+ All Categories
Home > Documents > G. K. Chesterton [=] A cruz azul

G. K. Chesterton [=] A cruz azul

Date post: 06-Jul-2018
Category:
Upload: saint-guinefort
View: 218 times
Download: 0 times
Share this document with a friend
52
8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 1/52  . K. Chesterton  A CRUZ  AZUL 
Transcript
Page 1: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 1/52

  . K. Chesterton

 A CRUZ  AZUL 

Page 2: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 2/52

[1]

Entre o prateado da manhã e o verde cinti-lante do mar, a balsa atracou em Harwich e

liberou um enxame de pessoas; no meio delas,o homem que devemos acompanhar não estavade modo algum evidente — nem desejava es-tar. Não havia nada de notável nele, exceto um

leve contraste entre a alegria das roupas e aseriedade formal do rosto. O casaco leve cinza-claro, o colete branco e o chapéu de palha pra-teado com faixa azul-acinzentada deixavam

sombrio o rosto magro, que terminava numabarba negra e curta à moda espanhola, lem-brando um colarinho elisabetano. Fumava umcigarro com a seriedade de um desocupado.

Nada nele sugeria o fato de que o casaco cinzaescondia um revólver carregado e o coletebranco, um distintivo policial, nem que o cha-péu de palha cobria um dos intelectos mais po-

derosos da Europa. Tratava-se de Valentin empessoa, o chefe da polícia parisiense e investi-gador mais famoso do mundo; vindo de Bruxe-

Page 3: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 3/52

[2]

las para Londres com o objetivo de efetuar amaior prisão do século.

Flambeau estava na Inglaterra. A polícia detrês países havia finalmente encontrado o rastrodo grande criminoso, desde Gante até Bruxelase de Bruxelas até a cidade portuária de Hook

 van Holland; tudo indicava que ele pretendia seaproveitar da novidade e da confusão do Con-gresso Eucarístico que estava acontecendo emLondres. Era bem provável que ele viajasse co-

mo um clérigo subalterno ou secretário vincu-lado ao Congresso, mas, é claro, Valentin nãopodia ter certeza; ninguém podia ter certezaquanto a Flambeau.

 Já fazia um bom tempo desde que esse co-losso do crime, de repente, cessara de colocar omundo em polvorosa; e, quando ele cessou,assim como disseram após a morte de Rolando,

fez-se um grande silêncio sobre a Terra. Masem seus melhores dias (na verdade, é claro, emseus piores), Flambeau era uma figura tão im-

Page 4: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 4/52

[3]

ponente e internacional quanto o Kaiser1. Qua-se todas as manhãs, o jornal anunciava que ele

havia escapado das consequências de um crimeextraordinário cometendo outro. Era um gas-cão de estatura gigantesca e físico arrojado; e ashistórias mais fantásticas eram contadas sobre

seus rompantes vigorosos de humor; comoquando ele agarrou o juiz de instrução pelospés e o virou de cabeça para baixo, “para clare-ar as ideias”; como quando desceu a Rue de

Rivoli com um policial debaixo de cada braço.É justo dizer que seu fantástico vigor físico emgeral era empregado em cenas que não eramsanguinárias, embora fossem indignas; os seus

crimes verdadeiros eram, sobretudo, aquelesroubos habilidosos e por atacado. Mas cada umde seus roubos era quase um novo pecado econstituía uma história que valia por si mesma.

1  Provável referência ao imperador alemão Guilherme

II, considerado na época o “homem mais interessante

da Europa”. (N.T.)

Page 5: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 5/52

[4]

Foi ele quem fez funcionar a importante Com-panhia Leiteira Tirolesa em Londres, sem lati-

cínios, nem vacas, nem carroças, nem leite, mascom alguns milhares de investidores. Conse-guiu isso com a simples operação de mover aspequenas vasilhas de leite da porta das pessoas

para a porta de seus próprios fregueses. Foi elequem manteve uma correspondência inexplicá-

 vel e íntima com uma jovem cuja mala postalera interceptada, utilizando-se do extraordiná-

rio truque de fotografar as mensagens em ta-manho infinitesimalmente menor nas lâminasde um microscópio. Uma grande simplicidade,entretanto, marcava muitos de seus experimen-

tos. Disseram que uma vez ele repintou todosos números em uma rua na calada da noite,apenas para atrair um viajante em uma cilada.É quase certo que ele inventou a caixa de cor-

reio portátil, que colocava nas esquinas dosbairros mais calmos, para o caso de forasteiros jogarem vales postais ali. Além disso, era co-

Page 6: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 6/52

[5]

nhecido por ser um acrobata surpreendente:apesar da enorme silhueta, podia saltar como

um gafanhoto e desaparecer nas copas das ár- vores como um macaco. Por isso, o grande Va-lentin, quando saiu à caça de Flambeau, estavabem ciente de que suas aventuras não acabari-

am quando o encontrasse.Mas como ele o encontraria? Nesse aspecto

as ideias do grande Valentin continuavam emprocesso de amadurecimento.

Havia uma coisa que Flambeau, com todasua destreza em disfarces, não conseguia es-conder: a estatura peculiar. Se o olho rápido de

 Valentin tivesse percebido uma vendedora de

maçãs altíssima, um soldado pernalta ou atémesmo uma duquesa de boa altura, poderia tê-los prendido no ato. Mas em todo o seu per-curso não encontrou ninguém que pudesse ser

um Flambeau disfarçado, a menos que girafasconsigam se disfarçar de gatos. Quanto às pes-soas da balsa, ele já estava satisfeito; e as pesso-

Page 7: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 7/52

[6]

as que embarcaram no trem em Harwich ounas estações do caminho com certeza se limita-

 vam a seis. Havia um oficial de ferrovia, meiotampinha, viajando até o ponto final; três hor-ticultores baixotes, que subiram a bordo duasestações depois; uma viúva nanica de uma ci-

dadezinha de Essex e um padre católico bembaixinho, de um vilarejo também de Essex.Quando chegou ao último caso, Valentin desis-tiu e quase caiu na risada. O pequenino padre

era a essência daquelas planícies do Leste: tinhao rosto tão redondo e opaco quanto um boli-nho típico de Norfolk, olhos tão vagos quantoo Mar do Norte e vários embrulhos de papel

pardo que mal conseguia carregar. Sem dúvida,o Congresso Eucarístico tinha atraído de seuslugarejos estagnados muitos tipos de criaturas,cegas e indefesas como toupeiras desenterradas.

