto-Base CF 2012, n. 134.22 Cf. Texto-Base CF 2012, n. 135.23 Cf. Ibid, p. 27.

24 Encontros Teológicos nº 61Ano 27 / número 1 / 2012

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1) O financiamento

Os recursos financeiros destinados à saúde pública em todo o Brasil são insuficientes. Para efeito de comparação, em 2008, enquanto o SUS consumiu 3,24% do PIB, a média de gasto público em saúde em países como o Reino Unido, Suécia, Espanha, Alemanha, França, Canadá foi, em média, 6,7% do PIB (OMS, 2008)24.

O SUS precisou, literalmente, disputar recursos com outros ramos da seguridade social (Assistência Social e Previdência Social) desde a sua constituição. Na época, foi garantido no Ato das Disposições Transitórias que, enquanto não fosse regulamentada a lei de custeio da Seguridade Social, pelo menos 30% do total de seus recursos deveriam ser destinados para a saúde. Os anos que se seguiram à Constituição de 1988 são caracterizados pela tensão permanente entre dois princípios: a construção da universalidade e a contenção de gastos na saúde25.

A resolução do problema da insuficiência dos recursos financeiros para o SUS, passa pela definição do que são efetivamente ações da saú-de, que devem ser financiadas com verbas próprias para a saúde e pela regulamentação dos percentuais da arrecadação das diversas instâncias do governo a serem destinadas ao financiamento da área da saúde pública. No Congresso Nacional, tramita a Emenda Constitucional 29 (EC 29), que procura resolver tal questão. Enquanto isso, vemos distorções como a existência de um fundo de reserva especial para possíveis resarcimentos, a qualquer serviço privado nacional e até internacional, de custos com a saúde dos parlamentares26.

2) Melhor organização

O SUS, além de mais recursos financeiros, necessita otimizar o uso do dinheiro público. Hoje investe-se o dobro de recursos na cura de

24 Cf. Organização Mundial da Saúde. Disponível em: <www.who.int>. Acesso em: 06/07/2011.

25 Cf. MARQUES, R. M. e MENDES, Á. A problemática do financiamento da saúde pública brasileira: de 1985 a 2008. Artigo do projeto de pesquisa “Sistemas de proteção social brasileiro e cubano”, financiado pelo CNPq (processo n. 620006/2008-0) e realizado pelos Programas de Pós-Graduação em Política Social (UFES), em Economia Política (PUC/SP) em Serviço Social (PUC/RS) e a Universidade de Havana (Cuba), agosto de 2010. In TB CF 2012, n. 125.

26 Cf. Texto-Base CF 2012, n. 128.

25Encontros Teológicos nº 61Ano 27 / número 1 / 2012

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doenças (internações, cirurgias, transplantes) do que nas ações básicas de saúde (vacinas e consultas) que previnem a doença. Apesar disso, vemos um sinal alentador de mudança de perspectiva com o avanço, em alguns lugares, do projeto Saúde da Família.

Outros desafios se apresentam, pois uma pesquisa do IPEA27 de-tectou aqueles que são considerados os problemas mais frequentes nas unidades de atendimento: a falta de médicos (58,1%), a demora para atendimento em postos, centros de saúde ou hospitais (35,4%), e a demora para conseguir uma consulta com especialistas (33,8%).

3) Problemas mais específicos do SUS

1. Acesso: falta de reconhecimento e de valorização à atenção básica, desarticulação de seus programas entre si e com a so-ciedade; superlotação das unidades de urgência e emergência (prontos-socorros); acesso precário com longas filas para mar-cação de consultas, procedimentos (como cirurgias) e exames; falta de leitos hospitalares e desigualdade na distribuição pelas regiões do país, bem como insuficiência de leitos de UTI; insuficiente assistência farmacêutica à população; falta de hu-manização e de acolhimento adequados nas unidades de saúde; descaso com a saúde mental, mesmo diante do aumento indis-criminado de dependentes químicos no país, principalmente na camada mais jovem da população; tendência à judicialização na saúde, provocando demandas excessivas e corriqueiras ao poder judiciário e ao ministério público.

2. Gestão (de ordem administrativa e de recursos humanos): carência e má distribuição de profissionais de saúde pelo território nacional; sucateamento de material permanente e desabastecimento de material de consumo; carência de informa-ções e esclarecimentos adequados à população; planejamento insuficiente ou inexistente dos serviços disponibilizados; ten-dência à terceirização de várias unidades públicas de saúde; profissionais de saúde com baixa remuneração, más condições de trabalho, bem como precarização da contratação da mão de obra; ausência dos profissionais, falta de cumprimento da carga

27 Cf. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Pesquisa sobre a saúde brasi-leira, 2010. Disponível em: <www.ipea.gov.br>. Acesso em: 07/06/2011.

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horária em plantões e escalas de serviço, nas unidades de saúde e no Programa da Saúde da Família; fragilidade ou inexistên-cia do complexo regulatório intermunicipal, interestadual e internacional; falta de regulação e organização dos serviços com sobrecarga de demanda em municípios ‘polo’ ou ‘de re-ferência’; despreparo ou falta de gerenciamento e má gestão por parte dos responsáveis pela execução das políticas públicas em saúde; falta de capacitação e valorização da participação da comunidade no país, com preocupante desconsideração aos conselheiros de saúde.

3. Fatores Externos: excessiva especialização do segmento de SADT (Serviço de Apoio Diagnóstico e Terapêutico), com demanda crescente por tecnologias de ponta, também mais onerosas; relação eticamente inadequada e contestável entre os profissionais de saúde e a indústria de insumos especiais, como: órteses, próteses e medicamentos excepcionais ou de alto custo; processo falho de escolha dos delegados nas conferências de saúde, em todas as suas instâncias; e baixa implementação de suas propostas28.

11 Alguns elementos intervenientes na saúde e na sua assistência pública

Nas últimas décadas ocorreram mudanças em nosso contexto, que se refletem diretamente na saúde da população. As mudanças mais im-portantes dessa ordem foram em relação à demografia, à epidemiologia, à nutrição e à tecnologia.

É notória a transição demográfica em curso no país. A melhoria de condições de vida em geral para as pessoas propiciou o aumento da expectativa de vida dos brasileiros (hoje, em torno de 72 anos). Este fato, somado à diminuição da taxa de crescimento dos nascimentos (1,17% entre 2000 e 2010), tende a envelhecer a população. Projeções apontam para um país que, em 2050, terá uma população composta de 13% (em 2009, 26%) na faixa entre 0 a 14 anos e 22% de idosos (em 2009, 6,67%). É necessário que o sistema de saúde se prepare para uma maior demanda e procure se adequar a essas projeções, pois os idosos

28 Cf. Texto-Base CF 2012, n. 147.

27Encontros Teológicos nº 61Ano 27 / número 1 / 2012

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são mais sujeitos às doenças, especialmente desenvolvendo políticas de prevenção e promoção da vida saudável.

Na saúde pública, vemos a transição que ocorre em relação às principais doenças. No passado recente, doenças infecto-parasitárias, com desfecho rápido, eram as grandes causas de morte na população brasileira. Atualmente, as doenças crônico-degenerativas (como dia-betes, hipertensão, demências), os cânceres (neoplasias) e as causas externas (mortes violentas) se encontram entre as maiores causadoras de mortalidade.

Notamos mudanças também no padrão físico do brasileiro: com o crescimento alarmante da obesidade (índice de massa corpórea) entre pessoas na faixa de 25 a 30 e acima de 30, explodiram. Segundo o IBGE, em 2009, o sobrepeso atingiu mais de 30% das crianças entre 5 e 9 anos de idade; cerca de 20% da população entre 10 e 19 anos; 48% das mulheres; 50,1% dos homens acima de 20 anos29. Segundo dados30, 48,1% da população brasileira estão acima do peso, 15% são obesos31.

Por fim, devemos nos atentar para uma transição tecnológica. A tecnologia, um fenômeno próprio do nosso tempo que cada vez mais permeia as estruturas vitais, tornou-se importantíssima na medicina. Proporciona inúmeros benefícios, mas implica em custos altíssimos e no perigo de se relegar a humanização ao segundo plano.

Considerações finais

Ao abordar a realidade da saúde pública no país, as atenções se voltam para o SUS, o qual ainda não consegue oferecer tratamento de saúde digno para a parcela mais necessitada da população, apesar dos avanços que esta estrutura de saúde representa na historia do atendimento de saúde no Brasil, como pudemos ver.

Dentre os maiores problemas, além da necessidade de um finan-ciamento compatível com a demanda do sistema, sobressai a necessidade de melhor gestão para se otimizar os gastos dos recursos disponíveis.

29 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). POF (Pesquisa de Orçamento Familiar), 2009. Disponível em: <www.ibge.gov.br>. Acesso em 07/06/2011.

30 VIGITEL Brasil 2010. Vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico. Ministério da Saúde, 2011.

31 Cf. Texto-Base CF 2012, n. 63.

28 Encontros Teológicos nº 61Ano 27 / número 1 / 2012

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Entretanto, a Igreja, em sua sensibilidade de mãe, também se preocupa com a falta de sensibilidade diante do sofrimento ignorado dos usuários, mesmo em perigo de morte.

Para esse propósito, o Evangelho nos dá uma grande lição com a parábola do Bom Samaritano. Esta parábola sempre inspirou a Igreja a aproximar-se e cuidar dos doentes. Suscitou vidas consagradas, Institui-ções de caridade e Congregações, dedicadas ao cuidado dessas pessoas. Ainda hoje, milhares de pessoas atuam no seio da Igreja em várias pas-torais nesta área. É um belo serviço que anima a vida eclesial.

Diante disso, esta Campanha quer lembrar a todos os envolvidos no sistema de saúde, dos gestores aos diversos profissionais, que são chamados a servir de modo a atualizarem a figura do Bom Samaritano, o próprio Cristo. Esta atitude geradora de vida precisa ser reproposta para se contrapor à frieza desumanizante do “profissionalismo tecnológico” e das mazelas nas políticas públicas, para que a saúde se difunda e gere vida entre nossa gente sofrida.

Endereço do autor: [email protected]

Bibliografia

Documentos Pontifícios

João Paulo II, Exortação Apostólica Christifideles Laici. São Paulo, Ed. Paulinas, 1989.

João Paulo II, Carta Apostólica Salvifici Doloris. Petrópolis, Editora Vozes, 1984.

Bento XVI, Carta Encíclica Spe Salvi. Brasília, Edições CNBB, 2007.

Bento XVI, Discurso na Assembléia do Pontifício Conselho para a Pas-toral no campo da saúde. L’Osservatore Romano, 22/3/2007.

Bento XVI, Discurso na celebração do Dia Mundial do doente. L’Osservatore Romano, 13/02/2010.

29Encontros Teológicos nº 61Ano 27 / número 1 / 2012

Luiz Carlos Dias

Documentos do Magistério da Igreja

CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Instrução sobre as orações para alcançar de Deus a cura. São Paulo, Paulinas, 2003.

PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A PASTORAL NO CAMPO DA SAÚDE. Ao lado do doente. L’Osservatore Romano, 13/02/2010.

Documentos das Conferências Episcopais

CELAM, Documento de Aparecida. Brasília, Edições CNBB, 2007.

CNBB, Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2011-2015. Brasília, Edições CNBB, 2011, 2ª edição.

Artigos

FORTES, P. A. C. SUS, um sistema fundado na solidariedade e na equi-dade, e seus desafios. Vida Pastoral, janeiro-fevereiro 2011. Ed. Paulus, São Paulo, ano 52, n. 276, p. 22-27.

MARQUES, R. M. e MENDES. A. A problemática do financiamento da saúde pública brasileira: de 1985 a 2008. Artigo do projeto de pesquisa “Sistemas de proteção social brasileiro e cubano”, financiado pelo CNPq (processo n. 620006/2008-0) e realizado pelos Programas de Pós-Graduação em Política Social (UFES), em Economia Política (PUC/SP) em Serviço Social (PUC/RS) e a Universidade de Havana (Cuba), agosto de 2010.

Internet

1. Ministério da Saúde (MS). Disponível em: <www.saude.gov.br>.

2. Vigilância Sanitária. Disponível em: <www.portal.saude.gov.br>.

3. Dados do Sistema Único de Saúde (Datasus). Disponível em: <www.datasus.gov.br>.

4. Conselho Nacional de Saúde (CNS). Disponível em: <www.conselho.saude.gov.br>.

5. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em: <www.ibge.gov.br>.

30 Encontros Teológicos nº 61Ano 27 / número 1 / 2012

Fraternidade e Saúde Pública

6. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Disponível em: <www.ipea.gov.br>.

7. Organização Mundial da Saúde (OMS). Disponível em: <www.who.int>; <http://www.unric.org>.

8. Pastoral da Saúde Nacional (PS). E-mail: <[email protected]>.

9. Pastoral da Criança (PC). Disponível em: <www.pastoraldacriança.org.br>.

Encontros Teológicos nº 61Ano 27 / número 1 / 2012, p. 31-42.

Resumo: O artigo apresenta breve história da saúde pública no Brasil, desde os primeiros passos do período da Colonização, passando pelo período do Im-pério, da República, do Militarismo, da Re-democratização, até o surgimento do Sistema Único de Saúde, o SUS. Essa síntese ajuda-nos a perceber que o SUS é fruto de uma longa jornada histórica, na qual a população em geral sempre enfrentou sérias dificuldades de atendimento adequado. O SUS procura ser uma resposta a esse grave problema em nosso país. Ele surgiu num momento histórico no qual a reivindicação popular por melhor serviço de saúde pública encontrou eco em nossa Constituição como direito de todos os brasileiros.

Abstract: This article aims to briefly present the short course of public health in Brazil, from the first steps in the Colonization period, passing through the period of the Empire , of the Republic, of Militarism, of Re-democratization, to the rise of the Unified Health System, “Sistema Único de Saúde” (SUS). This survey helps us to see that the SUS is a fruit of a long historical journey in which the population in general always faced serious difficulties in being attended to. SUS is an attempt in finding an answer to this grave problem in our country. It arose in a historical moment in which popular vindication for better service in public health found echo in our Constitution as right of all Brazilians.

História da saúde no Brasil: dos primórdios ao surgimento do SUSAndré Luiz de Oliveira*

* Médico, cirurgião geral do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia e do Hospital Municipal de Uberlândia. Mestre em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de Uberlândia. Rrepresentante da CNBB no Conselho Nacional de Saúde e membro da Equipe de Apoio à Pastoral da Saúde do DEJUSOL do CELAM para AL e Caribe.

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História da saúde no Brasil: dos primórdios ao surgimento do SUS

Com este artigo, intento apresentar, brevemente, o percurso da Saúde Pública no Brasil, dos primeiros passos no período da Colonização, passando pelas épocas do Império, da República, do Militarismo, da Re-democratização, até o surgimento do Sistema Único de Saúde (SUS).

Este olhar nos permite perceber que o SUS é fruto de longa jor-nada histórica, em que a população em geral sempre enfrentou sérias dificuldades no atendimento. O SUS é uma tentativa de resposta a este grave problema de nosso país. Nasceu num momento histórico em que reivindicações populares por melhor atendimento, na saúde pública, puderam ecoar em nossa Constituição, como um direito de todos os brasileiros.

1 A situação da saúde pública nos primórdios da terra de Santa Cruz

O modelo de atenção à saúde no Brasil resultou, desde o seu início, de trocas e apropriações de experiências entre europeus, índios e africa-nos, particularmente no que tange à prática médica (PÔRTO, 2006). Com o processo de expansão marítima europeia, iniciado nos séculos XV e XVI, ocorreu um significativo aumento na circulação de mercadorias e contatos entre os povos, mas também houve uma verdadeira “união mi-crobiana” com um novo trânsito de doenças entre territórios distintos.

Com a chegada dos portugueses à Terra de Santa Cruz, um mundo novo e desafiante se formava em relação às enfermidades. Aqui, juntaram-se à malária, doença tropical, até então desconhecida para os europeus, aquelas trazidas pelos colonizadores, como peste bubônica, cólera e varíola e, posteriormente, com a chegada dos africanos, a filariose e a febre amarela. Um cenário preocupante foi-se desenhando, pois era frágil o conhecimento acerca da transmissão e do controle ou tratamento dessas novas doenças. Diferentes intervenções ou visões sobre as moléstias surgiam a cada momento (BAPTISTA, 2007).

A diversidade racial, presente no Brasil desde a sua colonização, possibilitava um leque de opções de tratamentos, pois os índios, os colo-nizadores e posteriormente os negros, eram detentores de conhecimentos próprios para lidar com as enfermidades. Essas culturas, a partir de suas cosmovisões, ofereciam procedimentos terapêuticos peculiares para as moléstias que ocasionalmente os acometiam.

33Encontros Teológicos nº 61Ano 27 / número 1 / 2012

André Luiz de Oliveira

Desse modo, rezas, feitiços, plantas e ervas nativas, eram utiliza-dos rotineiramente por pajés, na população indígena, e por curandeiros, na população negra, únicas forma de acesso à saúde para a maioria da população.

Algumas técnicas foram introduzidas aos poucos. Para quem poderia custear, havia a figura do prático ou barbeiro, que utilizava procedimentos avançados para a época, como sangria ou aplicação de sanguessugas, técnicas utilizadas por médicos europeus. Também da Europa, os Jesuítas trouxeram a prática médica da disciplina e do isola-mento, para o tratamento dos doentes.

Os portugueses não demoraram a implantar o modelo das Santas Casas de Misericórdia. As primeiras apareceram na capitania hereditária de São Vicente, em 1543, por Braz Cubas e em Salvador, em 1549, por iniciativa de Tomé de Souza. Na medida em que avançava a colonização, foram criadas outras unidades semelhantes pelos Senhores chamados “homens bons”, associados às Irmandades da Misericórdia, sociedades civis constituídas por pessoas de posses, geralmente católicas, que se propunham a realizar determinadas obras sociais.

No entanto, o cenário era de descaso para com a saúde. A mão de obra nesse início de colonização advinha da escravização indígena. Dessa forma, a assistência à saúde praticamente não apresentou mudan-ças com a chegada da nova mão de obra escrava, oriunda do continente africano. As pessoas adoeciam e morriam em suas casas, em instituições filantrópicas ou simplesmente ao léu, como morrem os animais (CAM-PINAS, 2004).

2 A vinda da família Real e os primeiros incrementos na área da saúde

O trópico atraía a atenção do colonialismo, mas os empreendimen-tos comerciais eram ameaçados pelas doenças transmissíveis endêmicas e epidêmicas, sendo raros os médicos que atuavam junto à população. Em meados do século XVII uma profunda crise demográfica ocorreu no Brasil devido a uma epidemia de sarampo, abalando a incipiente economia colonial. Após esse fato, as epidemias passaram a receber a atenção governamental, sobretudo em razão dos prejuízos causados à política econômica, pois os navios estrangeiros passaram a evitar os nossos portos com medo do contágio (CAMPINAS, 2004).

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História da saúde no Brasil: dos primórdios ao surgimento do SUS

Nesse sentido, as primeiras ações de saúde pública no Brasil colônia foram: proteção e saneamento das cidades, principalmente as portuárias; controle e observação das doenças e doentes, promovendo uma prática mais eficaz no controle das moléstias. Essas ações denotavam a preocupação com a saúde da cidade e dos produtos que eram comer-cializados, pois a assistência ao trabalhador se resumia na prática da quarentena, para evitar a propagação das doenças (BAPTISTA, 2007).

A transferência da família Real para o Brasil, em 1808, ocorreu em um período em que o mundo científico evoluía, inclusive a medi-cina. Nesta área, foram importantes os avanços no estudo da anatomia e a descoberta do microscópio, que precedeu a revolução pasteuriana (SCLIAR, 2007). Nesse contexto, foram dados os primeiros passos da medicina tropical com a criação de Faculdades de Medicina em Salvador e no Rio de Janeiro, cidades portuárias que recebiam o maior número de navios e de escravos (PÔRTO, 2006).

3 As iniciativas na Saúde Pública com o advento da República

A proclamação da República em 1889 marca o início de um novo ciclo na política de Estado, com o fortalecimento e a consolidação econômica da burguesia cafeeira (BAPTISTA, 2007). O aparecimento de uma nova organização social, a partir de fatores como, por exemplo, os primeiros sinais de industrialização em algumas cidades, a chegada de imigrantes europeus e o princípio da migração de pessoas do campo para as cidades, obrigou o governo a melhorar o atendimento da saúde (CAMPINAS, 2004).

Nesse período, também ocorreu a chamada normatização médica, que regulamentou o ensino e a prática médica, em conformidade com o modelo europeu. Esta medida resultou em maior controle sobre as práticas populares de cura, na substituição gradual dos religiosos das direções dos hospitais gerais, e na construção de hospitais públicos para atender doenças consideradas nocivas à população, como as mentais, a tuberculose e a hanseníase (BAPTISTA, 2007).

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4 O início das políticas sanitárias no Brasil

No governo de Rodrigues Alves (1902-1906), tendo Oswaldo Cruz à frente, as iniciativas de saneamento e urbanização foram seguidas de ações específicas na saúde, sobretudo no combate a algumas doenças epidêmicas. Foram tomadas medidas importantes, algumas drásticas, mas que representaram avanços no combate às epidemias, as quais se espalhavam facilmente pelas cidades. Nesse contexto, nasceu um Código Sanitário que previa a desinfecção inclusive domiciliar, o arrasamento de edificações consideradas nocivas à saúde pública, a notificação perma-nente dos casos de febre amarela, varíola e peste bubônica, e a atuação da polícia sanitária (BAPTISTA, 2007).

As instituições de saúde se organizavam a partir do modelo cam-panhista, de inspiração bélica, para combater as epidemias (OLIVEIRA, 2000). Por isso, não é de se estranhar o teor extremamente autoritário das práticas de saúde (COSTA SILVA et al., 2010). Para desinfetar, percorriam ruas e visitavam casas, inclusive promovendo a queima de roupas e colchões. Exigiam limpeza, reformas, interditavam prédios, removiam doentes. Naturalmente, os alvos preferidos das visitas eram as áreas mais pobres e de maior densidade demográfica (COSTA SILVA et al., 2010).

Também constava, nessa estratégia sanitária, a campanha de va-cinação obrigatória (BAPTISTA, 2007), que foi estopim de uma revolta popular, pelo caráter autoritário do processo. Este movimento ficou conhecido como a Revolta das Vacinas, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1904 (COSTA SILVA et al., 2010).

Na segunda fase do movimento sanitarista de Oswaldo Cruz, entre 1910 e 1920, o foco foi a zona rural. As preocupações se resumiam no saneamento rural e no combate a três endemias rurais acintosas: ancilos-tomíase, malária e mal de Chagas (BAPTISTA, 2007). Esse programa levou expedições de médicos sanitaristas pelo país e, proporcionou melhor conhecimento da situação de saúde no território nacional e da necessidade de se desenvolver uma política de Estado nessas áreas (HO-CHMAN & FONSECA, 1999).

Apesar do fim conflituoso, Oswaldo Cruz conseguiu exitos diante dos problemas edipemiológicos e colheu informações valiosas para seu sucessor, Carlos Chagas, o qual pôde estruturar uma campanha rotineira de educação e ação sanitária. Em 1923, foi realizada a reforma sanitária

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História da saúde no Brasil: dos primórdios ao surgimento do SUS

brasileira, com a criação do Departamento Nacional de Saúde, então ligado ao Ministério da Justiça (COSTA SILVA et al., 2010).

5 As revoltas populares e o surgimento das Caixas de Aposentadorias e das Pensões (CAPs)

Em 1923, diante de revoltas populares, movimentos anarquistas e comunistas, o chefe de polícia, Eloy Chaves, propôs uma lei que regula-mentava a formação de Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs). No entanto, eram restritas a algumas organizações trabalhistas mais atuantes política e financeiramente, como os ferroviários e os marinheiros, ligados à produção exportadora (OLIVEIRA & TEIXEIRA, 1985).

Foi um marco na história da Previdência Social no Brasil, pois os funcionários poderiam ter direito à aposentadoria por invalidez ou por tempo de contribuição, bem como à pensão por morte e a assistência médica (CAMPINAS, 2004). A administração e o financiamento ficaram a cargo dos trabalhadores e do patronato, sendo que 92% dos recursos dirigiam-se para aposentadoria, pensões ou benefícios, e apenas 8% para a atenção à saúde (FORTES, 2011). A União permaneceu ausente desse modelo.

6 O governo Getúlio Vargas e os primeiros Institutos de Aposentadoria e Pensão

Nos anos 30, sob o governo de Getúlio Vargas, as CAPs foram transformadas nos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs). As principais categorias de profissionais beneficiados foram: marinheiros, bancários, comerciários, industriários. O Estado brasileiro passou a colaborar com 15% do total da receita, e o restante era custeado pelos trabalhadores e patrões (FORTES, 2011).

Nesse período, ocorreu a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública (Mesp) e do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (MTIC). Assim, esboçava-se o sistema de proteção social brasileiro, com-preendendo a política de proteção ao trabalhador (com obrigatoriedade da carteira profissional, jornada de oito horas, direito a férias e a lei do salário mínimo) e, ainda, questões relativas à saúde (BAPTISTA, 2007). Outro dado relevante foi a criação do Conselho Nacional de Saúde.

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Na década de quarenta, em plena guerra mundial, o governo bra-sileiro, em convênio com o americano, estruturou o Serviço Especial de Saúde Pública (SESP) (Costa Silva et al. 2010). Sua atuação norteou-se pela criação de postos permanentes, centros de saúde e postos rurais, em várias regiões, como os Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, na contratação de sanitaristas em tempo integral e de uma equipe auxiliar com laboratoristas, escriturários, médicos consultantes e visitadores. Este órgão foi importante na introdução dos conceitos de desenvolvimento, de participação comunitária e de educação de grupos.

7 A Saúde pública nos anos 50

Acontecimentos significativos no âmbito da saúde no período, foi a criação do Ministério da Saúde (1953) e a reorganização dos serviços de controle das endemias rurais no Departamento Nacional de Endemias Rurais (Deneru – 1956). Tratou-se de uma política de saúde pública com ênfase na prevenção de doenças transmissíveis, aliada a uma política de saúde previdenciária restrita aos contribuintes da previdência e seus dependentes.

Essa nova configuração de atuação do Estado na saúde pública, re-sultou em um importante instrumento de controle do espaço de circulação dos produtos e do trabalho. O Estado passou a contar com: postos de traba-lho, indústrias (de medicamentos, de equipamentos), ensino profissional, hospitais, ambulatórios e outros organismos (BAPTISTA, 2007).

Há de se ressaltar também, nesse período, que o avanço da indus-trialização nacional gerou uma massa operária que deveria ser atendida pelo sistema de saúde (MENDES, 1993). Tal fato exigiu uma expansão rápida e progressiva dos serviços de saúde, e dada a impossibilidade de o Estado suprir as demandas cada vez mais crescentes, abriu-se espaço para os convênios-empresas. A assistência tornou-se mais cara e o hospital passou a ser o principal ponto de referência para a busca de um atendi-mento em saúde – modelo hospitalocêntrico (BAPTISTA, 2007).

8 Os equívocos na saúde pública no Regime Autoritário

Com o golpe militar e a instalação no Brasil de um regime autoritá-rio de administração pública, em 1964, houve uma piora sensível na saúde

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História da saúde no Brasil: dos primórdios ao surgimento do SUS

pública, ressentida sobretudo pela parcela mais humilde da população (COSTA SILVA et al., 2010). Nessa época, a política de saúde voltou-se para a expansão de serviços médicos privados (VASCONCELOS, 1999). O governo passou a comprar serviços de assistência médica, e as condi-ções dos brasileiros, expressas em diferentes indicadores, tornaram-se ainda mais críticas (PAIM, 2003).

Em 1966, ocorreu a unificação dos IAPs com a criação do Ins-tituto Nacional de Previdência Social (INPS). Esta medida unificou os benefícios para os trabalhadores em geral, independentemente de sua filiação profissional (FORTES, 2011). Novas categorias profissionais foram incorporadas ao sistema, como trabalhadores rurais, empregadas domésticas e autônomos (BAPTISTA, 2007). A migração de pacientes de alguns institutos, acrescida da superlotação nos hospitais, gerou insatisfação geral. Doenças antes erradicadas voltaram, as controladas reapareceram em surtos epidêmicos, houve aumento da pobreza, o sane-amento e as políticas de habitação populares ficaram em segundo plano (BAPTISTA, 2007).

9 As reivindicações populares e o anseio pela universalização da saúde pública

Na década de setenta, as pressões por reforma na política de saúde possibilitaram transformações concretas. Em 1974, foi criado o Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS), que distribuiu recursos para investimento na expansão do setor hospitalar (sendo 79,5% destinados para o setor privado e apenas 20,5% para o setor público). Em 1977, criou-se o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), órgão que passou a coordenar todas as ações de saúde no nível médico-assistencial da Previdência Social (BAPTISTA, 2007).

Outro fato importante foi a repercussão da Conferência Interna-cional de Assistência Primária à Saúde, realizada em 1978 na cidade de Alma-Ata (no atual Cazaquistão). Entre os temas tratados estavam: a participação comunitária, a cooperação entre os diferentes setores da sociedade e os cuidados primários de saúde, além de forte oposição à privatização e mercantilização da medicina sob o comando da Previdência Social. Os propositores de reformas no atendimento público de saúde, reivindicavam a universalização do direiro à saúde, com a unificação dos

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serviços prestados pelo Inamps e Ministério da Saúde em um mesmo sistema, e a integralidade das ações.

Com a influência vinda da experiência dos países socialistas, a Organização Mundial de Saúde, OMS, passou a enfatizar também as enormes desigualdades na situação da saúde entre os países desenvol-vidos e subdesenvolvidos, baseando-se ainda nos seguintes pontos: as ações de saúde devem ser práticas, exequíveis e socialmente aceitáveis; a saúde deve estar ao alcance de todos, pessoas e famílias e em locais acessíveis à comunidade; a comunidade deve participar ativamente na implantação e na atuação do sistema de saúde; por último, o custo dos serviços deve ser compatível com a situação econômica da região e do país (SCLIAR, 2007).

10 O processo de redemocratização da saúde pública no Brasil

Assim a saúde passava a assumir um sentido mais abrangente, resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso a serviços de saúde, dentre outros fatores (BAPTISTA, 2007). Nesse contexto, segundo Baptista (2007), foi realizada a VII Conferência Na-cional de Saúde (1980), que apresentou como propostas a reformulação da política de saúde e a formulação do Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde (Prev-Saúde).

Este último consistia em uma proposta de extensão nacional do Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (Piass). Já em 1981, com a nomeação do Conselho Consultivo de Administra-ção da Saúde Previdenciária (Conasp) e seu posterior diagnóstico, que apontava uma rede de saúde ineficiente, desintegrada e complexa, indu-tora de fraude e de desvio de recursos, foram então elaboradas algumas propostas operacionais básicas para a reestruturação do setor, dentre elas o Programa de Ações Integradas de Saúde (Pais).

Posteriormente, em 1983, esse programa foi redefinido como Ações Integradas de Saúde (AIS), que revelou ser a estratégia mais importante para a universalização do direito à saúde e significou uma proposta de “integração” e “racionalização” dos serviços públicos de saúde e de articulação destes com a rede conveniada e contratada, o que

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História da saúde no Brasil: dos primórdios ao surgimento do SUS

comporia um sistema unificado, regionalizado e hierarquizado para o atendimento.

A segunda metade da década de 80 foi marcada por uma profunda crise de caráter político, social e econômico, tendo enormes repercussões sobre a saúde da população, agravando as condições de vida, aumentando o desemprego, a desnutrição e a mobilidade dos grupos sociais menos protegidos (OLIVEIRA, 2000).

No governo da Nova República (1985), com o crescimento do movimento social que defendia a democratização da saúde e difundia a proposta da reforma sanitária (PAIM, 2003), sendo que alguns dos reformistas passaram a ocupar cargos de expressão no âmbito político-institucional do Estado (Ministério da Saúde, Inamps, Fiocruz), o Ministério da Saúde convocou gestores de saúde e, pela primeira vez, técnicos e usuários para a VIII Conferência Nacional de Saúde (1986) (BAPTISTA, 2007).

Considerado um marco histórico da política de saúde brasileira, esta conferência aprovou, por unanimidade de seus 4.000 participantes, as diretrizes da universalização da saúde e do controle social efetivo com relação às práticas estabelecidas (BAPTISTA, 2007), e assim ficaram delineados os princípios norteadores do que viria a ser o Sistema Único de Saúde – SUS. O relatório desta Conferência de Saúde também destacou o conceito ampliado de saúde, como direito de todos e dever do Estado (COSTA SILVA, 2010).

11 A VIII Conferência Nacional de Saúde e o surgimento do SUS

Não obstante a VIII Conferência Nacional de Saúde ter-se consti-tuído em divisor de águas dentro do movimento de reforma sanitária no país, e tendo sido realizada em um momento propício com o advento da Nova República, com a eleição indireta de um presidente não militar e a perspectiva de uma nova constituição (RONCALLI, 2003), suas pro-postas não foram concretizadas de imediato (BAPTISTA, 2007).

No entanto, por iniciativa do MPAS/Inamps, foi constituído o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS), ocorrido em 1987, o que representou ponte para a construção do SUS. Avançou na política de descentralização da saúde e do orçamento, permitindo uma maior autonomia dos Estados na programação das atividades no setor.

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Além disso, prosseguiu-se nas estratégias de hierarquização, regionali-zação e universalização da rede de saúde, antes centralizadas no Inamps (BAPTISTA, 2007).

Como este novo processo ocorria no período das discussões da Assembléia Nacional Constituinte (1987 e 1988), o relatório da VIII Conferência Nacional de Saúde foi tomado como base para a discussão da reforma do setor. As proposições mais importantes desse relatório foram assumidas pela “Constituição cidadã”, de 1988, dando origem ao SUS. Esse sistema pode ser definido como: o conjunto das ações e dos serviços de saúde, públicos e privados, contratados ou conveniados com o poder público. É o sistema de atenção à saúde de todos os brasileiros.

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Encontros Teológicos nº 61Ano 27 / número 1 / 2012, p. 43-56.

Resumo: O presente artigo apresenta, na perspectiva do autor, os desafios atuais da saúde pública no Brasil, traçando um breve histórico da saúde como direito de cidadania, analisa a situação atual sob os aspectos epidemiológicos, sociais, econômicos e culturais, e propõe alternativas para melhor desempe-nho das atividades assistenciais desenvolvidas no âmbito do Sistema Único de Saúde/SUS.

Abstract: This article presents, in the perspective of the author, the present challenges of public health in Brazil, tracing a short health history as a right of citizenship; it analyzes the present situation under epidemiological, social, eco-nomical and cultural aspects, and proposes alternatives for a better performance of assistance activities carried out within the ambit of the Unified Health System, “Sistema Único de Saúde” (SUS).

Brasil Século 21: os desafios da saúdeGeniberto Paiva Campos*

* O autor é médico, membro da Comissão Brasileira de Justiça e Paz/CBJP da CNBB, integrante do Observatório da Saúde do DF.

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Brasil século 21: os desafios da saúde

I Introdução

Nas últimas décadas, ocorreram mudanças significativas na saúde dos brasileiros. Mudanças caracterizadas pela redução da mortalidade por doenças relacionadas à pobreza e aumento concomitante do grupo das doenças não-transmissíveis, perfil característico dos países ricos ou em desenvolvimento. Essa mudança de padrão muitas vezes não é levada na devida conta pelas autoridades sanitárias e por grande parte dos interessados na temática da Saúde Pública, no diagnóstico e no pla-nejamento de suas ações. O que estaria, então, ocorrendo com a saúde dos brasileiros? Quais os fatores envolvidos nessa mudança do perfil epidemiológico? Quais os desafios envolvidos na elaboração de estra-tégias de enfrentamento desse (novo) grupo de doenças, tempos atrás chamadas de crônico-degenerativas?

É o que se pretende abordar neste artigo, através da análise das complexas relações entre Saúde e seus Determinantes Sócio-Econômicos e Ambientais e a resposta do setor Saúde do Brasil que, nas últimas duas décadas, organizou seus serviços assistenciais e de promoção da saúde e prevenção de doenças criando um sistema baseado nos princípios da Universalidade e Integralidade das ações, o Sistema único de Saúde/SUS, com garantia de acesso para todos os brasileiros.

II O conceito de saúde

O binômio Saúde x Doença acompanha o gênero humano desde seus primórdios. Com a evolução do conhecimento e a crescente inser-ção de novas tecnologias ao fazer do Homem, as formas de organização social foram sendo adaptadas ao sistema de produção, com impactos evidentes – diretos e indiretos – na saúde da comunidade.

No final do século 20, a Organização Mundial de Saúde/OMS de-finia Saúde como “um completo estado de bem-estar físico, psicológico, social dos homens (...)”. Percebe-se aí, claramente, o sentido individual, pessoal que esse conceito atribui à boa condição de saúde humana. O que é, realmente, um dos seus aspectos. O rápido e irreversível processo de urbanização, a introdução de novos hábitos de vida – alimentação inadequada, com excesso de sal e gordura, sedentarismo, uso abusivo de álcool, fumo e outras drogas – além das condições de moradia, trabalho, transporte, qualidade do ar e da água – principalmente nas metrópoles e grandes aglomerados urbanos, introduziu fatores que se somaram aos

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Geniberto Paiva Campos

riscos biológicos, pessoais, que ameaçam as condições de saúde do homem.

O conceito de saúde, portanto, se explicita em duas vertentes ou determinantes: a BIOLÓGICA e a SÓCIO-ECONÔMICA/AMBIENTAL (fg. 1). De tal modo que, nos dias de hoje, é lícito falar em condições predisponentes às “doenças do desenvolvimento” como, por exemplo, a obesidade e a síndrome metabólica, claramente relacionadas ao Diabetes Mellitus e originárias, por sua vez, do uso dos alimentos rápidos (fast food) industrializados, de fácil acesso a amplas camadas populacionais e relativamente de baixo custo, além do sedentarismo. Estariam, assim, postas as condições necessárias para as formas “modernas” de adoecer, características do processo de industrialização/urbanização.

Figura 1. Conceito de saúde – determinantes biológicos e sociais

Como consequência, amplia-se o leque de abordagem preventiva e terapêutica dos serviços de saúde modernos, os quais estão compelidos a lidar com esses desafios que são, gradativamente, incorporados ao chamado processo de desenvolvimento. Já não é suficiente, aos serviços sanitários organizados, prestar assistência médica a quem dela necessite. Tornou-se essencial o funcionamento de programas de Promoção de Saúde e Prevenção de Doenças, de acordo com os novos conceitos de saúde.

III A saúde dos brasileiros

No começo do século 20, as doenças de maior prevalência nas estatísticas de morbimortalidade brasileiras eram as do grupo infecciosas e parasitárias. São doenças relacionadas a condições de vida e higiene precárias, desnutrição, indisponibilidade de meios preventivos eficazes como vacinas, por exemplo, e condições insuficientes de assistência médica. Nessa época, a maior concentração populacional ocorria em zonas rurais e era lento o processo migratório para as cidades.

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Brasil século 21: os desafios da saúde

Com o advento da industrialização, o perfil de ocupação de mão de obra, a partir da década de 1960, foi mudando gradativamente, resultando em maior concentração nos setores secundário e terciário – indústria e serviços – com redução simétrica da ocupação no setor primário e relativa estabilidade do segmento secundário (fig. 2).

Figura 2

Praticamente de forma concomitante, mudanças significativas foram observadas na composição populacional do Brasil. O segmento urbano passou a ser predominante no perfil populacional brasileiro (fig. 3). No gráfico percebe-se, claramente, o cruzamento das curvas rural x urbano a partir da década de 1960.

Figura 3. População residente (%) por situação do domicílio

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A Transição Demográfica

Define-se transição demográfica como a condição em que ocorre mudança na composição populacional, decorrente de reduções nas taxas de fecundidade e do aumento da expectativa de vida ao nascer, quebran-do a configuração de “pirâmide populacional” clássica. Observa-se o incremento da participação dos idosos e a diminuição do componente populacional entre 0 e 15 anos, configurando-se a forma “trapezoide”, decorrente do estreitamento da base da pirâmide (fig. 4). A série histó-rica das taxas de fecundidade brasileiras, entre as décadas 1940 e 2010 são registradas na figura 5. Um comparativo da velocidade do declínio dessas taxas, entre o Brasil e países europeus desenvolvidos – a Itália e a França – é observado na figura 6. Na curva que representa o Brasil, percebe-se, pela sua inclinação, que a partir de década de 1960, houve significativa redução do número de filhos por família, chegando, nos dias atuais, a menos de dois, número insuficiente para repor o estoque populacional.

O declínio das taxas de mortalidade infantil, verificado em todas as macrorregiões do país, está representado na figura 7. Observa-se o decréscimo gradual e persistente dessas taxas ao longo das últimas dé-cadas, o qual traduziria a melhoria das condições de higiene, vacinação, qualidade da água e dos alimentos, incremento do aleitamento materno, entre outras variáveis.

As projeções demonstram que até a década de 2050, aproxima-damente, o segmento de maiores de 60 anos será equivalente ao de 0 a 15 anos na população brasileira (fig.8).

A Transição Epidemiológica

As taxas de óbito, de acordo com as suas causas e do ponto de vista epidemiológico, são classificadas em três grupos:

GRUPO I: doenças transmissíveis / infecciosas e parasitárias, com maior prevalência nos países pobres ou em desenvolvimento;

GRUPO II: doenças crônicas não-transmissíveis, características dos países ricos, desenvolvidos;

GRUPO III: violência (homicídios/suicídios), acidentes (trânsito e ambiente doméstico) que ocorrem em países dos dois grupos anteriores.

