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Histórias Associativas

Date post: 06-Apr-2016
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O movimento associativo constitui uma das principais riquezas da identidade cultural do concelho do Seixal. Há mais de 150 anos que as coletividades são prestigiados polos de criatividade, de desenvolvimento das artes e das letras, de formação pessoal e social, de consciencialização cívica e política. Ao editar este livro de memórias, a Câmara Municipal do Seixal homenageia os que com o seu trabalho, sensibilidade e espírito de luta deram vida ao inestimável património cultural criado pelas coletividades de cultura e recreio do município.
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As Filarmónicas Fernando Fitas Histórias Associativas Memórias da Nossa Memória
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As Filarmónicas

Fernando Fitas

Histórias Associativas

Memórias da Nossa

Memória

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FICHA TÉCNICA

Título: Histórias Associativas - Memórias da Nossa Memória As FilarmónicasAutor: Fernando FitasApoio redactorial: José Augusto CarvalhoCoordenação de edição: Maria Teresa Ré Concepção gráfica e revisão: Sector de Apoio Gráfico e Edições da CMS© Câmara Municipal do SeixalCedência de imagens: Arquivos da Sociedade Filarmónica Democrática Timbre Seixalense,Sociedade Filarmónica União Seixalense, Sociedade Filarmónica União Arrentelense, Sociedade Filarmónica Operária Amorense e Sociedade Musical 5 de OutubroParticularesCentro de Documentação e Informação do Ecomuseu MunicipalArquivo Histórico MunicipalImpressão e acabamento: Estúdios Fernando Jorge, Artes Gráficas Lda.1ª Edição: Abril de 2001Tiragem: 5000 exemplaresISBN: 972-9149-86-0Depósito Legal nº 164564/01

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Índice

Prefácio......................................................................................................5

Antes de Tudo............................................................................................7

Nota de Abertura......................................................................................9

Sociedade Filarmónica Democrática Timbre Seixalense...................................................................................11

Sociedade Filarmónica União Seixalense.....................................................................................27

Sociedade Filarmónica União Arrentelense.................................................................................41

Sociedade Filarmónica Operária Amorense.................................................................................61

Sociedade Musical 5 de Outubro............................................................................................87

Breves notas biográficas.......................................................................121

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PrefácioCriadas no século XIX, durante a monarquia constitucional, as associações de raiz popular começaram a

surgir, no concelho do Seixal, como resposta às necessidades culturais e associativas de uma comunidade, origi-nariamente rural e piscatória, à qual as estruturas governamentais não reconheciam interesses nos domínios da instrução e da cultura.

Ainda nesse século, com o avanço da industrialização, novas colectividades foram fundadas por operári-os, ligados a unidades industriais que se iam instalando no Concelho.

As mudanças ao nível social, económico e político reflectiam-se no desenvolvimento e no quotidiano dos indivíduos, traduzindo-se nas práticas desenvolvidas pelos agentes sociais. As desigualdades na distribuição dos recursos do País, reflectindo a enorme diferença de qualidade de vida entre a classe dominante e a pequena burguesia em conjunto com as classes trabalhadoras, aproximaram as comunidades localmente enraizadas dos núcleos de operários que vinham em busca de uma vida melhor, propiciando a criação de associações assentes nos ideais da solidariedade, da cooperação e da democracia.

Integrando, por vezes, uma vertente de solidariedade e ajuda mutualista, estas instituições consti-tuíram, durante décadas, verdadeiros centros populares de formação e informação, de educação e de cultura dos valores comunitários.

Tornaram-se, assim, prestigiados pólos de criatividade, de desenvolvimento das artes e das letras, de formação pessoal e social, de consciencialização cívica e política. Aí se desenvolveram as artes populares como a música e o teatro, se instalaram bibliotecas, se realizaram debates e tertúlias.

Até à Revolução de 25 de Abril de 1974, estas Sociedades de Instrução e Recreio constituíram uma ver-dadeira alternativa à escola pública, nos meios rurais e operários. A perspectiva da colectividade educadora funda-se, justamente, nos numerosos testemunhos orais e escritos de autodidactas que aí adquiriram e desen-volveram os seus conhecimentos, originando a designação po-pularizada de “universidades do povo”.

Ao editar este livro de memórias dedicado às Sociedades Filarmónicas, a Câmara Municipal do Seixal propõe-se homenagear aqueles que com o seu trabalho, sensibilidade e espírito de luta deram vida e desenvolv-eram o inestimável património cultural que constituem as Colectividades de Cultura e Recreio do Município.

Organizado cronologicamente pelas datas da fundação das colectividades, o livro é integralmente dedicado às associações centenárias que originaram as Bandas Filarmónicas, em funcionamento no Concelho há mais de um século.

Trata-se de uma obra testemunhal, decerto não exaustiva devido aos inúmeros imponderáveis que condicionaram a recolha, e sem qualquer pretensão de rigor histórico. É um registo de memórias coadas pelo tempo, reflectindo emoções e vivências pessoais de protagonistas associativos, ou de pessoas suas próximas ainda vivas, referentes, principalmente, à primeira metade do século xx.

Nela podemos encontrar um conjunto de testemunhos sobre acontecimentos vividos na Sociedade Filarmónica Democrática Timbre Seixalense, na Sociedade Filarmónica União Seixalense, na Sociedade Filarmónica União Arrentelense, na Sociedade Filarmónica Operária Amorense e na Sociedade Musical 5 de Outubro, cinco colectividades centenárias conhecidas pelas suas Bandas Filarmónicas, Orquestras de Jazz, Grupos Cénicos e iniciativas culturais diversas, construindo uma sólida tradição, principalmente no domínio da música, que se mantém viva até hoje.

Lançamos hoje o primeiro volume de Histórias Associativas, colecção destinada a recolher testemunhos vivos e a enriquecer o acervo da memória das Colectividades de Cultura, Recreio e Desporto do concelho do Seixal.

Câmara Municipal do Seixal

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Antes de TudoA elaboração deste primeiro volume de Histórias Associativas constituiu uma tarefa extremamente

gratificante para quem nela se envolveu. Este trabalho pretende registar recordações, memórias e vivências de homens e mulheres ligados por laços afectivos ou por militância cultural às colectividades do concelho do Seixal.

Para que estas memórias da nossa memória colectiva não se ficassem pelo mero plano das intenções e adquirissem uma inequívoca expressão real, muito contribuíram todos aqueles que, sendo conhecedores de histórias sobre a sua colectividade, prontamente se predispuseram a colaborar, relatando episódios de que foram testemunhas ou deles tiveram conhecimento por familiares, amigos, consócios ou vizinhos.

O mesmo se dirá de quantos, tendo dirigido essas agremiações em anos já distantes, imediatamente se prontificaram a contar as suas experiências, enriquecendo ainda mais a natureza deste repositório, porque lhe acrescentam, de viva voz, a substantiva dimensão humana que caracteriza estas gentes.

A todos eles, o nosso profundo reconhecimento pelo testemunho do valioso contributo que deram, sem o qual, de resto, não teria sido possível realizar esta obra.

Bem hajam!

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Nota de AberturaO movimento associativo constitui uma das principais riquezas sobre as quais assenta a

identidade cultural do actual concelho do Seixal e dos seus habitantes. Esse vasto património, cuja construção se iniciou há mais de cento e cinquenta anos, reflecte ainda a pujança e a criatividade das gentes que, ao longo dos tempos, aqui se radicaram e dele fizeram um dos mais progressivos muni-cípios da Margem Sul do Tejo.

Antiga terra de pescadores, de calafates, de carpinteiros de machado e de operários vidrei-ros e corticeiros, o concelho do Seixal é, assim, um lugar que se orgulha do seu passado, nele reco-nhecendo preciosos e indispensáveis ensinamentos ao modo como tem sabido rasgar os cami-nhos que conduzem às alamedas do futuro.

Trata-se ainda de uma terra cuja memória colectiva resulta da capacidade interventiva evi-denciada, desde sempre, pelas suas instituições, na primeira linha das quais se encontram as colec-tividades, pólos aglutinadores de vontades e saberes, que sempre se afirmaram como os principais locais de reunião e de convívio das diversas gerações que, desde meados do século passado, por elas passaram.

Assumindo-se igualmente como espaços de amizade e fraternidade, as colectividades aca-bavam, afinal, por se transformar, bastas vezes, em centros de solidariedade, suprindo carências e dificuldades de um ou outro associado, sempre que a doença ou o infortúnio lhe batia à porta.

Era uma missão que, não obstante poder extravasar o âmbito dos próprios estatutos da agre-miação, frequentemente se observava, devido ao facto de, nessa época, o Estado pouco ou nada se importar com a saúde dos cidadãos, revelando, por isso, um alheamento quase total em matéria de assistência social.

Se é certo que o prestígio de que desfruta o movimento associativo seixalense se funda na sua força colectiva, não é menos verdade que, em muitos casos, esta resultou do empenho e da ima-ginação individual que muitos dos seus dirigentes e associados souberam evidenciar, em certos perí-odos da vida de cada uma das instituições.

Ora, sabendo como sabemos que a história oficial da generalidade das colectividades ape-nas assinala os acontecimentos que, do seu ponto de vista, maior relevância adquiriram no domínio da vivência colectiva que as caracteriza, poucas vezes regista as pequenas histórias individuais, muitas delas derivadas de uma profunda paixão associativa, que muito contribuiu para a elevação e dignificação das próprias colectividades.

É esse conjunto de testemunhos humanos, essa capacidade de entrega a uma causa, essa disponibilidade permanente de dar sem nada pedir em troca, a não ser a estima dos restantes consó-cios e o sentimento de ter concorrido para a projecção da sua associação e, por via dela, da própria terra, que aqui se reúne.

São, pois, algumas dessas pequenas histórias, que ora se publicam, ou, se se preferir, uma mão-cheia de subsídios que nos foram confiados por um significativo número de pessoas que, acre-ditando na nobreza dos valores do associativismo, a ele se dedicaram, doando-lhe o melhor do seu tempo, do seu saber e experiência e, nalguns casos, até, os poucos tostões que haviam amealhado ao cabo de uma vida de trabalho mal pago.

Naturalmente que tratando-se de uma recolha oral, efectuada ao longo de vários meses junto dos sócios mais antigos de cada uma das cinco sociedades filarmónicas existentes neste conce-lho (Sociedade Filarmónica Timbre Seixalense, Sociedade Filarmónica União Seixalense, Sociedade Filarmónica União Arrentelense, Sociedade Filarmónica Operária Amorense e Sociedade Musical 5 de Outubro), apresentará, certamente, algumas lacunas, desde logo porque, para além daqueles que se dispuseram a relatar-nos as histórias de que ainda se recordam, outros houve - felizmente poucos - que, refugiando-se num “não tenho nada de interessante para contar”, se furtaram a dar o seu contributo.

Apesar disso, procurou-se que a recolha realizada fosse o mais abrangente possível, embo-ra se admita poder haver alguém que, sabedor de episódios dignos de figurarem neste volume, nele não conste. Tal eventualidade, a acontecer, decorre, unicamente, da circunstância de o(s) seu(s)

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nome(s) não nos ter(em) sido referido(s) nos contactos estabelecidos com os dirigentes das aludidas sociedades e alguns dos seus mais antigos sócios.

Todavia, cremos que a diversidade de histórias, acontecimentos ou meros episódios que se conseguiram coligir, ao cabo deste período de busca, nos permitem supor que o resultado final con-corre para esboçar o retrato aproximado de quantos se empenharam na sublimação dos ideais asso-ciativos.

Não sendo ainda pretensão deste projecto reescrever a história de cada uma das colectivi-dades, mas, sim, cuidar da recuperação do valioso património humano, constituído pelas vivências e memórias dos seus mais dedicados associados, com estas se procura, objectivamente, salvaguardar o inestimável legado que esses homens e mulheres possuem; no fundo, preservar um pouco da própria história do Concelho, antes que a inexorável lei da vida tratasse de apagá-la.

Esse, foi, aliás, o grande objectivo do trabalho agora colocado à disposição da população do concelho do Seixal e de todos os interessados na história das suas colectividades, constituindo-se ainda, pela sua natureza, como a expressão de um reconhecimento público a todos quantos fizeram do movimento associativo uma das mais prestigiadas bandeiras desta terra.

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Sociedade FilarmónicaDemocrática Timbre Seixalense

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Memórias da casa mãedo movimento associativo seixalense

Fundada em 1848 por um punhado de ho-mens que se confessavam simpatizantes da Revolução Francesa, a Sociedade Filarmónica Democrática Timbre Seixalense é a mais antiga de todas as insti-tuições associativas do concelho do Seixal.

Local de convívio dos adeptos da Liberdade, da Fraternidade e da Igualdade, princípios que inspi-raram aquela revolução, esta agremiação manteve uma actividade regular até 1908, ano em que, por razões diversas, mormente as que se prendem com a cisão ocorrida, anos antes, no seio da sua massa asso-ciativa, praticamente se extinguiu.

Refundada em 1911, desde logo intentou afirmar-se como uma das entidades locais com maior proeminência no domínio da divulgação das diversas formas de criação artística, com especial saliência para o ensino da música e para o despertar do gosto pela leitura.

Não surpreende, assim, que tenha sido a pri-meira colectividade do Concelho a proceder à instala-ção de uma biblioteca, no âmbito da qual levaria a efeito, ao longo da sua existência, um vasto conjunto de eventos de relevante interesse cultural, social e político, actividade que manteve, até à data do encerramento da mesma biblioteca, já na década de setenta.

É o relembrar de muitos desses momentos de inquestionável brilhantismo na vida da Timbre que se pretende passar a letra de forma, colhendo, para o efeito, o depoimento de alguns dos homens que deles foram protagonistas e que, por isso, melhor os sabem recordar, salvaguardando, desse modo, o precioso legado humano de tão rica vivência.

Manuel de Oliveira Rebelo:“A Timbre sempre foi uma casa de cultura”

Considerado entre a massa associativa da Timbre Seixalense, como um dos mais distintos consócios, devido à sua enorme experiência da vida associativa e do vasto espólio de recordações que esse conhecimento lhe proporcionou, Manuel de Oliveira Rebelo, 79 anos, é um nome incontornável sempre que se inquire alguém sobre o património humano e cultural desta popular colectividade seixalense.

Neto de Manuel Joaquim de Oliveira, um pequeno industrial de moagem, que no final do século passado explorou, entre outros, o Moinho de Maré de Corroios, e que, nos momentos imediatos à refundação da agremiação, se afirmou como um dos seus grandes beneméritos, Manuel de Oliveira Rebelo ocupou, ao longo dos anos, vários cargos dirigentes na Timbre, facto que lhe per-mitiu adquirir um riquíssimo conjunto de memórias acerca de acontecimentos ocorridos na sua ‘segunda casa.’

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Aula de música com o professor António Silva

Biblioteca da Timbre

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Denotando uma postura de elevada dignidade e uma modéstia que, às vezes, surpreende, pela sua genuinidade, diz que o empenhamento com que sempre procurou servir a Timbre decorre do fervor associativo que, desde miúdo, se habituou a ver nos mais velhos e dos exemplos de dedi-cação que o próprio avô materno patenteava quando se tratava de prover às necessidades da insti-tuição, cujas fontes de financiamento, à época, eram apenas as que resultavam da quotização dos sócios e dos convívios culturais promovidos, na maior parte dos casos, no seu moinho.

“Um avô monárquicocom ideais progressistas”

“Das inúmeras iniciativas que ali tiveram lugar, recordo-me, entre outras, do memorável concerto que a extinta Banda de Sapadores dos Caminhos de Ferro, ao tempo, uma das mais importantes do País, deu naquele local”, diz. “Tal evento, deveu-se ao bom relacionamento que o então nosso maestro, tenente Domingos Maria Ferreira, tinha com os responsáveis daquele presti-giado naipe de excelentes músicos.”

Além desse, outros acontecimentos ali tiveram lugar. Entre eles, lembra ainda as grandes pescarias que se faziam. “Bastava um ou dois lan-ços no caboiço, a parte mais profunda da caldeira,

para encher uma lancha de peixe. E a receita prove-niente da sua venda revertia para a Timbre, em ordem a que esta pudesse suprir algumas das carên-cias com que se debatia”, afirma.

A permanente disponibilidade que seu avô evidenciava sempre que se tratava de obviar as faltas prementes ou de contribuir para o engrandecimento da Timbre - situação a que não era alheia a circunstância de possuir uma vida desafogada - fez com que os demais consócios o denominassem de “o pai da Sociedade Velha” epíteto com o qual procuravam testemunhar-lhe o seu reconhecimen-to.

A sua comparticipação financeira foi ao ponto de, durante largo período de tempo, assumir o pagamento da renda da Sede, dos honorários do mestre e dos instrumentistas que, para a realização de um ou outro concerto, tinham de ser contratados fora do quadro da Banda.

“Curioso será ainda referir”, adianta, “que, logo a seguir à implantação da República, ocor-reram, um pouco por todo o Concelho, diversos saques a casas particulares e mercearias, proprieda-des de simpatizantes da Monarquia. Ora, sendo meu avô um monárquico convicto, o certo é que os seus haveres nunca foram molestados, devido à sua postura benemérita e à consideração de que gozava junto dos habitantes do Seixal.

“O seu humanismo chegava ao ponto de, em épocas de crise, dar trabalho a quantos lho iam pedir, mesmo que para tanto tivesse que inventá-lo. Assim, foram os próprios republicanos que, desde logo, montaram guarda, tanto à sua residência como às suas instalações industriais, evitando, desse modo, que alguém se atrevesse a tocar, fosse no que fosse, que lhe pertencesse.

“Foram tempos de grande miséria, que afectavam, sobretudo, as pessoas de menores recur-sos, facto que impelia meu avô a não permitir que quem lhe batesse à porta, solicitando uma dádiva de farinha de milho ou arroz, voltasse de mãos a abanar. Logo, como é natural, era uma pessoa esti-mada por todos, independentemente das ideias que cada um professava”, lembra.

“Era, o que se pode chamar, um homem bom. Não obstante os seus ideais e a sua religiosi-dade, defendia, no entanto, algumas ideias caras aos republicanos, tais como a socialização dos meios de produção, pois, ouvi-o afirmar várias vezes, que os principais sectores da economia do País deviam ser pertença do Estado.”

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Antigo Coreto da Sociedade Filarmónica Timbre Seixalense

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Mas de outras histórias, envolvendo seu avô e através das quais se poderá aferir do cari-nho que este nutria quer pelas gentes da terra quer pela Timbre, se recorda, igualmente, Manuel de Oliveira Rebelo. Uma delas reporta-se à falta da verba necessária à conclusão da obra do antigo coreto do Largo da Igreja, realizada em 1905.

“Nessa ocasião”, recorda, “todos os associados da Timbre pretendiam que a inauguração tivesse lugar a 8 de Dezembro, dia de Nª. Srª da Conceição, situação que levantava uma certa angús-tia, tanto no seio da direcção como na massa associativa, por mor de não haver dinheiro que possibi-litasse a concretização desse sonho.

“Foi, então, que meu avô, numa das suas muitas manifestações de amor pela Colectividade, tomou a decisão de fazer avançar a obra, assumindo a responsabilidade pelo pagamento da impor-tância que faltasse. Desconheço o montante em causa mas o que é facto, é que o coreto foi inaugu-rado nesse dia, como todos ambicionávamos.”

Aos onze anosjá sabia música

Esse ambiente de paixão associativa que caracterizava o dia-a-dia da Sociedade e o gosto pela arte musical levaram Manuel de Oliveira Rebelo a inscrever-se na escola da banda - então designada de Cachapins - o que lhe permitiu saber tocar música antes do exame da antiga instrução primária. “Tinha, na altura, onze anos”, refere.

Todavia, a circunstância de em 1950 haver deixado de integrar os quadros da banda, por razões profissionais, não determinou o seu afastamento da colectividade. A sua ligação à Timbre permaneceu, através de uma empenhada participação nos órgãos sociais da agremiação em diversos mandatos, período durante o qual ocorreram importantes iniciativas de âmbito cultural, social e político.

De entre outras, releva o concerto de Carlos Paredes; o colóquio realizado com o poeta russo Ievtuchenko, no qual participou também o conceitu-ado jornalista e poeta José Carlos Vasconcelos; o concerto do Coro dos Amadores de Música, dirigido pelo maestro Fernando Lopes-Graça; as actuações da soprano Isaura Garriga e do maestro Artur Trindade, ou, ainda, um ou dois colóquios com Fernando Namora.

Na opinião de Manuel de Oliveira Rebelo, “estas realizações, que lotaram por completo o velho salão de festas, constituíram uma inequívoca prova de ousadia e destemor, uma vez que os seus interve-nientes, apesar de serem destacadas figuras da cultu-ra nacional e europeia, eram, como é óbvio, alvo da atenção dos responsáveis do regime que então nos governava.

“Tratava-se de pessoas que, por defenderem os valores da liberdade e da democracia, sofriam a contestação dos dirigentes do Estado Novo. Logo,

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Concerto de Carlos Paredes na Timbre

José Carlos Vasconcelos

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facultar-lhes a possibilidade de se exporem publicamente adquiria quase foros de ‘lesa pátria’, na perspectiva dos governantes da época”, salienta.

Esta capacidade de promover as mais diferentes formas de cultura e os seus criadores tornou a Timbre Seixalense num dos grandes pólos de atracção cultural, não só no Distrito como a nível nacional e, por maioria de razão, provocou-lhe uma constante perseguição.

Ameaças de encerramento da Sociedadeeram o pão nosso de cada dia

A vigilância de que eram objecto estas iniciativas, por parte da extinta polícia política, fez com que, diversas vezes, os dirigentes da Colectividade fossem chamados às autoridades e à Câmara, onde eram ameaçados e advertidos a parar com este tipo de acontecimentos, sob pena de a agremia-ção vir a ser encerrada.

“No entanto, essa antipatia não impediu que em dado período da história da Colectividade se vivesse uma fase de intensa actividade cultural, na qual colaborou, igualmente, o capitão Gonçalves Louro que logrou trazer ao Seixal, sob a direcção do maestro Pedro Blanco, a Orquestra Sinfónica da antiga Emissora Nacional, estação, nessa altura, presidida pelo capitão Henrique Galvão, que anos depois comandaria a tomada do paquete Santa Maria”, afirma Manuel de Oliveira Rebelo.

“Foi uma noite memorável, no decurso da qual actuou ainda a nossa banda que executou a Sinfonia Incompleta, de Shubert. O seu desempenho foi de tal ordem que, no final, Pedro Blanco subiu ao estrado a felicitar o nosso maestro, pela excelente exibição da nossa filarmónica, opinião, aliás, comungada pela generalidade dos críticos presentes (com excepção de Bourbon e Menezes), os quais sublinharam a boa execução a que haviam assistido”, garante.

“Tudo isto se deve ao facto de nesta casa terem trabalhado alguns dos mais distintos en-saiadores musicais desse tempo, designadamente o velho Fão, mestre da banda da GNR, à época considerado um mito, no domínio do ensino desta arte”, salienta Manuel de Oliveira Rebelo.

“Por todas estas razões, a Timbre sempre procurou comportar-se como uma verdadeira esco-la de virtudes e saberes, dando expressão aos sentimentos democráticos da sua massa associativa, situação que nos motivava a promover todo o tipo de festas que concorressem para a elevação dos conhecimentos de quantos a frequentavam.

“A única coisa que evitávamos, por respeito a nós próprios e à vontade dos sócios, eram sessões de propaganda política. Tudo o mais, encontrava na Sociedade Velha um espaço permanen-temente disponível à sua efectivação”, diz ainda Manuel Rebelo.

“A esse respeito, é oportuno, igualmente, recordar a conferência que o Professor Agostinho da Silva (impedido por Salazar de leccionar) aqui proferiu em 1943, a convite da Biblioteca. Foi uma impressionante lição de dissertação, pois durante duas horas discorreu sobre vários assuntos, sem que tenha repetido uma palavra e sem que se tenha enganado uma única vez. Embora soubesse que a sua palestra estava a ser atentamente ouvida, não apenas pelos nossos associados mas também por simpatizantes do regime”, acrescenta.

“Um discurso assente numa clarividência e numa fluência que a todos fascinou pela sua acessibilidade à compreensão de quantos assistiram à palestra, sendo a maioria deles operários com um baixo grau de instrução. Um exercício ao alcance apenas de quem possuía um superior grau de inteligência, ainda que a modéstia com que trajava não o desse a entender.

“Nunca ouvi ninguém falar tão bem”, garante Manuel Rebelo, que refere ainda ter no final da aludida dissertação perguntado à assistência se havia alguém que quisesse refutá-lo. “Nem Cosme Lopes, então presidente da Câmara e tido como bom orador, ousou esboçar qualquer intenção de contrapor fosse o que fosse. Ficou toda a gente calada. Nunca tinha visto nada assim!”.

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Vinda de Ievtuchenko ao Seixallevou Governo Civil a proibirsessões culturais na Timbre

A par desse, outros acontecimentos houve que permanecem ainda na memória do conhecido associativista, que desde muito jovem revelou um particular entusiasmo pelas coisas da cultura, motiva-ção que, de resto, o levou a integrar a comissão da biblioteca, a qual, por gozar de autonomia, lhe permi-tia chamar a si a responsabilidade de organizar todo o tipo de eventos culturais, que não apenas debates ou conferências, mas também Jogos Florais, iniciativa que, na época, assumiu uma certa relevância.

Segundo Manuel de Oliveira Rebelo, isto decorria do bom relacionamento que tinham com todas essas figuras, situação que os colocava numa posição privilegiada comparativamente às demais colectividades do Concelho e, nalguns casos até, a outros locais do País.

“Assim se explica que a primeira das várias sessões literárias realizadas por Ievtuchenko, na sua deslocação a Portugal, tenha ocorrido na Timbre”, sustenta.

Nesse serão, que reuniu um significativo número de poetas da região e outros vindos pro-positadamente de Lisboa, participou, também, o jornalista, prosador e poeta Fernando Assis Pacheco.

Mas, sem que nada o fizesse supor, visto que a sessão se havia realizado em clima de per-feita normalidade, no dia seguinte foram convocados a comparecer perante as autoridades para serem informados que a Timbre estava, a partir daquele momento, proibida de fazer sessões cultu-rais.

“É evidente que ficámos surpreendidos com tal notícia, sobretudo porque ao recebermos a informação para comparecermos na Câmara, desde logo, confiámos que seria para nos manifestarem o reconhecimento por termos logrado trazer ao Seixal um convidado de tão elevada dimensão. Nada disso. Foi para nos transmitirem esta ordem emanada do Governo Civil. Uma atitude caricata, reve-ladora de uma certa falta de senso”, afirma Manuel de Oliveira Rebelo.

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Visita do poeta soviético Evgeni Ievtuchenko àSociedade Filarmónica Timbre Seixalense

Manuel Rebelo e Evgeni Ievtuchenko

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Fomentar a culturaera uma coisa arriscada

Para ele, todos aqueles que, no quadro das colectividades, tentavam promover a cultura, passavam por momentos muito difíceis, pois tornava-se extremamente perigoso fomentar o gosto pela aquisição de novos conhecimentos. Vivia-se sob o risco permanente de encómios vários. Não podiam dar um passo sem receio de eventuais aborrecimentos e problemas.

“Só conseguimos inaugurar a biblioteca na Timbre, porque o acto foi presidido pelo então comandante da PSP de Setúbal, capitão Cardoso dos Santos. Até aí, todas as diligências que tínha-mos feito, nesse sentido, depararam sempre com obstáculos levantados pelas entidades oficiais que detinham essa competência”, conta.

A este propósito, convirá sublinhar que os principais entusiastas da fundação da biblioteca foram, para além dele próprio, Adelino Tavares e o quase iletrado Américo Capucho.

Ainda assim, nos dias que antecederam a referida inauguração, a sala foi revista por três vezes e retirados diversos livros.

Na óptica do conhecido associativista, são exemplos, por de mais evidentes, do grau de dificuldades vividas, mas, a seu ver, insuficientes para os forçar a baixar os braços. “Aliás, sempre demos a cara e nunca nos resignámos perante as adversidades que, dia após dia, se colocavam no

nosso itinerário”, diz.Paralelamente, estimularam a criação

de um grupo de teatro, denominado Os Impagáveis da Timbre, formado por amadores, alguns dos quais ainda são vivos, que atraves-sou um período de grande actividade cénica devido ao facto de as peças que representava assentarem no teatro musicado, tipo revista, género que gozava de grande aceitação junto da população da terra.

À frente da orquestra que constituía o elenco do referido grupo estava um grande amigo da Colectividade, António Fernandes Silva, formado na escola da Banda e que, mais tarde, seguiu a sua carreira musical na Banda da Marinha. Pessoa modesta, mas possuidora de

enorme talento, que chegava a remeter para segundo plano os seus interesses pessoais e familiares, quando estava em causa a Timbre.

De acordo com Manuel Rebelo, esse grupo de teatro, formado por associados da Colectividade, integrava Avelino Serra, Luís Rosa, José Calqueiro, os irmãos Tiago, Maria Antónia Zegre e Deolinda Caio, entre outros.

Resultante de uma profícua cooperação entre a Timbre e a Sociedade do Beato, bastas vezes o referido grupo representou nesta agremiação, ao mesmo tempo que a sua congénere se deslocava ao Seixal. Foi um período de grande actividade cénica.

“Por todas estas razões, a Timbre assume-se como um dos agentes que intervieram activa-mente no processo de construção da história do Concelho e o contributo que, ao longo de mais de uma centena e meia de anos, deu para a elevação cultural da sua população, até dada altura constituída, maioritariamente, por operários corticeiros e da construção naval, constituiu um valioso contributo para o esplendor da riqueza que o passado desta terra hoje evidencia”, remata Manuel de Oliveira Rebelo.

Memória viva deste concelho, não apenas pelo facto de nele haver nascido, mas ainda por-que ao longo da sua vida sempre procurou dar o melhor de si à dignificação da Colectividade a que pertence, e, por via dela, à dignificação da sua terra e à elevação dos seus conterrâneos. É ainda autor de uma monografia sobre o Seixal, intitulada Retalhos da Minha Terra, cuja primeira edição data de 1959.

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Grupo de teatro Os Impagáveis da Timbre

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Testemunha privilegiada de uma época áurea do movimento associativo seixalense, Manuel de Oliveira Rebelo é, afinal, o retrato fiel do espírito desse período já distante, mas que o tempo não logrou apagar do imaginário de quantos a viveram.

Figura respeitada em todos os círculos associativos do Concelho, coube-lhe ainda - por von-tade expressa dos trabalhadores - a função de os representar na comissão administrativa da extinta Fábrica Mundet, entidade para a qual trabalhou durante cinquenta anos.

Emílio RebeloUma vida dedicada à Timbre

Irmão de Manuel Oliveira Rebelo, Emílio O. Rebelo, 82 anos, é, tal como seu irmão, um homem que, desde criança, se habituou a tomar parte na vida da Timbre, sendo, por isso, também considerado entre os restantes consócios como um dos mais profundos conhecedores de histórias e episódios ocorridos na Colectividade.

Membro da antiga orquestra jazz Os Aranhas, constituída por músicos da Banda, e um dos criadores da tradicional Marcha das Canas, integrou diversas vezes a comissão da biblioteca, além de ter ainda desempenhado vários cargos directivos na Colectividade.

Integrado no entusiasmo associativo que animava os seus familiares, ao qual não era alheia a postura do avô e a forte influência que o mesmo exercia sobre os mais jovens, muito novo se asso-ciou na Timbre, onde começou a aprender música, decisão que encheu de contentamento o patriarca da família.

Inquirido sobre quais as iniciativas em que tomou parte, Emílio de Oliveira Rebelo garante ter participado em todos os eventos que, de 1927 a 1976, nela se realizaram, situação que o coloca como uma das testemunhas privilegiadas de tão importante período da história desta agremiação.

Tão empenhada participação determinou, de resto, que os seus pares lhe atribuíssem os títulos de sócio de mérito, de honra e honorário, enquanto a Federação das Colectividades de Cultura e Recreio o agraciava com a Medalha de Bons Serviços prestados ao movimento associativo.

Conforme sustenta Emílio de Oliveira Rebelo, a vida profissional, a partir de dada altura, não lhe permitiu que continuasse a dedicar à Colectividade o tempo que antes lhe concedia, situação que, conjugada com o facto de ter concluído ser chegada a hora de dar a vez a gente nova, com outras perspectivas, o levou a retirar-se de tão absorvente actividade.

“Promover a nossa terraera o grande objectivo”

Denotando uma evidente simplicidade, Emílio de Oliveira Rebelo diz que, não obstante os vários títulos com que foi distinguido, dois dos quais atribuídos pela edilidade, tudo quanto fez não teve como intuito obter honrarias pessoais, mas sim valorizar o nome da sua terra.

Essa foi a razão pela qual pertenceu aos corpos gerentes da Timbre durante trinta e quatro anos, porventura a época em que a Colectividade registou maior actividade cultural e lhe permitiu angariar um invejável pecúlio de recordações, cuja perenidade se mantém inalterável na sua memó-ria.

“Foram anos de grande enriquecimento humano que me conferiu uma experiência inco-mensurável do ponto de vista da convivência e da capacidade empreendedora do homem, sobretudo quando confrontado com a escassez de recursos financeiros, como era o caso, pois tratava-se de um período em que a generalidade da população local vivia com muitas dificuldades económicas”, salienta.

Ante este quadro, e considerando que a maioria da massa associativa da Colectividade dis-punha de parcos recursos, os seus dirigentes viam-se forçados a dar livre curso à imaginação, promo-

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vendo todo o tipo de iniciativas que possibilitassem a angariação das verbas tendentes às despesas decorrentes do normal funcionamento da actividade das várias secções.

Sem deixar de fazer alusão ao vasto conjunto de acontecimentos já relatados por seu irmão, porque se trata de vivências comuns, Emílio de Oliveira Rebelo adianta, no entanto, outros que re-puta de marcantes para a época. Tal é o caso da Banda da Timbre ter sido das primeiras filarmónicas a exibir-se num posto de rádio, acontecimento ocorrido quando ainda não havia a Emissora Nacional.

“E alguns anos depois desta ter sido fundada, demos aqui um concerto, apresentado pelo Fernando Peça, que foi radiodifundido para todo o País. Coisa que não estava ao alcance de qualquer um. Somente as formações possuidoras de uma certa qualidade se podiam orgulhar dessa honraria”, relembra.

Mais conta, que num concurso de bandas, organizado pelo Ministério do Interior e pela Câmara de Lisboa, o júri pretendia atribuir à Timbre o primeiro lugar, mas como a outra formação que com ela competia era a da Sociedade Humanitária de Palmela, ao tempo “dirigida por pessoas afectas ao regime”, os responsáveis pela promoção do certame decidiram optar por uma classificação ex-aequo.

“Uma medida que nos indignou de tal forma que nem a taça que nos cabia quisemos rece-ber. Como é de ver, essa legítima reacção motivou-nos alguns amargos de boca, em consequência das estruturas do governo de então a considerarem um acto de rebeldia”, adianta.

Actuação do Coro de Lopes-Graçalevou regime a fechar a Timbre

Esse foi, apenas, mais um dos muitos episódios que levaram os responsáveis da ditadura a observarem com desconfiança todas as iniciativas de âmbito cultural que a Timbre realizava, che-gando mesmo a mandarem encerrar a Colectividade num dos dias imediatos à realização de um recital do Coro dos Amadores de Música de Lisboa.

Essa decisão terá tido por fundamento a interpretação de uma canção com poema de José Gomes Ferreira, intitulada Papoilas Vermelhas cantada pelos elementos do coro e pelo público que o acompanhava até à paragem das camionetas para Cacilhas, situada no outro extremo da vila.

“Nesse espectáculo, participou ainda a actriz Maria Barroso que disse poemas de vários autores, cuja obra - de grande valor literário - era vista pelos titulares do regime obscurantista que nos governava como mera expressão de propaganda oposicionista”, refere.

Eram tempos difíceis aqueles, porque toda e qualquer realização levada a cabo pela Sociedade, quer se tratasse de exposições, conferências, espectáculos ou colóquios, obtinha logo a chancela de acções contra o Estado Novo, por força de nela se respirar um clima democrático, em respeito pela sua designação oficial - Sociedade Filarmónica Democrática Timbre Seixalense.

“Alvo, igualmente, de apertada vigilância da PIDE, foi uma exposição sobre a obra de Alves Redol, que algum tempo depois da sua morte decidimos levar a efeito”, rememora, como quem fo-lheia um invulgar livro de memórias.

“Essa mostra, que incluiu um ciclo de debates sobre o autor de Gaibéus e uma pequena feira do livro, na qual predominavam os títulos do consagrado escritor, acarretou-nos algumas chatices, posto que durante o período em que a mencionada exposição aqui permaneceu várias vezes fomos chamados para dar satisfações acerca das pessoas que participavam no ciclo de colóquios ou tão-só a eles vinha assistir”, realça Emílio de Oliveira Rebelo.

Uma dessas pessoas, sobre as quais foram inquiridos, era o malogrado médico José Malheiros, dentista no Laranjeiro e cabeça de lista da Oposição Democrática do Distrito, nas eleições de 1969.

“Neste caso, a inquirição resultou do facto do conceituado clínico, cuja presença nos passa-va, de todo, despercebida, se para ela não tivéssemos sido alertados pelos agentes presentes na sala, fundava-se no facto daquele haver adquirido um significativo conjunto de livros”, ironiza Emílio de Oliveira Rebelo.

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Uma multa de cinco contospor trazer Ievtuchenko ao Seixal

“Outra história ridícula prendeu-se com a aplicação de uma multa de cinco contos, por ter-mos convidado Ievtuchenko a dar uma conferência nas nossas instalações. O argumento então utili-zado para a penalização foi o de que a Sociedade apenas dispunha de autorização para bailes e jogos lícitos. Não sendo uma conferência poética enquadrável em nenhum deles, antes remetendo para a elevação cultural dos associados, a penalização encontrada foi a multa.”

De memórias outras se tece igualmente o seu depoimento. Entre elas, a mágoa que o inva-diu quando assistiu à demolição do coreto, para cuja construção o seu avô contribuiu decisivamente. “Foi uma decisão arbitrária, tomada em 1966, por um sujeito do Barreiro que durante alguns anos presidiu à Câmara, reveladora de uma confrangedora falta de respeito pelos sentimentos dos habi-tantes do Seixal”, assevera.

Da orquestra jazz Os Aranhasa criador da Marcha das Canas

Naquele espaço público de grande valor efectivo, tocaram Os Aranhas, orquestra jazz, cons-tituída por ele, José Calqueiro, Adelino Tavares - pai do vereador da Câmara Municipal com o mesmo nome -, João Tavares, José Mendes, Rafael Gonçalves e José de Oliveira Gomes.

Este conjunto de sete músicos, também membros da Banda, animava os bailes de Carnaval e os arraiais nos santos populares, gozando de grande popularidade, quer pela qualidade instrumen-tal quer pela qualidade do seu repertório, atributos que os levaram a percorrer Portugal de norte a sul.

