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RDS VIII (2016), 1, 83-105 Lembrando o Bom Samaritano: O novo registo público dos beneficiários efectivos na União Europeia MESTRE RUI MARQUES * 1 «No-one would remember the Good Samaritan if he’d only had good intentions; he had money as well». margaret thatcher ** 2 Sumário: Em jeito de Prólogo. I. Da importância para Portugal. II. Do conceito de bene- ficiário efectivo. III. Do prestador de serviços a sociedades e trusts. IV. As recomendações do Grupo de Acção Financeira. V. Da Directiva (UE) 2015/849. VI. Por terras de Sua Majestade. VII. O levantamento da personalidade jurídica colectiva. VIII. Bibliografia. * Mestre em Direito e Economia pela Faculdade de Direito de Lisboa. Inspector tributário. Foi Membro do Conselho Económico e Social (2003-2009). ** Esta célebre frase foi dita em 6 de Janeiro de 1980, na primeira grande entrevista televisiva a Margaret Thatcher, realizada em 10 Downing Street, após ter ganho as eleições, quando o jornalista, Brian Walden, perguntava se o preço da recuperação económica e do aumento da prosperidade no Reino Unido seria uma maior desigualdade social. Para melhor avaliação por cada um, aqui se deixa uma transcrição parcial da parábola bíblica do Bom Samaritano (Lucas, 10:30-35): «Prosseguindo Jesus, disse: Um homem descia de Jerusalém a Jericó, e caiu nas mãos de salteadores que, depois de o despirem e espancarem, se retiraram, deixando-o meio morto. Por uma coincidência descia por aquele caminho um sacerdote; quando o viu, passou de largo. Do mesmo modo também um levita, chegando ao lugar e vendo-o, passou de largo. Um samaritano, porém, que ia de viagem, aproximou-se do homem e, vendo-o, teve compaixão dele. Chegando-se, atou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho e, pondo-o sobre o seu animal, levou-o para uma hospedaria e tratou-o. No dia seguinte tirou dois denários, deu-os ao hospedeiro e disse: Trata-o e quanto gastares de mais, na volta eu te pagarei». Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 83 Book Revista de Direito das Sociedades 1 (2016).indb 83 28/07/16 16:36 28/07/16 16:36
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Lembrando o Bom Samaritano: O novo registo público dos benefi ciários efectivos na União Europeia

MESTRE RUI MARQUES*

1

«No-one would remember the Good Samaritan if he’d only had good intentions; he had money as well».

margaret thatcher** 2

Sumário: Em jeito de Prólogo. I. Da importância para Portugal. II. Do conceito de bene-fi ciário efectivo. III. Do prestador de serviços a sociedades e trusts. IV. As recomendações do Grupo de Acção Financeira. V. Da Directiva (UE) 2015/849. VI. Por terras de Sua Majestade. VII. O levantamento da personalidade jurídica colectiva. VIII. Bibliografi a.

* Mestre em Direito e Economia pela Faculdade de Direito de Lisboa. Inspector tributário. Foi Membro do Conselho Económico e Social (2003-2009).** Esta célebre frase foi dita em 6 de Janeiro de 1980, na primeira grande entrevista televisiva a Margaret Thatcher, realizada em 10 Downing Street, após ter ganho as eleições, quando o jornalista, Brian Walden, perguntava se o preço da recuperação económica e do aumento da prosperidade no Reino Unido seria uma maior desigualdade social.Para melhor avaliação por cada um, aqui se deixa uma transcrição parcial da parábola bíblica do Bom Samaritano (Lucas, 10:30-35):

«Prosseguindo Jesus, disse: Um homem descia de Jerusalém a Jericó, e caiu nas mãos de salteadores que, depois de o despirem e espancarem, se retiraram, deixando-o meio morto. Por uma coincidência descia por aquele caminho um sacerdote; quando o viu, passou de largo. Do mesmo modo também um levita, chegando ao lugar e vendo-o, passou de largo.Um samaritano, porém, que ia de viagem, aproximou-se do homem e, vendo-o, teve compaixão dele. Chegando-se, atou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho e, pondo-o sobre o seu animal, levou-o para uma hospedaria e tratou-o. No dia seguinte tirou dois denários, deu-os ao hospedeiro e disse: Trata-o e quanto gastares de mais, na volta eu te pagarei».

