+ All Categories
Home > Documents > Graciliano Nº 8

Graciliano Nº 8

Date post: 11-Mar-2016
Category:
Upload: imprensa-oficial-graciliano-ramos
View: 260 times
Download: 35 times
Share this document with a friend
Description:
Graciliano é uma revista da Imprensa Oficial Graciliano Ramos. Nesta edição Sandoval Cajú - O personagem, o povo e a cidade
72
ISSN 1984-3453 CEPAL / Imprensa Oficial Graciliano Ramos - Maceió - Ano IV - Nº 8 - ABRIL / MAIO 2011 Sandoval Cajú O personagem, o povo e a cidade
Transcript
Page 1: Graciliano Nº 8

ISSN

1984-3

453

CE

PA

L /

Im

pre

nsa

Ofi

cia

l G

raci

lia

no

Ra

mos

- M

ace

ió -

An

o IV

- N

º 8

- A

BR

IL /

MA

IO 2

011

Sandoval CajúO personagem, o povo e a cidade

Page 2: Graciliano Nº 8

ReportagemSandoval Cajú, o poeta espadachim | 4

Bonito de Santa Fé - Perdido na caatinga | 8

Origens e infância | 11

“Desmentindo“ Euclides da Cunha | 12

De João Pessoa para o Recife e do Recife para Maceió – Por acaso | 13

O incendiário do rádio alagoano | 14

Sandoval Cajú candidato a prefeito de Maceió: a piada | 22

A administração de Sandoval Cajú | 28

O Golpe Militar de 1964 - Cassação e queda | 38

Cajú, o “versejador patológico” | 44

Sandoval e o design da cidade | 50

Na intimidade, o ressentimento | 52

Cajú e o “Duque de Caxias” | 54

Os filhos de Cajú | 56

O outro lado do contador de causos | 62

Vanessa Mota

Moisés de AguiarDiretor-presidente da CEPAL / Imprensa Oficial Graciliano Ramos

José Roberto PedrosaDiretor Administrativo Financeiro

Hermann de Almeida MeloDiretor Comercial

GOVERNO DO EStADO DE ALAGOAS

teotonio Vilela FilhoGovernador de Alagoas

José thomaz NonôVice-Governador de Alagoas

Álvaro MachadoSecretário-Chefe do Gabinete Civil

Luiz Otavio GomesSecretário de Estado do Planejamentoe do Orçamento

Janayna ÁvilaCoordenadora editorial

Pesquisa e textos:Lelo Macena

Conselho editorial:Fernando FiúzaJanayna ÁvilaMilena AndradeSidney WanderleySimone Cavalcante

Daniel HogrefeIlustrações

ISSN 1984-3453

Os textos assinados são de exclusiva responsabilidade do autor.

ArtigoSonhos poéticos, pesadelos políticos | 64

Maurício Melo Júnior

DocumentaNo cotidiano da política, o bom humor | 68

FotografiasAcervo família CajúMuseu da Imagem e do Som de Alagoas - MisaAcervo Jucá Santos

Michel RiosDireção de arte / Diagramação

Estagiários:Arthur de Almeida, Mariana Belo e Vanessa Mota

Revisão:Marli Josefina

Contatos:(82) 3315.8303 | [email protected]

Page 3: Graciliano Nº 8

Não são poucas as histórias que envolvem a figura do paraibano San-doval Cajú. Dono de uma personali-dade ímpar, contador de histórias engraçadas e inovador na adminis-tração pública, adquiriu, ao longo de sua curta, mas intensa jornada como prefeito de Maceió, amigos fiéis e ini-migos ferrenhos. Estes, é certo, em número bem menor, mas capazes de destituir do cargo, como o fizeram em 1964, o mais popular dos prefei-tos da capital alagoana. A cassação afastaria Sandoval Cajú para sempre da política.

Apesar de seu curto tempo à fren-te da administração da cidade (1961-1964), empreendeu uma “revolução” na paisagem urbana, planejando áre-as de convívio social e reformando parques e praças. Ainda hoje, é pos-sível observar intervenções marcan-

tes em espaços como a Praça do Cen-tenário, no bairro do Farol, e a Praça Sinimbu, no Centro, que constituem dois exemplos significativos das pro-postas de modernização arquitetôni-ca e paisagística que embalaram sua gestão.

O bom humor e a habilidade para o improviso – em parte, herança dos tempos como radialista – teriam sido as características que acabariam tor-nando-o um personagem engraçado e carismático. Entre amigos e corre-ligionários, a presença de Cajú numa festa era garantia de diversão. Não à toa, o ator alagoano Paulo Gracin-do, que imortalizou o personagem de Odorico Paraguaçu, da novela e série O Bem Amado, confessou, certa vez, que havia “tomado emprestado” de Sandoval uma das frases mais mar-cantes do prefeito de Sucupira, dita quase sempre durante a abertura de uma solenidade : “Vim de branco para ser mais claro”.

Após a cassação de seu mandato e a tentativa fracassada de retornar ao poder, Sandoval Cajú teria ficado cada vez mais ressentido. Na intimi-dade, com poucos amigos, costuma-va falar com tristeza do golpe sofrido.

Nesta 8ª edição da revista Gra-ciliano, brindamos o leitor com um dossiê inédito sobre a trajetória do homem, do político, do radialista e do

poeta Sandoval Cajú. A pesquisa e a reportagem do jornalista Lelo Mace-na trazem fatos desconhecidos pela maioria dos alagoanos, como a che-gada a Maceió, a carreira de sucesso na Rádio Difusora e a campanha vi-toriosa (e cheia de lances curiosos) à Prefeitura de Maceió.

Na seção Documenta, trechos dos livros 350 Histórias do Folclore Político, de Sebastião Nery, e Missão Secreta em Igaci, de Cleto Falcão, re-lembram o protagonista de situações cômicas, que remetem a um jeito pe-culiar de fazer política, bem diferente dos dias atuais. O escritor e jornalis-ta Maurício Melo Júnior, autor do ar-tigo “Sonhos poéticos, pesadelos po-líticos”, previu, com notável lucidez, a relação entre o ex-prefeito de Ma-ceió e o cenário político do presente: “O mundo pragmático da atualidade não comporta o doce populismo de Sandoval Cajú”.

Para saber mais sobre um dos mais controvertidos e marcantes personagens de Alagoas, confira também o documentário Sandoval Cajú – Além do Conversador, assina-do pelo cineasta Pedro da Rocha. As-sim como esta edição da Graciliano, o vídeo mostra como são importantes e necessárias a reflexão e o deba-te sobre fatos que marcaram nossa história.

Apresentação

Page 4: Graciliano Nº 8

As labaredas consumiam rápi-do o que havia no interior da loja. Na casa ao lado, onde morava coma família, o professor do Lyceu Alago-ano, Vital Barbosa, se desesperava. À medida que as chamas avançavam do outro lado da parede, a tempera-tura no interior da residência ficava insuportável. Pelas frestas do telha-do, a fumaça invadia e tomava conta

do ambiente. Dentista conhecido na cidade, Vital Barbosa não teve alter-nativa a não ser pedir ajuda à multi-dão de curiosos que se aglomerava. Ao primeiro pedido de socorro do

professor, jovens adultos e crianças invadiram a residência para tentar salvar os pertences da família Barbo-sa. Pegavam tudo o que encontravam ao alcance das mãos, corriam para fora e jogavam de qualquer maneira na calçada e no meio da rua.

Em poucos minutos, móveis, lou-ças, porcelanas, panelas de alumínio, roupas, muitos livros e quadros de

pintores famosos ficaram espalha-dos naquele trecho da Rua Joaquim Távora, no Centro de Maceió. Vários objetos, entre eles um piano de calda, não resistiram ao resgate treslouca-

do e foram destruídos na correria. Somente após a ação desesperada, o professor Vital Barbosa percebeu que se precipitara. Viu desconsolado que o incêndio se limitou ao prédio vizinho e que, à base de latas d’água, voluntários acabavam de debelar as últimas chamas.

Já era noite naquele dia 10 de maio de 1947. O incêndio da Casa das Tintas, conhecido estabelecimen-to comercial à época, era visto com desconfiança pelos maceioenses de língua ferina. Dizia-se à boca miúda que o evento era mais um golpe do dono da loja. Seria a terceira loja do comerciante que ele próprio tocava fogo criminosamente para que pu-desse receber o dinheiro do seguro.

No meio da multidão, curioso e atento, um homem assistia a tudo. Ouvidos aguçados, o desconhecido sorvia todos os comentários. Acaba-ra de chegar a Maceió, onde desem-barcara do trem vindo de Recife, no final da tarde. Hospedara-se no hotel Lusobrasileiro, na Rua Senador Men-donça. O forasteiro chamava-se San-doval Ferreira Cajú e tinha apenas 23

Sandoval Cajú,o poeta espadachim

As labaredas daquela noite iluminavam o início da trajetória meteórica de um dos mais autênticos e controversos personagens da história recente de Alagoas

RE

PO

Rt

AG

EM

4 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Page 5: Graciliano Nº 8

O prefeito Sandoval Cajú (ao centro, de terno escuro), e o governador de Alagoas Luís Cavalcante (à direita de Sandoval) durante protesto de comerciantes

5 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Page 6: Graciliano Nº 8

anos. Estava jantando no hotel quan-do o labafero provocado pelo incên-dio despertou-lhe a atenção. Chegou a pensar que fossem capangas do truaculento governador Sivestre Pé-ricles colocando adversários políti-cos para correr na base da bordoada.

O visitante chegara à cidade por acaso. O objetivo de sua viagem era apenas “matar o tempo”. Pensava em visitar um irmão e conhecer a terra

dos marechais. Poderia passar talvez 15 dias na cidade, antes de regres-sar a Paraíba, sua terra natal, onde no final daquele mês de abril, assu-miria um posto no recém instalado governo de Oswaldo Trigueiro de Albuquerque Mello.

Homem cuja vida foi permeada por lances marcados pela mão do

destino, Sandoval Cajú não imagi-nava que aquele incêndio na Casa das Tintas era seu batismo de fogo, poucas horas depois de pisar pela primeira vez em solo caeté. As la-baredas daquela noite iluminavam o início da trajetória meteórica de um dos mais autênticos e contro-versos personagens da história recente de Alagoas.

Cheio de espontaneidade, olhar

penetrante e dono de uma maneira única de se expressar, bastava co-meçar a falar para que as pessoas tivessem a certeza de estar diante de um homem “diferente”. Inteligente e espirituoso, dono de um senso de hu-mor que virou sua marca, não demo-rou muito para Sandoval Cajú se des-tacar na Maceió do final dos anos 40.

Jamais retornaria para assumir o cargo prometido na Paraíba. Ao invés dos 15 dias que planejou ficar na cidade, seu “passeio” pela capital alagoana duraria até o último ins-tante de sua vida. Em pouco tempo, o jovem nascido em Bonito de Santa Fé, nos confins do sertão paraibano, fez amigos, conseguiu emprego e ra-dicou-se em Maceió. Apaixonado por literatura e poesia, ajudou a fundar a Academia Maceioense de Letras e revelou-se, num curto espaço de tempo, um dos mais criativos e irre-verentes radialistas do Nordeste.

Mas o seu grande momento viria pouco mais de uma década depois de sua chegada a Maceió. Em 1960, no auge de sua carreira no rádio alago-ano, foi motivo de galhofa ao se can-didatar à Prefeitura de Maceió. Con-trariando as expectativas, venceu em todas as urnas da capital e derrotou três adversários representantes de forças políticas de Alagoas.

Elegeu-se prefeito de Maceió e imprimiu sua maneira única de ad-ministrar. Adorado pela população maceioense, que lhe garantiu a vitó-ria esmagadora nas urnas, Sandoval Cajú tinha uma preocupação especial com o bem estar do povo. Construiu dezenas de praças, cuidou do espa-

Dono de um senso de humor que virou sua marca, não demorou muito para Sandoval Cajú se destacar na Maceió do final dos anos 40

6 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano RamosR

EP

OR

tA

GE

M

Page 7: Graciliano Nº 8

ço público e levou infraestrutura aos bairros distantes.

Potencial candidato a disputar e vencer as eleições para o governo do estado no pleito seguinte, Sando-val Cajú foi “abatido em pleno voo”. Numa trama orquestrada por seus adversários políticos, ele teve seu mandato cassado e os direitos políti-cos suspensos pelos militares duran-te o golpe de 1964. Tentou reaver o cargo, mas nunca conseguiu. Jamais foi chamado para depor “nem por te-

lefone”, como costumava dizer, e nin-guém jamais lhe falou sobre qualquer Inquérito Policial Militar (IPM) que ci-tasse seu nome.

Imortalizado no anedotário da política brasileira por meio do livro Folclore Político, do jornalista e ex--deputado federal Sebastião Nery, o personagem que Sandoval Cajú criou para si ficou mais conhecido pelas tiradas engraçadas, pela ver-borragia demagógica e pelos casos que viraram piadas clássicas em

rodas de políticos.Mas, para além do homem que

‘vestia branco para ser mais claro’, ha-via também o prefeito arrojado e ino-vador, o radialista virtuoso, o orador imbatível e sedutor, o talentoso conta-dor de histórias, o poeta e amante da literatura, o amigo fiel, o pai dedica-do. Nesta edição da Graciliano vamos conhecer o universo múltiplo do ex--prefeito de Maceió Sandoval Ferreira Cajú, o sertanejo da Paraíba que fez história em Alagoas.

7 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Sandoval Cajú durante campanha para a prefeitura de Maceió

Page 8: Graciliano Nº 8

o dia clarear e o sol ir a pino. Não encontrara uma alma viva. Deixara a estradinha de terra há mais de duas horas. Agora o cavalo cambaleava so-bre o solo pedregoso. Jamais imagi-nou que estaria naquela situação. Es-

perava melhor sorte na sua primeira investida na vida, depois de deixar a terra natal, Bonito de Santa Fé, no se-miárido paraibano, em busca de uma

cidade maior, onde pudesse estudar e trabalhar. O ano era 1941 e Sando-val tinha acabado de completar 18 anos. Desde os 12, havia concluído o curso primário. Teve de interrom-per os estudos porque não havia gi-násio na pequenina e remota cidade onde nasceu.

Por isso partiu para Coremas, ci-dade vizinha, a menos de 100 quilô-metros de Bonito de Santa Fé. Conse-guiu emprego em um cartório. Filho de tabelião, o jovem Sandoval Cajú dominava aquele mundo de registros, certidões e outros documentos. Mas para que pudesse assumir oficial-mente a função, era preciso assinar o termo de compromisso diante do juiz de Piancó, comarca da qual fazia

Sob o sol causticante, sedento e debilitado, montado no lombo de um animal ainda mais extenuado, o jovem Sandoval Cajú pensou que fosse morrer naqueles confins de caatinga inóspita. Perambulava sem

rumo, desnorteado. Estava perdido em algum ponto do alto sertão da Pa-raíba. Penava desde a noite anterior para achar o caminho de volta. Vira

Esperava melhor sorte na sua primeira investida na vida, depois de deixar a terra natal

8 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Bonito de Santa Fé Perdido na caatinga

RE

PO

Rt

AG

EM

Page 9: Graciliano Nº 8

parte Coremas, a menos de 20 quilô-metros dali.

O chefe do cartório de Coremas, chamado Pedro Natividade, reservou lugar para o jovem Cajú em um dos carros que partiriam na manhã se-guinte, logo cedo, para Piancó, onde aconteceria o julgamento de um ho-mem que assassinara uma meretriz no cabaré da cidade.

Numa manhã de segunda-feira, Sandoval partiria para a sua pri-meira aventura além dos limites de sua Bonito de Santa Fé. Carregava debaixo do braço o pesado livro de assentamento de termos do cartório de Coremas, em uma das páginas do qual Sandoval assinaria e formaliza-ria sua posse no emprego.

No início, deu tudo certo. San-doval foi até o juiz, que exigiu docu-mento de maioridade dele antes da assinatura. Missão cumprida. Era só aguardar o final do julgamento e voltar para Coremas. Sem paciên-cia para acompanhar os debates de acusação e defesa, Sandoval Cajú foi para o pequeno hotel, onde almoçou e deitou em uma rede para cochilar. Pegou no sono.

Acordou num pulo, horas depois, quase noite. Correu para o local onde os carros estavam estacionados e constatou, incrédulo, que os veículos já haviam partido.

Desesperou-se, mas procurou manter a calma. Tinha de voltar naquele dia. O chefe do cartório

o aguardava. Orientado pelo dono do hotel, procurou um fazendei-ro que lhe emprestou um burro, único meio de transporte àque-la hora da noite. Pediu informa-ções sobre o caminho a tomar e partiu a galope.

Depois de mais de duas horas de cavalgada, avistou as luzes de uma cidade que pensou ser Coremas. “Graças a Deus”, suspirou aliviado. Mas, ao aproximar-se, tomou um sus-to. As luzes eram de Piancó, de onde partira no início da noite. Constatou incrédulo que cavalgara em círculo. Puxou as rédeas do cavalo, deu meia volta e pegou novamente a estrada. Iniciava ali a “via-crúcis” do jovem Cajú. Cavalgou a noite toda, emen-

Bonito de Santa Fé

Patos

Campina Grande

João Pessoa

Page 10: Graciliano Nº 8

dou pela madrugada e amanheceu em meio à caatinga erma, num ponto qualquer do alto sertão paraibano, cuja localização o adolescente Cajú ignorava completamente.

Cansado, com fome e sedento, todo rasgado dos espinhos de man-dacaru, no fim da tarde do dia se-guinte Sandoval Cajú avistou um córrego. Ele e o animal mataram a sede. Exausto, sob a sombra de um juazeiro Sandoval “desmaiou”. Quan-do acordou, nova e trágica surpresa: o cavalo havia desaparecido.