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Brasil século 21: os desafios da saúde

Figura 4. Taxas demográficas 2010 – “Pirâmide” populacional

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Figura 5. Taxa de fecundidade – Brasil – 1940 a 2000

Figura 6. Taxa de fecundidade total – Brasil, França e Itália – 1900 a 2050

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Figura 7. Evolução da Mortalidade Infantil no Brasil – 1960 a 2006

Figura 8. População total, segundo grandes grupos etários – Brasil – 1940 a 2050

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Aplicando-se o conceito de “Anos de vida saudáveis” – AVISA – perdidos por óbito precoce ou por incapacidade física, observa-se na figura 9, nos países ricos, desenvolvidos e em processo de desenvol-vimento, que as doenças do grupo I não atingem 10% da AVISA. Em contrapartida, as doenças do grupo II – crônicas não-transmissíveis – ocupam percentuais elevados, maior que 60%, nestes países. O Brasil, no gráfico representado pela América Latina e Caribe, já ocupa o segmento dos países ricos, aplicando-se o critério AVISA, o que evidencia a sua transição epidemiológica completa. Na figura 10 observa-se o incremento das taxas de expectativa de vida ao nascer dos brasileiros, com aumento significativo, cerca de 20 anos, nas últimas cinco décadas.

Figura 9

Figura 10

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A análise desses dados coloca um imenso desafio aos servi-ços de saúde brasileiros, pois significa o enfrentamento simultâneo das “doenças do desenvolvimento”, as doenças do Grupo I ainda remanescentes em algumas macrorregiões, além da incorporação do contingente de idosos, importantes consumidores de assistência diagnóstica e terapêutica.

IV O Direito à saúde (Linha do tempo: um breve histórico da Saúde Pública no Brasil)

A Saúde como um direito é um conceito relativamente novo, que foi se agregando ao elenco dos direitos sociais no Brasil. Nos primórdios da colonização, pobres, doentes, analfabetos e os excluídos em geral eram problemas mais afetos à Igreja Católica em tempos missionários, do que uma preocupação do Estado.

A formação de uma consciência social solidária e o reconhecimento dos direitos sociais tem seu início formal na década de 1920, através do Decreto Lei 4.682 de 24 de janeiro de 1923, a chamada LEI ELÓI CHAVES, propiciando o surgimento das “Caixas de Aposentadorias e Pensões” (CAPs), iniciativa do Governo Federal, criando-se a primeira modalidade de Seguro, Pensões e Aposentadorias.

Em 1926, a Assistência Médica é incorporada como atribuição das CAPs, que passam a ser responsáveis pelo atendimento à saúde de determinadas categorias de trabalhadores, através da compra de serviços de estabelecimentos médico-hospitalares e depois, com a prestação de serviços diretos, em unidades próprias. Os IAPs (Institu-tos) foram instrumentos importantes de assistência à classe trabalha-dora e algumas das suas unidades assistenciais transformaram-se em centros de excelência como, por exemplo, o Hospital dos Servidores do Estado/IPASE, no Rio de Janeiro.

Na década de 1970 os Institutos foram unificados, criando-se o INAMPS, responsável pelo desembolso para o atendimento médico, enquanto o Ministério da Saúde (MS) desenvolvia atividades preven-tivas, de educação em saúde e controle de endemias, desenvolvimento de “campanhas” (tuberculose, saúde mental, câncer), com unidades hospitalares próprias, um sistema assistencial integral, com cuidados preventivos e curativos, o Serviço Especial de Saúde Pública/SESP, além do Instituto Oswaldo Cruz/Manguinhos, responsável por estu-

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dos e pesquisas médicas de ponta, estudo das condições sanitárias do país, e pela produção de fármacos considerados estratégicos para a saúde pública brasileira.

Manguinhos tornou-se um centro de referência no Brasil e os chamados “Cientistas de Manguinhos” iniciaram estudos para a Reforma Sanitária no país. Como marcos de referência desse movimento destacam-se a “Reforma Carlos Chagas”, em 1920, e a criação do Ministério da Educação e da Saúde em 1930.

Nas décadas seguintes, um movimento consistente pelo direito à Saúde colocou o tema na pauta das políticas públicas brasileiras. No-vamente Manguinhos, agora FIOCRUZ, assumiu papel preponderante, juntamente com organizações que, por geração espontânea, tornaram-se vanguarda do Movimento Sanitarista – o Centro Brasileiro de estudos em Saúde/ CEBES e a Associação Brasileira de Pós-Graduação em saúde Coletiva/ ABRASCO – culminando com a criação do Sistema Único de saúde/ SUS. Inserido na Constituição de 1988, colocou a “saúde como direito de cidadania e dever do Estado”.

V SUS: uma proposta para redução das desigualdades

Cumpridas mais de duas décadas desde a sua criação, o SUS apresenta um acervo de realizações na área da Saúde Pública brasi-leira, embora, surpreendentemente, tenha se constituído em tema po-lêmico para autoridades sanitárias, especialistas em políticas públicas de saúde e para o público em geral. A pergunta que se faz: – há razão para polêmicas? Como um sistema baseado em princípios tão sólidos, explicitamente assumidos como cláusulas pétreas na Constituição do país – universalidade, integralidade, equidade, descentralizado em suas ações, com garantia de acesso para todos os brasileiros – pode estar sendo questionado, às vezes de forma tão veemente? Qual o tempo político do qual o SUS necessitaria para evidenciar os seus acertos? O que estaria dando errado com o SUS?

Algumas questões poderiam ser colocadas, todas fugindo para longe do falso dilema FINANCIAMENTO X GESTÃO:

1. O financiamento do SUS é majoritariamente federal, atual-mente em torno de 50% dos gastos, com Estados e municí-

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pios contribuindo com o restante das despesas, meio a meio, aproximadamente;

2. Faltaria estruturação do Ministério da Saúde (MS) para os novos desafios impostos pelo sistema;

3. Municípios com pouca tradição/experiência com as questões da saúde;

4. As funções dos Estados deixaram de ser executivas e passaram a ser de coordenação;

5. Espaços administrativos ocupados, prioritariamente, por indi-cações político-partidárias;

6. Instabilidade político-institucional do MS;7. Experiências prévias, de grande êxito assistencial e de impac-

to epidemiológico precocemente descartadas, por exemplo o Serviço Especial de Saúde Pública/SESP.

Nenhum desses itens do questionamento representariam, verda-deiramente, problemas insolúveis, impossíveis de serem equacionados. Onde estaria, então a raiz do problema? Qual a real dificuldade enfrentada pelo Sistema, agora em plena maioridade?

Para responder a questão tão complexa é necessário retomar o conceito de saúde, explicitado no início do texto (determinantes biológicos/individuais e determinantes sociais/coletivos) para dizer, com segurança e separando coisas de natureza diferente: – O SUS TEM ÊXITOS INCONTESTÁVEIS EM SUA AÇÕES DE SAÚDE COLETIVA. O SUS precisa investir com mais rigor e eficiência na saúde individual ou na chamada assistência médica aos indivíduos. Cremos que é neste último item que reside o maior desafio institu-cional do nosso Sistema Único de Saúde.

O Brasil apresentou, nos últimos anos, avanços na Saúde Coletiva, área de exclusiva responsabilidade governamental, como a redução da mortalidade infantil; aumento da expectativa de vida; aumento da cobertura vacinal e de pré-natal; controle das doenças transmissíveis; diminuição da desnutrição infantil; redução das inter-nações por complicações decorrentes de hipertensão arterial, diabetes mellitus, doenças cardiovasculares; redução significativa do número de fumantes; redução de óbitos por enfarte do miocárdio e acidente vascular cerebral.

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Na assistência individual, entretanto, persiste uma situação de desigualdade entre os cidadãos brasileiros: aqueles com acesso a pla-nos de saúde/convênios privados, com atendimento de suas demandas de saúde em clínicas e hospitais privados; e os que não têm planos de saúde e enfrentam dificuldades e demora para o atendimento na rede SUS, para procedimentos de baixa e/ou média complexidade. (Paradoxalmente, a rede SUS apresenta excelente resposta para os procedimentos de alta complexidade e alto custo: traumas, hemodi-álise, transplantes, por exemplo. Áreas que o setor privado avalia como de baixo retorno de investimentos).

Em conclusão, os desafios do SUS, hoje, tendo garantido à sua rede de serviços o aporte de recursos humanos, financeiros e tecnológicos adequados, consistem em:

– organizar a demanda, através da formatação dos Distritos Sanitários, responsabilidade das equipes da Saúde da Família, onde o Agente Comunitário de Saúde tem papel cada vez mais relevante ao facilitar o acesso dos usuários ao sistema;

– investir, de forma estratégica, nos níveis primários de atenção, setor que depende essencialmente da gestão de Recursos Huma-nos (RH) e onde a incorporação tecnológica é de baixo custo, buscando tornar esse nível de atenção altamente resolutivo, aliviando a demanda de setores de maior complexidade, como hospitais, por exemplo;

– incrementar a qualidade dos serviços hospitalares, os quais dependem de aporte adequado de tecnologia médica, gestão de RH e garantia de recursos financeiros adequados ao seu pleno funcionamento.

Fontes de Consulta

1. Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde – Relatório Final, abril de 2008. Disponível em: <www.saude.gov.br>.

2. Medici, AC, 2012. Disponível em: <www.monitordasaude.blo-gspot.com>.

3. Contribuição dos participantes do Observatório da Saúde do Distrito Federal, 2011/2012.

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Agradecimentos

Aos integrantes do Observatório da Saúde do DF, pelas valiosas contribuições que foram agregadas ao presente texto.

Endereço do Autor:SQS 316 – Bloco D – Apto. 402

CEP 70387-040 Brasília, DF

Encontros Teológicos nº 61Ano 27 / número 1 / 2012, p. 57-73.

Resumo: Partindo da premissa de que a saúde foi definida como “a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos serviços de saúde” (8ª Conferência Nacional de saúde (1986) e dos Artigos 196 e 198 da Constituição Federativa do Brasil (1988), a ética e a bioética representam uma ferramenta e uma ponte para o exercício da cidadania, base do controle social.

Abstract: Starting from the point of view that health is defined as “the total result of conditions of feeding, habitation, education, income, environment, work, transport, leisure, liberty, access to and ownership of land and access to health services “ (XIII National Health Conference 1986) , and articles 196 and 198 of the Federal Constitution of Brazil 1988, ethics and bioethics represent an instrument and a bridge for the exercise of citizenship which is the basis of social control.

Ética e saúde públicaChristian de Paul de Barchifontaine*

* Enfermeiro, Mestre em Administração Hospitalar e da Saúde, Doutorando em Enfermagem na Universidade Católica Portuguesa (UCP). Docente no Mestrado em Bioética do Centro Universitário São Camilo. Pesquisador do Núcleo de Bioética do Centro Universitário São Camilo. Atualmente, Superintendente da União Social Camiliana e Reitor do Centro Universitário São Camilo – São Paulo, Brasil.

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Ética e saúde pública

Preliminar: O que entendemos por saúde?

Para a Organização Mundial da Saúde – OMS, “a saúde é o completo bem-estar físico, psíquico, social e espiritual, e não somente a ausência de doenças ou enfermidades” .

Na realidade brasileira, como na América Latina, esta definição é muito vaga e fora da nossa realidade. Assim, por ocasião da VIII Conferência Nacional de Saúde – 1986, a saúde foi definida como “a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos serviços de saúde”.

Segundo a OMS, “a saúde pública é a ciência e a arte de prevenir as enfermidades, melhorar a qualidade, a esperança de vida, e contribuir para o bem-estar físico, mental, social e ecológico da sociedade”. Isto se alcança mediante o esforço concentrado da comunidade que permita o saneamento e a preservação do meio ambiente, assim como o controle das enfermidades. Pode-se definir também saúde pública como políticas públicas utilizadas para obtenção da saúde coletiva, políticas que, no caso, constituem-se em trabalho interdisciplinar, amplo, no qual o alvo é a saúde da coletividade.

Introdução

Fazer diagnósticos sem propor tratamentos concretos, não basta. Falar de atenção, prevenção e reabilitação, o assunto foi debatido na Con-ferência de Alma-Ata, capital do Cazaquistão, em 1978. A “Declaração de Alma-Ata”, que trata dos Cuidados Primários de Saúde, foi assinada por 134 governos e representantes de 67 organizações e agências espe-cializadas. Como reza o item X da Declaração, “poder-se-á atingir um nível aceitável de saúde para todos os povos do mundo até o ano 2000, mediante melhor e mais completo uso dos recursos mundiais, dos quais uma parte considerável é atualmente gasta em armamentos e conflitos militares”.

Hoje, o paradigma da Organização Mundial da Saúde é a promo-ção da saúde. Mas estamos ainda longe, já que estamos ainda na saúde curativa e na prevenção, quando os países do primeiro mundo estão na promoção da saúde. É interessante lembrar que a OMS já promoveu várias Conferências sobre a Promoção da Saúde, e numa delas, em

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Bogotá, em 1992, enfatizou: a promoção da saúde na América Latina busca a criação de condições que garantam o bem-estar geral como pro-pósito fundamental do desenvolvimento, assumindo a relação de mútua dependência entre saúde e desenvolvimento. O desafio da promoção da saúde no Continente consiste em transformar as relações excludentes, conciliando interesses econômicos e propósitos sociais de bem-estar para todos. Ressalte-se o papel fundamental da educação, informação e comunicação social, na promoção da saúde

Que valor atribuímos à vida? De que modo podemos proteger e tornar melhor esse bem? Como melhorar a nossa convivência humana? Se Bioética significa fundamentalmente amor à vida, tenho certeza de que nossas vozes podem convergir em estimulantes respostas para melhorar a saúde do nosso povo e o nosso próprio convívio.

I Nossa realidade

A construção da democracia brasileira corre o sério risco de ser interrompida. Com a péssima distribuição de renda entre os brasileiros, o abismo entre ricos e pobres continua a crescer. O mundo ficou divi-dido entre incluídos e excluídos. O Mercado, incontrolável, onipotente, onipresente, avança, deixando muitas vítimas, principalmente nos países pobres. O Mercado não tem compromissos com os povos, precisa apenas de consumidores e da subserviência da Mídia para alcançar os seus obje-tivos. A liberdade de expressão poderá não resistir a tamanha agressão.

1.1 Pós-modernidade

A Pós-modernidade foi gerada na Modernidade, assim como a Revolução Francesa o foi no Absolutismo e no Protestantismo; e a Revo-lução Russa, por sua vez, na Francesa. Desta forma, a Pós-modernidade representa, por um lado, uma ruptura com a modernidade; mas, por outro, uma simples continuação de um processo transformador que começou antes mesmo dessa Modernidade.

A Pós-modernidade é o nome aplicado às mudanças ocorridas nas ciências, nas artes e nas sociedades avançadas desde 1950, quando, por convenção, se encerra o modernismo (1900-1950).

A Pós-modernidade ameaça encarnar hoje estilos de vida e de filo-sofia nos quais se constrói uma idéia tida como arqui-sinistra: o niilismo,

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o nada, o vazio, a ausência de valores e de sentido para a vida. Mortos Deus e os grandes ideais do passado, a pessoa moderna valorizou a arte, a história, o desenvolvimento, a consciência social, para se salvar! Dando adeus a essas ilusões, a pessoa pós-moderna já sabe que não existe céu nem sentido para a história, e assim se entrega ao presente e ao prazer, ao consumo e ao individualismo.

A Pós-modernidade: as novas tecnologias, como a informática, a cibernética, a telemática, o descartável, transformam a organização social. Em nível psicológico, a sociedade aprisiona as pessoas através de regras morais, valores sociais e religiosos. A pessoa pós-moderna deve dar mais importância à sua sensibilidade do que à sua inteligência, deve viver procurando sensações e emoções sem limites, com o mínimo de dor. A pessoa pós-moderna cultiva uma mentalidade imediatista, em que tudo é relativo e ilusório, sem ideologia e ideais verdadeiros, onde o que se deve fazer é libertar os instintos reprimidos e deixar-se levar pela sensibilidade: a pessoa aproveita ao máximo o presente e não se preocupa com o que vem depois, que pode ser até a morte. A pessoa pós-moderna vive um pacifismo consensual: “Paz e Amor” (1968), a paz num nivelamento onde ninguém diz o que é certo, onde não existam normas de conduta nem valores a serem seguidos, muito menos uma moral transcendente. O amor situa-se dentro de uma liberalização sem limites, sem fidelidade, sem compromisso. Poderíamos falar também da apatia política e da civilização da imagem. A grande justificativa para a pós-modernidade seria que o mundo moderno não conseguiu cumprir suas promessas com o paradigma do crescimento econômico infinito, da erradicação das doenças, prolongamento da vida e até a extinção da morte.

1.2 Globalização

Muitos pensadores têm dedicado suas pesquisas à tentativa de interpretar este momento em que vivemos. Sabemos que a socieda-de cresceu bastante nestes últimos 50 anos. No Brasil, por exemplo, registravam-se em 1940 cerca de 42 milhões de habitantes. Esse número subiu para 90 milhões em 1970 e para aproximadamente 192 milhões em 2011.

O mundo precisou adaptar-se a esse movimento populacional. Crescer tornou-se, então, sua única alternativa. O propósito do progres-

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so deveria estar em proporcionar a essa população crescente melhores condições de vida. Enfim, dignidade, igualdade e liberdade para todos.

O capitalismo, teoria que se fortaleceu no século XIX, pode ser o grande responsável por esse progresso desenfreado, o que, na geração de 80, era normalmente apelidado de “capitalismo selvagem”. O apelido “selvagem” parece refletir com propriedade o sentimento hobbesiano de que “o homem é lobo para o próprio homem”.

Nesse contexto de luta pela sobrevivência e adaptação necessária ao sistema, perderam-se de vista os ideais nobres como o respeito pela vida e pelo outro, uma vez que somos, por esse princípio, adversários uns dos outros.

A crise do paradigma ético encontra-se igualmente atrelada a todo esse movimento desenfreado de busca “por um lugar ao sol”. O indivi-dualismo ocupa um lugar de destaque em todo esse cenário social.

A questão passa a ser então encontrar uma resposta para explicar os caminhos que ainda temos pela frente. Poderíamos iniciar, tentando explicar o fenômeno do sistema que se instaurou no final do século XX: a globalização.

Os estudos sobre esse tema têm em comum a definição de que uma economia planificada gera um maior controle sobre as forças produtivas e, com isso, fica o Estado centrado somente nas questões sociais e no exercício pleno da tutela da democracia.

Precisamos pensar que a economia deve estar a serviço de um bem-estar social. Para isso não podemos deixar que “os filhos das trevas sejam mais espertos que os filhos da luz” (cf Lc 16,8). Nem tampouco se deve permitir que a dignidade da pessoa seja ultrajada e violentada pela ganância de uns poucos. O bem-estar de poucos não deve ser custeado pela maioria excluída. Uma maioria que não desejou ser excluída, mas que muitas vezes se acostumou com o assistencialismo social que a colocou à margem de qualquer tentativa de inclusão. É hora de consumirmos esse artigo de luxo que é o pensar, pois afinal não somos máquinas, homens é que somos!

A cidadania expressa um conjunto de direitos e deveres que dão à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo. Quem não exerce sua cidadania, fica marginalizado ou excluído da vida social e da tomada das decisões.

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Ética e saúde pública

Somos acostumados a apanhar calados, a dar um jeitinho para tudo, e não levar a sério a coisa pública. Achamos que direitos são privilégios de uma minoria. E se as coisas estão como estão, é “por vontade de Deus”. No entanto, a cidadania não nos é dada, mas construída e conquistada a partir da capacidade de organização, participação e intervenção social.

II Cidadania

Frente a esta realidade – pós-modernidade, globalização cen-tralidade do econômico, as raízes da injustiça – precisamos lembrar a importância do exercício da cidadania e o papel do Estado, da Sociedade civil e do Mercado. No fundo, o que a realidade na qual vivemos, e o exercício da cidadania, têm a dizer aos professores e educadores?

2.1. O Estado é a resultante da correlação de forças políticas, econômicas, sociais e culturais; é o conjunto de organizações e leis que regulamentam e permitem a vida de um país através dos três poderes: o legislativo, o executivo, e o judiciário. O Estado tem por finalidade promover o bem comum, respeitando os direitos e deveres de cada cidadão, e a sociedade civil. O bem comum é o conjunto de condições materiais, institucionais, culturais e morais, necessárias para garantir a todos as possibilidades concretas de atingir níveis de vida compatíveis com a dignidade da pessoa humana.

2.2. A sociedade civil, ou sociedade dos cidadãos, é a organiza-ção de pessoas, de cidadãos, para defender interesses e direitos como religião, sexo, cor, idade e classes econômicas. A sociedade civil deve vigiar o Estado para que cumpra seu dever de atender as necessidades básicas da população.

2.3. O mercado é anterior à sociedade moderna; ele está associa-do à formação das cidades, cujos suprimentos dependiam de relações comerciais com produtores externos, notadamente camponeses. A so-ciedade de mercado surge no Ocidente a partir do século XVI. Agora, a produção não é mais regida pelas necessidades humanas, mas pelas necessidades do mercado.

Todo compromisso social, na nossa realidade, é desafiado a fa-vorecer o processo de conquista da cidadania do povo. É importante compreender o que se entende por Cidadania. Esta consiste no exercício da plenitude dos direitos, como garantia da existência física e cultural

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e reconhecimento como ator social: por exemplo, votar, participar dos Conselhos Municipais ou Estaduais de Saúde, Educação, Idosos....

III Moral – Ética – Bioética

Lembramos que o advento da bioética muito contribuiu para es-tabelecer a distinção entre moral e ética.

MORAL diz respeito a valores consagrados pelos usos e costumes de uma determinada sociedade. Valores morais são, pois, valores eleitos pela sociedade e que cada membro a ela pertencente recebe (digamos passivamente) e os respeita.

ÉTICA é um juízo de valores, é um processo ativo que vem “de dentro de cada um de nós para fora”, ao contrário de valores morais que vêm “de fora para dentro” de cada um. A ética exige um juízo, um julgamento, em suma, uma opção diante dos dilemas. Nesse processo de reflexão crítica, cada um de nós vai pôr em jogo seu patrimônio genético, sua racionalidade, suas emoções e, também, os valores morais.

BIOÉTICA é ética, ética da vida, da saúde e do meio ambiente; não se pode dela esperar uma padronização de valores – ela exige uma reflexão sobre eles e, como dito, implica opção. Ora, opção implica li-berdade. Não há bioética sem liberdade, liberdade para se fazer opção, por mais “angustiante” que possa ser. O exercício da bioética exige, pois, liberdade e opção. E esse exercício deve ser realizado sem coação, sem coerção e sem preconceito. A bioética exige também humildade para se respeitar a divergência, e a grandeza para a reformulação, quando ocor-re a demonstração de ter sido equivocada a opção. Condição sine qua non exigida pela bioética, enquanto tal, diz respeito à visão pluralista e interdisciplinar dos dilemas éticos nas ciências da vida, da saúde e do meio ambiente. Ninguém é dono da verdade.

Hoje, a bioética pode ser definida como um instrumental de refle-xão e ação, a partir de três princípios: autonomia, beneficência e justiça. Busca estabelecer um novo contrato social entre sociedade, cientistas, profissionais da saúde e governos. Além de ser uma disciplina na área da saúde, é também um crescente e plural movimento social preocupado com a biossegurança e o exercício da cidadania, diante do desenvolvi-mento das biociências. Procura resgatar a dignidade da pessoa humana e sua qualidade de vida.

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Ética e saúde pública

IV Políticas de saúde

4.1 Constituição da República Federativa do Brasil (1988)

Art. 196 – A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Art. 198 – As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, or-ganizado de acordo com as seguintes diretrizes:

– descentralização, com direção única em cada esfera de governo;– atendimento integral, com prioridade para as atividades pre-

ventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;– participação da comunidade.Parágrafo único – O sistema único de saúde será financiado, nos

termos do artigo195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, além de outras fontes.

4.2 Reflexão sobre políticas de saúde

Uma reflexão sobre as Políticas de Saúde no Brasil surge como a oportunidade de pensá-las à luz dos seus resultados, de melhoria da qualidade de saúde da população. Isso implica o entendimento acerca do significado da saúde. Saúde não pode ser definida apenas como ausência de doença. É antes de tudo a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, lazer, liberdade e acesso a serviços de saúde. Em resumo, é o produto de condições objetivas de existência. Resulta das condições de vida e das relações que os homens estabelecem entre si e com a natureza, por meio do trabalho.

Promover a saúde significa intervir socialmente na garantia dos direitos e nas estruturas econômicas que perpetuam as desigualdades na distribuição de bens e serviços. As políticas de saúde vêm no sentido de implementar estratégias governamentais que visam corrigir os desequi-líbrios sociais e propiciar a redução das desigualdades sociais.

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Ao se examinar a situação de saúde no Brasil, encontramos uma série de problemas em consequência das condições de vida da população, que refletem as desigualdades de várias ordens. São desigualdades fruto de uma distribuição desigual de riquezas e de oportunidades. A nossa sociedade é extremamente desigual. Poucos têm muitos direitos e muitos têm quase nenhum. O mesmo ocorre com a distribuição de renda e os recursos públicos. Há grande diversidade entre as regiões e as cidades brasileiras. A título de exemplo, a mortalidade infantil é muito maior na Região Nordeste do que no Sul e Sudeste. Os indivíduos com maiores salários vivem mais anos do que aqueles que ganham apenas um salário mínimo.

Todos sabem que a saúde do povo não vai bem. A mortalidade infantil no Brasil ainda é alta. Os jornais e a televisão noticiam diaria-mente o “caos” da assistência médica. Hospitais lotados, filas de espera, aumento das mensalidades dos convênios, principalmente para idosos, e que não cobrem várias doenças. Greves constantes de trabalhadores da saúde por melhores salários e condições dignas de trabalho. Aumento de casos novos de doenças como a dengue, tuberculose, difteria, meningite etc. Enfim, os meios de comunicação divulgam e criticam a crise da saúde que estamos vivenciando... Por que todos esses fatos estão ocorrendo? Como relacioná-los às políticas para o setor saúde?

Para entender o que ocorre hoje, seria necessário examinar o pas-sado sob o ângulo das políticas econômicas e do modelo de desenvolvi-mento do país. Mais especificamente, a reordenação efetiva das políticas sociais de Estado no sentido da garantia do direito, da eficiência, da eficácia e da adequação às necessidades de saúde dos diferentes grupos sociais, lembrando aqui o neoliberalismo e o capitalismo.

Hoje, na vigência da Constituição de 1988, que inaugurou um avanço nos direitos de cidadania, garantindo o direito universal e igua-litário à saúde, deve-se crer, diante do cenário da saúde pública no país, que o conceito ampliado de saúde não foi incorporado na cultura política, mas pelo contrário tais conceitos são desconsiderados pelas práticas governamentais e sociais.

4.3 Sistema Único de Saúde – SUS

O SUS se baseia numa filosofia caracterizada por um objetivo e por princípios que o fundamentam. Vejamos a seguir.

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Ética e saúde pública

Objetivo: o SUS moderniza a relação do Estado com a promoção, proteção e recuperação da saúde, pois traz em alguns de seus pressupostos básicos o avanço social e político essencial para iniciar ações sérias de promoção à saúde e combate às doenças do nosso povo.

Princípios:

a) descentralização da gerência e ação da saúde: os Estados e os Municípios se responsabilizam por todo o atendimento;

b) participação da sociedade organizada, por meio de conselhos deliberativos municipais, estaduais e nacional. Esses conselhos objetivam o controle, a avaliação e o planejamento das polí-ticas de saúde em suas devidas instâncias, evitando provável duplicação de gastos;

c) transferência no repasse de recursos da União para Estados e municípios. Parte do repasse será automático.

d) obrigatoriedade da ampliação do orçamento para aplicação em saúde: a lei prevê 8% do PIB;

e) sistema de gestão participativo: esse tipo de sistema oferece condições adequadas e cria responsabilidade para os executo-res, desmotivando o clientelismo político vigente.

4.4 Conselho Municipal de Saúde

A existência do Conselho Municipal de Saúde, com as atribuições que lhe são garantidas por lei, pode vir a ser importante instrumento de participa-ção popular. E, constitui-se numa das formas de participação da construção de uma sociedade justa e solidária, a serviço da vida e da esperança.

4.4.1 O que é Conselho Municipal de Saúde?

O Conselho Municipal de Saúde é a instância local, núcleo funda-mental de formulação de estratégias e de controle da execução da política de saúde, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros. Constitui a base fundamental do processo democrático participativo do setor de saúde, no nível dos municípios. A criação desse Conselho é regida por Lei Municipal, conforme a Lei Orgânica de cada município.

É no município que o cidadão sente suas necessidades. Portanto, é aí que as decisões importantes sobre o funcionamento dos serviços de

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saúde devem ser tomadas, levando-se em conta a realidade total. Com a existência do Conselho Municipal de Saúde, além de poder diagnosticar as necessidades e determinar as prioridades de saúde junto com os outros representantes, a verba da União não precisará mais passar pelo Estado (diminuindo o jogo da politicagem e do desvio).

O Conselho funciona dentro de regras democráticas, com a socie-dade organizando-se e capacitando-se para uma participação crescente e politicamente amadurecida, e com os governantes respeitando o jogo democrático.

O trabalho dentro do Conselho é colegiado. Seus componentes não são remunerados pelas funções que exercem. Fixam suas deliberações a partir do debate interno e ouvindo pessoas e entidades convidadas a emitir seus pareceres, como: manifestações políticas, consultorias téc-nicas ou administrativas, estudos epidemiológicos ou de investigação em serviços de saúde.

4.4.2 Composição do Conselho Municipal de saúde

O critério é o de paridade:

– 50% de usuários: representantes de centrais sindicais, sindi-catos, conselhos locais de saúde, associações de moradores, organizações de base da(s) Igreja(s) e outros movimentos populares.

– 25% de representantes do governo, prestadores de serviços privados conveniados, ou sem fins lucrativos;

– 25% de entidades dos trabalhadores de saúde.

V Financiamento da saúde

EMENDA CONSTITUCIONAL n.29, de 13 de setembro de 2000

A emenda 29, aprovada em 2000, foi regulamentada pelo Se-nado em 07 de dezembro de 2011, estabelecendo percentuais mínimos exigidos para gastos públicos com saúde:

– Municípios: 15% de seus recursos;– Estados: 12% de seus recursos;

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Ética e saúde pública

– União: correção dos gastos do ano anterior pela variação do PIB.

A regulamentação da lei define o que pode e o que não pode ser contabilizado como gasto em saúde. Assim, não poderão mais entrar no cálculo:

– Aposentadorias e pensões, inclusive dos servidores da saúde;– Pessoal ativo da área de saúde quando em atividade alheia à área;– Programas de alimentação, ainda que executados em unidades

do SUS;– Saneamento básico; – Limpeza urbana e remoção de resíduos;– Assistência Social;– Obras de infraestrutura, ainda que realizadas para beneficiar

direta ou indiretamente a rede de saúde.

Quais os aspectos positivos e negativos da regulamentação?

Aspectos positivos:

– Define o que são ações e serviços de saúde, e fecha as brechas para desvios dos recursos da saúde. “Dinheiro da saúde é para parto, vacina, programa de Saúde da Família, medicamento, cirurgia cardíaca e UTI” segundo o Deputado Federal Darcísio Perondi (Presidente da Frente Parlamentar da Saúde).

– Acaba com a possibilidade de que verbas do Fundeb (Fundo de Valorização dos profissionais de Educação) sejam retiradas da base de cálculo dos Estados. Com isso, R$ 7 bilhões não serão retirados anualmente do gasto do SUS.

– Aperfeiçoa os sistemas de fiscalização da aplicação dos recursos na saúde.

Aspectos negativos:

– A correção orçamentária pela variação nominal do PIB não permite a recuperação de perdas do setor;

– A responsabilidade pela saúde está excessivamente nas mãos das prefeituras, que já estão gastando mais do que podem, 19,5% em média;

69Encontros Teológicos nº 61Ano 27 / número 1 / 2012

Christian de Paul de Barchifontaine

– O gasto privado em saúde é maior do que o público: 52,1% contra 47,9%.

– Gasto público em saúde chega a 3,6% do PIB. Segundo a OMS, são necessários pelo menos 6% para se manter um sistema universal.

– Gasto público por habitantes/dia é de apenas R$ 1,82. O or-çamento da Saúde para 2012 é de apenas R$ 92,1 bilhões. Os deputados e senadores conseguirão emendas que deverão ser investidas na Saúde (construções, ambulâncias...) no valor de R$ 2 milhões cada um, valor total: R$ 1,19 bilhão. Mas não se resolve o custeio.

– ORÇAMENTO DA UNIÃO PARA 2012: Saúde: 3,98% Educação: 3,18% Juros, amortização da dívida: 47,19%– Remuneração do SUS é insuficiente. De cada R$ 100 gastos

pelos hospitais e entidades filantrópicas em serviços, apenas R$ 60 são efetivamente pagos.

VI Desafios: a prática do controle social

6.1 O controle social e a democratização dos governos e do Estado no Brasil

Controle social é aqui entendido como o controle sobre o Estado pelo conjunto da Sociedade Organizada em todos os segmentos sociais. Evidentemente, esse controle deve visar o benefício do conjunto da sociedade e deve ser permanente. Por isso, quanto mais os segmentos da sociedade se mobilizarem e se organizarem, maior será a pressão e o resultado, para que seja efetivado o Estado Democrático.

Assim, a democracia representativa, que aguarda a cada quatro anos a eleição de representantes da sociedade (Poder Executivo e Le-gislativo), passa gradativamente a se completar com as várias formas de Democracia Participativa, que as conquistas sociais e democráticas vão realizando. No momento, este processo atinge crescentemente os Governos Municipais.

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Ética e saúde pública

6.2 O controle social e os Conselhos de Saúde

Nada substitui o controle social pelos movimentos sociais da sociedade organizada, como os sindicais, os comunitários, os de defesa do consumidor, os partidos políticos e outros.

É conquista das mobilizações sociais e democráticas dos anos 1980, que se consolidaram na Constituição Federal de 1988 e nas Leis 8.080/90 e 8.142/90. Ao integrar os Conselhos de Saúde na estrutura legal do Poder Executivo, esta conquista acrescenta uma trincheira decisiva para o controle social, que é um enclave do controle social dentro do Estado: os Conselhos Municipais, Estaduais e Nacional de Saúde.

Estes novos órgãos do Poder Executivo possuem uma composição e papel de características inusitadas e diferenciadas: sua composição é tão heterogênea e plural quanto a própria sociedade – metade é das enti-dades representantes dos usuários e, na outra metade, além do Governo, entidades representantes dos prestadores de serviços e dos profissionais da saúde.

O grande objetivo: assegurar a construção de um modelo assisten-cial baseado nos direitos de cidadania de toda a população, intersetorial, em defesa da vida e da saúde, e com acesso universal e eqüitativo a todos os níveis da atenção integral à saúde, da coletividade, dos grupos popu-lacionais expostos a riscos específicos e de cada indivíduo. Tudo isso, efetivado por um modelo de gestão descentralizado e participativo.

Sem a clareza do que significa este objetivo e o conseqüente com-promisso, o controle social através dos Conselhos de Saúde fica exposto a pressões estreitas de tendências e grupos, da sociedade e do Governo, desviando-se da totalidade da cidadania.

VII Nossos compromissos

7.1 Direito à vida

As questões que angustiam o ser humano são o direito à vida, o sentido da vida, a busca da verdade e a busca da felicidade. A vida é o supremo bem pelo qual devemos zelar. E entendemos, em primeiro lugar, que não há direito à vida sem liberdade, igualdade, segurança e propriedade. Depois, para defender o direito à vida, precisamos nos perguntar: que valor atribuímos à vida? De que modo podemos proteger

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Christian de Paul de Barchifontaine

e tornar melhor esse bem? Como melhorar nossa convivência humana? Eis o verdadeiro sentido do direito à vida.

7.2 Justiça

Esse princípio obriga a garantir a distribuição justa, eqüitativa e universal dos benefícios dos serviços de saúde, como parte da consciência da cidadania e da luta pelo direito à saúde; quer-se com a justiça a otimi-zação das conseqüências boas dos atos e o máximo benefício pelo mínimo custo para todos. Além de a saúde ser um direito da pessoa, o direito à tutela da saúde deve ser considerado um direito social fundamental do cidadão. Isto tem a sua raiz no princípio de solidariedade, que implica a recusa da separação entre as pessoas e o reconhecimento da inter-relação necessária entre os diversos projetos de vida. Deste princípio procede a afirmação da igualdade da pessoa nas diversas formas da sua existência (sem, por isso, anular a diversidade dos estados de vida) e, portanto, a conseqüente admissão de que não é justo tratar as pessoas de maneira di-ferente, com modalidades que atribuam valor diferente a suas vidas e aos seus interesses fundamentais. Por isso, a justiça exige que se supere toda forma de discriminação e deve ser chamada para restabelecer a igualdade nos interesses quando haja entre eles desproporção. Isto significa que a alocação dos recursos públicos e dos instrumentos de política pública no campo da saúde deve ser feita de maneira eqüitativa, sem penalizar injustamente as pessoas ou as diversas categorias sociais.

7.3 Equidade

Segundo a UNICEF, equidade é prover bens e serviços de modo diferenciado, para atender às distintas necessidades dos vários grupos populacionais, tendo em vista a redução das desigualdades de acesso.

A palavra equidade é usada como sinônimo de justiça, não como virtude abstrata, mas como norma seguida constantemente ao julgar, ao governar, ao tratar de cada problema nos pontos concretos das situações e das possibilidades. A característica da eqüidade é que ela está atenta não somente à lei, mas também ao legislador; não somente às suas pa-lavras, mas também às suas intenções; não ao que o homem fez, e sim ao que ele se propõe fazer. Assim, a eqüidade não é apenas uma força para resistir às deficiências da lei escrita, mas tem igualmente altíssimo significado ético e social.

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Ética e saúde pública

7.4 Solidariedade e tolerância

Os grandes problemas da humanidade de hoje, mesmo sem re-jeitar a grande contribuição da ciência e da tecnologia para superar as condições de miséria e de deficiências, só podem ser resolvidos através da reconstrução da comunhão humana em todos os níveis. Isso, através da solidariedade, que deve ser entendida como a determinação firme e perseverante de empenhar-se para o bem comum, isto é, para o bem de todos e cada um, para que todos sejam verdadeiramente responsá-veis por todos. A tolerância designa o fato de se abster de intervir nas ações ou opiniões de outras pessoas, mesmo quando essas opiniões ou ações nos parecem desagradáveis ou moralmente repreensíveis. Assim, a tarefa cotidiana do cultivo da tolerância inclui uma atitude proativa de procura do ponto ideal de encontro com o outro nos momentos de discordância e enfrentamentos. A tolerância é uma conquista no caminho em direção à solidariedade, este laço recíproco que une as pessoas como co-responsáveis pelo bem uma das outras.

Concluindo

Bioética, ética da vida, da saúde e do meio ambiente, é um espaço de diálogo transprofissional, transdisciplinar e transcultural na área da saúde e da vida, um grito pelo resgate da dignidade da pessoa humana, dando ênfase na qualidade de vida: proteção à vida humana e seu am-biente, através do desenvolvimento da tolerância e da solidariedade. Não é ética “pré-fabricada”, mas um processo.

Somos humanos, chamados a altos vôos. Foi com esta preocupação que a bioética foi proposta: questionar o progresso e para onde o avanço materialista da ciência e tecnologia estava levando a cultura ocidental, que tipo de futuro estamos construindo e se temos algumas opções.

Desde o início, Potter usa a palavra “ponte” – bioética ponte – ponte entre ciência biológica e ética, mas como um meio para um fim, ponte para o futuro – disciplina que guiaria a humanidade como uma ponte para o futuro.

Assim, o objetivo da bioética é ajudar a humanidade em direção a uma participação racional, mas cautelosa, no processo da evolução biológica e cultural.

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A bioética é mais que debater, é fazer coisas junto uns com os ou-tros, porque é tendo a responsabilidade de agir, de justificar as escolhas feitas ou não, de dar razões da ação e de arcar com as conseqüências, que se aprende a viver junto, que se constrói comunidade, que se pratica a solidariedade, que se exercita a tolerância, que se promove a saúde.

Bibliografia

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PESSINI, Leocir & BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Proble-mas atuais de Bioética. 9a ed. São Paulo: Loyola e EDUNISC, 2010.

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A prática do controle social: Conselhos de Saúde e financiamento do SUS. Série Histórica do CNS, n. 1. Brasília (DF): Ministério da Saúde, 2001.

E-mail do Autor:[email protected]

Encontros Teológicos nº 61Ano 27 / número 1 / 2012, p. 75-85.

Resumo: Este artigo aprofunda a relação entre saúde pública e Bíblia. O direito à saúde é universal, reconhecido pela ONU na Declaração Universal dos Direitos Hu-manos, bem como pela Constituição Brasileira e legislação conexa. A saúde pública deve, portanto, ser assumida pelo Estado com a efetiva participação da sociedade civil organizada. A realidade denuncia o quanto ainda este direito é violado. A Palavra de Deus contida na Bíblia cumpre o papel de conscientização a respeito dos compro-missos a serem assumidos em favor da vida em todas as suas dimensões. A saúde é uma bênção divina e está ligada a todos os demais aspectos que caracterizam a integridade e bem estar da pessoa humana. Os autores resgatam as diversas con-cepções a respeito de saúde-doença ao longo da tradição bíblica, perpassando os movimentos proféticos e sapienciais. Jesus, pela sua prática, revela que a doença não é castigo divino e que há uma relação de causa e efeito entre o sistema sócio-político-religioso e a situação do povo. Movendo-se dentro dos princípios de solidariedade e de misericórdia, Jesus indicou o caminho a ser seguido pela Igreja no cumprimento de sua missão de defesa e promoção da vida digna sem exclusão. A dignidade de cada ser humano não é questão secundária. É direito e princípio invioláveis.