“Interpretávamos as composições mais conhecidas dos grandes compositores de jazz da época: Glen Miller, Nil Armstrong, Bill Alley e todos os outros. Eram temas que colhiam o agrado da massa associativa, obrigando-nos a que, só em 1958, aqui actuássemos 27 vezes. E quando assumí-amos um compromisso com qualquer entidade estranha à Colectividade, tínhamos de contratar um agrupamento que nos substituísse”.

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Orquestra JazzOs Aranhas

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Enquanto recorda que todas as des-pesas decorrentes da contratação de outro agrupamento, a aquisição das partituras, etc., eram suportadas por ele e pelos demais músi-cos da orquestra. “Não fazia sentido que sendo os instrumentos com que tocávamos propriedade da Sociedade, esta suportasse os custos resultantes dos nossos impe-dimen-tos”, refere.

A intenção de constituir a orquestra surgiu no seio do corpo da Banda, de forma a responder a uma das necessidades com que a Timbre se confrontava, dotando-a de um agrupamento ligeiro que assegurasse a feitu-ra dos bailes, tão necessários às finanças da agremiação, e com a vantagem de não cons-tituir qualquer encargo.

“Assim, pedimos ao proprietário de uns armazéns, então existentes à entrada da Vila, que nos deixasse utilizar um espaço das citadas instalações para efectuarmos os ensaios. Ora, porque o local concedido estava pejado de teias de aranha e porque havia que atribuir um nome ao grupo, desde logo deci-dimos que o mesmo se chamaria Os Aranhas.”

Este género de formações, tão usual na época, constituía ainda uma forma de aperfeiçoamento das técnicas musicais.

“Além disso, era hábito os aprendi-zes, antes de integrarem a Banda, saírem à rua no 1º de Dezembro, para tocarem o hino da restau-ração, mas, como o Estado Novo proibira a sua execução e a consequente prossecução desse ritual, o mesmo sucedendo no 1º de Maio, não foi mais possível dar continuidade a essa tradição”, diz Emílio de Oliveira Rebelo.

Havia, assim, que encontrar maneira de contornar a situação, pelo que começaram a apro-veitar a quinta-feira da espiga para que, a pretexto da realização de piqueniques, a rapaziada mos-trasse os seus atributos.

“Foi num desses encontros, na Quinta do Lírio, que Arnaldo Tavares lançou a ideia de se organizar uma marcha pelo S. Pedro, à semelhança de uma brincadeira com canas feita, em Cacilhas, pelos habitantes da Ramalha, Cova da Piedade, numa ocasião em que regressava a casa depois de ter ido visitar um irmão que se encontrava hospitalizado.

“Discutida a ideia, concluímos que para a iniciativa colher a adesão popular, importava que o desfile, a par de incluir uma composição musical inédita, alusiva à terra, ocorresse às primeiras horas da manhã, de 29 de Junho, dia do feriado concelhio, para que nele se integrassem todos quan-tos, até esse momento, estivessem nos bailaricos que, nessa época, se prolongavam até cerca das sete horas”, esclarece.

Emílio Rebelo revela ainda que para o êxito dessa experiência muito contribuiu igualmente o facto de terem sabido aproveitar o rumo do tradicional cortejo que os foliões faziam a um poço, ao tempo, existente na Quinta Manuel André, onde iam lavar a cara, após uma noite de arraial.

Para tanto bastou que, na ponta de cada uma das canas, colhidas no denso canavial que ali despontava, se prendesse a toalha que cada qual levava para se limpar. No regresso, com as canas, as toalhas a substituírem os costumados arcos, toda a gente tomava parte no cortejo, desfilando ao som da marcha concebida propositadamente para o efeito.

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Marchas Populares nas Festas de S. Pedro, 1942

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Mais tarde, o trajecto passou a ser para a Quinta Grande, por mor de uma conversa havida com o descarregador da Mundet, João Maia, tido como o manda-chuva daquela quinta, local onde passou, então, a iniciar-se o desfile, que chegou a reunir mais de duas mil pessoas, como, aliás, suce-deu em 1971. Desta feita, até com carros alegóricos.

O agrado com que a iniciativa foi recebida por parte da população foi de tal ordem que durante largas dezenas de anos, Emílio de Oliveira Rebelo não teve outro remédio senão o de com-por, anualmente, uma nova marcha para ser tocada ao raiar do dia de S. Pedro, nas principais ruas do Seixal.

Segundo ainda confessa, embora esta manifestação tenha ficado conhecida por Marcha das Canas, a sua designação inicial, em 1950, era de Marcha das Camarinhas, mas, porque ninguém utilizava esta denominação quando a ela se referia, houve que acolher o nome que o imaginário po-pular intuitivamente lhe atribuiu.

De acordo ainda com esta destacada figura da Timbre Seixalense, para o importante suces-so alcançado, muito concorreu o talento poético de Francisco Nobre, António Mendonça e do capitão Louro, que neste dilatado período de tempo escreveram as respectivas letras, e a sensibilidade de António Fernandes Silva que fazia os arranjos orquestrais.

Sem deixar de relembrar que a canção que assinalou a subida do Seixal Futebol Clube à 1ª Divisão do Campeonato Nacional é de sua autoria, Emílio de Oliveira Rebelo sublinha que o objec-tivo que o levou a executar essa tarefa visou, mais uma vez, enaltecer o importante feito cometido pela mais representativa agremiação desportiva da sua terra natal. “Foi a minha maneira de, ainda que indirectamente, associar a Timbre a essa conquista”, adianta.

PIDE procurava intervirna vida das colectividades

Salientando o facto de os seus 82 anos não lhe permitirem gozar das mesmas faculdades doutros tempos, Emílio de Oliveira Rebelo sustenta que o sucesso das coisas radica no entusiasmo que as pessoas nelas colocam. “Nessa época, tudo quanto tivesse o intuito de promover o Seixal e os seus habitantes reunia o interesse geral. Logo, fácil se tornava levar a cabo qualquer projecto. O que nos dias de hoje nem sempre se verifica”, lamenta.

Ainda assim, anota que, não obstante se encontrar retirado da actividade associativa, tem procurado ocupar o seu tempo lavrando, em alguns jornais locais, o testemunho dessas vivências, de forma a deixar esse legado às gerações mais novas. No âmbito dessa tarefa, se inscreve uma biogra-fia de seu avô, trabalho que considera “um tributo prestado ao mérito de um homem a quem o Seixal muito deve” e um vasto conjunto de textos sobre a colectividade a que sempre pertenceu.

Expressando uma profunda mágoa por ter verificado que alguns dos antigos livros de actas da Colectividade levaram sumiço por “manifesta ignorância de algumas pessoas que passaram pelos corpos gerentes”, Emílio Rebelo acha que com tal desaparecimento desapareceu também uma parte importante da história oficial da agremiação.

“O que aqui sucedeu não é caso virgem, pois constata-se que o mesmo ocorreu noutras associações do Concelho”, atira.

“E sem essa documentação difícil se torna avaliar o funcionamento das colectividades há 40 ou 50 anos e a sua evolução até aos nossos dias. Felizmente, salvou-se o livro de ouro, o qual se encontra assinado por um vasto leque de personalidades que passaram pela Timbre. Entre elas, Fernando Namora e João de Freitas Branco, a par de todas as outras já mencionadas”, adianta.

A sua prodigiosa memória retém ainda as dificuldades que, volta não volta, se levantavam à constituição do elenco directivo, sempre que as autoridades de então vetavam, geralmente por razões de ordem política, o nome de algum dos elementos. “Esses contratempos aconteciam, porque, nessa época, havia a obrigatoriedade de enviar a lista dos corpos gerentes para a Câmara, Governo Civil e até para o Ministério da Educação Nacional, entidades que, depois de emitirem o respectivo parecer, a remetiam à PIDE, para decisão final”, conta.

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Numa dessas ocasiões, foi com o Tenente José Magro, ao tempo presidente da Câmara, à sede da daquela polícia saber dos fundamentos que tinham estado na origem do veto atribuído a um dos nomes constantes da lista. Por sinal, um dos seus companheiros da orquestra, situação que fez aumentar a sua estranheza.

“Tal estranheza era tanto maior, quanto era certo que se tratava de uma pessoa a quem, ninguém, de entre nós, tinha nada a apontar. Soubemos mais tarde que o motivo pelo qual o preten-diam cortar prendia-se com o facto de ter feito uma doação de vinte escudos, para a campanha lan-çada pelo jornal República para aquisição de uma rotativa. Uma intromissão na vida associativa que hoje dificilmente se poderia tolerar”, afirma.

De muitos outros episódios se compõe a história dessa intromissão, o mais frequente dos quais era o de prestar esclarecimentos sobre este ou aquele nome apresentado.

“Uma das pessoas sobre quem a PIDE nos pediu elementos foi o pai do Dr. Carlos Ribeiro, ex-bastonário da ordem dos médicos”, recorda com indisfarçável ironia.

Histórias que passaram à margem da história oficial da Colectividade mas através das quais se cimentou o forte espírito associativo que permitiu outras e ousadas iniciativas.

Uma emissão fantasmana Rádio Graça

Das que ainda lhe acodem à memória, retém, para além de Os Aranhas, a criação de uma orquestra de harmónicas, nos anos cinquenta, agrupamento que após alguns anos de actividade se extinguiria pouco tempo depois da sua saída.

“Chamava-se Os Timbrófilos e era constituído por tocadores de gaita-de-beiços, cavaqui-nho, viola e ferrinhos. Chegou mesmo a actuar na Rádio”, relembra.

Nesse tempo, actuar na Rádio significava como que a consagração de quem para isso fosse convidado, enchendo de contentamento, não apenas familiares e amigos mas a população de cada lugar de onde o artista fosse oriundo. A antiga vila do Seixal não fugia à regra, até porque o senti-mento bairrista se fazia sentir com mais acuidade do que nos dias que correm.

“Das vezes que tal aconteceu, quase todas as pessoas vieram para a sede da Sociedade tomar parte na audição. Para tanto, bastou que o anunciássemos junto do pessoal da Mundet, local onde trabalhava a quase totalidade da população e o centro das novidades da terra. E isto, porque poucos eram os que tinha ‘telefonia’, sendo que uma das primeiras a ser adquirida veio para a Timbre”, anota Emílio de Oliveira Rebelo.

Ante este cenário, uma ocasião lembrou-se, juntamente com três companheiros, de armar uma brincadeira, que consistia em fazer constar que Os Aranhas tinham sido convidados para dar um concerto na extinta Rádio Graça, às tantas horas de determinado dia. A notícia correu célere, mobi-lizando novos e velhos, levando-os a lotar o largo fronteiro à sede da Colectividade que ficou lotado logo que se aproximou a hora do suposto concerto.

Sabedores dessa realidade e do fervor bairrista que animava as gentes da localidade, cedo cuidaram de assegurar os meios que permitissem conferir àquela brincadeira um ar de coisa séria.

Assim, reuniram um disco contendo temas usualmente tocados na mencionada estação, um microfone e um amplificador que transmitia o som a duas colunas, colocadas na janela da casa onde vivia José de Oliveira Gomes.

“Pessoas houve que chegaram a comprar um aparelho para ouvir o concerto no recato do seu lar. Tudo correu às mil maravilhas, posto que nada fora deixado ao acaso. Inclusive, até se fez um teste ao material, tendente a confirmar se este estava em condições, em de forma a que o plano pudesse resultar. E no referido dia apresentámo-nos, horas antes, na Sociedade, devidamente far-dados, afirmando que íamos à Rádio Graça”, conta Emílio Rebelo.

Seguidamente, cada um ia saindo, como que na direcção da paragem da camioneta, esguei-rando-se para casa, logo que podia, a fim de mudar de roupa.

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“Toda esta mise en cène conferia à história um cariz de veracidade que desvanecia hipoté-ticas dúvidas, se as houvesse. E, na hora aprazada, começou a ‘emissão’ logo à hipotética hora de abertura da Estação. Para o efeito, até conseguimos arranjar, não só o genérico com que o menciona-do posto radiofónico iniciava a sua programação como ainda quem se fizesse passar por apresenta-dor, o qual anunciava a ‘actuação’”, revela Emílio de Oliveira Rebelo.

“A trapaça só se descobriu quando algumas pessoas, que haviam adquirido um aparelho, incrédulas com o facto de nada conseguirem ouvir, se deslocaram para o local e se apurou que nesse dia, por se tratar de uma quinta-feira, a mencionada estação não tinha emissão. Foi um fartote que nem queiram saber...!” Recorda com rasgado sorriso.

“Em Paio Pires, segundo informações ventiladas na altura, a Sociedade 5 de Outubro deci-diu, inclusive, organizar uma audição para os seus associados, com entradas pagas e tudo!” Conclui Emílio Rebelo.

Quando se apurou quem tinha estado envolvido na brincadeira, logo os elementos de Os Aranhas começaram a ser apelidados de Rádio Urca, numa alusão à alcunha por que era conhecido o saxofonista do grupo e habitante do improvisado estúdio.

Tratou-se de um episódio que contribuiu, afinal, para desanuviar um pouco o clima de pre-ocupações e dificuldades materiais que caracterizavam a vida da Timbre Seixalense, especialmente por ocorrer num período em que a Colectividade se debatia com uma aflitiva falta de meios financei-ros. Atendendo a que não dispunham de subsídios de entidade alguma, nem de outras fontes de financiamento senão as receitas provenientes da quotização dos associados e do trabalho levado a cabo pelas diferentes comissões criadas para a angariação de fundos. “Os problemas de dinheiro eram de tal ordem que, em 1954, para a Banda vestir um novo fardamento, fui eu quem emprestou o dinheiro para pagar ao alfaiate”, confessa.

Esperou dois anos para ser reembolsado, ainda que só parcialmente, da quantia que des-pendeu e que não pode já precisar com rigor. “Mas, tal como eu, alturas houve em que, quer o Arnaldo Tavares quer outros, também emprestaram dinheiro à Colectividade”, esclarece.

Fundador do Sindicatodos Corticeiros

Homem de múltiplos empenhos e forte determinação, Emílio de Oliveira Rebelo não confi-nou a sua actividade apenas ao campo associativo. O percurso da sua vida estendeu-se ainda a ou-tros domínios da intervenção cívica. Fê-lo sempre, diz, por imperativos de consciência e por consi-derar que os seus préstimos poderiam ser úteis a todos os conterrâneos.

Nesse sentido se insere, de resto, a decisão de aceitar o convite que lhe fora formulado para integrar a equipa fundadora do Sindicato dos Corticeiros, no concelho do Seixal, assumindo as fun-ções de secretário, competindo-lhe organizar o trabalho administrativo, em especial a angariação e elaboração do ficheiro de associados.

Aquela experiência, refere, durou seis meses, após o que apresentou o pedido de demissão, por não concordar com os restantes membros do sindicato no que decidiam acerca da proposta de tabela salarial.

“A minha discordância levou-os ao ponto de arrogantemente afirmarem que eu não perce-bia nada daquilo, o que me permitiu concluir que a intenção do convite que me fora feito visava ou-tros interesses que não os que eu defendia”, conclui.

Esta decisão levá-lo-ia ainda a Setúbal, para prestar esclarecimentos sobre as razões que a motivaram. Mas, porque a sua decisão tinha por suporte os mais elementares princípios de honesti-dade, apesar das tentativas feitas para o demoveram de levá-la por diante, manteve-a, alegando razões de natureza familiar e profissional. E deu o assunto por encerrado.

Eis dois importantes testemunhos de vivências, prestados por alguém que, desde criança, acompanhou, a par e passo, o percurso da mais antiga colectividade do Concelho e nela se formou enquanto cidadão de corpo inteiro.

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São, afinal, histórias e episódios, muitas vezes vividos na primeira pessoa do singular, que a história oficial da Timbre poderá não contemplar, mas que a história do movimento associativo do concelho do Seixal deverá registar.

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Banda da Sociedade FilarmónicaTimbre Seixalense

Almoço de homenagem ao maestro Domingos Ferreira

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Sociedade Filarmónica União Seixalense

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Histórias de um reduto prussianoem terras da Margem Sul

A Sociedade Filarmónica União Seixalense, vulgarmente designada por Sociedade Nova, foi fundada em 1871, por um numeroso grupo de seixalenses que, descontentes com a orientação assumida pelos dirigentes da Timbre no decurso dos graves acontecimentos que opuseram França e Alemanha, a ela se decidiram opor.

A expressão desse desagrado manifestar-se-ia na oposição à aprovação de uma proposta de alterações aos estatutos da Colectividade, apresentada no decurso de uma conturbada assembleia geral promovida para o efeito, na sequência da qual resolveram protagonizar a mais profunda cisão ocorrida na história do movimento associativo do Concelho.

Embora a causa avançada, na altura, para tal dissidência, se tenha fundamentado na discor-dância quanto ao conteúdo dessa proposta, é um dado adquirido que, subjacente à criação de uma nova Sociedade, estavam também os sentimentos díspares que aqueles acontecimentos provocaram em diversos países da Europa.

Essa clivagem reflectir-se-ia, aos diferentes níveis do quotidiano das populações, que expressavam das mais diversas formas a sua simpatia por cada um dos contendores.

O concelho do Seixal não foi excepção, adquirindo esses antagonismos contornos que se perpetuariam por quase um século. De um lado, estavam os simpatizantes da causa francesa; do outro, os que, invocando as invasões napoleónicas, se rebelavam contra a propaganda das ideias francesas.

O ambiente que se vivia e as altercações entre consócios atingiu o extremo da impossibili-dade de convivência. E a cisão determinou o processo de criação de uma colectividade que represen-tasse os valores pelos quais pugnavam.

Tão profunda divergência foi acentuada ainda pelo facto de a Timbre se haver colocado ao lado do Partido Regenerador, na defesa da extinção do Concelho e a União apoiar o Partido Progressista que pugnava pela sua refundação. Esta divergência era tão exacerbada que frequente-mente chegava ao ponto do confronto físico.

Adelino Cunha:“Desde criança que a Uniãoé a minha segunda casa”

Testemunha privilegiada dessa rivalidade e do fervor que caracterizava a vida da União Seixalense é Adelino Cunha, 67 anos, neto de um dos fundadores do Seixal Futebol Clube e filho de um antigo jogador do Clube. Seu avô e seu pai foram dirigentes da velha Sociedade Filarmónica.

“Meu avô foi sete vezes presidente da direcção, além de ser também filarmónico. Mas, em dada altura, por força de uma divergência decorrente da sua discordância relativamente à decisão tomada pela direcção de recusar o convite da paróquia para que, à semelhança dos anos anteriores, a Banda participasse na procissão de S. Pedro, resolveu abandonar a actividade associativa. Isso ocorreu no período da implantação da República e a sua tomada de posição forçou-o a andar a monte, durante alguns dias, juntamente com o padre Augusto, de Arrentela. O mesmo sucedeu com os que, tal como ele, defenderam a integração da Banda na procissão”, diz.

Segundo Adelino Cunha, a posição de seu avô suportava-se na sua vocação de católico praticante, condição incómoda por, ao tempo, o anticlericalismo defender que tal condição era reac-cionária. Daí a ira dos consócios simpatizantes dos ideais republicanos.

“Apesar da Banda ter regressado no ano seguinte ao cortejo, tal bastou para que ele não voltasse a pôr os pés na Colectividade. Situação algo parecida voltaria, aliás, a passar-se comigo em 1977, embora eu não me tenha demitido de sócio, nem tenha deixado de continuar a lá entrar, por entender que grande parte da minha vida tenha sido gasta dentro daquela casa, deixei, contudo, de

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lhe dar os meus préstimos com a mesma dedicação que até aí lhe tinha dispensado”, refere.Porque ao tempo desempenhava também as funções de primeiro-secretário da Mesa da

Assembleia Geral da Federação Portuguesa das Colectividades de Cultura e Recreio, em represen-tação da União, aprestou-se a renunciar ao cargo.

Ainda assim, sempre que, por uma ou outra razão, algum elemento dos corpos gerentes da agremiação o interpelava sobre determinado acontecimento ocorrido na União ou lhe solicitava os seus conhecimentos acerca da melhor forma de levar a cabo qualquer iniciativa, não deixava de dar a sua opinião. “O apelo das raízes falava mais alto”, confessa.

Paixão pelo teatrodeu em casamento

É assim que, devido à sua experiência de amador teatral, é convidado a observar, em repre-sentação da Colectividade, vários espectáculos cénicos com o intuito de aconselhar os que, em seu entender, melhor se ajustavam às apetências da massa associativa, tanto no domínio literário como no da interpretação.

“Uma vez, a pedido de Henrique Paiva e Rui Silva, fui, mais a minha esposa, ver uma peça do António Aleixo, representada por um grupo de estudantes, na cave de uma instituição religiosa, situada num edifício, algures, na Rua dos Douradores, em Lisboa, mas porque se tratava de um texto de denúncia social que, presumivelmente, não terá merecido prévia autorização da censura, a dado momento o espectáculo foi subitamente interrompido porque a polícia se aprestava para tomar de assalto o local”, relata Adelino Cunha.

Ante a eventualidade de serem detidos, com todos os inconvenientes daí resultantes, mor-mente os que decorriam da acusação de estarem a participar numa reunião clandestina, como, de resto, era uso na época, outra alternativa não tiveram que não fosse a de escaparem pela porta dos fundos. “Minutos depois as forças policiais penetraram no recinto pela entrada principal. Ainda que eu não as tenha chegado a ver, foi um susto que nem queira saber...!” Enfatiza.

Observar espectáculos teatrais era um tipo de diligências que fazia de bom grado, porquan-to, a par de prestar um serviço à Colectividade, constituía ainda um modo de se manter ligado a outra das suas grandes paixões: a arte cénica, pela qual, desde muito jovem, se deixou seduzir. Gosto em que era acompanhado por sua mulher, também ela membro do Grupo de Teatro da União e, com quem, de resto, contracenou algumas vezes.

“O nosso namoro, assim como o da Regina e o da Clotide, começou por essa altura, fruto do permanente contacto que o teatro nos proporcionava. Mais digo, que tudo aconteceu no decurso da peça O Fratricida, a primeira em que participei e, na qual, aliás, desempenhávamos o papel de dois amantes. Foi um enamoramento que permanece duradoiro há várias décadas”, informa.

Compra da primeira Sedecustou vinte contos

De outras recordações se alimenta igualmente a memória de Adelino Cunha, entre as quais a da compra de uma antiga taberna que dispunha de um grande terraço, feita por uma direcção na qual figuravam seu pai e um tio, para ali instalar a nova Sede.

“Essa aquisição custou 20 contos e a sua inauguração teve lugar com a realização de um espectáculo de variedades. Nesse dia ainda nem telhado havia e, para tentar ocultar tal falta, foram colocadas no tecto vários fios de cordel com tiras de papel (roubado na Mundet), que assim empres-tava ao evento o ar festivo que a ocasião exigia.”

Só mais tarde, mercê do labor desenvolvido por um grupo de associados, denominado comissão pró-sede, constituída, entre outros, por António Tomé, Alexandre Araújo, Manuel

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Pescadinha, Neves Cardoso e Matias Teixeira, foi angariado o dinheiro para colocar a respectiva cobertura e concluir a obra.

Aliás, diga-se, era com esse papel desviado à Mundet, por operários amigos da União Seixalense, que muitas vezes se pintavam os cenários para as peças que o grupo de amadores levava à cena. O mesmo se passava com os grupos cénicos das demais colectividades do Concelho.

De actor amadora autor teatral

De acordo com Adelino Cunha, a exis-tência do primeiro grupo teatral na União remonta a 1925 e teve como principais impulsio-nadores João Gomes Pólvora e Alfredo Lucas.

Após a sua dissolução, a arte de repre-sentar só voltaria à Colectividade em 1947, com a constituição de um novo grupo, no qual ele se integrava. Do seu reportório constaram diversos géneros, tais como drama, comédia e revista, sendo que no intervalo de cada representação tinha lugar um acto de variedades.

O elenco de tais grupos, apesar de diri-gidos por pessoas mais velhas, era maioritaria-mente formado por gente nova. “Eu tinha quin-ze anos quando vim para o teatro e a minha mu-lher catorze”, diz, num tom de grata nostalgia, enquanto rememora ainda a permanente atenção com que seus tios, Francisco Rosa e Eugénio Teixeira, respectivamente, ponto e contra-regra, seguiam o papel de cada um dos actores e o rigor que Fernando Mota colocava na condução dos ensaios. “Era um bom ensaiador, não obstante se tra-tar de um simples empregado de escritório.” Sublinha.

Do reportório que representou, constaram peças como Um Namoro Engraçado, O Berço e A Promessa, tal como As Duas Causas, esta da autoria de Ramada Curto, mas que não chegou, todavia, a ser estreada, entre outras razões, devido ao falecimento de um tio de sua mulher, pessoa com quem ela fora criada e por quem nutria muito respeito e carinho.

“Sendo ela a actriz principal da peça e tendo ficado impedida de representar em observân-cia ao período de luto pela morte de seu tio, os trabalhos de preparação do espectáculo tiveram de ser cancelados”, anota Adelino Cunha.

Anos mais tarde, dedicar-se-ia a escrever textos de revista e peças juvenis e infantis, sendo os respectivos cenários da responsabilidade dos próprios intérpretes. Era tarefa que assumia, em simultâneo com a de responsável do grupo infantil, enquanto Wilson Quintino detinha a direcção do grupo de adultos.

“Foi uma época de grande fulgor teatral. O público adorava este tipo de espectáculos, razão pela qual lotava sempre as salas. É certo que, com excepção das peças infantis, cuja entrada era gratuita, o preço dos bilhetes variava entre os quinze tostões e os dois escudos, valor que apesar de razoável para o bolso de muitos espectadores não afugentava as assistências”, relembra.

Naturalmente que as receitas de cada representação serviam, tão-só, para custear as despe-sas inerentes à montagem das peças, designadamente as despesas que decorriam do aluguer dos fatos, pois tornava-se insustentável a uma colectividade dispor de um guarda-roupa próprio. E muitas vezes nem para isso chegavam as receitas. O trabalho dos actores e demais corpo técnico processava-se a título gracioso, porque todos eram prata da casa.

E quando a receita de bilheteira não cobria todos os encargos, eram os cofres da agremiação que, forçosamente, tinham de acudir, isto porque a actividade teatral era entendida como um meio de ofertar aos sócios um entretenimento e cultura.

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Grupo de teatro da União em 1945

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“PIZ PIZ uma iniciativamuito gratificante”

Talvez por isso, se tenha atrevido, juntamente com António Cunha e Wilson Quintino, a envolver-se na realização de uma réplica do programa televisivo ZIP ZIP, transmitido pela RTP nas noites de segunda-feira e que, a par de se constituir num marco da história da TV em Portugal, granjeou grande sucesso na época, divulgando cantores como Adriano Correia de Oliveira, Francisco Fanhais e Manuel Freire, entre outros.

“Essa ideia partiu do Manuel Canelas, um grande amigo da União, que nela desempenhou diversos cargos directivos”, salienta.

“Tratava-se de um espectáculo de variedades, com umas entrevistas de permeio. Os entre-vistados eram, por norma, pessoas ilustres do Concelho, médicos, advogados, farmacêuticos, ou sim-ples figuras populares, como Júlio Tiago, chefe dos bombeiros da Mundet, a Maria dos Jornais e o Carlos Silva, verdadeiro improvisador musical que cantava e tocava socorrendo-se para tanto apenas do seu aparelho vocal e de um caixote de madeira.

“O programa chamava-se PIZ PIZ, e as funções de entrevistador estavam confiadas ao jovem Flávio Ferreira, um rapaz que começava a dar os primeiros passos na locução”, adianta.

Este projecto tinha inicialmente uma periodicidade quinzenal. Mas porque, ao constatarem que tal tarefa lhes dava um trabalhão, a que se juntava ainda o facto de, por força de não haver transportes públicos a qualquer hora, se ver forçado a albergar, o resto da noite, a maior parte dos artistas que nele vinham participar, imediatamente optaram por alterar a periodicidade da iniciativa para mensal.

A concretização da ideia revestiu-se de grande êxito, situação que despertou logo a atenção daqueles que viam em tudo quanto merecesse a adesão popular sinais de contestação ao regime vigente.

“Uma vez, pelas sete da manhã de um domingo, eu e Manuel Canelas tivemos que nos apresentar no posto de polícia para responder a uma série de perguntas relacionadas com o facto de um declamador, participante no espectáculo dessa noite, ter recitado dois poemas que não terão agradado a um dos espectadores. Foi um caso um tanto complicado, porque nos vimos na iminência de ser levados à PIDE”, conta Adelino Cunha.

Em reconhecimento pelo atrevimento que os rapazes da União haviam dado prova, quando ousaram avançar para uma iniciativa tão trabalhosa, Fialho Gouveia e Raul Solnado, dois dos autores do referido programa televisivo, ao tomarem conhecimento do projecto, não quiseram deixar de a ele se associar, participando num desses espectáculos. O mesmo aconteceu com os poetas David Mourão Ferreira e Natália Correia, o actor Igrejas Caeiro e a locutora da Emissora Nacional Maria Leonor.

De acordo com Adelino Cunha, este evento, que deu brado entre as gentes do Seixal, aca-bava, afinal, por se tornar no principal tema de conversa dos habitantes da terra nos dias imediatos à sua realização, mercê da diversidade de assuntos que abordava, da popularidade dos convidados que nele participavam e do interesse que as declarações destes despertavam na opinião pública local.

De arrumador da sala de bailea membro da comissão do Centenário

A par destes, outros episódios repousam também no acervo memorial de Adelino Cunha, nomeadamente os bailes de Carnaval, em particular os da pinhata e do bacalhau, este dedicado às tripulações dos navios bacalhoeiros que aqui vinham descargar e aos trabalhadores que laboravam na seca do bacalhau, geralmente pessoas provenientes de Aveiro, Ílhavo e Ovar.

“Era um modo de angariarmos fundos para a Sociedade e, ao mesmo tempo, uma maneira

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de estabelecermos uma relação de convívio com toda essa gente que vinha para o Seixal em busca do seu sustento”, relata. Adelino Cunha faz ainda notar os bailes do Vestido de Chita e os tradicionais concursos que os caracterizava, tal como o da Cadeira e da Batata, nos quais era posta à prova a perícia dos dançarinos.

Para este associado da União Seixalense, que diz ainda recordar-se do dia em que, com apenas cinco anos, lhe foi dada a tarefa de transportar cadeiras para um concerto que a Banda deu no coreto, “Esse foi o primeiro trabalho que fiz para esta casa. Com a maior das alegrias”, realça.

Membro da comissão executiva das comemorações do Centenário da Colectividade, Adelino Cunha sublinha que do vasto programa de realizações levadas a cabo a propósito da efeméride, a sessão, que contou as presenças do maestro João de Freitas Branco e do poeta e escritor David Mourão Ferreira nos festejos, foi uma das que mais o sensibilizou.

Homem de múltiplos ofíciosHomem de grande sensibilidade e de vários afazeres, mormente os que se reportam ao

domínio da fruição cultural e da criação poética, Adelino Cunha desempenhou, igualmente e, por mais de uma década, diversos cargos directivos na Associação dos Bombeiros Voluntários do Seixal, além de ser um dos elementos do Trio Hortelão, agrupamento que fundou, com dois velhos amigos, no âmbito da Associação de Reformados e Idosos do Seixal, visando a recuperação da antiga acção dos jograis.

“Acima de tudo, toda a vida procurei dar o meu modesto contributo à divulgação do nome da minha terra. Essa, foi, de resto, a intenção que me motivou em 1947 a ingressar na primeira equi-pa de juniores do Seixal Futebol Clube, em basquetebol e a participar nos órgãos directivos tanto da União bem como noutras agremiações, durante quase cinquenta anos. Um dos cargos que desempe-nhei foi o de presidente do Conselho Técnico da Associação de Basquetebol de Setúbal, em repre-sentação do referido clube”, sublinha.

Antes disso, fora campeão concelhio de ténis de mesa, pelo SFC; vice-campeão de bilhar, em segundas categorias, pela Sociedade; elemento do orfeão do antigo Clube Recreativo do Seixal; do Grupo Coral da União e fundador do conjunto SUS MUSIC, que mais tarde deu origem ao co-nhecido Grupo de Baile, um agrupamento de música ligeira que no final dos anos setenta conquistou assinalável sucesso com o tema Patcholy.

“Fui eu quem se responsabilizou pelo empréstimo de 150 contos, aos rapazes do aludido grupo para que estes comprassem duas violas e uma bateria. Esse empréstimo acabaria por estar na origem de uma certa censura de que fui alvo por parte de alguns consócios, que me acusaram de estar a desviar os jovens da banda da Sociedade. Acusação sem fundamento, até porque, uma das condições que impus aos rapazes para a concessão do empréstimo era a de que, em contrapartida pela cedência das instalações da Sociedade, para os ensaios, teriam que assegurar gratuitamente dois bailes por mês“, relembra.

“Enfim, mal-entendidos que o tempo acabaria por esbater”, conclui com natural satisfação.

Viriato Pescadinha“A União foi protagonistade grandes inovações”

Viriato Pescadinha é outra das figuras da União Seixalense. Goza de uma notória respeita-bilidade entre a massa associativa da agremiação, devido ao empenho que sempre colocou no desempenho das tarefas para que foi solicitado.

Esforçado activista da Sociedade Nova desde tenra idade, e membro de um sem-número de comissões criadas ao longo dos tempos, para suprirem uma ou outra necessidade com que a

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Colectividade se confrontava, é, assim, uma das memórias vivas do brilhante passado da União e um dos nomes impreterivelmente apontados pelos demais consócios quando se pretendem conhecer os ciclos porque passou esta instituição.

Repartindo a sua actividade por várias agremiações da antiga Vila do Seixal, Viriato Pescadinha faz questão de sublinhar que o melhor do seu saber sempre foi colocado à disposição da Sociedade Nova, razão pela qual, desde muito cedo, se empenhou na formação da designada comis-são de festas, “Os Anjinhos Enrascados”, cuja missão era a de dinamizar e promover todo o tipo de eventos festivos que permitissem a angariação de fundos.

Comissão de festas “Os Anjinhos Enrascados”foi trampolim para a direcção

Seria, aliás, essa comissão que se encarregaria de realizar, no Largo Luís de Camões, as então apelidadas de Festas da Atalaia, no último fim-de-semana de Agosto, além dos diversos bailes que ocorriam ao longo do ano, nas instalações da Colectividade.

Neste seu desfiar de recordações, Viriato Pescadinha faz ainda questão de salientar que a direcção da União nada tinha a ver com essas iniciativas, as quais eram da inteira responsabilidade desta comissão, constituída, na sua maioria, por gente mais jovem do que a que integrava os corpos ge-rentes da Colectividade e, por consequência, com outras perspectivas e outras ideias.

“Todas estas acções visavam, objecti-vamente, contribuir para que a Sociedade passasse a viver o seu dia-a-dia com menores dificuldades, tanto mais que os encargos resultantes do pagamento do vencimento mensal do mestre e da compra de instrumen-tos para manter em funcionamento uma

banda de música capaz de dignificar a instituição não era missão fácil de conseguir”, recorda.Esse espírito associativo motivou-o, de resto, nos seus tempos de estudante, da Veiga Beirão,

a levar, por diversas ocasiões, instrumentos avariados à firma Custódio Cardoso Pereira, na Rua do Carmo, para serem reparados.

“Como a escola se situava nas imediações do referido estabelecimento comercial, o simples facto de os transportar, significava, a priori, uma forma de evitar que a necessária reparação se tor-nasse mais onerosa por força de uma deslocação perfeitamente dispensável”, conta.

Não deixando, contudo, de sublinhar que em todas as iniciativas organizadas pela aludida comissão, os associados tinham entrada livre, a receita apurada em tais iniciativas provinha quase exclusivamente da venda de rifas - muito em voga na época - e da exploração do bufete.

Apesar de não haver encaixe de bilheteira ser nulo, devido, segundo esclarece, à circuns-tância de serem poucos os forasteiros que a elas vinham assistir, a não ser quando para isso tivessem sido convidados por sócios, pelo que nada pagavam também, a promoção periódica de tais festas constituía, apesar de tudo, uma valiosa ajuda financeira, que nenhuma direcção ousava desprezar, atentos aos tempos difíceis que se viviam.

A animação musical de tais soirées ou matinées, sabe-se, cabia a trupes constituídas por elementos das próprias filarmónicas. Mas com o aparecimento da Rádio, uma inovação parca à época, que de certo modo transformou os hábitos das pessoas, muitas dessas trupes acabaram por se

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Comissão de festas “Os Anjinhos Enrascados”

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transformar em orquestras jazz ou em grupos de música ligeira. “Ainda me recordo que nesse perío-do, a Sociedade todas as noites se enchia de povo para ouvir os programas radiofónicos”, acentua.

O primeiro arraial a luz eléctrica

Chamado a desempenhar as funções de secretário da Direcção aos dezoito anos, Viriato Pescadinha faz notar que essa distin-ção se deveu ao facto de os consócios mais velhos, a quem tradicionalmente cabiam as funções directivas, terem entendido que as transformações que, por mor da rádio, se estavam operando em todos os domínios da sociedade, justificavam a indigitação de alguns jovens para os corpos gerentes da Sociedade.

E o fenómeno foi de tal ordem que, para atrair a clientela, até algumas tavernas passaram a ter telefonia. Idêntica evolução se constataria, mais tarde, com a TV.

Sem denotar qualquer esforço de memória para relatar as vivências por que passou dentro da sua União, Viriato Pescadinha diz ter sido um dos mentores da organização do primeiro arraial popular ali-mentado a luz eléctrica.

“Foi uma iniciativa pioneira levada a cabo, por volta de 1935, pelos ‘Anjinhos Enrascados’ que, devido ao bom relaciona-mento existente com o dono do antigo cinema - situado ao lado da Colectividade, o sensibi-lizaram para os deixar utilizar o gerador que fornecia a energia à máquina de projecção.

“O êxito da experiência adquiriu tamanha divulgação que fez afluir pessoas de todos os lados do Concelho para verem o ‘arraial eléctrico’ montado pela Sociedade Nova, assegura.

“O feito adquiriu sobretudo maior dimensão, por ocorrer numa altura em que, tanto o for-necimento de energia eléctrica como o abastecimento de água canalizada, ainda não tinham chega-do ao Seixal”, relembra.

Enquanto sustenta que o sucesso do referido arraial radica no excelente contributo dado por um elevado número de associados, tanto na concepção, execução e pintura dos arcos como na res-pectiva montagem, Viriato Pescadinha faz igualmente alusão ao facto de, à semelhança de outros consócios, haver começado a namorar a sua esposa na Colectividade, até porque, segundo diz, era difícil haver um casamento em que os noivos não fossem sócios da mesma sociedade. Só com a entra-da em funcionamento da Mundet é que essa situação conheceria alteração, porque o espaço de con-vívio diário entre as pessoas, se transferiu para o local de trabalho.