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Em jeito de Prólogo

«Primeiro estranha-se»: a partir de 6 de Abril do presente ano, todas as empre-sas do Reino Unido estão obrigadas a possuir um registo das pessoas que detêm um controlo signifi cativo sobre a empresa (PSC Register)1, que fi ca disponível para consulta pública on-line2. Recorde-se que o modelo de negócio fi duciário mais difundido – o trust3 – tem as suas raízes no Reino Unido, quando no século XIII os cruzados ingleses confi avam a administração de seus bens a terceiros. Neste quadro, tradicionalmente, os ordenamentos de Common Law4 asseguram ao benefi ciário uma tutela efectiva no confronto com terceiros. O que, a par da confi dencialidade proporcionada pelos serviços fi duciários, fazem do Reino

1 Registo das Persons with Signifi cant Control (isto é, aquelas que detêm posições de controlo signi-fi cativo numa sociedade comercial).2 Junto da Companies House, que equivale ao nosso registo comercial.3 É um acto constitutivo de fundo fi duciário. Segundo a Organisation for Economic Co-operation and Development (OCDE), um trust é um arranjo legal pelo qual o proprietário (ou seja, o settlor, que pode ser pessoa singular ou colectiva) transfere a propriedade a uma(s) pessoa(s) – ou seja, o(s) trustee) –, que a tem que manter e controlar de acordo com as instruções do proprietário, para benefício de pessoa(s) designada(s) – os benefi ciários. O título legal da propriedade fi duciária é exercido pelo agente fi duciário (trustee), enquanto o interesse fi nanceiro (equitable title) pertence aos benefi ciários.O artigo 2.º, da Convenção de Haia (Hague Convention on the law applicable to trusts and their recog-nition) tem a seguinte redação:

«Para os efeitos da presente Convenção, o termo fundo fi duciário (trust) refere-se às relações jurídicas cria-das – por acto inter vivos ou mortis causa – por uma pessoa, o fundador, mediante a colocação de bens sob o controlo de um administrador (trustee) de um fundo fi duciário em benefício de um benefi ciário ou com um determinado fi m.Um fundo fi duciário (trust) possui as seguintes características: a) os bens constituem um fundo separado, não fazendo parte do património do administrador; b) a propriedade dos bens do fundo fi duciário (trust) estabelece-se em nome do administrador ou em nome de outra pessoa por conta do administrador; c) o administrador tem o poder e a obrigação, pelos quais assume responsabilidade, de administrar, gerir ou dispor dos bens em conformidade com os termos do fundo fi duciário (trust) e as obrigações particulares que a lei lhe imponha. A reserva pelo fundador de determinados direitos e poderes e o facto de o próprio administrador poder ter direi-tos como benefi ciário não são necessariamente incompatíveis com a existência de um fundo fi duciário (trust)».

4 É um sistema legal que se desenvolveu, sobretudo, nos territórios de presença ou marca britânica, em que o direito é criado ou aperfeiçoado pelos juízes. Existe um conjunto de precedentes (common law) que levam a que cada decisão a ser tomada num caso dependa do que tiver sido decidido em casos anteriores (precedents) e, por outro lado, vai afectar o direito a ser aplicado a casos futuros. Diferentemente do nosso sistema, romano-germânico (civil law), que se apoia nos actos legislativos.

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Unido e dos territórios sob sua infl uência o maior tax haven5 da União Euro-peia, de que a City de Londres é o hub fi nanceiro6.

Mas, «depois entranha-se»7: este aumento da transparência societária resulta do compromisso do Reino Unido fi rmado na Cimeira do Grupo dos 8 (G8)8, em Junho de 2013, e na Cimeira do Grupo dos 20 (G20)9, em Novembro de 2014. Vindo a ser concretizada a reforma legislativa doméstica em 26 de Março de 2015, pelo Parlamento britânico, com o Small Business, Enterprise and Employment Act 2015, cerca de dois anos após a divulgação do projecto inicial.