Abstract: The paper deepens the relation between Public Health and Bible. Right to Health is universal, acknowledged by the UNO in the Declaration of Human Rights, and also by the Brazilian Constitution. Therefore, Public Health must be taken on by the State with the participation of the organized civil society. The facts denounce how much this right is violated. God’s Word in the Bible awakes the conscience about the compromises to be taken on favoring Life in all of its dimensions. Health is a divine blessing, and concerns everything that characterizes integrity and well being. The authors recuperate the various conceptions about health-illness along biblical tradition, including prophetical and Wisdom movements. Jesus, in his activity, reveals that illness is not divine punishment and that there is a relation of cause and effect between the socio-political-religious system and the situation of the people. Moved by solidarity and mercy, Jesus shows the way to be followed by the Church in the fulfillment of her mission of defending and promoting worthy Life without exclusions.

Bíblia e saúde públicaA Vida com DignidadeEdna Maria Niero* e Celso Loraschi**

* Médica. Mestre em Ergonomia e Doutorado em Engenharia de Produção com ênfase em Saúde do Trabalhador e Políticas Públicas. Médica do Trabalho na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

** Professor. Mestre em Teologia Dogmática com concentração em Estudos Bíblicos. Professor de Evangelhos Sinóticos e Atos dos Apóstolos no Instituto Teológico de Santa Catarina (ITESC).

1 Este artigo foi publicado in Vida Pastoral, n. 283, março-abril de 2012.

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Bíblia e saúde pública: a vida com dignidade

O direito à saúde deveria ser protegido em todo o mundo. Consta da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), e está previsto na Constituição Federal do Brasil/1988 em seu art. 196: “A saúde é direito de todos e dever do Estado...”. A forma mais comum de se ver esta condição vital, conforme a definição da Organização Mundial de Saúde é a ausência de doenças e completo bem-estar físico, mental e social. Como processo contínuo, a saúde é mesmo uma experiência de bem-estar, resultante de um equilíbrio dinâmico, e que reflete uma res-posta aos desafios ambientais, referida no modo de se viver o cotidiano em sociedade.

A Constituição brasileira, nos artigos 196 a 200, não restringe a saúde apenas à garantia de serviços assistenciais ao cidadão acometido de alguma enfermidade, mas pressupõe, antes de tudo, um importante deslocamento teórico-conceitual do tema saúde de um campo estritamente biológico para o campo político e histórico da construção dos direitos. Prevê políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doenças, além de serviços e ações que possam promover, proteger e recu-perar a saúde das pessoas. Estabelece ainda que a saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer, e o acesso aos bens e serviços essenciais.

A Lei Orgânica da Saúde nº 8.080/1990 que regulamenta o Sis-tema Único de Saúde (SUS), garante os princípios do direito à saúde, do acesso universal e gratuito, da integração de ações preventivas com as curativas e da participação da comunidade (controle social) que se dá, de modo especial, através dos Conselhos de Saúde (criados pela Lei Federal nº 8.142/90), de caráter permanente e deliberativo, compostos por representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários. Estes Conselhos tem a finalidade de atuar “na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros” (art. 1º, $ 2º). As políticas públicas assumidas pelo Estado estão intimamente relacionadas ao grau de organização e pressão da sociedade civil para sua implantação. A participação da sociedade na gestão do SUS é um avanço que pode definir as prioridades da área da saúde e o acompanhamento da implementação das ações.

No entanto, a saúde como um direito social, constitucionalmente reconhecido, nem sempre é assegurado na prática. Evidente está que o

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Edna Maria Niero e Celso Loraschi

direito não se materializa, simplesmente, pela sua formalização no texto constitucional e legislação conexa. Há simultaneamente necessidade de o Estado assumir uma política de saúde consequente, assegurando os meios que permitam efetivá-la. A realidade denuncia o quanto ainda este direito é violado. Basta ir a um posto de saúde ou a um hospital público (os raros que ainda existem) e contemplar o rosto das pessoas que dia-riamente aí se aglomeram em busca de atendimento para a cura de suas doenças. A degradação sistemática do atendimento médico-hospitalar, em prejuízo das camadas pobres da população, constitui, hoje, a face mais agressiva da exclusão social, em nosso país. A deterioração das estruturas físicas dos serviços de saúde, do financiamento para o setor, da fiscalização estatal sobre os serviços conveniados, além de hospitais fechados, equipamentos obsoletos ou inexistentes, leitos escassos, UTI’s desativadas, profissionais desmotivados, longas filas de espera, usuários indignados e frustrados, fazem parte do cotidiano de aproximadamente 150 milhões de pessoas sem amparo dos planos de saúde. Sua situação não condiz com a dignidade inerente a todo ser humano.

A bênção da saúde

Na Bíblia, a palavra hebraica que melhor expressa o sentido de “saúde” é shalom que remete ao pleno bem estar do ser humano. Em latim, o termo salus significa ao mesmo tempo saúde e salvação: implica numa realidade abrangente de liberdade, de justiça, de fraternidade e de paz. É um bem relacionado ao Autor da vida. É Deus quem forma o embrião no seio materno, conhece cada parte do corpo humano e fixa os dias de sua existência (Sl 139[139],13-16). É Deus quem faz viver ou morrer; ele fere e também cura (Dt 32,39). A saúde, portanto, é concebida como dom divino. É uma bênção, entre tantas outras, que o Senhor concede aos que são fiéis à Aliança e seguem seus mandamentos (Lv 26,3-13; Dt 28,1-14). A Bíblia também, em muitas de suas passagens, relaciona a doença, entre outros males, como um sinal de castigo por causa das transgressões aos mandamentos divinos (Lv 26,14-26; Dt 28,15-46).

Esta relação de bênção-saúde e castigo-doença revela o grau de conhecimento que possuía o povo da Bíblia a esse respeito. Ainda não havia uma capacidade desenvolvida para um diagnóstico adequa-do. Certamente o povo israelita vivia exposto a doenças próprias ao clima subtropical próprio do Oriente Médio. Constata-se uma grande diversidade de doenças, a maioria com denominações genéricas, nem

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Bíblia e saúde pública: a vida com dignidade

sempre possíveis de identificá-las com exatidão: úlceras, tumores, crostas, sarnas, cegueira, loucura e demência (Dt 28,27-28); cegos, surdos, coxos, mudos (Is 35,5-6); tísica, febre, inflamação, delírio (Dt 28,22); lepra e doenças de pele (Lv 13-14); contusões, machucaduras e chagas vivas (Is 1,6) e várias outras. Do mesmo modo, no Segundo Testamento, além das já citadas, encontramos: hemorragia (Lc 8,43), hidropisia (Lc 14,2), paralíticos e lunáticos (Mt 4,24), endemoninha-dos (Mc 1,32), gangrena (2Tm 2,17), gagueira (Mc 7,32), indigestão e fraquezas (1Tm 5,23) e outras.

Sendo a saúde concebida como bênção divina, é natural que o primeiro recurso para a cura de uma doença é a oração. “Filho, não te revoltes na tua doença, mas reza ao Senhor e ele te curará” (Eclo 38,9). Vários salmos são súplicas e desabafos de pessoas doentes; a maioria expressa a visão da doença como consequência do pecado pessoal (Sl 6; 38(37); 41(40). A cura está ligada ao perdão dos pecados e, portanto, fundamenta-se na fé em Deus, no socorro que somente ele pode dar (Eclo 35,15-21). Nesse sentido, vários profetas atuam como mediadores da intervenção divina em favor dos doentes. O profeta Elias, por exem-plo, é atendido em sua oração e alcança a cura para o filho da viúva de Sarepta (1Rs 17,17-24). Do mesmo modo Eliseu, para o filho de uma mulher de Sunan (2Rs 4,8-37). Através do profeta Isaías, Deus revela que ouviu a oração do Rei Ezequias e, por isso, lhe concederá a cura de sua doença (Is 38,1-8).

Além da oração, os elementos da natureza são mencionados como meios para a aquisição da saúde: seguindo a orientação do profeta Eliseu, o sírio Naamã curou-se de sua lepra tomando vários banhos na água do rio Jordão (2Rs 5,1-14); ainda Eliseu, fazendo uso do sal, purificou as águas que causavam esterilidade (2Rs 2,19-22); em outra ocasião, mis-turando farinha à sopa envenenada, tornou-a saudável (2Rs 4,38-41); o vinho e o óleo são usados como primeiros socorros (Lc 10,34); a água é fundamental, e um pouco de vinho melhora o estômago e fortalece o organismo (1Tm 5,23); Isaías usa a massa de figo para curar a úlcera do rei Ezequias (Is 38,21); é bom comer mel (Pr 24,13) e é importante co-nhecer as virtudes das plantas e raízes (Sb 7,20), pois “da terra o Senhor criou os remédios, a pessoa sensata não os despreza (Eclo 38,4).

Vários textos bíblicos se referem à profissão do médico. Nem sem-pre revelam uma visão positiva, uma vez que a convicção predominante é de que a cura provém unicamente de Deus. O rei Asa, por exemplo,

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é criticado porque ao contrair “uma doença muito grave nos pés, não recorreu ao Senhor, mas aos médicos” (2Cron 16,12). Cair nas mãos do médico é sinal de castigo divino: “O que peca contra o Criador, que caia nas mãos do médico” (Eclo 38,15). Há textos favoráveis: nesse mesmo capítulo de Eclesiástico aconselha-se a honrar o médico por causa dos seus serviços. O conhecimento que ele possui foi-lhe dado por Deus; por seu intermédio Deus proporciona a cura e o alívio aos doentes (38,1-7). Após recorrer a Deus pela oração recomenda-se procurar o médico, “porque o Senhor também o criou, não o afastes de ti, porque dele tens necessidade” (38,12). O médico, para ter êxito e salvar a vida do doente deve rezar ao Senhor (38,13-14).

Conforme se constata nas citações acima, a doença é vista predo-minantemente como um problema individual sem relação com o sistema social, político, econômico e religioso. Essa relação vai sendo percebida, de maneira especial, no interior dos movimentos proféticos.

Profecia: saúde, direito e justiça

A consolidação da Monarquia em Israel trouxe consequências sociais de exploração e abandono de grande parte da população. Os pro-fetas pré-literários, especialmente Elias e Eliseu, atuam em proximidade às vítimas do poder, colaborando na solução dos problemas que afetam o cotidiano de suas vidas: a fome, a doença, a morte e outras situações (1Rs 17,7-24; 2Rs 4,1-6,7). A necessidade é o critério que deve mover o amor, a fim de que ninguém seja excluído da vida digna. O socorro aos necessitados é condição para uma sociedade abençoada (Dt 15,4-5). O caminho por excelência apontado é a prática da partilha, o princípio que fundamenta o amor efetivo, um dos principais traços do verdadeiro rosto do povo de Deus.

Os profetas literários percebem com mais clareza a ligação entre os males da sociedade e a estrutura governamental. As estâncias que dão sustentação à Monarquia, como o Templo e o palácio, de modo geral são vistas de forma crítica. Os problemas estão inter-relacionados e são resultantes da quebra da Aliança com Deus, provocada por uma organização social a partir dos interesses dos poderosos.

Os movimentos proféticos surgem à margem do sistema político oficial. Captam a realidade dos pobres e se posicionam na defesa dos seus direitos. Em nome de Deus denunciam os que deveriam promover

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Bíblia e saúde pública: a vida com dignidade

o direito e a justiça, mas o que produzem é a transgressão resultando em gritos de desespero da maioria do povo; onde Deus esperava uvas boas, o que apareceu foram uvas azedas (cf Is 5,1-7), devido à corrupção de reis, juízes, comerciantes, chefes militares, latifundiários e sacerdo-tes. As ambições políticas, intrigas palacianas, ganância e acúmulo de bens absorvem o cotidiano dos que deviam dedicar-se à promoção do bem comum. Os ideólogos do poder – falsos profetas e sacerdotes –, encarregam-se de manter a consciência do povo alienada, abafando seus gritos e mantendo-os engessados na estrutura social dos dominantes, procurando convencê-los de que são inferiores e incapazes de qualquer atitude de mudança de sua situação.

São muitos os textos proféticos que expressam a maneira iníqua com que o povo é governado, como este do profeta Isaías: “Quanto ao meu povo, os seus opressores o saqueiam, exatores governam sobre ele. Ó meu povo, os teus condutores te desencaminham, baralham os cami-nhos em que deves andar... Que direito tendes de esmagar o meu povo e moer a face dos pobres?” (Is 3,12-15). E continua: “Toda a cabeça está contaminada pela doença, todo o coração está enfermo; desde a planta dos pés até a cabeça, não há lugar são. Tudo são contusões, machucaduras e chagas vivas que não foram espremidas, não foram atadas nem cuidadas com óleo” (Is 1,5-6). Também Oséias relaciona o comportamento dos dominantes com o desfalecimento do povo e a destruição da natureza (4,1-3).

Os profetas constatam ainda que o direito dos pobres e fracos é violado pelos mesmos que praticam um formalismo religioso, como se o culto e a oferta de sacrifícios por si só fossem meios seguros de garantir boas relações com Deus. Oséias opõe-se a essa prática e esclarece qual é a vontade de Deus: “É misericórdia que eu quero e não sacrifícios, co-nhecimento de Deus e não holocaustos” (6,6). Da mesma maneira, Isaías proclama a plenos pulmões qual é o jejum que agrada a Deus: “Romper os grilhões da iniqüidade, soltar as ataduras do jugo..., repartir o pão com o faminto, acolher os pobres desabrigados, vestir os nus...” (Is 58). Aponta para a possibilidade de mudança de atitudes, orientadas por um projeto de sociedade baseado no direito, na justiça e na solidariedade.

A imagem que reflete com nitidez a verdadeira atitude que deve-ria ser assumida pelas lideranças é a do pastor. Sua função é cuidar das ovelhas, protegê-las dos perigos que ameaçam sua vida, defendê-las dos ladrões, buscar a ovelha que se perde... Diante da situação de aban-

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Edna Maria Niero e Celso Loraschi

dono em que se encontram as ovelhas, Deus mesmo assume a função de pastoreá-las: “Visto que os pastores não se preocupam com o meu rebanho, porque apascentam a si mesmos..., eu mesmo cuidarei do meu rebanho, eu mesmo lhe darei repouso, buscarei a ovelha que estiver perdida, reconduzirei a desgarrada, enfaixarei a quebrada, fortalecerei a doente... Eu as apascentarei com justiça” (Ez 34).

A proposta dos movimentos proféticos com relação à saúde do povo é assim sintetizada por Carlos Mesters:

1. Saúde = reorganizar a sociedade. O trabalho em favor da saúde do povo faz parte da ação mais ampla da organização da sociedade e tem a ver com justiça, partilha, distribuição da terra etc. 2. Defender a vida = atacar as causas da morte. A preocupação maior dos profetas está na linha da medicina preventiva, pois eles defendem a vida e a aliança e denunciam claramente as causas da marginalidade e do empobrecimento do povo. 3. Solidariedade = acolher e denunciar, para reorganizar. O trabalho em favor dos doentes está mais na linha da solidariedade. Mas a solidariedade não pode ser desvinculada da estrutura e da consciência. 4. Saúde = fé em Deus, nos irmãos. Compromisso com a saúde do povo e com Deus: são como dois lados da mesma medalha. Ou seja, temos que reaprender dos profetas a ‘re-ligião’, isto é, aprender como ‘re-ligar’ novamente a observância das leis de saúde com o nosso compromisso de fé com Deus e com os irmãos” (Mesters, 1986, p. 19-20).

Saúde e sabedoria

No movimento sapiencial encontramos inúmeros textos que se referem à saúde. Sábios conselhos, fundamentados na experiência co-tidiana, contribuem na preservação da saúde e do bem-estar. Orientam, por exemplo, contra o excesso: “Não sejas ávido de toda delícia, nem te precipites sobre iguarias, porque na alimentação demasiada está a doença. Muitos morreram por intemperança, mas aquele que se cuida prolonga a vida” (37,31). A moderação é uma boa maneira de manter a saúde (31,20). A morte pode ser prematura para quem não sabe se cuidar (Sb 1,12).

O bem estar físico está intimamente ligado aos sentimentos do coração: “Coração alegre, corpo contente; espírito abatido, ossos secos” (Pr 17,22). A alegria do ser humano aumenta seus dias (Eclo 30,22), enquanto a tristeza tira o vigor do coração e leva à morte (Eclo 38,18). Também “a inveja e a cólera abreviam os dias e a preocupação traz a

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Bíblia e saúde pública: a vida com dignidade

velhice antes da hora” (Eclo 30,23-25). É importante não trilhar o ca-minho do mal, pois um “coração perverso não encontra felicidade” (Pr 17,20). Ao contrário, “temer ao Senhor e evitar o mal será saúde para o corpo e refrigério para os ossos” (Pr 3,7-8). O sábio ainda pergunta-se para que serve a riqueza sem a saúde? “É melhor um pobre sadio e forte, do que um rico cheio de doenças” (Eclo 30,14).

O livro de Jó, especialmente, questiona a teologia da retribuição, desenvolvida pelo sistema religioso oficial, desconstruindo a idéia de vinculação entre a doença e o pecado. No entanto, para os autores desta novela bíblica, a doença pode transformar-se num meio pelo qual a pessoa se educa para o verdadeiro temor de Deus. É preciso prestar atenção a Deus “que fala de um modo e depois de outro..., e corrige o ser humano sobre o leito com a dor” (Jó 33,14.19). O livro do Eclesiástico, contrariamente ao legalismo imposto pelo sistema de pureza, incentiva a caridade para os que sofrem: “Não fujas dos que choram, aproxima-te dos que estão aflitos. Não temas visitar doentes, porque serás amado por isso” (7,34-35).

Jesus: saúde e justiça social

No Segundo Testamento, em vários textos, constata-se a mesma concepção antiga de que a doença é decorrente do pecado humano. É o que se percebe claramente no episódio da cura do cego de nascença (Jo 9,1-38). Jesus discorda: “Nem ele nem seus pais pecaram...” (Jo 9,3). Em alguns episódios, constata-se que a cura está relacionada com o per-dão dos pecados (Mc 2,1-12; Jo 5,1-14), denotando que a recuperação da saúde dá-se pelo resgate da integridade da pessoa humana violada pela ideologia dominante: “A ligação individualista e moralista, que culpa a própria pessoa pela doença que ela carrega, satisfazia à classe dominante e era usada para marginalizar os pequenos e sofredores (cf Jo 7,49; 9,34). Jesus coloca a ligação entre pecado e doença em nível de sistema e estrutura, e devolve a todos a responsabilidade pelas coisas que acontecem. Há uma ligação de causa entre o sistema judaico e a falta de saúde do povo” (Mesters, 1986, p. 24-25). Com toda a convicção e liberdade, Jesus promove a saúde e a dignidade de cada pessoa, sem atrelamento às leis excludentes: trabalha em dia de sábado (Mc 3,1-6), toca em leprosos (Mc 2,1-12), deixa-se tocar pela mulher hemorroíssa (Mc 5,25-34) e tantos outros gestos. Ele justifica sua ação prioritária junto às vítimas do sistema de poder, dizendo: “Não são os que têm saúde que

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precisam de médico, mas os doentes. Eu não vim chamar justos, mas pecadores” (Lc 2,17).

Jesus movia-se dentro dos princípios da misericórdia e da soli-dariedade: “Traziam-lhe todos os que eram acometidos por doenças diversas e atormentados por enfermidades, bem como endemoninhados, lunáticos e paralíticos. E ele os curava” (Mt 4,24). Fez-se profundamente solidário com todas as pessoas sofredoras, “a fim de se cumprir o que foi dito pelo profeta Isaías: ‘Tomou sobre si nossas enfermidades e carregou nossas doenças’” (Mt 8,17). Em seus ensinamentos, Jesus condiciona a salvação com as atitudes de caridade para com o próximo necessitado, com quem ele se identifica: “Tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber...” (Mt 25, 31-46). É pelo anúncio do Evangelho aos pobres, pela cura dos doentes e pela libertação dos oprimidos, que Jesus instaura o Reino de Deus.

Os discípulos, após a morte e ressurreição de Jesus, continuam as suas obras, realizando em seu nome “sinais e prodígios”, entre os quais a cura dos doentes, como se lê no livro de Atos dos Apóstolos (cf., por ex., 3,1-10; 9,32-42; 14,8,18; 28,7-10). Um dos evangelizadores foi Lucas, o “médico amado” (Cl 4,14). O dom das curas é citado entre os carismas do Espírito Santo (1Cor 12,9). Uma das funções dos presbíteros era atender aos doentes (Tg 5,14), do mesmo modo como os apóstolos foram enviados por Jesus a pregar pelo mundo afora; eles “curavam muitos enfermos, ungindo-os com óleo” (Mc 6,13).

Cuidar da vida

A missão de Jesus e dos seus seguidores com relação às pessoas doentes e necessitadas está revelada na parábola do samaritano solidário (Lc 10, 25-37). A pergunta do doutor da lei: “Mestre, o que devo fazer para herdar a vida eterna”, abriu uma ótima oportunidade para Jesus indicar a excelência da prática do amor a Deus e ao próximo. O doutor demonstra, com muita competência, que conhece os mandamentos. É uma competência, porém, no nível do saber. O que, certamente, não es-perava foi o imperativo de Jesus: “Faze isso e viverás”. Então pergunta o legista: “Quem é o meu próximo?”

Jesus lhe propõe uma parábola, cuja personagem central é “um homem”, uma pessoa sem nome, representante de todas as vítimas da exclusão social. Diante deste ser humano revelam-se as visões em conflito

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Bíblia e saúde pública: a vida com dignidade

das quais decorrem duas práticas antagônicas. Os verbos as denunciam: o sacerdote e o levita viram e passaram adiante. O samaritano chegou junto dele, viu-o, moveu-se de compaixão, aproximou-se, cuidou de suas chagas derramando óleo e vinho, colocou-o em seu próprio animal, conduziu-o à hospedaria, dispensou-lhe cuidados, tirou dois denários, deu-os ao hospedeiro, dizendo: cuida dele... Na verdade, caracterizam duas propostas bem distintas: a oficial, a partir do sistema religioso e político dominante, e a comunitária, a partir de Jesus e de seus seguidores. Enquanto aquela se fecha nos interesses e privilégios de uma elite, esta se coloca prioritariamente a serviço da vida digna sem exclusão.

Em nosso país, não há dúvida quanto à existência de organismos e políticas públicas voltados efetivamente para o bem comum. O desafio que a Campanha da Fraternidade nos lança a partir da realidade em que vive a grande maioria do povo e inspirada na Palavra de Deus, é que precisamos avançar com ousado amor. A responsabilidade é de todos. Os “sacerdotes e levitas”, isto é, os organismos de poder não apenas for-mulem leis e as conheçam teoricamente, mas prestem atenção ao clamor dos doentes e adotem a postura de proximidade e de acolhida das pessoas em situação de abandono, bem como apliquem os recursos públicos e prestem serviços eficazes no cuidado da vida de todos.

Considerados os problemas na dimensão coletiva, conforme reconhece o Ministério da Saúde, a solução não se dá apenas mediante decisões de âmbito hospitalar ou de assistência médica. Seu enfrenta-mento necessita de ações de saúde coletiva, com ênfase na prevenção das doenças, do trabalho interdisciplinar e da ação inter-setorial que somente são possíveis com a participação social, incluindo-se o controle dos gastos públicos na implantação de ações geradoras de saúde. A saúde é fruto de condições básicas de vida e trabalho. A doença representa uma dupla ameaça, tanto no sentido de afetar a saúde como a capacidade produtiva. Tem razão Dallari (1998, p. 55) ao dizer que “uma sociedade só pode ser considerada justa se todas as pessoas, sem nenhuma exceção, tiverem efetivamente assegurado seu direito à saúde desde o primeiro instante de vida”. Ter quantidade de vida é importante, mas é diferente do ter qualidade de vida. Em termos amplos, a saúde significa uma vida longa, digna, prazerosa, onde seja possível a realização plena do ser humano. A dignidade de cada um de nós não é uma questão secundária. É direito e princípio invioláveis. É o que autentica uma administração pública. Pelo fruto se conhece a árvore (Mt 12,33).

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Edna Maria Niero e Celso Loraschi

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Endereço dos Autores:Rua Maurício de Souza, 465, casa n. 01

Santa Mônica88035-110 Florianópolis, SC

Encontros Teológicos nº 61Ano 27 / número 1 / 2012, p. 87-104.

Resumo: Este artigo pretende contemplar a CF mostrando que sempre que olhamos para a sociedade temos também que olhar para dentro da Igreja. O artigo mencionará aspectos não saudáveis que aparentemente podem não parecer importantes, mas que minam as ações pastorais e o acolhimento da Igreja por parte da sociedade. São questões relacionadas à metáfora utilizada aqui, – prisão psíquica –, que fazem com que as sombras se tornem realidades normais aos olhos de quem está dentro da caverna. Mas que se olharmos com os olhos de quem está de fora, verificamos que as sombras são sintomas de que algo não está bem.

Abstract: This article is intended to address the issue of CF showing that whenever we look at society we must also look inside the church. The article will talk about sick aspects of the church, which seem to have no importance, but can disrupt the pastoral actions of the Church and hinder its acceptance by society. Are issues related to the metaphor used here – psychic prison, where those who are inside the cave can see something natural. But if we look through the eyes of an outsider, we find that the shadows are symptoms that something is not well.

A saúde da IgrejaArlene Denise Bacarji*

* A autora possui Graduação em filosofia, (UCDB). É Mestre em Sociologia Organiza-cional (UFPR). Mestre em Teologia (PUC/RS) e Doutoranda em Teologia (PUC/Rio). Atualmente leciona na FAPAS (Faculdade Palotina de Santa Maria, RS).

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A saúde da Igreja

Em um ano em que a campanha da fraternidade nos fala da Saúde Pública, nada mais saudável do que podermos pensar um pouco nos as-pectos menos saudáveis também da Igreja, cuja institucionalização causa cegueira ad intra1, devido a uma prisão psíquica, gerando consternação na Igreja ad extra2.

Prisão psíquica é uma metáfora utilizada na República de Platão para ilustrar que, muitas vezes, estamos na caverna e não temos acesso ao conhecimento. Vemos apenas as sombras projetadas numa parede porque estamos acorrentados e só temos acesso a elas, pois são nominadas como realidades porque não conhecemos a realidade verdadeira lá fora. Esta metáfora é resgatada pelo autor Gareth Morgan, em seu livro “Imagens da Organização”3 para ilustrar o que ocorre nas organizações em geral, mencionando e aprofundando as teorias de Freud e de alguns de seus intérpretes como Melanie Klein, Bion, Winnicott, e também de Jung e outros que os estudaram e as aplicaram às organizações.

Neste artigo não pretendemos relacionar e interpretar questões eclesiais com questões mais profundas da psicanálise como Morgan faz em relação às organizações em geral4. Apenas vamos utilizar algumas conclusões que podem servir para a nossa Igreja, assim como utilizare-mos também a metáfora da prisão psíquica, e mencionaremos alguns mecanismos de defesa que temos nos nossos comportamentos5.

Muitos dos teólogos da época atual têm questionado a existência da instituição como maléfica ou desnecessária, ou algo que se contrapõe aos carismas ou ainda que mata o espírito. Essa é uma influência de uma cultura pós-moderna que tem suas raízes e que dentre suas características traz a morte das instituições.

1 Povo de Deus enquanto ministros ordenados, não ordenados, pastoralistas, bispos, clero, seminaristas.

2 Povo de Deus enquanto fiéis leigos em geral, mais ou menos participativos.3 Ed. Atlas. S. P. 1996. p. 205-238. Cap. 7: “Explorando a caverna de Platão. As orga-

nizações vistas como prisões psíquicas”.4 O autor trabalha as questões de fase anal, genital e fálica projetadas nas organizações,

complexos de Édipo, relações de poder e dominação que têm a ver com questões da sexualidade, arquétipos nas organizações, etc.

5 É bom lembrar também que a autora deste artigo não se coloca de fora da caverna, nem fora das patologias e das prisões psíquicas que lhes dão continuidade. Ao contrário, estamos todos no mesmo barco. A única coisa que pretendemos com este artigo é tentar escutar os que estão fora da caverna, e que não entram, porque percebem as nossas faltas de realidades e de verdades.

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Arlene Denise Bacarji

Sociologicamente a instituição é um mal ou um bem necessário, não há sociedade sem instituições e não haveria como trazer todo o acervo espiritual, intelectual e cultural do cristianismo dos primeiros tempos sem que ele se tornasse institucionalizado6. No entanto, a instituição pode adoecer, pode adquirir “ranço” e isso não quer dizer que ela não deva existir. Significa, antes de tudo, que é preciso olhar para o que está rançoso ou adoecido e tentar desinstalá-los.

A sociedade atual está adoentada também. A doença mais grave da sociedade atual é a doença moral que está associada à doença do espírito. Vivemos uma cultura doente em termos de valores e de opções, onde o que é um valor religioso ou moral se tornou preconceito. Os valores eco-nômicos e hedonistas se tornaram verdadeiros deuses, as pessoas estão totalmente sem referenciais pela morte das instituições em geral, e a Igreja está em meio a tudo isso, dando motivos para que seja cada dia mais uma instituição morta no meio da sociedade. No entanto, a cultura pós-moderna possui algumas intuições interessantes. Aqui vamos citar apenas duas: a repugnância à hipocrisia e a possibilidade de, ao negar a racionalidade científica, começar uma profunda valorização da razão sensível7.

Muitos questionam porque a Igreja Católica tem sido tão perse-guida, porque as pessoas têm-se afastado, porque muitos vão para outras religiões e os que não a conhecem nem querem conhecê-la, e muitos que a conhecem bem, abandonam-na. Realmente esta é uma realidade bastante triste. Embora ainda tenhamos em nosso país ambientes fecun-dos e saudáveis dentro de nossa Igreja, que conseguem atingir o nosso objetivo de manter uma evangelização sempre mais aprofundada, com pessoas comprometidas e participativas, esta é uma realidade cada dia mais escassa em muitos lugares e países do mundo, por uma diminuição cada dia maior do número de fiéis.

É claro que esta situação em que a Igreja Católica, muitas vezes, não tem mais poder de atração, nos meios de nossa sociedade atual, tem forte relação com a situação em que a sociedade se encontra em termos de uma cultura pós-moderna, permissiva e sem comprometimento com

6 Sobre a necessidade da instituição, a sua função social, etc., pode-se consultar as obras do luterano Peter Berger, que mesmo sendo luterano reconhece o tino socio-lógico da Igreja Católica (Dossel Sagrado, Elementos para uma teoria sociológica da religião. Paulus. 1985. p. 179)

7 Sobre a razão sensível: MAFFESOLI, Michel. O elogio da razão sensível. Ed. Vozes. Petrópolis. 1998 p. 11-23. Um texto belíssimo sobre a nova época em que estamos adentrando, em contraposição a toda uma racionalidade instrumental.

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A saúde da Igreja

absolutamente nada. Mas para aqueles que um dia foram batizados, que um dia conheceram a Igreja – além de uma catequese que estragou a fé destas pessoas8 – existe também o fator fatídico que é a questão moral. Por isso, este artigo irá apontar as deficiências nesse campo, as quais afastam da Igreja e impedem muitas das pessoas mais saudáveis e mais bem resolvidas na sua sexualidade de se comprometerem com trabalhos pastorais, e de vivenciarem uma fé mais envolvida com esta Igreja. A não ser em casos de manifestações de fé profunda, que independem totalmente do que vêem. Isso nem sempre é fácil em tempos em que o sensível, o perceptível, o intuído, o irracional, falam mais alto no coração do homem.

Dos dois traços positivos da cultura pós-moderna, queremos primeiramente, para início de uma reflexão, abordar a questão da repug-nância à hipocrisia e, no final deste artigo, abordaremos pistas pastorais baseadas no autor Maffesoli, sobre a razão sensível9.

A cultura pós-moderna com sua permissividade, sua amoralidade, acabou trazendo para a sociedade não somente perdas e destrutividades, mas também um grande ganho. O ganho da não necessidade de sermos hipócritas e, por isso, a sociedade atual está cada dia mais exigente de autenticidade, veracidade, verdade e testemunho.

É bom deixar claro neste artigo que a autora não está a questionar a moralidade da Igreja frente ao povo, mas sim a mostrar para a Igreja o que o povo quer e sente, embora muitas vezes não consiga verbalizar, não con-siga sequer ter consciência dos motivos que o afastam da Igreja por que as percepções são inconscientes de uma linguagem não verbal que transparece como “ranços”, ar de hipocrisia, fingimento, dissimulações. Pretendemos com este artigo tão somente esclarecer o que muitos sentem e não falam por que não possuem um grau de elaboração para expressarem com clareza.

É importante também ressaltar que o que se quer, se deseja e se pretende com este artigo não é somente salientar a importância de uma castidade e celibatos vividos com mais condições, mas que se tenha mais

8 A questão da catequese é uma discussão bastante esgotada na Igreja, e não cabe aqui entrar nesta questão em si. No entanto, é bom lembrar que a catequese dada por pessoas que não conseguem associar a vida à doutrina e que não conseguem atingir o coração das crianças, adolescentes e catecúmenos, isto faz com que se crie um profundo preconceito contra a Igreja, que nunca mais será retirado, a não ser por milagres em um processo de nova evangelização.

9 MAFFESOLI, Michel. O elogio da razão sensível. Ed. Vozes.. Petrópolis. 1998 p. 11-23.

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transparência, se possa ser livre, não haja tantos ambientes dissimulados, pessoas dissimuladas com tanta freqüência, para não dar a impressão de hipocrisia na percepção inconsciente das pessoas de uma linguagem não verbal subjacente nos meios eclesiais.

Também vamos abordar aqui somente aspectos afetivo-sexuais, não porque não haja outros de outras categorias, como questões rela-cionadas a poder, a dinheiro, e a religiosidades que estimulam fantasias espirituais, falsos fervores religiosos, entre tantas outras patologias, mas porque estas patologias afetivo-sexuais são as que mais criam o que vamos aqui denominar de “ranços” na Igreja. Alertando com isso que, embora o celibato realmente tenha um profundo valor para o trabalho para o Reino, seria interessante que surgissem novas possibilidades de se trabalhar a castidade dos celibatários da Igreja, tanto dos padres, quanto religiosos e religiosas, para podermos ter celibatários e celibatárias que realmente possam viver sua castidade, não sem dificuldades e lutas, mas com um espírito mais livre, mais autêntico, mais transparente.

Existem muitos argumentos vindos dos meios eclesiais que po-deriam ser vistos como dois mecanismos de defesa mais utilizados: a negação e a racionalização. A negação consiste na recusa em admitir o fato como real, e a racionalização consiste em arrumar argumentos bem elaborados para justificar os fatos, disfarçando os reais motivos deles ou ainda – o que se vê muito – racionalizações que levam a desviar sempre o olhar que se deveria dirigir para a Igreja, deslocando-o para a sociedade, culpando e desvalorizando a sensibilidade do povo.

O que ocorre muito quanto a esta questão é o argumento de que nas famílias também há hipocrisia. E que na sociedade também há mais hipocrisia do que na Igreja ad intra. Contra este argumento poderíamos dizer que isso não é sempre real, uma vez que hoje, nas famílias, quem se relaciona sexualmente o faz na frente dos pais ou de quem quer que seja; quem é homossexual, assume sem nenhum problema perante toda a sociedade, com raras exceções; quem trai a esposa ou o esposo, parece que esconde, mas o cônjuge geralmente sabe e aceita, e mesmo que esconda, na sociedade não há tanta necessidade de dissimulações, pois as relações são diluídas em meio à pluralidade, a urbanização, á fragmentação. Já não é o que poderemos comprovar na Igreja, como vamos ver logo abaixo nas situações pouco saudáveis10 apontadas, já que são meios fechados

10 Poderíamos usar o termo Patologia que tem o seguinte significado: Desvio em relação ao que é próprio ou adequado, ou em relação ao que é considerado como estado

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e circulares, onde todos se encontram sempre, observam sempre, estão sempre juntos e fazendo coisas juntos, porque ela é uma organização e não um bairro, ou uma cidade.

Aqui quando falarmos de situações pouco saudáveis, não estaremos falando de pessoas, mas de desvios organizacionais. Ou seja, de algumas coisas que desviam o objetivo primeiro e original da instituição enquanto tal, que é inapropriado e inadequado para a instituição, que não é próprio dela, que a desvia de sua normalidade e de ter uma imagem saudável. Estaremos falando de aspectos institucionais e nada mais. Até porque este artigo se propõe trabalhar sociologia organizacional, e questões de conseqüências pastorais, e não tratar de questões mais profundas de psicologia.

Situações de prisões psíquicas e mecanismos de defesa

Existe na Igreja uma situação que chama a atenção de pessoas de outros meios não clericais, que são mais sensíveis. Trata-se da existência de um “clima” organizacional em algumas paróquias, encontros, congres-sos, lugares de reuniões de pessoas celibatárias, que poderíamos chamar de um clima de erotização das relações. Certo erotismo subjacente, que não se vê nos lugares seculares11, mas, que existe nos meios clericais. Vamos ilustrar este fato com realidades.

A título de ilustração12

a) Quando começamos a freqüentar a Igreja mais profundamente, nos meios em que as relações entre o clero, leigas e freiras acontecem

normal de uma coisa. Ou ainda: Desvio em relação à normalidade, de forma que constitua um mal. (doença). Dicionário Houaiss. Verbete: Patologia. Disponível no site da UOL para usuários. No entanto, vamos ser eufêmicos.

11 Entre os anos de 1995 a 2004, afastei-me totalmente dos meios clericais e dediquei-me somente à Sociologia. Freqüentei muitos meios seculares, ministrei aulas de sociologia em uma faculdade de 120 professores, onde eu era 40 horas, e em algumas outras que frequentei, nunca vi em nenhum desses lugares esse clima organizacional de um erotismo subjacente, como vejo com freqüência nos meios clericais. Normalmente, esse clima existe entre os celibatários.

12 Vale a pena notar que também conheci, freqüentei e freqüento lugares eclesiais onde esse clima erotizado não existe, onde existe muita transparência e a vivência de um celibato saudável, bem trabalhado, de pessoas muito comprometidas. Caso não fossem esses ambientes saudáveis, eu mesma já teria abandonado a dedicação e o amor pela Igreja como Esposa e Corpo de Cristo-Povo de Deus. Ela não está tomada

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por estarem reunidos, temos dois aspectos de erotismos subjacentes: de mulheres leigas e/ou freiras com relação a padres e de senhoras recalcadas nas paróquias com um poder erótico subjacente sobre o padre, ou sobre os padres daquela paróquia, ou do lugar qualquer em que estes se encontram. Essas situações podem ou não chegar às vias de fato de um relaciona-mento sexual entre um ou outro par, mas geralmente são relações onde não há envolvimento sexual físico, e sim somente psicológico, afetivo e erótico-sexual. São geralmente mulheres com psicopatologias afetivas que encontram nessas situações uma forma de tentar sublimar isso, nem sempre conseguem e o que se gera é uma imagem de poder sobre alguns padres, de sexualização de algumas relações, ciúmes, afastamento de mulheres que podem ameaçar estes poderes ou estas relações “platônicas” que seja. A prisão psíquica que se institucionaliza vem através de uma cegueira quanto ao efeito disso para quem está vendo de fora, o efeito destrutivo para mulheres que são vistas como ameaças e o “gozo” inconsciente do padre carente, que no fundo gosta disso porque faz bem ao ego. Isso é pouco saudável, uma vez que não deixa de ser uma masturbação psíquica, emocional e que leva ao que é extremamente inadequado e impróprio aos meios cristãos de uma Igreja que quer e precisa ser mais atraente para a sociedade. Esse tipo de relação gera um ambiente sinistro e dissimulado, sem contar que pode levar ao relacionamento sexual de fato e à vida dupla, pois não deixa de ser um envolvimento afetivo.

A prisão psíquica aqui se encontra também no fato de que, além de não se enxergar essa realidade, há uma permissividade que a alimenta como se fosse algo natural, normal e até algo de sublimação. Coisa que não é real, primeiro porque sublimação teria que oferecer uma postura acima desses comportamentos que comprometem a imagem da Igreja, e ainda podemos dizer que não é normal porque nos meios não clericais onde as pessoas são casadas e respeitam seus cônjuges, não há este tipo de clima organizacional. O mecanismo de defesa aqui poderia ser, não somente o da negação, mas o da racionalização, ao dizer que isso ocorre como forma sublimatória, ou como uma canalização da sexualidade, ou como ocorreria em qualquer outro lugar. Ou ainda dizer que as pessoas que se afastam da Igreja o fazem pelo fato de que não querem se com-prometer ou se converter, como se esses fatores que são sintomas de algo patológico não influenciassem em nada no seu afastamento. Estes e outros

por esta coisa não saudável da erotização subjacente das relações. Porém, é bom tomar consciência de que existe esse fator em muitos ambientes e, quem sabe, com essa consciência, favorecer a “ventilação” e a retirada do “ranço”.

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A saúde da Igreja

argumentos, que justificam esse tipo de “clima” em ambientes clericais, não deveriam ser elaborados, pois isso é surreal13, e afasta muitas pessoas saudáveis que intuem esse tipo de patologia e não frequentam a Igreja de forma mais comprometida para não verem essas aberrações. Melhor seria se pudéssemos aceitar que isso existe, que é inadequado, inconveniente para os cristãos verdadeiros, e precisa ser trabalhado e mudado.

b) Há também entre alguns ambientes clericais, onde prevalece a presença masculina, a presença da homossexualidade ou “transtorno homoafetivo” (como agora é moda dar nomes eufêmicos para tudo), que faz com que as relações sejam erotizadas, de forma clara, com ou sem relações sexuais propriamente ditas, entre eles, mas que manifesta declaradamente a erotização da relação, na linguagem, nos gestos, nos olhares. Nesses casos, percebe-se também a misoginia e chacotas, dis-criminações e rejeições com relação às mulheres.