 Valentin era um cético ao estilo severo daFrança e não conseguia gostar de padres. Maspodia ter pena deles, e aquele teria provocado

Page 8: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 8/52

[7]

pena em qualquer um. Levava um guarda-chuva grande e surrado, que caía a toda hora

no chão. Parecia não saber qual era o destinoexato do bilhete de volta. Explicou para todosno vagão, com a simplicidade de um bobo, queprecisava ser cuidadoso, porque trazia consigo

uma coisa feita de prata legítima, “incrustadacom pedras azuis”, num dos embrulhos de pa-pel pardo. Sua mistura pitoresca da monotoniade Essex com uma simplicidade impecável di-

 vertiu ininterruptamente o francês até o padrechegar (não se sabe como) em Stratford comtodos os embrulhos, mas deixando o guarda-chuva para trás. Quando ele voltou para bus-

car, Valentin, generoso, alertou-o que contar atodos sobre a prata não era a melhor maneirade cuidar dela. Mas, seja com quem estivessefalando, Valentin ficava de olho nas pessoas ao

redor; perscrutava qualquer pessoa, rica ou po-bre, homem ou mulher, com mais de um me-tro e oitenta de altura, pois Flambeau tinha dez

Page 9: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 9/52

[8]

centímetros mais.De qualquer modo, Valentin desembarcou

na Liverpool Street, muito seguro e certo deque não havia deixado escapar o criminoso atéaquele momento. Depois foi à Scotland Yardpara regularizar sua situação e conseguir ajuda

caso fosse preciso. Então, acendeu outro cigarroe saiu para um longo passeio nas ruas de Lon-dres. Quando estava andando nas ruas e praçasdo outro lado da Victoria Street, estacou de

repente. Era uma praça tranquila, singular, tí-pica de Londres, cheia de uma serenidade casu-al. As casas altas e retas em volta pareciam aomesmo tempo prósperas e desabitadas; a praça

de arbustos no centro parecia tão deserta quan-to uma ilhota verde do Pacífico. Um dos quatrolados era muito mais alto que os outros, comoum altar, e o traçado desse lado era interrom-

pido por uma das mais admiráveis casualidadesde Londres — um restaurante que parecia terse desgarrado do Soho. Era um objeto atraente

Page 10: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 10/52

[9]

sem motivos, com bonsais em vasos e cortinaslongas, listradas em amarelo-limão e branco.

Situava-se de modo especialmente elevado narua e, no formato usual de colcha de retalhosde Londres, um lance de degraus subia da ruaaté a porta da frente, quase como uma escada

de incêndio chega a uma janela do segundopiso. Valentin parou e fumou em frente às cor-tinas em amarelo e branco e achou-as compri-das.

O que há de mais inacreditável nos mila-gres é que eles acontecem. Algumas nuvens nocéu agrupam-se para formar um olho humano.Uma árvore destaca-se na paisagem de uma

 jornada duvidosa na forma exata e elaborada deum sinal de interrogação. Eu mesmo vi as duascoisas nos últimos dias. Nelson morre, de fato,no instante da vitória; e um homem chamado

 Williams mata de forma completamente aci-dental um homem chamado Williams Jr.; issosoa meio como um infanticídio. Resumindo, na

Page 11: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 11/52

[10]

 vida existe um elemento mágico nas coincidên-cias que as pessoas ao pensar no prosaico talvez

nunca notem. Como bem expressa o paradoxode Poe, a sabedoria tem de levar em conta oinesperado.

 Aristide Valentin era francês por completo;

e a inteligência francesa é uma inteligência es-pecial e única. Ele não era uma “máquina depensar”, pois isso é uma expressão estúpida domaterialismo e do fatalismo modernos. Uma

máquina só é uma máquina porque não conse-gue pensar. Mas ele era um homem pensante ecomum ao mesmo tempo. Todos os seus mara-

 vilhosos sucessos, que pareciam magia, tinham

sido obtidos por uma lógica criteriosa, por umpensamento francês comum e claro. Os france-ses impressionam o mundo não por inventa-rem quaisquer paradoxos; eles deslumbram por

agirem de acordo com truísmos. Eles levam ostruísmos às últimas consequências — como naRevolução Francesa. Mas justo porque Valentin

Page 12: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 12/52

[11]

entendia a razão, entendia os limites da razão.Só um homem que não sabe nada sobre auto-

móveis fala sobre automobilismo sem gasolina;só um homem que não sabe nada sobre a razãofala sobre raciocínio sem princípios básicos in-contestáveis e fortes. Aqui ele não tinha princí-

pios básicos fortes.Flambeau desapareceu em Harwich, e, de

qualquer modo, se estava em Londres, podiaser qualquer um, desde um vagabundo alto no

parque de Wimbledon até um recepcionistaalto no Hôtel Métropole. Quando em tal estadopuro de ignorância, Valentin tinha pontos de

 vista e métodos próprios.

Em tais casos, ele contava com o inespera-do. Em tais casos, quando não podia seguir ocurso do razoável, de modo cuidadoso e frio,seguia o curso do irracional. Em vez de ir aos

lugares certos: bancos, postos de polícia, pros-tíbulos, de modo sistemático, ele ia aos lugareserrados; batia à porta de todas as casas desocu-

Page 13: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 13/52

[12]

padas, entrava em todos os becos sem saída,subia cada ruela bloqueada com entulhos, cir-

culava em cada rua curva que o desviava inu-tilmente para fora do caminho. Defendia essetrajeto louco de forma bastante lógica. Diziaque, se alguém tinha uma pista, esse era o pior

caminho, mas se alguém não tinha pista ne-nhuma, então esse seria o melhor caminho,pois havia justamente a chance de que algumaesquisitice que chamasse a atenção do perse-

guidor também tivesse chamado a do persegui-do. Um homem precisa de um lugar para co-meçar, e seria melhor que fosse onde outrohomem pudesse parar. Algo naquele lance de

degraus subindo para o estabelecimento, algona calma e excentricidade do restaurante des-pertou toda a sua rara imaginação romântica dedetetive e o fez investir no acaso. Subiu os de-

graus, abancou-se a uma mesa junto à janela epediu uma xícara de café preto. A manhã já estava na metade, e ele ainda

