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Gênese e metagênese - University of São Paulo

Date post: 16-Oct-2021
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m an us crítica 1. GRÉSILLON, A. Elementos de Crítica Genética. Ler os manuscritos modernos. Trad. Cristina de Campos VELHO BIRCK [et al.]. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007, p. 14. Gênese e metagênese O artista e o geneticista em busca da fonte Sergio Romanelli / Universidade Federal de Santa Catarina Renato Cristofoletti / Universidade Federal de Santa Catarina O QUE O ARTISTA ESPERA DA CRÍTICA GENÉTICA? EM SEU TEXTO Elementos de Crítica Genética, que ainda constitui uma referência para os estudos de processo, Almuth Grésillon coloca uma das questões fundamen- tais para qualquer pesquisa no âmbito da crítica gené- tica, ou seja, por que os autores, artistas, escritores, tradutores guardaram e guardam (ainda que não to- dos) seus manuscritos, o que representam para eles e qual o objetivo dessa operação de arquivamento criati- vo? Grésillon tenta uma explicação: Da parte do autor, há, indiscutivelmente, um desejo ambivalente e mascarado de retenção e de exibição: guardar esses fragmentos mais pessoais da escritura, conservar para uma glória póstuma incerta esses testemunhos da solidão criadora, esses sinais do risco absolu- to, do erro, da rasura e dos fracassos. 1 Revertendo essa perspectiva, gostaríamos de afirmar que, talvez, os artistas, ao deixarem manuscritos, em 11 Manuscritica.pmd 6/1/2012, 16:31 218
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1. GRÉSILLON, A. Elementos de Crítica Genética. Ler os manuscritos modernos.Trad. Cristina de Campos VELHO BIRCK [et al.]. Porto Alegre: Editorada UFRGS, 2007, p. 14.

Gênese e metagêneseO artista e o geneticista em busca da fonte

Sergio Romanelli / Universidade Federal de Santa CatarinaRenato Cristofoletti / Universidade Federal de Santa Catarina

O QUE O ARTISTA ESPERA DA CRÍTICA GENÉTICA?

EM SEU TEXTO Elementos de Crítica Genética, que aindaconstitui uma referência para os estudos de processo,Almuth Grésillon coloca uma das questões fundamen-tais para qualquer pesquisa no âmbito da crítica gené-tica, ou seja, por que os autores, artistas, escritores,tradutores guardaram e guardam (ainda que não to-dos) seus manuscritos, o que representam para eles equal o objetivo dessa operação de arquivamento criati-vo? Grésillon tenta uma explicação:

Da parte do autor, há, indiscutivelmente, um desejo ambivalente e

mascarado de retenção e de exibição: guardar esses fragmentos mais

pessoais da escritura, conservar para uma glória póstuma incerta

esses testemunhos da solidão criadora, esses sinais do risco absolu-

to, do erro, da rasura e dos fracassos.1

Revertendo essa perspectiva, gostaríamos de afirmarque, talvez, os artistas, ao deixarem manuscritos, em

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seu egocentrismo, queiram deixar marcas de seu gênioextraordinário, de sua inalcançável habilidade criativa,para mostrar como do nada a obra pega forma e ficapela eternidade. Ou, talvez, para explicar aos vindou-ros que existe uma gênese, que a obra é um produtoque requer trabalho e que segue um percurso não li-near, imprevisível até para o próprio artista que,finalmente, poderia buscar no estudo da gênese e notrabalho do geneticista as respostas ao grande enigmada criação artística. Talvez o artista, como sugere Gré-sil lon, e como nós também pensamos, queiradesenvolver um metadiscurso sobre sua própria arte, eatravés da crítica genética refletir sobre seu processonuma verdadeira, diríamos, metagênese.

É o caso do objeto que nos propomos a estudar: osesboços do balé (ainda não representado) La rosa deldeserto, criados pela artista plástica italiana Silva CavalliFelci. A artista em questão organizou e entregou osvestígios que testemunham o processo criativo do seubalé aos geneticistas com o intuito de superar o grandelimite de todo estudo de criação: desvendar, chegar atéa parte menos visível desse fascinante processo que é onascimento de um projeto mental como o defineGrésillon. Essa meta é, talvez, inatingível; é a buscasem solução, o grande arquétipo genético que o artistaconsciente e confiante não quer deixar de descobrir.Por isso, ele guarda as marcas de sua criatividade, desuas percepções súbitas, das dúvidas mais íntimas, paraque essa leitura se torne, um dia, mais clara tanto paraele quanto para os estudiosos. O artista, supostamente,ao escolher por não destruir esses vestígios, lhes confereum estatuto de obra e não somente de etapas, variantes,

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2. Ibidem, p. 41.