A homossexualidade perverte completamente a instituição Igreja Católica, uma vez que ela se propõe a ser masculina devido à relação de identificação do presbítero ao Cristo e aos apóstolos14. Ela desvia totalmente a originalidade da masculinidade da instituição e promove ambientes completamente deturpados, sexualizados e promíscuos. Cria e alimenta amizades eróticas, dependentes, ciumentas, possessivas, am-bientes que dão profundo mal-estar aos de fora. É uma forte ironia da história a Igreja se pretender masculina e celibatária, e se tornar aleijada na sua estrutura com a invasão de homossexuais. Voltaria a perguntar o que o Espírito Santo estaria querendo nos dizer, quando permite que isso tenha acontecido.15

Em muitos dos casos o homossexual não consegue sublimação alguma de sua realidade e acaba tendo vida dupla. O que acarreta sé-rios danos à instituição e à sua imagem. Contra todos os argumentos de racionalizações ou de negações desse aspecto como mecanismos de defesa a respeito deste assunto, já invalidados pela realidade que a Igreja enfrenta hoje16 e, graças à realidade que se impôs, parece que

13 Utilizamos a palavra surreal neste artigo para significar algo que causa estranheza, que é uma transgressão da verdade sensível e da razão. Dicionário Houaiss. Verbete: Surreal. – disponível no site da UOL para usuários.

14 Cf. BACARJI, A.D. A homossexualidade, o clero e a Igreja, in REB, 282, abril/2011. 15 Ibidem, p. 32316 Uma realidade bastante complicada que a Igreja enfrenta hoje sobre as ordenações

de pessoas que não viveram o seu sacerdócio como deveriam está no livro: ABBATE, Carmelo: Sex and the Vatican. Viaggio Segreto nel Regno dei Casti. Ed. Piemme.

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estamos saindo da prisão psíquica a respeito de ordenações de homos-sexuais. Alguns dos dirigentes da Igreja, em alguns lugares, estão mais conscientes, estão começando a evitar a entrada de homossexuais para o clero. Mas é bom lembrar que ainda não são todos os bispos que es-tão conscientes dessa necessidade e que há também muita dificuldade de percepção por parte dos reitores e formadores nesta questão, o que causa muita preocupação. Imaginemos o que significa um “padre” gay que vive sua homossexualidade promíscua nas noites, como o livro do autor Carmelo Abbate nos relatou, consagrar a eucaristia para nós, sem que nas filas da comunhão os casais de segunda união ou os namorados que se amam possam entrar!!!17

c) Em contrapartida, a homossexualidade na Igreja gera nos ho-mens heterossexuais uma profunda necessidade de se auto-afirmarem na sua heterossexualidade quando o convívio com os homossexuais se torna enfadonho. Ou eles começam a assediar mulheres, compulsivamente, ou acabam tendo vida dupla.

d) A vida dupla na Igreja se dá de muitas formas18. Algumas chegam a ser surreais como padres que moram em residências com empregadas, cozinheiras, lavadeiras e, às vezes, acabam se envolvendo com essas mulheres. Outros moram com “sobrinhas”19 (caso de padres diocesanos que vão morar em seus apartamentos sozinhos, mas que não

Milão. 2011. O autor relata na primeira parte do livro os casos de pessoas ordenadas que vivem sua homossexualidade promíscua e perversa à noite e de dia rezam missas e são sacerdotes.

17 Para grande parte das pessoas, católicas ou não, não existe pecado sexual nas re-lações sexuais entre pessoas que se amam, principalmente se forem entre homem e mulher. Não queremos dizer com isso que a Igreja deva aceitar essa visão como correta. Isso já seria uma outra discussão que aqui não cabe. Apenas alertamos para uma possibilidade de se estudar o que podemos fazer no mundo de hoje em termos de uma cultura pós-moderna que se impõe com muita força contra toda e qualquer moral que a Igreja possa ter sobre virgindade, abstinência sexual, divórcio. Na atua-lidade, devido à morte das instituições, o jurídico, o formal, o “religioso-institucional”, não exerce mais poder algum sobre o que se vive DE FATO. E o amor, muitas vezes confuso e confundido com paixão, é sempre o mais importante.

18 Faz-se necessário alertar para o fato de que alguns tipos de vida dupla, que são mais claramente assumidas e menos clandestinas, entre um padre e uma mulher (deixando claro que a sentença não é a mesma para os padres homossexuais), são mais facilmente toleradas e aceitas pelo povo que, na verdade, não adere muito bem ao celibato dos padres, sendo apenas contra a hipocrisia.

19 Não vamos aqui entrar no mérito se é sobrinha de verdade ou não. Não interessa, pois mesmo que o seja de verdade é inadequado para um padre morar com uma sobrinha, sozinho num apartamento.

96 Encontros Teológicos nº 61Ano 27 / número 1 / 2012

A saúde da Igreja

ficam “sozinhos”), ou casos em que eles arrumam alguém longe de onde moram e trabalham.

Existem situações em que pode até ser sobrinha de verdade, e situ-ações em que não se têm relações sexuais com as empregadas que moram debaixo do mesmo teto. Mas esta é uma prática que os bispos poderiam repensar, pois, embora o povo não diz nada, causa uma sensação sinistra, obscura, oculta, de uma Igreja que é cega e que não vê certas manifestações doentias em que se vivem coisas não necessárias, que denunciam falta de coisas mais importantes. Se estiver faltando algo para os padres da paróquia em que eles precisam morar com suas empregadas, com suas sobrinhas, é porque algo está muito falho nesta vida celibatária.

Não é bom e nem é saudável desafiar a inteligência e a sensibili-dade do povo no sentido de fazer com que este acredite em coisas quase impossíveis. Não enxergar que homens celibatários que moram com mulheres dentro de suas casas é um “problema”, é uma prisão psíquica que dificilmente encontra em argumentos racionais justificativas susten-táveis para este tipo de aberração. Só os membros internos da Igreja não percebem que isso não é normal, não é adequado, não é conveniente, para uma Igreja que quer e precisa ser transparente, clara, limpa e livre. Pode-se porventura elaborar a racionalização para negar a problemática desta situação, dizendo que isso só é problema porque a sociedade está doentiamente ligada a questões sexuais. Se alguém tiver este argumento, é bom saber que a Igreja também precisa olhar e se situar na sociedade em que vive, adaptar-se ao social e aos padrões estabelecidos pelas cul-turas. Não é nenhum padrão cultural que homens não casados morem com mulheres debaixo do mesmo teto e não tenham possibilidades de envolvimentos sexuais.

Com exceção em casos de idosos, em que se pode pensar em colocar uma pessoa do sexo feminino nestas casas, como enfermeira ou cuidadora, mas que sejam senhoras idôneas.

O povo de Deus

Em todos os aspectos mencionados acima20, podemos perceber que são sombras projetadas nas paredes da Igreja, de forma que são vistas

20 Sem contar a pedofilia que tem sido um tema debatido ao extremo e já esgotado e outras perversões que são patologias gravíssimas como padres que fazem orgias,

97Encontros Teológicos nº 61Ano 27 / número 1 / 2012

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como normais, mas que aos olhos do povo não são tão normais assim. Muitas vezes, o povo, que não quer se afastar da Igreja, faz o que se chama popularmente de “vistas grossas”, ou entra na prisão psíquica também, para poder permanecer. No entanto, muitos se afastam, e dizem que se afastaram porque o que vêem não os agrada21. Podemos ainda continuar com os mecanismos de defesa e dizer que se afastaram porque não são verdadeiros fiéis, como já ouvimos muito isso da parte ad intra da Igreja. Mas será que esse tipo de racionalização e negação vai ajudar a Igreja a ser melhor? Será que na situação atual de uma imagem de Igreja cada vez mais caricatural para a sociedade – para os estudantes das univer-sidades federais, estaduais e particulares, para os profissionais liberais como psicólogos, médicos, advogados, engenheiros, odontólogos, entre tantos outros – não seria de bom tom perguntar e tentar intuir o que faz a imagem da Igreja ser caricatural para a sociedade secular?

É claro que não são somente estes aspectos mencionados aqui que motivam as pessoas a desgostarem da Igreja, mas esses são alguns deles. Será que já paramos para questionar o que faz com que a Igreja tenha um número tão maior de fiéis mulheres do que de homens? Qual será o significado disso? Seria isso saudável para a Igreja ou será a erotização subjacente das relações mais um motivo para que os homens se afastem cada dia mais? O que poderíamos fazer para termos mais homens como fiéis? O que a Igreja pode fazer para ser mais atraente para os homens, assim como para os/as profissionais liberais, para os/as universitários, cientistas e mundo secular em geral?

Esses aspectos pouco saudáveis da Igreja, citados neste artigo, que se resumem no termo “erotização subjacente das relações”, são muito sutis, muito disfarçados, tão ocultos e discretos, que fazem com que seus membros ad intra não acreditem de forma alguma que esses aspectos façam diferença nas percepções das pessoas de fora. Talvez essa sutileza, esta maneira oculta e quase invisível de minar os ambientes tornando-os pouco livres, autênticos, transparentes, gera um ar de hipocrisia, e faz com que a Igreja ofereça uma imagem repugnante para as pessoas mais exigentes de autenticidade. Esses aspectos geram o que chamamos de

se metem com prostituições etc. Para tratar de perversões desse tipo teríamos que elaborar um trabalho específico.

21 Isso é o que mais ouço como leiga que sempre pergunta aos colegas e aos amigos, vizinhos e a todos os que se aproximam nas viagens, nas filas, se são católicos, porque não o são e o que os fez deixarem de ser.

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A saúde da Igreja

“ranço”22. Algo que repugna as pessoas, porque não cheira bem, estraga o ambiente, cheira a hipocrisia de um celibato falso, uma castidade fal-sa, estragada, mesmo que não se vá às vias de fato numa relação sexual propriamente dita.

Sem querer dar a impressão de que estamos sendo moralizantes, o problema da Igreja hoje é, em grande parte, moral. Esta também é uma realidade que se nega e não se quer enxergar de forma alguma, mas é a realidade23. Vamos ver por quê:

As pessoas não aceitam que os casais de segunda união que vivem uma vida, muitas vezes, digna e coerente, ou os namorados que se amam e não vivem a abstinência sexual antes do casamento, ou ainda os divorcia-dos que querem namorar e amar alguém, e outros, não possam comungar, mas que os membros internos da Igreja que vivem uma vida um tanto obscura, sinistra, ambígua, pouco transparente, cheia de dissimulações e incoerências, quando não cheia de hipocrisia, estão lá comungando ou consagrando a eucaristia para nós. Esse é o problema moral que a Igreja enfrenta hoje com relação a uma boa parte da população.

Não vamos aqui cair na tentação de entrarmos em racionalizações dizendo que isso é desculpa de pessoas que não querem compromisso com a Igreja. Pode até ser, mas o argumento deles tem realidade. Quem é a Igreja para exigir alguma moral sobre a castidade das pessoas, que ao menos, não são hipócritas? Se ela nos oferece pastores e pessoas que são dissimuladas, sinistras, cheias de falso pudor? Essa é a pergunta que fazem.

A hipocrisia hoje é mais imoral aos olhos do povo do que qualquer atitude sexual que não esteja de acordo com as normas da Igreja. Com razão, a intuição do homem pós-moderno é que somente precisa ser hi-pócrita na sociedade atual quem faz coisas muito doentias ou escabrosas, já que a sociedade vê o sexo por amor não mais como um pecado24. Ou seja, a moral que se exige hoje de todos é a da autenticidade.

Quando as pessoas vão falar da Igreja, os ateus, os céticos, os inte-lectuais, a primeira coisa que eles dizem é que são mais éticos do que os cristãos. Eles não estão de todo errados. Muitos de nós cristãos falamos

22 Cheiro de coisa estragada, cheiro desagradável. Mofo, coisa em decomposição. 23 O estrago que um livro como o já citado Sex and the Vatican (cf. nota 14) faz para

quem não é católico e para quem o é, é imensurável.24 Ver nota 16

99Encontros Teológicos nº 61Ano 27 / número 1 / 2012

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uma coisa e vivemos outra, falamos bonito e temos discursos muito bem elaborados, mas pouco eficazes na prática e no testemunho.

A sociedade atual não é mais uma sociedade de discursos. O discurso perdeu o efeito, perdeu a eficácia, ninguém mais quer saber de discurso, as pessoas olham a vida de quem está a discursar. O Marcial Maciel Degollado25 escreveu coisas muito bonitas sobre a formação do presbítero. Trata-se de coisas que hoje não podemos utilizar, pois de nada vale com a vida que teve, tornou-se lixo. E também não adianta dizer que somos perseguidos, até somos, mas muitas vezes, se somos perseguidos é porque também damos muitos motivos. E aí dizer que somos perseguidos não resolve nem alivia a nossa responsabilidade quando queimamos a Igreja perante o povo.

Nessa questão entra o tão falado “testemunho” que, apesar de muito mencionado nos discursos, é pouco compreendido e vivido na prática. Não por má vontade, talvez por má formação afetiva, psicológica, por incapacidade de consciência. Por não possuirmos recursos internos suficientes para sublimar verdadeiramente, para transformar a energia sexual e afetiva em algo altruísta e em prol do Reino, para aprofundar-mos em nosso inconsciente e percebermos melhor nós mesmos e nossos impulsos ambíguos. Conhecemos pessoas brilhantes intelectualmente, mas que afetivamente não resistem a impulsos ambíguos.

Queremos aqui alertar também para o fato de que linhas de psicolo-gias “baratas” só enganam bem. Talvez por isso a situação hoje seja esta. Afinal sempre houve na Igreja um grande preconceito contra as linhas psicanalíticas freudianas26, que são as que trabalham mais profundamente as questões afetivas de fundo inconsciente, justamente aquelas que mais dão problemas hoje na Igreja. Esta história de dizer que Freud só pensou em sexo é uma falta imensa de conhecimento da obra dele. Realmente, a sexualidade para ele é o impulso mais anterior a todos e pode ser o mais forte. Mas isso não quer dizer que devemos desprezá-lo como um sexualista. Pois de que adiantou desprezá-lo e hoje a Igreja estar nessa situação de uma sexualidade tão destrutiva com ela própria? Talvez seja a hora de acolhermos os psicanalistas sérios, profundos conhecedores

25 Fundador dos Legionários de Cristo.26 Sobre os intérpretes de Freud é bom tomar alguns cuidados: Lacan, por exemplo,

não é uma boa linha; Melanie Klein, Bion, Winnicot, entre outros, mais ou menos ortodoxos, são sempre os melhores.

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A saúde da Igreja

da mente humana, para nos ajudar27 a sair dessa situação em que nos encontramos e pararmos de acreditar em linhas de psicologias, (que até podem ser boas e razoáveis para os mais saudáveis), mas que não resol-vem problemas mais sérios.

Precisamos de linhas de psicologia que possam nos servir para termos mais saúde mental e afetiva para viver o celibato e a castidade e ainda nos protegermos dos perversos que se aproveitam das estruturas da Igreja, por demais cômodas para eles.

Pistas pastorais

Para trabalhar um pouco as questões acima mencionadas e outras que não o foram, mas que podem se encaixar, vamos aqui sugerir algumas possibilidades. Sem saber se terão êxito ou não, mas é importante que possamos oferecer sugestões, ao menos numa tentativa de iluminar as sombras, não com luzes da razão instrumental. Afinal: “Que a sombra aumenta proporcionalmente com a luz é uma regra psicológica, assim quanto mais a consciência se mostrar racionalista, mais o universo qui-mérico do inconsciente ganhará em vitalidade”.28

1. Gareth Morgan chama de “armadilhas cognitivas” os pres-supostos falsos, crenças estabelecidas, premissas e práticas que se combinam para formar pontos de vista muito estreitos do mundo, que podem ser tanto uma base como uma limi-tação para a organização.29 Quanto a isso, sugerimos que possamos entender que a tão falada e repetida mudança de época traz um novo tipo de “racionalidade” do povo. É importante entender que o povo, principalmente os mais jovens, é extremamente sensível a uma linguagem não ver-bal, a gestos e olhares, à intuição e a sensações. Hoje, mais do que nunca, há uma percepção inconsciente das coisas além das tecnologias, e hoje mais do que nunca podemos

27 Quando dizemos “nos ajudar” é mais no sentido de consultoria, pois terapia de linha psicanalítica sugiro que seja somente para aqueles que já são ordenados e que é certeza absoluta que vale a pena investir. Os perversos vão à terapia para aprender a enganar e manipular ainda mais (os psicanalistas costumam dizer que eles fazem terapia para enganar a polícia).

28 JUNG apud MAFFESOLI, Michel. O elogio da razão sensível. Ed. Vozes. Petrópolis. 1998 p. 19.

29 MORGAN, Gareth. Imagens da organização. Ed. Atlas. S.P. 1996. p.208.

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repetir o que Jesus disse: “Não há nada de escondido que não venha a ser revelado, e não há nada de oculto que não venha a ser conhecido. Pelo contrário, tudo o que vocês tiverem feito na escuridão será ouvido à luz do dia; e o que vocês tiverem pronunciado em segredo, nos quartos, será proclamado sobre os telhados.” (Lc 12, 2-3)

Por isso não adianta criarmos justificativas, racionalizações e negações da realidade. Ela sempre vai se impor. A chamada mudança de época vem com a exigência de autenticidade e veracidade na vida. Se há sombras em nossas vidas, é melhor trabalhá-las para sermos cristãos transparentes, verdadeiros e autênticos. O que não é assumido não é redimido30. Temos que aprender a ver o que é para ser visto, e não o que se desejaria que fosse.31

2. O mesmo autor apresenta uma pérola em suas conclusões, que poderíamos utilizar para refletir: “Na sombra da or-ganização, encontram-se todos os opostos reprimidos da racionalidade, que lutam para emergir e mudar a natureza da racionalidade que está sendo praticada.”32 Por racio-nalidade organizacional, como o autor menciona nessa frase, entende-se “a lógica que está por trás do conjunto das ações organizacionais”. Ou seja, essa frase sugere que as sombras que a Igreja Católica vê em suas paredes estão lutando por mudanças em certos aspectos da racionalidade que temos na organização.

3. Cuidar para que estas sombras não se tornem “buracos negros” na organização, ou seja: “a dimensão invisível da organização que foi descrita como inconsciente pode engolir e aprisio-nar as ricas energias das pessoas envolvidas no processo organizacional”33.

4. É bom tomar consciência de que “podemos desculpar, raciona-lizar, punir, controlar o quanto quisermos, e não iremos livrar-

30 Santo Irineu de Lião apud A. ORBE. “El Hombre Ideal en La Teologia de S. Ireneu” Gragorianum 53 (1962) p. 449-491.

31 Maffesoli utiliza semelhante expressão para falar sobre a contemplação do mundo. Mas ela pareceu útil para nós nesta ocasião.

32 Ibdem, p. 231.33 Ibdem, p. 234.

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A saúde da Igreja

nos dessas forças reprimidas que se escondem nas sombras na racionalidade”.34 Por isso é importante tomarmos consciência das manifestações de nosso inconsciente nas nossas ações que se projetam na organização.

5. Maffesoli faz uma crítica à lógica do “deve ser” mostrando que a esta pode suceder a deontologia: “uma consideração das situações naquilo que elas têm de efêmero, de sombrio, de equí-voco, mas também de grandioso”,35 uma ética das situações. Esta, ele diz que é atenciosa às paixões, ao afeto, à emoção e continua: “O moralismo está fora de circulação. Mais vale pôr em ação uma sensibilidade generosa, que não se choque ou espante com nada”36 [...].

Assim o autor continua a dizer sobre a razão sensível da pós-moder-nidade, um saber dionisíaco capaz de ordenar o caos, sem negar o intelecto e sem negar a razão, integrar também a paixão. Um saber que emerge, que não deixa de ser intelectual e de fazer bom uso da razão, mas que pode olhar para as coisas como elas realmente são e não como desejaríamos que fossem, numa contemplação criativa do mundo, para assim acolhermos nossas sombras e fazer delas algo integrado em nosso ser.

Talvez essa saída para lidarmos com a mudança de época possa nos ser útil. Talvez, se pudermos começar uma ética das situações, onde, com mais generosidade com os afetos, com os apaixonamentos, com mais acolhimento dos nossos sentimentos, possamos integrá-los me-lhor em nosso “eu” de forma a não projetar esses aspectos tão naturais da alma humana na organização, causando-lhe danos à sua imagem, numa tentativa de negá-los. Quanto mais os negamos, mais eles vão nos perseguir e aparecer.

Seria interessante aprendermos a transformar esses afetos, essas “paixonites”, atrações físicas, encantamentos pelo outro/outra, em amizades bonitas, limpas, transparentes, de forma a sublimar mais verdadeiramente isso tudo numa relação de amizade bem conversa-da, bem esclarecida, bem trabalhada. Estas amizades decorrentes de envolvimentos afetivos, somente quando são trabalhadas de maneira muito intensa, podem ser muito úteis à vida celibatária. Mas para isso

34 Ibdem, p. 236.35 MAFFESOLI, Michel. O elogio da razão sensível. Ed. Vozes. Petrópolis. 1998 p. 1236 Ibidem, p. 12

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as pessoas têm que ser também trabalhadas afetivamente, e não ter pro-blemas sérios estruturais. Caso não o sejam, a amizade certamente cairá na tragédia. Essas afeições especiais podem ser canalizadas também para o trabalho para o Reino e para o crescimento e amadurecimento da própria pessoa, mas para isso fazem-se necessárias condições internas e profundo desejo de autenticidade na vida eclesial, por amor à Igreja – Povo de Deus, e sua fé.

Para que tenhamos pessoas mais trabalhadas, é necessário primeiramente nos acolher por inteiro como seres humanos que se apaixonam, que amam, que sentem atração e não aprender a negar isso tudo, pois, ao acolhermos estas demandas afetivas que emergem, já é um bom caminho para resolvermos isso e não empurrar para o inconsciente nos tornando neuróticos e dissimulados frente aos outros e até a nós mesmos.

Acolher a alma humana como ela realmente é e sempre foi, sem querer colocá-la numa camisa de força, não se trata de viver e realizar os desejos. Muito ao contrário, trata-se de poder pensá-los. Quando os pensamos, eles perdem muito de sua força. É isso que a psicanálise, quando séria, nos ensina: desejar é humano, realizar todos os desejos é loucura. Mas temos que pensá-los, em vez de recalcá-los.

Os limites dessa “fala” estão no fato de que a mente humana, quando educada e formada para negar, ela não consegue deixar de fazê-lo e, normalmente, cai no recalque. Dificilmente se muda essa realidade, ficando mais difícil trabalhá-la.

Para encerrar, citaremos novamente o autor acima:

“É assim que, à moral do ‘dever ser’, poderia suceder uma ética das situações. Esta, ou melhor seria dizer, estas últimas, são atenciosas à paixão, à emoção, numa palavra, aos afetos de que estão impregnados os fenômenos humanos. Tudo aquilo que, retomando uma anotação de D. H. Lawrence, requer ‘um espírito de simpatia, de finura e de discer-nimento... um espírito de respeito por essa coisa em luta e em ruínas que é uma alma humana’”37.

É assim, certamente, que o nosso Bom Deus nos olha e nos vê.

37 Ibidem, p.12.

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A saúde da Igreja

Vamos então, pedir, aos que amam a Igreja, que, neste ano de Campanha da Fraternidade voltada para a saúde, possamos lutar por uma Igreja mais saudável, e entender que tudo o que a Igreja quer, busca, cobra para o povo e do povo, ela tem que, antes, ter dentro dela também como instituição.

“Enviai-nos, Senhor, o Vosso Espírito, e guiai a Vossa Igreja,para que ela, pela conversão, se faça sempre mais solidária às dores e enfermidades do seu povoe que a saúde se difunda sobre ela mesma”.

Endereço da Autora:Rua Osvaldo Aranha, 199. Apt 302

Bairro Nossa senhora de LourdesCEP: 97 050-540 Santa Maria, RS

E-mail: [email protected]

Encontros Teológicos nº 61Ano 27 / número 1 / 2012, p. 105-118.

Resumo: Diante das várias traduções do texto bíblico que inspirou o lema da CF 2012, isto é, Eclo 38,8, o autor começa o artigo elencando essas traduções nas várias línguas, a partir do original grego. Assim, mostra como o termo ori-ginal eirênê, literalmente “paz”, é às vezes traduzido também por “bem-estar”, “saúde”, “habilidade”. A segunda parte do artigo apresenta o conjunto literário do qual o mencionado lema foi tirado, do livro do Eclesiástico/Sirácida: Eclo 37,27-38,23, distinguindo aí quatro perícopes: a primeira, 37,27-31, sobre a temperança; a segunda, 38,1-8, sobre o médico; a terceira, 38,9-15, sobre a doença; e a quarta, 38,16-23, sobre o luto. Chama a atenção a insistência inicial sobre a temperança, ou seja, a sobriedade, como condição para a “saúde” no seu sentido pleno: física, mental, espiritual.

Abstract: Impressed by the different translations of the biblical text that inspired the slogan of the 2012 “Fraternity Campaign”, that is, Eclo 38,8, the author begins his paper presenting those translations in several languages, starting with the original Greek. In this way, he demonstrates how the original term eirênê, literaly “peace”, is sometimes translated also by “well being”, “health”, “hability”. The second part of the paper presents the literary ensemble from which the mentioned slogan was taken, from the book of Ecclesiasticus/Sirach: Ecclo 37,27-38,23, distinguishing there four pericopes: the first one, 37,27-31, focusing temperance; the second, 38,1-8, focusing the doctor; the third, 38,9-15, focusing illness; and the fourth one, 38,16-23, focusing grief. Calls our attention the initial insistence on temperance, that is, frugality, as condition for “health” in its full meaning: physical, mental, spiritual.

Eclo 38,8: Saúde? Paz? Bem-estar?Texto e contexto bíblico do lema da CF 2012

Ney Brasil Pereira*

* O autor, mestre em ciências Bíblicas (PIB, Roma, 1973), é presbítero da arquidiocese de Florianópolis, e professor na FACASC/ITESC.

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Eclo 38,8: Saúde? Paz? Bem-estar? Texto e contexto bíblico do lema da CF 2012

Introdução

A palavra “saúde”, no sentido físico, é relativamente rara na Bíblia. Nos textos originais, “saúde” traduz o grego hugíeia ou holoklêría e o he-braico shalôm ou riphe’ûth etc, correspondendo ao latim sánitas, valetúdo ou sálus. Na “Chave Bíblica”1, da Sociedade Bíblica do Brasil por exemplo, encontramos apenas sete (7) incidências do termo em português, enquanto a grande “Concordância Bíblica”2, da mesma SBB, que não inclui os livros deuterocanônicos, registra um pouco mais: oito (8) incidências no AT e quatro (4) no NT. Mesmo nessas poucas incidências, é raro encontrar o substantivo “saúde” como tal. Daí a minha curiosidade, que espero seja também a do leitor, em verificar qual o termo realmente empregado pelo autor do versículo 8º do capítulo 38 do Eclesiástico/Sirácida, versículo escolhido como inspirador do lema da CF 2012: “Que a saúde se difunda sobre a terra”. O autor escreveu originalmente em hebraico, mas o texto que chegou até nós foram as versões grega e latina. Na primeira parte do artigo, simplesmente apresento o texto em causa, primeiramente em grego, depois em latim, em português, e em algumas outras línguas modernas, para que o leitor perceba as semelhanças e, também as diferenças das várias versões do termo-chave. Na segunda parte, situo esse versículo não só no seu contexto literário imediato (Eclo 38,1-8), mas no seu contexto mais amplo (37,27-38,23), no conjunto do livro no qual se encontra.

1 Texto

1.1 Grego:

– Texto grego original, da Septuaginta, ed. Rahlfs:

Kai ou mê syntelesthêi érga autoûkai eirênê par’autoû estin epì prosôpou tês gês.

– Texto grego original, ed. Samuel Bagster:

Kai ou mê syntelésêi érga autoûKai eirênê par’autoû estin epì prosôpou tês gês.

1 CHAVE BÍBLICA, da SBB, 1ª edição em 1966; 3ª edição, aumentada, em 1970, baseando-se na tradução de ALMEIDA, João Ferreira, revista e atualizada, muitas vezes reimpressa

2 CONCORDÂNCIA BÍBLICA, da SBB, 1ª edição em 1975, sucessivamente reimpressa

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Ney Brasil Pereira

1.2 Latim:

– Tradução latina, da Vulgata Sixto-Clementina, 1592:

Et non consummabuntur opera ejus, / Pax enim Dei super faciem terrae.

– Tradução latina, da Nova Vulgata, 1979/1986:

Ut non consumantur opera ejus: / et salus super faciem terrae.

1.3 Português:

– Tradução portuguesa, Bíblia da CNBB, 2001:

Assim, suas obras não ficam inacabadas / e a saúde se difunde sobre a terra.

– Tradução de PEREIRA, Ney Brasil, 19923:

As obras do Senhor não têm fim, / e o bem-estar que dele procede se espalha por sobre a terra.

– Tradução de Matos Soares, Ed. Paulinas 1966 (original de 1932):

E diversifica o seu trabalho de mil maneiras, / porque a paz de Deus estende-se sobre a face da terra.

– Tradução da LEB/Loyola, 1983:

Assim, suas obras não ficam inacabadas / e o bem-estar se espalha sobre a terra.

– A Bíblia “Pão Nosso”, Vozes, 1992:

As obras do Senhor não têm fim / e o bem-estar que dele procede se espalha sobre a terra.

– Bíblia Sagrada, Pontifício Instituto Bíblico, trad. Ed. Paulinas, 1967:

A fim de que a criatura de Deus não cesse, / nem o são viver desapareça da face da terra.

3 PEREIRA, Ney Brasil, “Sirácida ou Eclesiástico”, da col. Comentário Bíblico do Antigo Testamento, Petrópolis, Ed. Vozes/Sinodal/Metodista, 1992, p. 182.

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Eclo 38,8: Saúde? Paz? Bem-estar? Texto e contexto bíblico do lema da CF 2012

– Bíblia da TEB/Loyola, tradução ecumênica, 1994:

De sorte que suas obras não têm fim / e a saúde vem dele sobre a face da terra.

– Bíblia Sagrada, Edição Pastoral, Ed. Paulinas (Paulus), 1990:

Dessa maneira, as obras de Deus não têm fim / e dele vem o bem-estar para a terra.

– Bíblia Sagrada, na Nova Tradução na Linguagem de Hoje (SBB), Paulinas, 2005:

Deus nunca pára de trabalhar; / ele faz com que a saúde se espalhe pelo mundo inteiro.

– Bíblia Sagrada, Ed. Ave Maria, 1982

E seu trabalho não terminará, / até que a paz divina se estenda sobre a face da terra.

– Bíblia de Jerusalém, Ed. Paulinas (Paulus), 1985

E assim suas obras não têm fim / e por ele a saúde se difunde sobre a terra. Ed. de 2010: “e por ele o bem-estar...”

– Bíblia do Peregrino, Paulus, 2002:

E assim não cessa a atividade de Deus / nem a habilidade dos filhos de Adão.

Traduções em outras línguas

1.4 Italiano:

– Bíblia da CEI (Conferência Episcopal Italiana), ed. 1974:

Non verranno meno le sue opere! / Da Lui proviene Il benessere sulla terra.

– La Sacra Bibbia, Garofalo4, ed. Marietti, 1966:

Affinchè l’opera di Dio non scompaia, / e la salute, sua creatura, si diffonda nel mondo.

4 DUESBERG, Hilaire e FRANSEN, Irénée, Ecclesiastico, col. La Sacra Bibbia, a cura di Mons. Salvatore Garofalo, Torino/Roma, 1966, Marietti, p. 262

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1.5 Espanhol:

– Bíblia da CEE (Conferência Episcopal Espanhola), ed. 2010:

Y así nunca se acaban las obras del Señor: / de él procede el bienestar sobre toda la tierra.

– La Nueva Biblia, Latinoamerica, Edición Pastoral, ed. 1972:

Con eso las obras del Señor no tienen fin / y se derrama por la tierra el bienestar.

– La Biblia de Estudio “Dios habla hoy”, Sociedades Bíblicas Unidas, 1994:

Así no desaparecen los seres criados por Dios / ni falta a los hombres la salud.

– Los Libros Sagrados5, Ediciones Cristiandad, Madrid, 1968:

Así no cesa su actividad / ni la destreza de los hijos de Adán.

1.6 Francês:

– La Bible de Jérusalem, Du Cerf, Paris, 1998:

Et ainsi ses oeuvres n’ont pas de fin / et par lui le bien-être se répand sur la terre.

– Ancien Testament, TOB, Du Cerf, Paris, 1975:

De sorte que ses oeuvres n’ont pas de fin / et la santé vient de lui sur la face de la terre.

– La Bible de Chouraqui, Desclée de Brower, 1989:

Afin que son oeuvre ne cesse jamais / ni le savoir-faire parmi les fils de l’homme.

1.7 Inglês:

– New American Bible, NAB, Collins Word, Cleveland, Ohio, 1976:

Thus God’s creative work continues without cease / in its efficacy on the surface of the earth.

5 SCHÖKEL, Luís Alonso, Proverbios y Eclesiastico, Madrid, 1968, Ed. Cristiandad, p.280.

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Eclo 38,8: Saúde? Paz? Bem-estar? Texto e contexto bíblico do lema da CF 2012

– Old Testament Message, vol. 196, 1983:

His works will never be finished; / and from Him health is upon the face of the earth.

1.8 Alemão:

– Die Bibel, Einheitsübersetzung, Herder, 2009:

Damit Gottes Werke nich aufhören / und die Hilfe nicht von der Erde verschwindet.

Em resumo:

1) no grego:duas vezes eirênê (paz, shâlôm);

2) no latim: uma vez pax Dei (paz de Deus);uma vez sálus (saúde, salvação);

3) no português:quatro vezes saúde;quatro vezes bem-estar;uma vez paz de Deus;uma vez paz divina;uma vez são viver (saúde);uma vez habilidade7;

4) no italiano:uma vez benessere (bem-estar);uma vez salute (saúde);

5) no espanhol:duas vezes bienestar;uma vez salud (saúde);uma vez destreza (habilidade);

6 MACKENZIE, R.A.F., SJ, Sirach, Old Testament Message, vol. 19, Wilmington Dela-ware, 1983, Michael Glazier, Inc., p. 142

7 Habilidade, destreza (esp.), savoir-faire (fr.) supõem o original hebraico recuperado hokmâ, sabedoria, know-how. Cf TEB, Tradução Ecumênica da Bíblia, São Paulo, São Paulo 1994, Loyola, p. 1782: nota h ao Eclo 38,8

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Ney Brasil Pereira

6) no francês: uma vez le bien-être (bem-estar);uma vez la santé (saúde);uma vez le savoir faire (habilidade);

7) no inglês: uma vez efficacy (eficácia);uma vez health (saúde);

8) no alemão: uma vez Hilfe (ajuda, socorro).

2 Contexto

O contexto do lema da CF 2012, tirado de Eclo 38,8, deve ser examinado no conjunto do livro ao qual pertence, o livro de Jesus Ben Sirá, ou Sirácida, também chamado de “Eclesiástico”, o mais volumoso dos livros sapienciais do Antigo Testamento. É uma obra escrita origi-nalmente em hebraico, em inícios do século 2º aC, apresentando-nos a ampla cosmovisão de um sábio judeu que de certa forma se contrapõe ao pessimismo realista do Coélet, ou seja, o Eclesiastes, redigido anterior-mente. O Sirácida foi traduzido para o grego no ano 132 aC8, no Egito, e é na tradução grega que ele passou a integrar a Septuaginta e, como deuterocanônico, foi admitido no cânon da Bíblia cristã, sendo traduzido para o latim pelo final do séc 2º dC. Tendo-se perdido o texto original hebraico, São Jerônimo não o traduziu para a sua Vulgata, sendo nela integrado o texto latino já mencionado9.

Os 51 capítulos do livro, após o Prólogo do tradutor grego, podem ser assim estruturados, em duas partes desiguais: a parte propriamente sapiencial, do cap. 1,1 até 42,14, tendo ao centro o cap. 24, que identifica a Sabedoria com a Lei, e a parte hínica, que exalta a Sabedoria de Deus na Criação e na História, do cap. 42,15 até o final do cap. 50. Segue ainda o cap. 51, com dois apêndices.

O lema da CF 2012, tirado do cap. 38,8, faz parte de uma perícope sobre o médico (38,1-8), antecedida por uma sobre a temperança (37,27-

8 Essa data é a que corresponde ao “ano trigésimo oitavo do rei Ptolomeu Evergetes”, segundo nos informa a linha 25 do Prólogo do tradutor

9 Ver outras informações introdutórias no Comentário de PEREIRA, N. B., citado na nota anterior, pp. 13-27.

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Eclo 38,8: Saúde? Paz? Bem-estar? Texto e contexto bíblico do lema da CF 2012

31), e seguida por outra sobre a doença e o médico (38,9-15), e ainda outra sobre o luto pelos mortos (38,16-23). As quatro perícopes, portanto, se inter-relacionam: antes de falar do médico e da doença (38,1-15), o autor aconselha a temperança, que preserva a saúde (37,27-31), e depois fala do luto, na eventualidade de uma doença mortal (38,16-23).

2.1 Primeira perícope: Temperança (37,27-31)10

2.1.1 Texto11

27. Filho, por toda a tua vida experimenta a ti mesmo: vê o que te é prejudicial, e disso te abstém.28. Pois nem tudo convém a todos, / nem todos se dão bem com tudo.29. Não sejas insaciável de todo prazer, nem te precipites sobre os pratos de comida.30. O excesso de alimentos causa doença / e a intemperança conduz às cólicas.31. Muitos já morreram por causa da intemperança. Quem, porém, toma cuidado, prolonga a vida.

2.1.2 Comentário12

Pela primeira vez desde 31,22 o Sirácida se dirige ao discípulo com o vocativo “Filho!”, que ele vai repetir mais duas vezes nesta seção: 38,9 e 38,16. O autor pensa em jovens que ainda não têm experiência do perigo que representa o demasiado comer, e por isso ainda não sa-bem que “o peixe morre pela boca”, como diz o nosso povo e como ele mesmo expressa, em outros termos, no v. 31. A temperança é vista como qualidade sapiencial, e é uma das quatro virtudes cardeais mencionadas no Livro da Sabedoria (Sb 8,7): ela (a Sabedoria) ensina a temperança e a prudência, a justiça e a fortaleza, que são os bens mais úteis na vi-

10 Na Bíblia da CNBB, a numeração dos versículos é dupla: em primeiro lugar vem a numeração da Nova Vulgata, que incorpora acréscimos da tradução latina, e em se-gundo lugar vem a numeração do texto grego. Assim, nesta perícope, a numeração da NV é diferente: 37,30-34. Este é o principal problema das citações do Sirácida/Eclesiástico: se não confere a numeração do versículo citado, deve-se procurar outro versículo, anterior ou posterior ao citado.

11 O texto e as considerações que seguem, de cada perícope, são reproduzidos do cit. Comentário de PEREIRA, N. B. Quanto ao texto, note-se que é a minha tradução do original grego, conforme a edIção crítica de ZIEGLER, Joseph, seguindo a numeração desse editor.

12 Cf comentário citado de PEREIRA, N. B., pp.181-182

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da13. Ela é também uma das formas da disciplina e do autodomínio que são característicos do Sábio, conforme o Sirácida já mostrou em 6,2-4; 18,30-32; e 31,19-2214.

O v. 29 retoma o que já fora dito, em relação aos banquetes, em 31,12-1715. E o v. 31 talvez aluda às cenas do povo no deserto, quando castigado por sua voracidade e gula, segundo Nm 11,20; Sl 78,26-31; Sl 106, 14-15: Deram largas à voracidade no deserto, e no ermo tentaram a Deus. Concedeu-lhes o que reclamavam, mas por sua gula feriu-os de náusea.

2.2 Segunda perícope: o médico (38,1-8)

2.2.1 Texto16:

1. Honra o médico, com as honras que lhe são devidas por seus serviços, pois o Senhor criou também a ele.2. É do Altíssimo que vem a cura, / e é do rei que ele recebe a recompensa.3. A ciência do médico o faz andar de cabeça erguida, e diante dos grandes será admirado.4. O Senhor faz sair da terra os remédios, / e a pessoa sensata não os rejeita.5. Não foi por um pedaço de madeira que se tornou doce a água, Para que assim se manifestasse a sua força?6. Foi o Senhor quem deu a ciência aos seres humanos, Para que pudessem glorificá-lo por suas maravilhas.7. Com os remédios, o médico cura e acalma a dor; com eles, o farmacêutico prepara os ungüentos.8. As obras do Senhor não têm fim, e o bem-estar que dEle procede se espalha por sobre a terra.

13 Ver o comentário desse versículo em PEREIRA, Ney Brasil, Livro da Sabedoria. Aos governantes, sobre a justiça. Comentário Bíblico do Antigo Testamento, Petrópolis, ed. Vozes/Sinodal, 1999, p. 119

14 Ver o comentário dessas perícopes no livro já citado de PEREIRA, N.B., Sirácida ou Eclesiástico, respectivamente nas pp. 50; 98-99; e 149-152

15 Ibid., pp. 151-15216 Ibid., p. 182

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Eclo 38,8: Saúde? Paz? Bem-estar? Texto e contexto bíblico do lema da CF 2012

2.2.2 Comentário17

Nem todos reconheciam e aceitavam a atividade do médico, rechaçando-a alguns por motivos “religiosos”, como parece insinuar 2Cr 16,12-13, que atribui a morte do rei Asa ao fato de ele, na doença, não ter recorrido ao Senhor, mas aos médicos... O Sirácida, porém, considera médico e remédios como parte da criação de Deus, o qual delega seu poder à natureza e ao ser humano, continuando assim a sua atividade criadora. Por isso, não se deve pedir logo milagres, mas é preciso exercitar a inteligência humana para descobrir a “virtude”, ou força, dos remédios naturais, especialmente os remédios caseiros, como o está tentando recuperar a Pastoral da Saúde com o seu programa de uma “medicina popular”. Ora, a medicina, ainda mais neste sentido original, é certamente um ramo da Sabedoria! Inclusive o profeta Isaías, chamado para invocar sobre o rei Ezequias a cura divina, ordena que se lhe aplique o remédio conhecido, “um cataplasma de figos” (cf Is 38,21), nada derrogando com isso à ação de Deus.

