H.P.LOVECRAFT
OCLÉRIGOMALIGNOFREEBOOKSEDITORAVIRTUAL–CLÁSSICOSESTRANGEIROS
TERROR-HORROR-FANTASIA
Título:OCLÉRIGOMALIGNO.
Autor:H.P.Lovecraft(1890–1937).
Tradução:PauloSoriano.
Imagemdacapa:KonstantinApollonovichSavitsky(1844–1905).
Leiautedacapa:Canva.
Série:ClássicosEstrangeiros–vol.31.
Editor:FreeBooksEditoraVirtual.
Site:www.freebookseditora.com
Direitos:Originaldedomíniopúblico(art.41,caputdaLeinº9.610,de19defevereiro de 1998). Tradução: © Paulo Soriano. Proibida a reprodução semautorizaçãopréviaeexpressadoeditor.
Ano:2017
Sitesrecomendados:
www.triumviratus.net,www.contosdeterror.com.br
SumárioOCLÉRIGOMALIGNO
SOBREOAUTOR
OCLÉRIGOMALIGNO
Umhomemcircunspecto,deaparênciainteligente,roupadiscretaebarba
grisalha,conduziu-meaumquartodoático,falando-meassim:–Sim,elemoravaaqui.Maseuoaconselhoanão tocaremnada.Asua
curiosidade torna-o irresponsável. Nós jamais subimos aqui de noite e sóconservamosolugarcomoestáporcontadesuavontadedeclarada.Vocêsabeoqueelefez.Essaabominávelsociedadeseencarregoudetudoaofinal,enósnãosabemosondeeleestásepultado.Nãohouvecomoalei,ouqualqueroutracoisa,chegaràtalsociedade.
“Esperoquevocênão fiqueaquiatéoanoitecer.Peço-lhequenão toqueno objeto sobre a mesa, essa coisa que parece uma caixa de fósforos. Nãosabemosoqueé isto,massuspeitamosque temalgumarelaçãocomoqueelefez.Atémesmoevitamosolharparaelafixamente.”
Poucodepois,ohomemmedeixousozinhonacâmaradoático.Estavaelamuito suja, empoeirada, primitivamentemobiliada,mas tinha uma elegância aindicar que aquele não era o quarto de um joão-ninguém. Havia prateleirasrepletasdelivrosclássicoseteológicos,eoutrasestantescomtratadosdemagia:Paracelso
1,AlbertoMagno
2,Tritemius
3,HermesTrimegisto
4,Borellus
5eoutros
tantos,masemestranhoscaracteres,cujos títulosnãofuicapazdedecifrar.Osmóveis erammuito simples. Havia uma porta que dava acesso, apenas, a umarmário.As janelas seguiam um padrão ovalado e as vigas de carvalho negrorevelavam uma incrível antiguidade. Evidentemente, esta casa pertencia aoVelhoMundo.Eupareciasaberondeestava,emboranãoconseguisselembraroqueentãosabia.Certamente,acidadenãoeraLondres.Minha impressãoeraadequeelasesituavanumpequenoportomarítimo.
Oobjeto sobre amesame fascinou intensamente.Creioque sabiaoquefazer com ele, porque tirei uma lanterna elétrica— ou algo que parecia umalanterna—dobolsoe, nervosamente, testeio seu foco.A luznãoerabranca,masvioleta, assemelhando-semais a umbombardeio radioativodoque aumaluzverdadeira.Lembro-mequeeunãoaconsideravauma lanternacomum;defato,eutraziaumanormalnooutrobolso.
Escurecia e, lá fora, os antigos telhados e chaminés, por trás das janelas
ovaladas,pareciammuitoestranhos.Finalmente,tomandocoragem,apoiei,numlivro,opequenoobjetodamesa, epara eledirecioneios raiosdapeculiar luzvioleta.Aluz,agora,assemelhava-seaindamaisaumachuvadegranizo—oude minúsculas partículas violeta — que a um feixe de luz contínuo. Estaspartículas, ao colidirem com a superfície vítrea no centro do estranhodispositivo,pareciamproduzirumruídocrepitante,comoochispardeumtubodevácuopormeiodoqual fluíssemascentelhas.Aescurasuperfícieproduziuumaróseaincandescência,eumafiguravagaebrancapareceutomarformaemseu centro.Então, dei-me conta dequenão estava sónoquarto.Eguardei nobolsooprojetorderaios.
Masorecém-chegadonãofalouenemouviqualquerruídonosmomentosseguintes. Tudo era uma sombria pantomima, como se contemplada de umavastadistânciaatravésdeumaneblinainterposta—malgrado,poroutrolado,orecém-chegadoetodososquevieramdepoisaparecessemgrandesepróximos,como se estivessem a um só tempo próximos e distantes, obedecendo a umageometriaanormal.