Pronto. Agora morreria no meio daquela vegetação seca. Seu corpo apodreceria sem que ninguém con-seguisse encontrá-lo naquela imensi-dão, pensava Sandoval Cajú. Danou--se a andar sem direção, guiado por um instinto de sobrevivência. Cami-nhou durante horas até ouvir o canto de um galo. Conseguiu chegar a uma casa onde foi socorrido por uma fa-mília sertaneja. Medicado e alimen-tado, dormiu quase um dia inteiro. Quando acordou, ficou sabendo que estava na zona rural do município de Patos, a quase 90 quilômetros a leste de Coremas e havia cavalgado o tem-po todo no sentido contrário.

No dia seguinte, rumou para a rodovia e pegou um ônibus de volta para Coremas. Não foi notado quan-do desceu do veículo e caminhou desconfiado em direção ao cartório. Pedro Natividade tomou um susto quando viu Sandoval Cajú. Não sabia se chorava, se agradecia a Deus, se abraçava-o, ou se dava uma bronca no auxiliar reaparecido.

Foram dias de aflição para o dono do cartório. Havia organizado grupos de busca ao jovem desaparecido. A cidade toda estava aflita. A histó-ria do desaparecimento misterio-so se espalhara rapidamente pelo sertão da Paraíba. O acontecimento virou notícia.

“Cavalo e cavaleiro desaparecem dentro da noite na rodovia Piancó--Coremas! Ninguém dá notícias de-les. O escrivão Pedro Natividade alu-ga dois automóveis e despacha seis

homens para busca de escrevente”, escreveu um periódico. “Fato inédito no sertão paraibano: entre Piancó e Coremas jovem sumiu com o livro do cartório”, alardeava outro. Um tercei-ro foi mais sensacionalista: “Escre-vente desaparece do mapa como os barcos no Triângulo das Bermudas!”. Na sua primeira tentativa de ganhar o mundo, Sandoval Cajú ganhou as pá-ginas dos jornais paraibanos.

A história narrada acima é contada pelo próprio Sandoval Cajú, em seu li-vro O Conversador (Sergasa-1991), um relato autobiográfico, nas páginas do qual ele conta fatos de sua vida e passa a limpo sua trajetória pessoal e política. Conta com detalhes o período de sua vida compreendido entre sua chegada a Maceió, em 1946, a elei-ção para prefeito, em 1960, e a última campanha política para a Prefeitura de Maceió, em 1985.

10 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano RamosR

EP

OR

tA

GE

M

Page 11: Graciliano Nº 8

Origens e infânciaAté desembarcar em Maceió,

na metade dos anos 1940, a vida de Sandoval Cajú deu muitas voltas. Ele nasceu em 1923, na minúscula e distante Bonito de Santa Fé, no alto sertão da Paraíba, a 555 quilômetros de João Pessoa, mas possui raízes em Alagoas. O avô paterno de Cajú, Laurentino Cajú, nasceu em um sítio na cidade de São José da Laje, zona da mata alagoana, em 1870. Casou-

-se com uma pernambucana do mu-nicípio de Canhotinho. No início do século passado, o casal rumou para o agreste paraibano. A princípio, se instalou na zona rural de Conceição de Piancó. Três anos mais tarde, os dois decidiram viver em Bonito de Santa Fé.

O primeiro filho do casal, bati-zado com o nome de José, tinha dez anos quando chegou com os pais ao sertão da Paraíba. No futuro, o me-nino alcançaria relativo destaque na sociedade bonitense. Viria a ocupar o cargo de prefeito da cidade por dois mandatos, além de ser também o

dono do cartório de Bonito de Santa Fé por mais de 40 anos.

José Ferreira Cajú casou-se com a bonitense Tamires Ferreira Guari-ta, cujos pais eram de São José de Piranhas, também no sertão parai-bano. Desse matrimônio, nasceram cinco filhos. Sandoval é o terceiro dos rebentos.

Na infância, o menino Sandoval já se destacava nas brincadeiras no

meio da rua e ao redor da igreja de Bonito de Santa Fé. Desde cedo já demonstrava o talento para contar história e prender a atenção dos pe-quenos que o cercavam.

Aos 12 anos concluiu o curso pri-mário. Como Bonito de Santa Fé não dispunha de curso ginasial, teve de interromper a aprendizagem formal e mergulhar no estudo autodidata. Só concluiria o ginásio mais de 20 anos depois, já morando em Maceió.

Criado dentro do cartório de registro da cidade, Sandoval Cajú aprendeu com o pai todo o serviço cartorário. Dos cinco irmãos, ele foi

o que mais se adaptou ao trabalho de redi-gir, carimbar e despachar documentos ofi-ciais. Talvez por isso, antes de completar 18 anos, ele herdou o cartório fundado pelo velho José Cajú. Mas abriu mão e repassou à irmã mais nova a responsabilidade.

Não ficaria em Bonito de Santa Fé. Queria ganhar o mundo, se estabelecer em “uma cidade grande”, que oferecesse meios para que pudesse concluir os estu-dos e crescer na vida. Contava com o in-centivo e o patrocínio do pai. O velho José Cajú sabia que o futuro do filho estaria ameaçado caso continuasse naquela aca-nhada cidade sertaneja.

Sandoval fez várias tentativas de se estabelecer em uma capital nordestina. Buscou a sorte em Fortaleza, onde esteve por algum tempo, arriscou alguns meses em João Pessoa e passou uma temporada no Recife.

Ainda não tinha 18 anos quando se aventurou numa viagem ao Rio de Janei-ro. No meio do caminho, o dinheiro aca-bou e ele foi obrigado a passar dois anos na Bahia, em Santo Amaro, a cerca de 30 quilômetros de Salvador. Trabalhou duro e pegou no cabo da pá e da picareta. Em 1941, foi servente de pedreiro na cons-trução, da base aérea de Santo Amaro do Ipitanga.

Teve de retornar a Bonito de Santa Fé. A Segunda Guerra Mundial eclodira e mi-lhares de jovens brasileiros estavam sen-do convocados a servir à pátria. Sandoval Cajú passou quase dois anos no Exército.

Sandoval nasceu na minúscula e distante Bonito de Santa Fé, no alto sertão da Paraíba

Page 12: Graciliano Nº 8

“Desmentindo” Euclides da Cunha

Ao deixar o serviço militar, deci-diu morar em João Pessoa, na capi-tal paraibana. Era fim de 1946. Em janeiro do ano seguinte ocorreriam as eleições para governadores de Estado. De maneira voluntária, San-doval Cajú se engajou na campanha política do ministro da Suprema Cor-te de Justiça, Oswaldo Trigueiro de

Albuquerque Mello, candidato apoia-do pelo líder político e escritor José Américo de Almeida.

Mesmo sem ser convidado, jun-tou-se à caravana do candidato ao governo da Paraíba. Formado por no-mes ilustres da política paraibana, o cortejo sairia em campanha pela re-gião sertaneja, realizando comícios e conquistando votos de eleitores.

Sandoval Cajú encontrou uma

vaga em um dos mais de dez veículos que formavam a caravana e rumou para o sertão da Paraíba, de volta às paragens que conhecia tão bem. Logo na primeira oportunidade que surgiu, na cidade de Itaporanga, ele não dei-xou escapar a chance de exibir o seu talento no manejo do verbo. Conhecia a alma sertaneja, os costumes e as dificuldades vividas no semiárido. No seu discurso de estreia já foi exibin-do a habilidade de prender a atenção e provocar suspense na plateia.

Iniciou sua fala contradizendo o jornalista e escritor Euclides da Cunha, para espanto dos oradores presentes: “O sertanejo é, antes de tudo, um fraco!”. A multidão ficou em silêncio. Sandoval continuou. “...impotente para resistir sozinho aos impiedosos caprichos da natureza que periodicamente inflige a seca. A seca que esturrica a terra, terra que, ressequida, não produz o ali-mento à sobrevivência; seca que o debilita fisicamente e lhe mata de sede e de fome o gado, a criação!... Mas, os homens do sertão da Paraíba tornar-se-ão fortes amanhã, quando este governo de Oswaldo Triguei-ros se instalar no Palácio da Reden-

ção e tratar de construir grandes reservatórios de água para irri-gação...Paguemos para ver com o nosso voto!”.

Foi efusivamente aplaudido e aclamado e ganhou de imediato a simpatia do candidato Oswaldo Trigueiros, que daquele dia em diante fazia questão de manter Sandoval Cajú à vista. Quase sem-pre, o escalava para discursar e formular os agradecimentos pelas homenagens recebidas nas cida-des sertanejas. Sandoval se desta-cava entre oradores renomados da Paraíba que compunham a cara-vana, a exemplo do recém-eleito à época deputado federal João Agri-pino Filho, Josmar Toscano Dantas e Plínio Lemos.

Trigueiros venceu as eleições e Sandoval Cajú conquistou um em-prego no quadro administrativo do Palácio da Redenção. No dia 9 de maio de 1947, foi recebido no palá-cio pelo novo governador. Os dois conversaram e ficou combinado que Sandoval Cajú se apresentaria para trabalhar na assessoria do governo no fim do mês, exatamente no dia 30, uma sexta-feira.

O sertanejo é, antes de tudo, um fraco!Sandoval Cajú

12 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano RamosR

EP

OR

tA

GE

M

Page 13: Graciliano Nº 8

Saiu do Palácio da Redenção “com o coração arrebentando de felicida-de”, como descreve Cajú em seu livro de memórias, O Conversador. Sen-tou-se em banco de praça, em frente à estatua de João Pessoa, respirou e vislumbrou um futuro promissor. Mas as coisas só começariam a acon-tecer de fato no fim do mês. Inquie-to e ansioso, Sandoval Cajú pensou

numa maneira de “matar o tempo”. No dia seguinte, no início da tarde, num sobressalto que lhe arrancou do cochilo após o almoço, pegou a baga-gem e partiu para embarcar num ôni-bus. Decidira conhecer Recife, queria visitar pontos turísticos, prédios his-tóricos, museus e bibliotecas.

Chegou à capital pernambucana

no fim da tarde. Hospedou-se em uma pensão nas proximidades da antiga Rua da Detenção, a alguns metros de uma estação da Great Western. À noi-te, caminhou pela Imperatriz, viu o Rio Capibaribe ao passear pela ponte da Boa Vista e assistiu a um filme no cinema da Praça Joaquim Nabuco.

No retorno à pensão, as luzes da estação lhe chamaram a atenção. A

Great Western comemorava 100 anos de operação na região Nordeste. No salão principal da estação, Sandoval deparou-se com vários cavaletes nos quais estavam colocados quadros--negros onde se lia os horários de partidas de trens para várias cida-des: Garanhuns, Jaboatão, Moreno, Caruaru, Maceió...

“Maceió!”, exclamou Sandoval Cajú. Nutria o desejo de conhecer a terra dos marechais. Acompanhava por meio dos noticiários de rádio e jornal fatos da política alagoana, do-minada à época pelo violento Silves-tre Péricles de Góes Monteiro.

Seria uma grande oportunidade de rever o irmão Genival Cajú, que estudava na Faculdade de Direito, na capital alagoana. Não pensou duas vezes. Partiu para o guichê e comprou a passagem de 1ª classe Recife/Maceió. Embarcou às 6 horas da manhã do dia 10 de maio de 1947.

Nem desconfiava que aquela era uma viagem apenas de ida. Aquela decisão tomada na noite anterior, em meio às luzes da estação de trem, daria novo rumo à vida de Sandoval Cajú. Jamais ele retorna-ria à Paraíba para assumir seu posto no governo de Oswaldo Trigueiros. Carregou dentro dele o “remorso” de ter desprezado a terra natal. Em Maceió, ele consagraria sua trajetó-ria e escreveria seu nome num dos capítulos mais importantes da his-tória política alagoana.

De João Pessoa para o Recife e do Recife para Maceió – Por acaso

Fachada da estação ferroviária do Recife, onde Sandoval embarcou rumo à Maceió

Aquela decisão tomada na noite anterior, em meio às luzes da estação de trens, daria novo rumo à vida de Sandoval Cajú

Page 14: Graciliano Nº 8

O incendiário do rádio alagoano

Num fim de tarde daquele mês de setembro de 1948, o governador de Alagoas Silvestre Péricles de Góes Monteiro era o centro das atenções de uma roda formada por secretários

e bajuladores. Como costumava fa-zer, ao fim do dia, o chefe do executi-vo reunia-se no Palácio dos Martírios com sua equipe. Naquela tarde, nada de assuntos oficiais. A discussão gi-rava em torno da beleza da mulher alagoana, um dos assuntos prefe-ridos do cacique político, metido a

poeta e garanhão. Enquanto o papo rolava, uma figura se espreme e pede passagem em meio ao pequeno grupo em torno do governador.

“Governador, me permita um

aparte! É claro, óbvio, evidente e axiomático que mulher é que nem castigo: só presta grande!”. Não se sabe exatamente do que tratava a conversa. O fato é que Silvestre Pé-ricles ouviu aquilo e deu uma gar-galhada. Gostou da “tirada” daquele jovem excêntrico, mas muito simpá-

tico. Chamou-o para perto, abraçou-o ainda sorrindo.

“Governador, meu nome é San-doval Cajú”, apresentou-se. “O que você quer?”, perguntou Silvestre. “Eu quero ir para a Rádio Difusora”, dis-se, sem titubear, o rapaz. Silvestre Péricles então sacou a caneta, escre-veu um bilhete, assinou e o entregou dizendo: “Procure o Aldemar Paiva”.

Teria sido dessa forma que San-doval Ferreira Cajú passara a inte-grar o quadro da recém-criada Rádio Difusora de Alagoas. Essa versão é contada pelo próprio Aldemar Pai-va, artista talentoso e um dos mais brilhantes personagens do Teatro de Amadores de Maceió, grupo de artis-tas que pontificava naquela época, na capital alagoana.

Enquanto conta a história, Paiva faz questão de imitar o jeito de falar de Sandoval, que detestava, segundo amigos, a imitação de Aldemar Paiva.

Enquanto o papo rolava, uma figura se espreme e pede passagem em meio ao pequeno grupo em torno do governador

14 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano RamosR

EP

OR

tA

GE

M

Page 15: Graciliano Nº 8

O incendiário do rádio alagoano

“Como jornalista que já era naquele tempo, Sandoval Cajú vivia fuçando as autoridades, em busca de notícias e estava naquela tarde no Palácio dos Martírios. Ele tinha o sonho de traba-lhar em rádio e aproveitou o momen-to para dar a ‘facada’ no Silvestre Pé-ricles”, conta Aldemar Paiva.

Há um ano e meio radicado em Maceió, Sandoval Cajú conseguiu, menos de 15 dias depois de chegar à capital alagoana, emprego no Depar-tamento de Viação e Obras Públicas (DVOP). Nomeado diretor artístico da ZYO-4, a Rádio Difusora, fundada em 16 de setembro de 1948, Aldemar Pai-va também trabalhava naquele órgão estadual. Ao receber a solicitação do “doutor Silvestre”, Paiva tratou de transferir Cajú do DVOP para as on-das radiofônicas da Difusora.

Sob a direção geral de Mário Mar-roquim, um dos pioneiros do rádio alagoano, a Rádio Difusora formou

um verdadeiro elenco de cantores, locutores, músicos, redatores e téc-nicos. À frente da direção teatral, Lima Filho ditava os roteiros e ga-rantia o sucesso de audiência das ra-dionovelas interpretadas por nomes como o próprio Lima Filho, Aldemar Paiva, Ezequias Alves, Nilda Neves, Claudio Alencar, Pedro Onofre e ou-tros. O time de cantores também era imbatível e contava com vozes afina-das como as de Seton Neto, Raynou Carvalho e Yasinha Calmon.

Sandoval Cajú reforçaria o qua-dro de redatores que contava tam-bém com Aldemar Paiva e Lima Filho, dois curingas da Difusora, além de Ezequias Alves, Josué Jú-nior e o poeta ácido e irreverente Armando Wucherer.

Em sua nova função, Sandoval Cajú passou a escrever o ‘Álbum So-cial’ da Difusora, espécie de coluna social radiofônica que divulgava da-

Governador Silvestre Péricles (à direita) durante bate-papo com correligionários: foi a ele que, em 1948, Sandoval Cajú pediu emprego na Rádio Difusora

15 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Page 16: Graciliano Nº 8

tas de aniversário e fatos da socie-dade maceioense. Também redigia os textos do programa de auditório apresentado pelo animador Alcides Teixeira, que viria, anos depois, a ocupar uma cadeira de deputado

estadual, na Assembleia Legislativa de Pernambuco.

Por mais sonhador que pudesse ser, Cajú jamais imaginou que esta-va iniciando naquele momento uma das carreiras mais brilhantes no rádio alagoano. Quando um dos ani-madores de um dos programas de auditório faltou, o diretor artístico Aldemar Paiva olhou para Sandoval e disse: “Vai você!”. O auditório locali-zado na antiga sede da Rádio, situa-

da à Rua Pedro Monteiro, no Centro da cidade, estava lotado e o público não podia mais esperar pelo anima-dor faltoso. O próprio Cajú conta o episódio: “Subi ao palco, lancei mão do microfone, contive o nervosismo e

enfrentei a plateia. O espetáculo sob meu comando improvisado teve cur-so normal e, por incrível que pudesse parecer, foi alvo dos aplausos da nu-merosa assistência”.

O resultado foi tão surpreenden-te que a direção da Rádio Difusora decidiu mantê-lo em definitivo na nova função, onde continuou até o mês de dezembro, quando o contrato de publicidade acabou e o programa foi tirado do ar. Empolgados com a

performance do novo animador, os patrocinadores mostraram-se inte-ressados em renovar o contrato de publicidade e bancar um novo pro-grama tendo à frente Sandoval Cajú.