Coroado rei da pinha, num dos tradicionais bailes da pinhata, realizados antes de se casar, Viriato Pescadinha ver-se-ia, no entanto, logo após o matrimónio e o seu ingresso nos quadros de pessoal da Câmara, forçado a tomar a decisão de suspender as actividades na União, em ordem a evitar que alguém levantasse a suspeição de, no âmbito das suas funções de fiscal camarário, poder favorecer a Colectividade a que pertencia.

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Arraiais populares da União, Largo Luís de Camões

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Ainda assim, não perde o ensejo de salientar que, contrariamente ao que era habitual suce-der com os jovens do seu tempo, nunca aprendeu música, o que não o impede de se considerar um “grande melómano”.

“O meu gosto pela música, tal como pelo teatro e pela ópera (apesar de jamais ter inte-grado qualquer dos grupos amadores que existiram na Colectividade), ia ao ponto de não perder ne-nhum dos mais relevantes espectáculos de ópera e concertos sinfónicos que tinham lugar em Lisboa, mesmo antes da existência da Fundação Gulbenkian, nem deixar de assistir, graciosamente, à re-presentação das importantes peças teatrais que se levavam à cena”, garante.

“Essa assiduidade às salas de espectáculo era-me em certa medida proporcionada pela circunstância de desempenhar, por muitos anos, as funções de representante concelhio da Sociedade Portuguesa de Escritores e Compositores Teatrais”, reconhece.

Admitindo que o gosto por música clássica se devia à influência que a vivência musical da Sociedade sobre si exerceu, suspeita, todavia, que o interesse pelo teatro talvez se devesse à influ-ência de sua irmã mais velha, actriz amadora do Grupo Cénico da União e sobre quem tece os mais rasgados elogios.

“Vi minha irmã representar a Mater Dolorosa tão bem ou melhor do que a actriz profissio-nal, cujo nome de momento não me recordo e que nessa época representou o mesmo papel numa companhia de Lisboa. Era, indiscutivelmente, uma amadora muito talentosa...!” Finaliza.

Manuel da Costa Rebelo, “O Parrana”Um filarmónico que dedicoutoda a sua vida à União

Figura emblemática da União Seixalense, Manuel da Costa Rebelo, 83 anos, vulgarmente conhecido pela alcunha de Parrana, é um dos muitos filarmónicos que dedicaram quase toda a sua vida à casa que, desde crianças se habituaram a frequentar e onde, aliás, começaram a soletrar as primeiras notas musicais.

Tinha doze anos quando foi para a estante e, desde então, nunca mais deixou a Banda na qual, ainda hoje, toca clarinete. Tão duradoura ligação à estrutura mais representativa da chamada Sociedade Nova e os laços de efectividade que por ela forjou, levam Manuel de Costa Rebelo, que faz questão de ser tratado de Parrana, a emocionar-se logo que instado a relatar alguns dos episódios que, ao cabo de tantos anos, teve oportunidade de presenciar.

O seu depoimento é, pois, um testemunho sentido que, a espaços, atinge a comoção. A voz embarga-se-lhe, os olhos fitam-nos marejados. Um recuar no tempo que, por vezes, exige algumas pausas para recuperar o fôlego, mas que não é suficiente para lhe toldar a clareza das lembranças que guarda acerca das inumeráveis vivências que a vida lhe permitiu desfrutar com várias gerações de músicos e que se dispôs a partilhar com todos aqueles que consideram as colectividades uma escola de virtudes, humanas, cívicas e culturais, como o devem ser todos os locais de aprendizagem e saberes.

“A Banda não tinhamãos a medir”

“Logo que integrei o corpo da Banda, passei a andar numa roda viva, pois todos os dias tí-nhamos saídas, especialmente no Verão, por mor da catadupa de convites que nos eram dirigidos, em virtude de se tratar de uma formação constituída - como, aliás, sempre o foi - por um bom naipe de músicos que executavam um reportório diversificado e de grande qualidade artística”, diz.

Embora creia que o volume de solicitações se revelava bastante gratificante para quantos

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dela faziam parte, sendo, por isso, entendido como um reconhecimento do seu valor, não deixava, contudo, por se mostrar desgastante.

“Ele era uma noite no Lavradio, na noite seguinte na Moita, na outra em Palmela, em Sobral de Monte Agraço, Pêro Pinheiro, Nazaré e por aí fora... Levávamos semanas inteiras nisto. Com a agravante de, no outro dia, termos de ir trabalhar”, afirma.

Enquanto relembra ainda os afazeres a que se entregava nos dias em que a Banda não saía por mor da preparação dos arraiais populares que a União organizava, Parrana adianta que durante o tempo em que andava à busca de madeira para a montagem dos arcos, sua mulher, membro da comissão “Os Anjinhos Enrascados” , percorria, de porta em porta, as ruas do Seixal vendendo rifas, a fim de se obter dinheiro para comprar papel, tinta e tudo o mais que era necessário.

E quando o resultado apurado não chegava para as despesas, não havia outra solução que não fosse a de aguçar o engenho e lançar mão de um ou outro pequeno expe-diente que permitisse ultrapassar as dificulda-des.

“Nesses casos, cuidávamos de obser-var os locais onde houvesse madeira que se nos afigurasse capaz de servir os nossos inten-tos e pela calada da noite transportávamo-la para um barracão dos escuteiros que servia de armazém aos festejos. Um estratagema pouco correcto, é certo, porém, com o dinheiro pou-pado na madeira, poderíamos adquirir o resto dos materiais de que o arraial carecia”, con-fessa.

Sem contar com nenhum tipo de apoios para além dos que lhe eram dispensados pela po-pulação e pelos associados, a Colectividade via-se ainda obrigada a pagar à Câmara uma taxa por cada grade de bebida vendida.

“No final de cada noite, lá estava o fiscal junto ao coreto da Sociedade (então existente no Largo Luís de Camões), para conferir o número de grades de pirolitos, sumos ou cervejas vendidas. Tratava-se, a meu ver, de uma forma de explorar o trabalho da Colectividade, por parte de quem nada dava para ajudar a realizar o arraial”, desabafa.

“Tudo era feito a poder de muito amor à causa”

Neste seu rememorar de episódios, Parrana relembra igualmente que tudo era feito a poder de muito amor à causa, muita imaginação e muito trabalho, para logo relatar uma história que supõe reveladora desse espírito que animava as gentes da União e da sua inquebrantável vontade de leva-rem por diante as iniciativas que perspectivavam.

“Uma ocasião, a escassos minutos do início do baile da pinhata, a pinha, nesse tempo ilu-minada a candeeiro, pois não havia ainda luz eléctrica, incendiou-se, deixando-nos na iminência de ver cair por terra todo o esforço que tínhamos despendido.”

Mal acaba de prenunciar a frase, um nó acode-lhe à garganta, sufocando-lhe a voz. Os olhos, subitamente, ficam rasos de água. Não consegue articular mais palavras. Faz uma pausa. Respira fundo para recuperar o fôlego e logo que pressente que essa onda de emoção se começa a esbater, retoma a narrativa acrescentando:

“Face a tal imponderável, a desistência constituía um descrédito para a Colectividade, que de modo algum poderíamos admitir, por causa da rivalidade que nos opunha à Timbre”, conta.

“Por isso, decidimos dar início ao baile, adiando apenas a abertura da pinha por três horas.

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Elementos da Banda da União

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O tempo que reputámos de suficiente para a sua reconstrução. E se assim resolvemos, assim o fize-mos. Para nosso contentamento e satisfação da massa associativa.”

Quinze filhostrês músicos

Reconhecendo ter chorado muitas lágrimas em sinal de impotência por nada poder fazer quando desfilava com a Banda e das janelas de algumas habitações onde viviam os “arrivistas” da Timbre, lhes despejavam baldes de água, Parrana, guarda, no entanto, gratas recordações dos seten-ta anos em que tem sido filarmónico.

“Uma actividade que encarei com todo o rigor, por amor à música e à Sociedade, a par de funcionar como contraponto à minha profissão de electricista”, frisa.

Retratos de um tempo em que o comboio era o principal meio de transporte utilizado na deslocação para as actuações aos concelhos do Barreiro e Moita.

“Por vezes, o cansaço era tanto, que o facto de os bancos serem de madeira não constituía impedimento a que aproveitássemos a viagem para dormir. Uma época em que, à falta de outras diversões, os homens se entretinham a fazer filhos”, assinala.

“Só eu tive catorze irmãos, embora apenas oito tenhamos vivido. E mesmo assim, a minha família não era das mais numerosas. Outras havia, cuja prole nos ultrapassava, largamente. Mas dos oito que sobrevivemos, somente três saíram músicos, tal como o pai. Os outros, não tiveram inclina-ção para o solfejo ou não manifestaram intenção de o aprender”, diz ainda.

Curiosamente, dos três descendentes com jeito para a música, nenhum optou pela Sociedade onde o progenitor tocara. No entanto, chegou a haver qualquer conflito familiar, provocado pela rivalidade entre as duas Colectividades, porque, entrementes, o progenitor já tinha dei-xado de tocar. “O que lhe interessava era que os filhos partilhassem consigo os prazeres da música, e, se possível, que fossem bons executantes”, garante.

Sócio honorário da União Seixalense, Manuel da Costa Rebelo, o Parrana, salienta que este título e o carinho com que é tratado, quer pelos novos quer pelos mais velhos elementos da Banda, se deve à amizade que lhes dispensa e ao respeito que tão antiga ligação lhe concede.

Pazes com a Timbreum momento único

Como que num assomo de insatisfação por não ter dito tudo quanto a este respeito já tenha afirmado, dispara ainda: “Obter a distinção de sócio honorário, numa colectividade onde, esta-tutariamante, os músicos nunca precisaram de se filiar, pois o simples facto de tocarem os coloca no mesmo de pé de igualdade que os demais, é uma honra da qual muito me orgulho!”

Segundo ainda confidenciou, do vasto rol de recordações que retém, uma há que guarda com particular desvelo: o momento em que as duas Colectividades colocaram fim à animosidade recíproca que até essa data tinha caracterizado o seu relacionamento.

“Foi um momento único. Porque, até então, as duas Bandas nunca se encontravam. Onde ia uma, não ia a outra. Caso contrário, armava-se uma ‘barafunda’ tal que acabava sempre em vias de facto”, recorda.

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Pazes entre a Sociedade Nova e a Timbre

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“Assim, no dia 1 de Maio de 1975, o José Félix (União) e o Emílio Rebelo (Timbre), coadju-vados por outras pessoas afectas a cada uma delas, decidiram, em segredo, começar a organizar uma festa que assinalasse, quer o 1º de Maio quer o restabelecimento das relações entre as duas socieda-des”, revela.

“A dita festa teve lugar no campo da bola e foi apadrinhada pela Banda da Marinha, diri-gida por Marques Romão, à época maestro da nossa banda, que, sem sabermos, tinha sido convidada para testemunhar as ‘pazes’. No fim de tudo, abraçámo-nos uns aos outros. Alguns de nós até chora-ram. Só visto...!” Remata.

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OrquestraUnião Jazz

Banda da União,

1936 a 1941

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Sociedade FilarmónicaUnião Arrentelense

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Histórias da sociedade nascida entre os operários dos lanifícios

De acordo com vários documentos existentes no museu da agremiação, cuja origem é atribuída a diversos testemunhos recolhidos junto de antigos habitantes da localidade, a fundação da Sociedade Filarmónica União Arrentelense remonta a 1872, ano em que o gosto pela música levou os operários da extinta Fábrica de Lanifícios de Arrentela a decidirem a constituição de uma filarmónica.

Segundo ainda os referidos escritos, tal ocorreu por altura da visita efectuada pela rainha D. Amélia àquela unidade fabril, aconte-cimento que estaria, aliás, na atribuição do nome de Real Sociedade Fabril Arrentelense, designação que, para além de assinalar as suas origens, visava, também, manifestar o reconhecimento pela honrosa visita.

Esse gesto, sabe-se, agradou de tal forma aos proprietários da fábrica, que ordenaram ao seu director, de apelido Roldão, que li-qui-dasse o valor total do fardamento da Banda.

Todavia, o aparecimento desta agremiação instigaria um conjunto de moradores do lugar a encetar igualmente diligências conducentes à constituição de outra sociedade. Assim nasceu, algum tempo volvido, a Real Sociedade Filarmónica Honra e Glória Arrentelense, que tinha como principal objectivo o incremento da arte musical, actividade que manteve até 1914.

No entanto, considerando que o trabalho conjunto seria mais profícuo para o desenvolvi-mento da missão que ambas as Colectividades perseguiam, entenderam os respectivos dirigentes proceder à fusão das duas agremiações, processo que, a ajuizar pelos registos que até nós chegaram, se caracterizou por um clima de consenso.

Esse ambiente de concórdia e de reunião de boas-vontades, mobilizador do esforço de todos, permitiu evitar eventuais feridas decorrentes de rivalidades estéreis e, acima de tudo, assegu-rar o êxito do aparecimento da actual Sociedade.

Virgínia da Silva FerreiraA União Arrentelensena terceira geração

Neta de um dos fundadores e principais entusiastas da secular colectividade arrentelense, Virgínia da Silva Ferreira, 74 anos, é uma das pessoas que desde criança se habituou a (con)viver com as histó-rias que atribuem a seu avô o papel de grande protagonista.

É, por isso, com indisfarçável desvelo que dele nos fala, quan-do inquirida sobre que histórias ou episódios ainda recorda, nos quais o seu avô tenha estado envolvido. Uma ternura que nos sensibiliza, porque genuína, sem vaidades que não sejam as que resultam do pro-fundo orgulho que nutre pela figura e obra do seu antepassado.

Um testemunho que nos deixa como que embevecidos, tama-nho é o enlevo e o carinho que deixa transparecer em cada frase; um discurso que tende a projectar, parágrafo após parágrafo, a grandeza humana de seu avô, sempre que se reporta aos feitos por ele cometidos em prol da sua Sociedade.

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João Gomes Roldão, fundador da Sociedade Fabril

Arrentelense

António da Costa e Silva,um dos fundadores

da União Arrentelense

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“Parte das coisas que sei acerca de meu avô paterno, de seu nome António da Costa e Silva, foram--me relatadas por meu pai, outras tive oportunidade de as presenciar quando ainda era criança”, começa por dizer Virgínia da Silva Ferreira ao mesmo tempo que recorda ter sido ele um dos impulsionadores da cons-trução do antigo coreto de Arrentela, situado na Av. da República, onde hoje se localiza o parque infantil, junto à marginal.

“Desse coreto, inaugurado em 1898, hoje nada resta. Mas o seu derrubamento não pode ser motivo para que ignoremos o elevado esforço e ima-ginação que a sua construção exigiu a quantos aqui viviam. Por isso, quando a obra ficou concluída, os poucos moradores da zona deram, naturalmente, lar-gas à sua alegria, realizando uma festa, como, aliás, era norma sempre que se conseguia alcançar algum feito que se afigurava importante para a terra”, salienta.

Hipotecar a sua própria casapara construir a Sede da Sociedade

E a sua capacidade de entrega não se ficaria por aqui. Expressar-se-ia de modo mais claro, quando se colocou o problema de providenciar a aquisição de um espaço para instalar a sede da agre-miação, situação que levantava tremendas dores de cabeça a quem tinha por missão arranjar um local onde a Sociedade pudesse funcionar condignamente.

“Preocupado com o assunto, desde logo tratou de convencer meu bisavô paterno para que este doasse a adega que possuía junto à Igreja, exactamente onde hoje se encontra a Associação de Reformados, para ali ser construída a futura sede da Sociedade”, conta Virgínia da Silva Ferreira

Conseguida essa doação, outra dificuldade se colocava, entretanto, a qual era a de não haver dinheiro para concretizar tão ousado projecto. Foi, então, que ele tomou a decisão de hipotecar a sua própria casa (esta onde eu vivo) para que, com o dinheiro da hipoteca, se comprassem os materiais neces-

sários à respectiva construção, já que a mão-de-obra era assegurada gratuitamente pelos sócios.

“Essa decisão acarretou-lhe grandes dificuldades, pois que, para além de ter de pro-ceder, da sua algibeira, à amortização da hipote-ca, tinha também que pagar, mensalmente, os juros correspondentes. Valeu-lhe, na altura, a amizade do um senhor embarcadiço que, ao tomar conhecimento de que ele se encontrava em apuros, se aprestou a disponibilizar-lhe o dinheiro que faltava para liquidar a hipoteca, ficando aquele como be-neficiário da casa, caso a dívida não lhe fosse liquidada”, sublinha Virgínia Ferreira.

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Inauguração do Coreto de Arrentela

António da Costa e Silva à porta de sua casa

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Filho de um dos primeiros filarmónicos da Sociedade da Arrentela, António da Costa e Silva, assim como os seus quatro cunhados, desde muito cedo começou a revelar aptidão para a música. Esse envolvente ambiente familiar, que caracterizava a denominada família Crispim e ao qual não era indife-rente a influência paterna, levá-lo-ia a entregar-se de corpo e alma à vida da Colectividade. No seu caso, o desprendimento foi levado a tal extremo, que quase se viu desapossado da sua própria habitação.

Mas a paixão que este homem evidenciou para com a Sociedade não se ficou por estas ma-nifestações de despojamento. Segundo diz a neta, o seu amor à Colectividade impeliu-o ainda a desem-penhar, por vários anos, diferentes cargos directivos na agremiação. O mesmo sucedeu com os cunhados.

Para além disso, mantinha sempre as portas de sua casa franqueadas a todos os mestres da Banda que por aqui passaram, muitos dos quais vinham aqui jantar nos dias de ensaio.

Exemplo do patriarcamobilizava toda a família

Afortunadamente, esta entrega espalhava-se aos demais familiares, mobilizando-os para as tarefas que, a cada momento, se impunham. Não surpreendia, por isso, que do mais velho à mais nova descendente da família, todos andassem sempre envolvidos na organização de todo o tipo de festas pro-movidas pela Colectividade, ou pertencessem às tradicionais comissões de angariação de fundos, criadas para responder às necessidades financeiras que volta não volta se colocavam.

“Tantas foram as ralações por que passámos, que nem imagina!... Ele eram rifas, bailes e até algumas touradas realizadas no Campo Pequeno, sugeridas à rapaziada da terra pelo toureiro Torres Branco, na altura empresário daquela praça e que, por ser amigo da Colectividade, prescindia dos lucros, de cada uma dessas corridas, em favor da Sociedade.” Assevera ainda Virgínia da Silva Ferreira.

“Tempos difíceis esses, em que o pessoal largava do trabalho e vinha para a obra erguer, à força de pulso, a sede da Colectividade. Poder-se-á dizer, portanto, que tudo foi feito com sangue suor e lágri-mas.” Anota.

A via fluvial era, então, o principal meio de transporte utilizado para fazer chegar os materiais, razão pela qual sempre que uma nova barca aportava ao antigo cais para os descarregar, o povo de

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Nota de pagamento de 200 mil réis ao Sr. Antónioda Costa e Silva

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Arrentela ali acorria de imediato para ajudar. “Ninguém ficava em casa. Todos queriam participar carre-gando-os cá para cima. Era uma festa!” Exclama.

De outras canseiras se lembra igualmente Virgínia Ferreira, quando diz ter pertencido a um sem-número de comissões, entre elas “a das bambinelas”, constituída unicamente por mulheres e que, a par de lhe caber a função de arranjar o dinheiro para os tecidos, tinha ainda por missão pro-videnciar um sem-número de tarefas. “As mulheres andavam sempre à frente, quando se tratava de coisas desse tipo”, garante.

Mas de alegrias várias se fez também esse tempo em que a Colectividade constituía o grande e, porventura, único ponto de encontro do reduzido número de famílias que viviam no pequeno aglome-rado habitacional de Arrentela. Das que lhe acodem à memória, por lhe terem sido contadas ou por nelas ter participado, destaca, nomeadamente, o facto do namoro, com aquele que viria a ser seu marido, ter sido arranjado na Colectividade, a festa do pau de fileira, o mesmo é dizer, na colocação da trave mestra no telhado, e a homenagem de que seu avô foi objecto, quando procedeu ao pagamento da última pres-

tação da dívida que assumira por mor da Sociedade.

Para esta associada da SFUA, aquela manifestação de reconhecimento incluiu, não só uma deslocação da Banda à porta de sua casa, onde tocou o hino, mas também o içar de uma bandeira (denomina-da de “Vitória”) na varanda da habitação, para que da notícia todos tivessem conheci-mento.

Construída a casa, chegava o tempo de lhe dar o devido préstimo, em ordem a que esta não se limitasse a mero local de encontro, mas que se assumisse como o espaço privilegiado ao desenvolvi-mento de outras formas de actividade cultu-

ral. Assim nasceu o teatro, o qual, na opinião de Virgínia Ferreira ocupava muitos dos entusiastas da arte do palco e fazia as delí-cias da população.

Embora nunca tenha feito parte de nenhum grupo, por se julgar sem atributos para isso, mas considerando-se uma espectadora interessada, a carismática sócia da SFUA e bisneta do primeiro presi-dente da União Arrentelense, retém ainda as interpretações em diversas peças, de várias raparigas da sua idade, designadamente da Esperança da Dores, da Maria José do Pepino e da Abrilete da Torre e sua irmã.

“Gente do povo que, após um dia de trabalho na fábrica, se entregava aos encantos da re-pre-sentação. Tudo, sob a orientação do Jaime Xavier, ou Jaime da Amália, sendo que a responsabi-lidade musical cabia ao Manuel Marques, vulgo Manuel da Aurora”, sublinha.

“Paralelamente, assistiu-se também ao aparecimento de algumas orquestras jazz tais como os Marrafinhas e Os Preferidos, precedidos de um conjunto de bandolins (do qual meu pai fez parte) e cuja actividade principal era a de abrilhantarem os bailes que se realizavam, tanto na Sociedade como em outras localidades do Concelho”, adianta.

Uma época, diga-se, marcada por uma exaltação associativa que não deixava ninguém indife-rente, expresso, de resto, na colaboração que cada um prontamente prestava, quando era soli-citado a participar com a sua oferenda para a quermesse, tradicionalmente montada em Setembro.

Fervor esse que, no caso de Virgínia da Silva Ferreira, tem perdurado ao longo dos anos e não se extinguirá com a sua morte, pois, como ela mesma sublinha: “será continuado por minha neta que, seguindo as pisadas dos antepassados, há vários anos integra a banda da Sociedade.”

Com efeito o simples facto de saber da intenção da descendente em querer pertencer “à música da Arrentela” encheu-a de um contentamento tal que, ela própria tratou, nessa mesma noite, de lhe con-feccionar a respectiva farda.

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Grupo cénico da SFUA em 1943

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Documento destinado àangariação de fundos para conclusão do coreto

Cartaz a divulgar uma excursão à Vila de Cascais

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Relação de despesas dos materiais para a construção da Sede

Rifas para angariação de verbasBilhete de baile para angariação de verbas

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Caetano VeríssimoUma vida dedicada à SFUA e à sua Banda

Neste convocar de afectos associativos, vivências e memórias, é-nos sugerido por alguns ele-mentos da direcção da União Arrentelense, a audição de Caetano Veríssimo, 78 anos, um dos associados mais antigos da Colectividade e, porventura, um dos seus filarmónicos cuja ligação à Banda assume maior perenidade.

Homem de trato fácil mas receoso de que, por via da sua pouca instrução escolar, o seu teste-munho pudesse, eventualmente, beliscar a grandeza da obra cultural que a Sociedade ergueu ao cabo dos cento e tal anos que leva de existência, algumas vezes nos chamou a sua casa, em ordem a assinalar determinado detalhe que não mencionara acerca de um ou outro episódio a que antes se tinha reportado.

Essa constante exigência de rigor, em tudo quanto à vida da Colectividade diz respeito, faz dele uma figura deveras respeitada por todos quantos, por esta ou aquela razão, se acham, de alguma forma, ligados à prestigiada agremiação arrentelense.

Embora tenha nascido em Paio Pires, os laços de afectividade que mantém com Arrentela e a sua Sociedade remontam ao tempo em que começou a namorar sua esposa. “Tinha eu 15 anos, quando iniciámos o namoro e casámos quatro anos depois. Como ela era natural de Arrentela e aqui vivia, não tive outra alternativa que não fosse a de emigrar para cá, situação que, por força de todas estas décadas de permanência e dos 50 anos que levo de músico da Sociedade, me confere o estatuto de arrentelense. Pelo menos, assim sou considerado”, refere com notória satisfação.

“Primeiros passos na músicaforam dados em Paio Pires”

Ainda que toda a sua carreira tenha sido realizada na SFUA, foi, no entanto, na Sociedade 5 de Outubro, em Paio Pires, que aprendeu o solfejo. “O meu monitor chamava--se José Costa, pessoa muito dedicada à Banda da sua Sociedade e que para além de ser seu director, foi ainda o primeiro músico do Conce-lho a tocar trombone de vara”, informa.

“Contudo, por razões que se prendiam com as suas funções de encarregado da serra-lharia no Arsenal do Alfeite, numa altura em que ali havia necessidade de efectuar muitos serões, só me pôde dar as primeiras lições, findas as quais me confiou ao senhor Jerónimo Costa.

“No entanto, apesar de todo o empenho colocado por aquele na busca de uma saída para o caso, este também se via a braços com uma tremenda falta de tempo, pois que, tratando-se do único barbeiro existente na aldeia nessa época, não tinha mãos a medir para atender a freguesia. Toda esta situação fazia com que estivesse semanas inteiras sem uma aula, o que, para meu pesar, acabou por me levar à desistência”, recorda.

Filho de uma família de fracos recursos, que trazia uma quinta à renda para alimentar as 12 bocas que constituíam o agregado familiar, o qual incluía, não apenas o casal e os oito filhos, mas também os avós, começou a trabalhar na Wicander aos doze anos, circunstância que, não lhe esmorecendo o sonho de um dia vir a saber música, antes lhe acentuou esse desejo.

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Banda da SFUA com Caetano Veríssimo em pé na primeira fila, o segundo a contar da direita

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“Mais tarde, com a obtenção por parte de minha sogra para namorar a filha e o ingresso na Mundet, associei-me na União Arrentelense, com o intuito inicial de aproveitar as condições mais vanta-josas oferecidas aos sócios no acesso aos bailaricos. Sobretudo porque não tendo ainda obtido idêntica autorização de seu pai, havia que lançar mão a todos os expedientes que possibilitassem os nossos encon-tros”, lembra ainda.

E de tal sorte se revelou a sua entrada para a referida fábrica, que um dia o companheiro e consócio, José de Almeida Cardoso, vulgarmente conhecido por José da Mariana, o aliciou a retomar as aulas de solfejo. Ele mesmo se responsabilizaria pelas lições, na condição de que, quando estivesse apto a receber o instrumento, só aceitaria integrar o corpo da Banda de Arrentela.

Firmado o acordo, lançou-se no aperfeiçoamento dos seus conhecimentos musicais e, desse modo, na concretização do sonho que há muito acalentava no mais fundo de si. Pena foi, diz, que o homem tenha adoecido dos pulmões e não tivesse concluído a sua missão devido ao seu internamento no sanatório.

“Face a este contratempo, Manuel Lourenço Júnior, ou Manuel da Aurora, prontamente cha-mou a si a continuidade do trabalho de me dar as lições que faltavam para terminar esta fase da apren-dizagem. Coube-lhe a ele, portanto, a satisfação de me levar para a estante, de me entregar o instrumen-to e me levar para a Banda”, conta.

A respeito de Manuel Lourenço Júnior, também apelidado de Manuel Marques, convirá subli-nhar que se tratou de uma personagem que marcou uma época na Banda da Sociedade Filarmónica União Arrentelense. Detentor de uma boa formação musical, quer no domínio da composição quer no da execução, ministrada, de resto, por um tio cego, esta formação permitia-lhe tocar todos os instrumentos de bocal existentes na Banda. De igual modo, era ele quem escrevia todo o tipo de pautas para a Banda.

Uma aptidão rara para a época, especialmente se nos recordarmos que todo o material utilizado pelos músicos tinha de ser manualmente copiado, porque, ao tempo, não havia ainda fotocopiadoras. Era uma tarefa que lhe tomava todos os momentos livres, tornando-o, no dizer de quantos o conheceram, num escravo da própria Banda, situação de que não se importava, pois entregava-se ao seu labor com prazer e dedicação.

Água tirada dos poçose bailes à luz do petromax

Retomando o fio à extensa lista de histórias em volta da União Arrentelense, Caetano Veríssimo refere igualmente recordar-se das orquestras jazz que animavam os habituais bailes que regularmente nela tinham lugar.

“Era a realização desses bailes que safava a Colectividade, porque nessa altura esta vivia com muitas dificuldades”, realça. “Estamos a falar de um período em que não havia água ‘encanada’ nem electricidade. E a maioria dos habitantes da terra eram operários da Mundet, Wicander ou dos Lanifícios, que se debatiam com grandes privações, porque os ordenados eram extremamente baixos”, sublinha.

Tal quadro vivencial estimulava a imaginação de quantos a ele estavam sujeitos, de forma a encontrar soluções que facilitassem as suas condições de vida. O exercício imaginativo estendia--se, como se compreende, também aos corpos directivos da Colectividade, sobretudo no concernente aos aspectos que se prendiam com o bom funcionamento do bar e com a limpeza das instalações sa-nitárias.

Nesse sentido, resolveram instalar no telhado do edifício um pequeno reservatório, regularmen-te cheio, à força de pulso, por meio de baldes de água, recolhidos nos três poços envolventes à Sede.

O mesmo se poderá dizer quanto à falta de luz, situação ultrapassada através de gasóme-tros a carboneto, mais tarde substituídos por uns petromaxes a petróleo.

“O problema era só haver dois. Número que, por manifestamente insuficiente, nos colocava, como é de ver, nos dias em que se realizavam festas ou bailes. E estas dificuldades, ou melhor, aflições, mais se acentuavam quando um deles queimava a respectiva camisa. Quando tal acontecia, ficávamos à média luz, durante o tempo necessário ao arrefecimento da cabeça e à subsequente

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substituição da camisa. Parecia que a festa ou baile se transformava, subitamente, numa espécie de velório. Enfim, uma tristeza”, lembra.

Retratos de uma época marcada pela constante exigência de sacrifícios a quantos se entrega-vam à causa associativa, na primeira linha dos quais, se encontravam os filarmónicos, que frequentemen-te se deslocavam, a pé, com os instrumentos debaixo do braço, até aos locais onde iam a actuar.

“As posses da Sociedade não nos permitam que tomássemos a camioneta, logo, íamos e ví-nhamos a pé, quer fosse para a Amora quer para Paio Pires, ou mesmo para o Seixal”, acentua Caetano Veríssimo que, ao longo das várias décadas de ligação que mantém à SFUA, passou por quase todos os corpos directivos da agremiação.

Compra ou reparação de instrumentospagas a prestações sob fiança de um director

De acordo com o conhecido filarmónico da SFUA, os músicos da Banda não auferiam nenhum tipo de vencimento. E quando recebiam alguma importância, esta limitava-se, exclusivamente, ao paga-mento das horas de dispensa - não remuneradas - concedidas pelos responsáveis das diversas fábricas, mediante prévia solicitação formulada pela Colectividade. Mas isso só acontecia quando a Banda era contratada para ir actuar fora do Concelho.

Por mor dos constrangimentos financeiros que permanentemente apoquentavam este tipo de institui-ções, a compra de instrumentos constituía, invariavel-mente, uma aflitiva dor de cabeça para os seus directo-res, que se viam forçados a responsabilizar-se pelo pagamento, se alguma das prestações não obtivesse boa cobrança na data aprazada.

“Tínhamos de ser nós próprios os fiadores da Colectividade junto das casas que comercia-lizavam os instrumentos, para que estas autorizassem a sua venda a crédito. O mesmo sucedia quanto às reparações. De outro modo, nada feito, não havia instrumento para nin-guém. Uma inquietação levada da breca!” Assegura.

“Mais ainda: os ordenados da generalidade da massa associativa eram, nesse tempo, tão bai-xos, que a quotização mal dava para pagar o mísero vencimento do contínuo, recebendo este, somente, trinta e cinco escudos/mês. E se o homem se fartava de trabalhar! Trabalhava que nem um mouro. Aliás, era ele quem acarretava numa bilha, com capacidade superior à de um desses barris de madeira, toda a água necessária ao funcionamento da Colectividade”, salienta.

Precisando o índice dos salários então praticados, Caetano Veríssimo esclarece, igualmente, que, quando começou a trabalhar foi vencer 2$50/dia e, quando casou, ganhava 7$50 por semana. E o que se passava consigo passava-se, de resto, com os operários das demais fábricas do Concelho. “Com ordenados desta dimensão, não era possível cobrar quotas cujo valor se reflectisse, pesadamente, na bolsa das pessoas. Por essa razão, o seu valor era de 2$50 mensais”, afirma.

Só o Dr. Alfredo Reis, dono da Quinta da Fidalga e o senhor João Guilherme Carvalho Duarte, proprietário da Quinta da Soledade, homens de muitas posses nessa altura, é que pagavam, respectiva-mente, 3000$00 e 1100$00 por mês. “Quase uma fortuna! Todos os outros ficavam-se pelos vinte e cinco tostões ou, no máximo, pelos três mil réis”, acrescenta.

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Elementos da Banda da SFUA

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“Material eléctrico do arraialcomprado com colecta públicafoi emprestado à Câmara e não voltou”

Ante esta penúria, as tarefas de limpeza da Colectividade recaíam, como facilmente se compre-ende, sobre as mulheres ou sobrinhas dos elementos da direcção, designadamente, quando se tornava forçoso preparar a sala para a realização de qualquer evento festivo.

“Tantas vezes esfregou minha mulher o soalho da Sociedade, por mor da casa estar apresentável no dia desta ou daquela festa. Só assim, conseguíamos levar a ‘carta a Garcia’. De outro modo, não era possível a sobrevivência da Sociedade”, garante.

Sabedor da arte de tocar e de artes outras que o engenho mais incita, sobretudo quando se exerce a função de gerir uma casa onde todos os tostões eram contados, Caetano Veríssimo e os restantes companheiros de direcção lançavam mão a todas as iniciativas que, à partida, se afi-gurassem susceptí-veis de gerar alguns proventos. De entre elas, ressalta a realização dos arraiais populares, aproveitando, para o efeito, o espaço que o antigo jardim público oferecia.

“Como ali se situava o coreto e a configuração do local assentava que nem uma luva às nossas necessidades, não precisávamos de montar qualquer palco, o que, desde logo, era menos uma canseira, porque tanto a Banda como a Orquestra dele se serviam para os concertos ou bailes. Havia apenas que dispor os balões de papel, iguais aos que as marchas utilizam. Mais tarde, com o apare-cimento da ener-gia eléctrica, é que passamos a colocar lâmpadas, em resultado de uma colecta feita junto dos habitantes da terra”, adianta.

“Mas curiosidade das curiosidades, ao saber desta benfeitoria, Cosme Narciso Lopes, pre-siden-te da Câmara, na altura, imediatamente cuidou de nos pedir, a título de empréstimo, os 300 metros de fio que tínhamos adquirido, para que as festas de S. Pedro, no Seixal, também se apresentassem electrifica-das”, diz ainda Caetano Veríssimo.

“Ora, findas as festas e, não obstante as nossas insistências, para que o mesmo nos fosse devol-vido, o raio do fio nunca mais cá chegou! E apesar da Sociedade de Arrentela ser uma das mais pobres do Concelho, ainda se viu privada daquele material! E muita falta lhe fazia!” Assevera.

Marcha de Arrentelaexibe-se em Lisboa

Peripécias que não esmoreciam a determinação de quem depositava toda a dedicação no mere-cimento da SFUA, qualquer que fosse o lugar a que esta se deslocasse. “Esse esmero chegou ao ponto de nos levar a preparar, dentro da Sede, um quarto para o mestre pernoitar nas noites em que dava ensaio, porque, nesse tempo, os transportes públicos eram escassos a partir de determinada hora”, pre-cisa Caetano Veríssimo.

E com outros mais cometimentos se construiu o prestígio da agremiação. Para satisfação dos associados e gáudio dos espectadores.

Dos inúmeros registos que a sua memória consegue recuperar, Caetano Veríssimo retém a rea-lização de duas marchares populares, em 1946 e 1951, a última das quais teve mesmo a honra de ser convidada a exibir-se - extra-concurso - no Pavilhão dos Desportos, em Lisboa, por ocasião do desfile que habitualmente a Câmara local promove.

“Foi um contentamento indescritível”, afirma, para logo aludir ao que considera tratar-se de “uma ‘tramóia’” de todo o tamanho, protagonizada por Cosme Lopes que, para evitar conflitos entre os apoiantes de cada uma das cinco marchas participantes no concurso promovido pela Câmara, em 46, resolveu não anunciar o vencedor, ficando, assim, a taça por entregar.

Tempos áureos de uma agremiação que fazia da música a sua mais destacada bandeira. Não é por isso de estranhar que constantemente fosse solicitada para actuar em diversas localidades dos arre-

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dores de Lisboa. “Íamos a Vila Franca de Xira, Carregado e

Alenquer, animar festas ou procissões. O mesmo acontecia com os grupos de jazz. Todos constituídos por gente da Banda. Não havia músicos de fora. Um deles, o União Jazz trajava até com fardamento pró-prio”, diz.

Mas, nem só de êxitos se fizeram os dias da SFUA e da sua banda, algumas dificuldades houve que marcaram também o seu percurso ao longo de tantos anos, especialmente quando, por força de uma profunda crise de trabalho ocorrida no Concelho, nos anos quarenta, alguns músicos se viram forçados a buscar sustento noutros pontos do País.

“Foi uma razia tão forte, que a Banda ficou inactiva. E o problema assumiu ainda maior dimen-são quando a paróquia nos enviou um ofício convidando-a para tocar na procissão anual do Dia de Todos os Santos. Valeu-nos, na circunstância, o facto de a União Seixalense ser a nossa madrinha e prontamen-te ter cedido quinze dos seus músicos, para completar os elementos que faltavam aos diferentes naipes”, recorda Caetano Veríssimo.

Damas ao bufeteCertamente que por via dos sócios terem acesso gratuito à generalidade das iniciativas promo-

vidas pela Colectividade, a receita de bilheteira não era muito significativa, razão pela qual havia que perspectivar outra formas de angariar fundos. A mais vulgar, designada “Damas ao Bufete”, ocorria sem-pre que havia baile e consubstanciava-se na interrupção momentânea da dança, para que cada cavalhei-ro fosse solicitado a ofertar um chocolate ou um bolo à dama de seu par.

“Ora, para evitar que alguns se furtassem, diversos directores da Sociedade se muniam, anteci-padamente, de uma bandeja com os referidos bolos e tabletes de chocolate, invadindo subitamente a sala, antes da música parar, pelo que, todos quantos andavam a dançar, não tinham possibilidades de escapar.

Se acaso recusassem a gentileza, isso era entendido como uma falta de cavalheirismo e uma ofensa ao próprio par, que tomava logo a iniciativa de se sentar”, relata.