Os vv. 1-3 exaltam, então, a figura do médico, descrevendo-lhe o prestígio social, equiparado ao do sábio (37,24) e do escriba (39,4). O v. 5 evoca o episódio recordado em Ex 15,25, obviamente não o considerando inexplicavelmente miraculoso, mas apresentando-o como exemplo do efeito benéfico de um pedaço de madeira, dotado de “força” purificadora. O v. 6, como o v. 4 e o v. 2, insistem em que tudo isso vem de Deus, que faz sair da terra os remédios e dá a ciência aos seres humanos. Isto é, também aqui, como ele acabou de ensinar em 37,7-1518, Ben Sirá afirma a sinergia maravilhosa: o homem colabora com Deus, e Deus garante o sucesso da atividade humana.

2.3 Terceira perícope: a doença e o médico (38,9-15)

2.3.1 Texto19

9. Filho, ao adoeceres, não te revoltes: / roga ao Senhor, e ele te curará.10. Evita as faltas, torna reto o agir de tuas mãos, / purifica o coração de todo pecado.11. Oferece o incenso e o memorial de flor de farinha

17 Ibid., pp. 182-18318 Cf texto e comentário Ibid., pp. 178-17919 Ibid. p. 183

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e sacrifica vítimas gordas, segundo tuas posses.12. Recorre, depois, ao médico, pois também a ele o Senhor criou; e não se afaste de ti, pois tens necessidade dele.13. Chega o momento em que a cura está em suas mãos;14. pois também eles rogarão ao Senhor para que lhes conceda o dom de aliviar e a cura, para salvar uma vida.15. Peca diante do seu Criador / aquele que se mostra arrogante diante do médico.

2.3.2 Comentário20

Novamente o Sirácida apostrofa como “filho” o seu discípulo, agora que passa a tratar da doença. Esta era tradicionalmente considerada “castigo de Deus”, razão por que aquele que cai doente não deve revoltar-se (assim o texto hebraico) mas orar, evitar novos pecados e purificar-se dos já cometidos, inclusive oferecendo generosamente os sacrifícios devidos21: então receberá perdão e saúde (vv. 9-11). São temas comuns nos salmos (cf todo o Sl 41, especialmente no v. 5: Eu digo: Senhor, por piedade! Cura-me, pois pequei contra ti!), e constituem o patrimônio tradicional de qualquer israelita. É conhecida a posição contrária de Jesus, segundo Jo 9,3.

O original de Ben Sirá é o lugar que ele atribui ao médico em tal situação: Deus curará muitas vezes por meio do médico, o sapiencial entrando sem dificuldade no religioso. Notar ainda, no v. 14, a menção da oração inclusive para o médico: também ele deve orar para que Deus lhe inspire o tratamento adequado, do qual possa resultar a cura, isto é, não pede milagres a Deus, mas acerto no exercício de sua profissão.

O v. 15, na forma em que está transmitido no texto grego, fazendo do médico o instrumento do castigo de Deus – caia nas mãos do médico aquele que peca contra seu Criador (!) – não combina com a apresentação positiva que dele é feita em todo o restante do trecho. Por isso, é preferível a forma do texto hebraico22: Peca diante do seu Criador aquele que se

20 Ibid. pp. 183-18421 Sobre os sacrifícios, uma visão diferente do Sirácida, profética, em 34,21-35,22: cf

texto e comentário ibid., pp.166-171, sob o título geral “O verdadeiro culto”, com os subtítulos “Culto e Justiça” (34,21-31), “Os sacrifícios aceitos” (35,1-13), e “Os gritos do pobre” (35,14-22)

22 Opção adotada também na Bíblia da CNBB, naturalmente com uma nota de crítica textual

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Eclo 38,8: Saúde? Paz? Bem-estar? Texto e contexto bíblico do lema da CF 2012

mostra arrogante diante do médico. Em outras palavras: não submeter-se, na doença, ao médico, é pecar contra o Criador.

2.4 Quarta perícope: o luto pelos mortos (38,16-23)

2.4.1 Texto23

16. Filho, derrama lágrimas pelo morto e entoa a lamentação, como quem sofre muito. Depois, envolve o cadáver segundo lhe convém / e não descures o sepultamento.17. Lamenta-te amargamente, chora tépidas lágrimas e observa o luto que ele merece, durante um ou dois dias, para evitar comentários. Depois, consola-te da tua tristeza.18. Pois da tristeza pode provir a morte; a tristeza do coração abate as forças.19. Na desgraça, a tristeza é permanente; e uma vida de pobre é dura ao coração.20. Não entregues o coração à tristeza; afugenta-a, pensando no teu próprio fim.21. Não o esqueças, de lá não se volta: / ao morto não serás útil, e a ti farás mal.22. Lembra-te de sua sorte, que será também a tua: / “Ontem a mim, hoje a ti!”23. Quando um morto repousa, deixa de lembrar-te dele; Consola-te a seu respeito, quando tiver partido o seu espírito.

2.4.2 Comentário24

Como à doença pode seguir a morte, Ben Sirá aborda também a questão do luto. E o faz com o pragmatismo característico que, aqui, parece marcado demais pela insensibilidade. Ou, segundo outros, pela “ataraxia” dos estóicos... Mas a sua advertência não é contra o luto como tal, e sim contra o luto excessivo e prolongado. Pois o excesso não bene-ficia os mortos e pode prejudicar os vivos, como ele observa no v. 21.

Notar o prazo abreviado de “um ou dois dias” (v. 17), quando o normal para o luto era um período de sete dias (cf 22,12). O v. 19 tem um texto obscuro, ou mal conservado, que nenhuma das versões conseguiu

23 Cf. Comentário citado de PEREIRA, N.B., p. 184.24 Ibid., pp. 184-185.

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captar. Os vv. 20-21 parecem estranhos, num autor que em outras pas-sagens dá valor à preservação da lembrança, na memória da posteridade (cf 39,9). Aqui, porém, ele quer insistir na inutilidade da prolongada lamentação, sem se referir à aconselhada admiração – quando fosse o caso – pelas qualidades e realizações do falecido. No v. 22 ele recorda a principal lição a ser tirada da morte de alguém: é a certeza e a inevita-bilidade da própria morte. Quanto ao v. 23, temos a sugestiva descrição do sóbrio luto de Davi por seu filhinho, em 2Sm 12,19-23.

De resto, o desconhecimento, pelo Sirácida, da revelação sobre a outra vida, aproxima esta sua passagem de passagens semelhantes em autores pagãos, p. ex. Sófocles em Electra 137s: “Jamais, nem por so-luços nem por orações, farás levantar teu pai do Hádes, abismo que nos espera a todos. Ultrapassando a medida, para te entregares a uma dor sem remédio, tu te consomes em lamentações sem fim, onde não encontras nenhuma saída para teus males. Por que desejas tu sofrer?” Felizmente, como lembra Paulo à comunidade de Tessalônica, não podemos entregar-nos à tristeza “como os outros, que não têm esperança” (1Ts 4,13s)

Conclusão

A simples lista das variadas versões do mesmo versículo bíblico, no caso, Eclo 38,8, que inspira a CF 2012, nos deve advertir que o texto bíblico não é um absoluto. Mesmo reconhecido como inspirado, não deixa de ser a expressão humana da Palavra divina. E, como expres-são humana, está sujeito aos percalços que sofre a transmissão, quer manuscrita, quer, agora, digitada, desse texto, ao longo dos séculos e na variedade das línguas. Retomando as interrogações feitas no título deste artigo – “Saúde? Paz? Bem-estar?” – concluímos que as respostas devem ser inclusivas, isto é, Ben Sirá está, sim, referindo-se à “paz”25, ao “bem-estar”, que evidentemente não se realiza sem a “saúde”: física, mental, espiritual.

Nas quatro perícopes que analisamos, que constituem o contexto literário do lema desta CF 2012, chame-nos a atenção especialmente a primeira, pela sua flagrante atualidade: é a recomendação da “temperan-

25 A eirênê, “paz”, da versão grega, remete ao shâlôm do texto original, “shâlôm” que é plenitude, felicidade completa, que transparece no “como vai?” dos israelenses de hoje. Ao se encontrarem, o primeiro a falar pergunta: Mâ shlôm lekâ? Isto é, literalmente: “Como está a tua paz?”

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Eclo 38,8: Saúde? Paz? Bem-estar? Texto e contexto bíblico do lema da CF 2012

ça”, ou seja, da sobriedade na alimentação, como condição essencial para a saúde. Isso não deixa de ser paradoxal, num mundo onde ainda tanta gente morre de fome. Pois é um mundo onde o excesso e, também, a má escolha, da alimentação, aumenta a obesidade, a diabetes, o colesterol, os infartos, todos evitáveis exatamente com uma alimentação mais sóbria e saudável. Possa o espírito quaresmal, motivado por esta Campanha da Fraternidade, numa sã reação ao consumismo avassalante, educar-nos à sobriedade e à partilha. E a saúde, realmente, “se difundirá sobre a terra” (Eclo 38,8).

Endereço do Autor: ITESC

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E-mail: [email protected]

Encontros Teológicos nº 61Ano 27 / número 1 / 2012, p. 119-134.

Resumo: O artigo trata da saúde e da condição humana da doença, que recebe tratamento especial em hospitais, clínicas, ou em casa, através de médicos e/ou enfermeiros, preocupados não só em aliviar o sofrimento mas em restabelecer o bem-estar do doente. A Bíblia não dissimula o problema do sofrimento, analisado especialmente no capítulo sobre o livro de Jó. No segundo capítulo é abordada a mesma problemática no livro de Tobias. No terceiro capítulo é desenvolvido o estudo sobre o clamor dos oprimidos nos Salmos, como linguagem autêntica dos que sofrem.

Abstract: The present article concentrates on the human condition of health and disease which receives special treatment in hospitals, clinics and infirmaries provided by medical doctors and nurses to alleviate the pain so that their lives continue to enjoy undiminished growth to perfection both of soul and body. The Bible does not dissimulate the problem of suffering, as can be seen in the life of Job struggling against despair and advancing in virtue. A similar approach to suffering and different conditions is dealt with in a close-knit family of Jews outside of Palestine. Special light is shed on this theme in the book of Psalms where suffering is shared among the faithful in prayer addressed to God begging for mercy and cure.

Na saúde e na doençaLuís Stadelmann, SJ*

* O autor, Doutor em Línguas e Literatura Semíticas, Cincinnati, e Mestre em Ciências Bíblicas, é Professor no ITESC.

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Na saúde e na doença

Introdução

Só existe um ponto de referência válido e imprescindível, a partir do qual se pode falar da doença de alguém próximo de nós: e este ponto é, paradoxalmente, o estado de saúde de um membro da família. Trata-se de um ponto de referência válido, pois só tem deveras capacidade de cuidar de um enfermo quem o tem em grande estima e quer minorar o sofrimento e ajudar na recuperação da saúde. Neste sentido, a doença não é a última palavra nem o estágio final de uma vida sofrida, mas o ponto de partida do combate contra a enfermidade. Representa também o preço pela cura do mal, que estava abalando o organismo humano, e marca o início de um surto de novas energias que abrandam os traumas e preparam o restabelecimento da saúde.

1 Jó, o enfermo

A mulher de Jó mostra seu carinho no tratamento dele durante a enfermidade. Seus sentimentos de solidariedade são motivados pela convicção religiosa de que Deus não fica alheio ao sofrimento do seu marido. Sua crença em Deus se baseia na concepção em voga entre os fiéis da comunidade, que acreditam na doutrina sobre a retribuição divina. À luz dessa mentalidade, a esposa procura aliviar o sofrimento atroz de seu marido recorrendo a uma medida drástica, isto é, rogando uma praga. Por isso ela aconselha:

“Amaldiçoa a Deus e morre de uma vez!” (Jó 2,9)

A mulher quer induzir o marido ao pecado quando lhe sugere que amaldiçoe a Deus. Por estranho que pareça, essa sugestão parece bem intencionada, porque ela pensa que Jó, ao proferir a maldição, seria re-pentinamente fulminado pelo raio da vingança divina e a morte haveria de livrá-lo do sofrimento1. Aliás, é frequente que tais pensamentos surjam na mente do enfermo, insinuando uma morte repentina como término de todo o tipo de dores e como último recurso para encontrar alívio, quando outros meios não adiantam mais para minorar ou acabar com a tribu-lação da alma e do corpo. Entretanto, não é só o sofrimento que causa um desgaste nas energias do organismo, mas também a experiência da invalidez entre os paraplégicos, que desanimam diante da frustração ao

1 L. Stadelmann, Itinerário espiritual de Jó, Ed. Loyola, São Paulo, 1997, p. 91.

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Luís Stadelmann, SJ

continuar sentados numa cadeira de rodas, sem se locomoverem por si mesmos, mas somente com a ajuda de outros. Igualmente, os desenga-nados de qualquer melhora de uma saúde abalada, estão sujeitos a uma provação que vai além de suas forças e sucumbem ao desânimo, enquanto que outros, durante anos, não perdem a esperança por um milagre que os restabeleça novamente. Outros falam da doença sem ressentimento ou autocomiseração, sem fatalismos, sem indagações − por que logo eu? − que subentendessem a injustiça do Universo contra a fragilidade de um ser pacífico e solitário. O câncer é meu amigo. Ele me ensinou a olhar o mundo com pureza2. Nessa situação, somente quem tem a virtude heroica da perseverança consegue superar a deficiência sem desfalecer, alimentando um ânimo sempre renovado e iniciando cada novo dia com a graça de Deus sem incriminar o destino cego ou a fatalidade da vida pelo mal que o aflige.

O livro de Jó tem uma novidade a oferecer na abordagem da teologia bíblica que serve de base para a pastoral dos enfermos. Coloca no pelourinho da crítica da experiência humana todo o sofrimento dos enfermos, dos seus familiares e dos agentes de pastoral que se solidarizam com os oprimidos pela doença. Se fosse apenas a doença que precisa de tratamento, bastaria elencar terapias e curativos para todo o tipo de enfer-midade. Porém, quando entra em jogo o estado espiritual dos enfermos, o problema abarca também a motivação religiosa da vivência da fé entre os fiéis como também na sociedade secularizada. Pois os dois ambientes se revezam mutuamente ou se alternam entre si e então as duas atitudes religiosas coexistem uma ao lado da outra; isto significaria que tanto uma como outra têm seu direito de existir e entram em pauta no diálogo inter-religioso. Ora, Jó afirma que Deus não é como dizem e como lhe fora ensinado pela tradição religiosa da teologia do AT até então. Por isso, Jó se coloca frente aos seus amigos: Elifaz, Bildad, Sofar, e Eliú. Esses quatro interlocutores de Jó exercem o múnus de teólogos, como é indicado pelos diferentes nomes hebraicos que cada um atribui a Deus3: Elifaz designa Deus pelo nome de ’elôha (Jó 4,9), Bildad dá-lhe o nome de ’el (Jó 8,3), Sofar chama-o šadday (Jó 11,7), Eliú invoca ’elohîm (Jó 32,2); quanto a Jó, ele se refere a Deus pelo nome de ’adonay − Senhor (Jó 1,21). Esses teólogos têm o papel de guardiães do patrimônio da fé

2 Maicon Tenfen, Crônica no DC (22/10/2011).3 A multiplicidade de nomes atribuídos a Deus não é indício de politeísmo, pois se trata

do mesmo Deus (monoteísmo), mas explica-se como alusão aos vários interlocutores em diálogo com Deus, mencionados no livro.

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Na saúde e na doença

israelita transmitida desde várias gerações durante séculos (8,8-10). Sa-bem precisamente o que se passa entre Deus e os homens, pois Ele sempre retribui o bem com prosperidade e o mal com adversidade. Anteriormente, o próprio Jó acreditara nisso (29,18-20; 30,26). Os fatos, porém provam o contrário; provam-no, sobretudo, as próprias experiências de Jó. A sua profunda miséria, descrita nos capítulos I e II, em forma dramatizante, não pode ser explicada por tal doutrina. Por isso, os diálogos do livro estão cheios de lamentos, queixas e brados de descrença no Deus da tradição (p.ex., 9,17.22-24. 30-31; 19,6-8; 21,7-33; 27,2), de quem diz Jó amargamente: “Ele aflige o justo como o ímpio” (9,22).

A dogmática formulada pelos amigos procura refutar os sentimen-tos de Jó, que se esforça por superá-los. Jó, porém, fá-los valer como são. Contudo, não permite que lhe tirem a fé em Deus. O absurdo dessa experiência faz de Jó um homem dilacerado, com uma fé dilacerada. Ele sentia Deus como seu inimigo (13,24; 19,11; 33,10) e, todavia, se agarra a Ele como seu salvador, expressando sua convicção sem deixar-se abalar por nada:

Eu sei que meu redentor está vivo, e que no final se erguerá sobre o pó,e através de minha pele retalhada, na minha carne, verei a Deus.Eu verei aquele que está a meu favor, e meus olhos O contemplarão, e não a um adversário. Meus rins se abrasam dentro de mim (Jó 19,25-27).

Este texto abre um vislumbre do destino glorioso do ser humano após a morte, e precisamente no momento do desenlace4. A mesma ex-pectativa baseada na revelação divina é expressa pelo autor do salmo 73, que se torna uma voz imortal das mais empolgantes que no AT exaltaram a união perene com Deus após a morte. O salmista baseia sua fé no fato de que esta união, para ser verdadeira, não pode ser temporária − em ocasiões de enlevo espiritual − e, por isso mesmo, tem de estender-se para além da morte, perpetuando-se na glória celeste:

Mas eu estou sempre contigo, tu me tomaste pela mão direita,tu me guiarás segundo teus desígnios, e no fim me acolherás na glória.

4 Ver interpretações alternativas em L. Stadelmann, op. cit., p. 98-99.

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Luís Stadelmann, SJ

Se tu, a quem eu tenho no céu, estás comigo, nada mais desejo na terra.Embora minha carne e meu coração definhem, Deus é a rocha do meu coração, e minha herança para sempre (Sl 73,23-26).

A doutrina que fundamenta sua crença baseia-se na revelação sobre a Aliança sagrada entre Deus e o Povo Eleito, estabelecendo a relação de amizade divina para fins de salvação dos fiéis5. A salvação de Deus envolve a libertação dos males como também o enriquecimento com dons divinos.

Por esse motivo, o livro de Jó não é o livro da ausência de Deus. É, porém, o livro que, mais que qualquer outro escrito da Bíblia, atesta que a concepção tradicional de Deus não resiste à experiência da desgraça, da doença, do sofrimento, das calamidades e da morte. A experiência e a realidade são mais fortes que uma teologia teórica sem relação com a vida. E, por isso, a atitude de Jó é de contestação, contra a vivência seculari-zante da fé. Falta-lhe, porém, a dimensão da significação do sofrimento nos homens que sofrem com sentido, como Jesus Cristo, paradigma dos sofredores: a experiência cristã assume o sofrimento com a lucidez que procede da fé. É que o sofrimento de Jesus Cristo tem função salvífica na obra de redenção da humanidade. Entretanto, somente na existência terrena de Cristo é que o término da vida biológica (por uma morte violenta) tem dimensão salvífica, ao passo que para o gênero humano é meramente o fim de um capítulo da peregrinação terrena.

A guinada entre os discursos do homem sobre o problema de Deus, elaborados a partir de intuições individuais, acontece no momento em que se procede da reflexão sobre a palavra de Deus dirigida aos homens. Para começar, Jó se dá conta de que o sofrimento não é propriamente um corretivo, como se Deus o perdoasse e lhe desse em recompensa a cura com a condição de ele aceitar tal situação e confessar seu pecado. Um dos teólogos aventou a teoria de que o sofrimento tem função peda-gógica (Jó 33,14-25). Daí que não se trataria de perguntar pelo porque, mas para quê. Mas todas essas teorias não são adequadas porque não ajudam a sair da dialética judicial, do tema da retribuição e do círculo «pecado − sofrimento» em que Jó se debatia sem saída. À luz do dis-cernimento e da avaliação das tentativas de explicação, descobre-se que

5 Cf. L. Stadelmann, “Religiões bíblicas baseadas na Aliança Sagrada”, nesta revista: Encontros Teológicos, Ano 26, Fasc. 1, Nº 58, 2011, p. 93-106.

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não se chega a Deus pelo entendimento, mas pela adoração. É concedida ainda a Jó uma breve palavra para reconhecer sua insensatez e proclamar o conhecimento nascido do encontro: “Conhecia-te apenas de ouvido, agora, porém, viram-te meus olhos” (Jó 42,5). A essa altura, Jó se cala. Não mais reclama por seu sofrimento, nem continua defendendo sua inocência. Esta só lhe servia para que Deus o chamasse de justo. Por vias inesperadas, porém, Deus o curou do sofrimento, tornando-o justo ao dirigir-lhe a palavra.

O drama sagrado de Jó mantém de pé o sofrimento como problema teórico. O autor pretende dizer que devemos aprender a suportar, em tranquila convivência, esse e outros desígnios inescrutáveis de Deus referentes ao homem. Não obstante, revela muito sobre o sofrimento. Conhece-o como sintoma da efemeridade da natureza humana, e como vaga agressão do demônio. Também o reconhece como sinal de provação pela qual Deus aposta no homem que crê, como medida corretiva de erros e pecados, e como escola que educa para a maturidade. A figura de Jó não demonstra intenção explícita de sofrimento «pelos outros», como a do Servo do Senhor6 e a do Cristo (1Pd 2,21). Revela, não obstante, um processo luminoso e esperançoso. Tanto pode levar a resignar-se com a perdição como infundir ânimo para a busca da vida, e conduzir ao encontro com Deus como redentor (hebr. go’el). É este, precisamen-te, o processo da história da salvação. Jó percorreu com audácia o seu caminho, sofrendo, questionado pelos representantes da religião. Nisto consiste seu serviço e sua solidariedade pelos outros.

A conclusão a que chegou, por meio da reflexão teológica sobre os dados da razão da experiência e do diálogo, veio-lhe ao penetrar nos arcanos da Providência divina. Percebeu, por fim, que na sua pesquisa estava em jogo, além da inteligência, a abertura de coração, a liberda-de de espírito, o rigor moral. São atitudes religiosas elucidando que a sabedoria do homem vem de Deus, não é algo que sobe de baixo para cima, mas que desce de cima para baixo, uma luz de Deus que ilumina a inteligência. Por isso, Jó pode afirmar que seus olhos viram a Deus

6 Os quatro oráculos do profeta Isaías são profecias sobre o Messias-Mártir na figura sofrida do “Servo do senhor”: 1º Is 42,1-4; 2º Is 49,1-6; 3º Is 50,4-9; 4º Is 52,13-53,12. Esta figura do Messias como “Servo do senhor” se identifica como Messias-Mártir e se distingue de outras figuras do AT: Messias-Rei; Messias-Sacerdote; Messias-Profeta; Messias transcendente; Messias nacionalista.

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(Jó 42, 5), isto é, o Deus da interioridade, não da exterioridade7. Deus já não é como que objeto de sua reflexão e de suas palavras e, sim, o Pai amoroso com quem entrou em comunhão com humildade e penitência (Jó 42,2-6).

2 Tobias e sua família

Entre os livros bíblicos que tratam de temas de grande rele-vância na atividade pastoral das comunidades de fé encontram-se os da Literatura Sapiencial8. São livros cuja leitura leva o leitor por via sapiencial a descobrir uma dimensão da vivência da fé sem polêmica nem controvérsia, porque se visa desvendar uma mensa-gem divina que não surge por intuição da inteligência humana e, sim, por uma comunicação transmitida por via da vivência da fé entre pessoas que têm também uma missão pastoral. Vale dizer, a fé-experiência e a fé-prática precedem o encontro com Deus. Na lista de reflexão está a tese sobre a perfeição humana que precisa ser testada para comprovar sua autenticidade. Assim, na secção dos escritos sapienciais encontra-se o livro de Tobias, entre outros, que, no conjunto de temas existenciais dos judeus da diáspora9, aborda a temática da provação da fidelidade na fé. Nessa linha de vivên-cia da fé de quem está conturbado por tensões internas e externas,

7 A experiência espiritual de Jó, descrita aqui em termos de “ver a Deus”, não é a mesma do texto anterior (19,26-27) que trata da visão beatífica após a morte, quando Jó verá a Deus como redentor que ”aparecerá finalmente sobre o pó (do sepulcro)” (19,25). A diferença fundamental entre os dois textos está na experiência espiritual: no primeiro caso, trata-se da esperança escatológica (19,25-27); no segundo caso, o tema é a interação entre fé e experiência atual (42,5).

8 Cf. L. Stadelmann, “Roteiro de atividades pastorais na Bíblia: Livros sapienciais do AT e Diáconos no NT”, em Encontros Teológicos, Ano 24, Nº 54, Fasc. 3, 2009, p. 113-132. Jó: pastoral dos enfermos; Provérbios: pastoral da família; Eclesiastes: pastoral dos universitários; Eclesiásticos: pastoral da formação religiosa dos adultos; Sabedoria: pastoral da formação religiosa dos jovens; Rute: pastoral dos refugiados; Tobias: Curso dos Noivos; Judite: pastoral dos fiéis em ambiente hostil; Ester: pastoral da liturgia (instituição da festa judaica de Purim); Cântico dos Cânticos: pastoral da coesão social: o resultado dessa pastoral é a salvaguarda contra a divisão da religião israelita em seitas, tanto assim que durante todo o período da história do AT conservou-se uma unidade indivisível do Povo Eleito em sua adesão à Aliança sagrada até a vinda de Jesus Cristo. Não houve portanto uma separação entre a fé dos israelitas de Judá e a dos repatriados vindos da Babilônia.

9 O termo é uma transliteração do grego διασπορα − diáspora “dispersão” como lugar das comunidades judaicas fora da Palestina.

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acabamos de analisar acima a mesma temática no prólogo (cap. I e II) do livro de Jó. O autor do livro desenvolve esse assunto em forma dramatizada por vários protagonistas: Deus e Satanás, depois Jó e seus amigos que travam um diálogo em estilo de diatribe. No livro dos Salmos citamos o Sl 73 (72), tratando desse tema em ambiente de oração comunitária durante a celebração da liturgia no Templo. Teoricamente, são objeções à doutrina da retribuição, que relaciona a prosperidade dos seres humanos com a recompensa pela vida piedosa. Como questão existencial, o salmista exprime a perplexidade ante a escandalosa ostentação e prosperidade dos ímpios e a desventura dos justos, sob o olhar impassível de Deus. Todavia, o justo não abandona a causa de Deus para tentar a sorte dos ímpios. Sua fidelidade a Deus é descrita em termos de prática de ascese e de atos religiosos, como o rito de ablução para con-firmar o testemunho de inocência. Segundo a concepção do AT, é por genealogia que as gerações participam da salvação divina realizada na história. Através da opção de sair da neutralidade e enfrentar o problema da retribuição, revivido no íntimo da alma, e mediante a busca da presença de Deus no santuário, dá-se um desfecho positivo à crise de fé.

No livro de Tobias, aparecem em cena o pai de família e sua es-posa, o filho e seu anjo da guarda. O cenário é a cidade de Nínive, onde se desenrola o drama de Tobit. Este, que repentinamente ficou cego, por isso dependia totalmente dos cuidados de Ana, sua esposa, que lutava contra a provação da deficiência física do esposo e enfrentava o proble-ma da subsistência em meio à pobreza. Devido à ausência do filho no lar, coube à esposa tomar conta da casa e do enfermo, dispensando-lhe todo o atendimento sem previsão de recuperar a visão. Mas a proteção do anjo da guarda acompanhando o filho na viagem a Ecbátana, e a sua providência para recuperar a visão do pai, abriram um vislumbre sobre a atuação de Deus na história da salvação. O próprio anjo Rafael revela como Deus lida com os conflitos na vida dos homens: sem impor so-luções milagrosas ou oferecer saídas honrosas, Ele intervém por meio da sinergia, dando o início, a execução e o resultado da obra salvífica juntamente com a colaboração humana (Tb 12,12-20). Destarte, a soli-citude divina despertava as obras de caridade de Tobit; o amor a Deus suscitava o desvelo da mulher pelo marido; a espiritualidade inspirava

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a Tobias não só interceder a Deus pela cura da cegueira do pai, mas também, pela expulsão do demônio que martirizava Sara, sua noiva; a oração dos pais pela proteção do filho foi providencial no seu retorno à casa são e salvo.

O diálogo inter-religioso se enriquece com a troca de ideias base-adas no livro de Tobias. Logo de início, convém situar o tema “na saúde e na doença” no contexto do livro, cujo objetivo é servir como texto base do «Curso dos Noivos». Os assuntos apresentados para reflexão em grupo constam na lista dos requisitos a serem estudados pelos noivos e pelos pais. Chama nossa atenção a encenação dramática do tema “na saúde e na doença”. Nisso se ressalta o modo pedagógico de abordar questões vitais da vivência humana: temas existenciais da vida são ensinados por mestres (pais e educadores) que primam pela qualidade de modelo e, não meramente por adultos, que falam da boca para fora, sem vivência interna. Exemplos vivos, como modelos de ensino, são Tobit, o pai do noivo, e Ana, sua mulher, além de Tobias e Sara, ambos servindo de colunas da comunidade dos fiéis.

3 O clamor dos oprimidos nos Salmos

A linguagem do sofrimento nos Salmos quer dar uma opor-tunidade para o coração poder se desabafar diante de Deus espe-cialmente na celebração litúrgica, a fim de convidar os fiéis para fazer suas as palavras dos oprimidos e dirigi-las a Deus10. A prece dos Salmos serve para formular diante de Deus a experiência do sofrimento de muita gente, e expressar a solidariedade com eles, em uma linguagem comum. O clamor dos oprimidos, a tortura dos abandonados, a dor dos enfermos, a amargura dos frustrados, tudo converge para o texto dos Salmos, direcionando todas as queixas a Deus. É importante notar, porém, que o protagonista dentro do Salmo não é um auto-retrato do salmista e, sim, é porta-voz do clamor de gente sofrida apelando ao Senhor, porém sem acesso à liturgia sagrada. Era preciso, portanto, garantir-lhes o acesso à presença de Deus, pois é ali que Ele se torna presente na oferta

10 Convém lembrar que a oração comunitária inclui preces que os fiéis facilmente have-riam de esquecer, como p.ex. agradecimento pelo auxílio divino, louvor a Deus como Criador e Benfeitor, sufrágio pelos falecidos, perdão dos pecados, intercessão pelos necessitados e pela harmonia entre os povos, e salvação da humanidade etc.

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do sacrifício litúrgico para ratificar a Aliança sagrada, tanto no AT como no NT:

O Senhor está próximo de todos os que o invocam, de todos os que o invocam com sinceridade.Ele cumpre os desejos dos que o adoram11, escuta seu clamor e os salva (Sl 145,18-19).

A função dos fiéis participando da liturgia comunitária é valorizada pelo fato de que seu apelo na oração tem repercussão na vida da comu-nidade, tanto na ecologia humana como na ecologia espiritual:

Não são os mortos que louvam o Senhor, nem os que descem à região do silêncio.Mas somos nós que bendizemos o Senhor, desde agora e para sempre (Sl 115,17-18).

O estilo marcante dos Salmos de súplica não tem paralelo em ou-tros textos da Bíblia, porque os salmistas dramatizam a prece confiante do homem aflito, e sua fé em Deus. Nisso se diferenciam da linguagem de sofrimento nos livros proféticos, onde os autores sacros apresentam os problemas existenciais dos cidadãos do Povo Eleito. Surge a pergunta pelo motivo de o salmista formular a prece em forma poética, ao passo que a Oração Eucarística e os outros textos litúrgicos estão redigidos em prosa. A razão desse motivo reside na peculiaridade da cultura dos semitas, que escreviam em poesia assuntos importantes para a existência humana. Além disso, cânticos religiosos destinados às gerações futuras estavam em poesia. Igualmente, a intuição poética assume vivências alheias e converte-as em sua própria criação. Por fim, poemas prestam-se à recitação, ao passo que textos em prosa destinam-se à leitura.

A prece dos enfermos nos Salmos não se reduz, porém a um desa-bafo do coração, porque repercute na vivência da fé de toda a comunidade do Povo Eleito. É que o clamor dos oprimidos sobe até Deus como apelo premente pela presença atuante de Deus na liturgia e na vida. Com espe-cial atenção à ação divina na vida humana, longe do Templo e da liturgia sagrada. É ali, fora do Templo, que os fiéis têm que exercer a atividade cotidiana, enfrentando os problemas de um ambiente secularizado. Já era

11 Os fiéis rendem a homenagem de louvor a Deus pela “adoração” na liturgia. O salmista usa o termo “temer”, já que o hebraico não tem o verbo “adorar” e por isso toma emprestado do cerimonial da corte a atitude reverencial dos súditos diante do soberano.

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conhecido de todos que a Bíblia celebra um privilégio único na história da revelação divina na história de Israel:

Pois qual é a nação que tem deuses tão próximos, como o Senhor nosso Deus, sempre que o invocamos? (Dt 4,7).

Essa presença precisava ser confirmada em termos de uma presença atuante de Deus junto aos fiéis, precisamente quando sentiam sua ausência por causa da doença e do ostracismo da ce-lebração litúrgica, já que os enfermos não tinham voz nem vez nos átrios do Templo. Pois os teólogos do AT viam em todo sofrimento a força da morte em ação. A pergunta pelo sentido, a pergunta por quê? brota dessa ameaça que a vida sadia vê no dinamismo da morte atuante através do sofrimento. A pergunta só pode ser dirigida a Deus através do sofrimento, e se não for a Ele, a quem mais? Em cada «por quê» de um sofredor, ferido, desesperado, marginalizado, o homem lança a pergunta para a altura do Infinito.

Lembremos também que os Salmos propõem uma espiritua-lidade dinâmica e não passiva. Pois a eficácia da salvação divina, revivida no contexto cultual, é transportada para o ambiente extra-cultual, já que os Salmos expressam o pedido a Deus para que acompanhe os fiéis com sua ajuda na vida concreta, e venha em auxílio dos necessitados e oprimidos, distantes do Templo:

Feliz quem cuida do desvalido! No dia da desgraça, o Senhor o libertará.O Senhor vela por ele e o conserva em vida, e ele é tido, na terra, por bem-aventurado. – Tu não o entregas à sanha dos seus inimigos –.O Senhor o assiste em seu leito de enfermidade. – Na doença tu lhe amacias a cama (Sl 41,2-4).

O salmista trata da situação de bem-aventurança prometida ao homem caridoso, quando, em desgraça, perigo ou enfermidade, reza pela intervenção de Deus. A prospectiva dessa segurança na vida faz com que se encare com confiança o futuro incerto, valorizando-se o presente na fruição da vida como dom divino.

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O apelo para Deus atender as preces do homem aflito inclui também os sentimentos de tribulação daquele que está oprimido pelo sofrimento:

Anotaste minha vida errante: recolhe em teu odre minhas lágrimas! Não consta tudo em teu livro? (Sl 56,9)

O motivo de recolherem as lágrimas, derramadas na aflição, visa expressar a compunção e vivo anseio por manter-se fiel a Deus, supor-tando as mais diversas agruras. Rezando com gemidos em meio à dor intensa e, desfazendo-se em pranto, com lágrimas caindo gota a gota num odre, simboliza o gesto de alguém que quer apresentá-las como evidência e comprovante do heroísmo em guardar fidelidade a Deus. Referências aos atos humanos realizados em vida constam em vários livros a serem abertos no juízo final, entre os quais está o registro das obras, boas ou más, de cada pessoa (Ap 20,12). É uma maneira sugestiva de inculcar, na mentalidade dos fiéis, um ensinamento de validez perene sobre a responsabilidade de seus atos perante Deus. É que os atos cometidos acompanham a pessoa durante a vida inteira, mudando-se, porém, a avaliação, dos que foram perdoados por Deus.

O oráculo divino proferido no Templo tem sua confirmação de autenticidade na história de Israel:

Deus, em seu santuário, falou: “Triunfante, partilharei Siquém e lotearei o vale de Sucot.Meu é Galaad, meu é Manassés; Efraim é o capacete de minha cabeça; Judá, o meu cetro;Moab é a bacia em que me lavo; sobre Edom lanço minha sandália. Filisteia, levanta, pretensiosa, a voz contra mim!” (Sl 60,8-10).

Esse oráculo de vitória, vaticinado em tempos idos, tem a promessa de sua concretização no futuro. Sua validez será demonstrada no presente, apesar da aparente prova em contrário, fornecida pela situação de Israel com reduzido espaço de autonomia territorial. Deus deu a terra de Canaã em posse perpétua ao povo de Israel, sendo o reino do Norte o capacete, e o reino do Sul − pela dinastia de Davi, com sede em Jerusalém − o cetro da nação israelita. A reconquista das províncias separadas − Moab, Edom e Filisteia − e de outros territórios, de um e outro lado do rio Jordão,

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outrora ocupados por Israel, continua sendo a meta do povo israelita, ainda que a geração atual falhasse em concretizá-la. O protagonista é Deus em pessoa que intervém na história.

O Salmo 65(64), de ação de graças, presta homenagem a Deus no Templo e expressa a gratidão pela munificência divina na vida do trabalho agrícola:

Visitas a terra, irrigando-a e enriquecendo-a com prodigalidade;com divinal ribeiro, cheio de água, lhe preparas os trigais. Assim a preparas:regas seus sulcos, nivelas suas glebas, com chuvas a amoleces, abençoas o crescimento.

Coroas o ano com teus benefícios, e de teus rastos emana a fartura.Da estepe emanam pastagens, e as colinas revestem-se de alegria.As campinas cobrem-se de rebanhos, e os vales vestem-se de trigais, ecoam vozes jubilosas e cânticos (Sl 65,10-14).

O salmista não tem por objetivo romantizar a sociedade agrária e, sim, quer conscientizar os fiéis a levar em conta o desígnio de Deus na natureza como também no trabalho humano. Sinais da munificência divina manifestam-se na abundância de chuvas, fertilidade do solo e fartura de colheitas, que constituem os fatores indispensáveis para a subsistência do lavrador, cuja cultura e vida estão arraigadas na terra; para a população urbana, há fatores análogos precisando da bênção divina para lhe assegurar o sustento. Tanto as comunidades de trabalho como os grupos de vida têm um vínculo imanente com algo que os transcende: a união com Deus. A Ele os homens se elevam, quando se reúnem na comunidade de fé para celebrar a liturgia do louvor divino.

O Salmo 68 (67) é um hino solene que evoca a epopeia triunfal de Israel, entoado na solene procissão da Arca da Aliança. A atuação de Deus é descrita em termos de epifania cultual, que evoca a marcha dos israelitas pelo deserto, liderados pela coluna de nuvem, que, como símbolo da presença de Deus no Êxodo, pairava sobre a Arca. A citação da palavra de comando de Moisés,

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pondo em marcha o povo de Israel, pode exprimir desejo de triunfo divino ou desafio aos inimigos (Nm 10,35). Entretanto, a solene procissão, acompanhada pela narração dos episódios históricos de salvação, não tem por objetivo apenas evocar o passado e, sim, tornar sempre presente o fato da libertação da escravidão e do en-riquecimento de dons salvíficos, como ação divina sempre atual, para suscitar nos fiéis da procissão, a experiência existencial da presença de Deus na vida.

A prece do Salmo 74,3 é formulada como pedido insistente para que Deus venha aproximar-se das ruínas da cidade de Jerusa-lém, destruída após a invasão dos exércitos babilônios (em 586 aC.). Após a destruição do santuário, havia apenas um local provisório para acolher os fiéis, reunidos em oração:

Dirige teus passos para estas eternas ruínas! O inimigo tudo devastou no santuário (Sl 74,3).

A vinda de Deus para intervir na vida humana acontece também no tribunal de condenação dos ímpios:

Deus é que vem fazer justiça: a um rebaixa, a outro eleva.O Senhor tem na mão uma taça, cujo vinho espuma, cheio de mistura;dele dá a beber: sorvem-no, até à borra, bebem-no todos os ímpios da terra (Sl 75,8-9).

Trata-se de uma advertência profética, dirigida aos fiéis para não aguardarem em vão uma solução vinda dos homens, onde quer que residam, perto ou longe, pois somente Deus é a autoridade suprema dos acontecimentos da história e supremo Juiz da huma-nidade, e por isso dele se deve esperar uma intervenção salvífica. À sentença judicial seguirá sua execução, sem direito à apelação a outra instância. Quanto à “taça de vinho”, estendida ao supliciado, trata-se de um procedimento judiciário, então em voga, indicando a imediata aplicação da pena capital.

O tema da presença atuante de Deus junto aos fiéis é mencionado nos Salmos não só na vinda de Deus como Salvador do Povo Eleito, mas também no contexto histórico da calamidade nacional, quando o Templo

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de Jerusalém foi destruído. Os Salmos de protesto (Sl 44; 80; 89) são um lamento coletivo contra a atuação de Deus como causa principal da destruição, ao passo que os exércitos babilônios eram mera causa instrumental:

Entregaste-nos como ovelhas de abate, entre as nações nos dispersaste (Sl 44,12).Derrubaste todas as suas muralhas, desmantelaste suas fortalezas.Saquearam-no todos os transeuntes, ele tornou-se o ludíbrio dos vizinhos.Exaltaste a destra dos seus adversários e alegraste todos os seus inimigos.Embotaste o fio de sua espada e não o apoiaste na batalha (Sl 89,41-44).

