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J. Cornwell, Hitler’s Pope. The Secret History of Pius...

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1132 Análise Social, vol. XXXVI (Inverno), 2001 Para terminar esta recensão críti- ca, e para voltarmos de alguma for- ma ao princípio, importa dizer que é por ter uma concepção arcaica do nómada que Urbano Rodrigues o uti- liza como elemento instrumental da sua filosofia da história. Na sua pers- pectiva, o choque entre nómadas e sedentários destruiu civilizações, mas das ruínas brotaram as sementes de novas civilizações. O nómada de- sempenha, portanto, um papel de for- ça apocalíptica na sua parábola de reformulação dos impérios, uma for- ça apocalíptica que continuará a existir no mundo centro-asiático ac- tual, constituindo uma ameaça para as pretensões hegemónicas da cultura norte-americana. «A história esque- cida da Ásia central irradia uma mensagem muito actual: repetidas vezes ali o impossível tornou-se pos- sível. É disso que estamos a precisar na era da sociedade da informação. O impossível deve fazer-se possível, re-humanizando a vida» (pp. 427- -428). Trata-se de uma tentação persistente, essa de relacionar as ten- dências agressivas nómadas com apo- calipses. Ainda não há muitos anos Duvignaud pensou a sociedade mo- derna através do nómada destrui- dor 15 . Mas a tradição apocalíptica vem muito mais de trás. No Antigo Testamento, nas terras de Gog e Magog as hordas cruéis e impiedosas dos archeiros montados aguardariam a ordem dos céus, o momento des- tinado, e desceriam sobre as terras como uma tempestade, trazendo a morte e a destruição aos últimos dias do mundo: «Deixarás a tua residência no extremo norte, tu e os povos nume- rosos que estão contigo, todos monta- dos a cavalo [...] Será no fim dos dias que Eu te conduzirei contra o meu povo, para que as nações me conhe- çam, quando tiver revelado por teu in- termédio a minha santidade a seus olhos, ó Gog 16 .» E é, sem dúvida, no terreno da profecia — e não tanto no da historiografia — que o nómada de Miguel Urbano Rodrigues adquire o seu verdadeiro sentido e valor. JOÃO PEDRO MARQUES 15 Jean Duvignaud, «Esquisse pour le nomade», in Nomades et vagabonds, Paris, Union Générale d’Éditions, 1975, pp. 13-40. J. Cornwell, Hitler’s Pope. The Secret History of Pius XII, Londres, Viking, 1999 1 , XII + 430 páginas. O livro recente de Cornwell a respeito de Pio XII, Hitler’s Pope, mereceu destaque em parte significa- tiva da imprensa diária portuguesa. Foram publicadas extensas e elogio- 16 Ezeq., 38, 15-16. 1 Entretanto, foi publicada tradução por- tuguesa da obra sob o título O Papa de Hitler…, Terramar, 2000. No entanto, e uma vez que fazemos uma recensão muito crítica da obra, entendemos ser preferível manter as nossas traduções a partir da edição original.
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Para terminar esta recensão críti-ca, e para voltarmos de alguma for-ma ao princípio, importa dizer que épor ter uma concepção arcaica donómada que Urbano Rodrigues o uti-liza como elemento instrumental dasua filosofia da história. Na sua pers-pectiva, o choque entre nómadas esedentários destruiu civilizações,mas das ruínas brotaram as sementesde novas civilizações. O nómada de-sempenha, portanto, um papel de for-ça apocalíptica na sua parábola dereformulação dos impérios, uma for-ça apocalíptica que continuará aexistir no mundo centro-asiático ac-tual, constituindo uma ameaça paraas pretensões hegemónicas da culturanorte-americana. «A história esque-cida da Ásia central irradia umamensagem muito actual: repetidasvezes ali o impossível tornou-se pos-sível. É disso que estamos a precisarna era da sociedade da informação.O impossível deve fazer-se possível,re-humanizando a vida» (pp. 427--428). Trata-se de uma tentaçãopersistente, essa de relacionar as ten-dências agressivas nómadas com apo-calipses. Ainda não há muitos anosDuvignaud pensou a sociedade mo-derna através do nómada destrui-dor15. Mas a tradição apocalípticavem muito mais de trás. No AntigoTestamento, nas terras de Gog eMagog as hordas cruéis e impiedosasdos archeiros montados aguardariam

a ordem dos céus, o momento des-tinado, e desceriam sobre as terrascomo uma tempestade, trazendo amorte e a destruição aos últimos diasdo mundo: «Deixarás a tua residênciano extremo norte, tu e os povos nume-rosos que estão contigo, todos monta-dos a cavalo [...] Será no fim dos diasque Eu te conduzirei contra o meupovo, para que as nações me conhe-çam, quando tiver revelado por teu in-termédio a minha santidade a seusolhos, ó Gog16.» E é, sem dúvida, noterreno da profecia — e não tanto no dahistoriografia — que o nómada deMiguel Urbano Rodrigues adquire oseu verdadeiro sentido e valor.

JOÃO PEDRO MARQUES

15 Jean Duvignaud, «Esquisse pour lenomade», in Nomades et vagabonds, Paris,Union Générale d’Éditions, 1975, pp. 13-40.

J. Cornwell, Hitler’s Pope. TheSecret History of Pius XII, Londres,Viking, 19991, XII + 430 páginas.

O livro recente de Cornwell arespeito de Pio XII, Hitler’s Pope,mereceu destaque em parte significa-tiva da imprensa diária portuguesa.Foram publicadas extensas e elogio-

16 Ezeq., 38, 15-16.1 Entretanto, foi publicada tradução por-

tuguesa da obra sob o título O Papa deHitler…, Terramar, 2000. No entanto, e umavez que fazemos uma recensão muito críticada obra, entendemos ser preferível manter asnossas traduções a partir da edição original.

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sas paráfrases da obra do irmão deJohn Le Carré da autoria de JoãoCarlos Silva no Público de 24 deOutubro de 1999 (suplemento Públi-ca) e de António Rego Chaves noDiário de Notícias de 20 de Novem-bro de 1999 (suplemento DNA.) In-felizmente, apenas o primeiro aponta-mento a respeito da obra, no Públicode 9 de Setembro deste ano, fez umesboço de leitura crítica da obra.Ora, o livro de Cornwell bem neces-sita de uma leitura crítica.

Desde logo, porque, ao contráriodo que afirmam os comentárioselogiosos, o livro não assenta numapesquisa exaustiva da importante sé-rie de trabalhos de outros historiado-res sobre a questão da política exter-na vaticana durante a segunda guerramundial, e menos ainda num traba-lho profundo e original de recolha eanálise de fontes2. Se o autor tivesse,pelo menos, tido em devida conside-ração a bibliografia que cita, issobastaria para ter evitado muitos dos

erros factuais graves ou das estranhasomissões de que a obra padece. Mas,para além disso, Cornwell ignoraainda, total ou parcialmente, autoresimportantes e com obras recentes arespeito da política externa papal,como sejam Andrea Riccardi, RobertGraham (menciona apenas um livroe um artigo do autor que mais exaus-tivamente investigou o Vaticano du-rante a segunda guerra mundial) eAnnie Lecroix-Riz, a par de umasérie de outros trabalhos em línguafrancesa. Esta última autora publicouem 1993 uma obra dedicada a de-monstrar que o Vaticano seguiu sis-tematicamente uma política pró-ale-mã durante a primeira metade doséculo XX e seria, portanto, um dospontos de partida evidentes paraquem procurasse abordar a problemá-tica da posição de Pio XII durante asegunda guerra mundial. Por ignorân-cia ou por vontade de reclamar para asua obra uma novidade que ela efec-tivamente não tem, Cornwell nãomenciona sequer o trabalho desta his-toriadora francesa3.

A obra Hitler’s Pope é apresenta-da pela editora e pelos seus comenta-dores portugueses com o selo de

2 O seu trabalho de fontes limita-se pra-ticamente a uma análise dos documentos pro-duzidos pelo futuro Pio XII quando eranúncio na Alemanha, entre 1917 e 1929, assimcomo de elementos memorialísticos vários arespeito do período inicial da sua vida. Am-bos bem conhecidos. A única documentaçãonova que nos parece incluir é uma carta dorepresentante britânico no Vaticano durante asegunda guerra mundial que, ao contrário doque Cornwell afirma, não nos parece vir aalterar substancialmente a ideia por ele dadana época a respeito da posição vaticana faceao III Reich.