Criativo e inovador, Sandoval in-ventou o “Palito de Fósforo, o incen-diário dos auditórios”, programa que revolucionou o rádio alagoano. Foi batizado assim porque o animador só dispunha de apenas 15 minutos para fazer o espetáculo, ganhar a audiên-cia e “vender seu peixe”. “Era peque-no como um palito de fósforo, mas tocava fogo e incendiava e plateia”, dizia Sandoval Cajú.

Nesse curto espaço de tempo, ele recebia e entrevistava personalida-des da época e distribuía prêmios aos ouvintes que respondiam cor-retamente às perguntas formuladas ao microfone. Durante a audição, bem ao seu estilo teatral, gesticu-lando muito e caprichando no voca-bulário, Sandoval Cajú narrava fatos pitorescos. Em casa e no auditório, os ouvintes e o público presente morriam de rir.

Aldemar Paiva não esquece a es-treia de Palito de Fósforo. “O progra-

Por mais sonhador que pudesse ser, Cajú jamais imaginou que estava iniciando naquele momento uma das carreiras mais brilhantes do rádio alagoano

16 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano RamosR

EP

OR

tA

GE

M

Page 17: Graciliano Nº 8

ma estreou no dia 25 de dezembro. Aí o Sandoval pegou o microfone e disse: ‘Senhoras e senhores, esse é um programa sui generis da radiodi-fusão nacional. E eu quero, antes de qualquer coisa, proceder a um regis-tro que eu considero da maior impor-tância: Está completando nessa data 1948 anos de idade nosso senhor Je-sus Cristo, a quem eu peço uma salva de palmas!”. O sucesso do programa foi imediato. A audiência no horário cresceu e o tempo de audição foi am-pliado para duas horas de duração.

Os ouvintes adoravam e os com-panheiros de trabalho se impressio-navam com a facilidade que Sandoval tinha de se comunicar com o público. Onde chegava, dominava o ambiente e logo virava o centro das atenções.

“O Sandoval era um homem dife-rente. Tinha uma maneira única de falar. Usava umas expressões, umas palavras, que nenhum outro locutor ou apresentador usava naquela épo-ca”, lembra o jornalista e escritor Cassimiro de Farias Cardoso, mais conhecido pelo nome artístico de Cláudio Alencar, galã das radionove-las da Rádio Difusora nos anos 1950.

O “nome de guerra” lhe foi dado pelo diretor de radioteatro, Lima Filho, que não considerava “radiofônico” o Cassi-miro de Farias.

Cláudio Alencar estava no audi-tório da Rádio Difusora e presenciou a famosa entrevista concedida pelo craque Edvaldo Santa Rosa, o Dida, a Sandoval Cajú, em uma edição do Palito de Fósforo. À época, Dida era jogador do CSA e viria a vestir a cami-sa do Flamengo do Rio de Janeiro, de onde seria convocado para a Seleção Brasileira.

“O auditório estava lotado. O San-doval, com aquele seu jeito, iniciou a entrevista e, antes de apresentar o entrevistado, começou a elogiar Dida por meio de cada letra de seu apeli-do: ‘D de dominador, I de imperador, D de demolidor e A de artista da bola’”, lembra Cláudio.

Nesse momento, segundo Cláu-dio, um “gaiato” da plateia grita: “dá o c... a ele!”. “De imediato, Sandoval virou-se para o cara, dirigiu-se a ele, e emendou, trocando a pontuação da frase: “Eu como você!... Também gosto da brincadeira...”. O tal “gaiato” foi co-locado para fora do auditório a tapas.

17 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Page 18: Graciliano Nº 8

Em seu livro, intitulado Contando Histórias, lançado em 1991, uma co-letânea de textos que falam do surgi-mento do rádio em Alagoas, Cláudio Alencar conta com detalhes a implan-tação da Rádio Difusora, pioneira no Estado. Entre os “causos”, está o do Quartel General do Rádio, o progra-ma de auditório criado por Sandoval Cajú que, depois de farta divulgação, mal chegou a estrear.

“No dia do lançamento do progra-ma, muito anunciado e com estreia muito badalada, Sandoval Cajú deci-diu que os estudantes não pagariam ingresso. O que se viu foi a super-lotação do auditório da Difusora, na Rua Pedro Monteiro”, conta Cláudio Alencar.

Anunciado para começar às 20 horas, logo após a Voz do Brasil, às 17 horas já havia estudante chegando à rádio. “É bom lembrar que, naquela época, os estudantes mandavam bra-sa. Os festejos do Dia dos Estudantes terminavam em quebra-quebra e em anarquia generalizada”.

A situação ficou fora de controle.

As mocinhas normalistas não con-seguiram permanecer dentro do au-ditório. Para complicar ainda mais a situação já caótica, uma queda de energia deixou a cidade às escuras.

A Rádio Difusora, segundo narra Cláudio Alencar, era a “menina dos olhos” do governador Silvestre Péri-cles, que ficou “possesso” ao ser co-municado que, naquela noite, os es-tudantes estavam destruindo a rádio.

Em meio àquela confusão, Sando-val Cajú mantinha a calma e aparen-tava tranquilidade. Apenas esperava a hora de entrar no ar e estrear o seu Quartel General do Rádio. Às 20 ho-ras. Sandoval manda abrir a cortina. Não havia dito a ninguém como con-duziria o programa e o que faria para “domar” a estudantada rebelde.

“ZYO-4, Rádio Difusora de Alago-as...”. A vaia cobriu. Sandoval levan-tou a mão, pediu silêncio, aproveitou uma breve pausa na zoada, e cravou: “Senhoras e senhores, antes mesmo de ser iniciado, está definitivamen-te encerrado o Quartel General do Rádio!”, e deixou o palco. Apesar de

anunciado e aguardado pela audiên-cia, o programa nunca mais foi ao ar. Foi o programa mais curto da história do rádio.

Criativo e dono de ideias origi-nais, Sandoval Cajú não desistiu. “In-ventou” o Gigante do Ar, programa de estúdio que instigava a imaginação dos ouvintes. Tudo se “passava” no interior de um enorme avião, a bor-do do qual os principais cantores e artistas da época viajavam sob a li-derança do “comandante” Sandoval Cajú. “Atenção, senhoras e senhores, estamos pousando aqui na capital alagoana e temos a bordo os cantores Ciro Monteiro e Carlos Galhardo...”, viajava Sandoval. O programa foi ou-tro sucesso de audiência.

Durante três anos e meio, Cajú permaneceu na Rádio Difusora. Criou e produziu outros programas de au-ditório, a exemplo de Traga Centavos e Leve Cruzeiros e Feira de Atrações. Por meio das ondas da Difusora, ele fez fama de radialista virtuoso e exí-mio comunicador. Ficou conhecido no Nordeste e admirado na Paraíba, sua

18 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano RamosR

EP

OR

tA

GE

M

Page 19: Graciliano Nº 8

Sandoval Cajú (à direita) durante a transmissão do programa Palito de Fósforo, pela Rádio Difusora

Page 20: Graciliano Nº 8

terra natal, onde familiares e amigos se reuniam em torno do rádio para ouvir os programas comandados por ele.

No início de 1951, depois de ter concedida uma licença médica de três meses, Sandoval Cajú viajou para a Paraíba. Lá, passou o dobro do período a que tinha direito, o que lhe acarretou a demissão do Depar-tamento de Viação e Obras Públicas (DVOP), onde era lotado.

Em João Pessoa, não resistiu aos assédios e aceitou o convite de Car-melo dos Santos Coelho, diretor-ge-ral da Rádio Tabajara para assumir a função de locutor-chefe da emissora. A proposta de emprego veio depois de sua performance como locutor das comemorações do Dia 1º de Maio, um freelance que aceitou fazer en-quanto estava de licença médica em João Pessoa.

Passou cerca de seis meses na função e levantou a audiência da emissora paraibana com programas como Página Poética e Papos No-turnos. Pediu demissão e voltou a Maceió, para que sua esposa, uma

alagoana com quem estava casado há um ano e meio, desse à luz à sua primeira filha, batizada de Adélia.

Cajú ainda retornaria à Rádio Tabajara para mais uma temporada de cerca de cinco meses. Quando voltou à capital alagoana, em 1952, trabalhou como repórter do Jornal de Alagoas e também como corretor de publicidade de rádio e jornal.

Enquanto batalhava para garan-tir o sustento da família, Sandoval Cajú também lutava para concluir o ginásio e o curso secundário, já que possuía apenas o curso primário. Estudou no Colégio Guido de Font-galland e também na Escola Técni-ca de Comércio de Maceió, onde foi diplomado no dia 27 de dezembro de 1958. Em seguida, inscreveu-se e foi aprovado no curso pré-universitário da Faculdade de Direito de Alagoas, onde se formou bacharel em ciências jurídicas e sociais, atividade que ga-rantiria seu sustento nos anos de os-tracismo na política.

Dez anos após a inauguração da Rádio Difusora, surgia em Alagoas a Rádio Progresso, inaugurada no

feriado de 15 de novembro de 1958. Instalada sob o prefixo ZYL 25, a nova emissora nasceu do investimento do então deputado Ary Pitombo e inau-gurou também o ciclo de rádios co-mandadas por políticos no Estado.

Para os profissionais da área, lo-cutores, animadores, radioatores, radioatrizes e técnicos, a Progresso significava a expansão do mercado de trabalho em Alagoas. Muitos no-mes do cast da Rádio Difusora migra-ram para a nova emissora. Além de-les, jovens talentos que despontavam na comunicação naquele momento também foram acolhidos pelo novo empreendimento, fazendo com que, por exemplo, a experiência de Jesu-aldo Ribeiro fosse somada ao fôlego do “foca” Luiz Tojal.

Nos mesmos microfones surgi-riam figuras do rádio como Sabino Romariz, Arnoldo Chagas e Floracy Cavalcante. Para as radionovelas, o diretor da Rádio Teatro Florêncio Teixeira contava com elenco de ta-lento, dentro do qual figurava nomes a exemplo de Silvia Lorene, Cibele Barbosa e Romildo Holiday.

20 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano RamosR

EP

OR

tA

GE

M

Page 21: Graciliano Nº 8

O diretor-geral Castro Filho foi buscar o radialista pernambucano Edécio Lopes, falecido em 2009, para elaborar e dirigir a programação. Foi pelas mãos dele e pelo brilhante tra-balho que desenvolvia aos microfo-nes da Rádio Difusora que Sandoval Ferreira Cajú chegou às “ondas hert-zianas”, como gostava de dizer, da ZYL 25, a Rádio Difusora.

Cajú não perdeu tempo e logo emplacou o programa que revolu-cionaria radicalmente a radiodifusão em Alagoas. Levado ao ar no horário

de almoço, o Tribuna do Povo era um programa “do povo, pelo povo e em função do povo”, como alarde-ava ao microfone o apresentador Sandoval Cajú.

Matreiro na arte de se comuni-car, Sandoval Cajú conhecia como ninguém o idioma do povo. Andarilho das ruas, frequentador de praças e de outros locais públicos, ele sabia dos anseios da classe mais humilde. Mas seu discurso também ganhava a simpatia dos ricos. Seu Tribuna do Povo logo se transformou em lideran-

ça absoluta de audiência. O programa projetou ainda mais Cajú e garantiu--lhe a popularidade de que precisava para partir para sua maior aventura em terras caetés.

Sem qualquer apoio político, desprovido de suporte de grupos econômicos e contrariando todas as expectativas, nas eleições de 1960 Sandoval derrotaria três candidatos apoiados por forças políticas tradi-cionais e escreveria uma das mais incríveis páginas da recente história de Alagoas.

Antiga sede da Rádio Difusora de Alagoas, no Centro de Maceió

21 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Page 22: Graciliano Nº 8

A gargalhada explodiu dentro da sala de reuniões da Academia Ma-ceioense de Letras, numa tarde da-queles primeiros dias de agosto, em 1960. O radialista e literato Jesualdo Ribeiro, o jovem radioator Pedro Ono-fre, o cantor, poeta e compositor Jucá Santos e o poeta Manoel Cícero do Nascimento imaginavam tratar-se de

mais uma piada do irreverente San-doval Cajú. Mas o radialista estava sério e fez questão de repetir: “Eu sou candidato a prefeito de Maceió e preciso da ajuda de vocês”. Onofre tirou onda de Sandoval: “Com que di-nheiro? Você não tem onde cair mor-to...”. Cajú não esquentou. “Não sei, mas vamos dar um jeito. Vocês estão ou não estão comigo?”.

“Eu olhei para ele e disse: ‘Está

bem Sandoval, eu vou trabalhar na sua campanha’, mas levando tudo na brincadeira, porque não havia a me-nor chance de vitória. Eram três can-didatos representantes dos políticos tradicionais. Aí chega um maluco di-zendo que seria prefeito de Maceió!”, lembra sorrindo o teatrólogo alagoa-no Pedro Onofre, 74 anos. Do grupo

da Academia Maceioense de Letras, apenas ele se engajaria na busca de votos para o amigo pelos bairros de Maceió.

A dois meses do pleito eleitoral, não foi fácil para Sandoval Cajú ga-rantir sua candidatura pelo Partido Democrata Cristão (PDC). Para con-seguir a legenda ele teve de brigar e superar a oposição do presidente do pequeno partido, Cícero Virgínio Tor-

res, que pretendia oferecer o PDC para a candidatura do engenheiro Clóvis Maia Nobre.

Sandoval decidira se candidatar a pre-feito no ano anterior, em 1959. Contratado pela Rádio Progresso,de propriedade do deputado Ary Pitombo, era campeão ab-soluto de audiência à frente do Tribuna do Povo. O programa tinha duas horas de duração, de segunda a sábado, e começa-va ao meio-dia. O objetivo era buscar so-luções práticas para os problemas princi-palmente da comunidade carente.

Enquanto almoçavam, os ouvintes curtiam o programa e aprovavam o verbo afiado do locutor. Seu discurso criticava o abandono da capital e o descaso do po-der público com os mais necessitados. “É preciso resgatar o ‘sorriso’ desta cidade”, pregava, enquanto cobrava infraestrutu-ra, abastecimento de água e de energia elétrica para os bairros da periferia.

As ondas do rádio transportavam Sandoval Cajú aos braços do povo. A au-diência do programa comandado por ele chegou a atingir 95%. Tal projeção encheu Sandoval Cajú de esperança e deu-lhe a certeza de que não haveria momento me-lhor para lançar seu nome à Prefeitura de Maceió.

Sandoval Cajú candidato

Eu sou candidato a prefeito e preciso da ajuda de vocêsSandoval Cajú

22 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

a prefeito de Maceió: a piada

RE

PO

Rt

AG

EM

Page 23: Graciliano Nº 8

Pedro OnofreTeatrólogo

Eu olhei para ele e disse: ‘Está bem Sandoval, eu vou trabalhar na sua campanha’, mas levando tudo na brincadeira, porque não havia a menor chance de vitória

Pedro Onofre durante a campanha de Sandoval Cajú para a Prefeitura de Maceió

Mic

hel R

ios

Page 24: Graciliano Nº 8

OS ADVERSÁRIOS DE SANDOVAL

Nós entramos na campanha com gosto de gás, como se diz na gíria, e tivemos de fazer 147 comíciosSandoval Cajú

Para chegar ao mais alto posto do executivo, Sandoval teria de en-frentar e derrotar três candidatos representantes de forças políticas e econômicas de Alagoas. Eram eles: o médico Jorge Quintela, ex-vereador, então deputado estadual pela UDN; Cleto Marques Luz, candidato que gozava do apoio do governador Muniz Falcão e do prefeito Abelardo Pontes Lima, durante três mandatos verea-dor por Maceió e, à época, deputado estadual; e Joaquim Leão, que tinha o apoio dos comerciantes e era o can-didato do deputado federal Ari Pitom-bo, dono da recém-inaugurada Rádio Progresso e chefe de Sandoval Cajú.

Pitombo ainda tentou fazer com que Cajú desistisse da candidatura e passasse a apoiar o comerciante Jo-aquim Leão, mas o locutor paraibano estava decidido e não abria mão de disputar o pleito. A teimosia custou a Sandoval Cajú suas duas horas nos microfones da Progresso. Numa ati-tude de represália, Ary Pitombo man-dou tirar do ar o Tribuna do Povo.

Sem dinheiro, sem apoio político e agora sem seu programa no rádio, Sandoval Cajú partiu para a cam-panha política. Montou seu “comitê eleitoral” na antiga Farmácia Miner-va, na Rua do Comércio, de proprie-

dade de Angélico Gomes, também paraibano que adorava Sandoval. O filho dele, Harry Gomes, colocou à disposição do radialista um automó-vel Studebaker 1951, sobre o qual foram instalados dois autofalantes também cedidos por outro comer-ciante, Severino Gomes. Além desse apoio, também contava com o patro-cínio do sogro José Loyola, político antigo da capital.

Arregimentou como locutor oficial de sua campanha Artagnã Marcelino e convocou Pedro Onofre para assu-mir o posto de orador oficial. A bordo de um veículo modelo Studebaker, como verdadeiros mosqueteiros, os três percorreriam em dois meses todos os bairros de Maceió, numas das mais criativas e empolgantes campanhas políticas já realizadas em Alagoas.

Em entrevista ao radialista Edé-cio Lopes, em seu programa Manhãs Brasileiras, em 1985, Sandoval Cajú lembra aquele momento histórico. “Nós entramos na campanha com gosto de gás, como se diz na gíria, e tivemos de fazer 147 comícios. Não que estivesse programada essa enor-midade de comícios. É porque o can-didato, naturalmente, caiu no gosto do povo”.