O objetivo da iniciativa de Deus era acabar com a vinculação entre a religião do Povo Eleito e o Estado de Israel, eliminando as estruturas do Estado teocrático da nação israelita que dava respaldo e sustentação ao nacionalismo judaico. E já que os habitantes de Judá não queriam de modo algum que a religião se emancipasse do Estado, o próprio Deus de Israel tinha de intervir para fazer a separação entre a religião do Povo Eleito e Estado, levando os judaítas ao Exílio da Babilônia12. Pois desde sempre estava previsto na história da salvação que a religião bíblica era destinada a tornar-se a religião do Povo de Deus entre todas as nações do mundo.

Conclusão

As tradições milenares das religiões bíblicas, sem excluir as terapias orientais de aliviar as dores corporais e psíquicas, interpretam o sofrimento com sua sabedoria peculiar. A Igreja possui − desde sua tradição mais venerável − “um sacramento dos enfermos”, expressão litúrgica da comunidade cristã em solidariedade com os que sofrem. Mais significativa em todas as situações dolorosas da humanidade é a vida de Jesus Cristo que “tomou as nossas enfermidades e sobrecarregou-

12 Cf. O Coro dos Escravos Hebreus, no terceiro ato da ópera “Nabucco” de Giuseppe Verdi (Va, pensiero, sull’ali dorate, “Vai, pensamento, sobre asas douradas”), que se inspirou no texto deste Salmo e se tornou uma música-símbolo do nacionalismo italiano da época. Cf. <http://www.youtube.com/embed/G_gmtO6JnRs>.

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se com os nossos males” (Mt 8,17). É o homem das dores porque é o libertador de todo sofrimento. A experiência da fé, quando realmente verificada na vida, fundamenta-se na esperança do Ressuscitado: “No mundo − diz-nos Jesus − haveis de ter aflições. Coragem! Eu venci o mundo” (Jo 16,33).

Endereço do Autor:Colégio Catarinense

Rua Esteves Júnior 711, Caixa Postal 135

CEP 88015-130 Florianópolis, SCE-mail: [email protected]

Encontros Teológicos nº 61Ano 27 / número 1 / 2012, p. 135-143.

Resumo: A Pastoral da Saúde(PS) em SC apareceu para nós como uma estrela de luz conectada à grande fonte que é o desejo de Jesus, de “vida em abun-dância para todos”. Muitas pessoas e grupos se apaixonaram pela PS a partir de um incentivo da comunidade ou da própria igreja. A idéia de garantir saúde de qualidade para todos alcançou agentes das comunidades, profissionais e avós que viram na PS um novo jeito de redescobrir os caminhos da natureza. O resgate do saber popular trouxe nova motivação para garantir o grande sonho de Jesus Cristo. O propósito da soma de forças se expressa numa frase: “a Maria das garrafadas (representando todos os movimentos populares da saúde) e o Doutor pesquisador devem andar de mãos dadas”.

Abstract: The Health Pastoral Care (HPC) in Santa Catarina appeared to us as a star of light connected to the great fountain which is Jesus’ desire of “life in abundance for all”. Many people and groups fall in love of the HPC because of an encouragement of the community or of the Church. The idea of warranting health of quality for all impressed agents of the communities, professionals and grand parents, who saw in the HPC a new way of rediscovering the true course of nature. The recovering of popular knowledge brought new motivations to warrant the great dream of Jesus Christ. The purpose of congregating forces is expres-sed in this motto: “The Mary of the bottles (representing all the popular health movements) and the searcher Doctor should walk together, hand in hand”.

A Pastoral da Saúde de Santa Catarina e a sua caminhadaMaria Eni Machado Vieira*

Lúcia Herta Rockenbach**

* Maria Eni Machado Vieira, Coordenadora Estadual da Pastoral da Saúde 2008-2011, atualmente atuando na PS e na Cáritas de Jaguaruna, SC.

** Lúcia Herta Rockenbach, Religiosa, é Assessora da Pastoral da Saúde no Regional Sul IV – SC.

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A Pastoral da Saúde de Santa Catarina e a sua caminhada

Introdução

A Pastoral da Saúde (PS) em Santa Catarina apareceu para nós como uma estrela de luz, conectada a grande fonte, que é o desejo de Jesus: “vida em abundância para todos”. Muitas pessoas e grupos se apaixonaram pela PS a partir de um incentivo da comunidade ou da própria igreja. A idéia de garantir saúde de qualidade para todos alcan-çou agentes das comunidades, profissionais e avós, que viram na PS um novo jeito de redescobrir os caminhos da natureza. O resgate do saber popular trouxe nova motivação para garantir o grande sonho de Jesus Cristo. O propósito da soma de forças se expressa numa frase: “a Maria das garrafadas (representando todos os movimentos populares da saúde) e o Doutor pesquisador devem andar de mãos dadas”.

A PS está fundamentada em três dimensões básicas: solidária, comunitária e político-institucional. Essa é a organização. Inclusão, nas três dimensões, é o resultado de vários anos de reflexão e fundamentação. Desde os tempos de Jesus Cristo, a dimensão solidária tomou um novo rumo. Não mais os leprosos, nem outros punidos pela sociedade por causa de suas doenças, podem ser discriminados. Jesus amava os doentes. Por isso, disse ao paralítico: “Levanta-te e caminha!” Entendendo esta motivação, este novo olhar, a PS pôs-se a caminho, correndo riscos e sendo sabatinada por aquelas pessoas que precisavam enfocar a saúde como um dom, e não mais unicamente como fonte de lucro.

Durante vários anos, os questionamentos eram fortes, uma vez que contrariavam a situação de opressão em que se encontrava grande parte do povo. A firmeza, e a compreensão do projeto de Jesus Cristo, garantiu os resultados que hoje percebemos, movimentando muito as pessoas em torno do tema da CF-2012: Fraternidade e Saúde Publica. Um material riquíssimo encontra-se à disposição de quem quiser ajudar a divulgar a saúde em seu pleno conceito: não só a “ausência de doença”, mas sim o total bem-estar físico, mental, social e espiritual”.

Inicialmente, em SC, a OS articulou-se querendo ajudar a re-solver questões práticas de atendimento às pessoas prejudicadas pelas enchentes de 1986. Vencida essa etapa, foi constituído um projeto que desse continuidade à capacitação de pessoas e comunidades para tenta-rem resolver os seus problemas de forma organizada e contínua. Com a ajuda de organizações locais e estrangeiras e com o apoio da Igreja, a PS conseguiu inserir a capacitação de pessoas e grupos para defini-

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Maria Eni Machado Vieira e Lúcia Herta Rockenbach

tivamente integrarem políticas públicas ainda incipientes, que haviam de provocar novas mudanças no enfoque e na abrangência das ações de saúde. As terapias complementares foram tomando corpo e facilitando a reintegração das pessoas na sua saúde plena.

A capacitação de agentes da PS tornou-se uma prioridade, uma vez que toda a motivação, incentivo, firmeza de caminhada, organização de grupos, era baseada na informação colhida nas próprias famílias das comunidades. Aliada à pesquisa de técnicos, que constataram a seriedade e gravidade dos problemas de saúde da população. Aliando o desejo de Jesus Cristo, de ver todas as pessoas com “vida em abundância”, como uma realidade constatada, optamos por nos fazer assessorar por técnicos da área da saúde, para que ajudassem a elencar as reais causas de não podermos vivenciar o nosso direito à saúde.

A PS tem participado de conselhos de saúde, e conferências de saúde, em todos os níveis: municipal, estadual, nacional. Agora, já com a compreensão da importância de “saúde para todos”, conforme preconiza a Constituição Federal do Brasil, de 1988. Segundo o nosso entendimento, toda essa compreensão, participação e conhecimento, são resultados de esforços das lideranças constituídas, e de pessoas que vêem na saúde um conceito novo de participação popular efetiva. A ajuda financeira recebida foi muito bem calculada e priorizada, segundo o que as comunidades opinavam sobre essas prioridades.

O grande motivador dos encontros das pessoas foi a centralidade nas terapias alternativas, como saída própria para os agravos da saúde. Através de plantas medicinais e outras terapias alternativas, chegamos à conclusão de que “a saúde se difunde melhor na terra” com a participação consciente da comunidade, a partir do conhecimento que lhe é próprio e que se torna consciente. Buscando as informações na sabedoria popular, técnicos da área da saúde se convenceram de que é um caminho seguro pesquisar a partir do que já existe na tradição.

No momento em que as comunidades se sentiram apoiadas por grupos técnicos de algumas universidades, já estavam dispostas a fazer a integração dos saberes como forma de avançar com bastante segurança nos caminhos da saúde. A cada grupo que se capacitava, foram realizados encontros em nível de diocese, em nível regional, e em nível nacional. Santa Catarina, como tem uma história de mais de 25 anos, por um bom período assumiu a coordenação nacional. Hoje, continua integrando a

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A Pastoral da Saúde de Santa Catarina e a sua caminhada

equipe, por saber que pode continuar contribuindo na evolução do co-nhecimento e das práticas populares da saúde.

Vários agentes da PS organizaram pequenos centros, onde podem produzir conhecimentos e encontrar pessoas que ajudam, com sua sabe-doria centenária, a levar em frente o projeto e inovar conforme a dispo-nibilidade do grupo. As assessorias são buscadas, com responsabilidade e de forma seletiva, conforme as ansiedades emergentes. Na medida em que evoluímos na integração de saberes, a integração das pessoas foi-se tornando mais firme.

A articulação da PS não se deu apenas nos grupos de seus agentes. Esta articulação foi além e integra outros movimentos populares, fóruns, onde se discutem os temas de saúde em todos os níveis, bem como o acompanhamento de grupos da Pastoral da Criança, a quem tributamos o maior reconhecimento no atendimento à criança e à família. Outros grupos de voluntários também se articulam em vários momentos, como os que ajudam em hospitais e outras instituições de saúde e reconhecem os seus trabalhos como grande contribuição ao bem-estar de muitas pes-soas. Como bons vizinhos, nós todos nos colocamos à disposição para ajudar onde for preciso: acompanhando a família de doentes internados, alternando plantões com familiares internados, colocando a condução à disposição de quem precisa de transporte, bem como na doação de órgãos. Vale salientar que, em muitas oportunidades, os agentes da PS aceitam convites para falar das intenções e das ações de saúde possíveis nas comunidades.

Uma necessidade sentida foi o registro dos conteúdos e aconteci-mentos da PS. Assim, começamos trabalhando com apostilas, filme fixo, cópias xerográficas e demonstrações com plantas medicinais associadas. Em seguida, elaboramos pequenas cartilhas com propostas de treinamen-tos distribuídos em cronogramas. Em jornadas catarinenses de plantas medicinais, fizemos apresentações ilustradas e já com pequenos filmes em cena. Ato contínuo, constituímos “tardes de saúde”, que ainda hoje permanecem e são uma proposta muito bem aceita pelas comunidades.

Em nível regional de SC, elaboramos treinamentos, capacitações, aprofundamentos, para alcançar o grande objetivo da inserção nas políti-cas públicas. O apoio da equipe Regional foi de fundamental importância nesta caminhada integrativa, inclusive no sentido de fornecimento de material. Nos últimos anos, foi produzido muito material escrito e que serve de apoio para a continuidade de todo o processo. Citamos como

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Maria Eni Machado Vieira e Lúcia Herta Rockenbach

exemplo: o “Manual do agente da PS” – hoje, na sua edição revisada e ampliada; “Leis que regem o SUS, Plantas Medicinais no SUS e Lei Maria da Penha”; “Promoção e Educação para a Saúde” – Dimensão Comunitária; “Participação no Controle Social da Saúde” – subsidio de qualificação de conselheiros; livro de cantos próprio: “Cuidando da Vida, Evangelizando e Cantando”.

A contribuição da PS se faz presente também em materiais que atingem outros setores. Exemplo disso é a ajuda na elaboração de material de reflexão para grupos de família, movimentos de mulheres, câmaras municipais onde se elegeram agentes da PS como vereadoras. Pessoas e grupos da PS continuam ajudando na produção de material sobre plantas medicinais, alimentação adequada a cada idade, mulheres em movimento que mudam o mundo, material integrado à proteção do planeta, orientações científicas sobre nutrição e botânica, principalmente sugerindo esquemas aprovados pela ciência e fundamentados pelo co-nhecimento popular. A grande fonte inspiradora de todos esses registros de atividades, convicções e mística, se fundamentam na Palavra de Deus que nos é dirigida através da Bíblia: “Que todos tenham vida, e a tenham em abundância”(Jo 10,10)

Desde o início da PS, a CNBB olha com carinho e estima as pessoas que se dedicam a “mais saúde e mais vida para todos”. Por insistência da própria CNBB-Pastoral Social, os Regionais foram incentivados a implantarem a PS em seus projetos de evangelização. Em SC, os avanços, os entraves e as lutas populares sempre serviram de novas energias para a caminhada. Somo gratos a todos que se colocaram à disposição para coordenar a PS em seus vários níveis. Em nosso Estado, a PS centrou também forças na saúde comunitária através de atendimentos à saúde, com grupos de estudos e capacitação de pessoas para conduzirem o pro-cesso de saúde nas suas residências. Em várias dioceses de SC, grupos de interesses se juntaram e começaram a produzir recursos caseiros, por exemplo: pomadas, sabonetes, sabões, xampus, cremes, xaropes, vinagre de maçã, garrafadas, multimisturas, transformações de sementes para serem absorvidas pelo organismo, etc.

Numa diocese, o grupo construiu um local de hospedagem, com refeições e de encontro para também serem utilizados por outras dioce-ses. Esta casa passou a ser ecumênica, como é próprio da PS, e acolhe também grupos de jovens para sua formação e informações sobre saúde.

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A Pastoral da Saúde de Santa Catarina e a sua caminhada

Com apoio de técnicos, serve de campo de estágios para outras insti-tuições afins.

O que move a PS a realizar todo esse trabalho é a compreensão de que a saúde é um momento forte de evangelização. Não só nos momentos em que todos estamos bem, mas também quando a vida é frágil, ameaçada, e quando é necessário preparar a passagem desta vida para a saúde definitiva. Desde longa data, a igreja se preocupou com a pastoral dos enfermos. A dimensão comunitária nasceu de necessidades sentidas pelas comunidades e, mais ainda, a dimensão político-institucional fez acontecer a ampliação da visão de saúde. A mística da PS foi a motivação original para que o pensamento de Jesus Cristo fosse tão forte nesta luta organizada. Então, se hoje, o mesmo Jesus caminhasse neste mundo como homem e Deus, olharia com carinho por todos aqueles que querem ser do bem. Os agentes da PS seriam os discípulos bem próximos do projeto evangelizador. O Deus bom se revelando para as pessoas e nas pessoas.

Os desafios continuam, enquanto ainda não foram alcançados todos os integrantes da família. As mulheres sempre mais tomam a dianteira no cuidado dos seus. Os homens têm ainda dificuldade de se integrarem nesta caminhada por mais saúde para todos. Eles, porém, não podem continuar morrendo devagarzinho. É importante para todos que também eles assumam os programas próprios e se integrem em caminhos mais seguros de longevidade.

Um outro desafio é termos representantes capacitados em todos os Conselhos de Saúde e outros Conselhos que garantem o direito à saúde de forma abrangente. Gostaríamos de inserir neste texto algumas citações do Texto-Base da CF 2012 e de revistas publicadas pela Fiocruz. Estes textos servem também para ampliar as reflexões em nível de serviço de saúde pública, e grupos que queiram aprofundar esta visão:

Derrotas para a saúde1

O Senado desferiu dois duros golpes na Saúde e no controle social: a tão aguardada regulamentação da Emenda Constitucional 29 foi votada (17/12) sem o compromisso da União de destinar 10% dos seus recursos à Saúde, e a incidência da Desvinculação das Receitas da União (DRU) sem a exclusão do setor Saúde ficou mantida (8/12). A EC 29 define as

1 Revista RADIS, janeiro de 2012.

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Maria Eni Machado Vieira e Lúcia Herta Rockenbach

aplicações mínimas do Governo Federal, Estados e municípios, à Saúde. Na votação, após intensa barganha do governo com os senadores, protago-nizada pela ministra das Relações Institucionais, Ideli Salvati, foi retirada do texto a vinculação dos 10% das receitas brutas da União, prevista no projeto original do senador Tião Viana (PT-AC), em 2007, e pelo depu-tado Roberto Gouveia (PT-SP), em 2003. A União continuará destinando à Saúde o valor aplicado no ano anterior, acrescido da variação nominal do produto Interno Bruto (PIB) dos dois anos anteriores. De imediato, isso representará menos R$ 14 bilhões para Saúde, em 20/12. Estados e municípios mantêm-se com os percentuais previstos na proposta original da EC 29, 12% e 15%, respectivamente. Do texto da EC 29, saiu, ainda, a possibilidade de se contar com a criação da Contribuição Social para Saúde (CSS). (...) Ele (Alexandre Padilha, Ministro da Saúde) informou que os municípios têm destinado, em média, 20% de seus recursos para a saúde, 5% a mais, e aos Estados – ainda que alguns não cumpram com o mínimo estabelecido, vêm cabendo mais que 12%.

Um aspecto positivo de a EC 29, finalmente, ter sido regulamen-tada, é que ficou definido o que é, de fato, gasto em Saúde. Os recursos só poderão ser utilizados em ações e serviços de “acesso universal”, “não se aplicando a despesas relacionadas a outras políticas públicas que atuam sobre determinantes sociais e econômicos, ainda que incidentes sobre as condições de saúde da população”, diz o texto. Fica proibido contabilizar em saúde gastos com limpeza urbana, saneamento, merenda escolar e pessoal inativo, por exemplo.

Foi excluída do texto, ainda, emenda vinda da Câmara, que retirava da base de cálculo dos Estados os recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). Se fosse mantida, o SUS perderia outros R$ 7 bilhões. São medidas importantes, mas que não minimizam a agressão ao setor Saúde e ao SUS, provocada pelas votações de dezembro de 2011.

Contribuições recentes da Igreja no Brasil para a Saúde Pública2

26. Em mais uma manifestação da preocupação da Igreja com a realidade social da população, em 1981, a Campanha da Fraternidade

2 Texto-Base da CF 2012, p. 22, nn. 26-29.

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A Pastoral da Saúde de Santa Catarina e a sua caminhada

apresentou o Lema “Saúde para todos”. A Campanha contribuiu para a reflexão nacional do conceito ampliado de saúde. Na época, o Papa João Paulo II escreveu, em sua mensagem para a Campanha, que a boa saúde não é apenas ausência de doenças: é vida plenamente vivida, em todas as suas dimensões, pessoais e sociais. Como o contrário, a falta de saúde, não é só a presença da dor ou do mal físico, há tantos nossos irmãos enfermos, por causas inevitáveis, a sofrer, paralisados, “à beira do caminho”, a espera da misericórdia do próximo, sem a qual jamais poderão superar o estado de semimortos (João Paulo II. Mensagem ao povo brasileiro por ocasião da abertura da CF 1981).

27. A discussão sobre a saúde foi retomada na CF de 1984, com o tema Fraternidade e Vida e o lema “Para que todos tenham vida”, partindo da citação bíblica: “Pois eu estava com fome, e me destes de comer,... doente, e cuidastes de mim” (Mt 25,35-36). Essa Campanha buscou ser um sinal de esperança para as comunidades cristãs e para todo o povo brasileiro, a fim de que, em sua panorama de sombras e de atentados à vida, sentissem a luz de Cristo, que vence o egoísmo, o pecado e a morte, reforçando os princípios norteadores da valorização da vida, do início até seu fim.

28. Tais iniciativas constituem marcos importantes da ação da Igre-ja, tanto no campo da saúde como no da saúde pública, em nosso país. Por ser amplo o leque dessas atividades, com satisfação identificam-se ações pastorais, próprias do múnus eclesial, que resultam em contribuições da Igreja para o cumprimento das “Metas do Milênio”, com as quais o governo brasileiro comprometeu-se perante a comunidade internacional, mobilizando diretamente vários de seus setores.

29. No início da década de 1990, a ONU (Organização das Na-ções Unidas) estabeleceu oito (8) metas de melhorias sociais a serem implementadas pelos países com deficit nesses indicadores. As “Metas do Milênio” tornaram-se referências para as ações sociais do governo e de entidades civis e religiosas, em prol da melhoria das condições de vida das populações. A saúde não só está contemplada entre as metas, como também ocupa o centro de suas atenções, com objetivos estipulados para serem alcançados até o ano de 2015. Desde então, são envidados esforços para a consecução dos objetivos, resultando em ações concretas de governos, Igreja e Sociedade. A seguir, são elencadas as “Metas do Milênio”.

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Maria Eni Machado Vieira e Lúcia Herta Rockenbach

Reduzir pela metade o número de pessoas que vivem na miséria e passam fome.Educação básica de qualidade para todos.Igualdade entre os sexos e mais autonomia para as mulheres.Redução da mortalidade infantil.Melhoria da saúde materna.Combate a epidemias e doenças.Garantia da sustentabilidade ambiental.Estabelecer parcerias mundiais para o desenvolvimento.

Sirva de conclusão do artigo o lembrete: “Sem a participação da comunidade não há SUS humanizado, nem atendimento de qualidade nos serviços de saúde”.

Endereço da Autora:[email protected]

Encontros Teológicos nº 61Ano 27 / número 1 / 2012, p. 145-154.

Resumo: O Hospital Universitário (HU) da Universidade Federal de Santa Ca-tarina (UFSC) procura atender às necessidades religiosas de seus pacientes, treinando pessoas para serem capazes de oferecer uma benéfica direção espi-ritual situada no contexto do tratamento desses doentes. Foi assim que surgiu o Núcleo de Atendimento Espiritual do HU. Esse Núcleo trabalha em harmonia com outras organizações existentes no HU, como a Associação dos Amigos do Hospital Universitário, criada em 1984. Entende-se que uma equilibrada atenção aos doentes supõe a necessidade e o direito à assistência religiosa, preparada e planejada sem entrar em debates proselitistas, mas providenciando informa-ção sobre as religiões, e atendendo de tal modo os doentes que eles possam praticar suas crenças religiosas.

Abstract: The University Hospital of the Federal University of Santa Catarina (UFSC) seeks to attend to the religious needs of its patients, training people so they can be able to offer a beneficial spiritual direction that is within the context of the treatment of infirmity of its patients. This was how the Spiritual Care Nucleus of the University Hospital arose. This Nucleus works in harmony with other existing organizations in the University Hospital, like the Friends Association of the Uni-versity Hospital formed in 1984. It is understood that a balanced attention to the ill presents the need and the right to religious assistance, prepared and planned without entering into religious debates or providing information about religions, seeking to attend to the infirm so they can practice their religious creeds.

Atendimento espiritual no Hospital Universitário, HU, de FlorianópolisLuiz Antonio Frigo*

* O autor, da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, é Mestre em Ciências da Educação (Roma, 1993), e atualmente é Vigário Paroquial da Santíssima Trindade em Florianópolis, coordena a Pastoral Universitária da UFSC e é Diretor Espiritual do HU.

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Atendimento espiritual no Hospital Universitário, HU, de Florianópolis

O Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Cata-rina (UFSC) e a Associação Amigos do Hospital Universitário (AAHU) estão em sintonia com o clamor da Igreja quando diz: “a grandeza da humanidade determina-se essencialmente na relação com o sofrimento e com quem sofre”1, e com a Campanha da Fraternidade de 2012 – “Que a saúde se difunda sobre a terra” (Eclo 38,8).

Os orientadores espirituais e os voluntários da AAHU, diante da Campanha da Fraternidade 2012, sentem-se muito à vontade pelo fato de sempre terem priorizado em toda a sua atividade a pessoa do doente, levando em consideração a sua integralidade.

A AAHU, para atender de maneira profissional, adequada e abran-gente o cuidado espiritual do doente, confiou a Maria Anice da Silva e a Maria de Lourdes Silva Cardoso a incumbência de elaborar um projeto de atendimento espiritual denominado NUCE (Núcleo de Cuidado Es-piritual do HU), o qual sintetiza de maneira orgânica a fundamentação e as atividades desenvolvidas ao redor e dentro do HU.

Um breve histórico da AAHU

Em 1984, no Hospital Universitário, surgiu o Grupo de voluntárias São Camilo de Lellis, formado por senhoras da comunidade, lideradas pela Sra. Cora Coelho Duarte Silva e pelo Padre Frei Carlos Benetti, Capuchinho da paróquia da Santíssima Trindade, que dava apoio espi-ritual aos pacientes do HU. Em 2001, o Serviço Social do HU, atuando como mediador, sentiu a necessidade de tornar esse grupo uma instituição que tivesse amparo legal para receber doações em favor do Hospital Universitário UFSC.

Surgiu então, um movimento para transformar o Grupo numa associação. Depois de vários encontros, reuniões e discussões exaustivas, foi criada a Associação Amigos do Hospital Universi-tário – AAHU, em 11/09/2001, com a seguinte missão: preservar o Hospital Universitário da UFSC como entidade pública, gratuita e de qualidade, oferecendo constante serviço de apoio social e espiritual aos pacientes, bem como proporcionando-lhes instalações físicas favoráveis à recuperação da saúde.

1 BENTO XVI, Encíclica Spe Salvi, n. 38

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Luiz Antonio Frigo

No decorrer deste período, aquele trabalho de apoio espiritual aos pacientes do HU foi ampliado, sistematizado, e hoje se desenvolve num clima de ecumenismo.

No plano material, inúmeras doações foram feitas ao HU, com o fim de proporcionar, aos pacientes, melhores instalações físicas. Graças à parceria com a Receita Federal e o grande empenho da equipe de vo-luntárias e voluntários, a AAHU conseguiu os recursos necessários para a construção do Edifício Voluntária Dona Cora. Esse prédio abriga no andar térreo o Posto de Coleta do Banco de Sangue do HU; no primeiro andar, o Serviço de Acolhimento a pacientes e acompanhantes vindos do interior para atendimento médico-hospitalar no HU, além da nossa Lojinha II e do Brechó. No segundo andar funciona a administração da AAHU.

Objetivos do projeto AAHU

– contribuir para que os potenciais intelectuais, profissionais, artísticos, éticos e espirituais do Voluntário, possam ser aproveitados;

– disponibilizar conteúdo, experiências e oportunidades de ação voluntária;

– identificar oportunidades criativas de participação dos voluntários;

– auxiliar a Diretoria Administrativa da AAHU a aperfeiçoar a mobilização e gerenciamento dos Voluntários;

– estimular a realização de ações voluntárias que respondam às demandas do HU;

– confiar a cada pessoa tarefas adequadas, garantindo treinamento apropriado;

– definir o Perfil do Voluntário;– construir documentos relativos aos grupos de trabalho (normas,

rotinas, protocolos, regulamentos etc);– planejar e executar os eventos ligados à Capacitação de Volun-

tários: Cursos, Palestras etc;– fazer apreciação de novos Projetos de grupos de Trabalho,

subsidiando a Diretoria da AAHU e /ou do HU;– selecionar e Capacitar Facilitadores para Treinamento;

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Atendimento espiritual no Hospital Universitário, HU, de Florianópolis

– fazer avaliação dos Voluntários em treinamento;– definir, após treinamento, a relação nominal dos Novos

Voluntários;– elaborar escala de Voluntários;– elaborar critérios para liberação de recursos para Capacitação

de Voluntários em cursos, congressos etc.

Atendimento integral ao doente

Se a CF 2012 visa a saúde integral do doente, os voluntários per-tencentes à AAHU são orientados a desempenharem suas funções tendo os seguintes princípios básicos:

– Cremos que trabalhar a saúde do ser humano é vê-lo integral-mente, não fazendo qualquer dissociação. Toda pessoa, desde a sua gestação, é um ser integral (holos – do grego, “todo”, “inteiro”), cujas dimensões de corpo, alma e espírito formam um todo indivisível. Fomos criados com o propósito do desen-volvimento integral do nosso ser.

– Temos consciência de que vivemos numa época em que a procura espiritual conhece, na cultura, múltiplas formas de expressão: algumas, religiosas e organizadas; outras, marcadas pelo individualismo. Não ignoramos que, ao escolhermos olhar o fenômeno do sofrimento, que tantos procuram esconder como se não fizesse parte da condição humana, definimos para nós próprios o desafio de descobrir caminhos de esperança que cor-respondam às muitas angústias dos nossos contemporâneos.

– Por isso ousamos propor a vivência de uma espiritualidade saudável que, concretamente no que respeita à prestação de cuidados de saúde, exige a cooperação entre o Estado e os Cre-dos. A história do tratamento de doenças obriga-nos a afirmar que, quer se defina religiosamente quer não, a espiritualidade é parte integrante da humanização dos cuidados, e é vã a procura de qualidade em saúde que ignore essa realidade.

– Há diferentes maneiras de se entender o que seja “espiritu-alidade”. Algumas pessoas a entendem como uma energia ou transcendência; outros, como códigos de ética filosófica ou moral; outros ainda, como questionamento que envolve a existência, a natureza, o destino, a vida e a morte; há também

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os que se referem a ela como sistema de crenças ou crença no sobrenatural.

– Entende-se também que a pessoa que desenvolve sua dimensão espiritual é aquela que segue um caminho de vida concreto, ou seja, um jeito de ser e agir na vida, expressando uma atitude consciente no existir. “Espiritualidade” tem a ver com a vida individual, para a qual a pessoa precisa adotar uma conduta, uma forma de vida, uma filosofia de vida, valores e compreen-são de si mesma, além de encaminhamento ativo da sua vida. O sentido de espiritualidade pode ser descrito pelo conceito de fé, como força vital.

– Ainda mais, a espiritualidade não envolve apenas o que pen-samos a seu respeito, mas principalmente como a vivemos. É na nossa experiência diária que realmente se revela o que ela significa para nós, pois nem sempre, o que pensamos se eviden-cia na prática. Hensen (1987) em sua pesquisa no contexto da experiência do paciente cirúrgico, afirma que a espiritualidade é o “reconhecimento de um ser superior. Este ser superior é algo que tende a se tornar mais forte na dificuldade e nos momentos em que o paciente sente-se com menos poder e em maior risco de vida como no centro cirúrgico”.

– À medida que a ciência evolui, a fé e a ciência se aproximam. Encontramos na ciência base para uma fé inteligente, racional e na fé, bases para melhor desenvolvimento da ciência. O homem, por ser um ser espiritual, tem necessidades espirituais que preci-sam ser atendidas. Estas necessidades são semelhantes a todo ser humano, independente da maneira como ele expressa sua fé.

– Pode-se identificar a necessidade de sentido e propósito, a necessidade de amor e relacionamento, e a necessidade de perdão, como necessidades espirituais essenciais ao homem. O ser humano não é alguém limitado ao biológico, psicológico ou social. As ciências humanas evidenciam esse fato. O homem não é apenas mais inteligente que os animais, mas tem também outra natureza. Ele necessita ver sentido e significado em sua existência. O homem precisa entender o mundo e a vida, na busca de respostas às questões últimas de sua existência2.

2 Alves, 1981, pg.35.

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Atendimento espiritual no Hospital Universitário, HU, de Florianópolis

– É quando o ser humano adoece, que se dá conta de sua fragi-lidade. Muitas vezes, nessas ocasiões, ele também enfrenta a solidão, tanto em casa quanto no hospital. Saber que o Deus Todo-Poderoso, Criador do Universo, está com ele e não o abandonará jamais, certamente facilitará o enfrentamento da doença e das consequentes dificuldades que ela pode trazer para sua vida pessoal, familiar e comunitária. Muitos estudos, recentemente, têm apontado para o fato de a fé e a oração aumentarem as possibilidades de restabelecimento da saúde3.

– Quando o ser humano vive situações de risco, de ameaça, quando adoece, vive situações de perda ou enfrenta situações adversas que geram estresse, tanto pessoal quanto familiar, é comum se deparar com questionamentos do tipo: Quem sou eu? Por que estou aqui? Como devo viver o aqui e o agora? Qual a razão ou sentido da vida e da morte? Deus existe? Quem é Ele? O homem simplesmente não consegue resignar-se a ser vivido pelo seu organismo. Sente necessidade de interrogar as coisas e a si mesmo, levando-o a vivenciar a própria espiritualidade4.

Direito à assistência religiosa

O inviolável direito de liberdade de crença e a garantia de prestação de assistência religiosa, assegurados nas Leis Brasileiras – Constituição Federal, artigo 5º, inciso VII, abarcada pela Lei Federal de nº 9.982, de 14 de Julho 2000, dão base às propostas elaboradas no projeto que orienta o atendimento espiritual da AAHU de Florianópolis.

Esclarecendo mais

– Salientamos que, para atendimento de necessidades espirituais, são importantes as habilidades específicas, tanto em quantidade como em qualidade. Desta forma, acredita-se que os ministros religiosos ou assistentes espirituais, são instrumentos impor-tantes para que haja boa assistência espiritual.

– A proposta de cuidado espiritual da AAHU não pretende dis-cutir religiões nem fornecer informações a respeito das mes-

3 Bidel e Nunes, 20004 Del Valle, 1975, 257-259; Hensen, 1987, 4.

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mas, mas sim oferecer espaço de atendimento à necessidade espiritual do paciente, dos familiares e dos cuidadores, a fim de que possam praticar sua própria crença.

– Essa proposta visa também a promoção da autonomia da pessoa doente, com todo o respeito ao seu poder de decisão, principalmente quanto à escolha de vivenciar sua espiritu-alidade. Que o paciente seja o sujeito de sua assistência, não objeto de ações beneficentes. Incentive-se o diálogo com o doente, cuidando, porém, para não fazer proselitismo religioso.

Resumindo:

– Assistência Espiritual Hospitalar não é simplesmente uma visita que leva consolo e conforto ao paciente, mas, também, deve ser parte de um processo que ajude no conjunto do tratamento.

– Este Serviço não é uma ação espontânea; deve ser fruto de uma ação reflexiva que visa, além do consolo, levar uma orientação segura para as crises espirituais que as pessoas em estado de enfermidade normalmente enfrentam.

– A sua aplicação certamente alargará conceitos de cuidado para com as pessoas doentes e confirmará a presença dos agentes pastorais dos vários credos. Constitui um processo oportuno para nos darmos as mãos a fim de concretizar o que nos une: oferecer às pessoas doentes o melhor serviço possível.

Objetivos do programa de espiritualidade do HU

– Oportunizar a todas as pessoas do HU (tanto pacientes, quanto cuidadores), o acesso ao cuidado espiritual.

– Implementar condições para o desenvolvimento de ações que visem o cuidado espiritual.

– Prestar atendimento espiritual ao ser humano no seu contexto e circunstâncias de vida, com a finalidade de ajudá-lo no apri-moramento de sua vida espiritual em busca de saúde.

– Qualificar pessoas para possam desenvolver o cuidado espiri-tual no HU.

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Atendimento espiritual no Hospital Universitário, HU, de Florianópolis

Organização do Núcleo de Cuidado Espiritual

Neste projeto da AAHU, o cuidado espiritual é prestado por pesso-as devidamente qualificadas, que atuam de forma voluntária. São Padres, Pastores Evangélicos, Líderes de casas Espíritas e Outros.

O Núcleo de Cuidado Espiritual está diretamente ligado à Comis-são de Humanização do HU e sob a orientação da Diretoria de Apoio Social e Espiritual da AAHU.

No momento existem 3 (três) grupos de apoio espiritual aos pacien-tes internados no HU. São eles: Pastoral do Enfermo – Igreja Católica; Capelania Evangélica; e Grupo de Assistência Espiritual Espírita.

Cada grupo atua conforme proposta assistencial específica. Nela é explicitado o referencial teórico para as práticas religiosas propriamente ditas a serem executadas. Depois de elaborada, a proposta é encaminha-da à AAHU, onde é devidamente analisada pela Direção, conforme os critérios vigentes.

Esses critérios são: apresentação de CNPJ; disposição em receber capacitação da AAHU; não fazer proselitismo religioso nem promessa de cura, a despeito de qualquer pretexto.

Esses grupos devem ter uma estrutura administrativa mínima (Coordenador e Auxiliar), cujos mandatos não devem exceder 2 (dois anos), segundo o tempo de mandato da Direção da AAHU.

Ações de cuidado espiritual

1 Visita aos pacientes no leito

Todos os pacientes internados recebem visitas. As pessoas podem ou não ter uma religião, que pode ser igual ou diferente daquela que o membro do Grupo professa. Caso um paciente peça um representante de sua religião, providencia-se sua vinda.

No momento que o paciente desejar, os profissionais da clínica entram em contato com o líder religioso solicitado e comunicam o nome do paciente e o número do leito. Não há, aqui, nenhuma proposta de con-versão, doutrinação em favor de nenhuma religião. Sempre respeitando o poder de decisão do doente ou de seus familiares.

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Trata-se apenas do amparo fraterno, da conversação leve e positiva, da consolação da dor do semelhante. Tal missão deve sempre ser condu-zida de forma sensata, subordinada às orientações dos profissionais de saúde responsáveis pelo atendimento dos pacientes e à direção do HU.

2 Encontros Semanais na Capela Ecumênica

Semanalmente, cada segmento religioso se reúne na Capela Ecumênica para uma Santa Missa ou Culto religioso, como forma de preparação espiritual antes de realizar as visitas aos enfermos. Os dias são assim distribuídos: a) às quartas-feiras: Pastoral do Enfermo – visita aos doentes e Santa Missa; às quintas-feiras: Grupo Espírita – visita aos doentes e Reunião com Palestra; às sextas-feiras: Capelania Evangélica: visita aos doentes e Culto ministrado por Pastores.

Atendimentos específicos

Além do atendimento espiritual específico, a AAHU desenvolve outras atividades pertinentes às necessidades específicas solicitadas pelos agentes do HU. Tais como: apresentação de músicas nos corredores do HU; trabalho de cuidado junto ás crianças internadas no setor de pedia-tria; celebrações ecumênicas em datas especiais; pretende-se também, tão logo for possível, prestar apoio espiritual à Equipe de Saúde do próprio HU.

Capacitação

A Capacitação dos voluntários é feita através do Núcleo de Capa-citação de Voluntários da AAHU.

Toda pessoa que deseja fazer parte da AAHU como voluntária, terá, como exigência básica, passar por um curso de capacitação desenvolvido no auditório do HU, no início de cada ano. Sem essa capacitação, a pessoa não poderá exercer nenhuma função de atendimento.

Além do curso de capacitação, a AAHU mantém um programa de Educação Continuada, tratando de temas pontuais e, anualmente, um grupo representativo de voluntários participa de um Congresso Nacio-nal, onde são desenvolvidos temas específicos que orientam a formação espiritual dos cuidadores e de orientadores espirituais.

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Atendimento espiritual no Hospital Universitário, HU, de Florianópolis

Conclusão

O atendimento espiritual realizado pelos voluntários da AAHU tem sido de significativa importância para todos os pacientes do HU nos últimos 10 anos.

Não foram medidos esforços para que os voluntários da AAHU tivessem condições estruturais, materiais, formativas e espirituais para de-senvolverem da melhor maneira possível a sua missão junto aos doentes.

Como consequência desse trabalho, a AAHU foi convidada a fa-zer parte do Grupo da Humanização do HU, cuja função é refletir ações voltadas à melhor qualidade de atendimento ao paciente.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta vários fatores convergentes, em ordem de importância, para se ter uma boa saúde, lon-gevidade e qualidade de vida: 53% de hábitos saudáveis; 20% do meio ambiente; 17% da herança genética; e apenas 10% de assistência médica. Portanto, diante destes dados que nos fornecem uma visão holística a respeito dos caminhos saudáveis, há necessidade de se desenvolver uma práxis multifocal e uma educação integral quanto ao cuidado da saúde de todo ser humano, não só no interior dos hospitais, mas em todos os lugares.

Endereço do AutorPraça Santos Dumont, 94

CEP 88040-970 Florianópolis, SCE-mail: [email protected]

Encontros Teológicos nº 61Ano 27 / número 1 / 2012, p. 155-157.

Fraternidade e saúde públicaJúlio Giordani*

Parabéns à Igreja do Brasil. Neste ano, a proposta da Igreja, para quem quiser ser irmão de verdade, é: lutar para melhorar a Saúde Pú-blica em nosso país. A Igreja tem autoridade para falar, porque sempre cuidou do povo doente: Hospitais de Misericórdia, Colônias de Leprosos e Cancerosos, a maioria dos Hospitais no Brasil, Creches, Pastoral da Criança, dos Idosos, da Saúde, dos Enfermos etc.

Agora, a proposta da Igreja é que todos os cidadãos se unam para ajudar o Brasil a ter melhor Saúde Pública. Há muitos irmãos morrendo abandonados, sem médico, sem dinheiro, sem sorriso. Temos 45 milhões de pessoas que podem dispor de médico e hospital. Mas temos 150 milhões de mais pobres, para quem o Governo só gasta 3 por cento do seu orçamento. Os Municípios gastam mais do que a Lei pede, mas os Estados e o Governo Federal não o fazem. Falta muito dinheiro para a Saúde Pública!

Hoje no mundo reina o Individualismo. Todos são chamados a consumir, consumir, e não se empenham em construir o Reino, no qual haja mais vida para todos. Diante de tanto individualismo, é preciso caminhar na prática da cidadania, juntos assumindo ações coletivas. Ações individuais não constroem o Reino de Deus, os direitos do povo. Assim, todos podemos, e devemos, crescer na prática da verdadeira Política, da Fraternidade.

Jesus foi nosso Mestre também na luta pela Saúde. Ele não foi só “religião”, de ritos, mas assumiu a saúde de seu povo pobre. “Tenho pena deste povo. Parece um rebanho sem pastor” (cf. Mt 9,36). “Eu estive doente... Era Eu! E você me socorreu” (cf. Mt 25,36).

* O autor é presbítero da diocese de Caxias do Sul, RS, e coordena a Pastoral da Saúde em Bento Gonçalves, RS.

