Hermenêutica Digital: Um Esboço
Rafael CapurroInternational Center for Information Ethics (ICIE)Distinguished Researcher in Information Ethics, School of Information Studies, University of Wisconsin-Milwaukee, USA
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Sumário
Introdução
Hermenêutica e a Internet
Ontologia Digital e Metafísica Digital
Conclusão
Referências
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Introdução
Vivemos em sociedades cujos sistemas políticos, jurídicos, militares, culturais e econômicos baseiam-se na comunicação digital e em redes de informação, ou em sociedades que estão fazendo grandes esforços para transpor a chamada exclusão digital
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Introdução
Talvez seja essa uma razão pela qual a hermenêutica, a teoria filosófica que trata dos problemas de interpretação e de comunicação, tenha aparentemente perdido o interesse acadêmico obtido no século XIX como metodologia das humanidades e como compreensão da existência humana no século XX.
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Introdução
A hermenêutica enfrenta hoje o desafio decorrente da tecnologia digital, se tornando o que eu chamo hermenêutica digital.
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Introdução
O desafio da Internet para os hermeneutas se refere principalmente à sua relevância social para a criação, comunicação e interpretação do conhecimento. Este desafio implica em um questionamento da rejeição pseudo-crítica dos hermeneutas em relação à tecnologia em geral e à tecnologia digital em particular.
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Introdução
Para enfrentar o desafio digital, os hermeneutas devem desenvolver uma “lógica produtiva” (Heidegger) para a compreensão dos fundamentos da tecnologia digital e da sua interação com a existência humana.
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Hermenêutica e a Internet
À medida que a Internet, e particularmente a World Wide Web, se tornou uma tecnologia de informação e comunicação sócio-interativa em meados da década de 90, a relevância do seu desafio para a hermenêutica se tornou ainda mais óbvia.
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Hermenêutica e a Internet
Como metáfora do processo de construção social, a pré-compreensão moderna centrada no motor foi substituída pela de rede, entendida como tecnologia e como um meio de comunicação.
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Hermenêutica e a Internet
O que há de novo em relação à hermenêutica digital? Acredito que estamos lidando com dois lados de um único processo de enfraquecimento da tecnologia moderna. De um lado há um enfraquecimento do intérprete que encontra a si mesmo no interior de uma rede que ele apenas parcialmente pode controlar
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Hermenêutica e a Internet
Por outro lado, a tecnologia da informação é uma tecnologia fraca à medida que ela lida com “conversações da humanidade” (Rorty), agora baseada em sujeitos interligados, um oxímoro do ponto de vista do sujeito autônomo construído pela modernidade européia.
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Hermenêutica e a Internet
A Internet trouxe mudanças em nossa experiência espaço-temporal social dificilmente imaginadas há algumas décadas. Seria ingênuo falar sobre essa tecnologia somente como uma ferramenta sem levar seriamente em consideração seu impacto em todos os níveis do nosso ser-no-mundo.
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Hermenêutica e a Internet
A hermenêutica digital se ocupa em como o código digital está sendo interpretado e implementado (ou não) nas sociedades globalizadas do século XXI.
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Hermenêutica e a Internet
Ela trata dos processos relacionados com a rede digital no nível social, com sistemas autônomos de interpretação, comunicação e interação (robótica), bem como com todos os tipos de sistemas biológicos híbridos (biônica) e da manipulação digital em nível nano.
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Hermenêutica e a Internet
Em um mundo digitalmente globalizado com sociedades pautadas em redes digitais sem um meta-sistema fixo, questões como a da busca pelo critério de verdade ou legitimação ética e política se tornam um ponto chave da inovação tecnológica.
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Hermenêutica e a Internet
Essas questões concernem à polarização, aos mal entendidos, conflitos, oposições, conjunções, ambições, interesses e ilusões em relação aos processos de compreensão em um nível local e global.
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Hermenêutica e a Internet
Mas o impacto da comunicação digital vai muito além de tal sistema global à medida que ela implica em uma perspectiva metodológica que transforma a biologia genética em uma tecnologia que visa a transformação artificial de seres vivos, a física atômica em uma tecnologia que visa a manipulação do suporte material de todos os seres no nível mais básico.