“Ora, com esse estratagema, é que se fazia o lucro de cada baile, porque a cobrança dos bilhetes de ingresso não tinha quase expressão, tão reduzido era o número de forasteiros que aqui acorriam. Só assim, pois, se tornava possível chegarmos ao fim do mês e haver dinheiro para pagar ao mes-tre da Banda e o aluguer da Sede”, conta.

É evidente, que a realização de qualquer evento, por mais banal que fosse, acarretava, necessariamente, um conjunto de encargos. No caso dos bailes, as autori-

dades locais exigiam antecipadamente o pagamento da respectiva licença e no dos arraiais ainda uma taxa de 7$50 por cada vara espetada no solo.

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Orquestra jazz

Orquestra jazz Os Marrafinhas

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“E no fim do arraial tínhamos de retirar as varas e tapar os respectivos buracos. Era um caso sério arranjar o dinheiro para pagar todas estas alcavalas. Muitas vezes tivemos que ser nós a pagar da própria algibeira essas e outras despesas”, diz.

Elemento das orquestras jazz, Os Marrafinhas e de Os Feijão Verde, cuja função era a de animar gratuitamente os bailaricos promovidos pela Colectividade, Caetano Veríssimo recorda ainda a realiza-ção de algumas cavalhadas, igualmente com o objectivo de angariar fundos, e cujos prémios eram doados pelas pessoas da terra.

“Um dava uma galinha, outro um peru, outro um coelho, outros ofereciam outra coisa qual-quer... Assim se arranjavam os prémios. E quando estes não chegavam, pendurávamos algumas latas com água e os que tentavam tirá-las acabavam por tomar banho. Eles e as respectivas montadas”, relem-bra. “O povo delirava com aquilo. Um fartote.”

O encalhe da fragatae a paragem da Banda

Avivada a memória por este desfiar de histórias tarde fora, recupera igualmente a aventura de uma viagem de regresso do Barreiro, onde a Banda fora actuar por ocasião da Festa da Nª. Srª. do Rosário.

“Considerando que a Sociedade não tinha condições para assumir as despesas de deslocação em camioneta, a Mundet emprestou uma das suas fragatas de transporte de cortiça para que a Banda não faltasse a esse compromisso. Essas fragatas, diga-se, não possuíam motor, navegando só à vela.

“Para lá, a viagem correu sem novidades. Mas na volta, o fragateiro, confundido, eventualmen-te pelo efeito dos ‘copitos’ que bebera, baralhou-se com a rota e tomou o rumo de um baixio, acabando por encalhar o barco a meio caminho. Ante este contratempo, tivemos que ali permanecer o resto da noite, aguardando que a maré subisse o suficiente para libertar a embarcação e, assim, voltarmos a nave-gar. Já ia alta a manhã quando desembarcámos, perdidos de sono no Seixal”, sub-linha.

Homem simples que de simplicidades várias se contenta, Caetano Veríssimo, dias depois de ter prestado o seu testemunho, considerou, no entanto, que o mesmo não se encontrava completo, porque não fizera expressa referência aos diversos maestros da Banda com quem trabalhara.

“Seria injusto da minha parte não mencionar os homens que, durante os cinquenta anos em que nela permaneci, me ajudaram a enriquecer o conhecimento que eu tinha da música e da vida. São eles: Carlos Soares Oliveira, Joaquim Pinto, António Gonçalves, Joaquim Jorge, Luís Santos, Leal Calqueiro e o António Baptista”, salienta.

Relatos de quem, por carolice, dedicou à Sociedade Filarmónica União Arrentelense o maior quinhão da sua vida. Mas, também, por amor à música e aos nobres valores do associativismo.

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Banda da SFUA em 1956

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João Costa:“A Arrentela era uma famíliae a Sociedade a sua casa”

Natural de Arrentela, João Costa, 81 anos, é um dos homens mais conhecidos e respeitados entre os habitantes do antigo núcleo populacional desta localidade, onde, aliás, instalou a sua própria oficina tipográfica, para exercer a arte aprendida em criança nas Oficinas de S. José, em Lisboa, institui-ção na qual foi educado.

Entusiasta do movimento associativo e dos ideais de fraternidade que o caracterizam, não espanta, por isso, que desde os 14 anos seja sócio das duas mais velhas colectividades da terra, com espe-cial saliência para a União Arrentelense, cuja vida tem acompanhado a par e passo, situação que lhe confere o estatuto de testemunha atenta ao seu percurso.

Apesar de não haver seguido o mesmo caminho que a maioria dos rapazes da sua criação, por mor de possuir uma dentição que não se ajustava aos instrumentos de palheta, João Costa diz que tal não o impedia de participar na vida da agremiação, “até porque, nesse tempo, havia um grande bairrismo em torno da terra. E a Sociedade, acabava no fundo, por representar a expressão pública dessa afeição.”

O rompimento de relaçõesentre a Sociedade e o Arrentela

Naturalmente que, quando tais sentimentos se exacerbavam, abriam as portas ao aparecimento da vaidade e da rivalidade. Estes ímpetos, sempre que não eram contidos, extravasavam os limites do razoável e tornavam-se perniciosos, conduzindo algumas vezes ao rompimento de relações entre congé-neres.

“Isso mesmo aconteceu, com as duas colectividades de Arrentela, não obstante parte significa-tiva dos associados pertencer a ambas. Mas as razões que estiveram na génese desse desentendimento fundaram-se unicamente em aspectos que se prendiam com conceitos da moral vigente e não em qual-quer outro tipo de questões”, conta João Costa.

“Tudo resultou do facto de o Clube de Futebol não dispor de condições e haver solicitado à SFUA que permitisse aos jogadores a utilização das suas instalações para se equiparem. Já se vê, tratan-do-se de rapaziada nova, alguns começaram logo a fazer coisas do arco-da-velha, pondo-se quase nus dentro da Sociedade”, adianta.

“Ora, tais comportamentos causaram um evidente mal-estar, sobretudo entre as mulheres, que imediatamente começaram a contestar a referida cedência, no que foram apoiadas por diversos homens que também não acharam graça aos ‘preparos’ em que os rapazes, de vez em quando, se punham.”

Ante o notório clima de descontentamento reinante entre os sócios, a direcção viu-se obrigada a proibir a malta da bola de ali se vestir, decisão que fez estalar um conflito entre as duas agremiações e o consequente corte de relações, mais tarde ultrapassado com o bom senso que faltou aos rapazes, mas que as circunstâncias exigiram. “Tanto mais que não fazia sentido as duas colectividades da terra perma-necerem de costas voltadas”, acentua.

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A rádio e a televisãoenchiam a Colectividade

Actor amador num dos grupos cénicos da União Arrentelense, João Costa destaca o talento de Abrilete, uma moça que vivia na Torre da Marinha e que considera uma actriz de grandes recursos, para o seu tempo. “Uma verdadeira profissional”, opina.

“Aqui se representou A Recompensa, entre outras peças, bem como algumas revistas, escritas pelos próprios elementos do grupo”, recorda.

“Estamos a falar de uma época em que o teatro desempenhava um papel deveras importante, tanto na ocupação dos tempos livres das pessoas como na sua formação cultural. Ainda não havia rádio e muito menos televisão”, precisa.

“Aliás, quando apareceu a Rádio, a Sociedade tratou, logo que lhe foi possível, de comprar uma telefonia, porque, sendo uma novidade, constituía mais um veículo de ligação do povo à Colectividade. De tal sorte assim era, que todos os serões a casa se enchia de gente para ouvir as chamadas novelas radiofónicas. Um entretenimento que, em alguns domínios, viera dar mais alma à alma da Colectividade. O mesmo se passou com a chegada das emissões de televisão.

“Quanto a esta, porque a compra do aparelho custava muito dinheiro, constituiu-se uma comis-são para o efeito. Como, de resto, era tradicional fazer-se sempre que se pretendia adquirir alguma coisa.” Refere ainda.

Sem deixar de aludir ao facto de que se reporta a uma época em que as pessoas se conhe-ciam todas umas às outras, porque o núcleo habitacional era constituído apenas pelo casario da zona que hoje se denomina de “Arrentela Velha”, João Costa salienta igualmente que, “por esse motivo e por força do convívio diário que caracterizava o quotidiano dos seus moradores, estes davam-se como se fossem uma família.

“Tudo quanto se fazia emanava do sentimento bairrista que invadia cada um de nós e no amor que sentíamos pela Sociedade. Não havia nenhum espírito de promoção pessoal. Esse tipo de vaidades não existiam nesse tempo. A nossa grande vaidade era ver a Sociedade fazer boa figura onde quer que fosse. Isso, sim, deixava-nos felizes”, salienta.

Enquanto recorda que as únicas disputas que se faziam sentir resultavam da intenção mani-festada por cada nova direcção de pretender fazer melhor que a sua antecessora, João Costa lembra também que “as condições de vida das pessoas não lhes permitiam gastar energias em discussões inúteis. Tanto mais que nos reportamos a um período da história deste país em que a luta pela sobrevivência era muito dura. Basta dizer que se não fosse a abundância de ostras, lamejinhas, canivetes, berbigões e amê-ijoas, que o rio dava, muita gente teria morrido tuberculosa, porque não tinha outra forma de se alimen-tar”, enfatiza.

Marchante das marchas populares organizadas pela Sociedade, João Costa relembra ainda um dos versos que cantou: “Aqui vai a marcha de Arrentela/Terra onde Vasco da Gama/costumava descan-sar/ Que grande glória/p’rá nossa história/ é ver o herói a repousar.”

O tema, como se depreende, tinha a ver com as permanências de Vasco da Gama na Quinta da Fidalga, antes de largar em busca do caminho marítimo para a Índia. “Foi uma iniciativa que mobilizou todos os moradores. Cada vez que ela se exibia, ia tudo atrás da marcha”, garante.

Tendo passado por todos os cargos dirigentes da Colectividade, por considerar que se tratava de um dos poucos meios onde se podia levar a efeito um certo trabalho de formação política, apesar dos constrangimentos que o regime fascista levantava, o carismático arrentelense sustenta ainda que, com o 25 de Abril, entendeu que a sua colaboração seria mais útil no desempenho de outras tarefas, razão pela qual trocou a militância associativa pela militância política.

“Esta troca não significa que tenha deixado de gostar da Sociedade, tal como gostava. Nem que tenha deixado de acompanhar o seu dia-a-dia. Só que o faço de uma maneira menos apaixonada”, sus-tenta.

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Manuel da AdiçaA versatilidade ao serviçoda União Arrentelense

Pessoa também bastante popular entre as gentes do velho núcleo populacional de Arrentela é Manuel Carlos Câmara, mas tratado pelos seus conterrâneos pela alcunha de Manuel da Adiça, em consequência de seu pai haver sido conhecido por Tendeiro da Adiça. Tal epíteto, atribuído pelos antigos moradores da zona ao seu antecessor, constituir-se-ia numa referência tão marcante que quase ninguém sabe dizer quem é Manuel Câmara.

Nascido nesta localidade ribeirinha há 82 anos, este arrentelense, que faz gosto em ser conside-rado uma figura típica da terra, encontra-se ligado à Sociedade União Arrentelense desde a sua adoles-cência, altura em que integrou pela primeira vez a respectiva direcção. “Fui director da Sociedade aos 14 anos”, informa.

“Sociedade de Arrentela,um alfobre de músicos”

Segundo Manuel Câmara, ou melhor, Manuel da Adiça, nessa época, o número de famílias que aqui viviam era reduzido. Logo, para evitar que a Colectividade fechasse as portas, os mais novos tinham que chamar a si a responsabilidade de a manter em actividade e como o principal atractivo era a música, a generalidade da rapaziada aprendia esta arte. Esse ensino, que se prolonga até aos nossos dias, tem levado à descoberta de muitos talentos.

Para ele, essas são, a seu ver, as duas ponderosas razões que conduziram a que a localidade tenha conquistado um lugar de destaque no mapa das terras que mais tradições musicais apresentam e maior número de músicos dá às bandas militares.

“Há músicos formados na nossa colectividade, que exercem hoje a sua profissão na Banda da GNR, da Marinha, do Exército ou da Força Aérea”, observa.

Homem de múltiplas facetas, que se expressam designadamente no domínio da pintura, Manuel da Adiça lembra, a esse propósito, que os arcos das marchas populares organizadas na SFUA, em 46 e 51, foram de sua autoria, bem assim como os diversos cenários das peças representadas pelos grupos de teatro, além de que também é o autor do emblema Atlético Clube de Portugal.

Ao mesmo tempo que o sino da igreja, junto à qual habita, assinalava as cinco da tarde, Manuel da Adiça acrescentava ter sido ainda obra sua a decoração da sala para a realização dos vários bailes que, a pretexto disto ou daquilo, ali se efectuavam.

“Artur Agostinho arrematouum cacho de uvas por 90$00”

“Era eu quem imaginava a ornamentação da Sociedade sempre que havia um baile que se pre-tendia de maior nomeada. Havia que arranjar dinheiro para os fardamentos da Banda, para os instru-mentos, para pagar ao mestre, enfim, para essas coisas todas... E este tipo de acontecimentos, constituíam um bom motivo de receita”, esclarece.

Mas, na sua óptica, os eventos que mais trabalho lhe davam e, por via disso, mais envaidecido o deixavam, eram os denominados Bailes da Primavera. “Vinha gente da Cova da Piedade, de Almada, de Sesimbra e do Barreiro, para apreciar a decoração da casa e participar no leilão dos respectivos moti-vos decorativos. Até cá chegou a vir o locutor Artur Agostinho, que arrematou um cacho de uvas por 90$00. Um dinheirão, nesse tempo!” salienta.

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De acordo ainda com Manuel da Adiça, apesar do êxito, essa iniciativa realizava-se só uma vez por ano, o que era, manifestamente, insuficiente para dissipar as dificuldades. “Por via disso, durante muitos anos, me privei de um borrego que um amigo me oferecia pela Páscoa ou pelo Natal, para o doar à Sociedade, a fim de que esta o rifasse, e assim, pudesse angariar mais uns tostões.”

Referindo com indisfarçável orgulho ser actualmente o sócio n.º 3 da Sociedade, Manuel da Adiça diz igualmente ter pertencido 42 vezes aos corpos gerentes da colectividade, motivo suficiente-mente ponderoso para exclamar: “Como não sentir-me ligado a tudo quanto de melhor nela se fez?”

Histórias, episódios e peripécias, contadas por quem as viveu ou delas teve conhecimento atra-vés do relato de familiares próximos, e que, por isso mesmo, constituem parte inalienável do vasto espó-lio cultural e humano do movimento associativo seixalense.

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Sala ornamentada para o Baile de Primavera

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Coreto de Arrentela

Festa de colocação do pau de bandeira na sede da SFUA

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Sociedade Filarmónica Operária Amorense

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Trechos de uma sociedade que dos operários se ergueu

De vontades operárias se ergueu a Sociedade, para que delas fosse o testemunho autêntico de quantas artes pode o homem em seus misteres, quando a elas se entrega por inteiro. Nesse leito de afectos e vontades se achara concebida e se afirmara. Nele tivera ainda a gestação das múltiplas experiências que em seu redor se foram reunindo, para intentar viagens que a busca do saber mais incitava.

Por hábeis mãos se ergueu e caminhou, ao encontro dos sonhos e do porvir. Mãos de artistas, se sabe, que modelando o vidro em gestos repetidos, ambicionavam as alquimias outras, onde o sopro melhor se sublimasse e o manejo dos dedos melhor se enaltecesse. Operária se chamou. E Filarmónica. E Amorense ainda, para que desta terra fosse ela a bandeira que a todos congregava.

Sonho antigo, que aos poucos se enlaçou ao querer de um inglês que à música se dava e que instigando ânsias e paixões de descobrir as latitudes outras que do solfejo ousam desprender-se, dele se fez seu cúmplice e seu mestre.

Menina bonita dos olhos operários, com muitas privações se confrontou até chegar ao cais dos nossos dias. Casa que a persistência soube levantar onde guardar pudesse seus pertences, so-nhos e afectos. Mas de crises várias nos falam seus anais, quando, por mor do pão, muitos foram para longe conquistar o sustento que por aqui então já lhes faltava.

São, pois, algumas dessas histórias, episódios e vivências que ora se contarão na primeira pessoa do singular, relatadas por alguns dos homens que a ela doaram, não apenas o corpo mas a alma também.

Percursos de gente simples, que de afectos constantes construiu o sólido edifício em que se suporta o vasto espólio humano da popular agremiação. Relatos de um passado intensamente vivido por aqueles que, buscando a dignificação da casa a que pertenciam, tudo deram para a prestigiar, prestigiando assim a causa associativa e o Concelho.

Amélio Baptista CunhaUma vivência associativacom noventa anos

Retirado, há largos anos, dos afazeres associativos devido à morte de um filho, e por-que a sua provecta idade também não lho per-mite, Amélio Baptista Cunha, 90 anos, não deixa, por isso, de ser considerado uma perso-nalidade bastante respeitada entre todos os associados da SFOA, que por ele nutrem um particular carinho.

Conhecedor, como poucos, em quantas traves mestras se alicerçou o legado histórico da Operária Amorense, este ancião, a quem o peso dos anos não fez perder clarividência nem con-fundiu a memória, vive, hoje, o seu dia-a-dia no Lar de Nª. Srª do Monte Sião, na Quinta da Princesa.

Detentor de uma lucidez deveras invejável, a qual não lhe permite trocar acontecimentos ou baralhar episódios, Amélio Baptista Cunha assinala que a designação inicial da SFOA era a de Sociedade Filarmónica da Fábrica de Garrafas de Amora, o que, desde logo, provocou, o óbvio des-

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Banda da Operária Amorense de 1938 a 1942,à direita do maestro encontra-se Amélio Cunha

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contentamento das forças vivas da terra, porque entre os associados se encontravam também pesso-as de outras profissões, nomeadamente marítimos, comerciantes, pequenos proprietários e traba-lhadores rurais. Em consequência disso e das diligências feitas pelo administrador do Concelho, Manuel Luís de Carvalho, junto dos meios políticas da época, acabaria por adoptar a denominação que ainda mantém.

Este carismático associado da Operária Amorense informa ter tocado na Filarmónica de 1923 a 1940, período durante o qual desempenhou ainda as funções de contramestre e de director da Banda, não apenas por gostar de música mas, igualmente, por uma espécie de imperativo de ordem moral que o impelia a prestigiar a Sociedade da sua terra e as suas gentes.

Católicos tinham uma festa popular e os republicanos outra

“Dir-se-ia que, nesse tempo, as filarmónicas, e em especial a nossa, sempre que saíam à rua, para dar o seu contributo às festas que aqui ocorriam, arrastavam atrás de si toda a população de Amora”, diz Amélio Baptista Cunha, que conta ainda ter tocado na Banda do Regimento de Caçadores 7, no período em que cumpriu o serviço militar, para logo sustentar que tais festas eram mais bonitas do que as que hoje se fazem.

Segundo este ancião amorense, ao contrário do que agora sucede, nessa altura, havia duas festas populares em Amora, fruto da rivalidade entre os habitantes da chamada Amora de Cima e os da denominada Amora de Baixo. Uma realizada pelos católicos, a outra promovida pelos republica-nos.

“Uma ocasião, o rapaz encarregue de pintar a quermesse da festa republicana, por manifes-ta ignorância política, não prestou atenção às cores da tinta que estava a utilizar e pintou-a de bran-co e azul, as cores da monarquia. Aquilo foi o cabo dos trabalhos! Ia caindo o Carmo e a Trindade. As coisas só serenaram quando a referida quermesse foi repintada de verde e vermelho”, recorda.

A organização da primeira pertencia à Igreja; a outra cabia, geralmente, à Sociedade, moti-vo porque todos os associados se sentiam moralmente obrigados a participar nas diversas comissões criadas para levar a cabo tal tarefa.

“Os que, por qualquer motivo, não podiam dar o seu trabalho, colaboravam na compra das rifas que tradicionalmente se faziam para arranjar o dinheiro necessário à montagem dos festejos. Tratava-se de uma tarefa que a todos mobilizava e à qual todos aderiam”, assinala.

A construção da Sedee o ‘Bodo aos Pobres’

Outro exemplo da dedicação com que

as gentes de Amora se entregavam, nesse tempo, à SFOA é-nos contado por Amélio Cunha quan-do relata que “após a doação do terreno, feita por D. Branca Saraiva de Carvalho, para a cons-trução da actual sede, se verificou que a concre-tização de tão arrojado projecto exigia uma soma que a Sociedade não tinha capacidade de suportar. A menos que a obra fosse inteiramente executada pelos sócios. E assim foi. Durante um largo período de tempo, toda a rapaziada, mal saía das fábricas, vinha para a verbena ajudar naquilo que podia”, acentua.

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Verbena de Amora, espaço que precedeu a sede da SFOA

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Enquanto informa que o edifício foi construído no local onde antes funcionava a verbena e na qual, aliás, muitas vezes, integrando o grupo Os Melros, animou os bailaricos que ali se realizavam com o objectivo de angariar fundos para a compra de instrumentos para a Banda e, mais tarde, para a aquisição dos materiais indispensáveis à obra, Amélio Baptista Cunha informa ainda ter sido o autor da letra da Marcha Popular de Amora, organizada em 1940.

“A ideia de fazer essa marcha, para a qual consegui aliciar ou-tros entusiastas, fundou-se na convicção de que se tratava de um exce-lente meio de aproveitar a adesão que este tipo de manifestações co-lhiam entre a população, para assim, promovermos um ‘bodo aos pobres’”, lembra.

“Nessa altura, havia muitas famílias nesta terra, que viviam com extrema dificuldade. Pelo que se bem o pensámos, melhor o fizemos. E logo que considerámos que a marcha estava capaz de se exibir publicamente, promovemos um espectáculo no adro da Igreja, com entradas pagas, em ordem a cumprirmos o objectivo primeiro da tarefa a que nos havía-mos proposto”, realça

“Tal ousadia, que inicialmente gerou alguma controvérsia, devido ao facto de o preço dos bilhetes ser de quinze tostões, para os lugares sentados, e dez para os lugares em pé, acabaria, de resto, por proporcionar a entrega de um avio, nesse Natal, a uma quantidade de lares”, diz.

“Mas, o mais curioso disto tudo estaria na reacção das pessoas que, ao aproximar-se o momento de se iniciar o espectáculo, resolveram querer todas lugares sentados. Mesmo aquelas que tinham contestado os preços. Foi uma aflição levada da breca arranjar cadeiras para sentar tanta gente. Tivemos que pedir às pessoas que viviam nas proximidades para irem a casa buscar todas as cadeiras que tivessem”, frisa.

“Além disso, a marcha receberia ainda um convite da Câmara para participar no concurso que a edilidade decidira promover, no campo de jogos do Seixal Futebol Clube”, recorda Amélio Baptista Cunha.

De vivências outras se lembra igualmente o respeitado amorense. Entre elas as paródias em que tradicionalmente participava por alturas do Carnaval.

“Nessa quadra, organizávamos uma cegada que percorria as ruas da terra tocando trechos musicais alusivos aos assuntos que aqui se tinham passado no resto do ano. Para tanto, colocávamos umas barbas postiças e lá íamos, à porta de um e de outro, até nos sentirmos cansados. Naquele tempo, vivia-se de maneira bem diferente daquela que hoje se vive. Conhecíamo-nos todos uns aos outros. Dir-se-ia que constituíamos uma só família”, sublinha com alguma saudade.

Música e teatrodois marcos da SFOA

A par da música, o teatro era outra das actividades marcantes no quotidiano da Sociedade, com particular destaque para Os Incansáveis, grupo que, na opinião de Amélio Baptista Cunha, re-presentava com notória desenvoltura grandes dramas e cujo prestígio fazia afluir à Amora elevado número de espectadores tanto do Concelho, como de Almada.

Todavia, as frequentes crises laborais, que atingiam o operariado local, e a consequente falta de trabalho que determinavam, a que se juntou ainda o encerramento da fábrica de vidros, obrigou muitos dos habitantes da localidade a rumar até à cidade do Porto, buscando ocupação numa unidade congénere ali entretanto criada. O processo migratório provocou uma prolongada inactivi-dade da própria Colectividade e a extinção do grupo.

“A coisa foi de tal ordem que, durante largos meses, a Sociedade esteve de portas fechadas, em consequência de quase todos os seus directores terem saído da terra. Tamanha debandada levou ainda o proprietário da casa onde então funcionava a Sede a pretender deitar-lhe a mão, por falta de

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Bodo distribuído aos pobres

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pagamento das respectivas rendas. Felizmente, conseguiu-se evitar que isso acontecesse”, lembra Amélio Cunha.

Ultrapassado esse período aflitivo da vida da SFOA, voltou esta a viver dias de maior esplen-dor e entusiasmo com a reactivação da sua banda e a constituição de um novo grupo cénico cujos elementos denominaram de Os Persistentes, numa clara alusão às dificuldades vividas pela Colectividade.

Influenciado por um tio e pelo acolhedor ambiente que se respirava dentro da Sociedade, Amélio Baptista Cunha desde muito novo se habituou a conviver com estas formas de expressão artística, de resto, muito populares na época.

“Nesse tempo, uma das grandes metas que se colocavam a quem, como eu, desde miúdo ali permanecia a maior parte do tempo, era a de sair um dia na Banda. Esse desejo não me impedia, contudo, de prestar a devida aten-ção à actividade desenvolvida pelos grupos cénicos e aos homens que neles, a meu ver, mais se destacavam, entre os quais retenho Carlos Pedro da Costa Lima e o seu cuidadoso trabalho de ensaiador”, refere.

No entender de Amélio Baptista Cunha, era um homem que colocava um elevado grau de exigência em todos os actores, não permitin-do que o pano subisse sem que previamente se certificasse de que a caracterização de cada um estava de acordo com o papel que iriam desem-penhar.

“Essa permanente atenção aos actores fez com que, uma vez, descurasse a sua própria indumentária, entrando em cena de braguilha aberta. Tamanho descuido suscitou, naturalmen-te, uma gargalhada geral, o que lhe provocou grande perplexidade, dado que o papel que lhe cabia desempenhar era de grande seriedade”, lembra sorridente Amélio Cunha.

“Isso aconteceu na peça A Santa Inquisição, um drama no qual ele depunha pe-rante o tribunal. Só no final do acto se deu conta da descompostura em que estivera durante toda aquela parte da representação. E foi porque lho disseram”, anota.

Empregado de escritório da extinta Fábrica Mundet, empresa onde permaneceu 52 anos, Amélio Baptista Cunha relembra que nos primórdios da sua ligação à Sociedade o coreto era, por excelência, o lugar onde decorriam os concertos, quer da Banda de Amora quer de todas as outras que ali vinham tocar. Nele actuaram também as Bandas da GNR e da Marinha.

Apesar da sua provecta idade, a qual lhe confere o estatuto de memória viva da localidade, Amélio Cunha sublinha, no entanto, que não obstante haver cessado a sua ligação à banda aos 32 anos, essa decisão não constituiu nenhuma rotura com a SFOA, e tanto assim era que bastas vezes foi solicitado por elementos da direcção para a representar em diversas acontecimentos.

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Grupo de Teatro “Os Persistentes”

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A Estudantina Amorense “Uma ocasião, solicitaram os meus bons ofícios no sentido de sensibilizar os proprietários da

Quinta da Princesa, para permitir que, à semelhança dos anos anteriores, ali realizássemos, no dia 1 de Maio, ao tempo feriado concelhio, o tradicional piquenique. Um exercício diplomático um tanto complexo, diga-se, dado que as pessoas em causa se afirmavam adeptas convictas do antigo regime, não vendo, por isso, com bons olhos, qualquer tipo de reuniões populares naquele dia. Mas lá se conseguiu a autorização. Coisa que no ano seguinte já não foi possível”, conta.

Para além disso, tocou ainda flauta no primeiro conjunto de bandolins e banjos fundado na localidade. “Esse grupo, independente da Sociedade, entretinha-se, fundamentalmente a animar bailes, chegando mesmo a actuar em Santana e no Zambujal, Sesimbra, e em vários lugares do con-celho de Almada, designadamente no Monte e Charneca da Caparica. Para além, claro está, do pró-prio Concelho,” acrescenta.

O referido conjunto, baptizado de Estudantina Amorense foi, de resto, pioneiro neste géne-ro de agrupamentos e apresentava um repertório assente em polcas, mazurcas, marchas, folcks-

trotes e tangos. “Isso deveu-se, a meu ver, à circuns-

tância de haver melhores músicos de cordas do que de instrumentos de sopro. Fundamentalmente, porque os filarmónicos eram, na sua maioria, operários vidreiros, traba-lho que lhes molestava seriamente os lábios, reduzindo-lhes as condições adequadas à utili-zação daqueles instrumentos”, aponta ainda.

Para além da impossibilidade referida, supõe igualmente que tal resultava de uma notória apetência pelos instrumentos de cordas, porque não havia em Amora taberna alguma que não tivesse uma guitarra e uma viola à dis-posição dos fregueses, pelo que quase todos os

seus frequentadores sabiam tocar, em especial, o fado corrido. “Nesse tempo, cada um de nós ganhava 20$00 por baile, o que, para a altura, era bom di-

nheiro, de sorte que até juntei um pé-de-meia, pois, tratando-se de um grupo formado à margem da Sociedade, o cachet que auferíamos, quando íamos tocar fora, revertia a nosso favor. Mas quando a iniciativa lhe pertencia, nada recebíamos. Aliás, mal parecia que sendo nós sócios e músicos da Colectividade, ganhássemos o que quer que fosse por animar os bailes que ela promovia”, observa.

Ponto de encontroe de solidariedades

Local de encontro dos moradores da localidade, a Sociedade constituía, nessa altura, como que o pulsar diário da vida da população. Nela se tomava conhecimento das boas e más notícias. Veiculadas de boca em boca, nela se sabiam das doenças e infortúnios que apoquentavam este ou aquele. Ali também se esboçavam os primeiros gestos de solidariedade colectiva, visando minorar as faltas que a outros atingiam.

“Quando apareceu a rádio, então aquilo é que foi o bom e o bonito! Se, antes, a casa já era pequena, a partir do dia em que comprámos uma telefonia a pilhas, de som extremamente fanhoso, ainda mais exígua se tornou. Não havia ninguém que quisesse privar-se da novidade”, enfatiza Amélio Baptista Cunha.

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Trupe Estudantina Amorense

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“Até mesmo os que diziam ‘poder lá ser... Uma caixa falar!’, deixaram de começar a acoto-velar-se para arranjar lugar aos serões. Todos queriam ouvir as notícias do que se passava por esse mundo fora e a música que passava. Chegou, inclusive, a fazer-se soirées dançantes ao som da tele-fonia, uma vez que havia estações que só transmitiam música para dançar”, garante.

Com o advento da televisão, idêntico comportamento se verificou, sobretudo porque o custo dos aparelhos estava muito para além das reduzidas capacidades da bolsa da generalidade dos habi-tantes.

Ante este cenário e atentas as possibilidades de receita que a aquisição de um televisor na-turalmente propiciava à agremiação, imediatamente decidiu a direcção proceder à sua compra, ben-feitoria que encheu de contentamento a massa associativa.

“As pessoas juntavam-se aos magotes para assistir aos programas de variedades que a tele-visão dava, o que proporcionava uma boa receita do bar. A afluência só decresceu quando os cafés e algumas tabernas começaram também a ter aparelhos de TV para chamar a freguesia”, esclarece Amélio Cunha.

Invenções que provocaram profundas alterações no modo de vida do País, em especial das camadas da população de menores recursos, como, de resto, era a generalidade dos habitantes de Amora.

Foram descobertas que vieram alterar a pasmaceira em que vivíamos, permitindo-nos vis-lumbrar novos horizontes aos limitados horizontes que até aí havia.

“No meu caso, esses avanços da técnica levaram-me a tomar a decisão de tirar o curso de contabilista e, mais tarde, de guarda-livros, profissão que exerci até me reformar, enquanto outros rapazes da minha criação preferiram optar por diferentes enxadas para ganha-pão”, diz.

Ir de burrotocar à Charneca

“Para que, em rigor, possamos precisar a vida dessa época, direi que sempre que ia tocar à Charneca da Caparica, vinha o filho do organizador do baile buscar-me de burro a Amora. Ele montado num, e puxando à arreata outro que me servia de montada. Este era o único meio de transporte de que dispúnha-mos para percorrer os trilhos das azinhagas que nos levavam àquele lugar. No final, o pobre rapaz tinha que fazer comigo o mesmo trajecto para retornar com os dois jumentos. Era uma estopada tremenda, quer para os animais quer para o moço.

Mas uma ocasião, assim como quem não quer a coisa, seu pai inquiriu-me sobre se eu sabia andar de bicicleta. Ora”, reconhece, “como não tendo alcançado o verdadeiro âmbito da sua pergunta, respondi afirmativamente, posto que deduzi tratar-se de uma mera curiosidade, resultante do facto de ser o objecto que maior furor fazia junto da malta nova. Mal sabia eu o que me estava reservado no sábado seguinte”, recorda.

“Assim, qual não é, afinal, o meu espanto, quando à hora aprazada para rumar, mais uma vez, até à Charneca, vejo chegar o bom do rapaz conduzindo uma bicicleta com uma das mãos, ao mesmo tempo que amparava uma segunda com a outra. Agora é que está armado um bico-de-obra, pensei. Como vou descalçar esta bota, se nunca me montei em tal coisa? Disse de mim para mim.

“Porém, como outra alternativa não me restava, lá me montei na bicicleta, tentando encontrar o equilíbrio que me faltava e lá fui. Caindo aqui, levantando-me acolá, e assim sucessivamente. O mesmo acon-tecendo no regresso. Quando, finalmente, cheguei a casa, o meu corpo mais parecia o do Senhor das Chagas. Tantas eram as feridas e os arranhões que apresentava”, confessa.

Ante a certeza dos martírios que de ora em diante lhe estariam reservados sempre que tivesse de ir tocar àquela localidade, caso não aprendesse a andar de bicicleta, tomou-se de brios e aproveitando a circuns-tância de, ao tempo, haver em Amora uma casa de aluguer de bicicletas, logo tratou de tirar uma horas diárias para aprender a conduzi-la.

“Não fora a Estudantina, e nunca me teria dado a esse encómio. Nomeadamente, porque nas pri-meiras vezes as quedas me deixaram algo combalido e com diversas equimoses. Mas, ultrapassada a fase de aprendizagem, acabei por comprar uma bicicleta, a qual me serviu de meio de transporte durante muito tempo”, conclui.

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José Carlos CunhaSessenta anos de vida dedicados à SFOA

José Carlos Cunha, 74 anos, primo de Amélio Baptista Cunha, é outro dos amorenses que desde criança se encontra ligado à SFOA por fortes laços de afectividade, alicerçados no espírito bairrista que nos tempos da sua juventude instigava os moradores de cada uma das povoações do Concelho.

“Em nossas casas, éramos educados de pequenos a comungar dos ideais associativos, tor-nando-se, assim, num hábito frequente nossos pais imporem-nos a obrigatoriedade de aprendermos música. Isto, porque consideravam que a aprendizagem musical ministrada na Sociedade constituía um outro grau de conhecimentos que a escola oficial não fornecia, mas igualmente importante no que à formação cívica de cada um de nós respeitava”, começou por dizer.

Aos doze anos, começou a aprender música e, aos catorze, ingressou na Banda, razão por-que à data do seu falecimento era o decano dos filarmónicos que nela tocavam. E, para além da sua banda, dava ainda uma ajuda às congéneres da Incrível Almadense e da Musical Trafariense, quan-do lho pediam.

Actor e músicoActor amador, estreou-se numa opereta levada à cena pelo grupo cénico da Colectividade,

ainda esta tinha como sede uma casa situada na Av. Marginal Silva Gomes. E quando não represen-tava, integrava a orquestra que executava os trechos musicais que constituíam esse género de espec-táculos.

“Este tipo de teatro colhia muito agrado junto dos habitantes, razão pela qual, a sala - bem mais pequena que a actual - esgotava sempre que havia uma representação”, disse.

“De sorte, que duas das moças desse elenco, filhas, respectivamente, dos irmãos Arsénio e Guilherme Baptista, acabariam por enveredar pela carreira profissional de cançonetistas, notabili-zando-se como Duo Elas, dueto que, na época, deu brado por todo o País.”

Homem de muitas memórias, José Carlos Cunha recordou ainda a vasta actividade desen-volvida na antiga verbena, local onde seriam construídas as instalações que hoje conhecemos. “Tratava-se do principal espaço de atracção de todo o Concelho. Vinha gente de todo o lado para assistir aos memoráveis espectáculos que ali se realizaram. Neles cantaram a Amália Rodrigues, o Alberto Ribeiro, o Tony de Matos e muitos outros”, sublinhou.

Acidente na Fábrica de Explosivosencheu amorenses de tristeza

Mas a sua memória não retém somente os momentos de alegria que a vida lhe proporcionou. Algumas tristezas também se acolhiam no seu enorme alforge de experiências. A que mais viva se mantinha, por via da consternação que espalhou em toda a população, foi a desgraça que, em 1948, se abateu sobre a SFOA, em consequência do trágico acidente ocorrido em 24 de Novembro, na Fábrica de Explosivos.

“O acidente, que vitimou 32 operários, chocou profundamente todos ao habitantes de Amora. Tomados de tristeza por tão nefasta ocorrência que enlutou muitos lares e em sinal de respei-to pela memória dos consócios que nele pereceram, a Banda suspendeu por alguns meses toda a sua actividade”, relatou.

Dissipada a mágoa que subitamente invadira as gentes da localidade, com o consequente afastamento de muitos dos homens e mulheres que integravam as diversas secções da Operária

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Amorense, esta voltou, gradualmente, a retomar o frenesim que a caracterizara, quer no que à Banda concernia, quer no que ao grupo cénico respeitava.

“Por muito que nos tivesse custado (e custou!) a morte de vários amigos, não podíamos dei-xar que, com o seu desaparecimento físico, morresse também a Sociedade. Até porque era nosso entendimento que o reinício das actividades da SFOA constituía uma forma de lhes prestar um sin-gelo tributo ao quanto por ela haviam feito”, atirou José Carlos Cunha.

Orquestras Jazzanimavam Carnaval de Lisboa

Membro de diversos agrupamentos musicais constituídos dentro da Colectividade como Os Teimosos, Águias d’Ouro, Os Leais e da Orquestra Popular, José Carlos Cunha recorda ainda que pelo Carnaval nenhum dos elementos desses grupos dormia, porque, logo que terminava o baile na Sociedade, se encaminhavam para o Seixal, a fim de tomar o primeiro barco para Lisboa, onde per-maneciam todo o dia.

“Era tradição percorrermos as ruas de Lisboa. Fazíamo-lo de modo próprio, ganhando ape-nas a gratificação que cada qual entendesse dar-nos. Outro modo de vida, outro modo de festejar o entrudo, mas que a erosão dos anos se tem encarregado de apagar do nosso quotidiano”, relembrou.