Page 14: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 14/52

[13]

não tomara café; restos de outros cafés da ma-nhã estavam sobre a mesa para lembrá-lo de

sua fome. Acrescentando ovos pochés ao seupedido, distraidamente mexeu o açúcar no café,pensando o tempo todo em Flambeau. Recor-dou como Flambeau escapara uma vez usando

um par de tesourinhas de unhas e outra vezpor uma casa em chamas; uma vez tendo depagar por uma carta sem selo e noutra conse-guindo que as pessoas olhassem ao telescópio

um cometa que poderia destruir o mundo. Va-lentin julgava seu cérebro de detetive tão bomquanto o do criminoso, o que era verdade. Maspercebia plenamente a desvantagem: “O crimi-

noso é o artista criativo; o detetive, apenas ocrítico”, murmurou com um sorriso amargo.Devagar, ergueu a xícara aos lábios e largou-amuito rápido. Havia colocado sal no café.

Olhou para o pote do qual veio o pó prate-ado; com certeza era um açucareiro; sem dúvi-da, tão apropriado para o açúcar quanto uma

Page 15: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 15/52

[14]

garrafa de champanhe para o champanhe. Fi-cou imaginando por que serviriam sal no açu-

careiro. Olhou para ver se havia frascos maisortodoxos.

Sim, havia dois saleiros quase cheios. Po-rém, havia uma particularidade no condimento

dos saleiros. Ele experimentou; era açúcar. De-pois olhou em volta com revigorado ar de inte-resse pelo restaurante, para ver se havia quais-quer outros traços daquele peculiar gosto artís-

tico que coloca açúcar no saleiro e sal no açu-careiro. Exceto as manchas esquisitas de umlíquido escuro no papel de parede branco, olugar todo parecia comum, alegre e limpo. To-

cou a sineta para chamar o garçom.Quando o funcionário se aproximou apres-sado, com o cabelo desarrumado e um olharmeio turvo já tão cedo, o detetive (com admi-

ração pelas formas de humor mais simples) pe-diu para ele experimentar o açúcar e ver se oproduto estava à altura da reputação do hotel.

Page 16: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 16/52

[15]

Como resultado, o garçom bocejou de repentee despertou.

— É costume fazer essa brincadeira delica-da com os fregueses todas as manhãs? — per-guntou Valentin. — Nunca perde a graça tro-car o açúcar pelo sal?

Quando entendeu a ironia, o garçom asse-gurou gaguejando que o estabelecimento comcerteza não tivera essa intenção, devia ser omais curioso dos enganos. Pegou e observou o

açucareiro; pegou e observou o saleiro; o rostocada vez mais confuso. Por fim, ele se descul-pou de forma abrupta e saiu rápido. Segundosdepois, retornou com o dono, que também

examinou o açucareiro e depois o saleiro comar não menos confuso.De repente, o garçom balbuciou uma tor-

rente de palavras:

— Eu tô ajando — gaguejou ansioso —,eu ajo que foi aqueles dois badres.— Que dois padres?

Page 17: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 17/52

[16]

— Os dois badres — explicou o garçom —que jogaram soba na parede.

— Sopa na parede? — repetiu Valentin,com a sensação de que aquilo devia ser umasingular metáfora italiana.

— Sim, sim — reiterou o garçom empol-

gado, apontando as manchas escuras no papelde parede branco —, bem ali na barede.

 Valentin olhou com dúvida para o dono,que veio em seu socorro com o relato comple-

to.— Sim, sim. É mesmo verdade, mas eu não

imaginava que tinha algo a ver com o açúcar eo sal. Dois padres vieram aqui muito cedo, as-

sim que os postigos foram abaixados, e toma-ram sopa. Os dois eram muito calmos, pessoasrespeitáveis; um deles pagou a conta e saiu; ooutro, o vagão mais lento do comboio, ficou

mais um tempinho juntando as coisas. Masenfim foi saindo. Pois não é que, no instanteantes de sair para a rua, ele ergueu a tigela ain-

Page 18: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 18/52

[17]

da com sopa pela metade e, de propósito, jogouo líquido na parede? Eu estava no salão de trás,

e o garçom também; só tive tempo de correrpara cá e encontrar a parede respingada e oestabelecimento vazio. Isso não causou ne-nhum dano em especial, mas foi um atrevimen-

to desconcertante. Eu tentei alcançar os ho-mens na rua, mas eles já estavam muito longe;só reparei que dobraram na esquina com aCarstairs Street.

O detetive agora estava de pé, chapéu nacabeça e bengala na mão. Já havia decididoque, na escuridão universal em que estava mer-gulhada a sua mente, a única coisa a fazer era

seguir o primeiro dedo estranho que apontasse;e aquele dedo era estranho o suficiente. Pagan-do a conta e batendo a porta de vidro atrás desi, no instante seguinte enveredava pela outra

rua.Felizmente, até mesmo nesses momentosfebris seu olho era frio e rápido. Algo na facha-

Page 19: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 19/52

[18]

da de uma loja foi para ele como um lampejo; voltou para olhar. Era uma loja popular de fru-

tas, verduras e uma série de mercadorias dis-postas a céu aberto, etiquetadas com nomes epreços.

Nos dois compartimentos mais proeminen-

tes havia dois montes, um de laranjas e o outrode castanhas-do-pará. Na pilha de castanhasestava posicionado um cartaz de papelão, comletras escritas em giz azul forte: “As melhores

laranjas, duas por um penny”. Nas laranjas, amesma descrição clara e exata: “As melhorescastanhas-do-pará, uma libra por quatro pen-ces”.

Monsieur Valentin olhou para esses doiscartazes e observou que havia visto antes aque-la sutil manifestação de humor, há não muitotempo. Chamou a atenção sobre a troca dos

cartazes ao fruteiro, que olhava emburrado pa-ra um lado e para o outro da rua. O fruteironão disse nada, mas colocou cada papelão no

Page 20: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 20/52

[19]

lugar certo rispidamente. O detetive, apoiando-se com elegância na bengala, continuou a es-

crutinar a tenda. Enfim, falou:— Peço desculpas pela minha aparente

impertinência, meu bom senhor, mas eu gosta-ria de lhe fazer uma pergunta entre psicologia

experimental e associação de ideias. — O ven-dedor irritado o fitou com olhar ameaçador,mas Valentin continuou alegremente, balan-çando a bengala.