N. B.— Todas as referências a páginasentre parênteses no corpo do texto remetempara o texto de Cornwell na edição original.

3 Robert Graham publicou uma quantida-de de artigos a respeito do Vaticano na se-gunda guerra mundial na Civiltà Cattolica.E a sua obra de 1959, Vatican Diplomacy,Princeton University Press, é uma análise dereferência a respeito da evolução a longo pra-zo da diplomacia vaticana e é essencial paraperceber a estratégia esboçada por Leão XIIIe consolidada a partir de 1914 de ralliement,isto é, da procura de um relacionamento ami-gável com todo o tipo de regimes.

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isenção resultante de o seu autor sercatólico. Ele teria enfrentado a suadevoção pessoal para com a Igreja emnome da verdade. A sua intenção ini-cial seria mesmo, segundo Cornwellafirma, a de limpar o nome de PioXII, mas conclusões da sua investiga-ção produziram nele a moral shockperante as culpas deste papa que o le-vou a passar da ilibação à condena-ção (p. VIII).

Na realidade, o que esta obra deCornwell, com todas as suas falhas,mostra, mais uma vez, é a pertinên-cia do que afirmam historiadorescrentes e não crentes na colectâneaL’Historien et la foi, publicada pelaPUF por iniciativa de Jean Delu-meau: o que importa para a qualida-de da história, seja ela a do religiosoou de outro campo qualquer, não é oponto de partida em termos de con-vicções do historiador, mas sim aforma como ele lida com elas. Ora,claramente, Cornwell mostrou-se in-

capaz do rigor que é exigível a todosos que reclamem para os seus textosa qualificação de textos históricos. Jáque o autor mostra ter uma visão apreto e branco da história da suaIgreja, com papas bons, progressis-tas, nos quais inclui João XXIII ePaulo VI, e papas maus, reaccionários,como Pio X, Pio XII e João Paulo II.Este último é considerado uma reen-carnação de Pio XII, e portanto todoo livro — de forma explícita aliás, naabertura e no fecho da obra — visatambém com a sua condenação dapolítica vaticana durante a segundaguerra mundial o actual papa, que es-taria a conduzir a Igreja por um ca-minho que a história provaria quetinha sido desastroso (pp. 1-8 e 360--371.)

O simplismo e moralismo da vi-são de Cornwell não são essencial-mente diferentes, em termos da suafalta de rigor, de capacidade deintegração da complexidade do reale, portanto, de insuficiência comobase de um trabalho de investigaçãohistórica, da leitura exactamente in-versa que é possível encontrar noscatólicos tradicionalistas.

Não discutimos a legitimidadedeste tipo de juízos morais. A ques-tão é que a sua imposição a priorinum estudo histórico, como pretendeser Hitler’s Pope, leva a que esteperca a sua especificidade. A históriaserve para compreender e explicarem termos do contexto da época,pelo que a função específica do his-toriador não é a de ser um juiz oumoralista, e sim uma testemunha crí-

Quanto a Annie Lecroix-Riz, Le Vatican,l’Europe et le Reich de la première guerremondiale à la guerre froide, Paris, ArmandColin, 1996, esta obra é a verdadeira referên-cia para quem queira atacar a política externada Santa Sé. Pois assenta num trabalho dearquivo enorme. O que torna a obra interes-sante, mesmo para quem, como é o nossocaso, pareça que a autora não consegue de-fender a validade de uma tese claramente apriori que contradiz não só toda a bibliogra-fia historiográfica existente, como também aprópria percepção, na época, dos protagonis-tas da política externa dos diversos Estadosanalisados, o que leva Lacroix-Riz a técnicasde interpretação textual dignas de um bomcriminal lawyer americano, mas não de umhistoriador.

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tica, de ser um analista que procurasituar os acontecimentos num quadrotemporal mais geral. Os juízos mo-rais a posteriori, ou seja, a partir dasconclusões dos estudos históricos,podem ter perfeito cabimento, inclu-sive da parte de cada historiador en-quanto indivíduo, mas depois da es-crita da história, e não como quadrodeterminante desta. É este tipo deressalvas éticas que permite que oshistoriadores se armem o melhorpossível para a difícil tarefa de nãobrincarem com os factos, ou seja, denão fazerem com que a realidadehistórica se dobre convenientementeàs suas convicções.

Duas citações apenas são suficien-tes para mostrar como Cornwell nãopercebe ou não aceita esta imposiçãodeontológica, pelo que concebe a suaobra em termos de uma visão mora-lista e militante da história comojuíza de consciências. A respeito dacrise resultante da anexação, em1938, da Áustria pela Alemanha,Cornwell afirma que nesse caso, eexcepcionalmente, o futuro Pio XII«estava do lado dos anjos», ou seja,contra Hitler (p. 202); e eis comoformula o seu julgamento final a res-peito de Pio XII: «Eu estou conven-cido de que, tudo somado, o veredic-to da história mostra que ele não foium exemplo de santidade para asgerações futuras, mas um ser huma-no cheio de defeitos, em relação aoqual os católicos e as nossas relaçõescom outras religiões beneficiarão seexpressarmos um sincero arrependi-mento» (p. 384). Cornwell mostra-se

portanto, e ironicamente, tradiciona-lista quanto à concepção de história.

Mas quais são as teses fundamen-tais de Cornwell? E por que é que asconsideramos fundamentalmente er-radas? Começaremos por desenvol-ver a resposta ao primeiro ponto an-tes de avançarmos no sentido daresposta ao segundo.

A conclusão fundamental deCornwell é a de que o papa Pio XIIfoi um peão de Hitler; daí o título dolivro, Hitler’s Pope. Ou seja, para oautor britânico, Pio XII fez o queconvinha ao chefe nazi que o Vatica-no fizesse (p. 297.) E isto desde aépoca em que Eugenio Pacelli chefiaa diplomacia do Vaticano como car-deal secretário de Estado, portantoainda antes de se tornar o papa PioXII, em 1939, e logo a partir domomento em que Hitler assumiu opoder, em 1933. Uma prova funda-mental disto mesmo seria a imposiçãopelo futuro Pio XII, enquanto secretá-rio de Estado do Vaticano, da Concor-data de 1933 ao episcopado e aos ca-tólicos alemães. O resultado desseacordo teria sido o da adesão destes aoregime nazi e o silêncio que desdeentão o papado teria observado em re-lação aos abusos do nazismo (pp. 103--178). Mesmo a encíclica papal de1937, Mit brennender Sorge, é consi-derada insatisfatória por Cornwell,porque nunca refere nominalmenteHitler e o partido nazi, sendo descritapelo autor britânico como contendopalavras fortes, mas sendo ainda as-sim ambígua (pp. 179-192). Particu-larmente grave foi o facto de, sempre

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de acordo com Cornwell, Pio XII terimposto o silêncio do mundo católicoem relação ao nazismo sobre ques-tões morais tão graves como a euta-násia activa (até 1943) e o holocaus-to. Os pronunciamentos gerais quePio XII fez sobre estas questões, par-ticularmente as suas encíclicas de1939 (Summi Pontificatus) e 1943(Mystici Corporis), e a mensagem doNatal de 1942 são criticados porCornwell porque, segundo ele, nãovisavam explicitamente o holocaus-to, visto que nunca se referiam nomi-nalmente, nas suas condenações doracismo e das perseguições e massa-cres motivados por ele, a Hitler, aosnazis alemães, aos judeus (pp. 233--234 e 275-77.)

Para Cornwell há uma tese clara-mente válida e outra claramente nãoválida para explicar este comporta-mento de Eugenio Pacelli antes edepois de se ter tornado o papa PioXII. A tese a que adere este autorbritânico é a de que o silêncio cúm-plice do papa em relação ao nazismose devia à convergência entre o seuantijudaísmo, no molde cristão tradi-cional, e o seu anticomunismo cego.Ou seja, a prioridade absoluta docombate ao marxismo, associada auma forte reserva em relação ao ju-daísmo, teria levado Pacelli a favo-recer uma aliança tácita do catolicis-mo com o nazismo (pp. 296-297,332, passim). Claramente inaceitávelpara Cornwell é a tese, geralmenteadvogada pelo Vaticano e por umimportante conjunto de historiadorescatólicos e não católicos (inclusivejudeus), de que o relativo silêncio

papal — ou mais exactamente, a faltade uma condenação nominal deHitler, apesar das condenações deprincípio do racismo e das persegui-ções e mortes por ele motivadas — sedevia ao desejo de Pio XII de, porum lado, proteger de uma provávelrepresália nazi os refugiados que en-contravam asilo nos organismos ca-tólicos e de, por outro, usar a ameaçado pronunciamento público comoum elemento negocial junto das au-toridades nazis.