24 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano RamosR

EP

OR

tA

GE

M

Page 25: Graciliano Nº 8

USANDO EStRAtÉGIAS DE CIRCOS MAMBEMBES

Segundo Pedro Onofre, havia noi-tes em que Sandoval Cajú chegava a fazer cinco ou seis comícios, numa estratégia semelhante aos circos mambembes. O trio partia para um bairro, no fim de tarde, e escolhia uma rua para o primeiro comício. Se-dutor, insinuante, “papo de derrubar avião”, Sandoval descia do carro e batia palmas na porta de uma casa. A dona vinha atender e ele dizia: “Boa noite, eu sou o Sandoval Cajú e queria a sua permissão para realizar o meeting aqui na sua porta”. Não havia quem recusasse. Permissão concedida, Sandoval fazia mais um pedido. “Poderia, por favor, ligar essa tomada do nosso sistema de som aí na sua casa?”

Pedro Onofre e Artagnã tratavam de conseguir um banco, uma mesa ou uma caixa de madeira para servir de palanque. “Depois que ligava o mi-crofone, o Artagnã ficava anuncian-do: ‘Venham ver o comício de San-doval Cajú, a esperança de Maceió! Depois que o Artagnã falava, juntava um monte de menino, as pessoas sa-íam nas portas, aí eu subia no banco e dava o primeiro discurso da noite. Quando eu terminava de falar, Sando-val vinha e dava o discurso dele”.

Na metade do discurso, Sando-val Cajú parava e dizia: “Colegas, acabo de ser convidado para fazer mais um comício logo ali adiante. É aqui na mesma rua, só que na outra esquina. Peço que vocês me acompa-nhem para que eu possa concluir o meu discurso”.

Sandoval partia então a pé, segui-do de uma pequena multidão, para o seu segundo comício. O público ia au-mentando a cada discurso. No quinto comício da noite, Sandoval Cajú fala-va para uma multidão. Seu discurso era cheio de humor e frases de efei-to, bem no estilo que o consagrou no rádio, mas não faltavam ataques aos que acabaram com o “sorriso” de Ma-ceió e críticas pelo abandono a que fora relegada a capital.

“O discurso do Sandoval era irre-verente. Ele atacava o que tinha de ser atacado, o descaso com a cidade, e tinha certas tiradas, umas frases interessantes que despertavam o riso. ‘Eles estão aí me ameaçando, mas eu tenho uma arma que assen-ta qualquer cabelo e vou mostrar aos senhores...’ Aí, puxava um pente. Era uma gargalhada geral, o povo ia ao delírio”, lembra Pedro Onofre.

Os comícios de Sandoval Cajú ga-

nharam status de shows. Milhares de pessoas passaram a acompa-nhar o performático locutor. Só então, os outros candidatos passa-ram a perceber a força e o cresci-mento da campanha do paraibano.

“No começo, todos iam lá para brincar, para zombar. Ninguém acreditava. Os outros candidatos só começaram a sentir o peso da campanha de Sandoval Cajú fal-tando uns 15 dias para a eleição. Eles já colocavam observadores, apareciam carros nos comícios”, diz Onofre.

Segundo ele, nem o próprio Sandoval Cajú se dava conta do que estava acontecendo. “A ficha foi caindo aos poucos para ele. Nos últimos dias da campanha, ele foi perdendo aquele ar de brincalhão, foi sentindo naturalmente temor, o peso da responsabilidade de assu-mir a Prefeitura de Maceió. Aquele comediante, aquele palhaço, como todos chamavam, começou a de-saparecer dele. Sandoval ficou mais introspectivo, mais preocu-pado. Já se via Sandoval Cajú em silêncio, pensativo, coisa que era impossível”, diz Onofre.

25 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Page 26: Graciliano Nº 8

Foi no famoso comício da Praça Deodoro que Sandoval Cajú teve a certeza de que seria eleito prefei-to de Maceió. Sua campanha havia crescido e atraído novos oradores. Contava com um palanque e um ser-viço de som. Na praça, não havia es-paço para mais ninguém. As ruas ao redor estavam tomadas.

“Você está vendo o que está acon-tecendo, meu filho?”, perguntou José Cajú. “Agora estou vendo, pai”, res-pondeu Sandoval. Pela primeira vez, a família dele estava presente em um comício em Maceió. Tios, primos e amigos da Paraíba vieram conferir o sucesso do candidato.

Sandoval estava inspirado. Vinha de um comício em Bebedouro, onde falou para uma multidão. Fez um grande discurso e consolidou sua vi-

tória na Praça Deodoro. Foi durante sua fala que aconteceu um dos mais emblemáticos episódios da história do folclore político brasileiro. O pró-prio Sandoval reproduziu sua fala durante entrevista para a extinta re-vista Última Palavra, em sua edição de 8 de abril de 1988.

“Maceioenses, viemos de Bebe-douro. A massa que se comprimia na Praça Lucena Maranhão era in-contável e fez várias manifestações de apoio e solidariedade a este can-didato. Não resta mais dúvida de que seremos vitoriosos, mas falta o teste final. Estamos vivendo um regime democrático e à nossa fren-te se encontra a figura do fundador da República, marechal Deodoro da Fonseca...” Invocando a “participa-ção” do Marechal Deodoro, Sandoval

deixou a multidão atônita e curio-sa ao indagar: “Deodoro, estás ou não ao nosso lado nessa cam-panha democrática?” Decorridos longos segundos, Cajú desfechou: “Quem cala consente! Agora, só perderemos essa eleição se o cupim roer as urnas!”. O público explodiu numa ruidosa gargalha-da seguida de estrondosa salva de palmas.

Na segunda-feira, dia 3 de ou-tubro de 1960, os alagoanos foram às urnas. Além dos cargos de pre-feito, também seriam escolhidos governadores e o presidente da República. O pleito ocorreu sem maiores incidentes. À noite, as ur-nas foram recolhidas para o Clube Fênix Alagoana, onde seriam aber-tas na manhã do dia seguinte.

O PLEItO E A VItÓRIA ESMAGADORA NAS URNAS

26 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano RamosR

EP

OR

tA

GE

M

Page 27: Graciliano Nº 8

Sob os olhares de candidatos e fiscais dos partidos, o juiz eleitoral abriu a primeira urna, na qual San-doval possuía considerável vantagem sobre seus três opositores. A segun-da urna mostrou resultado parecido. Seria assim até o final da apuração. Sandoval Cajú venceria em todas as 222 urnas da capital, elegendo--se prefeito de Maceió. Na mesma eleição, o major Luiz Cavalcante conquistou o governo de Alagoas e o Brasil elegeu Jânio Quadros para a presidência.

A legislação estabelecia à época a posse dos eleitos para o dia 31 de janeiro de 1961. A Assembleia Legis-lativa havia marcado a posse do go-vernador Luiz Cavalcante para as 16 horas daquele dia. A Câmara de Ve-

readores fez o mesmo para proceder a diplomação de Sandoval Cajú. Para não haver choque entre as duas so-lenidades, Sandoval decidiu adiar em 24 horas sua posse.

Então, na tarde de quinta-feira, 01 de fevereiro de 1961, Sandoval Cajú assumiu a Prefeitura de Maceió, em solenidade na Câmara Municipal, situada na Praça Deodoro. A edição do Jornal de Alagoas, do dia 2 janei-ro, traz matéria sobre a posse. San-doval Cajú chegou ao local em um carro aberto, por volta das 16h30, e foi recebido com flores. Estava acom-panhado da esposa, Waldete Loyola, e do vice-prefeito eleito Vinícius Can-sanção. O pai de Sandoval, José Cajú, que havia sido prefeito de Bonito de Santa Fé, na Paraíba, terra natal do

locutor, além de irmãos também pres-tigiaram a solenidade. Uma multidão tomava conta da praça desde o início da tarde.

Em seu discurso de posse, Sandoval Cajú prometeu fazer obras de calça-mento nas ruas e saneamento nos bair-ros para “retirar Maceió da lama em que se afoga nos invernos”, acabar com os mosquitos, cuidar da saúde do muni-cípio voltando as atenções para o Hos-pital Pronto-Socorro, distribuir água e luz para os bairros mais pobres, além de higienizar, arborizar e pavimentar a cidade – que Cajú chamou de metró-pole. Encerrando o discurso, o prefeito Sandoval Cajú convocou os vereadores para fiscalizar o governo e “garantir a sinceridade das suas intenções” con-forme matéria do Jornal de Alagoas.

27 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Page 28: Graciliano Nº 8

A administração

Quando assumiu a Prefeitura de Maceió, no dia 2 de fevereiro de 1961, Sandoval Cajú tomou um sus-to. Ao tomar pé da grave situação fi-nanceira em que estava afundado o município, pensou até em renunciar. Em entrevista ao repórter José Otá-

vio da Rocha, do Última Palavra, em 1988, Sandoval contou que a receita da Prefeitura de Maceió era de 9 mi-lhões de cruzeiros à época e que a folha de 1.259 funcionários do execu-tivo municipal consumia nada menos que 13 milhões.

A dívida com o comércio e a in-dústria era de 47 milhões de cruzei-ros. O Hospital de Pronto Socorro, de

responsabilidade do município, de-via quase 20 milhões de cruzeiros a fornecedores, além de não dispor de medicamentos e nem de alimentos para os pacientes e acompanhantes. A cidade estava suja e abandonada. “Não havia um só banco nas praças.

Tudo destruído pela incúria das ad-ministrações anteriores”, disse o ex--prefeito ao Última Palavra.

A Prefeitura de Maceió não tinha dinheiro, mas Sandoval Cajú desco-briu que dispunha de mão de obra farta. Em seu primeiro dia de gover-no, olhou da janela do gabinete e con-tou no pátio pouco mais de 400 tra-balhadores da Prefeitura de Maceió,

todos de braços cruzados. Teve uma ideia. Chamou um assessor e man-dou procurar as casas de ferragens, no Centro de Maceió. Era preciso re-tomar o crédito e reconquistar a con-fiança dos comerciantes.

Menos de uma hora depois, o as-sessor retornou e trouxe a boa notícia. Os comerciantes estavam dispostos a ajudar o novo prefeito. “Esse prefeito que está aí pode limpar a minha pra-teleira”, teria dito o dono de uma co-nhecida loja de ferramentas da época. Além dele, outros donos de loja teriam se colocado “à disposição” de San-doval Cajú, disponibilizando crédito para o município.

“Aí peguei um bloco e escrevi: 150 carros de mão, 300 picaretas, 300 pás, 300 enxadas, uma dúzia de machados, foices e vários outros equipamentos. Isso era umas 9h/10h do dia. Quan-do foi às três da tarde, um caminhão alugado numa praça antiga entra na Rua do Imperador, onde ficava a Pre-feitura, com aquela carga enorme, não muito bem amarrada, e balançando muito”, lembrou Sandoval Cajú em en-trevista a Edécio Lopes.

Não havia um só banco nas praças, tudo destruído pela incúria das administrações anterioresSandoval Cajú

28 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

de Sandoval Cajú

RE

PO

Rt

AG

EM

Page 29: Graciliano Nº 8

Sandoval Cajú recebendo flores de eleitores durante solenidade de inauguração de obra

29 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Page 30: Graciliano Nº 8

30 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano RamosR

EP

OR

tA

GE

M

Page 31: Graciliano Nº 8

No dia seguinte, o prefeito eleito alugou mais três caminhões, colo-cou os trabalhadores em cima e par-tiu para dar início à revolução que faria na capital alagoana. Chegava de surpresa nos lugares com seu exército de trabalhadores. Promo-via a limpeza do local e investia nos serviços básicos de infraestrutura.

Ele mesmo comandava a tro-pa de trabalhadores antes ociosa. Orientava e dava ordens. Sempre muito simpático, educadíssimo, se-gundo depoimento de amigos, con-versava com as donas de casa e os chefes de família. Ouvia deles as reivindicações e elencava as ações mais urgentes. Fazia questão de cumprir as promessas feitas duran-te campanha. Demonstrava atenção especial aos bairros mais humildes. Sua vitória nas urnas foi garantida pela expressiva votação conquis-tada em locais como Ponta Grossa, Vergel, Pontal da Barra e Fernão Ve-lho. Sandoval Cajú procurou retri-buir a grande votação com trabalho.

Os moradores do distante luga-rejo conhecido à época como Car-rapato tomaram um susto quando o

prefeito Sandoval Cajú e seu exército de trabalhadores chegaram de sur-presa ao local, no início da manhã. Localizado entre o distrito de Fernão Velho e o município de Satuba, a pe-quena comunidade surgida às mar-gens do rio Carrapatinho sofria com o descaso do poder público. Não pos-suía creche, escola primária e posto de saúde.

Foram dois meses de trabalho intenso. Ao final do mutirão foi cons-truído um grupo escolar, um posto médico, além de uma praça. Sando-val Cajú também pavimentou ruas, instalou postes de iluminação elé-trica e construiu uma ponte de con-creto sobre o rio Carrapatinho, o que garantiu o acesso de veículos ao po-voado. Após a conclusão das obras, Cajú rebatizou o local, que passou a se chamar Rio Novo.

Sandoval tinha preocupação es-pecial com o espaço físico e com o visual da cidade. Durante a campa-nha, prometera devolver o sorriso à capital alagoana. Para ele, os espaços públicos eram fundamentais para a convivência das pessoas, principal-mente crianças e idosos. Maceió era Sandoval Cajú (ao centro) e o jovem

Divaldo Suruagy (à direita) durante inauguração de uma praça em Maceió

31 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Page 32: Graciliano Nº 8

das e abandonadas. Para além do “S” do Sandoval, a marca registrada de suas obras, as novas praças públicas significaram verdadeira revolução estética e arquitetônica na cidade.

Por trás desta verdadeira propos-ta de modernização arquitetônica e paisagística de Maceió estavam os

arquitetos Lauro Menezes e José da Costa Passos Filho. Ambos faziam parte da equipe da antiga Superin-tendência Municipal de Obras e Via-ção (Sumov). Menezes e Passos eram os responsáveis não só por desenhar e projetar as novas praças, como im-primir o novo estilo aos espaços pú-blicos que seriam reformados pelo prefeito Sandoval Cajú.

Em seu trabalho Permanências

Modernistas na Praça Sinimbú – Ma-ceió, a arquiteta e urbanista Josema-ry Ferrare cita a Praça Sinimbú, uma das que foram reformadas, como símbolo da modernização dos espa-ços públicos a partir de 1961. Segun-do ela, detalhes como “uma ousada disposição de passeios e canteiros sinuosos”, bancos circulares com e sem encosto, fabricados em marmo-rite, mesmo material usado na fabri-cação dos brinquedos fixos e painéis de azulejos compunham o novo visu-al das praças .

A letra “S” de sorriso e não de Sandoval, como ele fazia questão de explicar - embora políticos de opo-sição e até correligionários de Cajú afirmassem que o “S” se tratava de autopromoção do prefeito -, adornava os brinquedos e também estava in-crustado no marmorite dos encostos dos bancos ou destacado em relevo nos canteiros de alvenaria. A estátua do menino mijão, o Mijãozinho, que “fazia xixi” no lago da fonte construí-da na praça, era atração. Todos para-vam para admirar a escultura.

A revolução estética chegaria também a outras praças que se en-

AS PRAÇAS E A POLÊMICA DO “S”

Em três anos de mandato, construiu 36 praças na capital, além de fazer a reforma de outras 22 que já existiam

conhecida como a Cidade Sorriso, mas estava, de fato, abandonada.

Em depoimento dado durante en-trevista Sandoval Cajú, o radialista Edécio Lopes retrata a situação de Maceió, no final dos anos 1950, quan-do ele chegou à capital para traba-lhar na Rádio Progresso. “Eu achei

Maceió uma cidade horrível, uma cidade suja e feia. Era uma cidade triste, um paradoxo com a alegria do povo. Sou testemunha ocular dessa história”, diz Edécio.

Aos poucos, Sandoval Cajú foi transformando essa realidade. Em três anos de mandato, construiu nada menos que 36 praças na capital, além de fazer a reforma de outras 22 que já existiam, mas estavam depreda-

32 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano RamosR

EP

OR

tA

GE

M

Page 33: Graciliano Nº 8

Praça Sinimbú, no Centro de Maceió, foi reformada durante a gestão de Cajú: local é um dos símbolos da modernização dos espaços públicos dos anos 1960. O “S” adornava os brinquedos e estava presente ainda nos bancos e canteiros do local

33 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Ricardo Lêdo

Page 34: Graciliano Nº 8

contravam abandonadas e que logo se transformariam em concorridos pontos de encontro da sociedade maceioense.

Localizada no bairro do Farol, re-gião onde se concentravam as resi-dências das principais famílias ricas da capital, no início dos anos 1960, a Praça do Centenário era um matagal que servia de esconderijo de gatunos e ladrões de galinha que atacavam os sítios da região.

O local recebeu o nome de Parque do Centenário em 1939, quando Ma-ceió completava 100 anos na condi-ção de capital de Alagoas. Antes dis-so, já havia sido chamada também de Praça Getúlio Vargas e Praça General Góis Monteiro, com direito a imensa

estátua deste último no centro da praça.

No segundo ano de sua adminis-tração Sandoval Cajú promoveu a reforma da Praça do Centenário. Re-paginada totalmente, o antigo espaço abandonado e depredado ganhou 13 jardins, passeios de mosaico, ilumi-nação moderna embutida, oito jarros luminosos, 300 metros de bancos de marmorite, além de quatro poltronas do mesmo material, arborização, cin-co estátuas metálicas e playground com escorregadeiras, balanços, gan-gorras e outros brinquedos.

Além do equipamento citado aci-ma, no novo espaço público foi ins-talada uma fonte sonoro luminosa batizada com o nome de Jayme de Al-

tavila. No convite de inauguração, a Prefeitura de Maceió afirmava tratar--se da mais potente fonte do País. No centro do espelho d’água, a equipe de desenhistas da antiga Sumov ergueu um monumento de concreto armado, revestido de azulejos coloridos, re-presentando o mapa de Alagoas.