— Por que... — insistiu ele — por que du-as placas ficam deslocadas numa quitanda co-mo padres com chapéus de abas passeando emLondres? Ou, no caso de eu não ter sido claro,

que associação mística conecta a ideia de casta-nhas-do-pará identificadas como laranjas com aideia de dois padres, um alto e outro nanico?

Os olhos do negociante saltaram como os

de uma cobra; por um momento, pareceumesmo que ele ia dar o bote no estranho. En-fim, gaguejou zangado:

Page 21: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 21/52

[20]

— Eu não sei o que o senhor tem a vercom isso, mas, se é amigo deles, pode dizer pa-

ra aqueles dois palhaços que vou nocauteareles, padres ou não, na próxima vez que derru-barem minhas maçã.

— Mesmo? — perguntou o detetive com

imensa simpatia. — Derrubaram as maçãs?— Um deles, foi sim — disse o enfático

 vendedor —, e as maçã rolaram por toda a rua.Eu ia dar uma lição no idiota, mas tive que jun-

tar tudo.— Para que lado esses padres foram? —

perguntou Valentin.— Pegaram a segunda rua às esquerda e

despois atravessaram a praça — disse o outroprontamente.— Obrigado — respondeu Valentin e de-

sapareceu como um duende.

Do outro lado da segunda esquina, eleachou um policial e perguntou:— É urgente, policial! Não viu dois padres

Page 22: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 22/52

[21]

com chapéus de abas?O policial começou a gargalhar:

— Vi, sim senhor! E, já que o senhor mepregunta, um deles tava bêbado. Ficou ali ton-to, parado no meio da rua...

— Para que lado eles foram? — interrom-

peu Valentin.— Pegaram um daqueles ônibus amarelo

bem ali — respondeu o homem —, que depois vai pra Hampstead.

 Valentin mostrou seu distintivo e faloumuito rápido:

— Chame dois de seus homens para viremcomigo em perseguição.

E atravessou a rua com uma energia tãocontagiante que o desajeitado policial foi movi-do por uma obediência quase ágil. Em um mi-nuto e meio, o detetive francês estava acompa-

nhado, do outro lado da calçada, por um inspe-tor e um policial à paisana.— Bem, senhor — disse o primeiro, com

Page 23: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 23/52

[22]

importância sorridente —, e o que podemos... Valentin apontou de repente com a benga-

la:— Vou lhe dizer a bordo daquele ônibus

— disse ele correndo e esquivando-se em meioao tráfego emaranhado. Quando os três desa-

baram ofegantes nos assentos do segundo an-dar do veículo amarelo, o inspetor disse:

— A gente podia ir quatro vezes mais rá-pido num táxi.

— É bem verdade — respondeu o lídercom calma —, se tivéssemos pelo menos ideiade onde estamos indo.

— Bom, mas aonde você está indo? —

perguntou o outro, olhando-o espantado. Valentin fumou com um rosto sombrio poralguns segundos; depois, tirando o cigarro daboca, falou:

— Se você sabe o que um homem está fa-zendo, chegue à frente dele, mas se você querdescobrir o que ele está fazendo, mantenha-se

Page 24: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 24/52

[23]

atrás dele. Perca-se quando ele se perder, parequando ele parar, viaje tão devagar quanto ele.

Então conseguirá ver o que ele viu e agir comoele agiu. O melhor a fazer é ficarmos atentospara alguma coisa estranha.

— Que tipo de coisa estranha? — pergun-

tou o inspetor.— Qualquer tipo de coisa estranha — res-

pondeu Valentin e mergulhou num silêncioobstinado.

O ônibus amarelo arrastou-se pelas ruas donorte da cidade pelo que pareceram horas a fio;o grande detetive não dava maiores explicações,e seus assistentes talvez estivessem sentindo

uma dúvida crescente e silenciosa quanto àmissão dele. Talvez, também, estivessem sen-tindo um desejo crescente e silencioso de almo-çar, pois as horas se arrastaram muito além da

hora normal de almoço. As longas avenidas dossubúrbios do norte de Londres pareciam seprojetar quilômetro após quilômetro como um

Page 25: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 25/52

[24]

telescópio infernal. Era uma daquelas jornadasem que um homem sente todo o tempo que

enfim chegou ao fim do universo, para depoisdescobrir que só chegou ao início do ParqueTufnell. Londres desapareceu em tabernas sujase arbustos melancólicos e depois renasceu de

forma enigmática em reluzentes avenidas e rui-dosos hotéis.

Foi como passar por treze cidades comuns,todas apenas se tocando. Embora o crepúsculo

do inverno já estivesse ameaçando a estrada àfrente deles, o detetive parisiense permaneceusentado, silencioso e atento, olhando as facha-das das ruas que deslizavam de cada lado.

Quando deixaram Camden Town para trás, ospoliciais estavam quase dormindo; ao menos,deram um pulo quando Valentin levantou-se,muito ereto, deu um tapinha no ombro de cada

um e gritou para o motorista parar.Eles saltaram do degrau do ônibus para arua sem entender por que haviam sido desalo-

Page 26: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 26/52

[25]

 jados; quando olharam ao redor em busca deum esclarecimento, viram Valentin apontando

triunfante em direção a uma janela do lado es-querdo da rua. Era uma janela grande, na longafachada de uma hospedaria dourada e majesto-sa; era a parte reservada para jantares respeitá-

 veis, denominada “Restaurant”. Essa janela,assim como toda a frente do hotel, era adorna-da com vidro jateado, mas no meio dela haviauma rachadura grande e preta, como uma es-

trela no gelo.— Afinal, nossa pista — gritou Valentin,

agitando a bengala —, o lugar com a janelaquebrada.

— Que janela? Que pista? — perguntouseu assistente principal. — Por quê? Que provahá que isso tenha alguma coisa a ver com eles?