O recém-chegado era umhomemmagro emoreno, de estaturamediana,vestidocomumtrajeclericaldaIgrejaAnglicana.Aparentavaunstrintaanosetinhaapele lívida,olivácea, eumaagradável fisionomia, emboraa testa fosseanomalamentealta.Seucabelonegroestavabemcortadoepenteado.Exibiaumqueixo bem escanhoado,malgrado azulado pelo denso crescimento dos pelos.Usava óculos sem moldura e com arcos de aço. Sua compleição e ascaracterísticasdaparteinferiordafaceeramcomoasdosdemaisclérigosqueeujá vira, mas sua testa era muito alta, e ele tinha uma aparência sombria einteligente, mas, ao mesmo tempo, sutil e secretamente malévola. Nessemomento—acabaraeledeacenderumalâmpadadeazeite—,parecianervoso.E,antesqueeuopercebesse,elepusera-sealançartodososlivrosdemagianachaminé que havia junto à janela do quarto — onde a parede se inclinavaacentuadamente —, a qual eu não notara antes. As chamas devoravam osvolumes avidamente, subindo com cores estranhas e despegando um odorindescritivelmentehorrendo,enquantoaspáginasdemisteriososhieróglifoseasencadernações carcomidas eram consumidas pelo elemento devastador.Observei,então,quehaviaalioutroshomens,todosdeseveraaparênciaeroupasclericais,eentreeleshaviaumqueusava lençoecalçõescompridosdebispo.Emboraeunadaconseguisseouvir,noteiqueelesestavamtrazendoumadecisãodeimensaimportânciaaoquechegaraprimeiro.Elespareciamodiá-loetemê-lo
aomesmo tempo, e estemesmo sentimento parecia ser retribuído.Oprimeiroclérigomantinhanafaceumaseveraexpressão.Masnoteiqueasuamãodireitatremia enquanto tentava segurar o espaldar de uma cadeira. O bispo apontouparaasprateleirasvaziaseparaachaminé—ondeaschamashaviammorridosob uma massa carbonizada e informe —, e parecia dominado por umarepugnânciapeculiar.Oprimeirodos recém-chegadosentremostrou, então,umsorrisoretorcido,elevouamãoesquerdaaopequenoobjetosobamesa.Todospareceram sobressaltar-se. O cortejo de clérigos começou a desfilar pelasíngremesescadas,descendoporumalçapãonochão,e,enquantodesapareciam,voltavam-separaoqueficavafazendogestosameaçadores.Obispofoioúltimoasair.
Oprimeirodosrecém-chegadosfoiatéumarmárionofundodasalaetirouum rolo de corda. Subiu numa cadeira, amarrou uma ponta a um gancho quependiadagrandevigacentraldecarvalhonegroecomeçouafazerumlaçonaoutra extremidade. Percebendo que ele estava prestes a se enfocar, corri paradissuadi-loousalvá-lo.Elemeouviuesuspendeuospreparativos,olhandoparamim com uma espécie de triunfo que me confundiu e perturbou. Desceulentamente da cadeira e pôs-se a deslizar emminha direção, com um sorrisovisivelmentelupinoemsuafacemorenadelábiosfinos.
Senti queme encontrava emperigomortal e tirei o estranho projetor deraioscomoarmadedefesa.Porqueeupenseiqueoprojetorpoderiameajudar,nãosei.Lanceiofeixeemcheioemsuacaraevisuapálidafisionomiarefulgircom uma luz violeta, seguida por outra rosada. Sua expressão de exultaçãolupina cedeu lugar a outra de profundo temor, que não fez, todavia, apagarcompletamenteo regozijo.Estacoue, agitando freneticamenteosbraçosnoar,começouaretroceder,cambaleante.Viqueseaproximavadoalçapãoaberto,etenteigritarparaalertá-lo,maselenãomeouviu.Uminstantedepois,voltouacambalearparatrásecaiupelaabertura,desaparecendodeminhavista.
Tivedificuldadedememoveremdireçãoaoalçapãodaescada,mas,aochegar,nãoencontreinenhumcorpoesmagadonoandardebaixo.Emvezdisso,chegou-me o barulho de pessoas que subiam com lanterna. O momento desilêncioespectralhaviasidoquebrado,enovamenteeuouviasonseviafigurasnormalmente tridimensionais. Algo havia atraído, evidentemente, a multidãoparaesselugar.Houveraalgumbarulhoqueeunãotinhaouvido?Agora,osdoisdos homens— simples aldeões, aparentemente— que lideravam a comitiva,vieramdelongeeficaramparalisados.Umdelesgritouestrondosamente:
—Ah,évocê?Novamente?