Importa ainda salientar que da existência dessas orquestras não resultavam nenhuns encar-gos para a Colectividade, antes pelo contrário, pois, para além de fazermos os bailes gratuitamente, nós é que comprávamos ainda o repertório e os instrumentos. Todo o dinheiro que ganhávamos quan-do íamos tocar fora destinava-se a essas despesas”, afiançou.

Ir tocar a Santanapor 300 escudos

Fragmentos de uma época cujo meio de transporte mais utilizado entre Amora e Sesimbra

era a carroça. Um tempo que os progressos tecnológicos alcançados pelo homem se encarregaram de dissipar por entre a bruma dos anos, mas que, todavia, permanece no imaginário de quantos os vive-ram.

“Sempre que éramos contratados para ir tocar a Santana ou Sesimbra, íamos e vínhamos de carroça. A distância era grande, não podíamos fazê-la a pé e, menos ainda, carregando com os ins-trumentos”, acentuou José Carlos Cunha.

“Além disso, sendo 300 escudos quanto ganhávamos, este era o único meio de locomoção que estava ao nosso alcance, ainda que lento e obrigando-nos a várias horas de caminho. No regres-so, chegávamos a casa apenas a horas de mudar de roupa e caminhar para o trabalho. Não havia vagar para mais nada”, confidenciou.

Oriundo de uma família de músicos, seu pai e dois tios foram, segundo afirma, bons execu-tantes quer de instrumentos de sopro quer de cordas, José Carlos Cunha realçou ainda que, a par da influência paterna, a sua vocação para a música foi também despertada pela forte ligação que os seus familiares maternos tinham à Sociedade.

“Apesar de no período subsequente à fundação do Amora Futebol Clube ter havido alguma rivalidade entre a nova agremiação e a SFOA (motivadora, em certos casos, de infundados desenten-dimentos em algumas famílias da terra,) a minha família sempre manteve uma coexistência pacífica, embora, como se compreende, uns pendessem mais para a Sociedade e outros para o Amora.”

Galardoado pela Câmara Municipal do Seixal com a Medalha de Mérito Cultural, por via do contributo que ao longo dos últimos 60 anos deu às colectividades da sua terra, José Carlos Cunha considerava que esse reconhecimento se devia, sobretudo, ao mérito da própria Sociedade e do espí-rito de partilha que nela se vive. “Até porque creio não ter, pessoalmente feito, fosse o que fosse que possa justificar tal distinção”, rematou.

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João Rodrigues dos Santos“Solidariedade marcava o dia-a-dia em Amora”

João Rodrigues dos Santos,75 anos, vulgo João da Carapinha, alcunha que lhe advém de ter sido criado numa antiga quinta de Corroios com aquele nome, é um dos vários associados da SFOA que desde a sua adolescência se encontram ligados à popular colectividade amorense.

Embora haja estado ausente de Amora dos 3 aos 14 anos, devido à circunstância dos pais terem ido trabalhar naquela quinta, mal regressou ao convívio com os habitantes da sua terra, logo se envolveu em todo o tipo de iniciativas que por aqui ocorriam, tendo mesmo integrado um extinto grupo de fadistas amadores então existente na localidade.

“Era um grupo que não se limitava apenas a fazer programas de fados, mas também cega-das. Por via de ter sido o primeiro grupo da terra a ousar promover espectáculos com entradas pagas, as gentes baptizaram-no de ‘Gulosa’, nome por que ficou conhecido enquanto durou”, diz.

Das populares cegadasao Grupo de Teatro Amador

Mais tarde, aliciado por um conjunto de rapa-

zes da sua geração, entre os quais destaca os irmãos Arsénio e Guilherme Baptista e Joaquim Jota, resol-veu dedicar-se também à actividade cénica, de-vido ao entusiástico apoio de que o teatro desfrutava entre os habitantes de Amora.

“Houve um tempo em que acumulei as duas actividades, porque sendo o fado a minha primeira paixão, não a ia trocar pelo gosto de fazer teatro. Logo, tive que conciliar as duas coisas, exercício que, aliás, não foi difícil de conseguir“, informa.

“Antes de me radicar aqui em Amora, ainda morei no Correr d’Água, onde, aliás, escrevi e repre-sentei um acto de variedades e fiz uma comédia e um drama, contracenando com o Arsénio e o Jota, que também ali moravam.”

Em seu entender, corria o ano de 1962 quan-do, presume, terá definitivamente assentado arraiais na Sociedade, por influência de Júlio Ramalhete, ao tempo membro dos corpos sociais da Colectividade. “Tratava-se de um homem que, a pretexto da Festa de Fim de Ano, Carnaval ou Santos Populares, cuidava sempre de me convidar a participar”, afirma.

A partir de então, integrando Os Inquietos grupo cénico que há muito desenvolvia na Sociedade a arte teatral, inúmeras foram as peças em que foi cha-mado a dar o seu concurso, sobretudo escrevendo alguns trechos de revista, por considerar que este era o género onde se sentia mais à vontade e no qual melhor contributo poderia dar para o sucesso do espectáculo. Afinal, o grande objectivo de qualquer grupo.

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João Rodrigues dos Santos, vulgo João da Carapinha

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Autor e actor de revistase organizador de espectáculos

Dos muitos textos por si escritos para serem levados à cena na Operária Amorense, recorda--se, designadamente, de E o Zé É Que Paga..., o último a ser representado pelo aludido grupo. Espectáculo em que, por ter adoecido, não pôde participar na dupla qualidade de co-autor e actor.

Nesta (re)visita às memórias que a voragem dos anos não conseguiu apagar, ficando intactas no resguardado lugar a que se acolheram, João da Carapinha sublinha ainda que essa predisposição para se envolver neste tipo de coisas, remonta ao tempo em que ainda vivia em Corroios, já que foi por essa altura que saiu nas primeiras cegadas, uma manifestação popular de tradição carnavalesca que recorria à utilização dos métodos de representação para teatralizar rábulas humorísticas. Foram elas no Laranjeiro e em Vale Figueira.

“Porque se tratava de uma expressão genuinamente popular, que geralmente servia para satirizar as figuras gradas de cada localidade ou do governo, a censura logo tratou de começar a apertar-lhe o cerco, obrigando muitos dos que a elas se dedicavam a cessar essa actividade, não obs-tante o seu cariz de mera diversão entrudesca.” Adianta.

“Festas de benefíciodavam animação a Amora”

Aquela experiência foi-lhe, no entanto, muito útil na altura em que passou a residir em

Amora, quer no que respeitou à sua adaptação ao modo de vida da terra quer em tudo quanto, pos-teriormente, viria a fazer, tanto no domínio da cultura como no do simples entretenimento.

Sempre disponível para colaborar em todo o género de eventos de cariz humanitário, João da Carapinha frequentemente se envolvia na realização de espectáculos que visassem acudir às difi-culdades que, por razões de saúde, batiam à porta dos seus conterrâneos.

“Nesse tempo, não havia caixa de previdência, pelo que a única forma de lhes valermos era a de realizarmos colectas e espectáculos de variedades (geralmente com artistas amadores), tenden-tes a arranjar dinheiro para que se pudessem tratar”, recorda.

Tais iniciativas, cuja génese partia dos próprios camaradas de trabalho e se estendiam ra-pidamente a toda a população, acabavam, no fundo, por conferir ao velho núcleo habitacional de Amora uma animação que, em certos aspectos, ombreava com a programação de algumas cidades.

“Essas festas de beneficência davam uma grande vida à terra, porque mobilizavam toda a gente em torno dos valores da solidariedade e da camaradagem, extremamente vincados entre nós”, garante.

Segundo ele, ninguém faltava a esse tipo de festas que, perseguindo claros objectivos de benefício a alguém, constituíam ainda grandes momentos de convívio e recreio. “Tratava-se de uma época em que os únicos locais de ocupação dos tempos livres, para além da música e do teatro na Sociedade, eram praticamente as tabernas”, acentua.

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“Joaquim Jota”“Nasci numa velha casaonde hoje se ergue a Sede”

Uma das figuras mais populares da localidade, devido ao entusiasmo com que, desde muito jovem, se habituou a entregar-se à vida das colectividades locais, Joaquim Pinto Soares, 78 anos, ou melhor, Joaquim Jota, nome pelo qual todos o tratam, é um dos associados da Operária Amorense cuja existência se confunde, amiúde, com o pulsar quotidiano da aludida Sociedade.

Salientando que gosta mais da sua alcunha do que do seu nome próprio, Joaquim Jota, sublinha que a sua ligação à SFOA, do seu ponto de vista, remonta ao dia em que a mãe o deu à luz, devido à circunstância de ter nascido numa velha casa que existia exactamente no local onde hoje se ergue a Sede da Colectividade.

“Toda esta nesga de terreno pertencia à Quinta da Branca, propriedade que meu pai trazia à renda, estando a casa afecta à serventia da Quinta”, refere.

“Marcha Popular de Amoraainda hoje se canta”

Sócio da Filarmónica Amorense desde 1932, ano em que, por haver completado os 12 anos, pôde, finalmente, formalizar os indestrutíveis laços de afectividade que há muito o uniam àquela instituição, Joaquim Jota, cuja memória, ainda que notável, não reteve os acontecimentos que ali ocorreram até 1940, recorda o ambiente festivo que, nesse ano, tomou conta da localidade com a organização da Marcha Popular de Amora, cuja letra da autoria de Amélio Baptista Cunha registou um sucesso ímpar.

“Tinha eu vinte anos. E tomei parte na organização dessa iniciativa que, aliás, creio ter sido uma das mais bonitas jamais realizadas nesta terra e que marcou todos quantos nela participaram. Foi tal o entusiasmo que a envolveu, que a primeira vez que ela se exibiu, todo o povo de Amora saiu à rua para a aplaudir”, diz saudoso.

“O facto de ainda hoje os seus versos serem cantados confirma, inequivocamente, o êxito popular que a referida melodia alcançou, ao lograr cair na boca do povo. Por isso mesmo, permanece no imaginário daqueles que a integraram ou a ela assistiram.”

Em consequência dessa experiência, alguns dos jovens que se tinham empenhado na sua organização concluíram que, tratando-se de uma realização pontual, visando os festejos dos santos populares, se esgotava com a passagem desta quadra festiva, deixando-lhes um amargo vazio todo o resto do ano.

“Da Marcha nasceuo Grupo Dramático”

Ante este cenário, afigurou-se-lhes adequada a perspectiva de fundarem um grupo cénico, de forma a aproveitarem utilmente os tempos livres e os ensinamentos que a participação na Marcha lhes proporcionou.

Assim nasceu o Grupo Dramático Os Inquietos, nome que, a priori, evidenciava a inquieta-ção dos seus componentes perante a perspectiva de uma prolongada inacção.

“No processo de fundação do Grupo, inteiramente constituído por amadores da terra, foi determinante o incentivo que nos foi concedido por António Pedroso, um apaixonado pela arte tea-tral e um dedicado sócio da Colectividade, que logo se prontificou para nos ensaiar”, conta Joaquim Jota.

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“Igual apoio recolhemos, também, de Abílio Mendes, (outro grande amigo da Sociedade) que nos disponibilizou uma opereta de sua autoria, intitulada Tela Campesina, obra que já havia sido representada em Alfama, - bairro onde ele morava - e com a qual nos estreámos, em 7 de Fevereiro de 1941”, realça ainda.

Com efeito, essa primeira representação constituiu, de resto, um verdadeiro acontecimento a que todos pretenderam assistir. “O interesse em volta do aparecimento do grupo foi de tal ordem”, “que já na véspera, o ensaio geral teve de realizar-se com a sala cheia, porque nos foi impossível segurar a curiosidade das pessoas”, lembra Joaquim Jota.

“Tratava-se de uma peça ligeira, mas muito bonita e que, a nosso ver, se enquadrava perfei-tamente na atmosfera da Amora nessa época. Dir-se-ia que tinha sido escrita, propositadamente, para aqui ser levada à cena, uma vez que os próprios fatos que utilizámos como guarda-roupa eram os que alguns de nós levavam para o trabalho”, salienta.

“Não nos podemos esquecer que nos reportamos a um tempo em que a localidade estava cercada de quintas e a agricultura ocupava muitas pessoas, razão pela qual muita gente se reviu nos quadros que ela continha e nos estimulou a continuar, bem assim como incitou a direcção da Colectividade a prosseguir com esta actividade.” Alerta ainda

Desafortunadamente, oito dias volvidos sobre tão festivo evento, um violento ciclone abater--se-ia sobre a terra, fazendo algumas vítimas pessoais e deixando à sua passagem um rasto de ele-vados prejuízos materiais.

“Ante este quadro, que nos deixou profundamente abalados”, “ logo decidimos que a recei-ta dos espectáculos seguintes revertiam para quantos haviam sido afectados pela intempérie. Contudo, embora o dinheiro não tenha sido muito, foi a nossa forma de prestar homenagem às viti-mas e de nos solidarizarmos com os que tinham vistos os seus haveres danificados”, diz Joaquim Jota.

Terminado o ciclo de representações da peça, seguiu-se O Segredo do Pescador e um pequeno drama cujo título a memória não reteve, sucedendo-lhe, em 1943, outra opereta, esta inti-tulada Entre Duas Avê Marias, um texto de Álvaro Sousa, ao tempo mestre da banda, que granjeou enorme sucesso.

“Para mim, esta peça, representada vinte e duas vezes na Sociedade (sempre com lotação esgotada), foi a coroa de glória do grupo. Aliás, foi com ela que, em 1944, conquistámos o 2º lugar num concurso de teatro amador realizado a nível nacional, por iniciativa da Federação Portuguesa das Colectividades de Cultura e Recreio. Chegámos a representar ao sábado à tarde; sábado à noite e ao domingo à noite.” Afirma Joaquim Jota.

Mais refere este fundador de Os Inquietos, para quem aquele grupo continua a ser uma referência inultrapassável, de quanto em matéria de actividade teatral aqui se conseguiu realizar.

“Houve mesmo um habitante de Amora - entretanto falecido -, que se deu ao trabalho de assistir a todas as representações da peça. Esse fiel espectador fazia gala em afirmar que não havia perdido uma única sessão. Tal era o arrebatamento que a peça lhe provocara...”, lembra ainda.

O desempenho de alguns dos actores na interpretação das suas personagens adquiria tama-nha naturalidade que os habitantes da terra passaram a tratá-los pelo nome das figuras que re-pre-sentavam. Tal se passou, entre outros, com o Tio André e o Artur Valente que, até morrer, ficou conhecido pelo Cartinhas devido ao modo como encarnou a figura de carteiro.

Conscientes do quão difícil seria manter esse nível exibicional, optaram, então, por incluir no repertório algumas revistas, um género que não colidia com as demais produções, operetas, comé-dias e dramas, e que colhia também o agrado dos moradores de Amora.

A primeira dessas revistas, representada em 1946, intitulava-se Nua e Crua, comprada em Lisboa, por Abílio Mendes.

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“Grupo de Fadista de Amora,a Caixa de Previdência da terra”

“Antes de tudo”, disse, “importa sublinhar o relevante papel desempenhado pelo Grupo de Fadista de Amora, designadamente, em matéria de solidariedade, por via da sua permanente dispo-nibilidade para participar em todas as inciativas tendentes a minorar o sofrimento daqueles que se encontravam enfermos. Em meu entender, este grupo constituiu-se na verdadeira Caixa de Previdência dos habitantes da terra, até 1940”, acrescenta Joaquim Jota.

A receita resultante desses espectáculos rondava, geralmente, os 500/600 escudos, uma avultada soma para a época, sobretudo se tivermos em conta que o salário semanal de um homem andava, nessa altura, pelos 34$00, aquela quantia equivaleria hoje a cerca de 40/50 contos, o que permitia ao beneficiado submeter-se às consultas e tratamentos de que carecia.

“Uma das mais imponentes festas realizadas com tal objectivo teve lugar na Quinta da Infanta, no dia 1 de Maio de 1938, que deu uma receita de 1200$00, importância que excedeu todas as expectativas, nomeadamente se atendermos que um ‘pirolito’ custava cinco tostões e um copo de vinho, um cruzado. E assim sucessivamente”, conta este entusiasta da SFOA.

Mas nem só de histórias alegres se fez o passado desta popular colectividade. Alguns epi-sódios houve que deixaram um laivo de tristeza em todos quantos deles tiveram conhecimento. De entre eles, Joaquim Jota destaca o de alguém ter tido a ousadia de lançar à praia o primeiro estan-darte da Colectividade.

Para este fervoroso associado da SFOA, ao ouvir a Srª. D. Ideal Wiez relatar magoada a desfeita que sentira quando, uma ocasião, observou de sua casa o estandarte da Sociedade, que ela e seu pai tinham bordado a ouro, à mercê dos repelões da maré, mais do que uma afronta ao patri-mónio da instituição, sentiu como que um murro no estômago, por desconhecer o autor dessa “faça-nha” e, consequentemente, impossibilitado de o denunciar publicamente.

Pequena localidade ribeirinha, a população, em especial a juventude, constituía, no dizer de Joaquim Jota, uma verdadeira comunidade que se confrontava com a carência das mais elementares diversões. Daí que procurasse encontrar fórmulas de superar essa carência entregando-se à busca de alternativas que lhe permitisse ocupar os breves momentos de ócio.

A organização da marcha popular e, mais tarde, o aparecimento do grupo dramático, foram, portanto, dois excelentes pretextos para ultrapassar o marasmo que caracterizava o modus vivendi dos jovens dessa época, quer rapazes quer raparigas.

Depois do Sol postoraparigas não saíam à rua

“A criação tanto de uma como do outro acabou, no fundo, por se traduzir, em termos locais, num pequeno grande passo no que respeita à emancipação da mulher, uma vez que, até essa altura, rapariga alguma tinha autorização da mãe para sair de casa depois do Sol posto”, prossegue Joaquim Jota.

“Ora, se no nosso caso a adesão se fundava em aspectos que se prendiam com razões que tinham a ver com o mero entretenimento, no das raparigas, o entusiasmo radicava, objectivamente, em sentimentos de âmbito social, porque se aperceberam de uma oportunidade de escaparem à clau-sura a que estavam obrigadas, mal o Sol se punha “, refere.

Pessoa muito respeitada entre os seus pares, devido à irrepreensível conduta moral que ao longo da vida o tem caracterizado, Joaquim Jota apresta-se a sublinhar que tal não significou que o respeito que até aí marcara as relações entre uns e outros fosse lançado à valeta. Antes pelo contrá-rio.

“Para evitar qualquer assomo de especulação que, eventualmente, pudesse ferir a honora-bilidade das moças, nós próprios nos dávamos ao trabalho de ir com o ensaiador buscá-las e levá-las

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a casa, nos dias de ensaio. Isto porque as mães não se deitavam sem que elas chegassem. Qual era, nesse tempo, a mãe que se ia deitar, sem ter a filha em casa. Está bem, está...!” Enfatiza.

Um cortejo, que desvanecia a tensão emergente em todo e qualquer acto de criação artística e servia também para reforçar os laços de amizade e de camaradagem entre todos quantos integravam o grupo.

“Em muitos casos, tais sentimentos de estima adquiriram tal intensidade que ainda hoje perduram. Especialmente no caso dos que conti-nuam a viver em Amora. Porque alguns houve que, depois de casarem, foram para outras terras e

perdemo-lhes o rasto. E outros já morreram. “ Sustenta.

“Ninguém ganhava um tostão”Só um forte conjunto de circunstâncias, como as que ao tempo se faziam sentir, e a ânsia de

aquisição de conhecimentos e de elevação cultural que a juventude denotava, a poderia mobilizar, de modo tão empenhado, a entregar-se de corpo e alma ao labor diário de preparação, encenação, montagem e representação da vasta lista de peças que levou à cena.

“Importa ainda atender em que tudo era feito depois de sairmos dos empregos e não ga-nhávamos um tostão por fazermos esse trabalho. Mesmo quando se tratava de actuações fora da terra. Quando tal acontecia, como foram os espectáculos na Moita e em Sesimbra, o cachet revertia para a Sociedade”, realça Joaquim Jota.

“Tanto num lado como noutro, a única coisa que ganhámos, findas as representações, foi um lanche, oferecido pelas colectividades que os tinham organizado. Mais nada. O que fazíamos, fazía-mo-lo por carolice e por amor à Sociedade.” Assevera.

Membro dos órgãos sociais da SFOA em diversos mandatos, Joaquim Jota diz ainda que as principais razões que levaram à perda da tradição teatral na Sociedade prendem-se com os elevados custos que a produção de uma peça hoje exige, valores que, no seu tempo de juventude, eram abso-lutamente impensáveis.

Mas apesar de não esconder a sua tristeza por assistir à quebra desse importante vínculo de ligação entre a Colectividade e os sócios, reconhece que as despesas decorrentes da manutenção de um grupo cénico e os encargos resultantes de uma peça/ano estão fora do alcance da agremiação.

“Anos quarenta marcaramépoca áurea da SFOA”

Reconhecendo que longe vão os dias em que a Sociedade viveu momentos de glória, Joaquim Jota destaca o período de 41 a 45, “período em que, paralelamente à actividade teatral, a SFOA se projectou ainda, por intermédio da Banda e do maestro Álvaro de Sousa, a um estádio onde nunca havia chegado.”

Foi nessa época que a Filarmónica da Amora actuou, em Lisboa, no Teatro Maria Matos, para a antiga Emissora Nacional que, para satisfação do povo que enchia por completo a sede, trans-mitiu directamente a actuação.

“Em retribuição pela prestação que a nossa banda teve nesse concerto, A EN fez aqui des-locar a sua extinta Orquestra Sinfónica. A procura de bilhetes foi tanta, que tivemos que pedir à

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As raparigas do grupo de teatro “Os persistentes”

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Mundet a cedência de um dos pavilhões, onde guardava a cortiça, para podermos acolher todo aque-le gentio”, assinala com satisfação.

Membro da comissão que, em 1938/39, teve por objectivo angariar o dinheiro indispensá-vel à compra da telefonia, uma melhoria que se afigurava um importante benefício para a Sociedade, por via de dar ainda mais movimento ao bar.

“Naquele tempo, uma telefonia era um bem só ao alcance dos ricos.” Assegura Joaquim Jota. “Nela ouvimos o citado concerto e todos os programas de sucesso da época. Sobretudo, os que eram emitidos à noite, altura em que as antigas instalações, situadas na Av. Marginal, se encontra-vam permanentemente lotadas. Mais tarde, com a televisão deu-se a mesma coisa.”

“Empréstimo de José Carvalhosalvou a Sociedade de ficar sem Sede”

Quando a actividade se transferiu para a verbena, até à construção da nova sede, o local da realização das festas e demais convívios entre a massa associativa processou-se nuns antigos alpen-dres cobertos de colmo.

“Quem emprestou o dinheiro - ainda que a juros - para o início da obra”, recorda Joaquim Jota, “ foi José Rodrigues Alonso, apelidado de Zé Galego. Este, a dada altura, por a Sociedade não ter conseguido satisfazer os compromissos que tinha para com ele, devido a uma série de dificulda-des inesperadas, tentou deitar a mão àquilo”, relembra Joaquim Jota.

“Para evitar que isso se consumasse, foi constituída uma comissão que teve, para além de outras missões, a de ir falar com João Guilherme Carvalho (homem de muitas posses para o tempo, sendo detentor de várias propriedades, de entre elas a extinta Construtora Moderna), em ordem a sensibilizá-lo para conceder à Colectividade o empréstimo da verba necessária à liquidação da dívi-da contraída junto do Zé Galego.”

Em boa hora o fez, porque o objectivo dessa diligência foi inteiramente conseguida. João Guilherme Carvalho, não só emprestou o dinheiro que permitiu à SFOA pagar o que devia como ainda concluir a construção. Joaquim Jota crê que a verba em causa era de 450 contos. “Uma fortuna! E sem levar um tostão de juros. Foi a salvação da Sociedade.” Garante o associativista.

As últimas prestações referentes aos materiais levantados na firma A. Silva & Silva foram liquidadas em 1962, mediante outro empréstimo concedido à Colectividade por Guilherme Baptista.

Todavia, um episódio um tanto caricato, opondo a Câmara Municipal, sob a direcção de Cosme Lopes, ocorreria nessa fase da vida da Colectividade que ainda hoje é relembrado com algu-ma ironia por Joaquim Jota:

“Certo dia, apareceu aqui um fiscal do Município, popularmente conhecido por ‘filho do diabo da Arrentela’, que trazia a incumbência de cortar-nos a água. Precisamente no momento em que cimentávamos o salão, trabalho para o qual a água se tornava absolutamente indispensável.

“Mas o curioso da história é que o fundamento da drástica medida se devia ao facto de a Sociedade não ter liquidado em tempo útil os 180$00, respeitantes ao consumo do mês anterior, situ-ação que nos colocava na iminência de vermos a obra parar por falta de água.

“Ante o arreliador contratempo, lá teve Joaquim Capa Rolas que ir a sua casa buscar aque-la quantia e a sua bicicleta e pedalar até ao Seixal, para efectuar o referido pagamento.”

Obra de múltiplas vontades e outras tantas generosidades, a Sociedade Filarmónica Operária Amorense é um vivo documento do quanto pôde o esforço colectivo da comunidade amo-rense de então, “cujo património humano tem que, no dizer de Joaquim Jota, forçosamente se esten-der às gerações vindouras. Sob pena de morrer com o desaparecimento físico dos que o construíram.

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Arsénio Almeida BaptistaDe grumete da Casa Mundeta director, actor e presidente da Sociedade

Elemento proeminente do Grupo Dramático Os Inquietos, da Sociedade Filarmónica Amorense, com a qual mantém uma relação de verdadeira paixão e na qual, desde os 17 anos, tem sido chamado a desempenhar os mais diversos lugares nos corpos directivos, Arsénio Almeida Baptista nasceu em Amora, corria o ano de 1927.

Filho de um modesto casal amorense que vivia com tremendas dificuldades no seu dia-a-dia, aos 14 anos conseguiu entrar para grumete da residência da família Mundet, líder mundial na transformação de cortiça e detentora de uma fábrica no Seixal e de outra na freguesia de Amora.

Insatisfeito com a circunstância de ser forçado a permanecer dia e noite dentro do palacete que aquela família habitava, na Rua Sousa Martins, em Lisboa, porque longe da terra e dos amigos por largos períodos de tempo, situação agravada com as atribuições que lhe tinham sido destinadas não se limitarem aos recados, mas também à limpeza das janelas e persianas, como se de uma sopei-ra se tratasse, ao fim de três anos de ali permanecer, decidiu vir-se embora.

Refira-se, que na época a que nos reportamos, as mulheres ainda não imaginavam que um dia iriam usar calças, pelo que alguns trabalhos, susceptíveis de as deixar descompostas, eram con-fiados aos rapazes.

“Claro, que não me faltava, fosse o que fosse, de comer, ainda que estivéssemos em plena Grande Guerra.” Reconhece. “Mas faltava-me uma coisa tão importante quanto essa: a presença de meus pais (que só via de mês a mês) e o convívio com os companheiros de infância. Ausências que me pesavam sobremaneira”, confessa Arsénio Baptista.

Regressado a casa, alguns pedidos insistentes do pai, feitos junto do gerente da Fábrica de Produtos Corticeiros, acabaram por ser atendidos, tendo sido admitido como aprendiz.

Tesoureiro da Direcçãooferece-se para figurante

Com uma ocupação fixa, logo tratou de restabelecer todos os elos de ligação à terra, inter-rompidos durante o tempo que dela estivera afastado. Um deles traduziu-se no reatar dos laços com a Sociedade, local de encontro e convivência da juventude da época. E com tal empenho o fez que, nesse ano, seria convidado para vogal da direcção e, quinze dias depois, para tesoureiro da insti-tuição.

A partir daí, tem passado por todos os órgãos directivos da Colectividade, sempre com o mesmo entusiasmo com que tomou posse pela primeira vez. Determinado e frontal em tudo quanto tenha a ver com a dignificação das cores da Sociedade e da elevação cultural das gentes de Amora, Arsénio Almeida Baptista é um dos dirigentes da SFOA que goza de particular prestígio entre os seus consócios.

Não surpreende, por isso, que se haja afirmado um dos grandes entusiastas do Grupo Dramático Os Inquietos, em prol do qual nunca regateou qualquer esforço, empregando sempre o melhor da sua imaginação, em todas as peças levadas à cena. Tanto no domínio da representação como no da criação e adaptação de textos, mormente da designada revista à portuguesa.

Enamorado pelo fascínio do palco, mas impossibilitado de dar livre curso a essa sedução, por via do elenco se encontrar completo, foi com grande ansiedade, diz, que aguardou uma oportunida-de de lhe pertencer, mesmo que fosse como figurante.

A concretização de tal desejo viria a acontecer, logo após a realização de um espectáculo em Paio Pires. Aconteceu que dois dos rapazes (actores) de tal maneira se desentenderam que, para evitar mais bulhas nos bastidores, o ensaiador resolveu afastá-los.

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Intérprete de drama, comédia e revista

“Ao tomar conhecimento dessas dispensas, quer eu quer o António Cunha, então meu cole-ga de direcção, imediatamente nos prontificamos para preencher as respectivas vagas, oferecimento que o ensaiador aceitou com natural satisfação porque lhe resolvia o problema que tinha entre mãos, sem afectar a normal actividade do grupo, nem a programação para ele prevista”, refere.

A sua estreia acaba, desta forma, por ocorrer numa comédia, de título Os Pupilos do Sr. Heitor, na qual, para além de entrar como figurante, teve ainda de desempenhar o papel de mulher, personagem que os demais rapazes se recusaram a fazer.

“Como todos se tinham escusado a aceitar aquele papel, ofereci-me eu para o assumir. Até porque considerava que o mesmo não poderia ser imposto a ninguém, sob pena da interpretação perder autenticidade, o que não seria benéfico para o prestígio do grupo”, conta Arsénio Baptista.

“E fi-lo com tamanha desenvoltura, que António Pedroso, me escolheu para figura principal da peça seguinte, intitulada Sílvio, O Cigano, composta de quadro actos, na qual contracenava com meu irmão Guilherme, que fazia o papel de mau.

Aliás, o prestígio de que o grupo viria mais tarde a desfrutar sustentar-se-ia na versatilidade dos actores que o constituíam e do multifacetado talento de meu irmão, que a par de representar com desenvoltura, cantava muito bem e pintava excelentemente. Era ele, exactamente por ter esse ta-lento, o autor dos cenários das peças”, assinala igualmente.

Ante o à-vontade que evidenciava em palco e o bom desempenho de todas as personagens que lhe eram confiadas, Arsénio Almeida Baptista logo foi considerado por António Pedroso como um dos actores, de cuja participação, o grupo nunca mais podia abrir mão.

O mesmo se dirá de António Cunha que, na opinião do conhecido amador teatral, tinha uma óptima voz e cantava muito bem. Companheiro que com ele tinha ingressado no grupo, também para acudir ao seu funcionamento numa situação de emergência, acabando por nele permanecer até o mesmo se extinguir.

“Esse período de cerca de quarenta anos, durante os quais se assistiu a uma intensa activi-dade teatral”, considera Arsénio Baptista, “foi um tempo muito profícuo para o Grupo Dramático Os Inquietos, que anualmente produzia um novo espectáculo que era, ora um drama ou uma comé-dia ora uma opereta ou revista.”

“Acima de tudo sou um bom declamador”

Merecedor de um especial apreço por parte da massa associativa da SFOA, este amorense de gema esclarece ainda que “a razão pela qual, a dado momento, optámos por incrementar a mon-tagem regular de revistas à portuguesa, deveu-se, um pouco, à facilidade que este género de teatro nos oferecia. Nomeadamente, porque não requeria tanto tempo para a preparação de cada um dos papéis. O que, a nosso ver, atendia aos objectivos de conferir uma brevidade maior ao período de ensaios, de forma a levarmos à cena uma nova peça, todos os anos.”

Desempenhando o papel de compère, num sem-número de rábulas e autor de outras tantas, especializar-se-ia nos quadros que, ao invés de terminarem com um tema musical, fechavam com uma declamação, por se supor ter uma certa vocação para fazer versos.

“Sabendo que não possuía voz para cantar, entendi que devia enveredar pela declamação. E dediquei-me a ela com tanta garra, que não havia em toda a região alguém que, nesse capítulo, se me comparasse.” Assegura, ao mesmo tempo que refere ser esse o principal motivo pelo qual é fre-quentemente convidado a participar nas festas que a sua (ou outras colectividades) leva a efeito, reco-nhece Arsénio Baptista.

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Em boa verdade, a disponibilidade que ainda hoje manifesta para colaborar, de acordo as suas palavras, com a Sociedade de Amora, resulta do carinho que sente pela agremiação e pelos va-lores que há cem anos a caracterizam. E não obstante a idade já ser outra, diz estar, como sempre esteve, pronto para ajudar a Colectividade em todas as iniciativas que ela promova, independentemente dessa ajuda se expressar em palco ou em termos estritamente organizativos. Afinal, áreas que lhe não escon-dem nenhuns segredos.

Estafeta das bobinesde um filme de Francisco Joséquando este veio à Amora

“Até porque, ao longo da minha vida, fui um dos responsáveis pela vinda a esta terra de gran-des figuras do nosso meio artístico. Entre elas, Francisco José, que aqui fez um espectáculo soberbo. Pelo menos, a ajuizar pelo testemunho das pessoas que a ele assistiram”, acentua

No entanto, a responsabilidade que tal empreendimento implicava para os seus organizadores e as preocupações a que se dera para que nada falhasse obrigá-lo-iam a perder a maior parte do even-to.

“Isso aconteceu algum tempo depois do referido cantor ter regressado do Brasil onde estivera a rodar um filme, no qual desempenhava o papel principal, película que, em determinado dia, seria projectada no cinema da Cova da Piedade, após o que, o intérprete de Olhos Castanhos daria um reci-tal, acompanhado pelo pianista Carlos Vilaret”, conta.

“Ao tomar conhecimento, por intermédio de um director da Sociedade Piedense, que Francisco José ali iria actuar, imediatamente me pus em campo, no sentido de conseguir que, nessa mesma noite, idêntico programa tivesse lugar na SFOA, objectivo facilmente alcançado devido à cola-boração da direcção da SFUAP e à aceitação de Francisco José.

“As dificuldades surgiram mais tarde, quando se constatou, entre nós, que não havia quem tivesse automóvel para efectuar o transporte das bobines, mal acabasse a projecção de cada uma delas, e as trouxesse para aqui serem exibidas, enquanto na Piedade o programa decorria normalmente. Tudo de maneira a que, quando o cantor chegasse à Amora, o filme tivesse passado e ele entrasse em palco.

“Ante este bico-de-obra, outra alternativa não tive senão a de pedir um automóvel empresta-do ao patrão e assumir a função de estafeta das bobines”, conta ainda Arsénio Baptista.

“Em resultado do vaivém a que me obrigara, só pude presenciar os últimos momentos do espectáculo. Todavia, restou-me a consolação de que tudo tenha decorrido às mil maravilhas, segundo o plano inicialmente estabelecido.

“Felizmente, tudo correu tão bem e o entusiasmo do público foi tal, que Francisco José render-se-ia ao calor da assistência e cantaria doze temas, em vez dos nove que geralmente cantava em todos os seus espectáculos. Uma noite inolvidável - na minha opinião.” Sublinha ainda o dedicado sócio da Operária Amorense.

Transporte de pianoacarreta pesada multa

Outra peripécia houve ainda na véspera do referido espectáculo, hoje recordada por Arsénio Baptista com o peculiar sentido de humor que o define, ainda que na altura não lhe tivesse achado graça mas sim causado muita apreensão. Foi, concretamente, o contratempo levantado pela polícia, quando deci-diu passar uma multa, por virem quatro homens na caixa de carga da camioneta, a segurar o piano neces-sário ao acompanhamento musical do artista.

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“Como a SFOA não possuía nenhum piano, a Sociedade da Piedade emprestou-nos um dos dois que possuía, mas na condição de nos responsabilizarmos pelo respectivo transporte”, relata Arsénio Almeida Baptista.

“Ao chegarmos a Vale de Gatos, a polícia de trânsito mandou-nos parar e após verificar os documentos da viatura - também ela emprestada pela Cooperativa Amorense -, passou-nos uma pesada multa, sob o argumento de que o veículo não tinha autorização para fazer transportar nin-guém na caixa de carga. Enfim, uma inquietação, que só quem passa por elas sabe dar o valor”, diz.

Só com um conhecimento que uma pessoa das suas relações tinha no comando da Polícia de Viação e Trânsito, e um choradinho ao comandante, foi ultrapassada a dificuldade, pois o pagamen-to da multa seria uma grande dor de cabeça para os cofres da Sociedade.

PIDE furibundoirrompe nos bastidores

Para Arsénio Almeida Baptista, estes são apenas alguns exemplos da intensa actividade artística e recreativa que a SFOA viveu entre 1934 e 1974. “Nesses quarenta anos, a Sociedade da Amora promoveu mais teatro que todas as outras colectividades do Concelho juntas. Exceptuando o Independente da Torre da Marinha que, nesse particular, era a única que connosco competia.”

Assegura ainda Arsénio Baptista.Neste reavivar de memórias, o

popular actor amador e dirigente associa-tivo recupera também uma situação ocor-rida num espectáculo realizado no Cine S. João, em Palmela, no decurso do qual um agente da PIDE irrompeu nos bastido-res para o inquirir sobre a autoria de uns versos acerca da guerra, que momentos antes declamara.

“Um caso bizarro, registado na peça de nossa autoria intitulada Abre a Boca, Sai Asneira, mas que me deixou um pouco aflito, porquanto os versos em causa eram de minha autoria, e apesar de se

reportarem aos nocivos efeitos da guerra (em sentido lato), também podiam ser entendidos como um manifesto contra a guerra colonial.

“O homem estava furibundo! Ia sendo o cabo dos trabalhos... Valeu ter-me lembrado de dizer que se tratava de uma poesia que lera algures num jornal e que decidi decorar por deduzir que a sua publicação tivesse sido previamente autorizada pela censura. Foi a minha safa! Caso contrário, teria sido preso. E ver-me-ia metido em problemas...”. Acentua.

Problemas que levaram, por esse altura, um funcionário da agremiação, tido como um des-tacado contestatário ao regime, a pôr cobro à vida no sótão da Colectividade, por temer que a PIDE o viesse buscar, tal como já havia feito, nos dias anteriores, a outros elementos da oposição re-siden-tes no Seixal e em Paio Pires.

“Sofremos um choque tremendo, quando chegámos ao sótão da Sociedade - local destinado aos ensaios do grupo dramático - e nos deparámos com o corpo pendurado numa das traves do telha-do. Nessa noite, para além de anularmos o ensaio, nenhum de nós conseguiu pregar olho”, diz.

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Final de um acto da revista à portuguesa Abre a Boca Sai Asneira

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Do convite para uma temporadano Teatro Maria Vitóriaà interrupção do espectáculo em Montelavar

Esbatida a consternação provocada pela tragédia ocorrida dentro das portas da Sociedade, havia que retomar o ciclo de funcionamento normal das várias secções, entre as quais a do teatro. E tão afincadamente se operou esse regresso, que o pai da actriz Eunice Munoz, que era, à época, empresário do Teatro Maria Vitória, lhes enviou um convite para fazerem uma temporada naquela sala do Parque Mayer.