 Valentin quase quebrou sua bengala de

bambu com raiva.— Prova! — ele gritou. — Meu bomDeus! O homem está procurando provas! Por-

Page 27: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 27/52

[26]

que, é claro, as chances são de vinte para umque isso não tenha nada a ver com eles. Mas o

que mais podemos fazer? Não vê que devemosseguir qualquer possibilidade absurda ou, docontrário, ir para casa?

Ele entrou de maneira brusca no restauran-

te, seguido por seus companheiros, e logo esta- vam sentados para um almoço tardio a umamesa pequena, olhando para a estrela no vidroquebrado. Embora aquilo não fosse muito in-

formativo para eles.— Estou vendo que quebraram uma janela

— disse Valentin para o garçom, quando pa-gou a conta.

— Sim, senhor — respondeu o atendente,curvando-se com diligência sobre o pagamento,ao qual Valentin silenciosamente acrescentouuma generosa gorjeta. O garçom endireitou-se

com discreta mas inconfundível animação.— Ah! Sim, senhor — disse. — Coisamuito estranha, aquilo, senhor.

Page 28: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 28/52

[27]

— É mesmo? Conte para nós — falou odetetive com despreocupada curiosidade.

— Bem, dois senhores vestidos de pretoentraram — disse o garçom. — Duas daquelaspessoas estranhas que andam por aí. Comeramtranquilos um lanche barato, um deles pagou e

saiu. O outro já estava saindo para se juntar aele quando olhei de novo o valor pago e desco-bri que haviam pago três vezes mais. “Ei!”,chamei o freguês que estava perto da porta, “o

senhor pagou muito mais”. Ele disse bem cal-mo: “Ah! É mesmo?” Eu disse que sim e mos-trei a conta a ele. Bem, aquilo foi um golpe.

— O que você quer dizer? — perguntou

seu interlocutor.— Bem, eu podia jurar sobre sete Bíbliasque tinha colocado 4 xelins na conta. Mas en-tão vi que tinha colocado 14 xelins, claro como

água.— Sim? — gritou Valentin, movendo-sedevagar, mas com olhos flamejantes. — E de-

Page 29: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 29/52

[28]

pois?— O senhor que estava na porta disse,

muito sereno: “Desculpe por confundir suascontas, mas isso vai pagar pela janela”. Eu dis-se: “Que janela?”. Ele respondeu: “A que eu

 vou quebrar”, e bateu naquela vidraça abenço-

ada com o guarda-chuva.Os três investigadores soltaram uma ex-

clamação, e o inspetor sussurrou:— Estamos atrás de fugitivos malucos?

O garçom prosseguiu com certa satisfaçãopela história ridícula:

— Fui pego tão de surpresa que não pudefazer nada. O homem saiu daqui e se juntou ao

amigo já quase na esquina. Depois eles subiramtão rápido a Bullock Street que não pude al-cançá-los, apesar de eu ter contornado o balcãocorrendo.

— Bullock Street — disse o detetive, e dis-parou pela rua tão rápido quanto a estranhadupla que perseguia.

Page 30: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 30/52

[29]

 A jornada agora os conduziu por caminhosde tijolos aparentes, feito túneis; ruas com pou-

cas luzes e igualmente poucas janelas; ruas quepareciam construídas nos espaços vazios portrás de todas as coisas e lugares. O anoitecerintensificava-se, e não era fácil nem mesmo pa-

ra os policiais londrinos supor em que direçãoexata estavam caminhando. O inspetor, entre-tanto, estava certo de que poderiam eventual-mente chegar à charneca Hampstead. De re-

pente, uma vitrine com iluminação a gás que-brou o crepúsculo azul como uma claraboia, e

 Valentin parou um instante em frente a umapequena e vistosa loja de doces. Após um ins-

tante de hesitação, ele entrou; ficou parado emmeio às cores espalhafatosas da confeitaria namais completa seriedade e comprou treze cigar-ros de chocolate com uma indubitável cautela.

Estava, de forma clara, preparando um começode conversa, mas não precisou preparar nada.Uma jovem balconista, envelhecida e ma-

Page 31: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 31/52

[30]

gra, tinha saudado aquele homem elegante comuma simples indagação automática, mas, quan-

do viu a porta atrás dele bloqueada com o uni-forme azul do inspetor, seus olhos pareceramacordar.

— Ah! — ela disse —, se vieram por causa

do embrulho, eu já enviei.— Embrulho! — repetiu Valentin; e foi

sua vez de olhar, questionando.— Quero dizer o embrulho que o cavalhei-

ro esqueceu. O padre!— Por Deus — disse Valentin, inclinando-

se para a frente com sua primeira confissão realde ansiedade —, pelo amor de Deus, conte-nos

o que aconteceu.— Bem — disse a mulher com certa dúvi-da —, os padres entraram faz uma meia hora,compraram balas de hortelã, conversaram um

pouco e depois saíram na direção da charneca.Mas segundos depois um deles voltou corren-do, entrou na loja e disse: “Esqueci um embru-

Page 32: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 32/52

[31]

lho?”Bem, olhei em todos os lugares e não vi

embrulho nenhum, então ele disse: “Não fazmal; mas se o embrulho aparecer, por favor,envie para este endereço”. E me deixou o ende-reço e um xelim pelo contratempo. E realmen-

te, embora eu achasse que tinha olhado em to-dos os lugares, descobri que ele havia deixadoum embrulho de papel pardo, então postei oembrulho para o lugar que ele falou. Não con-

sigo me lembrar o endereço agora; era algumlugar em Westminster. Mas, como a coisa pa-receu tão importante, pensei que talvez a polí-cia tenha vindo por causa disso.

— Pois eles vieram — disse Valentin su-cinto. — A charneca Hampstead fica perto da-qui?