Emseguida,elestodosseviraramefugiramfreneticamente.Todos,menosum. Quando a multidão desapareceu, vi o homem circunspecto, de barbagrisalha, que me trouxera àquele lugar, de pé, sozinho, com uma lanterna.Olhava-meboquiaberto, fascinado,massem temor.Depois, começoua subiraescadaesejuntouamimnoático.Disse-me:
— Então você não deixou isto aqui em paz. Sinto muito. Sei o queaconteceu. Já ocorreu anteriormente,mas o homem se assustou e atirou em simesmo.Eunãodeviatê-lofeitovoltar.Vocêsabeoqueelequer.Masnãodeveficar com medo, como ficou o outro homem. Algo muito estranho e terrívelaconteceucomvocê,emboranãotenhaidolongeosuficienteparalheprejudicaramenteeapersonalidade.Sevocêmantiveracalmaeaceitaranecessidadederealizar determinados ajustes radicais em sua vida, poderámanter o direito dedesfrutar domundo e do fruto de seu saber.Mas você não pode viver aqui, eacho que você vai querer voltar para Londres. Eu o aconselho a partir para aAmérica.
“Vocênãodevetentarmaisnadacomesse...objeto.Nadapodevoltarasercomoantes.Fazer—ouinvocar—qualquercoisasomenteirápiorarascoisas.E não está tãomal comopoderia ter ficado.Mas temque ir embora daqui deumavezepermanecerdistantedestelugar.Edêgraçasaoscéusporelenãoteridomaislonge...
“Vouprepará-loparaopior,damelhorformaquepuder,massemrodeios.Houveumamudançaemseuaspectopessoal.Elesemprefazisso.Masemumnovopaís,vocêpoderáacostumar-secomamudança.Há,nooutroextremodoquarto,umespelho.Euvoulevá-loaele.Vocêvailevarumchoque.Masnãolheserárepulsivo”.
Agoraeutremiadeummedomortaleohomembarbudoquasequetevedesegurar-seenquantomeacompanhavaatéoespelho,comumafracalâmpada(ouseja,aqueanteriormenteestavasobreamesa,nãoaaindamais fraca lanternaqueeutrouxera)emsuamãolivre.Eoqueeuvinoespelhofoiisto:mhomemmagro e moreno, de estatura média, vestido com um traje clerical da IgrejaAnglicana,comcercadetrintaanos,usandoóculossemmoldurasedearcosdeaço,cujosvidrosbrilhavamsobasuafrontepálida,olivácea,anomalamentealta.
Eraosilenciosoprimeirorecém-chegadoquehaviaqueimadooslivros.
Paratodoorestodeminhavida,externamente,euiriaserestehomem.
SOBREOAUTOR
Oescritornorte-americanoHowardPhillipsLovecraft (1890—1937) éum dos grandes nomes da literatura fantástica do século XX. Extremamenteoriginal,criouumpanteãodeseresfantásticosemonstruosos—comoCthulhu,AzathotheYog-Sothoth—queprecederamahumanidade,eestãopresentesemdiversasnarrativasdeterroreficçãocientíficaescritasentre1926e1935.Alémde narrativas alusivas aosMithos deCthulhu,H. P.Lovecraft deixou diversoscontosterrorigualmenteperturbadores,denaturezagótica,oníricaemetafísica.
O caráter onírico de “OClérigoMaligno” é perfeitamente explicável.Anarrativa constitui-se em um trecho de uma carta que Lovecraft escrevera aoamigo Bernard Austin Dwyer, contando-lhe um sonho que tivera. Após suamorte,o texto foipublicado,comoumconto,naantologia“Contosestranhos”(WeirdTales,1939).
Notes
[←1]PhilippusAureolusTheophrastusBombastusvonHohenheim,ditoParacelso(1493–1541),médico,cientista,alquimistaeocultistasuíço.
[←2]Santo AlbertoMagno (c. 1193 – 1280), doutor da igreja, filósofo e teólogo alemão, que se teriadedicadoàAlquimiaeàAstrologia.
[←3]JohannHeidenberg(JohannesTrithemius)(1462-1516),mongeeeruditoalemão,foiocriadordaesteganografia (técnicadeescrita criptográfica).Foioautordoprimeiro livro sobreopersonagemFausto,médico,magoealquimistaalemãoquevendeuaalmaaodiaboemtrocadeconhecimentoilimitadoeprazeresmundanos.
[←4]Hermes Trismegisto é o nome grego dado pelos neoplatônicos, místicos e alquimistas ao deusegípcioThoth, identificadocomodeusgregoHermes.Seriao autordoCorpusHermeticum, umasériedetextossagradosqueconstituemabasedohermetismo.
[←5]PierreBorel(PetrusBorellius)(c.1620–1671),alquimista,médico,químicoebotânicofrancês.