Por outro lado, todos os Estados membros da União Europeia se obrigaram a pôr em vigor, até 26 de Junho de 2017, as disposições legislativas, regula-mentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à Diretiva (UE) 2015/849, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Maio de 2015, relativa à prevenção da utilização do sistema fi nanceiro para efeitos de bran-queamento de capitais ou de fi nanciamento do terrorismo10.

Deste modo, o Reino Unido antecipa-se aos seus parceiros da União Euro-peia, indo mesmo além da Directiva, a qual prevê que o acesso ao registo esteja reservado, via de regra, às autoridades competentes.

Mas esta reforma, que reputamos ser verdadeiramente histórica, não se fi cou por aqui. Com o mesmo propósito de transparência nas relações do capital, as

5 Segundo a OCDE, tax haven (“paraíso fi scal”), no sentido clássico, refere-se a um país que impõe uma tributação reduzida ou mesmo nenhuma tributação, e é utilizado por empresas para evitar o imposto que, de outra forma, seria pago num país de tributação mais elevada. Os paraísos fi scais têm as seguintes características-chave: taxas nulas ou reduzidas de imposto; falta de uma efectiva troca de informações; falta de transparência no funcionamento das disposições legislativas, regu-lamentares ou administrativas.6 Numa área com menos de 3 kms2 operam cerca de 550 instituições bancárias e de metade das principais companhias de seguros do mundo. The City é, de longe, a maior praça fi nanceira da Europa. O volume de negócios gerado num único dia suplanta, por várias vezes, o Produto Interno Bruto (PIB) do Reino Unido. 7 «Primeiro estranha-se, depois entranha-se» foi o slogan do primeiro anúncio da Coca-Cola em Portu-gal, da autoria de Fernando Pessoa, que em 1929 trabalhava na agência Hora, a quem tinha sido encomendada a campanha publicitária. Que, por razões políticas, fi cou no papel, apenas vindo a ser autorizada a comercialização do produto em 1977.8 De que também fi zeram parte os Estados Unidos, a Alemanha, o Canadá, a França, a Itália, o Japão e a Rússia.9 Grupo formado pelos ministros de fi nanças e chefes dos bancos centrais das 19 maiores econo-mias do mundo (África do Sul, Argentina, Brasil, México, Canadá, Estados Unidos, China, Japão, Coreia do Sul, Índia, Indonésia, Arábia Saudita, Turquia, Alemanha, França, Itália, Rússia, Reino Unido e Austrália, mais a União Europeia).10 Que altera o Regulamento (UE) n.º 648/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho, e que revoga a Diretiva 2005/60/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Outubro, e a Diretiva 2006/70/CE, da Comissão, de 1 de Agosto.

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sociedades domiciliadas em Terras de Sua Majestade deixam também de poder emitir acções ao portador (bearer shares)11 e, quanto às existentes, consagrou-se um prazo de nove meses para que as mesmas sejam convertidas em nomina-tivas (registered shares). E a própria gestão (management) não fi ca incólume: a lei vem também proibir a utilização de sociedades como directors (administradores) numa sociedade do Reino Unido, exigindo que todos os administradores sejam pessoas singulares, com excepções muito limitadas.

De seguida, vejamos então, com vagar, a relevância destes últimos desen-volvimentos no tocante a Portugal, para depois, uma vez apreendidos os con-ceitos de benefi ciário efectivo e de prestador de serviços a sociedades e trusts, conhecermos destas alterações na vida das sociedades no seio da União Euro-peia e, em particular, também das especifi cidades verifi cadas no Reino Unido. Por fi m, temos a questão do levantamento da personalidade jurídica colectiva, que bem merece umas palavras, ainda que, necessariamente, breves.