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Fraternidade e saúde pública

Quando a maioria morava no interior, pouca gente se sentia cha-mada a lutar. Mas agora, na cidade, com a urbanização crescente, todos percebem que, se não se unirem nas lutas, nada vai melhorar. É juntos que devemos mudar o que é possível mudar. Melhorar o atendimento no SUS, melhorar a alimentação, fazer saúde preventiva, estar atentos à exploração na medicina e na farmácia etc.

Algumas urgências

1) No Brasil inteiro devemos exigir que o Governo libere mais dinheiro para a Saúde. Só 3% do orçamento é muito pouco. Muitos médicos não querem trabalhar no interior, nem pelo SUS. Câmara e Senado devem assumir esta urgência, a saúde Pública. Igrejas e movimentos sociais se unam nesta luta.

2) É melhor prevenir, não só “remediar”. Muito pouco se faz para educar o povo a não ficar doente. Em nosso país, a in-dústria farmacêutica domina. Na China, por exemplo, 95% dos remédios são fitoterápicos, na base de plantas medicinais. Na Europa, e Estados Unidos, quase 80%. No Brasil, paraíso dos vegetais, não chegamos a 1% de fitoterápicos! Não é um contra-senso?

3) “O veneno está na mesa”: é um belíssimo filme que todos de-veriam ver. Mostra a realidade dos agro-químicos que temos na nossa alimentação. Cada brasileiro “tem direito a 5 litros”... mais de um bilhão de litros! E a gente não sabe de onde vem o câncer e muitas outras doenças! Nossas Comunidades po-deriam se organizar e conhecer o filme. E conseguir que haja uma fiscalização efetiva contra esses venenos!

Gestos concretos

1. Apoiar o trabalho dos agentes comunitários de Saúde. Vários municípios estão organizando a presença de vários desses Agentes em nossas comunidades. Bento Gonçalves, RS, por exemplo, vai ter mais de 60 deles, na “Estratégia da Saúde Familiar” (ESF). Eles vão visitar todas as famílias, ver a rea-lidade, fazer a ligação com o Posto, os Médicos, o Hospital. Cada comunidade deveria se organizar para dar apoio a essa

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Júlio Giordani

iniciativa, ter uma Equipe para facilitar, convidar para reuniões de Grupos etc.

2. Aprender a ter uma alimentação saudável. Hoje é possível e fácil.

3. Procurar alimentos orgânicos, ecológicos. E produzi-los. 4. Garantir a água potável. – Beber mais água, especialmente os

idosos.5. Os jovens devem estar informados. Cabe a eles assumir esta

luta pela Saúde!6. Obesidade é problema sério de Saúde Pública. Desde criança.

Alimentos errados!7. A Diabetes, castigando milhões de brasileiros. Diminuir o uso

de açúcares!8. A Osteoporose, penalizando tantos idosos. Alimentos errados,

“refris” venenosos...9. Violência no trânsito. Menos álcool, nada de drogas, mais Amor

à Vida!

E-mail do Autor: [email protected]

Encontros Teológicos nº 61Ano 27 / número 1 / 2012, p. 159-168.

* O autor, presbítero da Arquidiocese de Florianópolis, é doutor em Teologia e Ciências Patrísticas, professor de História da Igreja Antiga e Patrologia na Facasc/ITESC, e fundador, diretor e redator da revista “Cadernos Patrísticos”.

1 Conferência pronunciada no Auditório do ITESC, no início do seu 40º ano acadêmico, e também 1º ano da Facasc.

Aula inaugural 2012: Modelos e Momentos de Igreja1 Edinei da Rosa Cândido*

Introdução

Este ano surpreende-nos e brinda-nos com a recordação de quatro celebrações cuja importância e abrangência não nos permitem inércia. Enquanto cristãos, convidam-nos à celebração; enquanto teólogos, convidam-nos à reflexão. Essa dupla atitude, festejar e pensar, é a causa e o fundamento desta aula inaugural, aqui neste Instituto Teológico de Santa Catarina, hoje, 13 de fevereiro deste ano da graça de 2012.

Quatro fatos históricos estão na base de tudo isso. A disposição cronológica não motiva, necessariamente, a sua importância. Cada fato teve o seu tempo, deixou seus efeitos e consequências e, a partir daí, tem a sua atualidade. Enumerá-los é outra imposição metodológica: Paróquia de Nossa Senhora do Desterro: 300 anos; movimento do Con-testado: 100 anos; Concílio Vaticano II: 50 anos; ITESC: 40 anos. Eis o elenco. Para que fosse possível glosar acontecimentos tão distanciados cronologicamente, e tão variados na sua natureza, resolvi criar um axio-ma, abrindo-nos a uma perspectiva de Eclesiologia, possivelmente, de Eclesialidade: Momentos e modelos de Igreja: ITESC, um caminho de 40 anos. Eis o título desta conferência introdutória ao presente ano letivo, ora iniciante.

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Aula inaugural 2012: Modelos e Momentos de Igreja

Diante disso, dispomo-nos a fazer memória, ainda que brevemente, de cada um desses momentos históricos – isso é celebrar! –. Por outro lado, não podemos ignorar a ocasião e o lugar de onde falamos: aula inaugural aqui no ITESC, repetimos. Nesse sentido, desde já, reconhe-cemos que os 40 anos do ITESC, último evento indicado, são a mola propulsora de toda esta preleção. De fato, é deste espaço de reflexão teológica e, portanto, como teólogos, que queremos perscrutar e então sinalizar esses modelos e momentos de Igreja.

Uma questão que deve perfazer todo este breve caminho reflexivo é a relação, quiçá a dialética, entre um e outro, a precedência de um em detrimento do outro. Enquanto essa pergunta nos intriga, sem, contudo, nos consumir, passemos aos fatos.

1. PARÓQUIA DA CATEDRAL: Em 1712, era criada a Paróquia de Nossa Senhora do Desterro, denotando a necessidade de vida cristã regular para os habitantes e transeuntes na Ilha de Santa Catarina. Era o alvorecer de um século muito promissor à Ilha e a toda Santa Catarina, que veria chegar, algumas décadas depois (1748), em seus portos, um expressivo número de famílias provindas do arquipélago dos Açores, domínio da Coroa Portuguesa, que daria um novo incremento ao de-senvolvimento de toda a região costeira catarinense, e nova nuance cultural, a saber: de portuguesa para açoriana. Era importante, além de tudo, povoar esta parte de Brasil e garantir suas fronteiras contra tantas incursões estrangeiras, com objetivo de usurpação. Menos de trinta anos depois, especificamente, aconteceria a invasão da irmã rival, a Coroa Espanhola, em 1777.

O momento eclesiológico universal era então o da Igreja pós Tren-to, em luta contra o protestantismo e avessa ao pensamento racionalista, bastante devedor dessa mentalidade. Todavia, em Portugal, e principal-mente nas colônias de seu domínio, a realidade eclesiológica conhecia outros parâmetros. Herdeira próxima da religiosidade medieval, que não conhecera a Reforma, era afeiçoada às manifestações exteriores, afeita às devoções santeiras. Tudo isso sob a égide do Padroado Régio, que dava ao rei o privilégio da tutela da religião nessas terras colonizadas.

2. CONTESTADO: Em 1912, o episódio em destaque é a questão do Contestado. Que uma disputa de terras no oeste catarinense entre um grupo empresarial (Brazil Railway e a Southern Lumber) e um grupo de caboclos nativos, tenha trazido, no seu bojo, um confronto entre dois modelos de Igreja, indubitavelmente é algo bastante curioso. Mais uma

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Edinei da Rosa Cândido

vez é preciso recorrer ao universal para entender o particular. O modelo eclesiológico universal era, ainda, o da Igreja Tridentina. Finalmente, após vários séculos, com a queda vertiginosa da monarquia, iniciada com a Revolução Francesa (1789) e amplamente difundida por todo o século XIX, e o consequente advento da república, também nas colônias latino-americanas, a Igreja de Roma conseguia derribar o Padroado Régio e fazer valer suas diretrizes nas antigas colônias portuguesas e espanho-las da América. Um marco dessa ação foi o Concílio Plenário Latino-Americano (1899), convocado para Roma pelo Papa Leão XIII. Era o período de institucionalização dessas Igrejas, chamado de romanização, caracterizado por uma estreita união com a Igreja de Roma e a aplica-ção ao modelo de Igreja ditado pelo Concílio de Trento (1545-1563). A recém criada Diocese de Florianópolis (1908), até então única em Santa Catarina, tentava cobrir o imenso território com paróquias e assistência religiosa regular. Paralelamente, contudo, sobrevivia nessa região do Con-testado uma espécie de religião de resistência, matizada na antropologia cabocla, com a marca da sua religiosidade popular: o batismo caseiro, as benzeduras, o eremitismo leigo etc. (Sem muito esforço se pode ligá-la a outros movimentos insurrecionais e apocalípticos da época, como o de Canudos na Bahia: 1893-1897). Duas figuras históricas e legendá-rias encerram esses dois modelos de Igreja: romanizado, o franciscano, missionário alemão, Frei Rogério Neuhaus; popular, o eremita leigo, conhecido como monge João Maria. Esse confronto, intensificado por combates sangrentos, alcançou proporções nacionais, marcou a história dessa região catarinense e não cessa de fornecer elementos para análises e estudos nas mais diversas áreas: política, sociológica e, naturalmente, religiosa, dentre outras.

Acabamos de refletir, rapidamente, sobre dois dos quatro fatos históricos propostos. Fazemos notar que, como cronologia, todos acon-tecem em período pós medieval, em tempos chamados modernos. E aqui é imprescindível que nos reconheçamos produto de uma realidade nova, de um novo mundo, a América, parcialmente, desancorado do velho, a Europa. Aqui se insere nossa paróquia, tricentenária, da Ilha de Santa Catarina, encravada no Brasil colonial. O mesmo se diga desse Brasil neo-republicano de cem anos, deste nosso Estado catarinense dentro de uma federação de Estados, que encerra a luta pela terra. Ambos formam um par, porque inseridos num mesmo modelo de Igreja que, percepti-velmente, vive momentos diferentes.

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Aula inaugural 2012: Modelos e Momentos de Igreja

Resta-nos o segundo par: Vaticano II e ITESC. Neste caso, momen-tos e modelos distanciam-se e diferem enormemente do par anterior. De fato, o momento histórico chamado de mundo moderno, pós-moderno, era da tecnologia, tempo dos meios de comunicação e outras expressões ensaiadas ainda no século XX, motivou a Igreja ao grande Concílio. Levou-a a buscar um modelo novo, ditado por um tempo novo, e aqui não pode haver dúvida de que o momento impeliu à busca do modelo.

3. VATICANO II: Em janeiro de 1959, João XXIII, Ângelo Roncalli de batismo, eleito papa em 28 de outubro de 1958, até então Patriarca de Veneza, anunciava ao mundo que a Igreja teria um novo Concílio ecumênico, isto é, com representação universal. Após o caráter apologético e anatemático do Concílio de Trento, entremeado pelo caráter condenatório e dogmático do Concílio Vaticano I (1870), era anunciado o Concílio Vaticano II. Finalizado o intenso trabalho das comissões pre-paratórias, no dia de Natal de 1961, era anunciada a data para abertura do grande acontecimento: 11 de outubro do ano seguinte, 1962. E assim aconteceu. Contudo, menos de um ano após o início dos trabalhos, exata-mente em 03 de junho de 1963, o “Papa Bondoso”, mentor do Concílio, partia para a eternidade, e houve um momento de ansiedade e indecisão. Seu sucessor, Paulo VI, Giovanni Battista Montini de batismo, até então Cardeal de Milão, com decisão, levou à frente as três seguintes sessões conciliares, que se encerraram em 1965.

Quatro grandes temas norteavam as discussões: a) natureza da Igreja, b) renovação da sua vida interna, c) promoção da unidade dos cristãos d) e o diálogo da Igreja com o mundo moderno. Desse esque-ma, constituíram-se 16 documentos: 4 constituições, 9 decretos e 3 declarações. As expectativas eram imensas. O Concílio fora precedido por vários movimentos de renovação teológica e espiritual, alguns iniciados já no século XIX, mormente na área da Bíblia, Patrística e Liturgia. Havia grandes esperanças de que o novo cncílio, como uma nova primavera, renovasse a face da Igreja. E assim sucedeu. A nova proposta foi imediatamente reconhecida e assumida por alguns, como o colégio episcopal catarinense, rechaçada com decisão por outros, como os da linha Lefebvriana, e ponderada ainda por outros, quiçá buscando o equilíbrio do meio termo (virtus in medio). De qualquer maneira, desde então a Teologia, a Eclesiologia, a partir dos documentos conciliares, já não podiam ser as mesmas.

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Edinei da Rosa Cândido

4. ITESC: O Concílio motivava uma franca valorização da Igreja local, com sua realidade. Essas metas conciliares contagiaram expressiva-mente os bispos catarinenses de então. Dom Afonso Niehues, Arcebispo Metropolitano de Florianópolis (1967-1991), definiu nestes termos os efeitos do espírito conciliar sobre sua pessoa e seu ministério: “Um, o homem que foi; outro, o que voltou”. Encerrados os trabalhos em 1965, a tarefa de pôr as deliberações conciliares em prática encontrou o homem de fé e pastor da Igreja de Florianópolis inteiramente determinado a, da-quele momento em diante, viver o seu ministério episcopal, ainda juvenil, inteiramente à luz do Concílio Vaticano II. Foi com esse objetivo que ele idealizou e efetivou mudanças fundamentais na formação do futuro clero da arquidiocese que, em conjunto com seus pares, resultaram em novos rumos aos seminários menores, à Filosofia e, principalmente, à teologia, antes estudada em Viamão, RS, e Curitiba, PR. Efetivamente, em março de 1973, ainda em proporções modestas, o primeiro grupo de seminaristas maiores, tendo concluído o curso de Filosofia fora do Estado, instalava-se nas dependências de uma casa construída não muito distante da reitoria da Universidade Federal de Santa Catarina. Era o “Convívio Emaús”, o primeiro dos vários prédios destinados ao funcionamento do Instituto Teológico de Santa Catarina e residência de seus alunos. En-tretanto, as aulas eram dadas em salas da vizinha Universidade, cedidas por convênio.

Aqui vão destacadas meritórias loas à ilustre figura, em memória, do Pe. Paulo Bratti. Se Dom Afonso, com o episcopado catarinense da época, já estruturado como “Regional Sul 4 da CNBB, teve o mérito de idealizar o ITESC, Pe. Paulo Bratti teve o de o realizar. Numa época de dúvidas e incertezas – o Concílio suscitara essa atitude em muitos seto-res da Igreja – em que se propunham várias alternativas aventureiras ao estudo da Teologia, esse benemérito Presbítero, co-fundador e professor decano do ITESC, com decisão e firmeza, garantiu ao novel Instituto Te-ológico a seriedade e a constância de uma Teologia Sistemática renovada, buscando implantar as diretrizes apenas sinalizadas pelo Concílio.

Assim nasceu o ITESC, como fruto do Concílio Vaticano II: dele recebeu sua raiz fundacional e maior fonte de inspiração. É momento privilegiado de universalidade, para toda a Igreja, que abre espaço para a particularidade da nossa Igreja local, e volta a sua aplicação à Teologia neste estado de Santa Catarina. Como tudo que do Vaticano II brotou, já não pode mais simplesmente se alinhar, se encaixar a fatos históricos anteriores, com seus momentos e modelos eclesiológicos.

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Aula inaugural 2012: Modelos e Momentos de Igreja

Como centro de estudos específicos, tem a ingente tarefa de ensinar, refletir e produzir teologia. É o que o ITESC tem feito neste seu caminho de 40 anos. Através de suas atividades: cursos, jornadas, tríduos e semanas teológicas, muito tem transmitido dessa riqueza aos seus mais de mil alunos matriculados. Desses, mais de 500 assumiram o ministério ordenado, e minhas questionáveis cifras atestam que mais de 2% do clero formado no Brasil ocupou as carteiras deste Instituto; quatro foram escolhidos para assumir o grau do episcopado: Dom Luís Carlos Eccel, Bispo emérito de Caçador, SC; Dom Pedro Zilli, PIME, Bispo de Bafatá, na Guiné Bissau, África; Dom Mário Marquez, OFMcap., Bispo de Joaçaba, SC; e Dom Geremias Steinmetz, Bispo de Panaravaí, PR. Através dos vários trabalhos escritos dos seus professores e publicados, em livros ou em artigos nos já sessenta (60) números da sua revista qua-drimestral, “Encontros Teológicos”, o ITESC tem expandido ciência teo-lógica, nacional e internacionalmente. De seus ex-professores, três foram escolhidos para assumir o grau do episcopado: Dom Orlando Brandes, Arcebispo de Londrina, PR, Dom Vitus Schlickmann, Bispo emérito de Florianópolis, Dom Juventino Kestering, Bispo de Rondonópolis, MG e Dom Manoel João Francisco, Bispo de Chapecó, SC.

Diante de tantos louros e priscos, voltemos o nosso olhar à realidade eclesial concreta. Hoje, nesta aula inaugural do seu quadragésimo aniver-sário, através desta modesta reflexão, este Instituto Teológico confronta-se com o desafio de (re) ler todos esses fatos e, sem ignorar o seu valor histórico, extrair-lhes o aporte teológico num constante trânsito entre o particular e o universal, em franca dialética de momentos e modelos. Mais do que isso, encara a tarefa de (re) ler a si mesmo nestes seus 40 anos de existência. E nos convoca também a uma leitura de nós mesmos. Onde nascemos, de onde viemos, onde atuamos? Certamente, esta nossa realidade também insere um modelo e um momento eclesiológicos!

A precedência de um em relação ao outro é delicada de estabelecer. Parece uma daquelas disputas infrutíferas que buscam definir a precedên-cia do ovo em relação à galinha e vice versa. Mais importante, julgamos que seja estabelecer pontos e não hesitar em tomar posições, determinar cortes e rupturas, abrir pistas, sondar novos atalhos. Nisso hão de se revelar os momentos e modelos eclesiológicos e sua correspondência.

A marca do ITESC, porque filho do Vaticano II, é a consciên-cia eclesial de que se vive um novo tempo. Certamente, este ano do cinqüentenário do Concílio muito fará a Igreja debater seu aporte, sua

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abrangência, realização e perspectiva a serem efetivadas. Por isso, per-mite-nos, pelo vetor do ITESC, lançar um olhar no passado e no futuro e, partindo de ambos, teorizar, analisar, produzir, repensar e responder a tantos questionamentos de nossos dias. A lista é enorme e indigesta. Arrisquemos alguns temas: fecundação em laboratório. Quem são os pais de uma criança fruto de óvulo e sêmen fecundados em laboratório e aninhados em uma barriga, de aluguel ou não? O que você responderia? Qual dos dois casais teria o direito de decidir o futuro religioso dessa suposta criança?

Relações homoafetivas, tema de insistente veiculação na mídia, na busca da legalidade inclusive religiosa! O que dizer da crise econômica? Brasil, sexta economia do planeta. Até que ponto esse status já se trans-formou em benefício concreto para as camadas mais empobrecidas da população? E o monopólio econômico dos made in China, produtos chi-neses? E a ameaça nuclear que voltou a nos assombrar como nas décadas anteriores da guerra fria: Coreia do Norte comunista, Irã fundamentalista. As pesquisas com células tronco e tudo o que se diz a serviço da vida? E as questões ambientais, e o narcotráfico, a falta de segurança na cidade e no campo? O que tem a Teologia a dizer de tudo isso?

Não esqueçamos os problemas de ordem estritamente religiosa (afinal, falamos de uma cátedra teológica): a sede insaciável de Deus no homem contemporâneo, as crises existenciais que, mais ou menos incidentes, acabam nunca saindo de moda; o pluralismo religioso com suas ambigüidades; a onda neomilenarista, apocalíptica; as experiên-cias místicas e espiritualistas – verdadeiras e falsas – que insistem em barganhar com o Magistério e se impor como doutrina. Até a própria religiosidade popular também sofre com a globalização e massificação. Já não a encontramos tão compacta, coesa e simples como a conhecemos no passado e a desejaríamos na atualidade.

Voltando mais ainda a atenção às questões ad intra do próprio catolicismo, as discutíveis e as “proibidas”: o futuro do catolicismo europeu; a vertiginosa queda do catolicismo nas estatísticas do IBGE no “maior país católico do mundo” ; os ministérios ordenados; a minis-terialidade leiga; a morosidade tendenciosa das articulações, burocracias e políticas eclesiásticas.

É ainda como teólogos que nos perguntamos: precisamos de...? Este momento que estamos vivendo sugerem que... As necessidades do homem moderno solicitam... A evangelização exige... Do que precisa-

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Aula inaugural 2012: Modelos e Momentos de Igreja

mos? O que nos sugere o momento que vivemos? Quais as reais neces-sidades do homem moderno? O que a evangelização exige? A alguns desses e outros questionamentos, subreptícios, simplesmente respondo Não; a outros, Talvez; a outros ainda, Não Sei; finalmente, Sim, para alguns. A busca de modelos para o momento que estamos vivendo deve ser empenhada e constante. Efetivamente, o tempo das grandes certezas esvaiu-se com as grandes decepções, inclusive no plano político. Por-tanto, certezas e verdades por demais rápidas e resolutas correm o risco da precocidade, da superficialidade e, mesmo, do engano. Tudo isso, definitiva e exclusivamente absolutizou o único absoluto: DEUS.

Tudo isso converge, inquieta, afeta o “povo de Deus”, conceito precioso legitimado pela Eclesiologia do Vaticano II (Lumen Gentium). Mais do que conceito, realidade preciosíssima e destino da ação pastoral, motivo maior da encarnação do Verbo. Eis a razão do nosso fazer Teologia: viver a fé e a espi-ritualidade, encarná-las e assumi-las na pastoral, a exemplo de Jesus Cristo.

Em meio a tudo isso, quase paradoxalmente, recordamos esses mesmos quatro acontecimentos, não mais em pares. Ainda lembram-se deles? Eles formam como que o tronco de uma grande árvore. O que existe de comum em tudo isso? Um momento e um modelo eclesiológi-co. Insisto. Eles são peças difíceis de serem encaixadas, de um mosaico complexo, porque já são vistos de uma época, como a nossa, marcada pela fragmentação.

Podemos e devemos celebrar nossas datas, que dão sentido à nossa história pessoal, estadual, nacional, institucional. O que não podemos é nos iludir com passado/futuro, eficácia/inutilidade, realidade/alienação. As comemorações, por vezes, são falaciosas, porque nos enganam, fazen-do crer que voltamos no tempo! O tempo que passou não volta mais. A história é irreversível, o mundo caminha para frente e não para trás. Uma única comemoração/celebração realiza esse portento, a dos sacramentos, mormente a da Eucaristia. Assim o cremos pela fé!

As questões compactas, onde os modelos orientavam os momentos, pulverizaram-se. O que temos na atualidade, e o teremos sempre mais, são momentos ditando, querendo impor modelos. São modelos, por ve-zes postiços, querendo subtrair-se a inegáveis momentos. As soluções institucionais, teológicas e pastorais, com seus projetos e estratégias, têm sido bastante versáteis e criativas, mas insuficientes, limitadas na sua abrangência. Isso, deixando de lado a inadequação e ideologia de determinados projetos.

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Edinei da Rosa Cândido

E aqui, é preciso coragem para reconhecer: a atualidade, com-preenda-se aqui modernidade, pós-modernidade, hiper-modernidade, relativiza e, mais do que isso, sacode momentos e modelos incessante-mente. O modelo único, muito menos o momento único, já não existem e não voltarão a existir. O que existe é essa fragmentação intermitente e pressionadora.

O ITESC, grande motivo desta preleção, porque, criado dentro do espírito do Vaticano II, encoraja-se a lançar um olhar de longo alcance e refletir situações tão diversas e até aparentemente antagônicas, algumas.

Teologia no ITESC: Não me parecia justo que exatamente na aula inaugural das suas bodas de pérola, 40 anos, este centro cultural tivesse o lustro de seu nome minimizado ou relegado ao esquecimento. Não o esqueçamos, pois, ele continua a existir não apenas na memória do nosso acelerado envelhecimento, mas também como organismo incorporando uma nova instituição. Pronunciemo-lo, portanto, com afeto e saudade: ITESC – Instituto Teológico de Santa Catarina (aplausos...). Jamais poderemos pronunciá-lo como dantes. A história, além de irreversível, irrevogável, é implacável. Este momento solene soa como um divisor de águas, demarcando a linha tênue que divide o passado do futuro. E o presente? Ainda não o tinha citado. É uma esperança.

Finalmente, chegou a hora de pronunciá-la solenemente. Certamente não se pensou que eu a houvesse esquecido: Faculdade Católica de Santa Catarina: FACASC. Eis o novo que se descortina ante nossos olhos, com suas promessas e seus riscos. De fato, fomos surpreendidos, ex novíssimo, no quase derradeiro do ano, 30 de dezembro pp., com o credenciamento da Faculdade junto ao MEC e, nos albores deste ano em curso, em 25 de janeiro, com a autorização do Curso de Teologia pelo MEC.

Teologia na FACASC: Quando elaboramos o plano diretor (fui integrante do grupo), tivemos presente tudo isso aqui exposto. E, de nossa reflexão, surgiram importantes diretrizes para responder a tantas exigências. Todavia, a instituição e a estrutura podem determinar e au-xiliar, mas não podem modelar o momento, porque a realidade sempre poderá superá-lo.

Esta semana, 4ª., 5ª. e 6ª. feiras, teremos três tardes inteiras dedica-das à formação e planejamento do corpo docente desta novel Faculdade Católica. Será o momento de traçar estratégias para viabilizar o Plano de Desenvolvimento Institucional – PDI, o Regimento Interno e o Projeto

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Aula inaugural 2012: Modelos e Momentos de Igreja

Pedagógico do Curso, sobre os quais labutamos penosamente; alguns de nós, por duas vezes consecutivas. Também esse será um modo e um momento para exercer o carisma e cumprir a missão de teólogo.

Em tempo, de minha subjetividade e experiência pessoal, mani-festo minhas impressões. Sinto-me extremamente feliz pelos 22 anos de experiência no antigo ITESC: desses, 4 como aluno e 18 como professor (abreviados pelos sete anos licenciados no exterior para o aprofundamen-tos dos estudos teológicos, na área da Teologia e Ciências Patrísticas).

Dizem que não existem, cifras e fatos que não escondam rostos. A Igreja-rosto, tem por imagem o feminino. A Virgem Maria, mãe de Deus, é, indubitavelmente, a sua mais bela versão. A ela associam-se as mães de cada um de nós, modelos de serviço na maternidade humana. E, no entanto, na Teologia da Igreja, no estudo, na reflexão, ainda prevalecem os rostos masculinos. Nossa platéia é a prova irrefutável.

Todos somos filhos, da Virgem e Mãe, da mãe servidora, da Igreja imagem. Aleatoriamente, mas guiado pela cronologia, resolvi dar rostos filiais para cada um desses fatos históricos, encerrando momentos e mo-delos eclesiológicos. À paróquia de Nossa Senhora do Desterro, associei aqueles de ascendência açoriana, os praieiros. À Igreja do Contestado, aqueles de etnia cabocla, na sua maioria os provenientes do planalto serrano, do oeste catarinense e adjacências. À Igreja da romanização, os colonizadores da última hora: descendentes de imigrantes alemães, italianos, poloneses ucranianos etc. Ao Vaticano II, associei os de espírito especulativo, abertos às questões do mundo moderno, às inovações. À Eclesiologia do ITESC, os de perfil teológico.... Repito a questão: Qual é o seu modelo de Igreja? Nenhum desses, algum desses, todos esses? Proponho, neste momento final, um jogo, um motejo, quase um chiste, uma espécie de jogral espontâneo: Que se levantem os que se reconhecem nesse ou naquele modelo... Por minha livre vontade, decidi associar-nos todos ao novo momento, modelo, rosto e perfil do novo. Por decisão objetiva decidi associar-nos todos à Faculdade Católica de Santa Catarina – FACASC.

Florianópolis, FACASC/ITESC, aos 13 de fevereiro de 2012.

E-mail do Autor: [email protected]

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Recensões

KÜNG, Hans, Ciò che credo, trad. italiana do original alemão de 2009, Rizzoli, 2010, 2x14cm, pp. 361

Ney Brasil Pereira*

Estes dias chegou às minhas mãos um recente livro de Hans KÜNG, escrito há um ano, em fevereiro de 2011, logo traduzido em italiano, ed. Rizzoli, com o título “Salviamo la Chiesa”. O título original, alemão, está na forma interrogativa: “Pode a Igreja ainda salvar-se?” É um livro não agradável de se ler, do qual diz o próprio autor, logo no início, que “teria preferido não escrevê-lo”. E explica: “Não é agradável dever dedicar, àquela que continua sendo a minha Igreja, uma publicação tão crítica em seu confronto” (p. 7 da edição italiana)... Mas o objetivo desta recensão é o livro anterior, de 2009, intitulado “O que eu creio”: é o testemunho de um Küng maduro, insistente, coerente. Como não sei se há uma tradução brasileira, servi-me da italiana, publicada em 2010.

Li-o com a costumada empatia que me suscitam os escritos, sempre provocativos, de Hans Küng. Empatia, claro, não quer dizer concordân-cia pedíssequa. Li-o por duas vezes. São dez capítulos, precedidos por breve Introdução, intitulada “Uma visão onicompreensiva do mundo”. Antes de mais nada, reproduzo a apresentação algo sensacionalista do livro pelo Editor, na orelha esquerda da capa, partindo de uma citação do Autor: – “Em relação à fé cega, e ao amor cego, nutri e nutro suspeitas desde os tempos em que estudava em Roma”. Essa desconfiança em relação a qualquer absolutismo sempre guiou Hans Küng, o mais crítico entre os teólogos católicos, o revolucionário que disse sim à pílula e não à infalibilidade papal. É possível hoje, pergunta-se, crer em uma reli-gião? Ou a complexidade do mundo contemporâneo nos impele sempre mais a uma ética global, aceita e aceitável por todos? Para ilustrar a sua resposta a essas perguntas universais, Hans Küng torna a percorrer os momentos fundamentais da sua própria trajetória. Das dúvidas do período universitário aos dissídios com a Hierarquia nos anos Setenta,

* O recensor é Mestre em Ciências Bíblicas e professor do ITESC e da Faculdade Católica de Santa Catarina, FACASC, em Florianópolis.

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do empenho em favor do diálogo interconfessional ao recebimento, em 2008, da medalha de ouro Otto Hahn pela paz, as etapas desse itinerário exemplar tocam alguns dentre os temas quentes da nossa época: o mul-ticulturalismo, a natureza contraditória da liberdade, a delicada relação entre moral e pesquisa científica, a necessidade de superar os limites estreitos da intolerância religiosa. Este livro narra a aventura fascinante de uma busca pessoal incansável e corajosa. Posicionando-se contra o niilismo de muitos pensadores modernos, Küng acompanha o leitor em uma extraordinária ascensão espiritual, em busca de nova perspectiva fundada sobre o amor, a consciência de si e o respeito do diferente. É um autêntico hino à alegria, capaz de dirigir-se a todos, também a quem não crê...”

Quanto ao “eu” do título (no original: “Was Ich glaube”), Küng explica: “Não entendo o “Eu” de modo subjetivo: não senti jamais o orgulho de ser uma pessoa original, e jamais me senti um predestinado. Importa-me muito ser solidário com as pessoas dentro da minha comuni-dade de fé, da cristandade, das religiões mundiais, e também com o mundo laico. Solidário no pensamento e nas ações. Ficaria feliz se, enfim, este livro conseguisse expressar em grandes linhas uma convicção partilhada por muitos outros” (p. 9). Na p. 11, ainda da Introdução, ele adverte: “As perguntas e os temas suscitados por estas reflexões são muitíssimos, e procurarei abordá-los conjuntamente e estruturá-los fazendo-os reentrar no conceito amplo e multiforme da vida, tal como veio realizando-se no curso do seu desenvolvimento sobre a terra, no âmbito da vida de cada indivíduo e na minha história pessoal. É óbvio que, dessa maneira, não se pode tocar todos os aspectos e temas da vida cristã. Muitos deles são tratados no fim, na bibliografia que encerra o volume.”

Seguem os dez capítulos, cada um introduzido por uma citação ilustrativa e subdividido em vários subtítulos, que ajudam a facilitar a leitura. Assim, o primeiro, o ponto de partida é a “confiança na vida” (p. 13), essa “confiança de fundo” que se aprende desde o seio materno e que, num momento da vida, exige de nós “assumir um risco elemen-tar: o risco de ter confiança” (p. 29). O tópico final do capítulo aborda a confiança “também como base da ciência, da política e da economia” (pp. 35-38).

O segundo capítulo, introduzido por uma citação de Mozart, aborda “a alegria de viver” (p.39), mesmo no meio das interrogações e problemas que constantemente nos surpreendem. No terceiro capítulo,

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Küng reflete sobre “o caminho da vida”, situando o do indivíduo no conjunto do “caminho de vida da humanidade” (p. 70), que aprendeu devagar a “comportar-se de modo humano”. Os valores dessa ética concentraram-se em quatro campos de importância vital: a tutela da vida, a da propriedade, a da honra, e a das relações entre os sexos (p. 75). Abordando a seguir as “indicações de percurso equivocadas”, por parte da religião institucionalizada, Küng lamenta os rumos tomados pelo catolicismo após o Vaticano II, especialmente com o “divisor de águas” da Humanae Vitae, de Paulo VI (1968). E afirma: “Desde então, “aquilo em que creio’ e ‘aquilo que a Igreja prescreve crer’ divergem amplamente, nas questões morais como também nas dogmáticas” (p. 78). Evidentemente, Küng não pretenderá ser “infalível” – o que não seria lógico em quem questiona a infalibilidade da Igreja – mas seus questionamentos, a partir das ciências da linguagem, têm sua razão de ser. Aliás, um alargamento da problemática, já reconhecido pelo decreto “Nostra Aetate”, do Vaticano II, consubstanciou-se no projeto küngiano “por uma ética mundial”, de 1990. É uma ética que pode ser reconhecida pelas religiões do mundo, mas também pelos não crentes, pelos huma-nistas, pelos laicos. E afirma: “Empenho-me totalmente em contrariar a tola tendência em criar uma divisão da sociedade em secular e religiosa. O mundo contemporâneo tem necessidade de ambas, a dimensão secular e a religiosa. Mas sobretudo não precisa de uma coisa: do fanatismo. E os laicistas fanáticos laboram em erro tanto quanto os fundamentalistas religiosos fanáticos” (p. 80). Depois, quase terminando o capítulo sobre “o caminho da vida”, Küng assim caracteriza seu próprio caminho: ele aprendeu, exatamente “com a severa educação preconciliar recebida em Roma”, a caminhar assumindo sempre a atitude de “solidariedade crítica para com a minha Igreja” (p.96).

“O sentido da vida” é o título do quarto capítulo (p. 99), que come-ça recordando uma situação limite na vida do jovem teólogo Küng, em maio de 1962, poucos meses antes do início do Concílio. Ele escreve: “A pergunta sobre o sentido da minha missão de teólogo e, mesmo, sobre o sentido da minha vida em geral, se me impôs com urgência ainda maior do que quando eu era estudante” (p. 100). Depois de discorrer sobre a “perda de sentido”, Küng contrapõe o “trabalhar para viver” ao “viver para trabalhar” (pp. 111-117), e se interroga sobre o conceito da “vida plena”, sobre o “realizar-se a si mesmo”: a auto-realização confere real-mente o sentido último à vida, aquilo que lhe imprime a direção? (p. 120). No âmbito pessoal, afirma que “se empenhou e continua a empenhar-se

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pelo que considera uma grande tarefa: a renovação da Igreja católica, a reunificação das Igrejas cristãs divididas e, enfim, o diálogo interreligioso e intercultural sobre a base de uma ética comum da humanidade” (pp. 122-123). O capítulo se encerra com uma contraposição entre o sentido “pequeno” e o sentido “grande” da vida. E afirma: “Para mim, a grande pergunta continua a ser a do sentido da história do ser humano, isto é, se ela não estaria orientada para algo que no fim representa a consumação da existência humana. (...) Confesso que não consigo resignar-me a toda a miséria, a injustiça, a insensatez deste mundo, e por isso busco um sentido último na vida, na dos outros e na minha. (...) Com a condição, porém, de que aí se inclua a morte, e tenha ela também um sentido.” (pp.130-131).

O quinto capítulo, começando com uma citação do diário de L. Wittgenstein, aborda “o fundamento da vida” (p. 133). A propósito, cita o tema desenvolvido na sua conferência comemorativa do 5º centenário da fundação da Universidade de Tubinga, em maio de 1977: “Crer hoje, ainda, em Deus?” Pouco depois, saía o seu volumoso livro dedicado ao mesmo tema: “Deus existe?”1. E insiste: “Do que afirmei naquela ocasião estou ainda convencido: quem hoje quer sustentar sobre bases racionais que a fé em Deus tem futuro, deve conhecer e levar a sério os argumen-tos contra (grifo do autor) a fé. É incontestável: muitas vezes, quem era contra a religião era contra a religião institucionalizada, era contra Deus porque era contra a Igreja. (...) O futuro da fé em Deus continua a ser ameaçado neste século XXI. E isso também porque a velha resistência da fé contra a ciência moderna e a democracia não está ainda superada em toda parte” (p.136). Quanto aos argumentos contra (grifo do autor) a fé, “é preciso submeter a exame crítico sobretudo duas argumentações: em primeiro lugar a psicológica, segundo a qual Deus seria só uma projeção do ser humano, e depois a histórico-filosófico-cultural, para a qual nos encontraríamos frente ao fim da religião.” (p.138). De fato, porém, não se deu a “superação da religião” por meio do humanismo ateu (Feuerbach), nem a “morte da religião” no socialismo ateu (Marx), nem a “dissolução da religião” por obra da ciência ateia (Freud). Antes, o humanismo ateu, o socialismo, e a fé na ciência, é que se tornaram suspeitos de projeção”

1 KÜNG, Hans, Existiert Gott? Antwort auf die Gottesfrage der Neuzeit, Piper, München, 1978; trad. Italiana: Dio existe? Risposta al problema di Dio nell’età moderna, Monda-dori, Milano, 1979. Trad. também em espanhol: Existe Dios?Editorial Trotta, Madrid.

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(p.143). Várias considerações interessantes sobre o “ateísmo militante”2 de Richard Dawkins, nas pp. 145-146, concluídas com a expressão de um anseio: “em vez de encenar uma luta contra ou a favor da religião, usando argumentos superficiais de parte a parte, deveríamos aprender uns dos outros, as pessoas ‘ilustradas’ e as ‘religiosas’, e unir-nos na luta contra a violência, as guerras, a opressão... (cf p. 146). A seguir, depois de refletir sobre “uma espiritualidade com racionalidade” (p. 150), Küng convida a “ir ao fundo das coisas” (p.154), a inquirir os “vestígios da transcendên-cia” (p.166), e “dizer sim a uma causa e um sentido primeiros, Deus, não só sabendo que se pode ter confiança na vida, mas também porquê (p. 169). Para essa confiança, a Bíblia usa a palavra fé (cf Hb 11,1), fé “em Deus, causa primeira e sentido primeiro de todas as coisas”, e “fé em sentido pleno e radical”: não só “crer que” Deus existe; não só “crer em alguém”, em suas palavras, mas, antes, “crer nele”: depositar em Deus “toda a minha incondicional e irrevogável confiança” (cf p. 170).

“A potência da vida” é o título, um pouco estranho3, do capítulo 6º (p. 173), que começa com uma citação de Nostra Aetate,4 do Vaticano II, sobre a crença universal num Ser Supremo. Cito: “Quanto mais lia, viajava, falava e escutava, aprendia, tanto mais ficava claro para mim que o diálogo interreligioso (grifo do autor) não era uma questão de academia. O diálogo é uma necessidade política e religiosa, fundamental para a paz entre as nações” (p. 177). E diálogo “não só entre as religiões monoteístas – judaísmo, cristianismo, islamismo – mas incluindo também as religiões místico-sapienciais da Ásia” (ibid.). Seguem várias páginas sobre o que seja uma “espiritualidade mística” (pp. 178-184) e sobre a questão de Deus, “pessoal ou impessoal” (pp. 185-189). A propósito, propõe o conceito de “transpessoal” ou “suprapessoal”, lembrando, po-rém, que Deus “é e permanece o Inaferrável, o Invisível, o Indefinivel, ou, antes, uma “coincidência dos opostos”, como o definiu Cusano5” (p.188). Fala também das “duas formas elementares de espiritualidade: a profética, na oração, e a mística, na meditação”, confessando: “Eu tenho praticado ambas” (p.189).

2 Expressão de MEDEIROS VIEIRA, Paulo Leonardo, em seu livro “Deus no banco dos réus. Uma resposta da Ciência ao Ateísmo militante”, Florianópolis, Ed. Ledix, 2010.