3. Ibidem, p. 42.

4. As notícias biográficas são extraídas do texto apresentado pela própriaartista, traduzido por Sergio Romanelli e publicado na revista Inventário,disponível no site: http://www.inventario.ufba.br/biografiasilva.htm.

de um produto final, e investe o geneticista de uma du-pla difícil tarefa: analisar esse percurso e revelar o quenão se vê, o mistério que o próprio artífice desconhece:“É impossível remontar da linguagem ao pensamentoa não ser por probabilidades”.2 Essas probabilidades sãoreconstituídas, testadas, pelo geneticista através de umpercurso ao contrário, da obra editada à sua origem,que não tem início identificável. Tudo serve para re-constituir essa ontologia invisível da obra e é exatamenteesse núcleo desconhecido, esse lugar sem lugar que oartista quer também conhecer, enxergar – a Fonte:

Eis a chave da questão: a origem não está no Verbo, mas no “imagi-

nário”, a reconstrução genética é uma questão de probabilidades,

não de certeza. Eis, sem dúvida, o suficiente para mostrar que a

margem da crítica genética é estreita.3

Com essa intenção, Felci, ao saber da existência deuma ciência da gênese, entregou e até criou pessoal-mente, quase fosse geneticista de si mesma, um dossiêque pudesse servir para essa tarefa. Cabem aqui algunsacenos acerca da autora, de sua obra e uma descriçãodo prototexto em questão.

GÊNESE E METAGÊNESE DO BALÉ LA ROSA DEL DESERTO

O percurso biográfico4 nada convencional da artistaem questão e uma concepção de arte ampla e inclusiva

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não deixam, neste caso, de revelar indícios importan-tes para uma melhor compreensão da criatividademultifacetada de sua obra: nascida em Bellinzona, naSuíça, em 12 de maio de 1935, Silva Cavalli Felci for-mou-se na Escola Superior de Comércio. Em 1955-56morou em Londres para aprofundar o estudo da línguainglesa. Naquele período, determinante para sua for-mação foi a ida constante a museus, concertos e teatros.Além disso, inscreveu-se nos cursos de desenho e stagedesign na S.Martin’s School of Art. Estabeleceu-se emseguida em Milão, onde trabalhou durante muitos anosjunto a uma multinacional de decoração. Em 1969, es-tabeleceu-se com sua família na cidade de Bergamo naregião de Lombardia no norte da Itália, onde ainda hojereside e trabalha. Inscreveu-se em seguida na escola depintura da Accademia Carrara, sendo aluna do MestreTrento Longaretti.

A sua atividade expositiva em lugares públicos eparticulares é vasta: exposições pessoais na Galleria deiMille, Bergamo (1975), texto de Elda Fezzi; GalleriaVanna Casati, Bergamo (1981, 1989 e 2000); Centrod ’Arte e Cultura Il Brandale, Savona (1982); CentroCulturale S.Agostino, Crema (1983); Centro d ’ArteSant’Elmo, Salò, (1983); Collegio Cairoli, Università diPavia (1986 e 1994); Chiostro Minore di S.Agostino,Bergamo (1995) catálogo de Marco Lorandi;Lumezzane, Torre Avogadro – Brescia – (1996); GalleriaFumagalli, Bergamo – Incontro con Piero Gilardi eMarco Lorandi para a apresentação do livro “Intrecci”voci dal silenzio – (2001).

As tangências do seu trabalho com a esfera teatralse concretizam em 1990-91 com os esboços para o balé

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La rosa del deserto, do qual criou o sujeito (partitura doDiretor Massimiliano Messieri) e, sucessivamente, comalgumas performances, dentre as quais, Storia di un uomoe di una marionetta (de Petruska de I. Stravinsky e Lamorte di Ivan Il ’iè de L. Tolstoj); Amore e Psiche (deL’asino d ’oro de Apuleio) e La morte della Pizia (de F.Dürrenmatt).

As interferências entre arte e literatura resultaramna publicação dos livros: L’albero di luce, poesias de RinaSara Virgillito com quatro trípticos da artista italiana(ed. El Bagatt, Bergamo, 1994); Cortecce (1999) eVariazioni minime (2000), uma poesia de SergioRomanelli para uma colagem de Silva Cavalli Felci (ed.Pulcinoelefante, Osnago); Lune Severe (2005), sete poe-sias de Sergio Romanelli com sete desenhos da artista(ed. El Bagatt, Bergamo) e, em 2007, Metá Fisiche comSergio Romanelli (ed. El Bagatt, Bergamo).

Paralelamente ao seu percurso artístico, confirmou,ao longo dos anos, o interesse pela psicologia do pro-fundo e pela arte terapia, especificamente mediante aexperiência do sandplay de Dora Kalff. A artista aindaanima um laboratório de atividades expressivas e em2001 publicou sobre esse tema a plaquette “Intrecci” vocidal silenzio. Atualmente está desenvolvendo o projetoe a realização de um livro que diz respeito aos traba-lhos de um laboratório de grupo sobre o mito de Inanna,a deusa suméria.