Cornwell empenha-se sobretudo,como forma de ataque a esta últimatese, em combater a pertinência docaso holandês como exemplo de queesse tipo de pronunciamentos eracontraproducente (pp. 285-288.) Defacto, em 1942, os líderes protestan-tes e católicos holandeses ameaçaramas autoridades de ocupação alemãscom uma pastoral atacando explicita-mente a perseguição e deportaçãodos judeus. Os nazis responderamoferecendo garantias em relação aoscristãos de origem judaica, que tam-bém eram abrangidos pela medida.Os responsáveis protestantes — quenunca são visados em todas estas po-lémicas, apesar de ser claro hoje quena Alemanha muitos deles oscilaramentre a subordinação passiva e oapoio entusiástico ao nazismo e aoanti-semitismo — concordaram, masnão o arcebispo católico de Utreque.As autoridades alemãs de ocupaçãoresponderam ao seu pronunciamentopúblico de protesto e denúncia comum raid generalizado às casas religio-sas católicas, tendo capturado dezenasde refugiados (cerca de 80, de acordo

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com Cornwell). A política geral nazide deportação de todos os judeuscontinuou.

Que estes factos pudessem ter im-pressionado o pontífice relativamenteà inutilidade e à crueldade de arriscarprecisamente aquele tipo de represáliaa uma escala global se fosse ele a pro-nunciar-se nos mesmos termos do ar-cebispo de Utreque, é algo que nãomerece a consideração de Cornwell.Que considera relevante, isso sim, ofacto de apenas algumas dezenas dejudeus terem sido capturados nos or-ganismos católicos e de 20 000 ju-deus, e não os 40 000 a que Pio XIIteria dado crédito — Cornwell insisteparticularmente nesta inflação dosnúmeros por Pacelli —, terem sidodeportados da Holanda. Para quemacusa o papa Pio XII de insensibili-dade perante o sofrimento alheio, es-tes cálculos não parecem propriamen-te revelar grande sensibilidade.Sobretudo, o autor não parece conside-rar relevante que na Holanda, tal comoo Vaticano sempre afirmara temer, umpronunciamento público de um bispocatólico tenha sido não só completa-mente inútil em termos do salvamentodas vítimas, mas tenha ainda acabado,mesmo involuntariamente, por arrastarpara a morte mais algumas dezenas depessoas até aí protegidas pela Igreja.

Aliás, note-se, não nos pareceque o autor de Hitler’s Pope algumavez chegue ao ponto de defenderalgo que qualquer pessoa minima-mente familiarizada com a históriada governação de Hitler saberá ser,no mínimo, altamente improvável:

que houvesse a hipótese de que osnazis parassem a perseguição e o ex-termínio dos judeus por causa dosprotestos do Vaticano. Se esse objec-tivo vital para Hitler não foi sacrifi-cado sequer às necessidades de umaguerra de vida ou de morte, em queos recursos em homens e materialque empenhou cada vez mais no ex-termínio dos judeus à medida que asfrentes militares iam sucessivamenteentrando em colapso poderiam terfeito a diferença, faria sentido admi-tir que ele seria posto de lado apenasporque o papa se lhe referisse publi-camente? E, sendo assim, a que pre-ço para vítimas inocentes alcançavaPio XII um álibi moral pessoal e ins-titucional?

E aqui surge uma das várias es-tranhas omissões da obra Hitler’sPope. Na antologia vaticana de do-cumentação sobre a segunda guerramundial, que Cornwell menciona nasua bibliografia, existe todo um vo-lume dedicado às relações com osbispos polacos4. Como se sabe, aPolónia, e apenas um pouco menosdo que a Rússia ocupada, foi particu-larmente visada pelo terror nazi,como parte da zona eslava que Hitlerpretendia colonizar com alemães deacordo com a sua teoria racial e doLebensraum (espaço vital). Essa re-pressão particularmente dura visava

4 Actes et documents du Saint-Siègerelatifs à la seconde guerre mondiale. 3. LeSaint-Siège et la situation religieuse enPologne et dans les Pays baltes, 1939-1945,2 vols., Lib. Ed. Vaticana, 1967.

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sobretudo eliminar as elites dessasregiões. A Igreja católica polaca foimuito visada, com muitos padres aserem sumariamente executados ouinternados em campos de concentra-ção. Ora, como mostra esse volumedocumental, vieram do episcopadopolaco in loco (e do da Lituânia sobocupação soviética entre 1939 e1941) sucessivos apelos no sentido deque parassem as condenações explíci-tas vaticanas sobre a repressão nessaszonas. E isto porque elas eram con-sideradas pelos bispos não só inúteis— não afectavam as acções dos nazise não chegavam às populações —, masaté contraproducentes, pois pareciamacirrar a repressão e tornavam maisdifícil a posição dos bispos na defesada população e da Igreja, visto quedeparavam com o argumento de queessas declarações mostravam como ocatolicismo era inimigo da Alemanhae do nazismo. Ora, embora Cornwellregiste as referências explícitas porparte de Pio XII à Polónia, em 1939,como um exemplo de que nem sem-pre ele observava um rígido silêncio,ignora, como se fosse irrelevante paraa sua tese, a mudança da política pa-pal que logo a seguir se verificou eque mostra que a política de condena-ções não nominais abrangeu tambémas catolicíssimas Polónia e Lituâniaprecisamente pela razão — de ponde-rar se não seriam contraproducentesdo ponto de vista das vítimas — queo autor britânico descarta como im-procedente. Que Cornwell não ignoracompletamente estes factos mostra-oo facto de ter incluído uma citação de

um outro autor a este respeito, masque não aprofundou5.

Mas a obra de Cornwell contémmuitas outras falhas graves, e relati-vamente a muitos factos que ele dácomo certos e que apresenta como es-senciais na sua argumentação é possí-vel mostrar que, pelo contrário, sãofalsos. A este respeito, as fontes por-tuguesas que estudámos para a elabo-ração da nossa tese de mestrado sobreas relações entre Portugal e o Vaticanoreforçam ainda aquilo que a biblio-grafia estrangeira, conhecida ou des-conhecida do autor, permite afirmar.Iremos referir-nos a seguir apenas aalguns aspectos-chave: a questão daomnipotência de Eugenio Pacelli noVaticano e no seio do catolicismomundial antes e depois de 1939; aquestão da imposição por ele da Con-cordata de 1933 aos bispos e fiéisalemães; a questão da encíclica Mitbrennender Sorge de 1937; finalmen-te, duas questões-chave para avaliar avalidade da tese de Cornwell, a dopeso do antijudaísmo e anticomunis-mo de Pacelli numa suposta aproxi-mação tácita com os nazis e a actu-ação da Igreja católica em relação

5 Cita a obra de Walter Laqueur, TheTerrible Secret, sobre a questão mais geral dareacção às notícias do holocausto pelos di-versos Estados e organizações na época e queconclui que o Vaticano estava bem informa-do do que se passava, mas — ligando a ques-tão judaica e a questão polaca —, se não tinhaajudado as centenas de padres polacos quemorreram em Auschwitz, não via como é quepoderia ter-se pronunciado a respeito dos ju-deus que aí pereceram.

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aos refugiados do nazismo nos anos30 e 40.

O papel de todo-poderoso no Va-ticano e no catolicismo mundial queé atribuído por Cornwell a Pacellipraticamente desde o momento emque começou a desempenhar funçõesno Vaticano é uma tese especialmen-te ridícula. Ela é totalmente desmen-tida por todas as fontes e obrashistoriográficas que conhecemos, e oautor nunca a sustenta com argumen-tação ou documentação alternativa.Aparentemente, para ele, a confiançaque, por repetidas vezes, os superio-res — Gasparri ou Bento XV e PioXI — manifestaram em relação amonsenhor e depois cardeal Pacellisão prova suficiente do seu podersobre eles (pp. 46 e 56.) Ora, mesmoquando, a partir de 1930, Pacelli setornou cardeal secretário de Estado ea segunda figura da Santa Sé, eleera, sem dúvida, um conselheiro es-cutado por Pio XI, influente sobretu-do no caso da Alemanha, em relaçãoà qual tinha um conhecimento direc-to, mas de maneira alguma Pio XI,apresentado como doente e cada vezmais ausente por Cornwell, pode servisto como dominado pela sua influên-cia. Pelo contrário, todas as fontesdiplomáticas, estrangeiras como por-tuguesas, são muito claras, ao longode todo o reinado de Pio XI, a res-peito do feitio decidido e mesmoautoritário deste papa, que era peri-gosamente susceptível a respeito detudo o que lhe parecesse ser a viola-ção das suas prerrogativas ou das li-berdades da Igreja, o que o levou a

enfrentar sem receio e sem papas nalíngua (relativamente ao tradicionalno Vaticano) Hitler, Mussolini ouEstaline quando entendia que o fa-ziam. E a sua doença crescente não oimpediu de manter uma mão firmena política interna e externa vatica-na6.