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Hermenêutica e a Internet
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Ontologia Digital e Metafísica Digital “Tudo se manifesta como bits enquanto nos
mantivermos inquestionavelmente “incorporados” no projeto digital (digital casting). Mas o que significa que tudo apareça como um bit? Precisamente esta visão do ente na totalidade – em que apenas admitimos que algo é em seu ser se o compreendemos de encontro ao horizonte do logos digitalmente funcionalizado - representa o impulso (encasting) central do projeto de tese de uma ontologia digital” (Eldred 2001)
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Ontologia Digital e Metafísica Digital O ponto principal diz respeito à palavra
“inquestionavelmente” que faz toda a diferença entre a ontologia digital, como uma possível e, de fato, a atual interpretação ubíqua do ser, e a tese metafísica, segundo a qual o digital é o real
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Ontologia Digital e Metafísica Digital Uma versão epistemológica (mais fraca)
desta tese é: as coisas são (entendidas) na medida em que somos capazes de digitalizá-las. A ontologia digital é ubíqua no sentido de não ser necessário que as pessoas a ela adiram conscientemente. Ela tem a tendência, como toda ontologia, a se tornar aparentemente a única perspectiva verdadeira.
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Ontologia Digital e Metafísica Digital A hermenêutica digital tem uma dupla
ligação em relação ao código lingüístico e matemático. Ela visa traduzir e interpretar o logos e o arithmos no domínio humano, mas sem ser restrita a esta esfera.
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Ontologia Digital e Metafísica Digital Ela também lida com a interpretação digital e
com a construção de processos naturais e vice versa: o horizonte do digital não é o único possível para a realidade que se des-vela – incluindo tanto a existência humana como a natureza – ou a “verdade” do ser em termos heideggerianos.
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Ontologia Digital e Metafísica Digital Acredito que vivemos numa era na qual, a
partir de uma perspectiva digital, o sentido do ser é amplamente interpretado como o Zeitgeist das sociedades pós-industriais.
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Ontologia Digital e Metafísica Digital As conseqüências da metafísica digital
podem ser devastadoras, assim como foram descritas, por exemplo, por Albert Borgmann em Holding on to Reality (2000).
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Ontologia Digital e Metafísica Digital A resposta de Borgmann para o desafio da
“hiperinformação utópica” – seria melhor chamá-la de “hiperinformação disutópica” – não é um livro menos utópico da cultura. Todo pensar dualista é perigoso na medida em que descuida da ambigüidade de ambos os lados e de outras possibilidades no entremeio.
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Ontologia Digital e Metafísica Digital A “leveza” da tecnologia digital se tornou
parte da gravitação da vida cotidiana, a qual é também gravitação do mercado. Tudo, inclusive nosso corpo, pode ser objeto de digitalização e se torna matéria de transações econômicas baseadas na fluidez espaço-temporal da esfera digital.
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Ontologia Digital e Metafísica Digital Um pensamento similarmente dualístico
pode ser encontrado no livro de Hubert Dreyfus On the Internet: por um lado, há a Internet que inclui virtualidade, estética, anonimato, conhecimento, o infinito, invulnerabilidade, desvinculação e o observador; enquanto, por outro lado, há a realidade, a ética (e a religião), o compromisso, o corpo, a finitude, a vulnerabilidade, a responsabilidade e a ação.
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Ontologia Digital e Metafísica Digital Em Ser e Tempo Heidegger se refere à
compreensão humana como um círculo que não é um circulus vitiosus, mas um círculo hermenêutico e produtivo. O que é crucial não é sair do círculo, mas entrar “de modo adequado”.
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Ontologia Digital e Metafísica Digital Hoje este círculo se caracteriza pela
hibridização do digital em todos os níveis da existência humana e de auto-avaliação. As sociedades no século XXI buscam o “modo adequado” para entrar na rede digital. Isso significa que o círculo hermenêutico, como uma metáfora chave da hermenêutica filosófica, deveria ser reinterpretado como uma rede hermenêutica.
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Ontologia Digital e Metafísica Digital E isso leva a uma mudança de outra idéia
central da hermenêutica, a saber, a idéia gadameriana de “fusão de horizontes”. Não é somente uma “fusão”, mas uma “conexão” que caracteriza a relação entre os mensageiros da rede digital que precisam se ligar uns aos outros por meio do que a teoria dos sistemas chama de “oferta de sentido (Luhmann).