UM DOSSIÊ NO DOSSIÊ

Como acenado no início deste artigo, o prototextodesta pesquisa é um tanto anômalo, não sendo caracte-rizado, como acontece na práxis dos estudos genéticos,

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por um recorte organizado pelo pesquisador conformeos objetivos que pretende alcançar e segundo uma ló-gica pessoal ou sugerida pela própria natureza dosvestígios encontrados. Neste caso, a artista foi, na ver-dade, ao mesmo tempo a artífice do processo, aorganizadora, o guardador dos manuscritos e a pesqui-sadora novata que propõe o seu recorte ao geneticista.Nisso tudo, o geneticista, ao revelar a existência de umacrítica da criação artística, torna-se o estimulador des-se inédito papel que condiciona e acrescenta novodesafio à sua busca. Temos neste caso um sobrepor-sede papéis e talvez o surgimento de uma única persona,exigente e exigida ao mesmo tempo; quais serão as con-sequências desse encontro peculiar? Será o geneticistafavorecido ou limitado, influenciado por essa presen-ça? Se, por um lado, lidar com manuscritos ou dossiêsde autores mortos torna o trabalho do geneticista maiscomplexo e muito mais probabilístico, pois terá comorespostas aos seus questionamentos somente suas su-posições, ainda que baseadas na materialidade dosvestígios; por outro lado, lidar com um artista vivo ecom sua “interferência” na pesquisa torna-se, ou pelomenos poderia tornar-se, uma desvantagem terrível, ounão? O fato é que o encontro com o artista, e não so-mente com seus manuscritos é, a nosso ver, umprivilégio e, portanto, torna-se difícil estabelecer emprincípio, e para todos os casos, que tipo de consequên-cias isso terá no estudo do seu processo criativo.

No caso em questão, temos um percurso no percur-so, ou seja, um fio que nos guia por dentro do labirintodo processo criativo de Felci e, de modo específico, pelarede criativa e plurisignificante que é La rosa del deser-

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to. O acesso a parte deste emaranhado de percepções é,sem dúvida, útil para desvendar o novelo semiótico eencontrar uma possível saída. De fato, o dossiê consti-tui-se não somente dos fac-símiles dos esboços dasvárias versões do roteiro do balé (Fac-símile da pri-meira versão do balé La rosa del deserto com anotaçõesautógrafas. Quatro folhas datiloscritas; Fac-símile dasegunda versão A do balé La rosa del deserto com ano-tações autógrafas. Cinco folhas datiloscritas; Fac-símileda segunda versão B do balé La rosa del deserto comanotações autógrafas. Cinco folhas datiloscritas; Fac-símile da terceira versão do balé La rosa del deserto comanotações autógrafas. Cinco folhas datiloscritas; Fac-símile da versão definitiva do balé La rosa del deserto.Cinco folhas datiloscritas), dos fac-símiles dos esbo-ços da cenografia e dos fac-símiles das anotações paraa música e a coreografia com anotações autógrafas; mas,sobretudo, e extraordinariamente, do dossiê genéticoelaborado pela artista Silva Felci a pedido do grupo depesquisa (cinco folhas digitadas com o programa Word)e de um livro intitulado La rosa del deserto, publicadopela artista plástica, contendo a gênese da obra, ima-gens elaboradas com foto-shop de figurino, cenografia,a partitura musical e o roteiro, tudo orgnizado especi-ficamente para este estudo. Em outras palavras, à gêneseinicial se sobrepõe outro processo influenciado peloestudo genético: uma gênese da gênese, um signo ge-rador de signos, uma teia que se desdobra em si mesma,mas que nunca é igual, evolução inacabada que afinalnada revela, mas tudo aponta. O estudo genético nestecaso realmente doa nova vida à obra aparentementeacabada, fazendo com que ele gere novas partes de si.

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Mas não somente isso, a crítica genética recoloca a obra,aparentemente acabada, no lócus da criação, no meiodaquela rede de interconexões que não param sua ati-vidade com a presumida definição da obra, mas simrenascem a cada nova leitura até, e sobretudo, na relei-tura do processo que desloca novamente o artista e suaobra para o eixo da inventividade. Neste caso específi-co, torna-se palpável o cordão indissociável que liga oartista à sua obra, como afirma Salles:

[…] a relação artista obras. Durante nossas reflexões, observamos a

impossibilidade de se estabelecer uma separação entre o artista e

seu projeto poético e a necessidade de se observar os processos de

criação como espaço de constituição da subjetividade. Obras e ar-

tista não só estão imbricados de modo vital, como estão sempre em

mobilidade. São redes em permanente constituição.5

O mesmo acontece com Silva Felci e o seu balé,recolocado na rede através do estudo genético, estudoeste não de um processo estável até em sua materiali-dade, mas em contínuo movimento por obra do seuquestionamento atuado pelo geneticista. Felci, ao or-ganizar um dossiê genético e ao escrever um livro emque relata e analisa seu processo, por um lado recolocaem contato sua subjetividade com um processo que jáaconteceu, mas que não estava acabado, o que mostraque ele ainda estava vivo em baixo das cinzas e, por serenigmático (até para ela), renasce em ocasião do estu-do genético. A artista retoma e empreende sua viagem,ao contrário, do hic et nunc gradativamente, até o mo-

5. SALLES, C. A. Redes da criação. Construção da obra de arte. São Paulo:Editora Horizonte, 2006, p. 152.

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mento do primordial despertar da ideia criativa. Umaauto-análise genética, que acrescenta e omite eviden-temente por causa das falhas do tempo, não somentena memória, mas também na materialidade dos regis-tros, e que continua com a grande lacuna acerca daorigem de tudo. Aqui a autora, ainda que inconscien-temente, se sobrepõe ao geneticista ou, comoprotogeneticista, busca uma verdade que desconhece,sem possuir as ferramentas específicas, exceto as da suaestética criadora, que o geneticista mais que ninguémpode reconstituir; o geneticista ao organizar, transcre-ver, ler e interpretar esse percurso predefinido pelaartista tentará preencher a lacuna mostrando que o pro-cesso na verdade é a obra. O cerne da obra é a relaçãonos seus vários planos: a do artista com sua percepção,a do artista com a materialidade de sua criação, a doartista com o mundo ao seu redor ao realizar a obra, ada obra com as outras obras, e finalmente a do artista eda obra com o geneticista que, neste caso, enquantorazão do renascimento da obra através da constituiçãodo dossiê por parte da artista, se torna realmente tam-bém autor da obra:

Surge assim um conceito de autoria, exatamente nessa interação

entre o artista e os outros. E uma autoria distinguível, porém, não

separável dos diálogos com o outro; não se trata de uma autoria

fechada em um sujeito, mas não deixa de haver espaço de distinção.

Sob esse ponto de vista, a autoria se estabelece nas relações, ou seja,

nas interações que sustentam a rede, que vai se construindo ao lon-

go de processo de criação.6

6. Ibidem, p. 152.

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7. “‘A rosa do deserto’ nasce de uma meditação acerca do destino de umajovem mulher. O poema se constitui no seu antecedente, a história remeteao percurso árduo de transformação que leva ao conhecimento de si.Por que um balé? Antes de tudo, porque amo a dança e a música e emseguida porque um balé teria me permitido contar uma história nãousando palavras, mas sim cores, formas, movimento”. FELCI, S. C. Larosa del deserto. Bergamo: Service Digital Print, 2005, [s. p.]. Traduçãonossa, assim como as que se seguem.

O dossiê de Felci, enquanto descreve sua obra, nãose caracteriza também como parte da obra? E, consi-derando-se o fato de que foi a discussão com ogeneticista a razão desencadeante desta nova etapa doprocesso, não deveria, portanto, ele também se consi-derar autor dessa obra em processo? Deve-se indagarnão somente a relação dos signos entre si e com o au-tor e seu polissistema ao realizar a obra, mas também arelação do autor com os outros referentes antes e de-pois do acabamento da obra (incluindo o geneticista).

A PROTOGENETICISTA E SUA GÊNESE

Conforme conta Felci, à guisa de protogeneticista,no livro que realizou especificamente para esta pesqui-sa, na parte intitulada exatamente “La genesi dell’opera”(A gênese da obra), um poema de 1982 foi o antece-dente, o núcleo despertador, a imagem geradora de todoo balé que somente começou a ser redigido em suaspartes em 1990:

“La rosa de deserto” nasce da una meditazione sul destino di una giovane

donna. La poesia ne è l ’antefatto, la vicenda allude al faticoso percorso di

trasformazione che porta alla conoscenza di sé. Perché un balletto?

Innanzitutto perché amo la danza e la musica e poi perché un balletto mi

permetteva di raccontare una storia non usando parole, bensì colori, for-

me, movimento.7

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8. Traduzindo: A ideia do balé nasce da breve fábula poética que traz omesmo título e que se constitui no primeiro ato deste. FELCI, S. C. Fac-símile da primeira versão do balé La rosa del deserto com anotaçõesautógrafas. Fólio 01.

9. Os poemas são transcritos respeitando a formatação do original.

O fato de que o poema seja um ponto central e ina-balável de seu processo é confirmado não somente pelaautora, “L’idea del balletto nasce dalla breve favola poeticache porta lo stesso titolo e ne costituisce il primo atto” 8, mastambém pelo fato de que existem somente duas ver-sões do poema no dossiê com uma única variação, apalavra acqua do quarto verso modificada para aiuto nasegunda versão9:

Foto: Sole Nero. Silva Cavalli Felci.

#1

Rosa del deserto

chiusa nel pudore del tuo bocciolo

o impaurita

forse ti vietasti di chiedere acqua

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10. “Rosa do deserto/ fechada no pudor de teu botão/ ou assustada/ talvezproibiste a ti mesma de pedir água/ - e morrias sedenta -/ Homens ecamelos/ passaram pelo teu caminho seco/ mas não ouviram tua vozabafada./ Por que não gritastes tua sede?/ Pois ninguém te ofereceununca/ a gota de que precisavas/ para não transformardes em soberbapedra”. FELCI, S. C. Fac-símile da primeira versão do balé La rosa deldeserto com anotações autógrafas. Fólio 01.

11. “Rosa do deserto/ fechada no pudor de teu botão/ ou assustada/ talvezproibiste a ti mesma de pedir ajuda/ - e morrias sedenta -/ Homens ecamelos/ passaram pelo teu caminho seco/ mas não ouviram tua vozabafada./ Por que não gritastes tua sede?/ Pois ninguém te ofereceununca/ a gota de que precisavas/ para não transformardes em soberbapedra”. FELCI, S. C. Op. cit., [s. p.].

– e morivi assetata –

Uomini e cammelli

passarono sul tuo sentiero riarso

ma non udirono la tua voce sommessa.

Perché non urlasti la tua sete?

Così nessuno ti offrì mai

la goccia che ti serviva

per non mutarti in superba pietra.10

#2

Rosa del deserto

chiusa nel pudore del tuo bocciolo

o impaurita

forse ti vietasti di chiedere aiuto

– e morivi assetata –

Uomini e cammelli

passarono sul tuo sentiero riarso

ma non udirono la tua voce sommessa.