“Porém, devido aos afazeres profissionais de cada um, não pudemos aceitar tão honroso convite. Apesar de o considerarmos um reconhecimento à qualidade do nosso trabalho”, adianta “Mesmo assim, não deixámos de nos exibir em muitas outras casas de espectáculo, designadamente em Setúbal, Barreiro, Sesimbra, Sobral da Adiça, Sintra e Montelavar.”

Nesta última localidade registar-se-ia, no entanto, um episódio, a um tempo embaraçoso, mas a outro muito gratificante para a história do grupo e para a forma como conseguia fazer chegar ao público as suas mensagens.

“Curiosamente, a peça que ali representámos era a mesma que tínhamos levado a Palmela e que me provocou aquele aperto, a que já fiz referência. Todavia, aqui a situação acabou por se re-velar extremamente dignificante para o palmarés do grupo. Ainda que a ocorrência tenha provocado a interrupção momentânea do espectáculo.” Relembra Arsénio Baptista.

“A coisa deu-se precisamente no momento em que me aprestava para concluir a declama-ção dos referidos versos, nos quais fazia alusão a um homem que havia sido colhido pelo rebenta-mento de uma mina, tendo ficado estropiado e acabando por falecer. Nesse momento, uma senhora que se encontrava numa das primeiras coxias da plateia foi acometida de um colapso cardíaco”, relata.

“Tal ocorrência - como é natural - levar-nos-ia a suspender a continuação do espectáculo até que a senhora fosse socorrida e a assistência serenasse. Foi então, que alguém nos veio contar que a pobre senhora, a quem, por sinal, na guerra colonial um desses engenhos explosivos vitimara o filho, reviu com tamanha emoção as semelhanças entre o quadro descrito e a tragédia que se aba-tera sobre o seu descendente, que o coração não resistiu. Felizmente, soubemos mais tarde, a senhora conseguiu recuperar do colapso”, desabafa.

Sem embargo de reconhecer que a maior parte do extenso acervo memorial que guarda desses tempos se prende com situações que, de uma forma ou de outra, lhe provocaram alguma ten-são, Arsénio Almeida Baptista dispara ainda:

“Um ocasião, fomos representar à União Seixalense uma revista que exigia um enorme guarda-roupa e que, por isso mesmo, não podia ser levado por cada actor na camioneta de carreira e sem a totalidade do qual as rábulas que a compunham perdiam toda a graça, houve que pedir uma furgoneta emprestada para o efeito.

Sucede, que a dita viatura, extremamente velha, ao chegar ao antigo matadouro, situado antes de Arrentela, parou, irremediavelmente. O que me deixou numa aflição tremenda, dado que a hora do espectáculo se aproximava rapidamente.” Conta.

“Face à dificuldade que, àquela hora, tínhamos para a substituir, outra alternativa não tive-mos senão a de a empurrar até ao Seixal. Ainda por cima, debaixo de uma chuva diluviana. Quando lá chegámos, tanto eu como os dois colegas que comigo iam, mais parecíamos uns náufragos que haviam dado à costa do que actores da referida revista.”

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“O cheiro” de “Joaquim Jota”Mas de aflições outras se recorda ainda Arsénio de Almeida Baptista. Uma delas, afirma,

protagonizada por Joaquim Jota, constituíra, aliás, um momento tão hilariante, que ainda hoje des-perta uma sonora gargalhada.

A história passou-se também em Montelavar, localidade onde actuara diversas vezes. Nesta ocasião, tratava-se da peça Honra e Dever, um drama em três actos, que granjeou igualmente gran-de simpatia em todos os locais onde foi representado.

“Nesta peça, o Joaquim Jota fazia o papel de salvador de uma rapariga que, desgostosa com a vida, tentara o suicídio, atirando-se ao mar, sendo dele resgatada pelo bom do ‘Gaspar’, persona-gem que abria o acto seguinte, entrando no palco, todo molhado, com ela nos braços.

“Acontece, porém, que naquela época não havia ainda em muitas terras água canalizada, razão pela qual os seus habitantes se socorriam de bacias, baldes ou bilhas para a armazenar.

“Tendo o bom do Jota visto a um canto dos bastidores uma bacia, desde logo supôs que o líquido que ela conteria era água. E, vai daí, socorreu-se da bacia para se molhar, isto enquanto o pano corria para dar lugar à cena seguinte”, prossegue Arsénio Baptista.

“Sucede que, ao mesmo tempo que a representação decorria, começámos a notar que, entre nós, alguém exalava um cheiro desagradável, mas sem deixarmos transparecer para o público o incó-modo que sentíamos.

“Só no final da peça é que verificámos que quem libertava aquele cheiro era o Joaquim Jota que, com a precipitação de abrir o acto, não se apercebera de que a bacia ali fora colocada para que as raparigas do grupo se libertassem dos apertos de bexiga. Um fartote!...”. Exclama Arsénio Almeida Baptista.

Situação parecida voltaria a viver numa noite em que o grupo foi actuar ao Clube do Laranjeiro. Desta feita, teve de ir sob uma trovoada tremenda, carregando no quadro da bicicleta José Manuel Mendes que, tal como ele, se tinha atrasado e perdera a carreira. Mas o que mais lhe custou, sublinha, não foi a molha, foi a reacção dos outros companheiros do grupo, que não aceita-ram a justificação e os acusaram de imposturice.

Um homem de sete ofíciosTrabalhador da antiga fábrica de produtos corticeiros, Arsénio Baptista, era o que se pode

designar de “homem dos sete ofícios”. Assim, para além de actor amador e de tesoureiro da Sociedade, ainda integrava a extinta orquestra Ritz, um agrupamento de música ligeira que tocava instrumentos de corda e constituía, com seu primo, Fernando Sá, uma parelha de palhaços que actuou, um pouco por todo o lado, ao serviço de vários circos.

Tal diversidade de ocupações não lhe deixavam qualquer noite livre. Nos primeiros anos de ligação à SFOA, apenas ficava com uma noite para descansar. E quando cessou as funções de tesou-reiro, passando a presidir a comissão da biblioteca, ficou dispensado de participar nas reuniões da direcção. Só essa noite descansava.

“Todas as outras estavam preenchidas com os ensaios do teatro e da orquestra. Com excep-ção dos sábados e domingos, os dias de espectáculo e de bailes.” Salienta.

Paralelamente, sempre que chegava o Carnaval, Arsénio Baptista, seu irmão Guilherme e Joaquim Jota montavam ainda umas cegadas, carregadas de sátira social e de piadas ao governo, que deliciavam os habitantes dos vários lugares do Concelho.

“Mas as piadas não podiam ser muito ousadas”, apressa-se a dizer. “Pois a censura metia--nos muito medo e se nos atrevêssemos de mais, colocava-nos na ‘gaiola’, sem apelo nem agravo. Como fizeram a muitos, durante o antigo regime. Não obstante isso, lá nos arriscávamos a levar por diante estas paródias”, assinala.

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“Era um tipo de brincadeira que caía no goto das pessoas e as motivava, no fim de cada récita, a dar o que podiam, de bom grado. E sendo espectáculos que registavam boa afluência de público, constituíam também uma forma de ganharmos alguns tostões que, de resto, muito jeito nos davam, até porque, nessa altura, a vida era demasiado severa para quem apenas tinha de seu os braços para trabalhar.” Atira Arsénio Almeida Baptista.

No entanto, ocasiões houve em que, por força da importância que essas “coroas” assumiam no parco orçamento familiar, se aventuraram a algumas incursões fora de portas, nomeadamente a Coina, sempre que a realização do tradicional mercado mensal coincidia com o Domingo de Carnaval.

“Ganhámos lá muito dinheiro.” Garante. “Uma das vezes que ali fomos, a cegada foi tão bem recebida, que tivemos de a represen-

tar quatro vezes. Mas, o mais engraçado dessa deslocação dar-se-ia no regresso a Amora, por via de Joaquim Jota não ter conseguido lugar na camioneta, devido à lotação da carreira Setúbal - Cacilhas ter ficado preenchida com a nossa entrada, em consequência da qual o cobrador lhe vedou a entra-da.” Conta.

“Logicamente, ao tomarmos conhecimento que ele não lograra obter lugar, ficámos incomo-dados com a situação, sobretudo porque sabíamos que só dali a umas horas voltaria a haver carreira.

“Contudo, o maroto do Jota, ante a iminência de ali ficar mais umas horas à espera de trans-porte, não se enrascou e rapidamente contornou a camioneta, trepando a escada, através da qual o cobrador acedia ao tejadilho, para depositar e retirar as bagagens”, prossegue Arsénio Baptista.

“Foi, portanto, no tejadilho, envolto nos sacos e embrulhos que aos demais passageiros pertenciam, que Joaquim Jota veio até à Torre da Marinha, paragem onde o cobrador deu pela sua presença e prontamente o pôs a andar, ao mesmo tempo que lhe passava um sermão de todo o tama-nho. Para espanto nosso, que não o supúnhamos capaz de tal façanha.

“Mas, o seu arrojo não se quedou por aí, uma vez que durante o trajecto teve ainda o atrevimento de andar a ‘espiolhar’ o que cada saco escondia, sub-traindo de cada um aquilo que de mais apetecível continha. Assim fez um farnel, com chouriços, morce-las e pão, para comermos quando chegámos à Sociedade. Enfim, um pequeno crime, mas que hoje, sabe bem recordar. Tão bem quanto nesse dia nos soube o petisco”, recorda Arsénio Baptista.

A sua dedicação ao teatro amador e à casa que, em sua opinião, maior atenção dispensou à divulgação da expressão dramática, mormente no que se reporta à denominada Revista à Portuguesa, leva-ria a Câmara Municipal do Seixal a atribuir-lhe a medalha de mérito cultural. Um reconhecimento público, que premiou a generosidade de quem há mais de 50 anos se entrega à promoção dos ideais associativos, à criação cultural e à fruição desta por parte dos seus conterrâneos.

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Arsénio Baptista, autor, encenador e actor demuitas peças levadas à cena pelo Grupo de Teatro da SFOA

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Banda da SFOA a desfilar na Procissão de Agosto

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Sociedade Musical 5 de Outubro

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Histórias, testemunhos e vivências de quem se deu à ‘Mimosa’

Terra de gente simples, que do cultivo da terra tirava o seu sustento, Paio Pires, segundo o testemunho dos actuais anciãos, era, nos finais do século XIX e princípio do século XX, um lugar do concelho do Seixal, cujo quotidiano se assemelhava mais a uma típica aldeia alentejana do que a uma localidade diante de Lisboa.

Tais semelhanças resultavam do facto da agricultura constituir a principal ocupação dos habitantes, por nela se situarem as maiores explorações hortícolas do Concelho, e do tranquilo ritmo de vida que caracterizava o seu dia-a-dia.

Mas as afinidades não se ficavam por aí. Havia, inclusive, uma praça da jorna, onde os homens eram semanalmente contratados pelos feitores das quintas, para se ocuparem das tarefas agrícolas. E também do aglomerado urbano assentar num pequeno núcleo habitacional, construído em torno de uma única rua que desembocava no largo da Igreja, tal como as pequenas povoações do Alentejo. Donde, naturalmente, ressaltava um convívio permanente entre quantos nelas viviam.

Ainda assim, o privilegiado relacionamento humano que essa proximidade proporcionava não era, no entanto, suficiente para que os paiopirenses se contentassem com os escassos motivos de diversão de que, à época, dispunham.

No caso dos homens, reduziam-se aos encontros de taberna e à mera troca de opiniões sobre os assuntos que concitavam as suas atenções, normalmente versando aspectos que se prendiam com a labuta diária ou a simples comentários acerca dos acontecimentos que ocorriam na capital. E, no caso do rapazio, às frequentes incursões feitas às diversas quintas das redondezas, onde iam colher umas peças de fruta, sem autorização.

Ante o bucólico cenário que marcava a vida da Aldeia, alguém aventou a ideia de se cons-tituir uma filarmónica, à semelhança das que já existiam nas demais terras do concelho, ideia que calou fundo no espírito de todos.

Se em todas as outras se formaram sociedades, por que razão não há-de haver também uma em Paio Pires? Perguntaram-se. E se bem o pensaram, melhor e com mais determinação lançaram mãos à obra.

Em consequência desse desejo e da conju-gação de múltiplas vontades, veio a ser criada, no último quartel do século XIX, a Sociedade União e Capricho Aldeense, com o intuito de promover a ins-trução e o recreio dos moradores, através da música, do teatro e da realização de bailes.

Mais tarde rebaptizada de Sociedade Musical 5 de Outubro, por força do dia da sua fundação oficial se ter verificado em igual dia do ano de 1888 e por simpatia pela instauração da República, entretanto ocorrida, a popular agremiação depressa concitou a atenção de todos os habitantes, que a transformaram no local predilecto dos seus encontros diários.

E o fervor que evidenciavam em redor da agremiação era tal que a generalidade dos jovens foi obrigada pelos pais a aprender o solfejo, de forma a que pudessem, um dia, sair na Banda e, assim, assegurarem a continuidade da “Mimosa”, nome pelo qual todos, afectuosamente, a tratavam, numa clara manifestação de entrega aos ideais que estiveram na génese da sua fundação.

Assumindo-se, desde a primeira hora, como a “casa grande” da Aldeia, por força de ne-nhum morador ser indiferente à sua existência e a todos acolher de igual modo, sem atender aos recursos materiais de cada um, a Sociedade era, por assim dizer, “a menina dos olhos” das gentes da terra, que não regateavam esforços para a afirmar como espaço de aprendizagem de virtudes, de comunhão de interesses e cultivo de amizades.

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Sede da Sociedade em 1935

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É esse espírito de elevação e de fruição cultural que há mais de um século inspira a massa associativa da Sociedade Musical 5 de Outubro, tornando-a num baluarte do quanto pôde o querer associativo em terras de D. Paio Peres, que se passa a transcrever, expresso nos depoimentos daque-les que o viveram, ou dele tiveram conhecimento, de viva voz, por intermédio de familiares directos.

Jerónimo CostaHomem de muitos méritos que à Sociedade tudo deu

Figura destacada da vida da Aldeia e da sua colectividade, Jerónimo Costa, homem que, no dizer dos conterrâneos, que com ele privaram, a par de se tratar de um poço de talentos, e ainda uma pessoa bastante conceituada, por mor da permanente disponibilidade que arranjava para valer ao seu semelhante, ou para acudir às faltas da Sociedade, é um dos nomes inultrapassáveis sempre que se pretenda recuperar memórias da Musical 5 de Outubro.

Barbeiro de profissão, evidenciava elevados atributos nos domínios da música e da escrita. Diariamente, muitos “Aldeões”, analfabetos ou já esquecidos desses conhecimentos elementares obti-dos na escola primária, lhe pediam para que lhes lesse ou redigisse cartas. Não é, por isso, despiciendo afirmar que a sua barbearia assumia determinante função social.

Mas, para além de barbearia, o referido salão funcionava, igualmente, como posto de correio (no sentido literal do termo, uma vez que, à época, poucas eram as terras que dispunham de estação dos CTT) e, também, como escritório de aconselhamento a quantos se viam a braços com algum problema, cuja urgência, ou a falta de ins-trução, reclamava os serviços de quem - em seu entender - conside-ravam mais habilitado.

Situado a escassos metros do local onde, à época, a Colectividade arrendara a sua primeira sede, a aludida barbearia

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Banda da Sociedade 5 de Outubro em 1953

Jerónimo Costa e Américo Alves Almeida

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servia-lhe ainda de vigia ao pulsar diário da agremiação que ajudara a erguer. Essa privilegiada localização permitia-lhe acompanhar, a par e passo, as aulas de solfejo dos mais novos ou os ensaios da Banda, enquanto exercia o seu ofício.

Porém, a sua exigência, em matéria musical, revestia-se de tais contornos que, frequente-mente, os clientes o viam, subitamente, ficar possesso, lançando de supetão o pente para o chão, sempre que alguém se enganava na nota que tinha que tirar, ao mesmo tempo que exclamava:

“Aquele raio, já deixou cair a música!”. E, o mais curioso, é que padecia de uma surdez quase total.Figura multifacetada que vivia para a comunidade, apenas pelo sublime gosto de se sentir

útil às humildes gentes da sua terra e à “Mimosa”, Jerónimo Costa acaba, afinal, por se constituir numa das pessoas que mais marcaram a vida da Aldeia de Paio Pires e da sua mais antiga colectivi-dade, ao serviço da qual, não só disponibilizou os seus préstimos como, muitas vezes, o seu próprio dinheiro.

Uma personalidade ímpar que, forçosamente, desperta, em quem tome conhecimento dos seus feitos, uma natural simpatia, mesmo que não tenha tido o privilégio de contactar com ele.

“Tirar da sua algibeirao valor em falta para pagar a renda e pagar ao mestre”

Testemunha fidedigna das canseiras, inquietações e generosidade de seu avô, para com a população da terra e a Sociedade Musical 5 de Outubro, ante as dificuldades que, ao tempo, se lhes colocavam, Zinda Costa Patarra afirma tê-lo ouvido, contar, várias vezes, que, nos primórdios da Sociedade, tirou da sua algibeira a quantia que faltava para perfazer o valor do aluguer da Sede. O mesmo acontecia quanto ao vencimento do maestro da Banda.

“Estamos a falar de uma época, em que as pessoas da Aldeia tinham reduzidos rendimen-tos, vivendo, por isso, com grandes privações. Grande parte delas ocupava-se na agricultura e nas fábricas de cortiça, auferindo baixos ordenados. Ora, sendo a massa associativa maioritariamente constituída por gente de fracos recursos, essa situação reflectia-se na vida da Colectividade e na sua constante falta de desafogo”, sublinha.

Dando também o seu contributo para esta recuperação de histórias e episódios protagoniza-dos por seu sogro, António Patarra - também ele ex-músico da Sociedade - conta ainda que “uma ocasião, até fechou a barbearia para ir ao Porto, às suas expensas, comprar um contrabaixo para a Banda da Colectividade, porque, em Lisboa, não havia aquele instrumento de que ela tanto precisa-va.

“E durante a festa de Paio Pires, contratava habitualmente um barbeiro de Lisboa, para o substituir no estabelecimento, para que ele pudesse vestir o seu uniforme e integrar a ‘Mimosa’”, esclarece.

“Esse oficial não vinha apenas pelas festas, mas também sempre que meu avô ia tocar com a Banda a algum lado.” Refere a neta.

“Mas, para que tudo isso fosse possível, muito concorreu o modo extremamente organizado com que minha avó, Justina Gomes da Costa, administrava o orçamento familiar, através do qual criou as filhas e possibilitou ao marido os actos de desprendimento que este patenteou”, sublinha.

Tomado pelo fascínio da música, Jerónimo Costa, não só tocava e ensinava os mais novos como ainda compunha. Tamanha era a sua devoção à magia dos sons e ao rigor que se impunha, que sempre que na Aldeia havia missas de festa era ele quem regia o coro.

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“Mesmo depois de ensurdecerassistia aos concertos, compunha e tocava”

“Mesmo depois de ensurdecer”, “continuou a assistir aos concertos, a compor e a tocar. Tal era o arrebatamento que a música lhe provocara! Além de se dedicar a fazer poemas - alguns deles para espectáculos que a Colectividade levava e efeito - e a escrever prosa. De resto, a arte da escri-ta constituía outra faceta onde vertia o seu talento e a sua enorme capacidade criativa, mormente na criação de cegadas”, diz Zinda Costa Patarra.

O exercício poético a que se dava decorria, em muitos casos, do simples prazer de colaborar na elaboração de programas recreativos conducentes a angariar fundos para minorar o sofrimento de quem se encontrasse doente.

Mas, noutras traves mestras se alicerçava ainda a sua personalidade, a mais notória das quais terá sido, porventura, a firmeza que evidenciava na defesa daquilo em que acreditava, sobre-tudo quando se tratava de minorar o padecimento de alguém ou melhorar a qualidade de vida dos habitantes da terra.

“A sua nomeação - como era uso na altura - para escrivão da Junta de Freguesia motivá- -lo-ia a empreender uma cruzada da qual não descansou enquanto não viu ser instalada na Aldeia a luz eléctrica, a canalização da água e a rede de esgotos”, lembra a neta.

“Estas benfeitorias só foram alcançadas, devido à determinação com que defendia os seus pontos de vista, de acordo com o que ouvi dizer anos mais tarde a Cosme Lopes, ao tempo presiden-te da Câmara”, relata ainda Zinda Costa Patarra.

“A sua obstinação levava-o, em muitas situações, a comportar-se como se fosse ele o titular de todos os lugares da Junta. Tão forte era a sua ‘teimosia’, quando estavam em causa benefícios para os habitantes da sua terra.

“Mais: a sua surdez nunca o fez vacilar na luta por aquilo que considerava bom para a Aldeia. Nem de falar, fosse com quem fosse, para o conseguir”, assegura igualmente.

Colaborador da ‘Tribuna do Povo’e correspondente do ‘Diário de Notícias’

Exercendo num limitado período de tempo as funções de correspondente do extinto O Século, Jerónimo Costa manter-se-ia, no entanto, ligado à imprensa, através da Tribuna do Povo e do Diário de Notícias, jornais nos quais colaborou durante quatro décadas. Apenas cessou essa colabo-ração aos 80 anos, por entender que as suas capacidades não lhe permitiam dar o que dele espera-riam.

“Em sinal de reconhecimento pelo sua prestação, o matutino Diário de Notícias dirigiu-lhe uma carta informando-o de que, apesar de deixar de desempenhar as funções de seu corresponden-te, continuaria (como até aí) a enviar-lhe, diariamente, o jornal, procedimento que manteve até Abril de 1974.

“Atitude semelhante teve, nessa altura, o Paio Pires Futebol Clube, ao mantê-lo como sócio, mesmo depois de ter apresentado o seu pedido de demissão, fundamentado no facto da sua provec-ta idade não lhe permitir continuar a trabalhar, situação que o impedia economicamente de conti-nuar a pagar a respectiva quotização. O que, de resto, era verdade, dado que, ao tempo, não haver previdência. Dois gestos muitos bonitos que o deixaram particularmente agradado”, acrescenta Zinda Costa Patarra.

Apressando-se a reforçar as palavras de sua filha, António Patarra sublinha ainda que “não obstante a barbearia ter funcionado cinquenta anos, como posto de correio - cabendo-lhe tratar de todo o expediente relacionado com os registos, encomendas, o recebimento e a entrega da corres-pondência às pessoas (como se fosse um funcionário dos CTT), apenas recebia um cruzado por dia.

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E, para que ele não deixasse de prestar esse serviço à população, a Casa da Palmeira (uma das mais importantes quintas da Aldeia, propriedade da família Almeida Lima) dava-lhe quatro tostões, o que perfazia uma verba diária de um escudo”, salienta.

Tão modesto pagamento, o que lhe permitia manter a casa, era o que ganhava no exercício da sua profissão. Daí que, quando deixou de poder trabalhar tivesse, necessariamente, que reduzir algumas despesas para conseguir viver condignamente.

Membro da comissãopara a construção do coreto

Denotando um bairrismo tão acentuado que mais se assemelhava a uma espécie de arreba-

tamento que o impelia e envolver-se em tudo quanto tivesse a ver com a terra e a sua Sociedade, assim que se aventou a hipótese da construção do coreto para a Banda dar os seus concertos, Jerónimo Costa logo se prontificou a integrar a comissão de angariação de fundos para tal obra.

“Conta-se mesmo, que, não tendo a comissão logrado arranjar todo o dinheiro necessário à conclusão dos trabalhos, um dos dois elementos da Junta - então formada por meu avô e por Manuel Costa, pai de José Costa - decidiu que aquela entidade emprestasse, dos seus cofres, uma verba em falta para a conclusão da obra. Não sei qual deles terá sido, mas não me custa acreditar que pudes-se ter sido meu avô”, diz Zinda Costa Patarra.

“Do que vagamente me recordo - por ouvir comentar cá na Aldeia - é que o presidente da Câmara, ao tomar conhecimento disso, ficou desagradado com tal decisão e obrigou o autor da ini-ciativa a repor, do seu bolso, a quantia saída dos cofres da Junta.”

Entusiástico cultivador de amizades, que zelosamente preservava, Jerónimo Costa fazia questão de manter correspondência com os amigos que, por um motivo ou outro, saíam da terra, de forma a mantê-los informados do que nela se ia passando, não deixando, desse modo, que se que-brassem os elos de ligação à Aldeia.

“Um dos casos de que tenho conhecimento prendeu-se com um seu velho amigo e consócio, que emigrou para o Brasil, país onde se manteve cinquenta anos sem vir à terra. Pois, independen-temente de tão longa ausência, meu avô manteve-o sempre informado acerca de tudo quanto aqui ocorria, ao mesmo tempo que assumiu o compromisso de lhe liquidar as quotas da Sociedade”, relembra Zinda Costa Patarra.

Instigador do Grupo de Teatroe das ‘Vozes de Paio Pires’

Outro episódio revelador do fervor que evidenciava pela 5 de Outubro, e tudo quanto nela tinha lugar, levou-o a aliciar a filha mais nova a inscrever-se no Grupo de Teatro, assim que se colocou a possibilidade da sua criação, atendendo a que a existência de tal actividade (dirigida por José Costa, outro fervoroso dirigente da agremiação) poderia constituir uma forma de captar receitas e enaltecer a própria Colectividade.

“Minha mãe foi uma das raparigas da Aldeia que fez parte do referido elenco, que levou à cena um vasto conjunto de peças. Sempre ensaiadas por José da Costa

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Grupo de Teatro da 5 de Outubro

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e com música do padrinho, Américo Alves de Almeida (padrinho de minha mãe), a quem cabia a função de assegurar a componente musi-cal desse tipo de espectáculos. E, presumo, que meu avô também terá escrito alguns trechos, nomeadamente versos para serem cantados em algumas revistas. Embora não o possa garantir, porque se tratam de episódios que se reportam a um tempo em que eu ainda não tinha nas-cido“, confirma Zinda Costa Patarra.

Recordando-se perfeitamente das denominadas Vozes de Paio Pires, um espectá-culo concebido à semelhança do que o actor, Igrejas Caeiro realizava, nesse tempo, em Lisboa,

sob o título de Os Companheiros da Alegria. Tratava-se de um espectáculo que incluía vários núme-ros de variedades, cujos intérpretes - todos da Aldeia - cantavam os temas dos cantores portugueses que nessa época estavam em voga.

“Eram, assim, serões musicais feitos com prata da casa, mas com apreciável talento, onde se ouviam, nomeadamente, as melodias de Francisco José, Rui de Mascarenhas, Tristão da Silva e todos os outros dessa geração. A apresentação do mencionado programa - papel que, em Companheiros da Alegria, era desempenhado pelo popular actor - cabia a meu primo Joaquim Anselmo que, diga-se, tinha muito jeito para aquilo. Dir-se-ia que quase parecia um locutor da Emissora Nacional, tão gran-de era a sua presença e o à-vontade com que se apresentava em palco!”

De igual modo se recorda do desempenho de outros intervenientes. “Entre eles, os filhos de José Costa, respectivamente, Maria Armanda e José Rui, este último, pela excelente capacidade que revelava na interpretação das canções mais conhecidas de Francisco José. O mesmo se passava com José Joaquim quando se tratava de música espanhola. Um cantor autêntico!” Afirma.

“E tudo feito ao vivo, com orquestra e tudo! Ninguém tinha rede. E, a orquestra - de nove músicos, regidos por Américo Alves de Almeida - era também formada por elementos da Banda. Tudo gente da Aldeia. Não havia pessoas de fora.” Assegura.

“Só uma vez por outra, uma senhora do Seixal, que interpretava fados da Hermínia Silva, foi convidada para participar. Nada mais.”

“Infelizmente, nenhum deles logrou seguir a carreira artística, provavelmente porque as condições de vida não lho permitiram. Uns, provavelmente, porque lhes eram exigidas habilitações que não possuíam. Outros, porque as suas possibilidades materiais não lhes deixava margem para pôr de parte o apoio financeiro à família. Foi uma pena, pois qualquer deles tinha óptimas aptidões e muito boa voz”, lamenta.

“No que toca aos jovens da Banda, alguns houve, no entanto, que apesar dos sacrifícios a que foram obrigados, conseguiram fazer carreira em várias bandas militares.” Reconhece com agra-do Zinda Costa Patarra.

Sócio nº 1 da Sociedadeaté ao dia de falecer

Não se dando por satisfeito com o facto de ser o sócio número um da Sociedade, devido ao

papel preponderante que desempenhou na sua fundação, Jerónimo Costa fez ainda questão de pro-ceder à inscrição da filha, a qual, por força do ficheiro de homens ser separado do das mulheres, também ostentaria igual número entre as associadas da Colectividade.

“Quer meu avô quer minha mãe só deixaram de ser sócios no dia em que faleceram. E no que a mim me diz respeito, já sou sócia da 5 de Outubro há cinquenta anos, tantos quantos tenho de vida. Com todos estes antecedentes familiares, a que se junta o facto de meu pai ter sido músico da

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Grupo de Teatro da 5 de Outubro

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Banda, durante vinte anos, outra coisa não seria de esperar.” Conclui.Acima de qualquer hipotética vaidade pessoal, o que Zinda Costa Patarra deixa transpare-

cer, tal é convicção das suas palavras, é, antes de tudo, um indisfarçável orgulho por lhe caber o pri-vilégio de receber dos seus antepassados tão valioso legado associativo.

É esse orgulho que, legitimamente, faz questão de demonstrar, honrando, assim, a memória dos seus familiares. Como quem ergue uma bandeira, ou mantêm acesa a preciosa chama que, desde a infância, lhe guiou os passos. Sem vaidade, mas com natural felicidade.

Américo Alves de AlmeidaDe analfabeto musicala compositor, autore regente da Orquestra

Homem que se entregava por inteiro à sublime sedução da música, Américo Alves de Almeida ocupava um lugar de suma importância no quotidiano da colectividade Paiopirense, em espe-cial no que ao sucesso dos eventos festivos se refere.

Poder-se-á, em rigor, afirmar que desempenhava as fun-ções que hoje se atribuem ao maestro residente de qualquer orquestra ligeira, porque, a par de lhe estar confiada a missão de a dirigir, cabia-lhe efectuar os arranjos orquestrais de todos os temas que esta interpretava, e integrava ainda o corpo da Banda.

Além desta intensa actividade, este sócio fundador da Musical 5 de Outubro, conseguia também arranjar tempo e inspi-ração para escrever muitas das letras das canções que eram canta-das nos serões que a Sociedade levava regularmente a efeito, com o intuito de, a um tempo, angariar fundos e, a outro, proporcionar à massa associativa alguns momentos de entretenimento.

Figura que não regateou sacrifícios para que a “Música da Aldeia” dignificasse os objectivos que presidiram à sua fundação, Américo Alves de Almeida é o que se pode chamar de um típico caso de autodidactismo, pois, de acordo com os seus familiares próximos, não há conhecimento de alguém que, antes dele, tivesse revelado aptidões para esta forma de expressão artística.

“Um autodidactaque se descobriu na música”

Sobrinha-neta de Américo Alves de Almeida, Maria José de Sousa, 45 anos, salienta mesmo que “o estádio a que logrou chegar se deve ao grande amor e dedicação que colocou na aprendiza-gem da música. Só isso pode explicar que alguém que não haja recebido qualquer tipo de formação prévia, nesse domínio, viesse um dia a fazer o que ele fez.”

Para Maria José de Sousa, “isso terá, certamente, resultado da sua inquebrantável vontade de aprender, de modo próprio, as técnicas não só da execução mas também da composição, seguindo o velho adágio popular segundo o qual querer é poder. No seu caso, quis tanto, que pôde chegar onde pretendia, ou seja, desenvolver a sua vocação e colocar o seu talento ao serviço da comunidade paiopirense, através da sua mais antiga agremiação.”

Outra razão que poderá ser aduzida para justificar tão forte desejo de aquisição de conhe-cimentos musicais radica ainda na forte rivalidade que então se verificava entre as diversas socieda-des filarmónicas do Concelho e na permanente ambição de superação daquilo que as demais tives-sem feito.

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Américo Alves Almeida

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Essa constante pressão e o deliberado intuito de evitar que às demais colectividades fossem dados motivos de chacota acabava, no fundo, por constituir o principal estímulo para quem a elas pertencia. “Tudo, obedecia portanto, a um rigor extremo, uma vez que o que estava em causa não era esta ou aquela pessoa, mas a Sociedade. E, por extensão, toda a população da Aldeia”, diz.

A Sociedade foi a paixãode todas as paixões

Tal quadro determinava que, fosse o que fosse que a 5 de Outubro levasse a efeito, teria,

forçosamente, de atingir um assinalável grau de perfeição. Na opinião da actual sócia n.º 1 da Musical 5 de Outubro “terão sido estas as principais

razões pelas quais, meu tio-avô se entregou de corpo e alma à criação de uma sociedade musical em Paio Pires. Porém, a sua entrega a esse desígnio - que muitos sacrifícios lhe acarretou - não se ficou por aqui. Estendeu-se a outros campos da actividade diária da agremiação, nomeadamente aos cor-

pos directivos.” Todavia, onde a sua actuação assumiu

maior relevância foi, indubitavelmente, no capítu-lo da promoção de eventos recreativos. Tanto assim é que, durante muitos anos, recaiu sobre si a tarefa de garantir a componente musical de todas as peças de teatro, designadamente revista, que o grupo cénico levou à cena.

“É neste âmbito que aparece a sua faceta de autor, compositor e orquestrador, a qual lhe granjeou grande parte da notoriedade de que des-frutava entre a massa associativa”, adianta Maria José de Sousa.

Mas a expressão do seu talento manifes-tar-se-ia na plenitude das suas capacidades,

sobretudo no trabalho de preparação e direcção da orquestra ligeira que acompanhava As Vozes de Paio Pires, um programa que, na altura, deu brado entre a juventude da Aldeia.

Mais se sabe ainda que a referida orquestra, denominada Os Boémios, não se limitava ape-nas a acompanhar musicalmente os rapazes e raparigas que cantavam nos referidos espectáculos; tinha também por missão animar os bailes que a Colectividade regularmente realizava.

“Acautelando o melhor possível a qualidade musical dos mesmos, dava-se periodicamente ao trabalho de proceder à substituição dos temas que, a seu ver, estavam mais ‘estafados’ para evitar que baile após baile fossem tocadas sempre as mesmas músicas, de forma a prevenir que os músicos sentissem enfado de tocar um repertório sempre igual”, acrescenta a sobrinha-neta deste fundador da 5 de Outubro.

“Quando não havia concertostocava para os vizinhos”

Exímio tocador de bandolim, Américo Alves de Almeida não se servia deste instrumento

apenas para evidenciar a sua mestria, mas também o utilizava para apanhar as notas das canções que mais se ouviam nesse tempo. E logo que descobria o primeiro acorde, fosse de que melodia fosse, era certo e sabido que, dias depois, se apresentava na Sociedade com a respectiva pauta escrita para que a mesma passasse a figurar no conjunto de temas que a mencionada orquestra interpretava.

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Orquestra Jazz Os Boémios

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“Chegou mesmo a formar, de modo absolutamente espontâneo, um duo com seu compadre Jerónimo Costa, para, nas noites de Verão, entreter os vizinhos. E faziam-no, unicamente, pelo gosto de tocar música, o seu passatempo favorito. E aí, quem se atrevesse ao pé dele a dizer mal da arte dos sons arriscava-se a ganhar a sua animosidade para o resto da vida. O encantamento que a músi-ca lhe provocava levava-o à intolerância”, sublinha Maria José de Sousa.

José Eugénio Pinheiro CostaUm dinamizador natoque tudo fez pela “Mimosa”

Detentor de uma personalidade tão forte quanto a sua compleição física, José Costa é, por-ventura, uma das figuras ligadas à Sociedade Musical 5 de Outubro mais relembradas pelos seus consócios e sobre quem, provavelmente, se contam mais histórias.

Inabalável nas suas convicções, designadamente quando estavam em causa os interesses da Colectividade, a firmeza com que os defendia, chegava mesmo a inspirar algum receio a quem, por força das circunstâncias, com ele tinha que esgrimir argumentos. Não surpreende, assim, que seja o dirigente de quem os associados mais antigos melhor se recordam e a quem aludem com maior frequência.

Dir-se-á que José Costa, não só foi o timoneiro da agremiação, por via dos vários cargos directivos que ao longo de várias décadas nela ocupou, mas principalmente porque foi sob a sua orientação que a Sociedade viveu o período de maior esplendor, quer cultural quer recreativo.

Quase irascível no trato, sempre que, na sua óptica, alguém estaria deliberadamente a pre-judicar a Sociedade ou a minimizar ou aviltar o esforço de quantos a ela se dedicavam, não tinha pejo em afrontá-lo. Comenta-se, até, que uma ocasião chegou a pegar pelos colarinhos Cosme Lopes - então presidente da Câmara -, prometendo-lhe um par de lambadas, em consequência deste ter sonegado o prémio de um concurso de marchas que, em sua opinião, a Colectividade merecia.

Mas de facetas outras se revestia igualmente o carácter de José Costa e através das quais melhor se poderá aferir da verdadeira dimensão da acção dinamizadora que protagonizou na Musical 5 de Outubro, especialmente nos domínios do entretenimento e da fruição cultural.

Possuído de um humanismo que o instigou a hipotecar a própria habitação, para que a Sociedade lograsse comprar a casa onde se veio a fixar definitivamente, sem que sequer sua mulher disso fosse sabedora, José Costa, afirmava-se ainda um homem de grande solidariedade, expres-sando esses sentimentos filantrópicos na forma entusiástica com que se colocava sempre na primeira linha de todas e quaisquer iniciativas que visassem atender às privações de algum conterrâneo, de-signadamente por motivo de doença.

Músico da “Mimosa”, impulsionador do teatro, organizador e ensaiador de marchas popu-lares e criador das Vozes de Paio Pires, José Costa repartiu-se por um significativo conjunto de acti-vidades que marcaram a vida dos habitantes da Aldeia em determinada época da sua história. A todas elas emprestou o seu costumado brio, os seus saberes e a sua determinação. Este o perfil do homem que, ainda hoje, é recordado com saudade, por quantos o conheceram.

Empenhar os seus pertencesàs escondidas da famíliapara comprar a sede da Sociedade

É com indisfarçável emoção que Maria Armanda Costa, 68 anos, se dispõe a relatar histórias e episódios a que seu pai tenha estado associado e que, por tantas vezes os ouvir ou os ter presen-ciado, guardados permanecem no mais bonito lugar da sua memória.

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Membro da direcção que deliberou proceder à aquisição do imóvel para sede definitiva da Colectividade, José Costa ver-se-ia forçado a hipotecar a sua própria habitação para viabilizar a transacção.