Não é menos ridícula a afirmaçãorepetida ao longo do texto porCornwell de que Pacelli, logo comosecretário de Estado, tinha uma espé-cie de poder absoluto sobre os epis-copados de todo o mundo que terialevado ao seu silenciamento relativa-mente a Hitler e à Alemanha nazi apartir de 1933. Na realidade, quemconheça as pastorais explicitamenteantinazis do cardeal Cerejeira, ou oseditoriais do diário católico Novida-des, sabe como isso é falso em rela-ção a Portugal. E os episcopados nor-te-americano, britânico ou francêsnão eram menos explícitos do que o

6 Eis o retrato que Henrique TrindadeCoelho (chefe da Legação portuguesa juntoda Santa Sé de 1929 a 1934) traça do «feitiomoral e político de Pio XI»: «Dia a dia […]acaba com todos os privilégios […]. Após ocaso do cardeal Billot, nem mesmo estão se-guros nas trémulas cabeças obedientes os cha-péus do Sacro Colégio. Era natural que osvelhos privilégios das coroas católicas —comprados a peso de oiro e de concessõesnum in illo tempore irressuscitável — caíssemautomaticamente e definitivamente comelas. A Igreja, assim, sentindo-se mais livree mais independente, não poderá pensar emrestabelecer privilégios. Nunca mais mesmoos restabelecerá enquanto o sólio pontifíciofor ocupado por Pio XI. Tenho-o como umaxioma.» (AMNE, 2P, A48, M192; of. 200de LSS para MNE de 31-12-1933.)

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português. Ora o próprio Cornwellcita pastorais antinazis destes últi-mos e refere mesmo a tese do con-traste entre a política pró-democráti-ca de Pio XI e a de Pio XII durantea segunda guerra mundial, sendo oprimeiro o exemplo de um homemforte e determinado face à fraquezado seu sucessor (pp. 189 e segs.)!Mais, Cornwell cita também o facto,perfeitamente documentado, de a di-plomacia francesa se ter empenhadoactivamente na eleição de Pacelli,em 1939, como um continuador dapolítica de Pio XI: de resistênciaface ao nazismo e ao comunismo.Tudo isto é referido pelo autor deHitler’s Pope, como o são ainda re-servas na imprensa alemã em relaçãoà eleição de Pio XII — ainda quenão cite os textos mais duros e mes-mo insultuosos, nomeadamente o dopróprio jornal oficial do partido nazi(pp. e 206 segs.).

Como argumenta Cornwell nosentido de conciliar estes factos coma sua tese? Não vai além da ideia,que não demonstra de todo, de que opapa Pio XI estava, no final da vida,em desacordo com o seu secretáriode Estado, o futuro Pio XII — quan-do estão documentadas, pelo contrá-rio, manifestações de confiança dePio XI no cardeal Pacelli e de seraté o seu candidato preferido paralhe suceder —, e de que essas cam-panhas dos diplomatas aliados esta-vam erradas, como o futuro o viria amostrar, sem se preocupar em expli-car como é que esse apoio franco--britânico a Pacelli e a hostilidade

nazi para com ele se conciliam coma sua tese de um Vaticano dominado,a partir de 1930, por um Pacelli comatitudes que convinham ao nazismo.De tal forma que cabe perguntar atéque ponto o autor não sofre de algu-ma forma de dupla personalidade,visto que muitas vezes parece in-consciente dos dados contraditóriosque pejam a sua obra. Em todo ocaso, o que é evidente é que Hitler’sPope não é sequer uma obra coeren-te, quanto mais convincente.

Será convincente uma obra quereproduz, em pormenor e com inegá-vel rigor, o papel pessoal, hoje per-feitamente documentado, de Pio XIIcomo intermediário entre a oposi-ção alemã ao nazismo e o governobritânico em 1940? Ou seja, quemostra o suposto peão no jogo dexadrez de Hitler a jogar no sentidode derrubar o seu próprio rei? Comointegra Cornwell estes factos na suatese? Refere simplesmente que da-qui se conclui a coragem pessoal dopapa e a sua falta de simpatia porHitler, pelo que os seus silêncios seteriam de explicar por outras cau-sas (pp. 234 e segs.). Mas a sua teseexplicativa fundamental desse silên-cios é a da convergência tácita doVaticano de Eugenio Pacelli, por viado antijudaísmo e do anticomunismo,com Hitler e o nazismo. Como sepode sustentar essa convergência emface de uma prova tão radical de di-vergência de Pio XII com estes últi-mos? Cornwell nada mais diz.

Em relação ao comportamento doepiscopado alemão e da Santa Sé para

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com o regime nazi, a começar pelaConcordata de 1933, as falhas deCornwell mostram como lhe fez falta abibliografia que menciona, mas nãoleu, ou a que nem sequer menciona.A Concordata esteve longe de ser im-posta ao episcopado alemão, como eleafirma, antes este foi sendo mantidoinformado e consultado a respeito dasnegociações diplomáticas, conduzidaspela Santa Sé, como sempre sucedenestes casos. Os diplomatas vaticanose bispos alemães, cientes da provávelmá fé nazi na assinatura do acordo,hesitaram sobre a decisão a tomar.E, na realidade, a palavra final e deci-siva a respeito de se dever ou não as-sinar a Concordata com o governonazi veio da Conferência EpiscopalAlemã, reunida em Fulda, que acaboupor decidir pedir ao papa que assinassea Concordata com urgência como umaúltima e indispensável barreira defen-siva contra a crescente pressão nazi7.

Mais, entre 1933 e 1937 não rei-nou a paz entre a Igreja católica e aSanta Sé e o regime nazi, como seafirma em Hitler’s Pope. Pelo contrá-rio, até 1938, ou seja, até ao agrava-mento da crise internacional, reinouuma guerra de notas diplomáticas ede imprensa — com o OsservatoreRomano e a imprensa católica mun-dial, de um lado, e o VolkischBeobachter e a imprensa nazi, dooutro — entre ambos os lados eninguém naqueles anos a ignorou.A encíclica de Pio XI de 1937, Mitbrennender Sorge, não é por isso umfacto praticamente isolado queCornwell defende. Ela é, isso sim, ocoroar de um longo e crescente con-flito (de que o autor britânico apenasmenciona a pastoral do protesto dosbispos alemães de 1935.)

Além deste erro de base — queestá longe de ser secundário para atese do autor britânico de que o en-tão cardeal secretário de EstadoPacelli impôs o silêncio em relaçãoao nazismo durante os anos 30 —,ele cai ainda numa nova série decontradições ao analisar a génese esignificado da encíclica Mit bren-nender Sorge que mostram a fragili-dade das suas análises. Depois de re-conhecer o papel importante dePacelli na elaboração do documentoe o crédito que, portanto, ele merecepor esse documento, Cornwell afir-ma logo adiante que, depois da suapublicação, ele tudo fez para ameni-zar a postura de Pio XI, anular naprática a condenação no texto daencíclica e efectivamente trair o seu

7 Pp. 135 e segs. A respeito da Concordatacom a Alemanha de 1933 e da sua integraçãono quadro de uma estratégia concordatáriaglobal, cf. Georg May, «La política concor-dataria de la Santa Sede desde 1918-1974»,in H. Jedin e K. Repgen (eds.), Manual deHistoria de la Eglesia, IX, La Iglesia Mundialdel Siglo XX, Barcelona, Herder, 1984, pp.274-341, e Konrad Repgen, «Politica exteriorvaticana en la época de las guerras mundiales»,in H. Jedin e K. Repgen (eds.), Manual deHistoria de la Eglesia, IX, La Iglesia Mun-dial del Siglo XX, Barcelona, Herder, 1984,pp. 119-120. Este autor refere como decisivaa reunião dos bispos alemães em Fulda de 29a 31 de Agosto e refere ainda que logo naépoca, por exemplo, para o enviado britâni-co junto do papado, ficou claro que a Con-cordata com a Alemanha não implicava qual-quer «adesão» ao nazismo.