I. Da importância para Portugal

A clara identifi cação do benefi ciário efectivo, sobretudo nos rendimentos qua-lifi cados como dividendos, juros ou royalties, é imprescindível para a interpreta-ção e aplicação dos Acordos de Dupla Tributação. Para se valer da aplicação dos artigos 10.º, 11.º e 12.º, da Convenção Modelo da OCDE, correspondentes a tais rendimentos, uma pessoa tem que que ser considerada visada na Conven-ção (artigo 1.º), residente num dos Estados Contratantes (artigo 4.º), receptora do pagamento dos dividendos, juros ou royalties e benefi ciário efectivo desses rendimentos.

Assim, caso o benefi ciário efectivo não seja considerado um residente no outro Estado Contratante, o Estado da fonte pode tributar os rendimentos de acordo com a sua lei interna, sem as limitações previstas na Convenção.

Por outro lado, a escolha de localização de uma sociedade holding12 é uma consideração importante em qualquer estruturação societária internacional, com o intuito de minimizar a carga fi scal que incida sobre o fl uxo de rendimentos.

11 Por acções ao portador entendemos os instrumentos negociáveis que atribuem a propriedade de uma pessoa colectiva a uma pessoa que detenha um certifi cado de acção ao portador, segundo a defi nição apresentada pelo Financial Action Task Force (GAFI), de que adiante trataremos.12 Sociedade constituída para o exercício do poder de controlo ou para a participação relevante em outras sociedades. Em geral, essas sociedades não são operacionais, limitando-se a adminis-trar o seu património societário ou mobiliário (puras). Mas podem, em alguns regimes jurídicos, praticar algumas operações comerciais.

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Ora, o Reino Unido apresenta um regime fi scal assaz competitivo, assu-mindo-se há muito como uma jurisdição atractiva para a constituição (incorpo-ration) de sociedades e a utilização de serviços fi duciários por não residentes. Pela reputação, pelo idioma, pela simplicidade de processos e, sobretudo, pelo seu regime fi scal.

Desde logo, pode exibir a maior rede de tratados de dupla tributação no mundo (mais de cem). Pelo que, na maioria das situações em que uma socie-dade britânica detenha, pelo menos, directa ou indirectamente, 10% do capital social de uma sociedade no exterior, a taxa de imposto retido na fonte sobre os lucros distribuídos é reduzida para 5%. Pode ainda benefi ciar da isenção de retenção na fonte quando a subsidiária que paga os rendimentos estiver domiciliada num Estado membro da União Europeia, ao abrigo da Directiva n.º 2011/96/UE, do Conselho, de 30 de Novembro (Directiva Mães e Filhas).

As pequenas empresas (isto é, com menos de 50 trabalhadores, e que têm um volume de negócios e/ou balanço total inferior a €10 milhões) são favo-recidas por uma isenção total na tributação dos dividendos gerados em Estado que tenha um Acordo de Dupla Tributação com o Reino Unido que contenha uma cláusula de não discriminação. É o caso de Portugal, desde 196813. Mesmo nas médias e grandes empresas, aplica-se uma isenção total de tributação dos dividendos estrangeiros se estes, por exemplo, são pagos por uma sociedade que é controlada pela sociedade benefi ciária do Reino Unido (recipient company).

Se uma sociedade do Reino Unido aliena uma participação social de, pelo menos, 10% que detinha sobre outra sociedade, há pelo menos um ano, as mais-valias obtidas estão isentas de tributação. Tão-pouco se aplica uma reten-ção de imposto pelos dividendos pagos aos seus sócios ou accio nistas, inde-pendentemente de que residam fora do Reino Unido (mesmo em jurisdições off -shore).

Cumpre evidenciar que a Convenção celebrada entre Portugal e o Reino Unido, como todas as demais, tem apenas o propósito de eximir de uma dupla tributação um mesmo facto tributário conexionado com as duas jurisdições – Estado da fonte versus Estado da residência. E não, evidentemente, o de per-mitir que esse facto, qual apátrida fi scal, a coberto da incidência ou aplicação da lei interna de ambos os Estados, possa não ser tributado em nenhum destes.