“O valor da compra foi de 100 contos, uma soma quase astronómica para aquele tempo. Mas porque considerava um bom negócio, ainda que a Sociedade não tivesse essa quantia, ele tratou de empenhar (sem que minha mãe soubesse), tanto a casa onde vivíamos, como as que tínhamos aluga-das, evitando, assim, que outros o adquirissem”, diz Maria Armanda Costa.

“E o mais surpreendente de tudo isso, foi que apenas viemos a tomar conhecimento desse acto após o seu falecimento, embora minha mãe se recordasse de, nessa altura, ter assinado um do-cumento que ele lhe trouxera para o efeito, ignorando porém com que finalidade. Como não lhe explicou para que era, ela presumiu que seria outra coisa qualquer e limitou-se a assinar.

“Só depois do seu falecimento, minha mãe veio a saber do que ele fizera. Quem lho contou foi o funcionário do banco que efectuou a hipoteca. Felizmente, que esta já se encontrava liquidada havia algum tempo, não resultando daí problema algum.

“De igual modo, sempre desconhecemos se essa dívida lhe terá, ou não, sido paga pela Sociedade. É assunto sobre o qual nada nos disse, eventualmente para que não nos inquietássemos. Não faço a menor ideia... Seja como for, é assunto arrumado”, acrescenta.

Autor, ensaiador, actor,cenógrafo e aderecista

Incansável no labor que imprimia a todas as iniciativas que a sua colectividade decidia empreender, José Costa manifestava-se ainda um “homem que fervia em pouca água”, devido à extrema devoção que depositava em tudo quanto se relacionasse com a popular agremiação.

O rigor que impunha a cada tarefa a que se entregava fazia despertar em quem o rodeava um respeito quase austero. Mas, também, alvo de uma profunda admiração da massa associativa, em especial dos mais jovens, que nele viam um destemido aliado na defesa dos projectos de animação

que, ao tempo, mais os seduziam.É neste quadro que aparece a liderar o

grupo de teatro amador, e todo um conjunto de acontecimentos que, nessa época, se registaram na Sociedade, projectando-a para lá dos limites geográficos da Freguesia e, em alguns casos, até do próprio Concelho.

Autor e encenador de, pelo menos, três revistas à portuguesa e ensaiador de um vasto número de outras peças, José Costa fazia-se ainda notar pela exigência com que conduzia os actores, de forma a que a respectiva apresentação dos espectáculos constituísse um modo de dignificação da Colectividade. Enquanto isso não se ve-rificas-se, não haveria espectáculo.

“Em matéria de teatro, meu pai fazia de tudo. Escolhia o reportório, ensaiava, representava

e ainda tratava da cenografia e dos adereços. Uma vez, até construiu um burro de cartão, em tama-nho natural, porque determinada cena reclamava a presença em palco desse animal.

“Por estranho que possa parecer, não escrevia nada durante o dia. Mas, quando se ia deitar, colocava um papel e um lápis na mesa-de-cabeceira e sempre que lhe ocorria alguma ideia, sentava-se na cama e alinhavava os respectivos textos. O mesmo se passava quanto às marcações de cada um dos actores”, realça Maria Armanda Costa.

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José da Costa.Dirigente carismático da 5 de Outubro eensaiador de teatro

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Para além disso, integrava ainda a Banda Filarmónica e Os Boémios, orquestra que a par de animar os bailes da Colectividade, acompanhava os jovens que participavam nas Vozes de Paio Pires e animava os bailes de outras agremiações, quando, para tanto, era contratada.

Possuidor de um dinamismo que a todos contagiava, para este antigo funcionário do Arsenal do Alfeite, não havia nada que à Sociedade fosse impossível de realizar. Quanto muito, havia coisas mais ou menos difíceis de concretizar.

Por essa razão, caprichava em chamar a si as tarefas que, à partida, se afiguravam mais espinhosas, ou susceptíveis de colher maior antipatia junto dos sócios. Mesmo assim, todos o reco-nheciam como um pilar essencial na actividade lúdica, recreativa e cultural da Colectividade.

“O ambiente da Aldeia era, então, muito diferente. Todos convivíamos com todos. Até havia nos bailes uma dança denominada de ‘moda à Inglesa’, por via de ser a dama que ia buscar o cava-lheiro. Contudo, algumas vezes sucedia que este lhe dava ‘cabaço’, o mesmo é dizer, que recusava a dança, fruto de um certo sentimento de inveja pelo facto de a rapariga antes ter dançado com algum rapaz de fora”, relembra Maria Armanda Costa.

“Mimosa”, a casa comumdas gentes da Aldeia

Relatos de uma época, em que a 5 de Outubro desempenhava o papel de “casa comum” de quantos viviam em Paio Pires. O ambiente da Aldeia era, então, muito diferente. Todos conviviam com todos. E era na Sociedade que as famílias da terra festejavam o Natal, a Passagem de Ano, o Carnaval ou os Santos Populares. Não procuravam outros locais, a não ser a “Mimosa”.

Tão profundo espírito de coesão associativa conduzia a que os mais arrivistas - como seria o caso de José Costa - reagissem de forma mais intempestiva, quando pressentiam que, na sua pers-pectiva, a agremiação estaria a ser lesada.

“Foi esse espírito exaltado que esteve na origem de diversos desentendimentos entre meu pai e Cosme Lopes. Não obstante se tratar de dois bons amigos. No entanto, quando a conversa versava o modo como a Câmara tratava a Sociedade, o ‘caldo entornava’. Aí, não havia volta a dar, meu pai punha tudo em ‘pratos limpos’.” Salienta Maria Armanda Costa.

“O mesmo se dirá, quanto à vinda de melhorias para a Aldeia, no período em que ele subs-tituiu meu avô na presidência da Junta de Freguesia. Aliás, essa foi sempre a sua postura. Quando acreditava em alguma coisa, não se ficava pela mera intenção. Não senhor! Ia até ao fim, na defesa dos seus pontos de vista. Independentemente do opositor ser o presidente do Concelho ou qualquer outro “, garante.

É nesse contexto, que surge o desaguisado em torno da divulgação do nome da marcha ven-cedora do aludido concurso a que já se fez referência, promovido pela Câmara Municipal em 1946.

“Na verdade, correspondendo a uma solicitação que lhe foi feita por Cosme Lopes, meu pai aceitou organizar uma marcha que representasse a Sociedade no mencionado certame, a realizar no Campo do Seixal Futebol Clube, uma vez que as demais colectividades do Concelho também parti-cipariam”, conta Maria Armanda Costa.

“Afigurou-se-lhe que não seria correcto deixar Paio Pires fora da competição, decidiu meter ombros à organização da marcha, mobilizando para o efeito toda a mocidade que frequentava a Colectividade, entre a qual eu me incluía.” Relembra igualmente.

“O campo da bola estava à pinha e quando concluímos a nossa actuação, todo aquele povo se ergueu que nem uma mola, aplaudindo entusiasticamente a qualidade artística da marcha, a desenvol-tura e o rigor colocado na exibição”, realça Maria Armanda Costa.

Findos os desfiles, Cosme Lopes, receando que a atribuição da taça à Sociedade de Paio Pires viesse a torná-lo alvo de eventuais animosidades por parte dos habitantes do Seixal, nunca chegou a divulgar a classificação e, por via disso, o troféu não foi entregue a ninguém. Esta atitude não caiu bem a meu pai, o qual se insurgiu contra tal decisão, por considerar que constituía uma forma de monos-prezar o trabalho de todos quantos tinham participado no concurso“, refere.

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Apesar deste desfecho, várias foram, ainda assim, as localidades onde a representação da Musical 5 de Outubro se exibiu, com grande sucesso, para satisfação dos paiopirenses.

Todavia, nem só de êxitos e alegrias se escreve a história do percurso de José Costa enquan-to associativista. Há, também, um tempo de profunda amargura, decorrente de lhe ter sido vedada a entrada nas instalações da Colectividade.

“Foi uma decisão que muito o abalou, assente numa norma do regulamento interno da Sociedade, segundo a qual, todo aquele que deixasse de tocar na Banda, ficava impedido de entrar na colectividade. O que era uma violência, para além de, no seu caso, ser ainda uma tremenda injustiça. Mas, mesmo quando esteve impedido de a frequentar, nunca se deitava sem que antes tivesse dado uma volta pelas proximidades da Sede”, confessa Maria Armanda Costa.

Ante esta situação, muitos associados acharam que aquela norma deveria ser revogada, por absurda, posição que se estendeu rapidamente à generalidade da massa associativa, levando-a a soli-citar a realização de uma Assembleia Geral com tal fim.

Eliminado esse espinho, de ordem burocrática, que perpassava por muitos daqueles que mais se deram à “Mimosa”, José Costa pôde voltar outra vez a frequentar - com natural satisfação - a sua querida instituição e o espaço que estivera na origem da hipoteca que ele contraíra, para que a sua Sociedade se instalasse em sede própria!

Joaquim Ramos de AlmeidaO interesse pela músicapersegue-o desde criança

Músico da “Mimosa” desde a adolescência, fase da sua existência em que começou a apren-der as primeiras notas do solfejo, Joaquim Ramos de Almeida, 79 anos, é um dos muitos habitantes de Paio Pires que, mal esboçou os primeiros passos, se habituou a caminhar para a Sociedade na compa-nhia dos pais.

Segundo diz, em especial seu pai que era adepto confesso das virtudes que ali se acolhiam, na primeira linha das quais elegia a arte dos sons.

Aluno de José Costa, que o conduziu no trajecto de aprendizagem até chegar à estante e lhe incutiu ainda o espírito que animava quantos vestiam a farda da agremiação, este filarmónico re-fere que o interesse pela música o persegue desde criança, razão por que o seu processo de aquisição das noções básicas do solfejo se efectuou sem sobressaltos.

“Falta à lição de músicavaleu-lhe uma sova do pai”

“Desde garoto, que me recordo de pedir a meu tio, Artur Homem (à época o caixa da Banda),

que me levasse consigo para os ensaios. Ainda a Sede era na Rua Fernando de Sousa.” Afirma.De igual modo se recorda do dia em que teve lugar a inauguração do coreto. “Foi em 1930,

era eu rapazito. Andava na Escola Primária e vim com os colegas e a professora assistir à cerimónia, porque se tratava de uma obra que muito valorizava a Aldeia”, diz.

“Pelo que, quando meu pai me informou que me tinha inscrito na escola de música da Sociedade, a notícia constituiu, para mim, um motivo de grande felicidade. O mesmo não direi do dia em que ele me chegou ‘a roupa ao pêlo’ por via de José Costa lhe ter dado conhecimento que, na vés-pera, eu faltara à lição”, sublinha.

“Nessa altura, todos ao rapazes tinham a obrigação de aprender música, caso contrário, eram sovados pelos progenitores. No entanto, a reprimenda não me fez perder a afeição que já tinha pela Colectividade“, regista.

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Tal afeição manter-se-ia com tanta intensidade que, anos mais tarde, para obviar à falta de saídas da Banda, resolveu sugerir à Sociedade que reduzisse, de 30$00 para 20$00 o valor do cachet que esta pedia sempre que ia actuar fora.

“Tratou-se de uma proposta que inicialmente não foi bem acolhida por alguns”, refere, “mas que viria a revelar-se ajustada, uma vez que a partir daí o volume de solicitações aumentou significativamente.” Salienta.

“Era um tempo em que ninguém faltava aos ensaios. E mesmo aqueles que tentavam a sua escapadela para irem namorar, não logravam alcançar os seus intentos, porque o mestre imediata-mente mandava alguém chamá-los. Ai deles que não viessem! E quando chegavam, levavam logo uma valente descompostura. Era assim. Nas noites de ensaio não havia ordem para namoros. Para namorar tinham as noites em que a Banda não ensaiava - dizia o mestre.”

Outro episódio de que guarda memória foi o castigo aplicado pela Colectividade, porque a sua justificação de que se encontrava doente não passava de um pretexto. Uma decisão extemporâ-nea baseada em pressupostos que não foram confirmados e que muito lhe desagradou.

“Quando se apurou que, na verdade, me via impedido de dar o meu contributo, por via de não me poder levantar da cama, a direcção reconheceu que, afinal, se precipitara e, não só me apre-sentou desculpas como ainda quis promover um ‘benefício’ para atenuar as dificuldades económicas que me afectavam, por mor de estar impossibilitado de trabalhar. Mas, porque ficara bastante mago-ado com o que me tinham feito, recusei liminarmente essa ideia”, assevera.

Intervenção do paievita saída da Banda

O descontentamento provocado por aquela decisão foi de tal ordem que, na ocasião, esteve prestes a trocar a “Mimosa” pela Banda da União Seixalense, transferência que só não se consumou, devido à pronta intervenção de seu pai, que lhe pediu para que não o fizesse, enquanto ele fosse vivo.

“Satisfazendo o pedido de meu pai, decidi não abandonar a Banda. Só deixei de tocar, quan-do tirei a carta de condução e fui para motorista da firma Alves Ribeiro, profissão que me forçava a estar ausente da Aldeia. O mesmo aconteceu quando entrei para a fábrica de cerveja”, adianta.

Porém, como já tinha sido, entretanto, retirado do regulamento interno da Sociedade o arti-go que proibia a entrada de quem tivesse deixado de tocar na Banda, o acesso à Sede nunca lhe foi vedado.

Mas de episódios outros se faz ainda a memória dos tempos em que envergou o uniforme da “Mimosa”. “Um deles era a denominada ‘cana verde’, uma espécie de romaria popular, tradicio-nalmente realizada pelo S. João, que nos levava até ao Zemouto, local onde se armava um baile campestre, abrilhantado por uma charanga espontânea formada por músicos da Banda. Era uma ale-gria”, relembra.

“Um período em que a Colectividade se enchia não apenas com os amantes da música mas também com os praticantes do ‘chinquilho’, um desporto muito popular na época. Um tempo, em que o bar da agremiação servia fiado, na condição de que, cada qual, liquidasse o seu rol no final da respectiva semana. Isto porque, nessa altura, as pessoas recebiam os ordenados semanalmente. Quem não pagasse o consumo da semana anterior, ficava com o crédito cortado”, rememora Joaquim Ramos de Almeida.

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Fobia de limpeza aos arquivosdestrói património histórico

Membro fundador de Os Maçacotes, um grupo de jazz criado para disputar aos Boémios, a simpatia de que estes gozavam junto das raparigas da Aldeia, Joaquim Ramos de Almeida (também conhecido por Joaquim Homem) refere que “a ideia de fundar um agrupamento alternativo aos Boémios resultou da necessidade de haver uma orquestra que assegurasse a realização dos bailes da Sociedade quando estes eram contratados para ir tocar fora e para combater a excessiva importância que os mesmos se atribuíam. Enfim, coisas de rapazes.”

Ainda nesse tempo, ocorreu um incidente que o deixou deveras indignado, por sustentar que se tratava de um atentado ao património da Colectividade. Segundo Joaquim Ramos de Almeida que, a par de filarmónico, desempenhou igualmente as funções de arquivista da Banda, “tudo se deveu ao facto de umas pessoas que passaram pela direcção nos anos setenta, terem decidido efec-tuar uma limpeza aos arquivos da Sociedade, sem se certificarem daquilo que podia ou não ir para o lixo.” Assegura.

“Vai daí, trataram de queimar tudo quanto se lhe afigurou velho, tendo apanhado na sua senha incendiária todas as partituras que constituíam o espólio musical da Banda, bem como vários livros de actas da direcção. Um acto que, para além de evidenciar uma inequívoca expressão de ignorância, se revelou ainda extremamente lesivo do património histórico da agremiação, como facil-mente se compreenderá”, conclui Joaquim Ramos de Almeida.

Albano Gomes FrançaUm alentejano na Aldeiaque aos Maçacotes deu alma

Natural de Santiago de Cacém, mas residente na Aldeia de Paio Pires desde os sete anos, Albano Gomes França é outro dos associados da Sociedade Musical 5 de Outubro, que desde criança sente um particular carinho pela Colectividade, razão pela qual, logo que arranjou o primeiro empre-go, preencheu a sua proposta de sócio.

Até aí, de acordo com uma norma interna da agremiação, não havia necessidade de criança alguma se associar - a não ser nos casos em que a respectiva inscrição resultava da exclusiva inicia-tiva dos pais -, atendendo a que a assistência aos eventos, se realizados na colectividade, era perfei-tamente livre. Só a partir do momento em que iniciasse a vida laboral, teria de se associar para fre-quentar a agremiação.

“Em respeito por essa disposição e pelo convívio que a Sociedade proporcionava à rapazia-da da minha geração, mal completei treze anos e comecei a trabalhar, imediatamente tratei de subs-crever a minha ficha de adesão, de forma a poder usufruir das regalias que ela nos oferecia, nomea-damente participar nos bailes ou assistir aos espectáculos”, refere.

Membro da Direcçãoque comprou a Sede

Pouco tempo depois de ter procedido à sua inscrição, já integrava o elenco do grupo cénico, representando o papel de miúdo da escola numa das várias revistas que ali foram levadas à cena.

“Só actores eram trinta. Fora a orquestra. Um espectáculo conduzido pela mestria de José Costa, que se prolongou por vários meses e que nos levou a diversas localidades do País”, diz.

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“Do meu ponto de vista, a projecção do nome que a Sociedade adquiriu, nessa altura, muito ficou a dever à sua capacidade empreendedora. Tratou-se de um homem que realizava tudo quanto pensava, conseguindo reunir à sua volta um conjunto de rapaziada muito talentosa”, salienta.

Membro da direcção que tomou a decisão de proceder à aquisição da sede da Colectividade, Albano Gomes França faz ainda notar que “isso ocorreu quando tinha dezoito anos e sustentou-se no facto de a construção da Estrada Nacional cortar pelo meio a quinta a que o imóvel pertencia, dei-xando-o isolado do resto da Aldeia.

“Tal situação, conjugada com a circunstância de, na referida casa, já estar a funcionar (ainda que em regime de aluguer) a sede da Colectividade, levou-nos a avançar para a sua compra.” Adianta.

O processo de angariação de fundos tendentes a levar por diante tal objectivo efectuou-se através de uma subscrição popular, feita junto dos associados e demais habitantes da terra, bem como na venda de rifas para um sorteio promovido com essa finalidade, tarefa na qual todos se empenharam com grande entusiasmo, como de resto era timbre nessa época, além da realização de espectáculos, bailes e sessões de cinema.

“Cada título de empréstimo tinha um valor de mil escudos e muitos pessoas houve que, quando a Colectividade se aprestava para lhes liquidar a importância que haviam concedido recu-saram o respectivo reembolso”, recorda.

Quanto à ideia de dar cinema aos sábados e domingos, na esplanada da Sociedade, resultou de um acordo estabelecido com o empresário que explorava o cinema do Seixal, mediante o qual a 5 de Outubro recebia uma percentagem da bilheteira e detinha a exploração do bar. “Tudo isso nos consumia muito tempo”, “mas era a forma de se conseguir que a Colectividade arranjasse dinheiro para satisfazer as suas obrigações”, sublinha.

Tocar o ano inteirosem ganhar um tostão

Trabalhador da extinta Fábrica

Mundet, unidade fabril onde desempenhou as funções de encarregado geral, Albano Gomes França acrescenta igualmente que “era a Sociedade quem assumia a organi-zação das festas populares da Aldeia, mis-são que reclamava o esforço, quer de diri-gentes quer de associados. Tínhamos que ser nós a fazer tudo. Não havia ajudas de fora. Nem da Câmara. Era bom, era! Tudo assentava no trabalho dos habitantes da Aldeia e no entusiasmo da juventude. Nada mais.”

Para este antigo dirigente da “Mimosa“ a juventude constituía, nessa altura, um pilar essencial em toda a activi-dade que a Colectividade desenvolvia. “Até porque, nesse tempo, não havia outro tipo de entretenimento, a não ser aquilo que ela levava a efeito. Daí que, a sua adesão aos vários eventos estivesse sempre assegurada, conferindo-lhes um brilho e uma alegria que a todos motiva-va”, realça.

Espaço onde se iniciavam a maior parte dos namoros da terra, devido à permanente convi-vência que propiciava aos jovens de então, a 5 de Outubro afirmava-se, igualmente, como o principal lugar de reunião da comunidade local.

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Conjunto musical que animava os bailes de carnaval.Albano Gomes França está a tocar na bateria

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Ali se discutiam os temas do dia-a-dia, as vicissitudes da vida. A dureza do trabalho no campo e nas fábricas. Ali se congregavam vontades e saberes; se armavam casamentos, se dese-havam amanhãs, se levantavam sonhos. Se cruzavam ainda experiências; se cultivavam amizades; se ligavam caminhos; se fomentavam solidariedades e se cerziam as finas linhas com que se entrelaça-vam os passos de um devir, que se queria feliz e venturoso.

Casa de afectos múltiplos se dirá; de paixões e entregas; de comunhão de ideais; de parti-lha de esforços e conhecimentos. De tudo isso ela se alicerçava, para intentar os trilhos de quantas caminhadas seu querer se enaltecia.

É esse espírito de incitamento permanente que leva Albano Gomes França a formar, com um conjunto de jovens rapazes da Banda, o grupo de jazz Os Maçacotes, de forma a evitar que os olhos das raparigas da Aldeia se virassem apenas para a orquestra Os Boémios, também ela constituída por elementos da Banda, mas um pouco mais velhos.

“Mercê da compita que tínhamos com os Boémios, com o objectivo de lhes disputar a pri-mazia, tocávamos em quase todas as matinées que a Sociedade levava a cabo. E nos bailes de Carnaval também. Sempre, sem ganharmos um tostão.” Sublinha.

“Como, nesse tempo, a Colectividade não tinha posses para pagar a um conjunto de fora, quando tal sucedia”, conta ainda este filarmónico, “organizávamos brigadas para efectuarem a venda de rifas de uma galinha ou de uma garrafa e lá íamos nós, Aldeia acima, batendo de porta em porta. Quando conseguíamos angariar 100$00 - um dinheirão nessa época! - o regresso à Sede era uma festa”, refere Albano Gomes França.

“Algumas vezes sucedeu, no entanto, que, como esse tarefa se realizava pela manhã, a dona da casa a cuja porta tínhamos batido nos aparecia com o fervedor do leite na mão, supondo que se tratava da leiteira. Episódios com os quais todos convivíamos naturalmente, sem quezílias nem res-sentimentos de qualquer ordem”, relembra com saudade.

Fundador da bibliotecaNeste seu depoimento, acerca das vivências na 5 de Outubro, Albano Gomes França não

deixa igualmente de se recordar de algumas pessoas com quem conviveu. “Entre elas, o cunhado de Joaquim Homem, engenheiro Belarmino, que mal se apercebia de que o bar estava a ficar desfalca-do, dizia logo a um de nós que o acompanhasse a sua casa para trazer uma cesta de garrafas de várias bebidas.”

Membro da comissão fundadora da primeira biblioteca da Colectividade, este paiopirense por adopção adianta “que se tratava de uma simples estante com três prateleiras e duas gavetas para arquivar as fichas dos livros emprestados. Apesar da modéstia do equipamento, aquilo foi uma coisa importante para a agremiação, porque constituiu, na altura, uma inovação na Aldeia. E registava grande movimento.” Garante.

“Além disso, as pessoas, nesse tempo, entretinham-se muito a ler, especialmente aquelas que não faziam parte da música ou do teatro. Ora, como durante os dias de semana não havia espec-táculo e não tinham outra forma de ocuparem o tempo, sobretudo ao serão, iam para a biblioteca e liam. Liam tudo o que ali havia para ler”, acrescenta.

Por outro lado, foi ainda de sua autoria a ideia de solicitar ao desenhador da Mundet - um homem com muito talento - que criasse o emblema que a Sociedade hoje ostenta, em substituição do antigo símbolo que se resumia unicamente a uma lira.

Memórias de um tempo passado que, por ter sido intensamente vivido, permanece imper-turbável no imaginário de Albano Gomes França. Tão forte se apresenta o seu relato que, dir-se-á resultar essa lembrança, não apenas da sua capacidade de recuperar episódios mas, acima de tudo, de os manter imunes ao galope dos anos.

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Isilda Costa Filipe:“Não posso passar um diaque não vá à Sociedade”

Nascida na mesma casa em que vive, situada paredes-meias com a sede da Colectividade, Isilda Costa Filipe, 79 anos, é outra das testemunhas presenciais do relevante percurso que a agre-miação efectuou na promoção da cultura, da música e do entretenimento, nas últimas sete décadas.

Neta de um entusiástico adepto da 5 de Outubro e filha de um ex-presidente da Colectividade, esta anciã, cuja lucidez não dá mostras de ter sido toldada pela passagem do tempo, apresta-se logo a sublinhar que o conhecimento que tem da vida da Sociedade não decorre unica-mente da circunstância de habitar junto dela mas, fundamentalmente, das conversas que ouvia aos seus familiares.

“Esse convívio fez-me despertar um interesse muito grande por tudo quanto se relacionasse com o dia-a-dia da Colectividade. Até porque se tratava de uma influência que remontava já a meu avô, um dos elementos pertencentes à comissão que meteu ombros à subscrição pública para a cons-trução do coreto, a qual incluiu ainda Augusto Lino, Manuel de Almeida e seu sobrinho, Jerónimo Costa”, assinala Isilda Costa Filipe.

“Os primeiros estatutos da Sociedadeforam escritos nesta casa”

Ao mesmo tempo que dá nota de que as suas primeiras deambulações pela Colectividade, tiveram lugar ainda esta funcionava no andar de um prédio da Rua Fernando de Sousa, Isilda Costa Filipe recorda com notória satisfação os momentos em os bailes eram interrompidos para dar lugar ao denominado “Damas ao Bufete”, enquanto realça que muitas vezes o maestro Paranhos (porven-tura o primeiro dos mestres da Banda de que guarda memória) comeu em sua casa.

Mas outras histórias guarda ainda sobre os afazeres a que se deram os seus antepassados. Entre elas, a que se prende com a elaboração dos primeiros estatutos da Sociedade. “Foi também nesta casa”, garante, “que meu avô, meu pai e uns advogados de Lisboa os redigiram”, informa.

Um tempo que exigiu às gentes da Aldeia muito entusiasmo, trabalho e dedicação. Uma época em que todos se empenhavam para dignificar o nome da 5 de Outubro. “Não havia mãos a medir. Um dia faziam-se as rifas para a quermesse, outro, os pendões de papel para as festas. E por aí fora. Tudo, com enorme vontade e igual satisfação. Mais do que uma colectividade, a Sociedade era, nessa altura, um lugar onde se respirava alegria a toda a hora“, refere.

Tal espírito festivo levou-a - ainda muito nova - a participar na primeira marcha carnavalesca realizada na terra. “Foi uma ideia de José Costa que, para além de dirigir, também entrava nas con-tradanças e nos convenceu a irmos apresentá-la ao Barreiro e a Cacilhas”, salienta.

“Com essa marcha, ganhámos um conto e tal. Uma pequena fortuna. Dinheiro esse que nos permitiu fazer uma valente almoçarada para todos”, conta.

Dançar com um dos cunhadosvaleu-lhe ser chamada à Câmara

Das inúmeras vivências que a sua memória reteve, Isilda Costa Filipe lembra-se igualmen-te de haver participado numa série de peças de teatro, tanto em solteira como depois de ter contraí-do matrimónio com um antigo músico da Banda.

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Outro dos eventos que lhe acodem à lembrança e a que não deixa também de aludir repor-ta-se à pompa que caracterizava alguns saraus que a Sociedade levou a efeito e nos quais dançava com um dos cunhados, uma vez que seu marido não o podia fazer por ser um dos elementos do con-junto que neles tocava.

“Por mor disso, cheguei a ser chamada ao presidente da Câmara para lhe dar satisfações acerca do meu comportamento”, revela.

“Ora, como considerei que o facto de dançar com o irmão de meu marido na presença deste não tinha nada de mal, disse-lhe prontamente, que ninguém tinha nada a ver com o meu relaciona-mento familiar. Ademais, se meu esposo não me repreendia, com que legitimidade podia ele, Cosme Lopes, repreender-me? Era o que faltava! Então, o homem percebeu que estava a devassar a minha vida privada e disse-me para voltar para casa descansada”, acrescenta.

Revelando uma notória dificuldade em compreender as mutações entretanto operadas no movimento associativo de índole popular, o que lhe provoca uma descrença quanto ao futuro deste tipo de instituições, ainda assim, faz questão de todos os dias ir tomar café à Sociedade.

Apego à Colectividadeimpele-a a associar filhaapenas com um mês de vida

“Um hábito antigo que, ao contrário de outros, só deixarei de cumprir quando morrer. E tanto assim é, que apesar da idade já não permitir andar de um lado para o outro, ainda continuo a ser a única sócia da colectividade que diariamente lá vai. Ao contrário das que só lhe pisam a porta-da quando há festa. É uma tristeza, o desinteresse com que as mulheres da Aldeia acompanham hoje a vida da Colectividade”, assegura.

O apego que sempre evidenciou pela 5 de Outubro e o respeito que lhe mereceram o traba-lho de seu marido e de seu pai em prol da agremiação, instigaram-na a inscrever sua filha na Sociedade mal a criança completou um mês de vida.

“Assim que os padrinhos lhe escolheram o nome e a baptizei, tornei-a logo sócia. Aliás, todas as cinco filhas de meu pai foram associadas da Colectividade. Logo, se o avô, os pais e as tias eram sócios, porque razão ela não havia de o ser também? Nenhuma. A sua quota era, então, de quinze tostões (1$50) e quando entrou para o grupo de teatro passou para vinte e cinco (2$50). Mais: ainda hoje - já lá vão 49 anos - faço questão de ser eu a pagar-lhe as quotas.”

Viúva há trinta e quatro anos, Isilda Costa Filipe diz ainda que o faz por mero capricho e não que a filha precise disso. “É a minha maneira de expressar o carinho que sinto pela Colectividade”, argumenta. O mesmo sentimento a impele ainda a ir lá todos os dias. “Não posso passar sem entrar na minha segunda casa”, confessa.

Mas o amor que sente pela 5 de Outubro não a impede de manifestar a sua amargura por não ser a sócia n.º 1, situação que atribui a uma deficiente organização do ficheiro das associadas, porque afirma “não perceber como é que uma rapariga de quarenta e tal anos pode ter esse número, se quando ela nasceu já eu era sócia há um par de anos. Quem o devia ser era eu!” Dispara. “E não uma rapariga que foi para sócia no lugar da mãe. Não me incomodo que me acusem de má-língua.” Remata.

Um depoimento que manifesta, de forma indisfarçável, o modo como os associados, que mais perto permanecem na “Mimosa”, observam o dia-a-dia da Colectividade. E as complexidades que envolvem hoje o movimento associativo.

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Joaquim AnselmoO jovem que não foi músico e se tornou no rosto das “Vozes de Paio Pires”

Joaquim Anselmo Lino, 63 anos, é um dos

vários jovens que, ao tempo, emprestaram o seu talento à Sociedade Musical 5 de Outubro, no perí-odo em que esta viveu a época de maior esplendor, devido à forte ascendência que a Colectividade exercia sobre a juventude da sua geração e do entusiasmo com que esta respondia aos desafios que a agremiação lhes lançava.

Natural de Paio Pires e filho de um sócio da “Mimosa”, que apesar de se dedicar mais às virtudes do desporto do que aos encantos da músi-ca, nunca deixou de se afirmar um grande amigo da Colectividade. Foi, no entanto, seu tio, Américo Alves de Almeida, de quem guarda gratas recorda-ções, o grande responsável pela sua ligação à agremiação.

Em consequência da constante compa-nhia de seu tio e da profunda relação de amizade que os unia, ainda garoto, foi tomando contacto com algumas pessoas mais velhas que, tal como o seu familiar, muito deram à agremiação e por quem, de resto, nutre uma forte admiração. São os casos do maestro Alfredo Dias, José Pucariça e José Eugénio Costa.

Daí a participar nas actividades que a Sociedade regularmente levava a efeito, foi um pequeno passo, com o qual, de resto, iniciaria um percurso que o levaria, anos mais tarde, a assumir o papel de pivot de uma das mais emblemáticas iniciativas musicais realizadas na Aldeia, intitulada Vozes de Paio Pires, ainda hoje relembrada por todos quantos tiveram o privilégio de assistir aos seus espectáculos.

Membro da comissão da mudança Antes disso, porém, integrou a denominada comissão da mudança, criada por um grupo de

jovens associados, com o intuito de conferir à Sede um ambiente diferente, retirando-lhe o aspecto algo “atabernado” que a caracterizava.

“Fomos nós quem introduziu uma série de alterações, dotando-a de uma máquina de café e uma televisão - porventura, as primeiras a serem instaladas em Paio Pires - com o propósito de trans-formar a Colectividade num dos principais pólos de atracção da Aldeia”, revela.

“É certo que a introdução de tais medidas nos acarretou, inicialmente, alguma antipatia por parte de certos associados mais idosos, os quais, com o correr do tempo, acabaram por perceber que o objectivo não era o de os afastar da Sociedade, mas sim torná-la num maior espaço de convivência entre os habitantes da terra, pelo que, pouco tempo volvido, já se congratulavam com as alterações

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Joaquim Anselmo usando da palavra no decursode uma cerimónia de aniversário da Colectividade

Américo AlvesAlmeida e Joaquim Anselmo Lino

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feitas”, informa.Neste desfiar de recordações acerca da 5 de Outubro, Joaquim Anselmo não deixa de refe-

rir o período em que a Banda esteve sob a regência do maestro José Pinto Rodrigues, em sua opinião, a época em que a filarmónica da Aldeia viveu o seu grande momento áureo, chegando mesmo a ser considerada uma das melhores do País.

Mas de lembranças outras se reconstrói o passado de quem acompanhou de perto a vida da Colectividade e da sua banda. Entre elas, ressalta a circunstância de sempre que a “Mimosa” saía desatava a chover.

“Desde miúdo que ouvia proferir tal afirmação, quer a meu tio quer a outros músicos. E o certo é que mais do que uma profecia, esse dito acabava, no fundo, por corresponder à realidade, visto que, conforme tive oportunidade de confirmar, quando ela saía à rua, invariavelmente chovia.”

Obras da Sedepagas a prestações

Das suas vivências retém igualmente o sacrifício que as primeiras obras efectuadas no imó-

vel a todos exigiu, designadamente por ocorrerem pouco tempo depois da respectiva aquisição. “Nessa altura, já eu fazia parte da direcção. E decidimos avançar para essa tarefa, porque

se tratava de um edifício velho, que oferecia poucas condições para a realização de um conjunto de iniciativas que tínhamos em mente. Daí, concluímos ser de toda a urgência melhorar as instalações, de forma a podermos rentabilizar melhor o espaço de que dispúnhamos”, conta.

Mas, maior aventura ainda foi a realização da 2ª. fase das aludidas obras, as quais visavam a criação de um salão de festas capaz de responder, minimamente, às necessidades da massa asso-ciativa, o mesmo é dizer, da Aldeia.

Um atrevimento que, segundo Joaquim Anselmo, lhes deu grandes dores de cabeça. Nunca mais lhe viam o fim. Quase pareciam as obras de Santa Engrácia. Quem lhes valeu, na ocasião, foi António Augusto Silva, um associado que exercia as funções de gerente da firma A. Silva & Silva, o qual para além de haver facilitado o fornecimento dos materiais, assumiu também a direcção da obra.

“Ainda assim, havia que proceder à liquidação dos materiais fornecidos, razão pela qual, durante um dado período, ficámos a pagar uma prestação trimestralmente de 120 000$00. O que, convenhamos, se afigurou bastante difícil de cumprir, pois tratava-se de uma importância deveras elevada para as posses da Colectividade. Só com muitos bailes, vários peditórios de porta em porta e a venda de rifas para um sem-número de sorteios, lográmos ir satisfazendo os compromissos assu-midos”, sublinha.

Outra tarefa em que se envolveu prendeu-se com a formação da comissão que trataria da reintegração de José Costa e de todos os outros filarmónicos que, por este ou aquele motivo, tinham cessado a sua actividade musical e, por via disso, estavam impedidos de entrar na Sociedade.

“Prezo-me de ter pertencido a essa comissão, que teve a missão de promover o regresso desse punhado de homens que tanto deram à agremiação.” Assevera Joaquim Anselmo.

“E a justeza de tal medida começou logo a dar frutos, uma vez que graças à consideração de que ele gozava junto das empresas do Concelho e da sua capacidade negocial, foi possível aliviar o valor das prestações à empresa A. Silva & Silva, criando, dessa maneira, as condições que permiti-ram à Colectividade honrar a sua palavra.”

“As ‘Vozes de Paio Pires’foram uma lufada de ar fresco”

Ainda a Colectividade mal se havia refeito do tremendo fardo que tivera de suportar, já

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estava a braços com outro desafio, decorrente da ousadia de se atrever a contratar a orquestra Os 6 Latinos, um dos conjuntos de baile que à época gozava de grande popularidade. “Esse atrevimento, que comportava alguns riscos“, “ acabou, afinal, por se revelar extremamente benéfico para os cofres da Sociedade, visto que a presença desse e de outros grupos do género, muito em voga nessa altura, fez afluir à 5 de Outubro, não só a mocidade da terra como, acima de tudo, muitos forasteiros, geran-do boas receitas de bilheteira e o consequente ganho de umas valentes coroas,” sustenta Joaquim Anselmo.

Animado pelos resultados obtidos com o aludido atrevimento, e confiante nas suas capaci-dades, o dinâmico grupo de jovens da Aldeia, sob a tutela de José Costa, decidiu então avançar para a realização do projecto Vozes de Paio Pires, uma iniciativa que assentava quase exclusivamente na “prata da casa” e que muito êxito obteve junto da população local.

“A matriz da iniciativa inspirava-se no modelo de um conhecido programa rádio-publi-citário, denominado APA (muito ouvido nessa época); no Comboio das Seis e Meia e nos Companheiros da Alegria, produzido pelo actor Igrejas Caeiro”, relembra Joaquim Anselmo.

Tratava-se de um espectáculo de cariz musical, no qual cada um dos participantes exibia os seus dotes artísticos, depois de apreciadas as respectivas aptidões. O trabalho de selecção dos inter-venientes e distribuição de funções cabia a José da Costa, estando a vertente musical afecta a seu tio, Américo Alves de Almeida.

“O êxito do projecto - decorrente do desempenho de alguns de nós - foi de tal monta, que durante um determinado período de tempo nos vimos forçados a efectuá-lo, quinzenalmente, de forma a satisfazermos a adesão dos espectadores que a ele pretendiam assistir”, sublinha Joaquim Anselmo.

“E, esse público, não se limitava às pessoas da Aldeia, até porque, ao tempo, o número de habitantes de Paio Pires era, deveras, reduzido.

“Mais: o sucesso da iniciativa - que se prolongou alguns anos - adquiriu uma tamanha dimensão, que rapidamente fomos solicitados para o apresentar em várias localidades da região, nomeadamente em Amora, Seixal e Quinta do Anjo (Palmela), entre outras. Sempre com assinalá-vel agrado”, salienta.