Perché non urlasti la tua sete?

Così nessuno ti offrì mai

la goccia che ti serviva

per non mutarti in superba pietra.11

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O poema se torna o centro dessa rede criativa aoredor da qual aos poucos vão se associando os outroselementos: a música, a coreografia, os figurinos e, porúltimo, o roteiro; ou seja, como a artista diz, o percursofoi da imagem, do visual para a escrita, confirmando opapel da sensibilidade perceptiva na criação artística.Isso fica evidente no depoimento da artista, a partir dopoema, dizendo como se desenvolveram as etapas des-se processo criativo, a saber: “In sequenze successive hoimmaginato personaggi e luoghi. Ho tracciato le prime idee,poi ho realizzato i costumi, le scenografie e i modellini. Hoscritto il soggetto come se stessi “ascoltando” una musica cheancora non esisteva”12.

Em todo depoimento de Felci, notamos a presençamarcante e fundamental do imaginário perceptivo, nãosomente através do uso do verbo imaginar para descre-ver o ato que levou até à criação de personagens e lugaresa partir da estética do poema, mas também na declara-ção de ter quase ouvido a música, mas não ouvido deverdade; esse quase remete a uma escuta interna, ima-ginativa, e não material; uma escuta mental de umamúsica gerada pelas imagens, pelas cenografias, pelosmovimentos dos figurinos e que somente no fim levaráao roteiro, à escrita. Percebe-se, nessas poucas, mas in-críveis linhas, o processo subjacente à criação da rede;o lento, mas inexorável crescimento da rede de signosque se alimentam um do outro. Um processo de asso-ciações semânticas, ou o que Salles define de expansões

12. “Em sequências sucessivas imaginei personagens e lugares. Esbocei asprimeiras ideias, depois realizei os figurinos, cenografias e maquetes.Escrevi o roteiro quase como “ouvindo” uma música que ainda nãoexistia”. FELCI, S. C. Op. cit., [s. p.].

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13. “Uma vez terminado o trabalho, me encontrei refletindo sobre o sentidodesta história e sobre o significado de alguns elementos que nelaaparecem […]”. FELCI, S. C. Op. cit., [s. p.].

14. SALLES, C. A. Op. cit., p. 123.

associativas, que originam um sistema que a própriaautora desconhece de antemão e sobre o qual refletesomente em um segundo momento, ao observar suagênese para que ela entenda a si mesma: “A lavoro ulti-mato, mi sono trovata a riflettere sul senso di questa storiae sul significato di alcuni elementi che vi compaiono: [...]”13.

Observamos um claro percurso de ampliação de ideias. Uma ideia é

tomada como causa e a partir daí são imaginados efeitos, em um

jogo associativo mantido pela seguinte regra: se isso acontece, en-

tão, provavelmente pode gerar aquilo ou aquilo etc. […] O

desenvolvimento se dá por uma espécie de afinidade entre ideias.14

Esses elementos, que em seguida citaremos, reve-lam sua procedência literária na maioria dos casos, ouseja, se trata de influências que remetem a leituras con-temporâneas à criação do balé ou arquétipos, mitose imagens fixadas no inconsciente da autora como re-sultado de um lento percurso de superposições decamadas perceptivas. Esses hipotextos acabam criandoa assim chamada bagagem cultural que desencadeia, emdado momento, associações imprevisíveis na mente doartista. No caso de Felci, além dos arquétipos do de-serto, da sombra associada ao Mal, da falta de luz quecorresponde à falta de esperança, um mito específicose torna central, o da deusa suméria Inanna estritamenteligada à “catabase”, outro tópos muito presente em vá-rias obras literárias, ou seja, a descida ao Inferno:

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15. “A descida no mundo ínfero, assim como acontece em muitasrepresentações míticas e fabulares. Em modo específico, tinha meimpressionado, no período em que estava trabalhando no balé, o poemasumério da Deusa Inanna, talvez o mais antigo mito que diz respeito aeste tema, transcrito sobre tábuas de barro no terceiro milênio a. C. “Doalto do Céu ela dirigiu o ouvido para com as profundezas da terra eabandonou o céu e a terra para descer no mundo subterrâneo”. Destaviagem, Inanna emerge como deusa que reina no céu, na terra e no mundosubterrâneo: a deusa, então, em toda sua potência e na multiplicidadede seus aspectos”. FELCI, S. C. Op. cit., [s. p.].

La discesa nel mondo infero, come accade in molte rappresentazioni mitiche

e fiabesche. In particolare mi aveva colpito, nel periodo in cui stavo

lavorando al balletto, il poema sumero della Dea Inanna, forse il più

antico mito su questo tema, trascritto su tavolette di argilla nel terzo

millennio a.C. “Dall’alto del Cielo ella tese l ’orecchio verso la profondità

della terra e abbandonò il cielo e la terra per scendere nel mondo

sotterraneo”. Da questo viaggio, Inanna emerge come dea che regna sul

cielo, sulla terra e sul mondo sotterraneo: la dea, quindi, in tutta la sua

potenza e nella molteplicità dei suoi aspetti.15

Após o poema, então, o mito da deusa Inanna setorna a segunda forte imagem geradora do processocriativo de Felci, quase um hipotexto. O terceiro ele-mento que consideramos fundamental e decisivo parase ler a gênese em questão, ainda que nas entrelinhas,pois sempre se trata do depoimento posterior do artis-ta em vista de um estudo genético e que poderia, dealguma forma, inconscientemente ou não, querer in-fluenciar a leitura deste trata-se da forte conotaçãosimbólica que a artista dá à escolha quantitativa dospersonagens, explicando essa escolha em chavenumerológica. Neste trecho, ainda uma vez a artistarecorre às leituras feitas anteriormente à criação do balépara explicar essa parte de seu processo; ou seja, aindauma vez as sementes do conhecimento adormecidas no