Porém, bastas vezes, temos a utilização de sociedades domiciliadas no Reino Unido como veículos (conduit company), conotadas com esquemas agressivos de planeamento fi scal internacional, ou mesmo evasão fi scal, visando a redução e/ou eliminação da tributação sobre os rendimentos através do aproveitamento

13 Veja-se o artigo 23.º, da Convenção, a propósito da não discriminação.

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abusivo da Convenção. Destarte, a aplicabilidade da Convenção depende de que a pessoa (colectiva) residente no Reino Unido seja o benefi ciário, isto é, o titular do direito ao rendimento.

As Convenções não são, pois, aplicáveis em função do domicílio ou resi-dência de meros intermediários ou mandatários, quando, na realidade, o verda-deiro benefi ciário surge ainda a jusante, via de regra, domiciliado numa juris-dição off -shore14.

Refi ra-se também que quer o treaty shopping (com o aproveitamento abu-sivo de uma Convenção) quer a participação de entidade sujeita a um regime fi scal privilegiado15 são esquemas de planeamento fi scal há muito identifi cados pela Administração Fiscal, na análise de risco, e reputados como abusivos. E que podem ser requalifi cados, objecto de correcções ou determinar a instauração de procedimento legalmente previsto de aplicação de disposições anti-abuso, conforme previsto no Decreto-Lei n.º 29/2008, de 25 de Fevereiro.

Ademais, é prática generalizada os benefi ciários (benefi cial owners) e agen-tes da criminalidade tributária respaldarem-se em sociedades domiciliadas num país, território ou região sujeita a regime de tributação claramente mais favo-rável (tax heaven) e, não menos importante, aonde possam estar protegidos por uma maior confi dencialidade, expondenciada pela prestação de serviços fi du-ciários, admitidos no common law, e pelo sigilo bancário e fi scal)16.

São conhecidas as difi culdades na averiguação (disclosure) das operações titu-ladas por sociedades off -shore e seus intervenientes –, exponenciadas pela não

14 Recorde-se, entre nós, a “Operação Furacão”, que remonta a 2004, em que várias sociedades do Reino Unido apenas serviam para emitir facturas relativas a mercadorias ou serviços (inexistentes, ou com o valor forjado), de modo a aumentar, artifi cialmente, os gastos nas sociedades nacionais e assim provocar a erosão da base tributável. Os valores excedentários subtraídos às autoridades fi scais portuguesas eram depois transferidos para contas bancárias de outras sociedades entretanto criadas em jurisdições off -shore e das quais eram ultimate benefi cial owners os donos ou gestores das sociedades nacionais.15 Este esquema, inclusivamente, foi objecto de divulgação pública, pelo Director-Geral dos Impos-tos, ao abrigo do artigo 15.º, do Decreto-Lei n.º 29/2008, de 25 de Fevereiro.16 O grupo Tax Justice Network (TJN) divulgou em Novembro de 2015 o relatório Financial Secrecy Index, onde apresenta um índice de transparência fi nanceira internacional que classifi ca as juris-dições de acordo com seu sigilo e o aumento das suas actividades off -shore. Estimando que foram guardados entre 21 e 32 biliões de dólares de capital privado em paraísos fi scais, onde a taxação é baixa ou nula. No ranking, por ordem decrescente, estão a Suíça, Hong Kong, Estados Unidos da América, Sin-gapura, Ilhas Cayman, Luxemburgo, Líbano, Alemanha, Bahrein, Emirados Árabes Unidos. Ou seja, alguns dos países ou territórios não constam da Portaria n.º 150/2004, de 13 de Fevereiro, e no relatório constam Estados membros da União Europeia.

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obrigatoriedade de possuir contabilidade organizada (dormant company)17, que bem atestam a grande complexidade da investigação criminal em todo este domínio.

Por tudo o que vimos dizendo, a identidade do benefi ciário efectivo não se revela, longe disso, de somenos importância. Nem se confi na, por exemplo, ao plano das relações especiais18 ou das participações de capital.