Em uma extremidade do mapa, uma estátua de um índio caeté. Na outra, a de um índio tabajara, ambos representando Alagoas e Paraíba, terra natal do prefeito. Tudo estava dentro de uma área de 15.242 metros quadrados. Era o maior logradouro público do Nordeste à época.

A inauguração aconteceu no dia 7 de setembro de 1963, data do 141º ani-versário da Independência do Brasil.

Praça Santa Tereza, em Ponta Grossa, construída durante a gestão de Cajú

34 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano RamosR

EP

OR

tA

GE

M

Mic

hel R

ios

Page 35: Graciliano Nº 8

Um público de mais de 12 mil pesso-as prestigiou o evento, que aconteceu à noite. Sandoval Cajú estava no auge de sua popularidade. Durante todo o dia, a bordo do seu Simca Chambord, veículo oficial, ele e sua comitiva vi-sitaram obras e estiveram em outras praças recém-inauguradas.

Antes da inauguração, Sandoval foi pessoalmente às praças Guedes de Miranda, Moleque Namorador, Santa Tereza e Onze Nacional. Visi-tou as ruas Paissandu, Marquês de Pombal e a Avenida Santo Antônio, todas no bairro de Ponta Grossa.

Às 16h, na Praça do Centenário, a banda de música do professor Fran-cisco Pedrosa começou a tocar para animar o público que já começava

a chegar. Naquela noite, o orador oficial da festa foi o jornalista, poe-ta e ex-prefeito de Maceió, Cipriano Jucá. Sandoval Cajú só chegaria ao local às 20h. Entusiasmado, diante da fonte luminosa e do mapa ladeado pelos representantes das duas etnias nordestinas, ao final do discurso, de-clamou: “É Tabajara é Caeté/Caeté é Tabajara/São crentes da mesma fé/Ninguém jamais os separa/Esse povo é caeté/E o prefeito é tabajara”. Aplausos da multidão.

O prefeito locutor tinha um ca-rinho especial pelo bairro de Ponta Grossa, seu principal reduto eleito-ral, beneficiado por 12 das 36 praças construídas em pouco mais de três anos de sua gestão. Uma das mais fa-

mosas e emblemáticas é a Praça Mo-leque Namorador, no bairro de Ponta Grossa. Foi o próprio Sandoval quem batizou a nova praça com o apelido do jornaleiro famoso nas décadas de 1930 e 1940, cujo nome de batis-mo era Armando Veríssimo Ribeiro. Exímio passista, vencia fácil os con-cursos de frevo durante o carnaval. A Praça Moleque Namorador se trans-formaria no principal quartel general do frevo na capital alagoana. Enquan-to a elite maceioense se divertia em clubes como a Fênix, o povão pulava ao som de bandas de frevo do Recife.

Alternando benfeitorias entre bairros da periferia e das chamadas áreas nobres, Sandoval Cajú logo conquistaria a simpatia das classes

Praça do Centenário, no bairro do Farol, reformada no segundo ano da administração de Cajú: maior espaço público do nordeste à época, ganhou 13 jardins, passeios de mosaico, iluminação embutida, 8 jarros luminosos, bancos de marmorite e playground

35 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano RamosMic

hel R

ios

Page 36: Graciliano Nº 8

mais abastadas de Maceió. Além da Praça do Centenário, a Prefeitura de Maceió também promoveu a reforma do Parque Gonçalves Lêdo, localiza-do numa das mais belas regiões da parte alta da cidade.

À sombra de seus eucaliptos cen-tenários, corriam e brincavam jovens que se destacariam futuramente na cidade, a exemplo de Guilherme Pal-meira, Humberto Gomes de Barros, Cláudio Fernando Oiticica Lima e Carlos Mendonça.

Recém formado em Medicina no início dos anos 1960, o jovem pe-diatra Milton Hênio assistia àquela revolução nos espaços públicos da cidade. O avô dele, professor Luiz Carlos de Souza Neto, foi o primeiro habitante do entorno do Parque Gon-

çalves Lêdo, onde havia apenas uma vacaria e um caminho estreito que levava até a Catedral de Maceió.

“O parque era uma coisa linda, mas estava abandonado. Aí o San-doval disse: ‘Eu vou reformar’, e fez aqui um trabalho maravilhoso”, lem-bra o médico Milton Hênio. Para ele, o prefeito Sandoval Cajú sabia da im-portância dos espaços públicos para a população.

“O Sandoval Cajú tinha consci-ência de que a praça era do povo e que as pessoas se encontravam nas praças. Era nas praças que, ao en-tardecer, os idosos se encontravam, com seu chapéu na cabeça, com seu netinho, seu cachorrinho. Ele sabia que era o ponto de encontro das fa-mílias”, diz Milton Hênio.

Segundo ele, Sandoval trabalhava para contribuir para a felicidade da sociedade maceioense, independen-te de classe social. “Através das pra-ças, o prefeito Sandoval Cajú propor-cionou o bem estar das pessoas. Ele fazia isso sem o conhecimento cien-tífico, mas hoje está provado, cienti-ficamente, que nosso organismo só trabalha se estivermos felizes”, diz Milton Hênio.

Ao todo, foram 36 novas praças construídas e 22 recuperadas e re-formadas, num trabalho que mudou completamente o visual da cidade. Ao retornar de uma temporada no Recife, o radialista Edécio Lopes fi-cou surpreso com o novo aspecto da cidade.

Ainda durante a entrevista, com

Na praça Moleque Namorador, no bairro da Ponta Grossa, a escultura sobre o “S“ faz referência ao passista que brilhava nos antigos carnavais de Maceió

RE

PO

Rt

AG

EM

Mic

hel R

ios

Page 37: Graciliano Nº 8

Sandoval, ele afirma: “Quando vol-tei do Recife, encontrei uma Maceió diferente. Praças cheias de azulejos coloridos, bancos em todas as pra-ças. Eu via ali na Pajuçara, na pra-ça do Rex, senhoras com regadores, mangueiras, cuidando das praças. Eu notei que havia um novo espíri-to dentro da cidade de Maceió, uma participação. A cidade estava bonita. O Sandoval fez um belo trabalho em termos de urbanização, em termos de melhoria paisagística da cidade de Maceió”, disse Edécio.

Além do trabalho de urbanização, a administração de Cajú equipou o Hospital de Pronto Socorro com am-bulâncias, equipamentos cirúrgicos e medicamentos. Adquiriu duas frotas de caminhões, além de ferramentas

para obras de construção e reformas de prédios públicos nos bairros e dis-tritos de Maceió.

Sandoval Cajú ainda construiu uma maternidade no bairro do Jacin-tinho, além da nova sede da Prefeitu-ra, na Rua Pedro Monteiro. Durante sua gestão, de acordo com informa-ções veiculadas na imprensa à época, não ocorreu nenhum aumento de im-postos ou taxas municipais. Saldou todas as dívidas contraídas e os dé-bitos herdados de gestões anteriores.

Com um índice de aprovação dos mais altos já atingidos por um pre-feito da capital, a figura de Sandoval Cajú ganhou projeção no interior de Alagoas. Prefeitos de cidades impor-tantes faziam questão de ir visitá--lo na Prefeitura quando viajavam a

Abandonado no final dos anos 1950, o Parque Gonçalves Lêdo, no bairro do Farol, foi reformado e reinaugurado por Sandoval Cajú

Maceió. Sua candidatura ao governo do estado, nas eleições de 1965, era dada como certa. Muitos já apostavam na sua vitória.

Eleito para um período de cinco anos à frente da Prefeitura, Sandoval Cajú ja-mais imaginou que não cumpriria todo o seu mandato. Durante o terceiro ano de sua gestão foi “abatido em pleno voo” pelo Golpe Militar de 1964, que tinha como representante principal em Alago-as o governador major Luis Cavalcante, principal adversário político de Sando-val e responsável por articular o suces-so do golpe em terras caetés. Embora jamais tenha sido chamado a prestar qualquer depoimento ou tenha tomado conhecimento de qualquer documento oficial, Cajú teve o mandato cassado e os direitos políticos suspensos.

37 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano RamosMic

hel R

ios

Page 38: Graciliano Nº 8

Cassação e quedaO Golpe Militar de 1964

Em frente à sede da Prefeitura de Maceió, na Rua Pedro Monteiro, o de-legado Albérico Barros, o Barrinhos, comanda uma escolta de 12 policiais armados de metralhadoras e aguarda impaciente a saída de Sandoval Cajú. Os relógios marcavam 15h daquele

dia 28 de abril de 1964. A manhã ha-via sido tensa. Às escondidas, numa sessão secreta, vereadores votaram o afastamento do prefeito de Ma-ceió. Era o último ato de uma trama posta em prática tão logo os milita-res tomaram o poder, no dia 1º de abril de 1964.

Teria sido orquestrada pelo go-vernador de Alagoas, major Luis

Cavalcante. No xadrez político da sucessão para o governo de Alagoas, Sandoval Cajú era a “pedra no sapa-to” de Luis Cavalcante. Inconforma-do, o “Major” assistia do Palácio dos Martírios a ascensão do prefeito e o crescimento da candidatura de San-

doval. Uma séria ameaça a suas pre-tensões políticas. De olho no pleito, o major Luis Cavalcante não admitiria outro sucessor que não fosse o nome saído do bolso de seu paletó.

Sandoval Cajú não assumia a can-didatura ao governo, mas, em seu terceiro ano de mandato, já estava em plena campanha para 1965. Prova disso é um “santinho” em formato de

flâmula, uma relíquia do acervo pes-soal do presidente da Academia Ma-ceioense de Letras e amigo pessoal de Sandoval, Jucá Santos. No alto do panfleto, o desenho de um cajú ver-melho com talos e folhas pretas. No lugar da castanha, o “S” de “Sorriso”. Abaixo está escrito: “O Povo também tem vez – Esta é a vez do povo – Para o governo Sandoval Cajú – 1965”. Ao entregar o “santinho” a Jucá Santos, no início de 1963, Sandoval pediu si-gilo ao amigo.

“Nós já estávamos em campanha naquele momento”, revela o secre-tário de gabinete de Sandoval Cajú à época, Pedro Onofre. “Lembro que a Superintendência Municipal de Obras e Viação (Sumov) estava disponibilizando postes de ilumina-ção para prefeituras do interior de Alagoas. Já era Sandoval se articu-lando com os prefeitos”, diz Onofre. De acordo com ele, Sandoval Cajú havia criado um espaço dentro da prefeitura apenas para receber os prefeitos e políticos do interior que

Às escondidas, numa sessão secreta, vereadores votaram o afastamento do prefeito

38 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano RamosR

EP

OR

tA

GE

M

Page 39: Graciliano Nº 8

Sandoval Cajú (à direita) e o governador Luís Cavalcante, durante solenidade: o ex-prefeito atribuía a Cavalcante a autoria do processo que cassou seu mandato

39 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Page 40: Graciliano Nº 8

o procuravam na capital. “Quando os prefeitos chegavam do interior nem procuravam o governador. Passavam direto e se dirigiam à Prefeitura para procurar o Sandoval. O governador Luís Cavalcante ficava uma fera com isso”, lembra Pedro Onofre.

A gota d’água para o governador teria sido a distribuição, na capital e no interior, de uma cartilha para al-fabetização de jovens e adultos, cha-mada Força Total. Na contracapa da cartilha, Sandoval mandou imprimir o nome dele.

Na autoridade de Comandante do Golpe Militar em Alagoas, o major Luis Cavalcante teria aproveitado o momento para se livrar do desafeto. Como não poderia enquadrar Sando-val Cajú por subversão, pois Sando-val não tinha relação com a esquer-da em Alagoas, o governador teria iniciado uma verdadeira campanha para “provar” que o prefeito de Ma-ceió era corrupto e havia enriquecido às custas do dinheiro público.

Nos primeiros 28 dias do Golpe Militar, a vida de Sandoval Cajú foi “vasculhada” por homens da Polícia Civil alagoana. O próprio delega-

do Albérico Barros, o temido Barri-nhos, sob ordens de Luis Cavalcante, chegou a viajar para a Paraíba para investigar familiares de Sando-val Cajú. Visitou várias cidades em busca de bens que estivessem em nome do prefeito de Maceió ou de parentes dele.

As salas onde funcionava o escri-tório de advocacia de Sandoval Cajú, no Edifício Brêda, foram arrombadas por policiais. Na busca por objetos de valor que indicassem o enriqueci-mento ilícito do prefeito, eles “confis-caram” um tapete, sob a alegação de que o objeto seria um tapete persa e teria custado uma fortuna.

A origem do dinheiro usado para a compra das duas pequenas salas também foi alvo de investigação. Nada foi encontrado que comprovas-se qualquer improbidade cometida por Sandoval Cajú. Mesmo assim, coagidos pelo governador Luis Ca-valcante, sob ameaças de também serem cassados, os vereadores vota-ram pelo afastamento.

Naquela tarde, Sandoval Cajú dei-xaria a sede da prefeitura por volta das 16h. Sairia tranquilamente e não

seria abordado por policiais. Instan-tes depois, o delegado Barrinhos in-vadiu a Prefeitura e foi direto à tesou-raria, onde vasculhou documentos à cata de irregularidades. Em vão, pois as acusações de que havia sido alvo nunca foram comprovadas.

Foi o comandante do Exército em Alagoas à época, coronel Carlindo Simão, que orientou Sandoval Cajú a buscar um advogado e entrar na Jus-tiça para reaver o cargo de prefeito. Mas todos os advogados de Maceió procurados por ele se recusaram a pegar a causa temendo represálias, segundo ele mesmo conta em seu livro de memórias. Formado em Di-reito há 20 e ainda não inscrito na Or-dem dos Advogados do Brasil (OAB), Cajú não podia fazer a sua própria defesa e foi obrigado a desistir.

O golpe de misericórdia estaria por vir. Para acabar com qualquer pretensão de Sandoval Cajú retomar o cargo, o major Luís Cavalcante en-viou dois de seus secretários com a missão de convencer os militares a incluir na lista de cassados o nome do prefeito “corrupto” de Maceió.

E assim foi feito. Às 23h45 do dia

40 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano RamosR

EP

OR

tA

GE

M

Page 41: Graciliano Nº 8

15 de julho de 1964, nos 15 minutos finais de vigência do primeiro Ato Institucional dos militares, o nome do prefeito Sandoval Cajú foi incluí-do na lista de cassados pelo AI-1. Foi o último nome da segunda e última lista dos punidos pelo AI-1. Além de perder o cargo de prefeito, Sandoval teve os direitos políticos suspensos por dez anos. Nem teve tempo de inaugurar obras que estavam qua-se concluídas, como a nova sede da prefeitura e os trabalhos de infra-estrutura, além do posto de saúde em Rio Novo, antigo Carrapato. Em seu lugar, assumiu o vice-prefeito Vinícius Cansanção.

Na era das cassações, iniciada tão logo o presidente João Goulart foi deposto, os militares estavam dis-postos a varrer do cenário político o populismo subversivo. Para eles, era necessário fazer uma limpeza em to-dos os setores sociais importantes. As punições viriam em forma de cas-sações, suspensões de direitos políti-cos e investigações por meio de IPMs (Inquéritos Policiais Militares) e CGIs (Comissões Gerais de Inquéritos).

A lista dos cassados pelo AI -1, na “Santinho” produzido por Sandoval Cajú em 1963: ex-prefeito planejava eleger-se governador e preparava a campanha

Page 42: Graciliano Nº 8

qual destoava o nome de Sandoval Cajú, era encabeçada pelos esquer-distas Leonel Brizola, Luís Carlos Prestes, Miguel Arraes, Francisco Julião, além dos ícones do antigo po-pulismo, Jânio Quadros e Juscelino Kubitschek. Incluía também lideran-ças de setores nacionalistas, como o governador de Sergipe, Seixas Dória e o ministro Abelardo Jurema.

Assim como nas principais cida-des brasileiras e nas capitais, em Maceió os militares promoveram prisões, cassações, empastelamen-to dos jornais do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Segundo o historia-

dor alagoano Geraldo de Majella, o jornal semanário A Voz do Povo, de propriedade do PCB, foi destruído pelos delegados Rubens Quintela e Albérico Barros, o Barrinhos, obede-cendo a ordens do governador Luis Cavalcante e do comando civil-mili-tar golpista, do qual o governador era o comandante.

“Funcionários públicos foram demitidos sumariamente, sindica-listas foram presos, demitidos dos empregos e processados. Entidades sindicais, como sindicatos, federa-ções e confederações sofreram com intervenções do Ministério do Tra-

balho. A Fetag (Federação dos Tra-balhadores na Agricultura do Estado de Alagoas), que havia sido criada poucos meses antes do golpe, teve a sua diretoria cassada e se viu com interventores postos pelos militares em comum acordo com o patronato”, conta Majella.

Ainda de acordo com ele, a CGT (Comando Geral dos Trabalhadores) foi posta na ilegalidade e seus diri-gentes foram presos e processados. Roland Bittar Benamor, Alan Bran-dão, Rubens Colaço, Mário Correia da Silva, Nilson Miranda e outros passaram por humilhações. “Inte-

Sandoval Cajú (à direita) e o sogro, José de Oliveira Loyola, que costumava acompanhar o genro em quase todas as solenidades de inauguração de obras

RE

PO

Rt

AG

EM

Page 43: Graciliano Nº 8

lectuais como Dirceu Lindoso, José Moura Rocha, Jayme Miranda, Luiz Nogueira Barros, Rubem Figueiredo Ângelo, ou empresários rurais como Ernani Maia Lopes, Antonio Moreira, e ainda comerciantes como Mozart Damasceno foram presos ou deti-dos”, diz o historiador.