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Ontologia Digital e Metafísica Digital Nesse sentido, a hermenêutica digital
transcende a tarefa clássica da hermenêutica como uma teoria da interpretação e descobre sua própria dimensão oculta como uma teoria das mensagens ou angelética (do grego ‘angelia’= mensagem). Não há interpretação sem uma “oferta de sentido”.
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Ontologia Digital e Metafísica Digital A hermenêutica digital e a cibernética de
segunda-ordem caminham juntas. Enquanto no último século as mídias de massa puderam dar a impressão de que eram uma espécie de meta-observador que garantiria uma visão objetiva de todos os sistemas sociais, hoje esta visão se tornou problemática.
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Ontologia Digital e Metafísica Digital Esta é a principal lição trazida pela Internet
como uma tecnologia interativa que transforma todos os receptores das mensagens das mídias de massa em potenciais mensageiros para além da tecnologia de um-para-um do telefone.
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Ontologia Digital e Metafísica Digital O telefone celular como dispositivo móvel
ligado à Internet desafia nossas concepções de liberdade e mobilidade espacial, de independência e vulnerabilidade, de proximidade e distância, de público e privado, de estar ocupado ou disponível, de produção e consumo, de masculino e feminino.
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Ontologia Digital e Metafísica Digital Concebido deste modo, na atual sociedade
de mensagem o telefone celular é um dispositivo eminentemente existencial ou ‘ontológico’. Trata-se de um insight hermenêutico que hoje se torna manifesto em toda a sua relevância global e local
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Ontologia Digital e Metafísica Digital Outro tópico chave da hermenêutica, ou seja,
a relação entre o todo e suas partes, está se transformando, pela rede digital, em relação à possibilidade de se ter uma visão global de seu objeto de estudo.
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Ontologia Digital e Metafísica Digital A hermenêutica digital questiona a
obviedade dessas visões totalitárias. Pode-se olhar para o todo (totum) de diferentes perspectivas, mas não ao mesmo tempo (non totaliter).
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Conclusão
A tarefa da hermenêutica na era digital é dupla, a saber: pensar o digital e, ao mesmo tempo, ser dirigida por ele. A primeira tarefa leva à questão sobre de que modo o código digital em um impacto sobre todos os tipos de processos, em particular os sociais.
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Conclusão
Neste sentido, a hermenêutica digital está no cerne da ética da informação entendida como a reflexão ética sobre as regras de comportamento subjacentes à rede digital global, incluindo sua interação com outros sistemas sociais, assim como com processos naturais.
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Conclusão
A segunda tarefa se refere ao desafio do digital em relação à auto-interpretação dos seres humanos em todas as suas dimensões existenciais, particularmente a dos seus corpos, de sua autonomia, seu modo de conceber e de viver no tempo e no espaço,
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Conclusão
suas disposições de ânimo e sua compreensão de mundo, a construção de estruturas sociais, sua compreensão da história, sua imaginação, sua concepção de ciência, suas crenças religiosas.
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Conclusão
Quem somos nós enquanto humanidade? O que significa para a humanidade ser
transformada através do código digital? Quais são as consequências
epistemológicas, ontológicas e éticas?
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Conclusão
Como as culturas humanas se tornam híbridas e em que sentido esta hibridização afeta a interação com processos naturais e sua interação com a produção e o uso de todo tipo de produtos artificiais numa economia digital?
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Conclusão
Estas questões vão muito além do horizonte da hermenêutica clássica como teoria da interpretação de texto, como vão além da hermenêutica filosófica clássica que lida com a questão da existência humana independentemente do impacto ubíquo da tecnologia digital.
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Conclusão
A hermenêutica se compreende mal se não atentar ôntica e ontologicamente para a tecnologia digital e seu impacto avassalador sobre nossas vidas.
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Referências
Ver publicação original em Ethics & IT (2009)http://www.springerlink.com/content/a74655j48kpv7482/?p=7c31f3d26055413caba807d37490815d&pi=22
Veja também: http://www.capurro.de/digitalhermeneutics.html