3 No italiano, potenza. Não sei que termo o Autor emprega no original alemão.4 Concílio Vaticano II, Decreto nostra Aetate, n. 2 (ed. Vozes, n.1581)5 Nicolau de Cusa, 1401-1464, que, na sua obra principal, De Docta ignorantia (1440),

focalizou a limitação do conhecimento humano

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A seguir, reflete sobre “rezar, ou meditar?” e se existe “uma forma mais elevada de oração?” (pp. 189-196), fazendo confidências pessoais, como esta: “Para mim, a Bíblia não é só uma herança literária da cultura mundial, não só uma parte do cânon formativo, mas antes um testemunho único e extraordinário de experiências de Deus” (p. 196). Seguem considerações sobre monoteísmo e politeísmo, sobre a “queda dos velhos e dos novos deuses”, sobre “Deus como ‘Espírito’”, sobre “a busca de um modelo cosmológico” (pp. 206-210). Bela a reflexão sobre a fé num Deus criador: “Crer que o mundo tenha um Criador quer dizer (...) que o mundo e o ser humano não foram gerados do nada para serem lançados ao nada, mas que no seu conjunto eles têm um sentido e valor, (...) não são “caos” mas “cosmo” (...). É motivo de alegria o fato de que nada me obrigue a esta fé. Posso escolhê-la em plena liberdade” (p. 210). Quanto aos “milagres”, observa que é preciso “levar a sério os resultados da ciência bíblica moderna” (p.212), (...), que nos adverte a ler “os chamados ‘prodigios da natureza’ como metáforas, conscientes de que, como na poesia, essas metáforas não pretendem descartar as leis da natureza” (p. 214). As últimas considerações do capítulo referem-se à consumação da história do mundo e do ser humano, que se direcionam para “o fim último dos fins que nós chamamos Deus, o Deus cumprimento da criação” (grifos do autor). Ele é Deus “não somente para mim agora, aqui e hoje, mas permanece Deus até o fim: o fim da minha vida e o fim do mundo. Se é o Alfa, é também o Ômega” (p.217).

O capítulo 7º é dedicado ao “modelo de vida” (p. 219). Küng parte pragmaticamente do fato de que, se não tivesse nascido na Europa, em contexto cristão, seu “modelo de vida” seria diferente: seguiria o mo-delo hindu, ou o de Buda, ou o de Confúcio, ou o modelo mosaico (pp. 220-230)... A seguir, depois de caracterizar “uma espiritualidade cristã falsificada” (pp. 230-234), aborda o “modelo cristão”, a pessoa de Jesus: não o Cristo Pantokrátor, mas a figura histórica viva que nos apresentam os evangelhos, relidos “à luz da riquíssima pesquisa bíblica dos últimos duzentos anos”, “Jesus de Nazaré, enquanto o Messias, Cristo, Ungido, Enviado” (p. 235). A propósito de Jesus como “ponto de referência”, o depoimento: “Raramente tive tão clara idéia do que seja a autêntica espi-ritualidade cristã, como depois de ter celebrado a missa na igreja em que foi assassinado o Arcebispo Oscar Romero6, empenhado pessoalmente na defesa dos direitos do seu povo” (p. 236). Depois, tendo falado da

6 Em 24 de março de 1980.

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“discrepância existente entre o que foi o Jesus histórico, seu anúncio, sua vida, sua batalha, seu sofrimento, e o que representa hoje a Igreja” (cf. p. 237), reafirma que “o critério para orientar-nos não deve ser uma figura imaginária mas o Jesus verdadeiro, o da história, que podemos conhecer, não obstante algumas legendas e inexatidões históricas, lendo o Novo Testamento” (p. 237). Mais adiante: “Só a mensagem, a vida e a obra de Jesus, no seu conjunto, tornam claro o que distingue a sua cruz, por exemplo, da cruz de Espártaco (...) e das muitas cruzes das quais está constelada a história do mundo” (p. 243). Enfim, depois de deter-se no “modelo cristão” (pp. 234-246), Küng apresenta também o “modelo muçulmano” (pp. 247-250) e cita, depois, sobre Jesus, um pensamento da teóloga luterana Dorothee Sölle: “Compara-o tranquilamente com outras grandes figuras: / Sócrates, Rosa de Luxemburgo, Gandhi. / Ele supera o confronto com todos. / Mas seria melhor / compará-lo a ti mes-mo” (pp. 250-251). Finalmente, a posição ecumênica de Küng, que no entanto não renuncia à sua identidade cristã: “Visto de fora, de um ponto de vista científico-religioso, há diversos caminhos de salvação, diversas religiões verdadeiras. Mas visto de dentro, para mim, enquanto cristão de fé, existe só uma religião verdadeira: a cristã, para a qual as outras são vistas com reserva7” (p. 252)...

Com uma citação do livro de Jó (Jó 30,20-21), começa o capítulo 8º, dedicado ao sofrimento, “esse obscuro tema fundamental da nossa existência” (p. 253). Elenco dos primeiros subtítulos: “Uma questão primordial: por que sofro?”, “Justificação de Deus frente à dor?”, “Uma dialética do sofrimento no próprio Deus?”, “A impotência de Deus frente ao Holocausto”, “Um Deus crucificado?”, “O Iluminado (Buda), e o Crucificado”. Nesse último subtítulo, destaco a reflexão seguinte: “Como alguém que sofre e se sacrifica no sofrimento e no amor, Jesus, segundo a compreensão cristã, se distingue do Buda, o Benévolo, o Compassivo. E desse modo se distingue dos muitos deuses e muitos fundadores de religião, de todos os gênios e gurus religiosos, dos heróis e do césares da história do mundo: enquanto sofredor, justiçado, crucificado (grifo do autor)” (p.266). Ainda sobre o “enigma irresolvível da teodiceia”: “Para os cristãos – e por que também não para os judeus? – no sofrimento ex-tremo, transcendendo a figura de Jó, aparece a autêntica figura histórica do “Servo do Senhor”, que sofre e morre: o homem das dores de Nazaré (grifo do autor). A traição, a flagelação, os escárnios, e a longa agonia na

7 Ler, na mesma p. 252, os dois parágrafos restantes, que encerram o capítulo.

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cruz, anteciparam a tríplice terrível experiência do Holocausto, ou seja, a experiência totalizante dos que foram desprezados por todos, despojados de seus direitos humanos elementares, e sentiram-se abandonados até por Deus” (pp. 269-270). Seguem depois os subtítulos “a cruz mal entendi-da” e “a própria cruz”, com a seguinte argumentação: “Uma vez que o seguimento da Cruz não pode significar adoração, nem identificação nem imitação, então o que é? É suportar o sofrimento que toca exatamente a mim (grifos do autor), na minha situação imutável, em correspondência com o sofrimento de Cristo” (p. 274). Mais: “Nenhuma cruz no mundo pode contradizer a oferta de sentido que está presente na Cruz daquele que foi ressuscitado para a vida: sinal do fato de que um Deus solidário abraça também o extremo perigo, a insensatez, a nulidade, o abandono, a solidão, o vazio” (p.276). Quanto ao humanismo cristão, assim o resume Küng na afirmação final do seu livro “Ser cristão”, de 19748, e a retoma agora: “Seguindo Jesus Cristo, o homem no mundo de hoje pode viver, agir, sofrer e morrer de modo verdadeiramente humano, na felicidade e na desventura, na vida e na morte, amparado por Deus e disposto ao serviço do próximo” (p.278). A seguir, depois de ter respondido à pergunta “Como resistir?” (pp. 278-280), Küng termina esse capítulo tratando da “grande liberdade” que nos dá a confiança humilde e incondicional na graça de Deus: “Com essa confiança, diminui o meu medo da vida e aumentam a minha coragem e a minha alegria de viver” (p.283).

O capítulo 9º, intitulado “A arte de viver”, sobre como viver com alegria, sem excluir o sofrimento, começa com uma citação de Paulo: “Examinai tudo, retende o que é bom, abstende-vos de toda espécie de mal” (1Ts 5,21-22). Küng começa discutindo “Eros e Agápe” (pp. 286-290), passando a discorrer sobre “a força do amor”, e do amor “como atu-ação da ética mundial”. A seguir, propõe “quatro possibilidades concretas que a ética cristã convida a descobrir: criar a paz por meio da renúncia aos próprios direitos; usar o poder em benefício dos outros; consumir com sobriedade; saber educar no respeito recíproco” (p. 295). Cada uma dessas quatro possibilidades são explicadas nas pp. 295-303. Seguem interessantes considerações sobre “a lealdade no esporte” (pp. 303-307) e sobre “saúde sem a mania do salutismo” (pp. 307-310). No tópico final, Küng aborda “a arte de morrer” como complemento necessário da “arte de viver”, e expressa o desejo de “morrer conscientemente, na gratidão,

8 Tradução brasileira de Pe. José Wisniewski Filho, H. KÜNG, Ser Cristão, Rio de janeiro, Ed. Imago, 1976.

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na expectativa e na oração”. E continua: “E se devesse ter-me equivocado e não entrasse na vida eterna de Deus, mas no nada? Então, como já o disse várias vezes, teria levado uma vida melhor e mais sensata do que sem essa esperança” (p. 315).

“Uma visão de vida” é a tradução literal do título do último ca-pítulo do livro. Creio que o sentido é “perspectiva”, ou “projeto”, “da” vida. Depois de esclarecer que, “no curso dos anos”, ele elaborou “uma teologia de cunho crítico-social” (p. 318), Küng comenta o fim das “gran-des ideologias pseudo-religiosas” e propõe uma “perspectiva realista de esperança” (pp. 318-323). E reproduz o texto de um seu manifesto apre-sentado na ONU, em novembro de 2001, pouco depois do “fatal 11 de setembro”, sustentando que “a globalização da economia, da tecnologia e da comunicação tem necessidade de um ethos global” (p. 326), e que “não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões”, o que supõe o diálogo entre elas, com a aceitação de um “modelo ético global”. Propõe dois “novos paradigmas”: o de uma “política mundial mais pacífica”, e o de uma “economia mais justa” (pp. 327-332) A seguir, ao começar a expor a sua “esperança na unidade da Igreja”, faz esta declaração: “Sou e permaneço um membro leal da minha Igreja. Creio em Deus e no seu Cristo, (...) e permaneço aberto à comunidade da fé cristã na sua totalida-de, a todas as Igrejas” (pp. 332-333). Expressa ainda a “esperança numa paz entre as religiões e numa comunidade das nações” (pp. 335-340). Finalmente, depois de afirmar que certas guinadas históricas nos pegam de surpresa – e exemplifica com João XXIII e o Concílio, com Gorbachev e a Perestroika, com Obama depois de Bush – justifica seu sonho, sua “última visão”, com a conhecida frase de Dom Hélder Câmara, “um dos mais importantes bispos do Concílio”: “Se alguém sonha sozinho, seu sonho continuará apenas um sonho; mas se sonhamos juntos, então se tornará realidade” (p. 343). Por isso, ele “crê, e espera”, “num mundo mais pacífico, mais justo, mais humano”. E para si, pessoalmente, espera que lhe seja concedido o que em toda a tradição cristã se chama a “visão beatífica”, segundo o que Paulo expressou no final do capítulo 13 da primeira carta aos coríntios: “O amor jamais cessará.(...)” (1Cor 13,8-13). Seguem as palavras finais do autor: “Nisso encontra cumprimento, espero, aquilo que eu creio” (p. 344).

As notas, relativamente poucas, estão no final do livro (pp. 353-355): eu preferiria que fossem de rodapé, favorecendo a verificação. Também no final do livro, o elenco, em ordem alfabética, dos autores citados (pp. 357-360), além do elenco das obras de Küng, distribuídas

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por temas (pp.345-349). Nos “agradecimentos”, ele começa informando que “neste livro confluíram sessenta anos de trabalho teológico”, e que ele, enquanto teólogo, se vê “não só como um estudioso, mas também como um pastor de almas, que com a sua teologia deseja oferecer às pessoas uma orientação e estímulo para a vida” (p. 351). Penso que esse desejo foi cabalmente realizado. E faço votos para que, quanto antes, o leitor/a brasileiro/a possa dispor, em nossa língua, dos questionamentos e perspectivas que este livro oferece.

E-mail do Recensor: [email protected]

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Crônicas

Ministério da Educação credencia a Faculdade Católica de Santa Catarina – Facasc

Criada pelo episcopado catarinense em julho de 2009, para poder dar caráter civil ao curso de teologia oferecido pelo ITESC desde 1973, a Faculdade Católica de Santa Catarina (Facasc) foi credenciada pelo Ministério da Educação (MEC) no último dia 30 de dezembro. Também foi autorizado pelo MEC, no dia 24 de janeiro, o curso de graduação (bacharelado) em Teologia.

A Faculdade Católica de Santa Catarina (Facasc) foi criada sobre as bases históricas e pedagógicas do Instituto Teológico de Santa Catarina (ITESC), que este ano celebra seu 40º ano acadêmico.

Todo o patrimônio do ITESC foi passado à Facasc, que também será mantida pela Fundação Dom Jaime de Barros Câmara, administra-da pelo episcopado catarinense. O ITESC continuará existindo, como entidade jurídica civil e eclesiástica, com o fim de conceder aos estu-dantes seminaristas o bacharelado eclesiástico em teologia, de acordo com convênio assinado entre o ITESC e o Centro de Estudos Superiores (CES), dos jesuítas de Belo Horizonte.

Processo Seletivo para o Curso de Graduação (Bacharelado) em Teologia

A Faculdade Católica de Santa Catarina (Facasc) já abriu as ins-crições para o processo seletivo para os interessados (seminaristas, reli-giosos e leigos) em cursar Teologia (bacharelado) a partir deste ano. As inscrições vão de 01 a 10 de fevereiro, para 50 vagas no turno da manhã. A prova de seleção será realizada no dia 12 de fevereiro, domingo, e as aulas já iniciam no dia 13.

O Processo de Seleção irá constar de uma Prova Dissertativa (Redação) e da apresentação de documentação à escolha do candidato: ou Boletim Individual de Resultado do ENEM; ou Histórico Escolar do Ensino Médio; ou Histórico Escolar de Curso Superior de Graduação concluído, reconhecido pelo MEC.

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Crônicas

Informações mais detalhadas sobre o processo de seleção encon-tram-se no portal da instituição www.facasc.edu.br ou pelo telefone: (48)3234-0400 Ramal 203.

O Curso de Graduação em Teologia (Bacharelado) da Facasc, com duração de quatro anos, seguirá, ao menos no cerne de sua matriz curricular, os parâmetros do curso livre de Teologia praticado pelo ITESC desde 1973. Nestes 40 anos, o ITESC foi ganhando visibilidade regional e nacional com seus professores, seus ex-alunos, e sua revista quadri-mestral “Encontros Teológicos”. Os concluintes do curso de graduação (bacharelado) em Teologia obterão, ao final do percurso, o diploma de bacharel em teologia, de caráter e reconhecimento civil.

Até o final de 2011, haviam-se matriculado no curso livre de Teologia do ITESC um total de 1190 alunos. Em vista desse curso, o ITESC investiu na qualificação do corpo docente, que atualmente chega a aproximadamente 20 professores, sendo que mais da metade deles têm o doutorado.

Cursos de pós-graduação e de extensão

Além de oferecer o curso de graduação (bacharelado) em teolo-gia, a Faculdade Católica de Santa Catarina (Facasc) oferecerá também diversos cursos de pós-graduação e de extensão. Estão previstos para iniciar em julho os cursos de pós-graduação (especialização) em Es-paço Celebrativo-Litúrgico e Arte Sacra e em Juventude, Religião e Cidadania. A Facasc pretende oferecer, a curto prazo, outros cursos de pós-graduação, sempre relacionados com o campo da teologia, da espiritualidade, da religião ou da pastoral.

No final de fevereiro têm início os cursos de extensão para for-mação de lideranças leigas, que acontecem todas as segundas-feiras à noite, das 19h30min às 22h00. Neste ano serão oferecidos cinco cursos: Teologia Sistemática; Bíblia – Segundo Testamento; Teologia Bíblica – Pastoral; Teologia Litúrgica – Fundamental; Teologia Catequética – Pastoral. A Facasc pretende oferecer, a curto prazo, outros cursos de extensão, sempre relacionados com o campo da teologia, da espiritua-lidade, da religião ou da pastoral. A celebração do jubileu de ouro do Concílio Vaticano II (1962-1965) servirá de oportunidade para a Facasc colaborar com a formação dos agentes de pastoral (padres, religiosos, leigos) das dioceses catarinenses.

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Crônicas

Além disso, a Facasc prevê abrir, a médio prazo, um Curso de Graduação (Licenciatura) de Ciências da Religião, com o fim de formar professores de Ensino Religioso para a rede pública e particular de nosso Estado, sobretudo para a Grande Florianópolis.

Direção da Facasc e do ITESC

No dia 02 de janeiro, Dom Wilson Tadeu Jönck, arcebispo me-tropolitano e presidente da Fundação Dom Jaime de Barros Câmara, nomeou, para um período de 04 anos, a primeira diretoria da Facasc:

Diretor Geral – Pe. Dr. Vitor Galdino FellerDiretora Acadêmica: Ms. Ana Cristina Barreto FlorianiDiretor Administrativo: Pe. Dr. Vilmar Adelino Vicente.

A atual diretoria do ITESC deverá ser reconduzida para um pe-ríodo de três anos:

Diretor: Pe. Vitor Galdino FellerVice-Diretor: Pe. Domingos Volney nandiSecretário: Prof. Celso Loraschi.

Informações

Sobre todos esses dados poderão obter-se informações mais de-talhadas nos seguintes contatos:

Site: www.facasc.edu.brEmail: [email protected]: 48.3234.0400 (com Crisleine).

Florianópolis, 04 de fevereiro de 2012.Pe. Vitor Galdino Feller

Pe. Vitor fala sobre a Faculdade Católica de Santa Catarina

No dia 30 de dezembro de 2011 o MEC credenciou a Faculdade Católica de Santa Catarina (FACASC), que havia sido fundada pelo episcopado catarinense em julho de 2009 com o objetivo primeiro de oferecer o curso de bacharelado civil em teologia, o qual foi por sua vez autorizado pelo MEC em 24 de janeiro passado. Pe. Vitor Galdino Feller, recém-nomeado Vigário Geral de nossa Arquidiocese, que era e continua sendo diretor do ITESC, acumulará também o cargo de primeiro diretor

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da Faculdade Católica de Santa Catarina. Acompanhe abaixo a entrevista que ele concede ao Jornal da Arquidiocese.

Neste ano em que se comemora o 40º. ano letivo do ITESC, o cre-denciamento da FACASC e a autorização do curso de teologia se tornam um presente. O que representa isso?

O ITESC foi fundado pelo episcopado catarinense em 10 de janeiro de 1973, para manter o curso de teologia, última etapa da formação dos presbíteros das dioceses catarinenses. Como naquele mesmo ano inicia-ram-se as aulas, neste ano de 2012 estamos celebrando o 40º. ano letivo do ITESC. Nestes 40 anos, o ITESC formou a maior parte do atual clero das dioceses catarinenses, ofereceu à Igreja do Brasil diversos professores que se tornaram bispos, cresceu em número de professores qualificados como doutores ou mestres em teologia, marcou presença em cursos de atualização e em assessorias para diversas dioceses do país, colaborou com a reflexão teológica e pastoral da Igreja em Santa Catarina, prestou assessorias diversas à CNBB Nacional, enfim, cresceu em qualidade e conceituação perante a Igreja de Santa Catarina e do Brasil. O creden-ciamento da Faculdade Católica de Santa Catarina e a autorização de seu curso de teologia são como que um prêmio pelo quadragésimo ano do ITESC e um passo à frente no ministério da formação teológica dos futuros presbíteros e agentes de pastoral da Igreja catarinense.

Isso é a conquista de anos de luta. Todas as etapas foram cumpridas ou há algo que ainda falta?

A Faculdade Católica de Santa Catarina é fundada sobre as bases históricas e pedagógicas do ITESC, e o curso de bacharelado civil em teologia se baseia no curso livre, eclesiástico, que o ITESC vem ofere-cendo desde 1973. Já em meados de fevereiro, começamos o primeiro ano de teologia no regime civil, autorizado pelo MEC e seguindo suas exigências. Após dois anos de andamento, devemos pedir o reconheci-mento do curso. E, a cada quatro anos, o recredenciamento da Faculdade. São recursos impostos pelo MEC, com vistas ao controle de qualidade das instituições de ensino superior e dos cursos de graduação oferecidos no país. De agora em diante, portanto, devemos estar sempre atentos para manter nosso nível primeiro de aprovação. Alcançamos nota 4 (na graduação de 1 a 5) tanto no plano de desenvolvimento da instituição e na infraestrutura quanto no projeto pedagógico do curso de teologia e na qualificação do corpo docente. Um nível que precisamos manter e até

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melhorar de agora em diante, quando das avaliações que o MEC vier a fazer das nossas atividades.

Com a criação da FACASC o ITESC deixa de existir?

O ITESC continua a existir, porque é uma instituição de caráter eclesiástico. Por meio dele os seminaristas poderão alcançar, além do bacharelado com efeito civil, também o bacharelado eclesiástico, graças a um convênio com o Centro de Estudos Superiores, dos jesuítas de Belo Horizonte, chancelado pela Congregação da Educação Católica, da Santa Sé.

Apesar de ter sido criado como uma instituição de formação teo-lógica para os candidatos ao sacerdócio, o ITESC também formou religiosos/as e leigos/as. O que muda agora?

O ITESC sempre teve como objetivo principal a formação dos futu-ros padres. Mas preocupou-se também com a formação teológico-bíblico-pastoral de todos os agentes de pastoral da Igreja. Por isso, sempre teve alunos leigos/os e religiosos/as. A partir de agora, a Faculdade Católica passa a cumprir essa missão. Ela oferece, além do curso de graduação em teologia, diversos cursos de pós-graduação e de extensão, voltados especialmente para a formação de nossas lideranças leigas.

O corpo docente da faculdade de teologia é altamente capacitado, com diferentes qualificações. Isso possibilita que mais tarde se tenha outros cursos de graduação ou especialização?

No momento, temos sete mestres, três doutorandos e onze douto-res que fazem (ou farão) parte de nosso Corpo Docente. Uma realidade mais que invejável no contexto do país, em comparação com outras instituições do gênero. Isso nos qualifica, sim, a oferecer outros cursos, além da teologia. Pretendemos abrir, dentro de alguns anos, um curso de licenciatura em ciências da religião, para formar professores de ensino religioso para as escolas do Estado. Iniciaremos, já a partir de julho pró-ximo, cursos de pós-graduação lato sensu (especialização) em diversas áreas: Arte sacra e espaço celebrativo-litúrgico; Juventude, religião e cidadania; Doutrina social da Igreja etc. Há anos, nas segundas-feiras à noite, oferecemos cursos de extensão para lideranças leigas. Eram oferecidos pelo ITESC e agora passam para o regime da FACASC. São cinco cursos a cada ano. Neste ano, são: Teologia sistemática; Bíblia

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Novo Testamento; Bíblia-pastoral; Catequese e Liturgia. Para celebrar os 50 anos do Concílio Vaticano II, iremos também oferecer cursos de atualização sobre os documentos mais importantes desse Concílio que deu nova configuração à Igreja de nossos tempos.

O curso de teologia foi autorizado com 50 vagas. Os seminaristas terão que disputar essas vagas com os demais candidatos ou terão vaga garantida?

Sim, os seminaristas participarão do processo seletivo em com-petição com todos os candidatos. Deve-se considerar que o curso de bacharelado civil em teologia, oferecido pela FACASC, é regido pelas normas do MEC. Portanto, dentro dessas normas, valem os princípios de equidade e de universalidade.

Neste ano a escolha dos alunos foi através de processo seletivo. Para os próximos anos vai permanecer esse método?

Como todo curso de graduação, também o de teologia só pode ser acessível através de um processo seletivo. Pela pressão dos prazos, neste ano seguimos a exigência mínima: prova de dissertação e comprovação de ensino médio. É possível que se continue assim pelos anos vindouros. Mas isso é algo a ser ainda avaliado entre nós.

As aulas são matutinas, o que dificulta a participação de quem trabalha. Há a possibilidade da criação de um curso noturno ou não presencial (à distância)?

Por enquanto não pensamos nem em curso noturno nem em curso à distância. Mas consideramos que há, sim, muitas lideranças leigas com as manhãs livres, sobretudo aposentados, nas quais nossas paróquias, pastorais e movimentos poderiam investir, em vista de boa qualificação teológica e pastoral. Por que não incentivar cada paróquia a escolher alguém e enviá-lo para o estudo da teologia? Por que os movimentos não poderiam investir na formação de algum de seus membros? Afinal, a Igre-ja do futuro está nas mãos do laicato, do protagonismo dos leigos, como dizia o Documento de Santo Domingo. O Documento de Aparecida insiste em que, para fazer frente aos grandes desafios da nova evangelização, a Igreja da América Latina deve fazer uma clara e decidida opção pela formação de suas lideranças, sobretudo dos cristãos leigos e leigas!

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Os 50 anos da Sacrosanctum Concilium

A Comissão Episcopal Pastoral para a Liturgia da CNBB e a As-sociação dos Liturgistas do Brasil (ASLI) realizaram, de 31 de janeiro a 04 de fevereiro deste ano, em Itaici, SP, um Seminário Nacional de Liturgia, com a finalidade de celebrar os 50 anos do Concílio Vaticano II. Participaram 175 liturgistas e/ ou agentes de pastoral litúrgica de todo o Brasil O ITESC foi representado pelo professor de liturgia Pe. Valter Maurício Goedert.

O tema central do Seminário foi a Reforma Litúrgica promovida pelo Concílio através da Constituição Sacrosanctum Concilium. Foram explicitados três temas centrais: 1. Liturgia “momento histórico” da salva-ção. 2. Liturgia, exercício do sacerdócio de Cristo, Cabeça e membros. 3. Liturgia, epifania da Palavra de Deus. As explicitações ficaram a cargo do Dr. Andrea Grillo, professor das Faculdades de Santa Giustina, em Pádua, e Santo Anselmo, em Roma. Aconteceram também mini-seminários que abordaram os vários aspectos da Constituição Conciliar. Vários plenários deram oportunidade de participação a todos os presentes

Escola Diaconal de Florianópolis

A Escola Diaconal São Francisco de Assis da Arquidiocese de Florianópolis concluiu a formação de mais uma turma (14ª) de alunos, candidatos ao Diaconato Permanente. Encerraram seus estudos prepara-tórios 35 alunos (25 da Arquidiocese de Florianópolis e 10 da Diocese de Joinville). A Missa de Encerramento e a sessão de formatura, na Igreja do Provincialado das Irmãs da Divina Providência, foi presidida pelo Exmo. Sr. Dom Wilson Jönck, DD. Arcebispo Metropolitano. Estavam presentes muitos presbíteros, diáconos e parentes dos formandos. A Escola Diaconal é dirigida há 30 anos, desde 1982, pelo Pe. Valter Maurício Goedert, cuja Tese doutoral abordou a Restauração do Diaconato Permanente.

Prof. Daniel Ramada, ex-Diretor do ITESC, nomeado Embaixador do Uruguai junto à Santa Sé

No dia 16-02, Bento XVI recebeu em audiência, no Palácio Apostólico do Vaticano, o embaixador do Uruguai perante a Santa Sé, Daniel Edgardo Ramada Piendibene, para a apresentação das suas cartas credenciais. O Prof. Daniel Ramada nasceu em 1950, é casado e tem três filhos.

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Depois de estudar no Colégio dos padres jesuítas em Montevidéu (1962-1965), ele entrou no Instituto de Estudos Humanísticos e Clássicos da Companhia de Jesus, dependente da Universidade Católica Argen-tina, como noviço (1966-1968). Foi professor de História Humanística e de Direito (1968-1969) e professor assistente de Ciências Políticas, Filosofia Social e Sociologia na Universidade Estatal (1970-1973). Fez pós-graduação na Universidade de Friburgo, Suíça, em Sociologia e Cristianismo (1980-1986).

Entre outras atividades, foi membro fundador do Centro de Pesqui-sas Sociais de Montevidéu (1973); membro fundador e redator da Revista Uruguaia de Ciências Sociais (1973-1977); assessor da Conferência Epis-copal do Uruguai para estudos sociais (1978-1980) e professor no Instituto Teológico de Santa Catarina, ITESC, de 1987 a 1990, sendo também seu Diretor. Exerceu diversos cargos em comissões ministeriais relacionadas com o comércio exterior e com a indústria farmacêutica, sendo também diretor geral de uma multinacional farmacêutica no Brasil entre 2010 e 2012. Participante frequente em simpósios e conferências sobre teologia, sociologia e patrologia, o Prof. Ramada é autor de numerosos escritos sobre religião, pastoral, história, fé, a Igreja e a evangelização latino-americana. É também colaborador de “Encontros Teológicos”.

Carta Circular aos Patrólogos Brasileiros e demais interessados nos Estudos Patrísticos

Prezados colegas, amigos e benfeitores, cordiais saudações!

Conforme o previsto e divulgado entre mais de trinta Patrólogos e interessados, durante os dias 05, 06 e 07 de dezembro de 2011 pp., nos reunimos, nas instalações do ITESC - Instituto Teológico de Santa Catarina, em Florianópolis, para a realização do I Encontro Nacional de Estudos Patrísticos. O objetivo foi discutir estratégias e articular ações concretas que promovam esses estudos no Brasil, nas suas várias dimensões e abrangências.

Para tanto, em primeiro lugar, constatamos a urgência de uma maior integração entre os profissionais da área, Patrólogos e interessados, que deverão formar um grupo coeso com encontros regulares. Diante dessa realidade, três resoluções concretas foram tomadas:

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1. Responder positivamente à proposta da AIEP - Association Internationale D’Études Patristiques sobre filiações, com adesão de vários participantes brasileiros.

2. Envidar esforços para a criação de uma Associação Brasileira de Estudos Patrísticos. Nesse sentido, um estatuto, traçando a natureza e objetivo dessa iniciativa, foi elaborado e encontra-se em fase de consulta e aperfeiçoamento, com a devida assessoria jurídica.

3. Criar um Núcleo de Estudos Patrísticos, registrado junto aos órgãos governamentais promotores de pesquisa, com definição de um primeiro tema de investigação científica: Os Estudos Patrísticos no Brasil, cujo objetivo consiste em reunir notícias históricas, publicações, iniciativas, elenco de Patrólogos e res-pectivas pesquisas concluídas, publicadas ou em andamento.

Para realização desses objetivos, além de nossa boa vontade, contamos por ora:

a) Com a constituição de um grupo de trabalho ad hoc que se autointitula núcleo fundador, para dividir responsabilidades na organização deste projeto de trabalho e cujos nomes encontram-se abaixo elencados;

b) Com a parceria do ITESC - Instituto Teológico de Santa Catari-na, na cessão de um espaço destinado a esse trabalho específico, e um link <http://patristica.facasc.edu.br/wp-login.php> de Patrística no seu site para divulgação e banco de dados;

c) Com a Revista Cadernos Patrísticos – Textos e Estudos para divulgação e articulação de todas essas atividades, sobretudo concernentes às publicações;

Como resultado, almejamos implementar os Estudos Patrísticos com melhoria de ensino, incentivo à pesquisa e ampliação do seu campo de extensão, superando o trabalho isolado dos profissionais e interessados da área, promovendo a troca de experiências e frutuosa entreajuda.

Ao término do encontro, iniciamos a composição de uma agenda 2011-2013, incluindo, dentre outras atividades, nosso segundo Encontro Nacional, dentro de um ano.

Solicitamos, a nossos colegas e interessados, nomes e endereços que possam compor um elenco para nosso banco de dados (mala direta),

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Crônicas

permitindo melhor e mais fácil comunicação, bem como circulação de informações diversas.

Sem mais para o momento, colocamo-nos inteiramente à disposi-ção para ulteriores esclarecimentos e sugestões, enquanto firmamo-nos mui atenciosamente

Pe. Dr. Edinei da Rosa Cândido (ITESC – SC)Frei Ms. Heres Drian de Oliveira Freitas, OSA (Ed. Paulus – SP)

Dr. João Eduardo Pinto Basto Lupi (UFSC – SC)Frei Ms. Pe. José Almy Gomes, OP (EDT – SP)

Mestrando Raphael Novaresi Leopoldo (UFSC – SC)Pe. Ms. Ulysses Roberto Lio Trópia (PUC – MG)

Dr. Valberto Dirksen (UFSC – SC)

Florianópolis (Ilha de Santa Catarina), 08 de dezembro de 2011.Solenidade da Imaculada Conceição de Maria.

Lançamentos de nossos professores

Pe. Elias WOLFF: Unitatis redintegratio, Dignitatis humanae, Nostra aetate – Texto e Comentários, da Coleção “Revisitar o Concílio”, São Paulo, Paulinas, 2012.

A obra apresenta os três documentos do Concílio Vaticano II que propõem uma nova visão das igrejas e das religiões, for-necendo as bases para o diálogo ecumênico e interreligioso. Trata do empenho da Igreja do Concílio em favor do movi-mento ecumênico, do diálogo interreligioso e da promoção da liberdade religiosa, com as conseqüentes implicações para a vida e a missão da Igreja. Busca uma visão de conjunto sobre os três documentos conciliares, sem perder a especificidade de cada um, mostrando o percurso histórico da formação dos três documentos e uma análise da sua recepção na vida da Igreja. Tem como diferencial o equilíbrio entre a linguagem acadêmica e a acessibilidade ao leitor, tornando-se um texto recomendável a todos os agentes de pastoral. Esta obra é uma excelente contribuição para a continuidade do processo de recepção do Concílio Vaticano II e a celebração de seus 50 anos, fortalecendo o seu objetivo de impulsionar o diálogo ecumênico e interreligioso.

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Pe. José Artulino BESEN: História da Igreja no Brasil. O Evan-gelho acolhido pelos pobres, Florianópolis/São Paulo, Editora Mundo e Missão, 2012.

O subtítulo do livro é o pano de fundo que acompanha o lei-tor. Os pobres acolheram o Evangelho e, ao mesmo tempo, os pobres sofreram por causa de um Evangelho anunciado em conluio com o poder. A obra consegue oferecer um painel vivo desses 500 anos da Igreja Católica no Brasil. Ao longo dos trinta e oito capítulos – propositadamente numerosos, porque breves – acompanhamos os encontros e desencontros com os índios, os negros, os camponeses, os profetas, os missionários, enfim, os “pobres do sistema”, na expressão de Enrique Dussel. Na vivacidade da fé católica percorremos os caminhos mis-sionários, os santuários, os bispos pastores, os beatos e beatas, os mártires, no colorido e arte com que o povo manifesta sua fé. Uma rica iconografia, ressaltada pelo papel cuchê, ajuda o leitor a percorrer o texto. Apesar das não muitas citações, uma ampla e atualizada bibliografia garante a objetividade das informações.

Milton Schwantes1, in memoriam

“O professor Milton marcou a vida de gerações de estudantes de Teologia. E são marcas que não somente nos acompanham, mas deter-minam em boa medida o nosso labor teológico”. A afirmação integra nota da Presidência da IECLB por ocasião da morte do Pastor Milton Schwantes, publicada em seu sítio em 01-03-2012, e reproduzida pelo Instituto Huamnitas Unisinos (IHU) em 02-03-2012.

Eis a nota:

Ousadia. Boa dose de irreverência. Inteligência. Pesquisa que vai às raízes. Companheiro instigador de estudantes. Contador de histórias e estórias inspiradoras. Pastor de comunidade. Pessoa simples. Doutor em Teologia que perguntou a respeito de “O direito dos pobres”, título da sua tese. Estas são algumas das palavras e afirmações que nos remetem a Milton Schwantes. Milton Schwantes – Pastor da IECLB, Doutor em Teologia, biblista, pesquisador, professor. Em meio à dor e ao luto, mas

1 Milton SCHWANTES esteve no ITESC, na década de 80, ministrando com grande sucesso uma Semana Teológica (Nota da Redação)

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Crônicas

com o mesmo reconhecimento de Jó, proclamamos em gratidão a Deus: O Senhor o deu e o Senhor o tomou; bendito seja o nome do Senhor (Jó 1.21).

Como Pastor, mas especialmente como Professor, Milton deixa-rá marcas indeléveis. Quero destacar uma delas, até porque tem a ver comigo, hoje Pastor Presidente da IECLB, mas antes disso aluno do Professor Milton. Como professor de Antigo Testamento, Milton nos tomava pela mão e conduzia através dos textos bíblicos. Usando uma figura, podemos dizer que ele se inclinava conosco para beber da fonte da água pura; para bisbilhotar atrás da letra; para sorver da essência. E assim o professor Milton marcou a vida de gerações de estudantes de Teologia. E são marcas que não somente nos acompanham, mas de-terminam em boa medida o nosso labor teológico. Com alegria e com profunda gratidão ao Professor Milton, reconhecemos e carregamos as marcas que ele deixou em nós.

Num horizonte mais amplo, tenho a convicção de que o grande legado de Milton são as tantas marcas que ficaram por onde ele passou. Marcas que inspiraram e continuam inspirando. Marcas que questionaram e continuam questionando.

Em nome da IECLB – Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil externamos a gratidão a Deus por nos ter presenteado com a história de Milton Schwantes. Igualmente em nome da IECLB estende-mos o abraço solidário aos familiares.

Solidário no luto, ancorado na esperança da ressurreição para a vida eterna,

P. Dr. Nestor Paulo FriedrichPastor Presidente

Formação Permanente dos Diáconos – 2012

A formação permanente para os diáconos da arquidiocese de Flo-rianópolis deve realizar-se todos os anos, e tem por objetivo atualizar os vários aspectos da formação, uma vez que a realidade é dinâmica e precisa ser sempre de novo confrontada com os dados da fé cristã. Constitui um mecanismo permanente de atualização para os diáconos.

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Crônicas

Esta formação específica está prevista uma vez por ano. Além desse momento, os diáconos têm uma jornada de formação conjunta com as espoas, e retiro espiritual anual, como ainda dois encontros com todo o clero arquidiocesano e vários encontros comarcais.

Desta sessão de formação, ocorrida de 2 a 4 de março no Pro-vincialado das Irmãs da Divina Providência, participaram 52 diáconos. Dez diáconos justificaram sua ausência. Há diáconos enfermos, portanto impedidos de participar. Um número expressivo, infelizmente não com-pareceu, nem justificou ausência. Dom Wilson marcou sua presença, falando aos diáconos sobre a importância da formação permanente e sobre a convivência fraterna no diacônio. A próxima formação permanente será nos dias 1, 2 e 3 de março de 2013, novamente em Florianópolis.

Os temas, tratados por professores da Facasc/ITESC, foram os seguin-tes: A Exortação pós-Sinodal Verbum Domini (Pe. Siro Manoel de Oliveira). Temas relativos à teologia sobre anjos e demônios (Pe. Vitor G. Feller). Temas de moral sexual (Pe. Márcio Bolda da Silva). Temas relacionados à Celebração do Culto Dominical da Palavra de Deus (Pe. Valter M. Goedert).

Início das comemorações dos 40 anos do ITESC

No dia 29-02, os bispos de Santa Catarina, CNBB Regional Sul IV, estiveram todos no ITESC, participando da concelebração em ação de graças pelo 40º ano acadêmico do ITESC, recentemente elevado à condição de Faculdade Católica, FACASC, reconhecida pelo MEC. A concelebração foi presidida por Dom Manoel João Francisco, Bispo de Chapecó, ex-Professor e ex-Diretor do ITESC. Entre outros cantos, entoados na oportunidade, cantou-se o “Te Deum” em português, texto da Liturgia das Horas, com as estrofes intercaladas pelo refrão “Entoai ação de graças!” Cantou-se também a “Invocação a Nossa Senhora do ITESC”, letra e música do Pe. Ney Brasil. Logo após a concelebração, fez-se o lançamento do último livro do Pe. José Artulino Besen, “História da Igreja no Brasil. O Evangelho acolhido pelos pobres”. A apresentação do livro foi feita pelo Pe. Ney Brasil Pereira. Ato contínuo, procedeu-se à inauguração da coleção patrística “Sources Chrétiennes”, com quase 600 volumes, inteiramente doada à Biblioteca do ITESC pelo Pe. José Artulino Besen, há 35 anos professor de História da Igreja em nosso Instituto.

Entre outras atividades comemorativas, está prevista uma Semana Teológica na primeira semana de setembro, de 03 a 06, focalizando os

192 Encontros Teológicos nº 61Ano 27 / número 1 / 2012

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50 anos da abertura do Concílio Vaticano II, com a participação, entre outros, de Dom Demétrio Valentini e de Pe. João Libânio SJ. No dia 06-09 à noite, no Teatro Pedro Ivo, teremos a apresentação de uma peça teatral sobre o Contestado, o conflito messiânico-popular que ensangüentou o nosso meio Oeste há 100 anos, de 1912 a 1916. No dia 07-9 está previsto o Encontrão dos ex-alunos do ITESC, na igreja e no salão paroquial da Trindade. Logo que possível será lançado um folder alusivo a essas co-memorações. Nesse meio tempo, organizem-se, os ex-alunos, presbíteros ou leigos/as, e compareçam. Quem sabe, surgirá uma “Associação dos ex-alunos do ITESC”, por que não?

A Nossa Senhora do ITESCTexto e Música: Pe. Ney Brasil

Refrão: Ó Nossa Senhora do ITESC, ó nossa Mãe, ouvi o louvor e a oração, ó Mãe de Deus!1. Formastes Jesus Sacerdote, / a Ele ensinastes a andar, / a Ele

que é a Palavra fizestes falar, No lar-Nazaré o educastes, / no lar, Seminário de amor, / atenta

a seus primeiros passos que levam ao Tabor.

Maria, rogai por nós! Formai-nos, também a nós!

2. No início do seu ministério, / o vinho faltando em Caná, / a vossa palavra o levou a sua Glória mostrar,

Olhai para nossas carências, / nossa água em vinho mudai, / e tudo o que Ele disser nós faremos ao Pai!

Maria, rogai por nós! Formai-nos, também a nós!

3. Na Cruz estivestes com Ele, / com Ele quisestes sofrer, / e Mãe vos tornastes de quem vos quiser receber,

Pois nós, como João, decidimos / no ITESC, entre nós, acolher-vos, / Mostrai que vós sois Mãe fiel destes filhos e servos!

Maria, rogai por nós! Formai-nos, também a nós!

4. Ó Mãe da Unidade, Maria, / que lá no Cenáculo orastes / e os dons do Espírito Santo à Igreja alcançastes,

Fazei que a unidade busquemos / aquela que faz superar / as rixas e as divisões mais profundas que o mar...

Maria, rogai por nós! Formai-nos, também a nós! Florianópolis, ITESC, 29-02-2012


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