Do exposto, já se antevê, resulta que o disclosure da informação sobre a identidade dos benefi ciários efectivos das estruturas societárias, a par do fi m das acções ao portador e da proibição dos corporate directors19, tendo de permeio a troca de informações e a derrogação do sgilo bancário, a que todos os Esta-dos membros estão obrigados, vão trazer ganhos na inspecção tributária e, em particular, no domínio da investigação criminal. Mas, também, nas execuções fi scais, pelo rastreamento de activos dos devedores fora do território português.

Dado que o indivíduo ou indivíduos que controlam uma sociedade são, muitas vezes, diferentes daqueles listados no registo de accionistas da mesma sociedade, em muitos casos o registo PSC vai permitir um olhar muito dife-rente – e, arriscamos, bem mais interessante.

II. Do conceito de benefi ciário efectivo

Na defi nição da OCDE20, de que Portugal é membro fundador, o bene-fi ciário é a pessoa que desfruta dos benefícios reais de ser proprietário, mesmo que o título de propriedade esteja em nome de outrem (benefi cial owner).

Bastas vezes, existem situações em que a propriedade ou controlo são exer-cidos através de uma cadeia de propriedade ou através de outra forma de con-trolo que não seja o controlo directo. Entre a entidade21 e a pessoa singular que detém a propriedade ou o seu controlo são interpostas uma ou várias outras entidades que podem, por sua vez, estar domiciliadas em várias jurisdições. Isto, com o intuito de manter, quanto a toda a estrutura societária, a confi denciali-

17 Na defi nição da Companies House (Reino Unido), trata-se de uma empresa que não tem entra-das signifi cativas nos registos contabilísticos durante o exercício. A contabilidade está como que “adormecida”.18 Segundo o artigo 63.º, n.º 4, do Código do IRC, «existem relações especiais entre duas entidades nas situações em que uma tem o poder de exercer, directa ou indirectamente, uma infl uência signifi cativa nas deci-sões de gestão da outra, o que se considera verifi cado».19 Como veremos, as pessoas colectivas deixarão de poder ser administradoras de uma sociedade no Reino Unido, em nome da transparência.20 Glossary of Tax Terms.21 Pessoa coletiva ou entidade sem personalidade jurídica (legal arrangement).

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dade (ou melhor, a opacidade) relativamente à pessoa singular que, na verdade, detém a propriedade ou o seu controlo (ultimate benefi cial owner).

A Directiva (UE) 2015/849, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Maio, desenvolve o conceito de benefi ciário de modo aturado, tendo sempre presente que podem ter sido interpostas estruturas societárias entre a entidade e o ultimate benefi cial owner. Este é então o benefi ciário efectivo. Ou seja, «a pessoa ou pessoas singulares que, em última instância, detêm a propriedade ou o controlo do cliente e/ou a pessoa ou pessoas singulares por conta de quem é realizada uma operação ou actividade».

No caso das sociedades, o benefi ciário efectivo será quem em última ins-tância detém a propriedade ou o controlo – seja directo ou indirecto –, de uma percentagem sufi ciente de acções ou dos direitos de voto ou de participação no capital de uma pessoa colectiva, incluindo através da detenção de acções ao portador, ou que exerce controlo por outros meios sobre essa pessoa colectiva.

A Directiva considera como “indício”22 de propriedade directa a detenção, por uma pessoa singular, de uma percentagem de 25% de acções mais uma ou de uma participação no capital superior a 25%. Já a propriedade indirecta é indiciada pela detenção de uma percentagem de 25% de acções mais uma ou de uma participação no capital de mais de 25% por uma entidade societária que está sob o controlo de uma ou várias pessoas singulares, ou por várias entidades societárias que estão sob o controlo da mesma pessoa ou pessoas singulares23.

Não obstante, qualquer dos Estados membros poderá decidir-se por uma percentagem mais baixa para indiciar a propriedade ou o controlo das sociedades. O controlo através de outros meios pode ser determinado, inter alia, segundo os critérios estabelecidos no artigo 22.º, n.ºs 1 a 5, da Directiva 2013/34/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho, relativa às demonstrações fi nanceiras anuais, às demonstrações fi nanceiras consolidadas24 e aos relatórios conexos de certas formas de empresas.