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inconsciente emergem e adquirem seu significado ple-no ao serem reinterpretadas à luz dessa metagênese:

Il numero dei ballerini nelle varie scene del balletto, che non avevo

assolutamente pensato in relazione al loro significato simbolico e che mi

si è rivelato poi, con grande emozione. Sono tre le Furie e gli Spiriti

malvagi; sei (il suo doppio) il Male e le sue cinque Ombre; nove (il

quadrato) le otto ragazze-rose più la protagonista. Non mi inoltrerò in

un campo che non mi appartiene; tuttavia, molte letture fatte nel corso

degli anni, hanno lasciato la loro impronta e sono riaffiorate.16

Nesse trecho de seu depoimento, é evidente a atitu-de ambígua da artista-protogeneticista que se, por umlado reconhece sua falta de competência ao se adentrarnum terreno que não lhe pertence, o do geneticista,por outro lhe fornece uma possível pista, sugerindo umaprovável solução para essa etapa de sua gênese. Nãoseria o geneticista influenciado por esse tipo de ajuda?Até que ponto poderá o pesquisador desconsiderar es-ses depoimentos ao longo de seu estudo e de que forma,se for possível, não deverá se deixar influenciar por elesem sua leitura? Difícil dizer; é proibitivo definir o li-mite entre a ficção e a verdade, entre a vontade do artistade ser protagonista e a simulação ou o egocentrismoque o coloque de novo e sempre ao centro de sua cria-ção, único verdadeiro entendedor de seu produto.

16. “O número dos dançarinos nas várias cenas do balé, que não tinhaminimamente pensado em relação ao seu significado simbólico e que serevelou a mim também depois, com grande emoção. São três as Fúrias eos Espíritos malvados; seis (o seu dobro) o Mal e as suas cinco Sombras;nove (o quadrado) as oito moças-rosa mais a protagonista. Não entrareiem um campo que não me pertence; todavia, muitas leituras feitas aolongo dos anos, deixaram sua marca e afloraram novamente”. FELCI, S.C. Op. cit., [s. p.].

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Afinal, até que ponto podemos acreditar que essasleituras feitas pelo artista realmente possam ter influen-ciado o seu processo criativo e não somente o processoposterior de leitura metagenética? Será que no desejode encontrar uma explicação ele queira forçar um ca-minho a posteriori caracterizando-o de forma inédita,ou seja, não fidedigna? Não o saberemos com certeza.Mas, evidentemente, isso deve ser levado em conside-ração assim como acreditamos que o geneticista devater a liberdade de seguir, ao ler os manuscritos, um ca-minho diferente e alternativo.

O ARTISTA ENTRE A CRIATIVIDADE E O MERCADO

Ao estudar os fac-símiles das várias versões do ro-teiro, uma primeira e talvez imediata impressão é queo processo de criação da artista passou por duas fases.Uma primeira ditada pela imaginação solta, percorrendoas ideias lúdicas da montagem e criando expansões as-sociativas imprevisíveis. E uma segunda em que, ao queparece, observando os manuscritos, houve um encon-tro entre as ideias e sentimentos lúdicos e as condiçõesviáveis e possíveis de realização do balé. Isso demons-tra a maturidade da criadora, pois este processo de trazeras ideias do campo da imaginação para os termos derealização, se não for bastante elaborado pelo artista,implica em frustrações e sentimentos chamados de“concessões artísticas”. A maturidade artística faz comque o criador aprenda a filtrar seus sentimentos no sen-tido de conseguir realizá-los nos moldes possíveis eviáveis. Isso se mostra bastante claro nas anotações decorte de elenco e mudança para menor número de bai-larinos em determinadas cenas mostradas, como nas

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seguintes versões em que o número de bailarinos vaigradativamente diminuindo:

Foto: Deserto. Silva Cavalli Felci.