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conteúdo8. Não é também exacta asua caracterização do papel do futuroPio XII na elaboração da encíclica.Assim, enquanto o primeiro borrão,da autoria do cardeal arcebispo deMunique, praticamente se limitava alistar as queixas que, a partir de1933, a Igreja católica vinha apre-sentando face à perseguição nazi, aversão revista e alterada por Pacelli— cujas palavras iniciais passaram deMit grosser Sorge (Com Grande Preo-cupação) para Mit brennender Sorge(Com Ardente Preocupação) — pas-sou a incluir uma parte, a fundamen-tal no texto definitivo, em que seexaminam e condenam os princípiosbásicos do nazismo — entre estesdestacava-se, evidentemente, o doracismo — pela sua absoluta contra-dição com os do cristianismo9.

Quanto ao conteúdo da Mit bren-nender Sorge, Cornwell conclui quecontém palavras fortes, mas que nempor isso deixa de ser ambígua, desdelogo, porque não visa nominalmente

Hitler e porque foi publicada prati-camente a par de uma condenação docomunismo ainda mais forte (p. 183.)Ainda que o autor britânico não orefira explicitamente, ele é crítico dainterpretação, que na época foi bemgeneralizada, de que essa publicaçãopraticamente a par da referida conde-nação significava que ambas as amea-ças eram colocadas, para todos osefeitos práticos, a par. Cornwell con-sidera que a condenação do comunis-mo é mais dura do que a do nazismo.

Na realidade, a encíclica DiviniRedemptoris não podia ignorar o fac-to de a doutrina comunista ser expli-citamente ateia, coisa que os váriosdoutrinários nazis, nem sempre mui-to coerentes entre si, não afirmavam.Curiosamente, o autor de Hitler’sPope considera relevante, prova demaior contemporização, o facto de onome de Hitler nunca ser menciona-do no texto da encíclica, mas nãomenciona que os nomes de Lenineou Estaline também nunca são men-cionados na encíclica condenatóriado comunismo. Na verdade, é carac-terístico deste tipo de textos papais,afirmações solenes de princípios,que, mesmo quando visam situaçõesconcretas, não entrem em grandesparticularismos, nomeadamente apon-tando explicitamente as personalida-des políticas visadas. Ninguém naépoca, a começar pelos próprios na-zis, com Hitler à cabeça, se equivo-cou minimamente sobre o alvo e osignificado da condenação contida naMit brennender Sorge. Significativa-mente a imprensa nazi atacou o Vati-

8 Ibid., pp. 181-182 e 184.9 Konrad Repgen, «Politica exterior va-

ticana en la época de las guerras mundiales»,in H. Jedin e K. Repgen (eds.), Manual deHistoria de la Eglesia, IX, La Iglesia Mundialdel Siglo XX, Barcelona, Herder, 1984, pp.126-127. Segundo este autor, só com a parteacrescentada por Pacelli se tornava absoluta-mente explícita a ligação entre a perseguiçãoà Igreja e os princípios fundamentais do Es-tado nazi, ou seja, que não se tratava de algocontingente, assim como a condenação pelopapa destes últimos — nomeadamente oculto da força, o culto do chefe, o culto daraça — como incompatíveis com o cristianis-mo ppor o seu paganismo, idolatria e racis-mo violarem direitos naturais universais.

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cano — e particularmente Pacelli —com enorme virulência em torno domote de que se tinha definitivamentedeixado cair a máscara que escondiaa aliança do papa com o judaísmomundial. E a repressão sobre a rede,sobretudo da imprensa local católica,que permitiu o facto espantoso de tersido possível fazê-la chegar em segre-do e lê-la e divulgá-la num mesmodomingo por toda a Alemanha nazifoi impiedosa — com muitas prisõese mesmo alguns assassínios nos mesesseguintes.

Quanto ao ponto decisivo da tesede Cornwell: o facto de o antijudaís-mo de Pacelli e o seu anticomunismoo terem levado à frieza para com ossofrimentos dos judeus e a uma apre-ciação positiva do papel dos nazis nocombate ao comunismo, neste ponto,mais do que as contradições, são asomissões que merecem menção.Cornwell documenta por duas vezesreferências em documentos da autoriade Pacelli que representam um usopejorativo do termo «judeu», associa-do a ameaçadoras irrupções nanunciatura de insurrectos comunistasna Alemanha em crise de 1919 (pp. 74e segs.) No entanto, na conclusãomenciona o facto como se tivessedocumentado um fio contínuo aolongo dos anos desse tipo de referên-cias. E esquece que na mesma alturaPacelli, ao descrever os seus encon-tros com o presidente da comunidadejudaica da Baviera, se mostra muitorespeitoso. Na realidade, e comoCornwell refere, Pacelli, quando jo-vem estudante, foi alvo de uma dou-

trinação antijudaica tradicional nocristianismo até ao início deste sécu-lo que claramente veio ao de cimaassociada à ideia corrente, com algu-ma base factual, de que muitos co-munistas, quer na Rússia, quer naAlemanha, eram judeus. A isto acres-centava-se «naturalmente», numcontexto claramente preconceituoso,a ideia de que aí, e isto desde o «ju-deu» Marx, estaria a explicação dasua especial hostilidade para com asIgrejas cristãs. Mas o autor britânicode Hitler’s Pope parece considerarque este claro aflorar de uma influên-cia racista teria de significar quePacelli iria ser hostil aos judeus parao resto da vida. Isto quando nos pare-ce ambígua já nessa época a posiçãode Pacelli relativamente aos judeus— hostil para com os revolucionárioscomunistas «judeus», mas respeitosapara com o burguês chefe da comu-nidade judaica bávara — e claramen-te não racista. Já que, ainda que oentão núncio Pacelli recomende quea Santa Sé não conceda a ajuda re-querida pela comunidade judaicabávara para obter em Itália (país como qual então o Vaticano não manti-nha sequer relações diplomáticas)folhas de palmeira para festejar aPáscoa, deixa claro que o faz porquenão se trata de um pedido de auxíliorespeitante a algo que se prende como respeito dos direitos comuns a to-dos os homens e a que o direito na-tural obrigasse, mas sim relativo aum elemento específico do culto ju-daico (pp. 69-72). Portanto, o queCornwell consegue mostrar — ao

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contrário do que afirma — é que, seo futuro Pio XII não foi totalmenteimune ao antijudaísmo reinante nocatolicismo à época da sua formaçãoe não tinha em 1917 um perfil pro-priamente ecuménico, ao mesmotempo, nunca teve preconceitos raciaiscontra os judeus no seu conjunto econsiderava já nessa altura que nãolhes podiam ser negados os direitoshumanos básicos devidos a todos.Precisamente o que os nazis fizeramnuma escala nunca vista.

Sobretudo, e esta é mais uma dasomissões espantosas de Hitler’sPope, há um episódio perfeitamenteconhecido e documentado durante asegunda guerra mundial e em que setorna claramente manifesto que PioXII não mostrava, de todo, uma frie-za diplomática e antijudaica paracom esses acontecimentos queCornwell lhe atribui. Num encontro,em Maio de 1940, com o embaixadoritaliano Attolico que viera protestarem nome do governo italiano peloalinhamento do Vaticano com os alia-dos, que a Itália fascista consideravaevidente, Pio XII respondeu-lhe quedevia até proferir palavras mais for-tes («palavras de fogo») a respeitodo que se passava na Polónia (onde,de acordo com as informações dosbispos, o papa sabia que as maioresvítimas de atrocidades nazis eram osjudeus), mas que não o fazia por re-ceio de piorar ainda a situação dasvítimas. E repetidas vezes na suacorrespondência ao longo da guerraassoma a dúvida e a angústia sobrese a política de silêncio quanto a

condenações nominais pela qual sedecidiu por receio de aumentar o so-frimento das vítimas seria de facto amelhor. Portanto, faz todo o sentidoperguntar-nos se a decisão a que che-gou foi, de facto, a melhor, mas difi-cilmente se pode argumentar que aimagem que fica da documentação éa da frieza papal em relação a estasquestões10.