— Exatos quinze minutos — disse a mu-

lher. — Vão chegar na hora de abrir. Valentin saltou para fora da loja e começoua correr. Os outros detetives seguiram-no em

Page 33: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 33/52

[32]

um trote relutante. A rua onde tinham se enfiado era tão es-

treita e sombria que quando de repente saíramna via pública, deserta sob um amplo céu, es-pantaram-se de encontrar a noite ainda tãoiluminada e clara. Uma cúpula verde-pavão

perfeita afundava em ouro, no meio de árvoresenegrecidas e um forte violeta. A tinta verdeprofundo era intensa o suficiente para revelaruma ou duas estrelas como pontinhos de cris-

tal. Tudo que restou da luz do dia pousou emum resplendor dourado sobre a borda deHampstead e sobre aquele vale popularmentechamado de Vale da Saúde. As pessoas que

aproveitavam o fim de semana e passeavam naregião ainda não haviam se dispersado porcompleto; alguns casais estavam sentados dis-formes nos bancos; aqui e ali uma menina ao

longe ainda soltava gritinhos em um dos balan-ços. A glória do céu se intensificou e escureceuem torno da sublime mediocridade do homem;

Page 34: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 34/52

[33]

parado sobre o declive e olhando para o vale, Valentin contemplou aquilo que buscava.

Entre os grupos escuros e dispersos naque-la distância estava um especialmente escuro enão disperso — um grupo de duas figuras ves-tidas de clérigos. Embora parecessem pequenos

como insetos, Valentin pôde ver que um delesera bem menor que o outro. Embora o outrotivesse um corpo de estudante e uma atitudeinsuspeita, ele notou que o homem tinha mais

de um metro e oitenta de altura. Cerrou osdentes e seguiu em frente, rodopiando a benga-la de modo impaciente.

Quando reduziu de forma considerável a

distância, e as duas figuras negras ficaram am-pliadas como em um imenso microscópio, elepercebeu algo mais, algo que o surpreendeu eque de forma alguma havia suposto. Quem

quer que fosse o padre alto, não poderia haverdúvida sobre a identidade do baixinho. Era seuamigo do trem de Harwich, o curé  pequeno e

Page 35: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 35/52

[34]

roliço de Essex a quem havia advertido sobreos embrulhos de papel pardo.

 A essa altura, tudo se ajustava de formabastante decisiva e racional. Valentin tinha des-coberto por suas indagações, naquela manhã,que um certo Padre Brown de Essex trazia uma

cruz de prata com safiras, relíquia de valor con-siderável, para mostrar a alguns dos padres es-trangeiros no congresso. Sem dúvida era a“prata com pedras azuis”; e sem dúvida o Padre

Brown era o homem simplório no trem. Nãohavia nada espantoso no fato de que Flambeaudescobrira o que Valentin descobrira; afinal,Flambeau descobria tudo. Além disso, não ha-

 via nada espantoso no fato de que, quandoFlambeau ouvisse falar na cruz de safira, ten-tasse roubá-la; isso era a coisa mais natural emtoda a história natural. E ainda mais certo era

que não houvesse nada espantoso no fato deFlambeau ter conseguido tudo isso à sua pró-pria maneira, em se tratando do bobo cordeiri-

Page 36: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 36/52

[35]

nho com o guarda-chuva e os embrulhos. Eleera o tipo de homem que qualquer um poderia

conduzir em uma corda até o Polo Norte; nãoera surpresa que um ator como Flambeau, ves-tido como outro padre, pudesse conduzi-lo pa-ra a charneca Hampstead. Até ali, o crime pa-

recia bastante claro; e se por um lado o detetivelamentava a vulnerabilidade do padre, pelo ou-tro quase desprezava Flambeau por se dignar aatacar uma vítima tão ingênua. Mas quando

 Valentin pensou em tudo que acontecera nessemeio-tempo, em tudo que o conduzira ao seutriunfo, exauriu seus miolos com os pequenosfatos inexplicáveis. O que o roubo de uma cruz

azul e prateada de um padre de Essex tinha a ver com sopa atirada no papel de parede? Oque isso tinha a ver com chamar laranjas decastanhas, ou com pagar por janelas antes e

quebrá-las depois? Ele tinha chegado ao fim desua perseguição, ainda que de alguma formahouvesse perdido o meio dela. Quando falhava

Page 37: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 37/52

[36]

(o que era raro), em geral tinha chegado à so-lução do enigma, embora perdesse o criminoso.

 Aqui ele havia chegado ao criminoso, mas ain-da não conseguira chegar à solução do enigma.

Os dois vultos que eles seguiam rastejavamcomo moscas pretas pelo grande contorno ver-

de da montanha. Estavam, de forma evidente,imersos em conversações, e talvez não tivessemnotado aonde estavam indo, mas com certezarumavam ao cume mais silencioso e ermo da

charneca. À medida que se aproximavam deles,seus perseguidores tiveram de adotar as atitu-des indignas do caçador de cervos: armar o bo-te por detrás de capões de árvores e até mesmo

rastejar na relva alta. Por meio dessas engenho-sidades nada graciosas, os caçadores chegaramperto o suficiente da presa para ouvir os mur-múrios da discussão, mas nenhuma palavra

podia ser distinguida, a não ser a palavra “ra-zão” evocada com frequência em uma voz agu-da e quase infantil. Assim que alcançaram o

Page 38: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 38/52

[37]

topo de um abrupto declive e um denso ema-ranhado de moitas, os detetives efetivamente

perderam os dois vultos de vista. Não encon-traram o rastro de novo por dez agonizantesminutos, e isso os levou à borda do grandecume de uma montanha, com vista para um

anfiteatro com um cenário de pôr do sol rico edesolador. Embaixo de uma árvore, nesse localgrandioso ainda que negligenciado, havia umbanco de madeira em ruínas. Nesse banco, es-

tavam sentados os dois padres, imersos em suacalorosa conversação. O verde e o douradoainda se uniam esplêndidos ao horizonte escu-recido, mas o firmamento se transformava len-

tamente de verde-pavão em azul-pavão, e asestrelas destacavam-se cada vez mais como joiassólidas. Acenando em silêncio para os compa-nheiros, Valentin rastejou por trás da árvore

grande e cheia de galhos e lá, em silêncio mor-tal, escutou pela primeira vez as palavras dosestranhos padres.