# 1 Personaggi

la rosa

l ’illusione

il male

sette ombre del male

dodici rose

<< 7 << tredici personaggi stravaganti

< tre furie >

< sette spiriti notturni >

# 2

Personaggi (in ordine di apparizione)

<< /?/ la rosa << Dodici fanciulle-rose

La rosa < – e la figura che la sostituisce per mantenere il

no 12>

Il Male

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crítica

<< 5 << Sette ombre del male < (numero malefico 6) >

<< 7 << Nove sagome di personaggi

Corpo di ballo per la danza della notte

Tre furie

<< tre << Sette spiriti malvagi

L’illusione

Corpo di ballo per la danza finale

# 3

IIa B

VERSIONE

LA ROSA DEL DESERTO

(Favola danzata)

Personaggi (in ordine di apparizione)

Dodici < otto > fanciulle-rose >> + >>

La rosa

Il Male

<< cinque << Sette ombre del male

<< sette << Nove sagome di personaggi

Corpo di ballo per la danza della notte

Tre furie

<< tre << Sette spiriti malvagi

L’illusione >> (/la/ luce danzante) >>

Corpo di ballo per la danza finale

< versione maggio 1991 >

< IIIa versione >

# 4

LA ROSA DEL DESERTO

(Favola danzata)

Personaggi (in ordine di apparizione)

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otto fanciulle-rose + >> (oppure 5 + 1) >>

la rosa protagonista

sei sagome di personaggi >> (simboli astratti) >>

(la fata, la strega, i genitori, il carabiniere orco, il

sacerdote)

Il Male +

cinque ombre del male

corpo di ballo per la danza della notte

tre furie

tre spiriti malvagi

l ’illusione (luce danzante)

#5

< GENNAIO 1991 >

< DEFINITIVA>

LA ROSA DEL DESERTO

(balletto in sei quadri)

Personaggi (in ordine di apparizione)

otto fanciulle-rose +

la rosa protagonista

il Male +

cinque ombre del Male

corpo di ballo per la danza della notte angosciosa

tre Furie

tre spiriti malvagi

l ’Illusione

Esse processo de transmutação de ideias lúdicas pararoteiros concretos de montagem efetiva mostra, por umlado, um olhar do criador em seu sentimento e, poroutro, um olhar nos aspectos práticos e de ordem deprodução e implementação da obra em si. Isso implica

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diretamente neste caso em adequação de cenografia enúmero de personagens, bem como uma mudança delinha criativa na trilha sonora, no decorrer do processocriativo da artista.

Processos como o que estamos analisando apontampara a vivência artística de mercado, bem como parauma preocupação em traduzir sua ideia inicial para algoviável para o público receptor da obra final.

Esses processos de percepção merecem atenção es-pecial, pois é neste instante da criação que se bifurcamcaminhos de onde desembocam obras herméticas de-mais ou, num lado mais agudo, obras demasiadamentecomerciais. Cabe ao talento e à percepção de mundodo criador achar o denominador comum entre seus sen-timentos e a compreensão de seu alvo final, o público.Dessa breve consideração decorre que não somente cria-tividade se pode perceber ao ler os manuscritos mas,também, como o gênero da obra criada, no caso umbalé, influa e crie constrições que moldam o trabalhodo artista.

Foto: Luna Dia. Silva Cavalli Felci.

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CONCLUSÔES INACABADAS

No princípio deste artigo, que é somente a primeiraetapa do estudo do processo criativo do balé La Rosadel Deserto de Silva Cavalli Felci e que faz parte inte-grante do projeto de pesquisa Crítica genética e EstudosDescritivos da Tradução: um exemplo de interdisciplina-ridade desenvolvido junto ao Departamento de Línguae Literatura Estrangeiras da Universidade Federal deSanta Catarina, nos perguntamos, fundamentado-nosnos questionamentos anteriormente elaborados paraGrésillon, qual seria o motivo pelo qual o autor resolveguardar marcas da sua criatividade? E, em seguida, porquê, acrescentamos, ele pretenda fazer parte da pes-quisa genética? E de que forma? Apontamos algumaspossíveis respostas, baseando-nos primeiro na teoria deGrésillon e, em seguida, nos dados que o dossiê emquestão nos proporcionou. Como frequentemente acon-tece em uma pesquisa, o percurso revelou-se ambíguo,múltiplo e não resolutivo, e é assim que deve ser. So-bretudo no caso da criação artística, um lugar indefinidoe indefinível, cujos atores são por sua própria naturezahíbridos com papéis que se sobrepõem: artista, leitor,pesquisador e vice-versa sem continuidade.

Parafraseando ainda uma vez Grésillon poderíamos,com certeza, dizer que a dúvida permanece: por que oartista resolve guardar manuscritos?

Impossível saber por que, no fundo, um determinado escritor guar-

da seus manuscritos: memória ambígua, morta-viva, dos caminhos

de sua criação [...] Desejo de um dia fazer parte das grandes cole-

ções públicas? Esperança de que “alguém possa um dia desmontar a

máquina inteiramente” (Aragon)? “Impressão de que os escritores

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17. GRÉSILLON. Op. cit, p. 125.

do futuro talvez possam explorar (esse procedimento) proveitosa-

mente” (Russel)? Ou, simplesmente, cuidado de deixar um

patrimônio a seus herdeiros?17

O artista seria então movido por esses motivos to-dos ou por nenhum ou por um, a depender de cadasituação; mas podem-se com certeza apontar duas ati-tudes de fundo: a do artista que guarda e entrega tudo,por diferentes motivos, se estiver preocupado com suafutura utilização, ou aquele que não somente guarda,mas também organiza e prepara um dossiê genético quetambém estuda, e este último é o caso de Felci, comose mostrou acima. Grésillon classifica esta última ati-tude como a de quem queira “[...] permanecer namemória cultural de uma comunidade”. Com certeza,em nosso caso, em momento algum Felci expressa, atéem seu próprio livro criado para esta pesquisa, qual oobjetivo e as esperanças que teve ao montar o dossiê etodo o material, e o que esperaria do geneticista; masjá o fato de ter organizado os vestígios e de ter voltadoa refletir sobre seu processo produzindo até um mate-rial específico para esta pesquisa revela qual a suaverdadeira motivação: por um lado, fazer com que es-ses documentos não permanecessem nas gavetas deesquecimento e, por outro, que alguém pudesse, atra-vés deles, revelar o verdadeiro sentido neles contido. Aatitude de Felci pertence, então, ao que Grésillon defi-ne como uma variante de quem quer permanecer namemória da coletividade, a de quem se encarrega daprópria edição do dossiê manuscrito e dessa forma: “[…]