Quanto ao anticomunismo dePacelli e do Vaticano em geral, apre-sentado como definidor de uma ati-tude totalmente distinta em relação aMoscovo da adoptada em relação àBerlim nazi, de novo encontramosestranhíssimas omissões na obra deCornwell. Já que, o autor de Hitler’sPope se esquece de mencionar o es-forço feito pelo Vaticano, a partir darevolução russa de Fevereiro de 1917,para entrar em contacto com os novosgovernos revolucionários. E, sobretu-do, ignora as negociações intermiten-tes entre a Santa Sé e o governo sovié-tico entre 1920 e 1927, em que, osupostamente inacessível e absoluta-mente hostil a qualquer contacto como comunismo, Eugenio Pacelli teveum papel fundamental, através decontactos com os representantes sovié-ticos na Alemanha.

Na realidade, em relação ao na-zismo, como em relação aos regimesde esquerda violentamente anticleri-cais no México, na França, em Portu-

10 Cf., para documentar e comentar estasreferências, P. Blet, «Pie XII entre la guerre etla paix», in Pie XII et la cité…, Téqui/PressesUniversitaires d’Aix-Marseille, pp. 110-112.

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gal, ou na Espanha, o papado, a partirde 1914, adoptou uma política consis-tente de, independentemente da situa-ção política vigente, não cortar rela-ções diplomáticas de, sempre quepossível, procurar restabelecê-las eprocurar alcançar acordos com o po-der vigente de forma que desse àIgreja católica as condições mínimaspara o exercício da sua missão reli-giosa. Fê-lo com a Rússia soviética,como com a Alemanha nazi, comocom todos esses regimes anticleri-cais. Como afirmou, em 1929, opapa Pio XI, de forma invulgarmenteclara para o Vaticano: «Se for neces-sário para salvar uma alma que seja[…] teremos coragem suficiente paranegociar com o próprio Diabo»(Osservatore Romano, 16-5-1929).

Esta política não foi alterada nofundamental pela segunda guerramundial, que apenas reforçou opragmatismo apolítico do Vaticanona defesa de princípios religiosos ehumanitários fundamentais. Nem foidiversa a política aplicada em rela-ção à Rússia soviética ou ao Lestepor ela dominada a partir de 1945.O Vaticano esperou dez anos (de1927 a 1937), em vão, por uma al-teração na posição negocial soviéticarelativamente à intransigência verifi-cada nos sete anos antecedentes denegociações inúteis antes de, apósvárias notas de protesto, emitir umacondenação formal e solene median-te a encíclica Divini Redemptoris. Aobra recente (1992) do historiadoritaliano Andrea Riccardi, Il Vaticanoe Mosca (O Vaticano e Moscovo),

mostra que Pio XII adoptou umapostura pragmática e flexível à parti-da em relação aos regimes do Leste,após 1945, apesar dos seus temores arespeito das consequências do comu-nismo para a Igreja. Mostra tambémque foi fundamentalmente por von-tade dos novos regimes que se deu aruptura de relações com o Vaticano11.Que se percebe no quadro de umaestratégia de Moscovo de monopoli-zação do poder na sociedade pelospartidos comunistas por si controla-dos que impunha o ataque à Igrejacatólica, visada também no quadroda satelização dos países sob ocupa-ção do exército vermelho que impu-nha o corte de todo o tipo de rela-ções autónomas com poderesexteriores, de que o exemplo maismarcante foi a rejeição da participa-ção no plano Marshall. Nem sequer écorrecto afirmar que a condenaçãodo comunismo pelo Vaticano, antesou depois de 1945, tenha sido feitasem matizes, de forma absoluta, aocontrário do que sucedera com o na-

11 A. Riccardi, Il Vaticano e Mosca, Bari,Laterza, 1992, pp. 26 e segs. O que o papa nãofez foi procurar, mais uma vez e por sua ini-ciativa, negociar directamente com Moscovo.Também não foram restabelecidas, por inicia-tiva da Santa Sé, as relações com a Polónia ea Hungria, mas em ambos os casos Riccardimostra que isso se deveu sobretudo à pressãonesse sentido do próprio episcopado polaco ehúngaro, que, perante a delicadeza da situa-ção, preferia ser ele a gerir as relações comos novos governos comunistas, em vez de umqualquer diplomata do Vaticano com poucaexperiência da realidade e sensibilidades lo-cais.

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zismo. Na verdade, os papas Pio XIe Pio XII tiveram o cuidado de sal-vaguardar o que havia de válido nosobjectivos de justiça social do comu-nismo, que não nos seus métodos, dedistinguir entre o povo russo, vítimamaior dessa ideologia, e os seus di-rigentes; e o Vaticano deu sinais cla-ros, logo na década de 50, de quemantinha também em relação aoLeste europeu como princípio funda-mental o de negociar com qualquertipo de regime desde que o objectivofosse o de estabelecer acordos emque esses regimes aceitassem limitaro seu carácter anticlerical ou totalitá-rio em relação à Igreja católica12.

Mas não é verdade que Cornwelldocumenta que o Vaticano se mos-trou muito mais favorável em rela-ção ao regime nazi do que em rela-ção ao comunismo antes e durante asegunda guerra mundial? A respostaé: não, não é verdade. Quando seprocuram as bases documentais desteargumento apresentado como eviden-te, o que se verifica é que, afinal, eleassentava praticamente só no factode o Vaticano ter mantido um núncioem Berlim, o que não sucedia emMoscovo. Já vimos que, se era as-sim, não era por falta de vontade deRoma em ter uma representação nes-ta última capital. E é mesmo possívelmostrar, como Cornwell refere aliás,que a retirada do núncio em Berlim

chegou a ser ponderada em 1938.O que, aliás, mostra bem a que pontochegava então o nível de hostilidademútua entre o Vaticano e Berlim,que, lendo Hitler’s Pope, não se per-cebe donde vem. Ora a manutençãodo núncio em Berlim, defendida peloentão secretário de Estado Pacelli,não é justificada por este em nomede qualquer necessidade de uma es-tratégia concertada contra o comu-nismo, mas sim por virtude de nadase ganhar com essa retirada e, pelocontrário, se perder uma importantevia de ligação directa com o episco-pado alemão.

Mais, é possível documentar quePacelli, já como papa Pio XII, usouessa ligação para louvar e encorajaros membros do episcopado alemãomais hostis ao nazismo e censurar osque lhe pareciam ceder perante ele.Ou seja, exactamente o oposto daqui-lo que Cornwell defende. O exemplardos Actes, que reúne a correspondên-cia papal com os bispos alemães noperíodo da segunda guerra mundial, éperfeitamente eloquente a este res-peito, mostrando Pio XII a afirmarclaramente a continuidade com a li-nha definida na Mit brennenderSorge13. Nunca vimos a sua autenti-cidade contestada; todavia, Cornwell

12 H. J. Stehle, «The difficult shifttoward co-existence», in Eastern Politics of theVatican, Athens, Ohio University Press, 1981,pp. 285 e segs.

13 Sobre esta questão, os melhores guiassão: em termos documentais, os Actes etdocuments du Saint Siège relatifs à la secondeguerre mondiale, 2, Lettres de Pie XII auxévêques allemands 1939-1944, Lib. Ed. Vati-cana, 1965; em termos de análise, P. Blet, PieXII et la seconde guerre mondiale, Paris,Perrin, 1997, pp. 63-82 (máxime p. 74).

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nunca se lhe refere, como se fossealgo irrelevante para a sua tese. Es-ses documentos mostram mesmo oPio XII autoritário e silenciador dastendências antinazis nos católicosalemães que nos é apresentado porCornwell a assumir uma atitude deautojustificação humilde perante ascríticas que alguns bispos alemãesmais antinazis lhe dirigiam por con-siderarem insuficientes as críticaspapais a Hitler. Nestas respostas jus-tificativas de Pio XII perante os bis-pos alemães aparece mais um ele-mento a explicar a sua atitude derecusa de uma condenação explícitada Alemanha e do regime alemão: elapodia ser feita com muito mais legi-timidade e força por bispos alemãesde patriotismo comprovado — comoVon Gallen, que fora capelão no exér-cito na primeira guerra mundial, con-decorado por bravura — do que porum papa que era constantementeapresentado pela propaganda do regi-me como estrangeiro e hostil.