Logo após a publicação oficial da lista de cassados pelos militares, aconselhado pelo coronel Carlindo Simão, que temia pela integridade física do prefeito afastado, Sandoval Cajú teria viajado para o Rio de Ja-neiro para um breve exílio. Há quem diga também que Cajú não teria saído de Maceió.

Nesse período, enviou algumas correspondências ao amigo Jucá Santos. Numa delas, uma carta dati-lografada, datada do dia 22 de setem-

foi derrotado. Naquele ano, Dival-do Suruagy foi eleito governador de Alagoas.

Três anos depois, em 1985, San-doval Cajú concorreu novamente, desta vez à Prefeitura de Maceió. Mas os tempos eram outros e ele voltou a amargar nova derrota. Se-ria a última aparição de Sandoval Cajú em campanhas políticas.

Esquecido, Sandoval viveu os últimos anos de sua vida no ostra-cismo. Carregava mágoa profunda e nunca conseguiu digerir a injus-tiça de que foi vítima. Tabagista crônico durante praticamente toda vida, morreu no dia 23 de maio de 1994, aos 70 anos, vítima de um câncer no pulmão. Seu corpo foi enterrado no cemitério Parque das Flores, no Tabuleiro, em Maceió.

bro de 1964, Sandoval não esconde a mágoa: “...Como estaria o amigo atravessando a estrada da vida no momento, diante dessa revolução mi-chada (sic) que veio para o desconto dos pecados de muitos inocentes... e favorecer os inconfessáveis anseios de meia dúzia de cafajestes? (...) Quando as lufadas violentas do ven-daval da política sórdida da Província passarem, estaremos novamente a falar de poesia, como nos idos tem-pos...”, escreveu Cajú.

Sandoval Cajú só voltaria a dis-putar uma eleição em 1982, quase 20 anos depois da suspensão dos direitos políticos. Foi a primeira elei-ção direta para governador depois de 1965. Lançou seu nome para de-putado federal. Apesar da expres-siva votação, mais de 20 mil votos,

Encontro entre o embaixador americano à época (à esq.) e o prefeito Sandoval Cajú (ao centro). A visita, ocorrida em Maceió, pouco antes do Golpe Militar de 1964, teve a presença também do coronel Bendochi Pereira (à dir.), amigo de Sandoval

43 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Page 44: Graciliano Nº 8

Cajú, O “versejador patológico”

Na porta do Café Ponto Central, na Rua do Comércio, ponto de en-contro histórico de intelectuais, políticos e desocupados da classe média maceioense, Sandoval Cajú cutucou Jucá Santos e apontou para uma senhora que passava: “Ela é co-

munista, Jucá! É comunista!”, dizia, com expressão grave. “Que história é essa Sandoval? Você nem conhece a mulher...”, retrucou Jucá. “Veja, Jucá, tenho certeza que ela é comunista. É tão feia que parece ter sido feita à foice e martelo”. Jucá explodiu numa gargalhada. Só parou de rir quando os dois entraram, pediram um café

e retomaram o papo que havia co-meçado na madrugada anterior, na Praça Deodoro.

Jucá Santos não lembra o assunto específico de que trataram naquele dia, mas o tema com certeza era e literatura, pela qual os dois nutriam

verdadeira paixão. Compositor inspi-rado, um dos pioneiros do rádio ala-goano, Jucá Santos já era admirador do talento radiofônico de Cajú. Mas foi no gosto pelos versos e no prazer que sentiam em construir sonetos que se fundou a amizade dos dois.

Nas madrugadas da Praça Deodo-ro, Cajú e Jucá declamavam Augusto

dos Anjos, um dos poetas preferidos de Sandoval, que sabia de cor vários poemas do autor de Eu. Discutiam até altas horas na busca da palavra que daria métrica e rima perfeita ao poema feito a quatro mãos.

A relação de amizade entre Jucá Santos e Sandoval Cajú revela um lado quase desconhecido do parai-bano: o Cajú literato, devorador dos clássicos, leitor de Shakespeare, Eu-clídes da Cunha e outros autores. To-mou gosto pelos livros durante suas incursões autodidatas no mundo da literatura, depois que concluiu o pri-mário e parou de estudar por pura falta de um curso ginasial em Bonito de Santa Fé.

Sandoval Cajú era capaz de citar trechos longos de obrase e gostava de demonstrar em público seus co-nhecimentos literários. Em entre-vista ao radialista Edécio Lopes, em 1985, exagerou ao citar o nome, a profissão e a data de nascimento do pai de Shakespeare.

“Antes de vir para Alagoas, o San-

A relação de amizade entre Jucá Santos e Sandoval Cajú revela um lado quase desconhecido do paraibano: o Cajú literato

44 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano RamosR

EP

OR

tA

GE

M

Page 45: Graciliano Nº 8

Jucá Santos

Antes de vir para Alagoas, o Sandoval Cajú já mantinha contato com poetas paraibanos. Um deles era o Eurícledes Formiga

Escritor

45 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Mic

hel R

ios

Page 46: Graciliano Nº 8

doval Cajú já mantinha contato com poetas paraibanos. Um deles era o Eurícledes Formiga”, lembra o escri-tor Jucá Santos, 77 anos.

Nascido em São João do Rio do Peixe, no interior da Paraíba, Formiga trabalhou em jornais de João Pessoa e chegou a ser redator da Folha de S. Paulo. Era conhecido pela facilidade de improvisar, por isso é apontado também como poeta repentista. An-dou em Maceió na década de 1950. Lançou vários livros de poesia. No fim dos anos 1960, Formiga conheceu o médium Chico Xavier, de quem se tornou amigo. Converteu-se ao espi-ritismo e psicografou vários livros.

Outra referência literária de San-doval Cajú é o poeta alagoano Geral-dino Brasil, de quem se aproximou poucos meses depois de chegar a Maceió. Os dois se conheceram na Praça Deodoro. Brasil acabara de fi-xar residência na capital. Viera com a família de Atalaia, onde nascera e

“Carminha seguiu no trem/das duas horas da tarde:/Meu coração foi tam-bém/chorando como um covarde”. Envaideceu-se com o que achou uma obra- prima e teve a certeza de que era um exímio trovador.

No encontro com Geraldino Bra-

fora batizado com o nome de Geraldo Lopes Ferreira.

Aos 12 anos, Sandoval lia Olavo Bilac. Aos 17, compôs a primeira qua-drinha, depois que a namoradinha matuta, após férias escolares, partiu no trem de volta para a casa dos pais:

Capas dos livros Poesia Despida e Guanabara, de Sandoval Cajú

46 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano RamosR

EP

OR

tA

GE

M

Page 47: Graciliano Nº 8

sil, Sandoval esperou o momento certo para apresentar, orgulhoso, os quatro versos. Encheu o peito de ar e mandou: “Carminha seguiu no trem...”.

Rapaz de fino trato, Geraldino manteve-se como estava. Não disse uma só palavra, não esboçou qual-quer reação, nem positiva, nem ne-gativa. Na hora, Cajú não ligou para a reação de Brasil. Mas depois que conheceu a produção de poemas do poeta de Atalaia, Sandoval se preocu-pou. Geraldino era, de fato, um gran-de poeta. Aquele silêncio certamente era de reprovação.

Mesmo assim, Sandoval Cajú lançou três livros de poesia, Poesia Despida, Sonhos e Pesadelos e Gua-nabara. Mas depois de alguns anos, humildemente, reconheceu que “ja-mais haveria de suplantar um reles versejador patológico”.

O amor pela poesia e a militân-cia literária de Sandoval Cajú em

Maceió não garantiram a fama que o paraibano gostaria de alcançar nessa seara, mas fez com que seu nome fi-casse marcado na história das letras em Alagoas.

Três anos depois de conhecer Jucá Santos, ao lado deste e de ou-tros intelectuais, foi responsável pela fundação da Academia Maceioense de Letras, em agosto de 1955, presi-dida até hoje por Jucá Santos.

Jucá Santos e Sandoval Cajú fa-ziam parte do Centro Cultural Emí-dio de Maia, fundado em 1939. “Era uma espécie de academia de poetas e escritores”, explica Jucá. Segundo ele, Emídio de Maia era um jovem de-putado federal, filho de usineiro, que morreu muito jovem. “Então, para homenageá-lo, o Oséas Cardoso, que era poeta e na época ainda não era deputado, batizou o centro cultural com o nome dele. Eu entrei em 1950. E levei o Sandoval para lá em 1952”, lembra Jucá Santos.

Alguns anos antes, o professor, poeta e arqueólogo Valdick Pereira tentou se desvincular do Centro Cul-tural Emídio de Maia e criar outra agremiação cultural, mas foi impedi-do pela maioria que formava o cen-tro. Só em 1955, com a participação de Sandoval Cajú, Jucá Santos, Pe-dro Onofre, Jesualdo Ribeiro e outros militantes literários, foi fundada a Academia Maceioense de Letras, as-sim como Valdick Pereira pensou em batizá-la. Sandoval Cajú é patrono de uma cadeira que, curiosamente, está vaga.

Amigo leal, confidente e padri-nho de casamento de Sandoval Cajú, Jucá Santos é dono de um pequeno “memorial” do ex-prefeito de Ma-ceió. Assim como um fã de um ar-tista famoso, ele coleciona, num ca-derno de capa dura, bilhetes, fotos, cartas, poemas, quadrinhas, recor-tes de jornal e outros “documentos” do amigo.

47 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Page 48: Graciliano Nº 8

São “raridades” para Jucá Santos. “Acho que os familiares do Sandoval nem sabem que essas coisas exis-tem. Guardei durante todo esse tem-po com muito carinho. Nós éramos muito amigos”, diz Jucá, mostrando os vários cartões de aniversário que recebia todo ano de Sandoval. “Ele nunca esqueceu o dia do meu ani-versário. Quando estava viajando, mandava telegrama”, conta o poeta e presidente da Academia Maceioense de Letras.

Entre os recortes colados nas pá-ginas, uma revelação. Ao contrário do que muitos acreditam, a campanha para prefeito de Maceió, em 1960, não foi o primeiro pleito eleitoral de San-doval Cajú em Alagoas. Duas “peças” de campanha mostram que o parai-bano se candidatou a deputado esta-dual nas eleições de 1950 e de 1955. Nesta última, provavelmente criada

por ele, o panfleto fala de “3 fases na vida de um candidato: ontem: poeta, hoje: speaker; amanhã: deputado”, sonhava Sandoval. “Alagoano: se não tens compromisso com outro candi-dato, dá teu voto a Sandoval Ferreira Cajú”, pede ele em outro “santinho”.

Enquanto folheia o caderno, Jucá parece reviver o tempo em que cons-truía sonetos com Sandoval. Um dos quais ele sabe de cor: “Eu apertei sua mão macia/E dirigi-me ao barco soluçando/Só consegui dizer mesmo chorando/Adeus meu grande amor, adeus Maria...”, diz o primeiro ver-so de “Partida”, de autoria da dupla Cajú e Jucá.

Num bilhete, Cajú solicita ao ami-go uma alteração: “Jucá, veja se con-certa [sic], no meu poema “Alagoas”, o verso que está com onze (11!) síla-bas: “Nesse pedaço de solo brasilei-ro”. Mude para “Nesse canto do solo

brasileiro”. Não se vá esquecer de corrigir o verso em apreço, pois faço questão de metrificar rigorosamente os versos que escrevo”.

Além da parceria poética, havia em comum nos dois as duas sílabas que formavam os nomes dos parcei-ros, tal qual dupla de coco de embo-lada. Cajú e Jucá também serviam de mote para um repente no pandeiro, de autoria de Miguel Oliveira, amigo em comum. “É preciso ser sagaz/ Fazer verso de repente/A um poeta competente/Conhecido nos anais/ Mas tudo isso se faz/Olhando assim para o leste/Jucá amarga por peste/ Cajú é doce demais”.

Outro, identificado como Efigê-nio Moura, rebateu. Conheço muita madeira/Muitas de lei e valor/Provei inté do sabor/Duma tá de quixabeira/Fruta boa da jaqueira/Com seus tron-cos colossais/No mato tem araçás/

PEQUENO MEMORIAL DE UM POEtA

48 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano RamosR

EP

OR

tA

GE

M

Page 49: Graciliano Nº 8

Pau ferro dá no agreste/Jucá amarga pru peste/Cajú é doce demais”.

Durante a entrevista, Jucá muda a expressão quando vira a página e revê o recorte de jornal com a matéria do enterro de Sandoval Cajú. Na foto, o jornalista Zé Elias caminha de ca-beça baixa, ao lado do caixão. Numa das alças está o filho Clemenceau.

Jucá Santos contempla e lamenta. “Ele fumava demais, era uma coisa impressionante. Acendia um cigarro no outro. Brincava dizendo que não gastava fósforos”, diz, referindo-se ao câncer de pulmão que consumiu Sandoval Cajú.

Entre os vários cartões e bilhetes de aniversário que enviou ao amigo Jucá Santos, alguns em verso, um foi incluído no primeiro livro de Sando-val Cajú, Poesia Despida. Chama-se “Soneto dos Parabéns”.

Este soneto vai prestar-me agoraUm dos serviços importantes queOutro qualquer “script” nessa horaJamais mo prestaria e bem se vê: É que ele vai por esse mundo em foraDizer bem alto que surgiu porqueFora incumbido de abraçar sem moraO meu maior amigo que é você! Segue soneto célere ligeiroDesempenha o papel de mensageiroNesse sublime e radioso dia... E, ao encontrá-lo, onde quer que estejaDize ao Jucá que o seu amigo almejaUm 10 de JUNHO cheio de alegria!... Sandoval Cajú 10/06/1953

SONEtO DOS PARABÉNS

49 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Page 50: Graciliano Nº 8

Para além do vasto bigode pen-teado, da cara de mau e da piada na ponta da língua, principais caracte-rísticas que compunham o persona-gem folclórico, foram poucos os que tiveram o prazer de desfrutar de momentos ao lado do homem San-doval Cajú, o Cajúíno, como permitia que alguns poucos o chamassem. Não havia como não se “apaixonar” por aquela figura excêntrica depois de ouvir uma de suas histórias “via poço”, como gostava de dizer, na roda seleta de amigos.

“As histórias dele eram fantásti-cas. Ouvir Sandoval falar sobre Bo-nito de Santa Fé, a cidade onde ele nasceu, ouvir a descrição dele sobre fatos ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial, era como se você estivesse em um cinema assistindo a um documentário, um filme histó-rico ou mesmo de ficção”, lembra o ex-deputado federal Sérgio Morei-ra, 50 anos, admirador declarado do ex-prefeito.

Ele tinha 18 anos quando conhe-ceu Sandoval Cajú, durante campa-

nha política de 1978. “Eu me recordo do Sandoval Cajú apoiando o Bernar-dino Souto Maior, candidato a prefei-to. Eu conheci o Sandoval e o senso de humor dele. Mesmo apoiando o Bernardino, numa madrugada em que estávamos na Macarronada do Edson, ele dizia que o Bernardino era o fardo mais pesado que tinha de car-regar”, diverte-se Moreira.

O personagem folclórico Sandoval Cajú, ele conhecera cinco anos antes, por meio do livro 350 Histórias do Fol-clore Político, de autoria do jornalista Sebastião Nery. “Eu tinha uns 13 pra 14 anos e ficava imaginando aquele personagem. Na época, foi o maior sucesso. O Sebastião Nery, inclusive, dedica o livro ao Sandoval Cajú”.

Em entrevista à Graciliano, Se-bastião Nery recorda a ocasião em que conheceu Sandoval Cajú: “Não lembro exatamente o dia em que o conheci. Sei que foi na Câmara, em Brasília, na década de 80, onde creio que ele chegou como suplente. E certamente fui apresentado pelo de-putado Sérgio Moreira, meu colega

de legislatura e com quem sempre conversava muito sobre Alagoas. A impressão que Sandoval me deixou foi ótima: um homem alto, elegante, bem falante, cabelos cheios, esvo-açados, inteiramente brancos, já envelhecido, mas de uma conversa fascinante. E furioso com o Golpe Militar de 64, que lhe cassou os di-reitos políticos. Ele se queixava de que a cassação foi a única maneira de a UDN, que ele sempre derrotou, afastá-lo da política”.

Antes de ser apresentado a Cajú, Nery já havia ouvido falar do ex--prefeito. “Amigos da Paraiba, na dé-cada de 50, me contavam historias de um radialista muito inteligente, que passou uma temporada no Rio e voltou para João Pessoa, para traba-lhar na Rádio Tabajara da Paraíba. Usava um cartão de ‘locutor da Rá-dio Relógio do Distrito Federal’ (que não tinha locutor). Antes de fazer programas de auditório de sucesso, ficou muito conhecido quando mor-reu o ‘mártir da ciência’, um cien-tista médico, cujo nome esqueci, e

50 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Sandoval e o design da cidade

RE

PO

Rt

AG

EM

Page 51: Graciliano Nº 8

que morreu no Rio por contágio de doentes de que tratava. O enterro foi em João Pessoa, com todas as pom-pas, Assis Chateaubriand promoveu nacionalmente nos Diários Associa-dos. Havia tanta gente no cemitério que Sandoval foi sendo empurrado e caiu dentro da cova, gritando: ‘Furo internacional! A Rádio Tabajara fa-lando de dentro do túmulo do mártir da ciência!’”.

A convivência entre Sérgio Morei-ra e Sandoval Cajú só viria acontecer em 1986, um ano após Sandoval ser derrotado nas eleições para a Prefei-tura de Maceió, na sua segunda ten-tativa de voltar à vida política. Três anos antes ele havia se candidatado a deputado federal. Apesar da votação expressiva, não foi eleito.