Page 39: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 39/52

[38]

Depois de escutar por um minuto e meio,ele foi tomado por uma dúvida infernal. Talvez

tivesse arrastado os dois policiais ingleses parao ponto mais ermo de uma charneca, à noite,em uma incumbência tão insensata como pro-curar figos em cardos. Porque os dois padres

conversavam exatamente como padres, de for-ma respeitosa, com erudição e calma, sobre omais abstrato enigma da teologia. O padre bai-xinho de Essex falava mais simples, com o ros-

to redondo virado para as estrelas intensifica-das; o outro conversava com a cabeça curvada,como se não fosse digno o bastante para olhar.Mas não podia ser uma conversa mais inocente

do que as que se ouve em qualquer conventoitaliano ou catedral negra espanhola.O que ele escutou primeiro foi a conclusão

de uma frase de Padre Brown:

— ... na verdade era isso que eles entendi-am na Idade Média por “céus incorruptíveis”.O padre mais alto assentiu com a cabeça

Page 40: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 40/52

[39]

curvada e disse:— Ah! Sim, esses infiéis modernos apelam

para a sua razão; mas quem seria capaz deolhar para aqueles milhares de mundos e nãosentir que podem existir universos maravilho-sos acima de nós, onde a razão é completamen-

te irracional?— Não — disse o outro padre —, a razão

é sempre racional, mesmo no último limbo, nafronteira perdida das coisas. Eu sei que as pes-

soas acusam a Igreja de desvalorizar a razão,mas na verdade é o contrário. Sozinha na Ter-ra, a Igreja torna a razão realmente suprema.Sozinha na Terra, a Igreja afirma que o próprio

Deus é limitado pela razão.O outro padre ergueu a face austera para océu cintilante e disse:

— Além disso, quem sabe se naquele uni-

 verso infinito?...— Infinito apenas fisicamente — disse opequenino padre, voltando-se com energia em

Page 41: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 41/52

[40]

seu banco —, não infinito no senso de escapardas leis da verdade.

 Valentin, atrás da árvore, roía as unhascom fúria silenciosa. Teve a impressão de quaseescutar o riso abafado dos detetives ingleses,que levara tão longe em uma suposição fantás-

tica, só para ouvir o mexerico metafísico dedois párocos velhos e gentis. Em sua impaciên-cia, perdeu a resposta igualmente elaborada dopadre alto. Quando escutou de novo, outra vez

era o Padre Brown quem estava falando:— Razão e justiça controlam a estrela mais

remota e solitária. Olhe para aquelas estrelas.Não parecem safiras e diamantes solitários?

Bem, você pode imaginar qualquer maluquicebotânica ou geológica que lhe agrade. Pensarem florestas de adamantino com folhas de bri-lhantes. Pensar que a lua é uma lua azul, uma

enorme safira solitária. Mas não acredite quetoda essa astronomia fanática possa fazer a mí-nima diferença para a razão e a justiça de con-

Page 42: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 42/52

[41]

duta. Em planícies de opala, abaixo de penhas-cos cunhados em pérola, você ainda encontra-

ria um aviso no mural: “Não roubarás”. Valentin estava prestes a sair de sua postu-

ra agachada e tensa para rastejar tão suavequanto possível, frustrado com o maior desati-

no de sua vida. Mas alguma coisa no silênciodo padre alto o fez esperar até ele falar. Por fimele disse, com simplicidade, a cabeça curvada eas mãos nos joelhos:

— Bem, ainda acho que talvez outrosmundos possam ir além da nossa razão. O mis-tério do céu é insondável, e eu, como indiví-duo, posso apenas curvar minha cabeça.

Depois, com o semblante ainda inclinado esem mudar nem pela mais tênue sombra a pos-tura nem a voz, acrescentou:

— Pode me passar a cruz de safiras, certo?

Estamos sozinhos aqui. Posso lhe estraçalharcomo uma boneca de palha. A voz e o comportamento completamente

Page 43: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 43/52

[42]

inalterados acrescentaram uma violência estra-nha àquela mudança chocante de discurso. Mas

o guardião da relíquia apenas girou a cabeçaum pequeno intervalo de circunferência. Seurosto meio tolo parecia continuar olhando asestrelas.

Talvez não tivesse entendido. Ou talvez ti- vesse entendido e permanecido sentado, rígidode terror.

— Sim — disse o padre alto, na mesma

 voz baixa e ainda na mesma postura —, sim,eu sou Flambeau.

Depois, após uma pausa, ele falou:— Vamos, não vai me dar a cruz?

— Não — disse o outro, e o monossílaboteve um som estranho.Flambeau de repente abandonou todas as

pretensões pontificais. O grande ladrão incli-

nou-se para trás em seu banco e gargalhou bai-xinho, mas longamente.— Não — gritou ele —, não vai me dar,

Page 44: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 44/52

[43]

seu prelado arrogante. Não vai me dar, seu ce-libatariozinho simplório. Posso dizer por que

não vai me entregar? Porque já estou com elaaqui no meu bolso.

O homenzinho de Essex virou o que pare-ceu ser um rosto atordoado ao cair da noite e

disse, com a ansiedade tímida de O secretário particular 2.

— Tem... tem certeza?Flambeau gritou com deleite:

— De fato, você é tão bom quanto umafarsa de três atos — gritou ele. — Sim, seu na-bo, tenho certeza absoluta. Eu tive o bom sensode fazer uma réplica do embrulho certo. Agora,

meu amigo, você tem a réplica e eu tenho as joias. Um velho artifício, Padre Brown, um ve-lho artifício.

— Sim — disse o Padre Brown, e passou a

mão no cabelo com o mesmo estranho jeito

2 The private secretary, peça teatral de três atos, escrita

 por Sir Charles Henry Hawtrey (1858-1923). (N.T.)

Page 45: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 45/52

[44]

impreciso. — Sim, já ouvi falar nisso antes.O colosso do crime inclinou-se sobre o rús-

tico padrezinho com um quê de interesse re-pentino.

— Ouviu falar nisso? — ele perguntou. —Onde ouviu falar?

— Bem, não devo contar o nome dele, éclaro —, disse de maneira simples o homenzi-nho. — Ele era um penitente, sabe? Viveu deforma próspera por cerca de vinte anos, tudo a

partir de embrulhos de papel pardo duplicados.E então, veja, quando comecei a suspeitar de

 você, pensei logo no método medíocre do sujei-to fazer isso.