É também perfeitamente possíveldocumentar a inexistência de qual-quer aliança anticomunista do Vati-cano com a Alemanha, e isto quer aonível das palavras, quer ao nível dasacções. Quando, em 1941, na se-quência da entrada da Itália ao ladoda Alemanha no ataque à URSS, severificou uma diligência pelo embai-xador italiano Attolico no sentido deobter uma declaração papal a outor-gar a dimensão de cruzada ao ataqueà Rússia, um dos diplomatas de maiorconfiança de Pio XII — e de expres-são bem mais clara do que ele —, oseu braço direito neste campo até à

morte, Mons. Tardini, respondeu aAttolico que ela seria impossível.E, quando este insistiu na necessida-de de uma convergência contra o co-munismo, o diplomata do Vaticanorespondeu-lhe comparando o comu-nismo ao nazismo, e retorquiu, quan-do Attolico lhe contrapôs que o pri-meiro era o maior inimigo da Igreja,não saber dizer qual dos dois seria omaior inimigo da Igreja, mas semprelhe diria que ele via a guerra russo--alemã, não de acordo com a doutrinada cruzada, mas sim de acordo com odito popular italiano «se um diabo vaiatrás do outro…»14. Em conversa domesmo teor com o representante ame-ricano, Tardini regista o seu desejo ar-dente de que a guerra trouxesse o fimdo comunismo e do nazismo na Euro-pa15. Pensar que pudesse fazer estasdeclarações sem o conhecimento eaprovação de Pio XII é ridículo.

Em contraste com esta recusaface às pressões do Eixo para a ex-pressão de uma solidariedade papalface ao ataque à URSS, está a formacomo foi tratado o pedido deRoosevelt a Pio XII de que esclare-cesse os católicos americanos nosentido de que o auxílio americano aMoscovo não era contrário à doutri-na da Divini Redemptoris, o que opapa fez imediatamente e sem levan-tar dificuldades16. Estes factos são

14 P. Blet, op. cit., pp. 135-137.15 A. Riccardi, Il Vaticano e Mosca, Bari,

Laterza, 1992, pp. 7-9.16 G. P. Fogarty, The Vatican and the

American Hierarchy from 1870 to 1965,Estugarda, Anton Hiersemann, 1982, pp. 271e segs.

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perfeitamente conhecidos e referidospor vária bibliografia sobre a políticaexterna vaticana nestes anos. MasCornwell, mais uma vez, não os men-ciona.

Não é naturalmente conhecido in-ternacionalmente o conteúdo das fon-tes portuguesas com relevância paraestas questões, mesmo as publicadasna colectânea respeitante ao perío-do da segunda guerra mundial —Dez Anos de Política Externa 1937--1947. Mas a verdade é que elas sãoparticularmente reveladoras a esterespeito. E isto porque o representan-te português junto da Santa Sé numperíodo importante (1935-1940) foium diplomata, Vasco de Quevedo,claramente filonazi e anti-semita, por-tanto um adepto fervoroso da tese daconvergência anticomunista entre oVaticano e Berlim, que Cornwell de-fende que foi uma realidade. É, por-tanto, relevante perceber se Vasco deQuevedo se mostrava satisfeito comas posições do Vaticano e do entãosecretário de Estado Pacelli relativa-mente à Alemanha e aos outros Esta-dos europeus, como a tese de Hitler’sPope deixaria supor.

O que sucede é que Quevedo,como aliás o seu sucessor, o maisaliadófilo Carneiro Pacheco, consi-deravam os meios vaticanos clara-mente hostis ao nazismo. Isto eraincompreensível e inaceitável paraQuevedo, que apontava Pacelli comoo principal responsável por este factoe pela aproximação entre Roma e ascapitais das democracias ocidentais —sobretudo Paris e Washington. Os

seus diálogos, quer com Pio XI, quercom o então cardeal secretário de Es-tado Pacelli, permitem chegar a con-clusões claras e importantes.

Em Setembro de 1938, Quevedomostra-nos um Pio XI profundamentepreocupado pela aproximação entre aItália fascista e a Alemanha nazi nocampo das leis raciais. E numa dasúltimas audiências de um pontífice jámortalmente doente ele surge, longeda passividade que Cornwell lhe atri-bui, claramente determinado na suapostura internacional e resistente aqualquer subalternização do perigonazi em relação ao perigo comunista.Mas são especialmente duas audiên-cias de Vasco de Quevedo com oentão cardeal Pacelli, futuro Pio XII,que nos parecem particularmenteúteis por permitirem documentar deforma directa a falta de pertinênciadas teses de Cornwell. Referiremosapenas uma, talvez a mais explícita,por razões de economia de espaço.Quevedo afirmou, em 1937, numadiligência junto do cardeal Pacelli,então secretário de Estado da SantaSé, a respeito da condenação dorexismo — corrente política belga deextrema-direita católica próxima donazismo — pelo cardeal de Malines:«É um facto que Degrelle, chefe dopartido rexista, consubstancia uma po-lítica nacional de emancipação antico-munista e Van Zeeland, do partido de-mocrata-cristão belga, é orientado pelapolítica de transigência que levou omundo à beira da catástrofe!»

Ao que Pacelli reagiu de formamuito clara, afirmando, «num tom,embora afectuoso, vivo e… apaixo-

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nado»: «Sim, mas a Igreja não podeaplaudir qualquer orientação políti-ca que se pareça com o nazismo!Veja, Excelência, o que se passa naAlemanha: além de serem negadasaos católicos as liberdades mais ele-mentares […] a imprensa alemã fazuma campanha […] ignóbil contra aIgreja, campanha inqualificável, odio-sa e selvagem! Não pode calcular[…] até que ponto vai a perseguiçãoque se faz, neste momento, aos ca-tólicos e à Igreja […] E, a propósi-to, dir-lhe-ei que, se nós sabemosque entre os nacionalistas espanhóishá gente de primeira ordem, tam-bém não ignoramos que entre oslegionários há muitos de tendênciasnazis, gente inconveniente e pertur-badora […]»

E, perante a objecção de Quevedode que na Alemanha as igrejas perma-neciam abertas e de que o clero nãoera morto e torturado, como na Rússia,respondeu Pacelli: «Sim», diz o car-deal, interrompendo-me, «mas o na-zismo, não matando, nem incendian-do, consegue o mesmo resultado […]acabar com a Igreja e com a reli-gião.»

Quevedo termina o seu relato daconversa com Pacelli afirmando tertido vontade de lhe perguntar se oscatólicos alemães apoiavam Hitler,como apoiavam Léon Blum (o líder dogoverno francês da Frente Popular, quePacelli visitara recentemente em Pa-ris), mas achou melhor não continuar aconversa «num tom de controvérsia»17.

Mas, enfim, que conclusões tira-mos desta análise de conjunto deHitler’s Pope? Que o livro deCornwell é uma obra cheia de errosfactuais em aspectos-chave. Queabunda em omissões inaceitáveis emrelação a documentos e factos comevidente pertinência para a pondera-ção da natureza das relações entre oVaticano e a Alemanha. Que as suasanálises são simplistas e claramenteinsatisfatórias, a começar pela tesedo peso decisivo de Pacelli na diplo-macia vaticana, praticamente desde omomento do seu ingresso nela. O li-vro Hitler’s Pope nem sequer conse-gue formar um conjunto coerente,pejado que está de contradições, como autor a escrever afirmações contra-ditórias à distância de algumas pági-nas. Quem quiser uma obra contraPio XII e o Vaticano, mas que sejaao menos coerente e bem documen-tada, ainda que do nosso ponto devista se mostre claramente precon-ceituosa, então leia o livro de AnnieLecroix-Riz, Le Vatican, le Reich etl’Europe, editado pela ArmandColin. Do nosso ponto de vista, osmelhores volumes sobre este períodosão, claramente, o livro de O.Chadwick, Britain and the Vaticanduring the Second World War, daCambridge University Press, e a obrade P. Blet, Pie XII et la secondeguerre mondiale, editado pela Perrin,que cobrem boa parte do materialarquivístico relevante. Ao contráriodo que afirma Cornwell, Chadwicknão é um defensor acérrimo de PioXII, mas um historiador anglicano

17 Doc. 972, of. 69 de LSS para MNE de14-5-1937, Dez Anos de Política Externa,vol. 2, Lisboa, MNE, 1968, pp. 281-286.

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desejoso de imparcialidade [ele, ali-ás, numa das suas contradições, tam-bém o chega a afirmar! (cf. p. 381)].A sua empatia vai para o represen-tante britânico junto do Vaticano,D’Arcy Osborne, e não propriamentepara Pio XII, que está longe de con-denar como um cúmplice do nazis-mo, mas que é alvo de críticas váriase apropriadas. E que têm a ver sobre-tudo, não tanto com o acerto das suasdecisões — é duvidoso, segundo ele,que, de uma forma ou de outra, elastivessem grande peso na situação —ou com a bondade das suas inten-ções, mas com o facto de o seuformalismo, a sua crença no peso dadiplomacia como forma de resolveros conflitos internacionais, a sua ten-dência para uma retórica demasiadorebuscada, a sua personalidade sensí-vel e pouco dada a rupturas, o teremequipado mal para lidar com o podernazi. A mesma conclusão conta coma adesão de A. Riccardi, que nas suasexcelentes obras de síntese sobre opapado no século XX, especialmenteIl potere del papa da Pio XII aGiovanni Paolo II e Vaticano e Mos-ca, ambas publicadas pela Laterza noinício dos anos 90, aponta aindacomo provável o papel que a ilusãode preservar uma função mediadorado papado que pudesse acelerar a pazteria tido como infeliz moderadordas condenações papais.