“Segundo Sandoval, ele foi rou-bado, história que conta em seu li-vro”, diz. Na avaliação de Sérgio Moreira, talvez tenha sido o erro fatal de Cajú, na tentativa de voltar

a ser peça do xadrez político de Ala-goas, após o período de ostracismo. “Se ele se candidatasse a deputado estadual, mesmo roubado, ele teria sido eleito. Se tivesse uma tribuna, talvez ele tivesse reconstruído sua carreira política que foi injustamente e,violentamente, ceifada”, afirma.

Moreira não enxerga outra motiva-ção, a não ser política, para justificar a cassação de Sandoval Cajú. “San-doval não era um ideológico, nem um homem de esquerda. Era um homem popular e populista. Ele era antes de tudo um comunicador radicalmente inovador. Sandoval tão pouco era um corrupto. Naquela época se cassava por subversão ou corrupção. Ele foi pobre a vida toda”, diz.

Secretário de Planejamento e do Orçamento de Alagoas por duas vezes, durante os governos de Fer-nando Collor e Tetonio Vilela Filho, ex-diretor-presidente do Sebrae Na-cional, presidente da Companhia Hi-

drelétrica do São Francisco (Chesf) e da Superintendência do Desenvol-vimento do Nordeste (Sudene), além de consultor do Banco Mundial, em Washington, Moreira faz questão de ressaltar a administração de Sando-val Cajú. “Os resultados de Sandoval à frente da Prefeitura de Maceió nos autorizam a dizer que ele foi um ino-vador. Ele fez a administração mais revolucionária que Maceió já tinha visto”, afirma Moreira.

A transformação física da cidade, a construção e reforma de praças e espaços públicos, são para Sérgio Moreira, a característica mais forte da administração de Sandoval Cajú. “Sandoval era um esteta. Ele tinha um pendor pelo design da cidade. Ele pensou não apenas na organiza-ção, mas na estética da cidade. E é aí que está a sua marca, a marca do seu governo”.

Estátua do Mijãozinho na fonte da praça Sinimbu e mapa de Alagoas na praça do Centenário: construídos com mosaico de azulejos, os dois monumentos expressam a relação entre Sandoval Cajú e a estética da cidade

Page 52: Graciliano Nº 8

Ideologias distintas, convicções políticas opostas, a ligação entre o jornalista Ricardo Mota e o ex-pre-feito Sandoval Cajú foi processada no campo da simpatia que um despertou no outro. Os dois se conheceram na

sala do jornalista Zé Elias, na Gazeta de Alagoas, e fizeram amizade.

Ricardo transformou-se num con-fidente de Sandoval Cajú. Sandoval via no jornalista um amigo. Costu-mava almoçar na casa de Mota às sextas-feiras. No cardápio, não podia faltar a carne de sol que Sandoval degustava com prazer. Quando o ex--prefeito estava “pra cima”, o papo invariavelmente era sobre literatura.

“Ele era um bom leitor. Leu os clássicos. Passávamos horas falan-do sobre Eça de Queiroz, por quem ele era apaixonado. Adorava poesia,

lia muito Augusto dos Anjos, embora soubesse que ele próprio era um mau poeta”, lembra Ricardo Mota.

A maioria das pessoas que se aproximavam de Cajú queria o con-tato com o personagem. Pediam para

que repetisse histórias folclóricas ou contasse uma de suas piadas. Já na companhia de Mota, Sandoval fica-va à vontade e assumia a condição humana.

“Eu comecei a conversar com o Sandoval o que ele, normalmente, não conversava com outras pessoas. Eu me dava bem com o lado huma-no dele. Eu percebi então que o San-doval era um sujeito extremamente amargurado, por mais que não pa-recesse. Sempre que falava da vida dele era com uma carga de tristeza muito grande”, diz Ricardo Mota.

Num trecho do livro O Conver-sador, revisado e prefaciado pelo próprio Mota, Sandoval fala da “...sopa amarga do arrependimento que venho tragando há mais de qua-tro décadas (...) é que, a despeito de alguns louros conquistados por cá, o profundo e ardente amor à terra mãe não me perdoa a ingratidão de tê-la desprezado, justamente quan-do menos razões me assistiam para permutar o aconchego da aldeia ta-bajara pela indiferença na taba cae-té”, escreve Cajú, ao lamentar o dia em que decidiu, num impulso, com-prar uma passagem de trem para Maceió, motivo pelo qual deixou de honrar o compromisso que havia fir-mado com o governador da Paraíba.

Segundo Ricardo Mota, Cajú nunca digeriu a cassação e o fato de ter sido “abatido em pleno ar”, quando seria fatalmente o gover-nador de Alagoas. Sofria com isso. Não perdoava os que, na sua visão, tramaram e destruíram sua carrei-ra política. Era duro no julgamento do ex-governador Luís Cavalcante, a quem acusava de ter arquitetado sua queda.

A maioria das pessoas que se aproximavam de Cajú queria o contato com o personagem

52 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

o ressentimentoNa intimidade,

RE

PO

Rt

AG

EM

Page 53: Graciliano Nº 8

Da esq. para a dir., Ricardo Mota, Sandoval Cajú, Plínio Lins e Márcio Canuto. O ex-prefeito gostava de reunir os amigos para conversar e contar histórias

Ricardo MotaJornalista

Eu comecei a conversar com o Sandoval o que ele, normalmente, não conversava com outras pessoas. Eu me dava bem com o lado humano dele

Mic

hel R

ios

Page 54: Graciliano Nº 8

“Duque de Caxias”Cajú e o

Deputado estadual de oposição à época em que Cajú era prefeito, tes-temunha e protagonista de momentos seminais da história política alagoa-na, o polêmico Mendes de Barros não acredita que o major Luís Cavalcante tenha sido o articulador principal da trama que aniquilou a promissora carreira política de Sandoval Cajú.

“Eu combati o governador Luis Cavalcante. Naquela época, a violên-cia era muito grande entre os políti-cos. Ele era meu adversário, protegia meus inimigos, mas não posso dizer que o major fosse capaz de fazer isso, idealizar uma situação para cassar o Sandoval. Se alguém idealizou, su-gerindo e dizendo que o Sandoval era um perigo para a Revolução, ele não contestou. Mas que tenha sido criação do próprio major Luis Caval-cante, eu não diria isso, não tenho elementos”, afirma Mendes de Bar-ros, enquanto acende o inseparável cachimbo.

Embora absolva em sua análise o major Luis Cavalcante das suspeitas e acusações feitas por Sandoval Cajú, Mendes de Barros é duro no breve

perfil que traça do ex-governador: “O major Luis Cavalcante era um magní-fico idiota. Ele foi governador do Es-tado, mas levava tudo na brincadeira. A carreira militar dele também não tinha essa significação porque ele era general, mas todos só o conhe-ciam como major”, destila Mendes, para quem a popularidade e a força que Sandoval tinha junto às camadas populares foram o principal motivo para a sua cassação pelos militares.

Longe das picuinhas políticas, Mendes de Barros conviveu com San-doval Cajú. O ex-prefeito era frequen-tador assíduo da “clássica” mesa de pife-pafe da casa do ex-deputado. Eram madrugadas de diversão e muita galhofa. “Foi um prazer mui-to grande conviver com o Sandoval Cajú. Foi uma pessoa extremamente singular porque tinha um pouco de tudo e usava o que tinha da forma mais interessante, mais simpática e mais agradável que você pudesse imaginar”, relembra Mendes.

Ele afirma que, em Alagoas, as pessoas só são valorizadas pelo que possuem em dinheiro. “E mesmo

nessas condições, o Sandoval aflo-rou, sendo um homem de posses modestas, mas de uma grandeza mental extraordinária”.

Dos vários momentos hilários protagonizados por Cajú, tem um que Mendes não esquece. “Jogar com o Sandoval Cajú era um privi-légio, porque o importante no jogo é a diversão e nós morríamos de rir com ele. Uma vez, na casa do Moacir Miranda, o dia já estava raiando, era uma mesa demorada, todo mundo sabendo onde era o setor de cada jogador. O deputado João Moraes estava pifado, esperando uma carta baixa. O Sandoval também estava com um pife monstruoso e sabia que a carta de valor baixo era perigosa, mas estava com um “2”, o duque, sobrando. Então ele soltou a carta, mas jogou na mesa com força, de modo que ela embaralhou. O Moacir não viu direito e perguntou: “Qual foi a carta?”. O Sandoval: “foi um du-que”. Moacir voltou a perguntar: “de que?”, querendo saber o naipe. E o Sandoval: “de Caxias!”, lembra, às gargalhadas, Mendes de Barros.

54 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano RamosR

EP

OR

tA

GE

M

Page 55: Graciliano Nº 8

Mendes de BarrosAdvogado

Jogar com o Sandoval Cajú era um privilégio, porque o importante no jogo é a diversão e nós morríamos de rir com ele

55 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Mic

hel R

ios

Page 56: Graciliano Nº 8

Os filhos de Cajú O automóvel deslizava veloz pela

estrada paraibana, rumo a Bonito de Santa Fé. Ao volante, concentra-do, Clemenceau Cajú. Ao lado dele, despreocupado, entre um olhar e outro na paisagem, o pai lia jornal tranquilamente. Restavam menos de 200 quilômetros dos mais de 700 que separavam Maceió da cidade sede do clã Cajú. Ao longo do caminho, pai e filho já haviam conversado e contado piadas.

Ao completar a última curva, an-tes de chegar ao município de Caja-zeiras, Clemenceau gelou. Ao lado de uma viatura da Polícia Rodoviária Fe-deral, à margem da rodovia, o policial apontava o acostamento e mandava o carro parar. “Eita, pai! Estamos lascados”.

Sandoval Cajú estava acostumado com o estilo veloz de dirigir do filho que mais parecia com ele fisicamen-te. Desde adolescente, Clemenceau era o motorista preferido do ex-pre-feito de Maceió. Entregava sem medo as chaves dos carros que possuiu ao longo do tempo. Gostava de carros grandes: Aero Willys, Galaxie, Opala.

Todos sempre “tocados” com perícia pelo filho.

Sandoval pediu calma a Cle-menceau. “Deixe que eu falo com o guarda”, disse. Cara fechada, cenho franzido, o policial se aproximou: “Boa tarde. Os documentos, por fa-vor. O radar acusou excesso de ve-locidade. O veículo estava a 110 qui-lômetros por hora”, ralhou o policial rodoviário.

“Como assim?!”, disse Sandoval, com expressão de surpresa. “Acho que o seu equipamento está com de-feito”, advertiu. “O meu filho estava a 140 quilômetros por hora e não a 110, como o radar acusou. Seu equi-pamento está com problema. Tá bom de trocar”, afirmou, com o olhar grave, diante da expressão patética do policial.

“Aí meu pai desceu do carro, acen-deu um cigarro, e começou a conver-sar com o policial. Era fim de tarde. Quando saímos de lá já tinha escure-cido. No final das contas, não deu em nada. Ele descobriu que o guarda era parente dele. Ficaram conversando. O policial só faltou colocar meu pai

no braço”, conta Clemenceau.Não lhe sai da memória as viagens

para Bonito de Santa Fé, na compa-nhia do pai. Eram dias de felicidade. “Viajei muitas vezes pra lá. Só eu e ele. Apesar da distância, eram via-gens muito agradáveis. Nós íamos conversando, ele sempre contando histórias”, lembra Clemenceau.

“Lá, eu adorava andar a cavalo. Passava o dia todo cavalgando. Não queria mais parar. Parece que estou vendo meu pai dizer: ‘Meu filho, des-ça desse cavalo, assim você mata o bichinho’”, diverte-se Clemenceau.

Ele conta que ficava impressiona-do com a popularidade de Sandoval em Bonito de Santa Fé. “Lá, ele era Deus. O povo dizia: ‘Olha, é o filho do José Cajú. É o prefeito de Maceió’”, relembra.

A fama era anterior ao mandato no executivo municipal da capital alagoana. Antes de ser prefeito, para a pequena cidade do alto sertão pa-raibano, Sandoval Cajú era um pops-tar do rádio. Na casa dos pais, fami-liares e amigos se reuniam em torno de um aparelho de rádio para curtir

56 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano RamosR

EP

OR

tA

GE

M

Page 57: Graciliano Nº 8

57 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Da esq. para a dir., Eliane Rosa e Silva, filha de casal amigo da família, e os filhos Clemenceau e Simone

Page 58: Graciliano Nº 8

seus programas transmitidos pelas rádios Difusora, de Alagoas, e Taba-jara, da Paraíba.

“Ficávamos esperando a hora do programa dele começar. Era o maior sucesso”, lembra a irmã caçula de Sandoval Cajú, Yara. Aos 83 anos, por telefone, ela se emocionou ao lembrar do irmão. “Eu o adorava. Tinha muita saudade de dele. Ele saiu de Bonito muito jovem”, diz dona Yara, que atu-almente mora em João Pessoa. “Meu irmão sempre foi um homem espiri-tuoso, inteligente. Sempre gostou de conversar, de contar histórias”.

Uma das imagens do irmão que ficou marcada em sua memória foi a do dia em que ele regressou a Bonito de Santa Fé pela primeira vez, depois de ter fixado residência em Alagoas. “Ele voltou como um herói. Estava di-rigindo uma camionete, onde estava escrito assim: ‘Bonito de Santa Fé/ Estado da Paraíba/Pra saber como ela é/Só nas canções de Capiba’. Um monte de gente saiu acompanhando o carro dele”.

Em Maceió, quando era prefeito, a multidão também seguia Sandoval

Cajú. Aos 7 anos de idade, Simone Cajú ficava orgulhosa com o carisma do pai e com as demonstrações de carinho da população.

Sandoval fazia questão de levar os filhos às inaugurações de obras de sua gestão. Para as crianças da família, era dia de festa, de comer bolo e tomar guaraná. Além das gu-loseimas, havia um detalhe especial que não sai da memória de Simone até hoje. “Meu pai era sempre recebi-do com flores. Em qualquer parte da cidade que chegasse, havia sempre uma pessoa que oferecia um buquê de flores. Eu achava aquilo muito bonito. Ficava admirando a figura do meu pai, o carinho e o respeito que as pessoas tinham por ele. Quando ele começava a falar, todos paravam para ouvir. Ele sabia prender a aten-ção do público”, lembra Simone Cajú.

Ao lado dos irmãos ainda peque-nos, ela esteve em várias inaugura-ções de praças construídas na gestão do pai. “Lembro que naquela época eram poucas as famílias que tinham televisão em casa. E meu pai colo-cou televisão nas praças. Então todo

mundo ia para as praças assistir”, conta Simone. Naquela época, ela nem pensava em namorar e mui-to menos imaginava que se casaria com um homem que, quando criança, também nutria admiração por San-doval Cajú.

Ainda de calças curtas, na dis-tante Cacimbinhas, no agreste ala-goano, José Wanderley Neto ficava contemplando o obelisco construído pelo segundo prefeito da cidade, Si-mão José Januário. Influenciado pela fama de Cajú, que já se estendia inte-rior adentro, Simão afixou no alto do monumento a letra S, em alusão ao badalado prefeito de Maceió.

Foi a primeira referência que José Wanderley Neto, que se tornaria um dos médicos cardiologistas mais im-portantes do País, teve do ex-prefeito Sandoval Cajú. Não imaginava ele que os caminhos do destino o leva-riam aos braços da filha daquela fi-gura polêmica.

“Eu fui para o Rio de Janeiro estu-dar. Quando voltei, no final dos anos 70, eu conheci a Simone e nos casa-mos. Foi quando eu tive a oportunida-

58 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano RamosR

EP

OR

tA

GE

M

Page 59: Graciliano Nº 8

59 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Os filhos de Sandoval Cajú na praça do Centenário: Natanael, Simone, Clemenceau e Ana Maria

Michel Rios

Page 60: Graciliano Nº 8

de de conhecer o Sandoval Cajú além do mito”, conta José Wanderley. “Era um homem muito simples, uma pes-soa desprovida de ambição material, inteligente e espirituoso. Na minha vi-são, era um animal totalmente fora de seu habitat. Não tinha malícia política, não participava de conchavos, de arti-culações”, lembra o médico que tam-bém ingressou na política alagoana.

A admiração era mútua. Sandoval tinha verdadeiro orgulho do genro. Em seu livro autobiográfico O Conversa-dor, Cajú inclui o nome de José Wan-derley Neto em uma lista de 36 perso-nalidades, no seu modo de ver, mais importantes da história do Brasil.

Na medicina, na lista de Cajú, de forma curiosa, Wanderley Neto tem a mesma importância histórica de Oswaldo Cruz e Seixas Barros. O genro de Sandoval divide espaço com Santos Dumont, Duque de Caxias, Tiradentes, Janete Clair, Lima Duarte, Chico Buar-que e Chico Anysio.

Sandoval o define como um “cirur-gião cardiologista moderno e compe-tente que tem cuidado de centenas de pacientes, abastados ou desprovidos de recursos, assistindo-os indiscrimi-nadamente com o mesmo desvelo”.

A outra filha de Sandoval, Ana Ma-ria, lembra que o ex-prefeito de Mas-ceió se desdobrava para agradar as pessoas. “Era o jeito dele, papai era assim. Fazia de tudo para agradar as pessoas. Gostava de ver as pessoas felizes ao redor dele”, diz Ana Maria.

Foi ela quem percebeu os primei-ros sinais de que a saúde de Sandoval Cajú necessitava de cuidados. “Meu pai adorava café. Sempre que passa-va na minha casa, eu oferecia. Numa dessas vezes, percebi a dificuldade dele em segurar a xícara. Ele tremia e derrubou a xícara no chão. Aquilo me deixou muito preocupada”, lembra Ana Maria.