A ideia geral do espectáculo resumia-se à exibição de trechos musicais, interpretados por cantores amadores, entrecortados, a espaços, por concursos feitos com os próprio espectadores, nos quais eram oferecidos vários produtos obtidos junto de diversas firmas, designadamente as que os comercializavam. Dir-se-ia que a estrutura do aludido evento assentava naquilo que actualmente se designa de programa publicitário.

“Como a Sociedade não tinha capacidade para os adquirir e os distribuir gratuitamente a quem participava nos aludidos concursos, entrámos em contacto com os representantes dessas mar-cas, de forma a obtermos a sua adesão. Um género de patrocinadores do espectáculo”, esclarece Joaquim Anselmo.

“Alguns acharam muita piada à iniciativa e dispuseram-se a dar o seu patrocínio ao projec-to, enviando-nos amostras dos produtos que distribuíam. Foram os casos da Tudor, que nos ofereceu umas baterias e da Farinha Fubá, que nos remeteu uma quantidade de pacotes daquela farinha”, re-fere ainda.

Cabendo-lhe as funções de produtor do referido evento, tarefa que acumulava com as de locutor e apresentador, de parceria com Maria Emília Peralta, Joaquim Anselmo realça que a popu-laridade do projecto se deveu a um conjunto de circunstâncias favoráveis, sem as quais dificilmente se conseguiria atingir a fama que alcançou.

“Desde logo, a felicidade de haver reunido um bom naipe de músicos, um director entusi-ástico e um punhado de jovens com talento, que garantiam cerca de três horas de espectáculo. E tudo só com a ‘prata da casa’. Uma verdadeira lufada de ar fresco que perpassou pela 5 de Outubro, tornando-a num pólo de atracção, não apenas da Aldeia mas do próprio Concelho. “ Afirma.

Do elenco que constituía o espectáculo, diz ainda reter as extraordinárias vozes de Maria José Serra e de José Joaquim Santos. Assim como de Pedro Azenha, que cantava áreas de ópera. “Qualquer deles reunia grandes atributos para as cantigas”, sustenta.

No que à orquestra se reporta, Joaquim Anselmo adianta que depois de seu tio ter deixado

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a sua direcção, a regência foi assumida por José Costa e, mais tarde, por José Joaquim Santos, nessa altura já graduado da Banda do Exército, o qual lhe imprimiu um novo grau de exigência artística, que muito valorizou o projecto nas suas diferentes vertentes. Em especial, no que às variedades dizia respeito.

O “enterro do chouriço”No entanto, nem só de acontecimentos que requeriam algum profissionalismo se faz o ima-

ginário deste associado da Musical 5 de Outubro, brincadeiras houve que, não exigindo aturados ensaios, não deixavam, por isso, de reclamar a quantos nelas participavam “olho atento e pé ligeiro”, porque a sua realização não era tolerada pelo regime. A popular despedida do entrudo, apelidada entre as gentes da Aldeia de “enterro do chouriço”, era um desses casos, por mor de um dos inter-venientes ir vestido de padre, situação tida, pelos dignitários do País, na altura, como uma blasfémia.

“Não obstante a proibição, a força da tradição impunha que na noite de Quarta-Feira de Cinzas se efectuasse o funeral do Carnaval”, informa.

“Para tanto, havia sempre alguém que assumia a responsabilidade pela feitura de um cai-xão em madeira - como se de uma verdadeira urna se tratasse - no interior do qual se colocava um homem a fingir de defunto”, recorda Joaquim Anselmo.

“No cortejo, que percorria o trajecto entre a Sociedade e o Largo da Seixeira - onde hoje se situa o jardim -, integrava-se sempre a D. Cacilda, uma mulher muito divertida, que geralmente re-presentava o papel de viúva e cujo pranto provocava o riso mesmo ao mais sisudo.

“Enquanto a suposta viúva derramava o seu desconsolo, o padre, a par de salpicar os espec-tadores com um pincel embebido num balde de água, cuidava ainda de proferir à porta de cada taberna um sermão - em verso - alusivo ao dono do estabelecimento. Uma prédica que, normalmente, terminava numa gargalhada geral. No final do trajecto, colocava-se no lugar do ‘morto’ um boneco de palha ao qual se lançava o fogo.”

Tratava-se de uma paródia, que embora se reportasse somente a coisas e figuras da terra, exigia, contudo, de todos os intervenientes uma atenção constante, para evitar problemas com a GNR.

“Sendo certo que não passava de um espectáculo trapalhão, não era menos certo também que, se acaso fôssemos apanhados, ver-nos-íamos metidos em assados”, salienta Joaquim Anselmo.

Família Almeida Limae Manuel Padeirobeneméritos da Sociedade

Por esse tempo, a população de Paio Pires vivia, predominantemente, da agricultura devido à circunstância de nela se situarem várias casas senhoriais cujos proprietários se dedicavam à explo-ração das extensas fazendas que lhes pertenciam, algumas delas com várias dezenas de hectares. Terras férteis, que tudo produziam e abasteciam vários mercados da capital.

Por tal motivo, a Aldeia era considerada o lugar do concelho onde os fazendeiros, porven-tura, mais prosperavam, com particular destaque para a família Almeida Lima que, procurando re-tribuir a fortuna com que a natureza resolvera brindar a excelência dos seus terrenos, não regateava contributos para a Colectividade.

“Todos os membros dessa família eram sócios da Sociedade, dispensando-lhe sempre gran-de afectividade e uma clara disposição em ajudá-la materialmente. Os donos das outras proprieda-des, é certo, também apoiavam”, acrescenta, “ mas como a que tinha maior poderio era a da Quinta da Palmeira, a ela é que as direcções da 5 de Outubro recorriam com maior frequência”, assinala Joaquim Anselmo.

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Mas da generosidade de mestres de outros ofícios que aqui se radicaram, viveu, igualmente, a agremiação. Entre eles ressalta Manuel Gonzalez Gonzalez, ou Manuel Padeiro, um homem de origem galega, que na Aldeia montou, com seu tio, um fa-brico de pão e de quem a Colectividade muitas vezes se socorreu.

“Quer ele quer o tio, mas, sobretudo ele, criou fortes raízes de amizade à terra e à Colectividade”, “valendo-lhe em inúmeros momen-tos de aperto”, realça também Joaquim Anselmo.

Concluindo este revisitar do passado, Joaquim Anselmo esclarece ainda que, apesar de saber que isso constituía um tremendo desgosto para

seu tio Américo, não seguiu as pisadas da maioria dos jovens da sua criação devido à extrema exi-gência que ele evidenciava no domínio do ensino da música.

“Tive muita pena de não lhe satisfazer esse desejo, tanto mais que se tratava de um homem que não tinha filhos e gostava muito de mim. Todavia, o seu rigor fora tão grande, nas vezes em que procurou ensinar-me o solfejo, que me levou logo a desistir. Com grande pesar de ambos.” Afiança, com um assomo de embargo a toldar-lhe a voz. Assim como quem tenta espiar a mágoa provocada pela irreversibilidade de uma decisão que, desde esse dia, o continua a perseguir.

Artur MotaRecordações do “Mascote” da “Mimosa”

Filho de um industrial que, antes da eclosão da Primeira Grande Guerra deixara Pombal para rumar até Lisboa, onde se estabeleceu com grande êxito, chegando mesmo a assumir-se como um dos maiores fornecedores do Estado, Artur Mota, 78 anos, é o único membro da família nascido em Paio Pires, por esta se haver mudado para uma quinta que adquirira na Aldeia, mal o referido conflito acabou.

Rodeado de mimos por todos os familiares, em especial a mãe e as irmãs, que logo o come-çaram a levar à Sociedade sempre que ali havia alguma festa ou algum concerto, o jovem rebento cedo se sentiu atraído pelos sons da filarmónica, atracção que fez crescer em si o desejo de aprender o solfejo, missão que, sob a orientação do engenheiro Belarmino Soares, concluiu ao cabo de poucos meses. Para satisfação dos progenitores e orgulho das irmãs. Ainda não tinha completado sete anos já estava na estante, o mesmo é dizer, na Banda, circunstância que o tornava a mascote da “Mimosa”.

“Tocava, então, flautim, por se tratar do instrumento mais leve que havia e por ser o único com que podia. Todos os outros eram demasiado pesados para mim”, refere.

“Mais tarde, ainda toquei saxofone, mas depois ingressei como voluntário na Força Aérea e tive de abandonar a actividade musical porque a vida militar me forçava a permanecer semanas inteiras na Base de Sintra, impossibilitando-me de ir aos ensaios.”

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Manuel GonzalezGonzalez

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“Presença tutelar de Belarmino Soaressalvou-me de muitas partidas”

No entanto, os anos em que permaneceu na banda da Sociedade ficaram na sua memória como um período de importantes descobertas no que à aprendizagem da vida diz respeito e cujos ensinamentos perduraram vida fora.

“Logicamente, que a minha inocência me tornava alvo das brincadeiras dos mais velhos, apesar da atenção tutelar de Belarmino Soares, o qual, não só me levava pela mão para os locais onde íamos tocar como ainda me fazia sentar a seu lado durante as actuações quer para me dar o sinal de entrada sempre que fosse a minha vez de o fazer como para impedir que os outros músicos me pre-gassem qualquer judiaria”, reconhece.

“Mesmo assim, uma ocasião em que fomos tocar à Praça da Figueira, não conseguiu evitar que uns elementos mais atrevidos me guiassem até um canto onde se encontrava uma prostituta que, combinada com eles, prontamente me deitou a mão à braguilha, começando-me a acariciar o sexo. Para gáudio dos autores da tramóia que riam a bandeiras despregadas”, conta Artur Mota.

O caso, recorda, “deixou-me estupefacto, por ignorar, em absoluto, o que tudo aquilo signi-ficava e grande surpresa de um fulano que por ali estava, o qual atirou: ‘Sim senhor. Levas uma bonita escola, não haja dúvida...’

“Enquanto isso, Belarmino Soares assomava, aflito, praguejando contra os autores da parti-da e me resgatava de tão estranha aventura, ao mesmo tempo que aproveitava para me alertar sobre os riscos de contracção de uma série de doenças que aquele tipo de mulheres cravava a um homem. A sua admoestação acabou por se revelar a primeira lição teórica que tive acerca de sexo. Nunca mais a esqueci”, salienta.

Para Artur Mota, actual sócio n.º 1 da Sociedade 5 de Outubro, Belarmino Soares é uma das figuras ligadas à Colectividade que mais o marcaram, não apenas por ter sido ele quem lhe ensinou a solfejar mas acima de tudo por, a seu ver, se tratar de um sujeito sobredotado, quer do ponto de vista do domínio de qualquer instrumento musical quer no que à engenharia se aplica.

“A sua capacidade inventiva era de tal ordem, que ainda estudante do Instituto Superior Técnico decidiu conceber a miniatura de uma máquina a vapor, cuja perfeição chegava ao ponto do protótipo trabalhar, como se de uma máquina verdadeira se tratasse. Esse engenho valeu-lhe, inclu-sive, uma condecoração do general Carmona, então presidente da República”, relembra Artur Mota.

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Belarmino Soares e seu pai António Soares, antigos músicos e grandes amigos

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“Havia homens que choravamquando fazia os solos de flautim”

Outra recordação que guarda com natural enlevo prende-se com a reacção protagonizada

por alguns homens da Aldeia quando o ouviam executar os solos de flautim. “Embora não me reconheça um grande músico, sempre cuidei de cumprir o meu papel com

o brio que o prestígio da Colectividade reclamava. Por essa razão, várias vezes me cheguei e enter-necer quando via algumas daquelas pessoas a lacrimejar sempre que chegava a minha vez de solar, nomeadamente em a Viagem por Espanha ou em A Corte de Granada, duas das várias peças que integravam o nosso reportório. E não era porque me julgassem um virtuoso. Era pelo facto de saber que se tratava de gente analfabeta. O que me sensibilizava ainda mais”, adianta.

De acordo ainda com Artur Mota, “convirá esclarecer que todos estes episódios se reportam à década de trinta, uma época marcada pela rudeza do dia-a-dia, pela falta de instrução, pela falta de cuidados de saúde e por um sem-número de privações de toda a ordem. Esse conjunto de dificul-dades reflectia-se, naturalmente, na actividade da Colectividade, razão pela qual, quando passei para à estante, a minha farda teve de ser adquirida por meu pai “.

Major da Força Aérea na situação de reserva, este antigo músico da “Mimosa” manifesta uma enorme gratidão pela aprendizagem que a Colectividade da sua terra lhe proporcionou quando era criança. O apreço e o carinho de que, enquanto mascote da Banda, foi objecto por parte dos res-tantes elementos da filarmónica marcaram-no para todo o sempre.

“A experiência que essas vivências, decorrentes do convívio mantido com os filarmónicos e a consideração que nutriam por mim, foi-me muito útil para o resto da vida”, sustenta.

Sem deixar de assinalar que o espÍrito de protecção de que era alvo por parte dos mais ve-lhos ultrapassava, nalguns casos, o extremo do aceitável, Artur Mota refere mesmo que “em certos aspectos, assumia contornos claramente despropositados. Só assim se explica que uma ocasião, no Seixal, vários elementos da Banda quisessem pedir satisfações ao próprio Belarmino Soares, por mor deste me ter admoestado porque o mestre não me deu sinal para entrar no devido tempo e o fiz ligei-ramente fora do compasso.”

Para além destas recordações, Artur Mota evoca ainda a disposição de Manuel Padeiro e de seu sobrinho, para ajudarem a agremiação. “Um homem que nunca se negava a apoiar material-mente a Sociedade, sempre que esta lhe batia à porta. Uma pessoa que para a Sociedade dava tudo. Um benemérito da 5 de Outubro, na verdadeira acepção da palavra”. Defende.

A par destas figuras, este ex-piloto aviador sempre que tal lhe era permitido, apontava o avião rumo à margem sul para aqui efectuar os seus treinos de voo e dessa forma - ainda que do ar - matar um pouco as saudades da sua terra natal. Destaca também o apego que a família Guimarães, vulgo família Cabecinha, tinha à agremiação. “Uma coisa inédita na Aldeia. Tanto o pai como os seis filhos eram músicos da ‘Mimosa’”, realça.

“Todos os anos volto à Aldeiapara festejar o aniversário da Sociedade”

Afastado da Aldeia há várias décadas, por força da sua vida profissional e de ter fixado resi-dência em Lisboa, Artur Mota faz, no entanto, questão de salientar que todos os anos, em 5 de Outubro, regressa à colectividade para confraternizar com os meus conterrâneos e assistir às ce-rimónias do aniversário da fundação da Colectividade.

“É, se se quiser, um regresso às origens. Um ritual, que mantenho desde que saí de Paio Pires e que tenciono preservar enquanto viver. Um gesto que visa reafirmar a minha gratidão por tudo quanto ela me ensinou. Afinal de contas, foi nela que aprendi as primeiras lições acerca da vida e a importância de que para esta se revestem os valores da amizade e da fraterna camaradagem”, finaliza.

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José Ricart GuimarãesMemórias do neto de um ferreiroque deu seis músicos à Sociedade

Filho de um exímio músico da “Mimosa” e neto de um dos quarenta paiopirenses que esti-veram na sua fundação, José Ricart Guimarães, 75 anos, é uma das testemunhas presenciais do modo de vida da Aldeia e da sua popular Sociedade Filarmónica.

O seu testemunho é tanto mais fidedigno, quanto é certo que o mesmo releva de um profun-do conhecimento do modus vivendi das gentes da terra desde o primeiro quartel do último século, por via da oficina de seu avô paterno, onde este exercia o ofício de ferreiro, se localizar em pleno coração de Paio Pires.

A oficina, na qual, de resto, passava longas horas, observando a arte com que seu avô e também seu pai moldavam o ferro, situava-se num pequeno largo formado pela confluência da Rua Fernando de Sousa e o adro da Igreja, a escassos metros da primeira sede da Colectividade e da barbearia de Jerónimo Costa.

A praça da jorna realizava-sejunto à oficina de seu avô

Nesse largo se situava ainda a taberna da Tia Engrácia, muito frequentada devido à reali-zação diária da tradicional “praça das jornas”. Era nesse estabelecimento que os feitores das quintas e os trabalhadores rurais selavam, com um “copo de três”, as condições entretanto acertadas para a realização das diferentes tarefas agrícolas que, a cada momento, os proprietários das aludidas quin-tas precisavam que fossem executadas.

“Todo aquele que bebesse o copo e depois não honrasse o acordo não arranjava trabalho enquanto não cumprisse o contrato que tinha aceite. Era assim. Ninguém podia faltar à palavra. E quem desse o dito por não dito ficava ao alto até honrar a palavra dada”, esclarece.

Mercê dessas estadas e da vivência que tal cenário lhe proporcionou, José Ricart Guimarães retém desses tempos de meninice a convivialidade que a oficina propiciava a quantos se ocupavam nos trabalhos do campo. Nesse tempo, a maior parte da população da Aldeia.

“Era a meu avô que todos recorriam para a feitura das ferramentas que utilizavam no ama-nho das terras. Mas, as que mais me fascinavam eram as enxadas, em especial devido ao tamanho das lâminas”, revela.

“Ora, como se tratava de uma ferramenta cuja lâmina poderia ter as dimensões que cada um entendesse, o seu tamanho não era uniforme. Isso resultava da convicção generalizada de que quanto mais extensa aquela fosse, mais fácil seria ao respectivo dono arranjar trabalho, porque mais terra cavaria em cada golpe. Um trabalho que requeria, de quem tinha a missão de moldar o ferro, uma grande mestria”, adianta.

“Mas, nem só a essa arte se entregava meu avô, a música fôra outra das facetas onde expressou o seu talento”, acrescenta José Ricart Guimarães.

“E o seu gosto por essa manifestação artística adquiriu uma preponderância tal, que o levou a instigar os filhos a aprender o solfejo para tocarem na banda da Sociedade que ele ajudara a fun-dar.”

Por esse motivo, José Pereira Guimarães - assim se chamava este fundador da 5 de Outubro - se constituiria naquele que mais músicos deu à Colectividade, porque, para além dele, também os seus seis filhos tocavam na Banda. “Não havia nenhuma família em Paio Pires que tivesse dado tan-tos membros à ‘Mimosa’ como a minha deu”, realça José Ricart Guimarães.

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“O teatro deu uma grande almaà Sociedade e à Aldeia”

Assim como quem se dispõe a revisitar os tempos da sua meninice, José Ricart Guimarães afirma ainda recordar-se da existência de dois grupos de baile formados por elementos da filarmóni-ca. Eram os Fixes e os Leais. E a sua função era a de animar as matinées que a Sociedade fazia para arranjar dinheiro.

“Havia até uma coisa curiosa, os elementos de cada um dos aludidos grupos usavam um género de pulseira com a designação do conjunto a que pertenciam. E quando, por qualquer motivo, se esqueciam de a usar eram multados, revertendo o valor da mesma para a Colectividade”, re-vela José Ricart Guimarães.

Embora nunca haja sentido grande vocação para enveredar pelos trilhos da música, “até para evitar que, quando deixasse de tocar, viesse a ser proibido de entrar na Sociedade”, o neto do ferreiro músico não deixava, por isso, de acompanhar, a par e passo, a vida da agremiação, revelan-do-se um espectador atento a tudo quanto ela decidisse meter ombros.

Assim, a par de assistir aos concertos que a “Mimosa” dava, não perdia ainda uma única peça das muitas que o grupo cénico representou, quer na Aldeia quer fora dela. “Tratava-se de um conjunto de rapaziada que tinha muito jeito para aquilo e revelava igualmente um grande à-vontade para enfrentar o público”, considera.

“Só gente como José Silvério conseguia, em 1942, entrar no palco em ceroulas. Tal como se, naquele momento, se tivesse levantado da cama. E com tamanha descontracção, que punha setecen-tas ou oitocentas pessoas - tantas quantas houvesse na sala - a aplaudir. Era preciso ter coragem para fazer um papel daqueles! E fazia-o com a mesma naturalidade, quer o espectáculo fosse em Paio Pires ou em qualquer outra terra”, sublinha.

“Mas outros havia também com muito vocação para o teatro. Entre os quais, Alberto Caixa, José Costa - que era ainda um grande ensaiador - e meu primo Caetano Loureiro. Gente que através do teatro deu uma grande alma à Colectividade e à Aldeia.”

Filho de um músicoque mesmo dormitandonão falhava uma nota

No que se reporta à colaboração que seu pai (José Caetano Guimarães) deu à Sociedade, enquanto músico da “Mimosa”, José Guimarães diz ter a ideia de que se tratava de um bom execu-tante, apesar de ser um homem que se deixara viciar por bebidas brancas num período em que fi-zera parte da charanga de um cruzeiro, vício que o roubou à vida aos 41 anos.

“No entanto, embora os efeitos do álcool o estivessem minando interiormente, não lhe afec-tavam, todavia, o apurado sentido musical, uma vez que, segundo os seus colegas da Banda, não obstante estar quase sempre a dormitar, nunca deixava de entrar quer no compasso quer no tom, em todos os momentos em que os saxofones se tinham que fazer ouvir”, relembra José Ricart Guimarães.

“Era um tempo em que sempre que a Banda saía, o povo da Aldeia ia todo a atrás. Especialmente por alturas de apresentar as boas festas aos associados. Nessas ocasiões o périplo da ‘Mimosa’ acabava na Quinta da Palmeira, onde invariavelmente a aguardava um banquete oferecido pelos seus proprietários. O mesmo acontecia pelo 1º de Dezembro”, conta.

Para além disso, mantém igualmente no seu imaginário a grata recordação que as cegadas feitas por José Cartaxo e António Lourenço deixaram nos moços da sua criação. “Dois homens que, com enorme piada, marcavam o Carnaval na Aldeia. Um, pelo jeito com que imitava as mulheres. O outro, pela enorme capacidade de improvisar em verso. Formavam uma parelha danada!” Diz.

Episódios de uma época em que não havia nenhum café em Paio Pires. Os homens entre-

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tinham-se, à conversa, nas vendas ou passavam o tempo na 5 de Outubro, como eram os casos das mulheres e daqueles que não gostavam do ambiente de taberna.

Contudo, nem só de folias e diversões se alimenta a memória de José Ricart Guimarães que, com a morte prematura de seu pai, viu a mãe passar por grandes dificuldades para sustentar os fi-lhos. “Eu tinha treze anos quando meu pai faleceu. E uma ocasião, minha mãe esteve muito doente e não tínhamos nada que comer em casa. Quem nos valeu foram as senhoras da Palmeira, respecti-vamente, D. Maria Georgina (Maçanica) e Maria Benedita (Belita) que, ao tomarem conhe-cimento da situação, nos enviaram por Gastão Guimarães - um empregado da referida Quinta, um cabaz recheado com um avio completo. Uma altura em que, na Aldeia, a palavra solidariedade adquiria uma expressão inequívoca.” Remata José Ricart Guimarães.

Um testemunho que abarcando domínios outros, que não apenas os que à Colectividade se reportam, acaba, afinal, por confirmar até que ponto a vida da agremiação se confundia com o quo-tidiano da Aldeia, ao mesmo tempo que revela importantes subsídios para a história da comunidade paiopirense. Um relato simples, que à semelhança dos depoimentos dos seus consócios, reflecte o fervor que a população local colocava na dignificação do nome de Paio Pires e na sua emblemática Sociedade Filarmónica.

Um sentimento, igualmente, expresso por João Simões (vulgo Simão), Hermógenes Oliveira, Francisco Quelhas e António Abreu, quando referem que “a vida da Colectividade espe-lhava, no fundo, o pulsar da própria terra e de quantos nela viviam. Só assim se explica que te-nhamos levado apenas quatro anos a liquidar a compra da Sede.

E sublinham “que para isso muito contribuiu a ajuda dada por Manuel Galego, também conhecido por Manuel Padeiro - à imagem do que fizera quando da construção do coreto - e a precio-sa colaboração dos fazendeiros, com a constante oferta de galinhas para a realização dos sorteios que semanalmente efectuávamos, ao preço de cinco tostões cada rifa.”

Esse espírito comunitário afirmava-se, ainda, de acordo com estes associados da 5 de Outubro, no modo como durante muitos anos as gentes de Paio Pires celebravam a restauração da independência de Portugal.

“Era da tradição a Sociedade comemorar, em 30 de Novembro, a noite dos conjurados, rea-lizando um jantar. Esse jantar, popularmente baptizado de ‘noite do bacalhau’ , por via de cada um trazer a sua posta para aqui ser cozida com batatas e couves, prolongava-se até ao raiar do dia 1º de Dezembro. Tudo bem regado como, aliás, convinha em qualquer ocasião festiva.

“Para acabar a festa, os elementos da ‘Mimosa’ envergavam o uniforme e iam saudar os associados tocando o hino da restauração. A volta só se concluía depois de percorridas todas as fazen-das. Mas, a meio do percurso, muitos havia já que não estavam em condições de tocar instrumento algum, por via da noitada e dos beberetes com que uma das casas agrícolas os obsequiava.”

Uma efeméride que, tal como muitas outras, somente permanece na memória dos poucos habitantes que nela participaram. Um modo de vida que o galope dos anos quase esbateu comple-tamente, além de ter ainda esmorecido o entusiasmo com que os habitantes de Paio Pires se entre-gavam à Sociedade da Aldeia.

Memórias, vivências e testemunhos de homens e mulheres que, com todo o empenho, deram o seu saber às colectividades locais. Relatos de histórias e episódios, de generosidades várias e de um profundo sentimento associativo aqui se reúnem com o confessado intuito de facultar novos subsídios susceptíveis de enriquecer o conhecimento que temos sobre da História deste concelho.

Um importante acervo memorial que, visando salvaguardar o rico património humano das gentes do Seixal, pretende contribuir ainda para divulgar a capacidade, a dedicação e o entusiasmo com que os seus habitantes souberam lavrar relevantes páginas do movimento associativo em toda a margem sul do Tejo.

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Breves Notas Biográficas

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Sociedade FilarmónicaDemocrática Timbre Seixalense

*Manuel de Oliveira Rebelo - Natural do Seixal.Figura destacada da Colectividade, por via da intensa actividade cultural que nela desenvolveu, é um dos sócios da agremiação que mais prestígio desfruta entre os habitantes desta antiga vila piscatória.Antigo filarmónico, fundador da Biblioteca, animador cultural e dirigente da sua Sociedade em diver-sos mandatos, foi ainda vereador da Câmara Municipal e representante dos trabalhadores da Fábrica Mundet, no período em que a referida empresa esteve intervencionada.

*Emílio de Oliveira Rebelo - Natural do SeixalIrmão de Manuel de Oliveira Rebelo. Personalidade que, tal como este, goza de grande respeito por parte dos restantes consócios, devido ao empenho que sempre colocou na organização de eventos de vária ordem ocorridos na Colectividade, entre elas, concertos, debates e exposições.Ex-filarmónico, membro da Comissão da Biblioteca, ocupou várias vezes cargos directivos na Colectividade. Foi ainda um dos fundadores da denominada Marcha das Canas e da orquestra Os Aranhas, além de terem integrado igualmente a direcção local da delegação do Sindicato dos Corticeiros.

Sociedade Filarmónica União Seixalense

*Adelino Cunha - Natural do SeixalEx-dirigente da Colectividade, foi ainda membro dos vários grupos teatrais que nela existiram. Ensaiador e autor de um vasto conjunto de peças infantis é também um dos organizadores da inicia-tiva que marcou a reconciliação das relações com a sua congénere Timbre Seixalense, ocorrida em 1 de Maio de 1975.

*Viriato Pescadinha - Natural do SeixalIntegrou a antiga comissão de fundos, “Os Anjinhos Enrascados”, entidade a quem cumpria a tare-fa de organizar as festas e arraiais populares promovidos pela Sociedade. É ex-dirigente da Colectividade e fundador da secção desportiva da Casa dos Pescadores, hoje Associação Náutica do Seixal.

*Manuel da Costa Rebelo, O Parrana - Nasceu no Seixal, localidade onde sempre viveu. Fez parte, tal como sua esposa, da comissão de fundos acima referida e ocupou vários cargos dirigentes na Colectividade.Figura carismática da União Seixalense, é actualmente o decano dos músicos da Banda.

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Sociedade Filarmónica União Arrentelense

*Virgínia da Silva Ferreira - Natural de Arrentela.Neta de António da Costa e Silva, um dos fundadores da Colectividade, desde criança que se encontra ligada à Sociedade, instituição pela qual nutre um particular carinho e à qual ofereceu muito do seu esforço.Tomou parte num sem-número de comissões de fundos e de melhoramentos da Colectividade e testemu-nhou a intensa actividade musical e teatral nela desenvolvida ao longo de várias décadas.O afecto que dedica à agremiação impeliu-a a confeccionar, numa só noite, a primeira farda de sua neta quando esta entrou para a Banda.

* Caetano Veríssimo.Nasceu em Paio Pires, mas por mor de ter contraído casamento com uma arrentelense fixou residência em Arrentela, começando a frequentar a colectividade local, onde concluiu a aprendizagem do solfejo, após o que passou a pertencer à Banda.Homem muito respeitado entre os seus pares, este ex-trabalhador da extinta Fábrica Mundet desempe-nhou ainda os mais diversos cargos directivos na União Arrentelense.

* João Costa - Natural de Arrentela.Antigo aluno das Oficinas de S. José, estabelecimento de ensino onde aprendeu o ofício de tipógrafo, este popular arrentelense, também conhecido por João do Padre, é um dos habitantes do núcleo histórico da localidade que desfruta de grande popularidade entre os seus conterrâneos.Militante de grandes causas sociais, a ele se deve a instalação da primeira tipografia em Arrentela, numa altura em que a existência deste tipo de oficinas se limitava, praticamente, a Lisboa e às grandes cidades.O interesse pelas coisas da cultura torna-o numa testemunha atenta à evolução da localidade e à vida da respectiva Colectividade.

* Manuel Carlos Câmara, Manuel da Adiça - Natural de Arrentela.Figura típica do velho núcleo habitacional, foi músico da Banda e dirigente da Colectividade tantos anos que até lhe perdeu o conto.Pintor autodidacta, é autor do emblema do Atlético Clube de Portugal e de um mural situado junto à igreja paroquial da localidade.

Sociedade FilarmónicaOperária Amorense

* Amélio Baptista Cunha - Natural de Amora.Possuidor de uma memória prodigiosa, várias vezes tem sido solicitado a relatar aspectos que se prendem com a evolução da terra e da sua popular Sociedade Filarmónica, cuja história conhece como ninguém.Antigo músico da Banda, fundador da “Estudantina Amorense”, primeiro agrupamento de cordas exis-tente no Concelho e, membro dos corpos gerentes da Colectividade em vários mandatos, este ancião é uma memória viva da própria localidade, devido à lucidez que evidencia.Personalidade muito conceituada entre as gentes de Amora, devido ao entusiasmo que sempre colocou na promoção da cultura e dos valores humanistas, foi ainda agraciado pela Câmara Municipal do Seixal com a Medalha de Mérito Cultural.

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* José Carlos Cunha - Nasceu em Amora.Dedicado filarmónico e membro de várias orquestras fundadas na Sociedade, fez ainda parte da Junta de Freguesia no tempo em que os titulares destas instituições eram nomeados e desempenhou, ao longo da sua vida, diversos cargos nos corpos gerentes da agremiação. A sua devoção à Colectividade motivou a Câmara Municipal do Seixal a distingui-lo com a atribuição da Medalha de Mérito Cultural, alguns anos antes da conclusão deste trabalho.Primo de Amélio Baptista Cunha, viria a falecer alguns meses depois de haver enriquecido com o seu testemunho este repositório de memórias e vivências.

* João Rodrigues dos Santos, João da Carapinha - Natural de Amora.Poeta popular, fadista amador e autor de cegadas, assumiu ainda a autoria de diversos rábulas tea-trais, actividades que desenvolveu paralelamente com a de actor nos vários grupos de teatro funda-dos na Colectividade.Antigo operário corticeiro, integrou várias vezes os órgãos directivos da SFOA.

* Joaquim Pinto Soares, Joaquim Jota - Nasceu em Amora.Filarmónico, actor amador, poeta popular e dirigente da Colectividade um sem numero de vezes, foi trabalhador da velha Cooperativa de Consumo Amorense.Considerado uma das figuras mais populares de Amora, é também fundador da Associação Unitária de Reformados e Pensionistas desta localidade.É detentor da Medalha de Mérito Cultural atribuída pela Câmara Municipal do Seixal.

* Arsénio Almeida Baptista - Natural de AmoraFigura preponderante na intensa actividade teatral desenvolvida ao longo de várias décadas na Operária Amorense, tal como seu irmão Guilherme Almeida Baptista, foi igualmente autor de inúme-ros trechos teatrais.Autor de cegadas, poeta popular e palhaço, desempenhou ao longo da vida, praticamente todos os cargos directivos na Colectividade.Reconhecido pela Câmara Municipal com a Medalha de Mérito Cultural, o talento que verteu pelos vários palcos que foi chamado a pisar e a versatilidade de que dá mostras foram sempre colocados ao serviço da promoção das gentes da sua terra e da sua mais antiga colectividade.

Sociedade Musical 5 de Outubro

* Jerónimo Costa - Natural de Paio Pires.Figura distinta de Paio Pires, este profissional de barbearia goza de grande reputação entre as gentes da Aldeia, quer pelas suas qualidades humanistas, quer pela dedicação que votava à Sociedade e à sua banda da qual, de resto, foi músico.Poeta e autor de vários textos para o grupo cénico, desempenhou ainda as funções de corresponden-te de alguns jornais diários, além de assumir as funções de recepcionista e despachante da corres-pondência dos habitantes da terra.Grande entusiasta do desenvolvimento da sua terra, a ele se deve o asfaltamento da única rua exis-tente ao tempo em Paio Pires e a construção da respectiva rede de saneamento. Fez parte da Junta de Freguesia, por nomeação do então presidente da Câmara, ocupando as funções de secretário.Um associado que figura na galeria de honra da referida colectividade.

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* Américo Alves de Almeida - Natural de Paio Pires.Tal como Jerónimo Costa, de quem, aliás, era compadre, Américo Alves de Almeida é outro dos notá-veis da 5 de Outubro, por mor da sua paixão pela música e pela valorização da Aldeia.Tido como um indefectível entusiasta da “Mimosa”, durante vários anos chamou a si a responsabili-dade pela elaboração das pautas das peças musicais que a Banda executava. Tudo isto, sem que tivesse recebido qualquer formação musical para além da aprendizagem do solfejo. Mas a sua actividade não se ficava por aqui, dedicava-se também a escrever algumas pequenas peças musicais para a orquestra que acompanhava o grupo de teatro. Foi ainda filarmónico e regen-te da referida orquestra.

* José Eugénio Pinheiro Costa - Natural de Paio Pires.Se a velha expressão popular “pau p’ra toda a obra” pudesse designar-se de outra forma, em Paio Pires ela denominar-se-ia José Costa, tamanho foi o espírito de entrega que este antigo dirigente da “Sociedade da Aldeia” evidenciou ao longo da sua vida. Não havia nada que não fizesse em prol da sua colectividade.Foi um dos mentores da aquisição da actual sede, mesmo que para tal tivesse de hipotecar as suas próprias casas. Ocupou vários cargos directivos, promoveu todo o tipo de espectáculos, ensaiou, dirigiu e escreveu várias peças para o grupo de teatro e ainda assumiu a responsabilidade pela organização da marcha popular que em 1946 participou num concurso promovido pela Câmara Municipal.Ao mesmo tempo que se desdobrava por todas estas tarefas, ainda tocava na Banda. Integrou igual-mente a orquestra de baile Os Limpinhos, assumindo também a regência da orquestra do grupo cénico quando Américo Alves de Almeida deixou a sua direcção.Uma figura ímpar, no dizer de quantos com ele conviveram.

* Joaquim Ramos de AlmeidaNasceu em Paio Pires. Foi filarmónico e antigo dirigente da Colectividade. Integrou ainda a orques-tra Os Maçacotes.

*Albano Gomes França - Natural de Santiago de Cacém.Está radicado na Aldeia de Paio Pires desde criança. Ex-dirigente da Colectividade em diversos man-datos, ao tempo da aquisição da Sede, integrava o elenco directivo. Foi filarmónico e membro da orquestra Os Maçacotes.Homem muito respeitado entre os seus pares, o falecimento prematuro de uma filha fê-lo retirar-se da actividade associativa.

* Isilda Costa Filipe - Natural de Paio Pires.Filha de um dos fundadores da Sociedade e irmã de um filarmónico, actividade a que seu esposo também se dedicava.Foi em sua casa que foram escritos os primeiros estatutos da Colectividade, da qual é uma das mais antigas associadas.Ainda hoje vive paredes meias com a agremiação, situação que lhe provoca uma particular ternura por tudo quanto a ela diga respeito. Fez parte da marcha popular e pertenceu a um sem-número de comissões de fundos.Sua filha integrou o Grupo de Teatro.

* Joaquim Anselmo - Natural de Paio Pires.É um dos poucos jovens da sua geração que não aprendeu música. Mas isso não obstou a que desde muito novo se afirmasse um dedicado associado, razão pela qual desempenhou várias vezes cargos directivos.Para além disso, e devido à postura que evidenciava em palco e ao à-vontade com que se exprimia, levaram José Costa a atribuir-lhe o papel de apresentador dos programas de variedades que a Colectividade realizava, num dos quais apresentou Simone de Oliveira. Coube-lhe ainda a tarefa de fazer a locução de todos os espectáculos levados a cabo pelas Vozes de Paio Pires.

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Alguns dos seus companheiros de então afirmam convictamente que “quem o visse diante do micro-fone não se atreveria a dizer que se tratava de um amador. Possuía uma grande vocação para aqui-lo.”* Artur Mota - Natural de Lisboa.Embora não haja nascido em Paio Pires, para aqui veio com apenas dois anos.Aos seis já integrava a Banda, tocando flautim. Mas a sua paixão pelos aviões, cedo o levou a ingres-sar como voluntário na Força Aérea, onde atingiu a patente de major.Actual sócio n.º 1 da Musical 5 de Outubro, a circunstância de viver em Lisboa priva-o do convívio diário com os demais associados. No entanto, todos os anos, em 5 de Outubro, aqui regressa para rever os amigos de infância e comemorar mais um aniversário da “Mimosa”, nome pelo qual é co-nhecida a referida sociedade.

* José Ricart Guimarães - Natural de Paio Pires.Neto de um dos “quarenta magníficos”, título atribuído pelos habitantes da Aldeia aos fundadores da Colectividade, poder-se-á dizer que este associado é um dos membros da família que mais músi-cos deu à Sociedade.Conhecedor da exigência que a paixão pela música coloca a quem a ela se entrega, nunca se sentiu tentado a aprender o solfejo, evitando desse modo que um dia, quando deixasse de tocar, viesse a ser impedido de entrar na Sede, como era usual acontecer nessa época.Ainda assim, sempre se interessou pela vida da Colectividade, interesse que afirma ainda hoje man-ter.

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