Pio XII não está acima de críti-cas. E, como referimos de início, sea história não deve ser moralista, elanão pode, até por isso, pretenderesgotar este tipo de questões. Pes-

soalmente, e tal como Cornwell, te-mos mais simpatia, por exemplo, porJoão XXIII do que por Pio XII. Eparece-nos ter algo de inexplicável aactual política de canonizações (daCongregação para a Causa dos San-tos e do papa João Paulo II), quandonão se hesita em elevar Mons.Escrivá aos altares, apesar da sua li-gação com o franquismo, mas se ar-gumenta com as dificuldades resul-tantes do carácter excessivamentepolítico no processo respeitante aoarcebispo Oscar Romero. Sem dúvi-da que a posição de Pio XII durantea segunda guerra mundial, pela com-plexidade e dificuldade da situaçãoem que o papa se encontrava, mere-ce, não uma, mas muitas análises,em que a história tem uma funçãoimportante — como referencial derigor e imparcialidade que nos pareceessencial —, mas, repetimos, não ex-clusiva. Nomeadamente a contribui-ção da ética seria para nós do maiorinteresse. A obra de Cornwell pode-rá, neste contexto, resultar das me-lhores intenções, mas ela parte deuma confusão sobre a natureza dotrabalho histórico e resulta numaobra que é uma confusão ainda maiornum campo em que já existe umaquantidade apreciável de trabalhosde qualidade.

O nível do trabalho historiográficodo autor de Hitler’s Pope é ilustradopor um exemplo final, paradigmáticoe central para a avaliação desta obra.Cornwell menciona uma obra impor-tante do diplomata judeu Pinchas La-pide, The Last Three Popes and theJews, em que este último se aplicou

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a examinar o papel do conjunto dosorganismos católicos no salvamentode judeus — de que se destaca oRaphaelsverein dos padres palotinos,sempre em estreita ligação com adiplomacia papal, nomeadamente emLisboa, que era um centro importan-te de passagem de refugiados — echegou à conclusão de que a Igrejacatólica no seu conjunto contribuiupara o salvamento de 840 000 ju-deus. Cornwell, sem contestar estenúmero e a pesquisa em que ele as-senta, limita-se a lançar um ataquead homine dizendo que esta obra ouos louvores que inúmeras organiza-ções judaicas e a própria GouldaMeir fizeram do papel de Pio XII eda Igreja católica no salvamento dejudeus durante a segunda guerramundial têm a ver simplesmente como desejo israelita de obter o reconhe-cimento papal (pp. 378 e segs.) Mais,coloca a par, de uma forma que ape-nas se pode considerar demagógica eque revela uma completa incompre-ensão do papel do historiador, asconclusões desta obra e as afirma-ções de uma das judias romanas queforam deportadas pelos nazis — ecuja família foi tragicamente mortaem Auchewitz — no sentido de quePio XII não salvou ninguém (pp.317-318). Isto quando o próprioCornwell refere na sua obra o factode muitos judeus terem sido salvospor terem encontrado refúgio no Va-ticano, nos imóveis papais com extra-territorialidade, e em casas religiosasespalhadas pela cidade18. Como con-

ciliar isto, o facto de Pio XII osacolher na própria «casa», com asuposta hostilidade papal para comos judeus e a forma como ela inibiua acção dos católicos contra o nazis-mo e o anti-semitismo? Cornwellnão desarma e avança com a maisridícula das suas teses, a ideia de queisto não é mais do que uma manifes-tação de uma espécie de atavismoitaliano no sentido da hospitalidade,como se o risco que estas instituiçõescorriam face a um poder nazi quecontrolava a cidade de Roma fossealgo de secundário e esta decisão ti-vesse alguma coisa de automático enatural. Argumentação completadapela ideia implícita de que Pio XII,que é apresentado por Cornwell aolongo do resto da sua obra como umautoritário obcecado pelo controle dasua Igreja por todo o mundo, não

18 Sobre esta questão, os melhores guiassão: em termos documentais, o volume res-

pectivo dos Actes et documents du Saint Siègerelatifs à la seconde guerre mondiale, 9, LeSaint Siège et les victimes de guerre, janvier--décembre 1943, Lib. Ed. Vaticana, 1975; emtermos de análise, o artigo de O. Chadwick,«Weizsäcker, the Vatican, and the Jews ofRome», in Journal of Ecclesiastical History,Abril de 1977, pp. 179-199, em que esteúltimo destaca, por exemplo, o trabalho dopadre Benoît, um capuchinho, que alojou eprotegeu largas centenas de judeus no seuconvento e contou na sua acção com toda acolaboração da Secretaria de Estado, assimcomo com o fechar de olhos conivente doentão embaixador alemão junto da Santa Sé,Von Weizsäcker, que chegou a homologar,com a condição apenas da prévia aprovaçãoda Secretaria de Estado, documentação paraestes refugiados que, omitindo a sua qualidadede judeus, os reconhecia como refugiados deguerra «legais» sob a protecção do Vaticanoe do Comité Internacional da Cruz Vermelha.

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teria tomado conhecimento das pres-sões sobre as autoridades alemãesfeitas em seu nome pelos diplomatasvaticanos — e que portanto não tinha,ao contrário do que afirmavam osseus diplomatas, qualquer intenção deprotestar se a perseguição aos judeusprosseguisse — ou do refúgio conce-dido a judeus no seio do próprioVaticano (pp. 310-312). Como toda aobra, também este desfecho da histó-ria contada por Cornwell em Hitler’sPope não é nem convincente nemcoerente.

BRUNO CARDOSO REIS

to humano». Este subtítulo é, decer-to, mais revelador do que a herançade alguém que é, para a maior partedaqueles a quem a obra se destina,inteiramente (e de certo modo injus-tamente) desconhecida. De Gall fi-cou apenas a expressão corrente de«ter bossa» para a música ou para aliteratura, significando uma particu-lar aptidão para essas artes. Mas elefoi um dos primeiros, como CastroCaldas explica, a tentar localizar asfunções nervosas em áreas específicasdo cérebro, conceito operacional ain-da hoje fundamental para o diagnós-tico e a terapêutica das afecções dosistema nervoso.

Este volume é produto de um no-tável talento didáctico. Em discursodirecto, por vezes na primeira pessoa,noutras num plural majestático, e commeridiana clareza, dirige-se o autor auma assembleia larga; psicólogos, fi-lósofos, técnicos de reabilitação, en-fermeiros e professores do ensinosecundário são a audiência a quem, ameu ver, o livro pode servir. É, defacto, um précis, demasiado elementarem áreas como a anatomia, a fisiolo-gia, ou das correlações clínico-patoló-gicas, para ser de real utilidade a umestudante de medicina. Para tanto teriasido útil, por exemplo, tratar também aneurobiologia do desenvolvimento— certamente uma disciplina funda-mental do novo século —, a neurofar-macologia, ou a neuroendocrinologia,pois o eixo hipotalamo-hipofisáriotem, aliás, um papel não desprezívelnalgumas das funções que são objectodeste trabalho.

Alexandre Castro Caldas, A Heran-ça de Franz Joseph Gall. O Cére-bro ao Serviço do ComportamentoHumano, McGraw-Hill Editora,Amadora, 1999.

A Herança de Franz Joseph Gallé o título que Alexandre Castro Cal-das, professor de Neurologia da Fa-culdade de Medicina de Lisboa, elepróprio herdeiro de uma das mais dis-tintas cátedras da medicina portugue-sa, clínico e investigador credenciadona área a que chama «neurociênciascognitivas», escolheu para um livroque pretende explicar como está «océrebro ao serviço do comportamen-


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