— Começou a suspeitar de mim? — repe-tiu o fora da lei com intensidade crescente. —Teve mesmo a presença de espírito de suspeitarde mim só porque eu lhe trouxe para esta parte

isolada da charneca?— Não, não — disse Brown como quem sedesculpa —, veja bem, suspeitei de você logo

Page 46: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 46/52

[45]

que nos conhecemos. Aquela pequena saliênciana manga no lugar que vocês têm um bracelete

com pontas.— Como! — gritou Flambeau. — Como é

que você ouviu falar no bracelete com pontas?— Ah, nosso pequeno rebanho, sabe? —

disse Padre Brown, arqueando as sobrancelhasde forma um pouco vaga. — Quando eu eracura na cidade de Hartlepool, havia três delescom braceletes com pontas. Então, como sus-

peitei de você desde o início e você não notou,me certifiquei de que a cruz ficasse a salvo. Re-ceoso, eu o vigiei, sabe? Então finalmente vi

 você trocar os embrulhos. Depois troquei os

embrulhos outra vez sem você notar. E entãodeixei o certo para trás.— Deixou para trás? — repetiu Flambeau,

e pela primeira vez havia outro sinal na voz

além de triunfo.— Bem, foi assim — disse o pequeninopadre, falando do mesmo modo inalterado. —

Page 47: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 47/52

[46]

 Voltei para a loja de doces e perguntei se nãotinha deixado um embrulho e dei um endereço

particular para o caso de o embrulho aparecer.Bem, eu sabia que não tinha deixado, mas,quando saí dali de novo, aí sim, deixei. Então,em vez de correrem atrás de mim com aquele

embrulho valioso, o remeteram voando parameu amigo em Westminster.

Em seguida acrescentou, meio triste:— Também aprendi isso com um pobre

camarada em Hartlepool. Ele costumava fazerisso com bolsas que roubava nas estações detrem, mas está em um mosteiro agora. A gentefica sabendo, sabe — acrescentou, esfregando a

cabeça outra vez com o mesmo tipo de apolo-gia desesperada. — Não temos culpa de serpadres. As pessoas vêm e nos contam essas coi-sas.

Flambeau arrancou o embrulho de papelpardo do bolso interno e o dilacerou. Não ha- via nada além de papel e bastões de chumbo

Page 48: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 48/52

[47]

dentro. Ficou de pé num pulo gigantesco e gri-tou:

— Não acredito em você. Não acredito queum matuto como você tenha planejado tudoisso. Acredito que a coisa ainda está aí. Se vocênão me entregar... ora, estamos sozinhos, e pe-

garei ela à força!— Não — limitou-se a dizer o Padre

Brown, levantando-se também —, você não vaipegar nada à força. Em primeiro lugar, porque

eu de fato não estou mais com ela. E, segundo,porque não estamos sozinhos.

Flambeau interrompeu seu passo à frente.— Atrás daquela árvore — falou o Padre

Brown, apontando —, estão dois policiais for-tes e o melhor detetive vivo. Quer saber comoeles chegaram aqui? Ora, eu os trouxe, claro!Como fiz isso? Ora, eu vou contar se você de-

sejar! Deus lhe abençoe, temos que saber vintetipos de coisas quando trabalhamos entre asclasses criminosas! Bem, eu não tinha certeza

Page 49: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 49/52

[48]

de que você era um ladrão, e não é nem umpouco recomendável fazer um escândalo contra

alguém do nosso próprio clero. Então só o tes-tei para ver se alguma coisa o induzia a se mos-trar. Um homem, em geral, faz uma pequenacena se descobre sal em seu café, se não faz,

tem alguma razão para permanecer quieto.Troquei o sal e o açúcar, e você permaneceucalado. Um homem, em geral, contesta se suaconta é três vezes maior. Se ele paga, tem al-

gum motivo para querer passar despercebido. Alterei sua conta, e você pagou.

O mundo parecia esperar Flambeau saltarcomo um tigre. Mas ele se conteve, como por

encanto, atordoado por uma curiosidade ex-trema.— Bem — continuou o Padre Brown, com

lucidez inconveniente —, como você não dei-

xaria nenhuma pista para a polícia, é claro quealguém teria que fazer isso. Em todos os luga-res que fomos, tive o cuidado de fazer algo que

Page 50: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 50/52

[49]

nos tornasse falados pelo resto do dia. Nãocausei muitos prejuízos: uma parede respinga-

da, maçãs derrubadas, uma janela quebrada;mas salvei a cruz, como a cruz sempre será sal-

 va. Ela está em Westminster agora. Fico pen-sando por que você não a parou com o Assobio

de Burro.— Com o quê? — perguntou Flambeau.— Estou feliz que você nunca tenha ouvido

falar nisso — disse o padre, fazendo uma care-

ta. — É um golpe baixo. Tenho certeza que você é um homem muito bom para ser um As-sobiador. Nem mesmo com as Pintas eu pode-ria ter impedido isso. Não sou forte o suficiente

nas pernas.— Do que diabos você está falando? —perguntou o outro.

— Bem, eu pensei que você conhecesse as

Pintas — disse Padre Brown, com agradávelsurpresa. — Ah, você não podia mesmo já es-tar tão desencaminhado!

Page 51: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 51/52

[50]

— Como é que você conhece todos essesgolpes horríveis? — gritou Flambeau.

 A sombra de um sorriso perpassou o rostosimples e arredondado do seu oponente cleri-cal.

— Ah, sendo um celibatário simplório, su-

ponho — ele disse. — Nunca imaginou queum homem que não faz quase nada além deescutar pecados verdadeiros dificilmente seriaum completo ignorante sobre a maldade hu-

mana? Mas, na verdade, outra parte do meuofício também me fez ter certeza de que vocênão era padre.

— O quê? — perguntou o ladrão boquia-

berto.— Você atacou a razão — disse o PadreBrown. — Isso é má teologia.

E assim que ele se virou para apanhar seus

pertences, os três policiais saíram de baixo dasárvores do crepúsculo. Flambeau era artista eesportista. Recuou e fez uma grande reverência

Page 52: G. K. Chesterton [=] A cruz azul

8/17/2019 G. K. Chesterton [=] A cruz azul

http://slidepdf.com/reader/full/g-k-chesterton-a-cruz-azul 52/52

a Valentin.— Não me reverencie, mon ami   — disse

 Valentin, com sutileza prateada. — Façamosnós dois uma reverência a nosso mestre.

E os dois ficaram um instante sem chapéu,enquanto o pequenino padre de Essex corria o

olhar ao redor, atrás de seu guarda-chuva.


Recommended