Clemenceau também percebeu o problema no dia em que presenciou o pai assinando um documento. “Ele tremia muito para fazer a assinatura. Até ficou chateado e reclamou que de-pois de velho estava ficando analfabe-to e gago”.

Eram os primeiros sintomas de um câncer no pulmão que se alastrara e chegara até uma região do cérebro. Sandoval sempre gozou de uma “saú-de de ferro”. Tinha pavor de doença e “pelava-se” de medo de injeção.

Os filhos de Sandoval se reuniram.

Era preciso convencê-lo a se tratar. Foi entregue aos cuidados de uma equipe médica da Santa Casa de Mi-sericórdia. Um raio-X detectou o tu-mor no pulmão provocado por uma vida de tabagismo. Sandoval Cajú ficou em pânico. A doença evoluiu com velocidade impressionante.

Na noite de 22 de maio de 1994, Clemenceau deixou a pelada com os amigos antes do final do jogo. Es-tava com uma sensação estranha. Antes de abrir a porta de casa, ou-viu o telefone tocando. Correu para atender. Na linha, Sandoval Cajú estava aflito como nunca estive-ra antes. “Sô, venha me ver. O pai está morrendo”.

Clemenceau pegou o carro e foi ao encontro do pai. Sandoval estava inquieto, andava de um canto a ou-tro da casa. “Eu nunca havia dado um beijo no meu pai. Nós nos amá-vamos, mas não havia o contato, aquela coisa. Mas naquela noite eu o beijei na cabeça. Sentei ao lado da cama, segurei na mão dele, ele foi se acalmando e dormiu”. No dia se-guinte, Sandoval Cajú foi levado às pressas para a Santa Casa de Mise-ricórdia, onde faleceu.

60 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano RamosR

EP

OR

tA

GE

M

Page 61: Graciliano Nº 8

61 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Sandoval Cajú entre Eliane Rosa e Silva e a filha Simone

Page 62: Graciliano Nº 8

O outro lado do contador de causos

Durante o intevarlo da entrevis-ta para um vídeo sobre o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), o médico José Wanderley – e à época, vice-governador do Estado

– comentou sobre o filme que o do-cumentarista Pedro da Rocha havia feito sobre o rádio alagoano, Estrelas Radiosas e propôs que ele fizesse um documentário sobre seu sogro, o ex--prefeito Sandoval Cajú.

Foi com ele que Pedro da Rocha conseguiu a maior parte do acervo

fotográfico que usou no documentá-rio. “Não vivia aqui em Maceió e era criança na época áurea de Sandoval Cajú. Passei a conhecer melhor sua história a partir de leituras que fiz”,

explica. Até então, o cineasta tinha Sandoval Cajú como um personagem mitológico, por conta das histórias do anedotário político e das praças.

Para Pedro da Rocha, o docu-mentário funciona como um desdo-bramento de Estrelas Radiosas. Ele explica que, quando começou sua

pesquisa, notou que a história do rádio alagoano era muito rica para ser contada em pouco menos de uma hora por conta de alguns dos perso-nagens, dentre os quais está Sando-val Cajú. “Foi por conta da popula-ridade que ele atingiu no rádio que acabou tornando-se político”.

Como aponta o título, Sandoval Cajú – Além do Conversador retrata não só o lado cômico e mais conhe-cido do radialista e político. Pedro da Rocha conta que todos os entrevista-dos tinham pelo menos uma história engraçada para contar a respeito de Sandoval Cajú. “Essa visão cria um personagem com imagem distorci-da quanto à sua importância para a história da cidade. Quis desconstruir um pouco essa lenda”, diz.

Pedro da Rocha decidiu mostrar as outras faces do homenageado. Passando pelo lado político, fala so-bre as motivações e consequências da cassação de Sandoval. O docu-mentário retrata também o lado

Pedro da RochaDocumentarista

Foi por conta da popularidade que ele atingiu no rádio que acabou tornando-se político

62 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

VANESSA MOtA

RE

PO

Rt

AG

EM

Page 63: Graciliano Nº 8

poético e, principalmente, as inter-venções urbanas que fez. “Foi um trabalho que marcou toda uma época e, infelizmente, foi destruído”.

Das histórias que mais chamaram a atenção de Pedro da Rocha, está a da cassação. “O fato revela que, como apontam alguns dos entrevistados, a política é, em alguns momentos, um jogo violento. Sandoval Cajú foi cas-sado e nunca foi processado. Alega-ram que ele era um administrador in-competente. É como se alguém fosse preso sem sequer saber o motivo”.

O documentário traz uma entre-vista feita em 1985 por Edécio Lopes,

o único registro que Pedro da Rocha conseguiu encontrar. O cineasta fala da ausência de registros da época como uma de suas principais difi-culdades para o desenvolvimento do projeto. “Eu confesso que tive certa dificuldade para a finalização do pro-cesso, porque até para fazer o cartaz, não consegui encontrar nenhuma foto boa”, afirma. “Ainda temos uma memória viva sobre o personagem. Temos os filhos, o genro e algumas das pessoas que trabalharam e con-viveram com ele, porém, não há ma-terial audiovisual. Talvez isso reflita um pouco da nossa dificuldade de

organização de acervo”.Foram entrevistados Aldemar Pai-

va, fundador da Rádio Difusora, Cláu-dio Alencar, que escreveu alguns livros sobre a história do rádio alagoano, Pe-dro Onofre, que participava ativamente das campanhas à prefeitura, Divaldo Suruagy, que era secretário durante a administração de Sandoval, a professo-ra Josy Ferrari, que estuda os aspectos urbanísticos das intervenções feitas em Maceió, além de amigos, como Ricardo Mota, Mendes de Barros e Sérgio Mo-reira, familiares, como José Wanderley e o prefeito de Maceió, Cícero Almeida.

Cenas do documentário Sandoval Cajú - Além do Conversador, de Pedro da Rocha

Page 64: Graciliano Nº 8

Era radialista e advogado, mas teimava em ser poeta e político. E apesar de ter sofrido, foi feliz. Co-nheci poucos com tamanha verve e presença de espírito.

Chegou a ser prefeito de Maceió, eleito em 1960, e já na campanha mostrava sua condição humana. Ti-nha um único cartaz, exibido sobre o carro da batalha: ele, imponente, em pé, vestido de branco, pisando um revólver. Também um único slo-gan: Não à violência. Era no tempo dos brutais embates entre Arnon de Mello e Silvestre Péricles. Meu amigo passou ao largo, inclusive dos boatos que anunciavam diariamente sua re-núncia à candidatura.

Um dia resolveu acabar de vez com o falatório. Na Praça Marechal Deodoro, diante de uma multidão, li-quidou a fatura.

- Fala-se de minha renúncia, mas só há uma pessoa que me fará renun-

ciar. Vou interrogá-lo agora. – E vi-rando-se para a impoluta estátua do Proclamador da República, indagou: - Marechal Deodoro, o senhor permi-te minha eleição à Prefeitura de Ma-ceió? – E diante do silêncio tumular, proclamou: - Quem cala consente.

E assim ganhou a eleição e fez uma administração revolucionária. Construiu praças, abriu avenidas e exerceu seu humor. No dia da pos-se recebeu o pedido de audiência de uma freira que vinha solicitar auxílio para suas obras sociais. Recusou-se a receber a religiosa e assim perma-neceu por coisa de três meses até que um dia a secretária entra em seu gabinete.

- Prefeito, a freira…O alcaide virou a cadeira para a

janela, olhou a paisagem e decretou: - Mande entrar a vigarista. – E quan-do se virou para a secretária deu de cara com a freira. Não perdeu a

pose. Levantou e cumprimentou sua visitante:

- Como vai, irmã?- Nada bem. Entro aqui com o se-

nhor me chamando de vigarista…- Mas irmã, qual é o feminina de

vigário?Não terminou o mandato. Veio o

golpe de 64 e o cassou. Tinha o go-vernador como inimigo e, o pior, como vice o genro do tal governador. Nunca mais conseguiu voltar à vida pública. Nem para o rádio. Homem de poucas posses e honesto – diziam os amigos que entrou na prefeitura puxando uma cachorrinha e saiu sem cachorrinha, sem coleira, sem nada –, fez-se advogado. Paraibano, tinha adotado Alagoas como pátria e não se desfez da terra de adoção. Persegui-do pelos mandatários em Maceió, foi trabalhar no Recife e semanalmente vencia, dirigindo o próprio carro, a distância entre as duas capitais. E

Sonhos poéticos, pesadelos políticos

AR

tIG

O64 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

MAURÍCIO MELO JÚNIOR

Page 65: Graciliano Nº 8

65 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Entrevista de Sandoval Cajú ao Conversa de Botequim, bate-papo comandado pelo jornalista Plínio Lins, no bar Casablanca

Page 66: Graciliano Nº 8

assim se especializou em defender vítimas de acidentes rodoviários.

Enquanto isso se dedicou à sua paixão literária, não propriamente uma vocação. Era um leitor com-pulsivo, apaixonado por Euclides da Cunha. Leu Os Sertões mais de trinta vezes, mas apenas a terceira parte, A Guerra. Tinha pavor das duas an-teriores, A Terra e O Homem. E es-crevia e conversava. Ninguém me-lhor que ele para animar uma roda de conversa. Ia madrugada a den-tro, sem beber, fumando e contando histórias fantásticas. Chegou a es-crevê-las num livro de memórias, O Conversador, que guardo em minha estante. E lembro de sua indignação.

Quando mandou o livro para a gráfica foi entrevistado por um jor-nal local. E lá vinha a informação que terminara de escrever um volume memorialístico chamado O Conser-vador. E o amigo bradava:

- Logo eu, um conservador. Con-servador é a puta da mãe desse jor-nalista analfabeto…

Também publicou um livro de po-esia, Sonhos & Pesadelos, com este “&” comercial, como informa o exem-plar de minha estante. Os versos são sofridos, reconheço. Um exemplo? “Sonhei morrendo de frio, / À míngua do teu calor, / A bordo desse navio!… / Calcula a minha agonia, / Se o so-nho fosse real/ Mas tudo não passa-ria / De um pesadelo BANAL…” Já as orelhas são uma preciosidade pelo inusitado.

Assinadas por um certo J. Rome-ro, afirmam as tais orelhas: “Eu te-nho em mãos cópias xerográficas dos originais do livro de poesias Sonhos & Pesadelos, (…) e, confesso, since-ramente: trata-se de uma ‘obra poé-tica’ inteiramente destituída de méri-tos. Quer na parte dos Sonhos, quer na de Pesadelos, não há um só verso

66 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

– lírico ou dramático – que enleve ou comova a alma mais sensível. (…) É pois, a negatividade global de todos os princípios que regem a criação da poesia e da literatura. (…) Tudo é lu-gar-comum, trivialidade. (…) Insulso livro, cuja autoria atesta o estado pa-tológico de um poeta desprestimoso, incapaz de criar imagens ou figuras expressivas. (…) Concluindo: em que pese a observação feita nos comen-tários acima, não se deixe de ler tal livro: ao contrário, aconselha-se que o leia, para que constate in loco, com os próprios olhos, o que foi dito so-bre Sonhos & Pesadelos, nestas duas orelhas que hão de arder na cabeça vazia do autor.”

Diante do desaforo procurei o amigo.

- Este filho da puta elogiou mui-to outro livro meu, A Imperatriz da Simpatia, sobre a visita da rainha da Inglaterra ao Brasil. Quando ele me

AR

tIG

O

Page 67: Graciliano Nº 8

67 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

entregou o texto desta nova orelha, o livro já estava no prelo. Mandei para a gráfica sem ler. Deu nisso.

Fatos à parte, não tinha vocação para a política nem para a literatura.

Anistiado em 1979 enfrentou outras candidaturas, sempre sem votos, sempre com humor e espe-ranças. Ouvimos, pelo rádio de um restaurante uma dessas apurações. Quando o locutor anunciou os milha-res de votos de outros tantos candi-datos e apenas um mísero sufrágio no amigo, ele não se entregou: - Já estou na suplência.

Grande amigo. Conduzia sempre alta carga de solidariedade e genti-leza, que distribuía com próximos e desconhecidos. Um dia, vindo ele e meu irmão do Recife, pararam em Palmares. De repente o amigo sumiu. Também de súbito ressurgiu com um pacote de pão sob o braço. “Caso o carro venha a quebrar, não passare-

mos fome.” O carro não enguiçou e logo que entraram em Maceió obri-gou meu irmão, o motorista, a parar num ponto de ônibus. Perguntou para uma mulher solitária e assus-tada que ali estava: “A senhora já comprou pão hoje?” “Não.” “Então não precisa mais comprar”. E pas-sou o pacote à mulher.

Hoje caminho em Maceió e não encontro rastros do amigo. Sua obra – imensa – como prefeito foi se esvaindo nas modernizações da cidade e agora o apontam apenas como o prefeito que demoliu o Ho-tel Central, construção antiga que já se esmigalhava com o descaso e o tempo. Não importa, o mundo prag-mático da atualidade não comporta o doce populismo de Sandoval Cajú. Mesmo assim seus amigos, como eu, não pisam em Maceió sem dei-xar de lembrá-lo em sua grandeza, de reverenciá-lo.

Capa do livro O Conversador, de Sandoval Cajú, lançado nos anos 1990

Page 68: Graciliano Nº 8

No cotidiano da política, o bom humor

DO

CU

ME

Nt

A68 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Personagem dos mais marcantes da história da política brasileira, Sandoval Cajú teve suas “tiradas” cômicas registradas em dois livros: Missão Secreta em Igaci, de Cleto Falcão, e 350 Histórias do Folclore Político, de Sebastião Nery. Confira alguns desses momentos registrados para a posteridade.

UMA QUEStÃO DE INtERPREtAÇÃO

Sandoval Cajú estava uma tarde com mil afazeres. Entra sua secretária na sala.— Prefeito, tem aí uma freira querendo falar com o senhor.— Uma freira?— Sim, aquela que esteve aqui o mês passado pedindo ajuda para uma escola. Está aí com uma comissão— Hoje eu não recebo. Tenho muito o que fazer. Mande voltar outro dia.Disse isso e continuou mexendo e arrumando uma papelada.A secretária insistiu:— Prefeito, é uma religiosa. O senhor deve receber.Sandoval, em dúvida, deu as costas e ficou calado. A secretária tomou a iniciativa de mandar a freira e sua comitiva entrarem.Sandoval se vira e grita:

— Manda logo essa vigarista entrar.Tarde demais. A freira e a comitiva já estavam no Gabinete, diante do Prefeito. Foi aquele pânico. Todo mundo calado, o ar carregado. Sandoval, na maior cara de pau, se dirige à freira. E beija as suas mãos.— Eu já estava esperando pela senhora.A freira, com a cara trancada, falou:— Eu ouvi o que o senhor disse de mim.— Ouviu o quê?— Ouvi o senhor me chamando de vigarista.— Ora, irmã, entenda: Padre, nós chamamos de vigário, não é?— É.— Então? Se padre é vigário, freira é vigarista...

Page 69: Graciliano Nº 8

69 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

É tUDO POVO

Sandoval chega para um comício em Bebedouro.— Povo da Ponta GrossaUm popular grita avisando que ele está em bebedouro. Sando-val não perdeu a linha:—... que veio a Bebedouro para me ouvir falar.

AS FRUtAS

Sandoval chega uma hora atrasado para um comício na Chã da Jaqueira. O povo já impaciente. Ele subiu no caminhão, pegou o microfone:— Meus amigos, desculpem o meu atraso. Não fiquem com raiva. Eu vim para Chã da Jaqueira, estou falando embaixo de uma amendoeira, na minha frente vejo um menino chupando manga, eu sou Caju, vamos misturar tudo isso, fazer uma sa-lada e esquecer esse atraso...Que atraso? Ninguém lembrava mais.

Page 70: Graciliano Nº 8

DO

CU

ME

Nt

A70 . Graciliano . CEPAL/Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Sandoval Cajú, paraibano de talento e cara dura, depois de uma temporada no Rio, voltou para João Pessoa impressionando a pro-víncia com um diáfano cartão de linho: Sandoval Cajú locutor da Relógio do Distrito Federal. E virou o maior radialista do Nordeste, na Rádio Tabajara da Paraíba.Um dia, mudou-se para Alagoas. Ia para a praça pública todo ves-tido de branco e, de cima de um caminhão, começava:— Vim de branco para ser claro.4E tanto foi claro que acabou prefeito de Maceió, com espetacular votação. Inclusive com apoio de Floriano Peixoto. Diante da está-tua do Marechal de Ferro, falava um dia ao povo. De repente, abriu os braços:— Marechal Floriano, vós que sois o patrono da terra das Alagoas, dizei a este povo se estais ou não estais apoiando a candidatura de Sandoval Cajú à Prefeitura de Maceió.A praça calada como quarto de freira, e Sandoval, braços ao vento, insistia:— Respondei, Marechal, respondei!Depois, num soluço, os olhos molhados de gratidão, gritou:— Obrigado, Marechal. Obrigado. Quem cala, consente.

Page 71: Graciliano Nº 8

PENSAR ALAGOASC O L E Ç Ã O

Secretaria de Estadodo Planejamento e do Orçamento

ALAGOAS TEM JOIAS TÃO RARAS QUE DECIDIMOS TRANSFORMAR ALGUMAS DELAS EM LIVROS PARA VOCÊ.

Coleção Pensar Alagoas. Reedições em formato fac-símile de obras importantes sobre o Estado.

Pontos de venda: Cepal, Edufal, Resma e Banca Porto Seguro

Informações: 3315 8305 | 8883 7617 Av. Fernandes Lima, KM 7, S/N, Gruta de Lourdes - Maceió-AL

Page 72: Graciliano Nº 8

CEPALImprensa Oficial Graciliano Ramos


Recommended