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18. Ibidem, p. 126.

desvela ao público os manuscritos genéticos, classifi-cados cronologicamente, transformando assim escritosde uso estritamente privados em documento-livro oulivro-documento, senão um livro-monumento”18.

No que diz respeito à segunda questão epistemoló-gica que colocamos neste artigo, ou seja, o que o artistaespera da crítica genética e do trabalho do geneticistaem relação à sua obra e de que forma interfere nele?Neste caso também podemos somente supor a partirde dados que se por um lado são empíricos, matérias(os documentos manuscritos), por outro são testemu-nho do impalpável, a intenção do autor ao criar de umadeterminada forma e a forma que o autor escolheu parajustificar essas escolhas criativas. Acreditamos que nestecaso, assim como em outros estudos de processo ogeneticista, distanciado do objeto de estudo, ao con-trário do artista, possa talvez, e deva tentar, enxergarmais claramente nas entrelinhas da criação e do dis-curso do artista às vezes camuflado. Acreditamos nasinceridade de Felci ao confessar como tenha encon-trado respostas surpreendentes ao reler o seu processocriativo; coisa que antes não tinha feito, mas achamosprovável que o artista, ainda que de forma inconscien-te, não queira justificar, ou não consiga, algumasescolhas do ponto de vista não criativo; ou seja, nãoartístico, mas ditadas por outras razões menos criativase mais prosaicas como, por exemplo, por razões de mer-cado ou de realização da obra que se está construindo.

O geneticista, neste caso, pode intervir e preenchercom seu olhar de pesquisador e não de artista a cisão

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do outro; mas, de qualquer forma, se procede por ten-tativas e, usando as palavras de Grésillon, é “difícil, emtodo caso, dentre os testemunhos de escritores, separara verdade da ficção”. Como não achar provável afinalque o artista antes inconsciente de suas escolhas passea justificar a posteriori influenciado por leituras que nãotinha feito ao longo do processo criativo da obra emquestão; ou seja, para exemplificar, será que Felci real-mente foi influenciada pela numerologia ao estruturara arquitetura de seu balé? Ou será que somente aposteriori e em decorrência dos estudos que fez ao lon-go dos anos, achou atrativo justificar esse processo àluz desses novos conhecimentos. Ou o geneticista estáexercitando um ceticismo exagerado e deveria acredi-tar nas palavras do seu objeto de estudo? A realidade éque o geneticista se movimenta em um terreno perigo-so, no limiar do disfarce, onde realmente nasce a obra;e talvez essa seja sua única e mais difícil verdade. As-sim como Felci em seu balé, o geneticista também éum dos atores dessa tríade mítica que constitui qual-quer estudo de processo, os manuscritos, o geneticistae a invisível Fonte: “I ternari si riscontrano nel mito, nellefiabe, nelle tradizioni di altre civiltà, nella magia,nell´alchimia cosi come in diverse religioni la divinità écostituita da una tríade. Il tre rimanda quindi a unatotalità”19.

19. “Os ternários se encontram no mito, nas fabulas, nas tradições de outrascivilizações, na magia, na alquimia assim como em diversas religiões adivindade é constituída por uma tríade. O três faz referência então àtotalidade”. FELCI, S. C. Op. cit.

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REFERÊNCIAS

FELCI, S. C. Fac-símile da primeira versão do balé La rosa deldeserto com anotações autógrafas. Quatro folhas datilos-critas;

______. Fac-símile da segunda versão A do balé La rosa deldeserto com anotações autógrafas. Cinco folhas datilos-critas;

______. Fac-símile da segunda versão B do balé La rosa deldeserto com anotações autógrafas. Cinco folhas datilos-critas;

______. Fac-símile da terceira versão do balé La rosa del desertocom anotações autógrafas. Cinco folhas datiloscritas;

______. Fac-símile da versão definitiva do balé La rosa deldeserto. Cinco folhas datiloscritas.

______. Fac-símiles dos esboços da cenografia do balé La rosadel deserto. Três folhas.

FELCI, S. C. Fac-símiles das anotações para a música e a co-reografia com anotações autógrafas, duas folhas datilos-critas.

______. Dossiê genético elaborado pela própria artista. Cincofolhas digitadas com o programa Word.

______. La rosa del deserto. Bergamo: Service Digital Print,2005.

GRÉSILLON, A. Elementos de Crítica Genética. Ler os manuscritosmodernos. Trad. Cristina de Campos VELHO BIRCK [et al.].Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007.

SALLES, C. A. Redes da criação. Construção da obra de arte. SãoPaulo: Editora Horizonte, 2006.

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