Se, depois de esgotados todos os meios possíveis e na condição de não haver motivos de suspeita, não tiver sido identifi cada nenhuma pessoa nos ter-

22 Ou seja, a detenção, por parte de uma pessoa singular, de pelo menos 25% do capital social ou do direito de voto de uma pessoa coletiva, deixa de ser sufi ciente para aferir o seu controlo, directo ou indirecto. Essa percentagem passa a constituir apenas um factor, entre outros, a ser considerado para se para chegar a tal conclusão.23 Na referida Directiva admite-se que o conhecimento de uma percentagem de acções ou de participação no capital não permita automaticamente conhecer o benefi ciário efectivo. A percen-tagem de mais de 25% constitui um dos factores indiciários a ter em conta.24 De entre os critérios de controlo utilizados para a elaboração de demonstrações fi nanceiras con-solidadas, poderão fi gurar o acordo entre accionistas, o exercício de uma infl uência dominante ou o poder de nomear a direcção de topo.

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mos antecedentes, ou se subsistirem dúvidas de que a pessoa ou pessoas identifi -cadas sejam os benefi ciários efectivos, a pessoa ou pessoas singulares que detêm a direcção de topo25 podem ser considerados benefi ciários efectivos. As entida-des obrigadas26 conservam registos das acções levadas a cabo para identifi car os benefi ciários efectivos.

No caso dos trusts, bem assim como das pessoas colectivas como as fun-dações e centros de interesses colectivos sem personalidade jurídica similares a trusts, é considerado como benefi ciário efectivo: o fundador (settlor); o admi-nistrador ou administradores fi duciários (trustees); o curador, se aplicável; os benefi ciários ou, se as pessoas que benefi ciam do centro de interesses colectivos sem personalidade jurídica ou da pessoa colectiva não tiverem ainda sido deter-minadas, a categoria de pessoas em cujo interesse principal o centro de interes-ses colectivos sem personalidade jurídica ou a pessoa colectiva foi constituído ou exerce a sua actividade; ou qualquer outra pessoa singular que detenha o controlo fi nal do trust através de participação directa ou indirecta ou através de outros meios.

25 Um dirigente ou funcionário com conhecimentos sufi cientes da exposição da instituição ao risco de branqueamento de capitais e de fi nanciamento do terrorismo e com um nível hierárquico sufi cientemente elevado para tomar decisões que afectem a exposição ao risco, não sendo neces-sariamente, em todos os casos, um membro do conselho de administração.26 Artigo 2.º, n.º 1, da Directiva:

«1) Instituições de crédito; 2) Instituições fi nanceiras; 3) As seguintes pessoas singulares ou colectivas, no exercício das suas actividades profi ssionais:

a) Auditores, técnicos de contas externos e consultores fi scais; b) Notários e outros membros de profi ssões jurídicas independentes, quando participem, quer actuando

em nome e por conta do cliente numa operação fi nanceira ou imobiliária, quer prestando assistência ao cliente no planeamento ou execução de operações de:

i) compra e venda de bens imóveis ou entidades comerciais, ii) gestão de fundos, valores mobiliários ou outros activos pertencentes ao cliente, iii) abertura ou gestão de contas bancárias, de poupança ou de valores mobiliários, iv) organização de entradas ou contribuições necessárias à criação, exploração ou gestão de sociedades, v) criação, exploração ou gestão de fundos fi duciários (trusts), sociedades, fundações ou estruturas

análogas; c) Prestadores de serviços a sociedades ou trusts que não estejam já abrangidos pela alínea a) ou b); d) Agentes imobiliários; e) Outras pessoas que comercializam bens, na medida em que sejam efetuados ou recebidos pagamentos

em numerário de montante igual ou superior a 10 000 EUR, independentemente de a transacção ser efectuada através de uma operação única ou de várias operações que aparentam uma ligação entre si;

f) Prestadores de serviços de jogo».

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III. Do prestador de serviços a sociedades e trusts

Torna-se mister delimitar o conceito de prestador de serviços a sociedades e trusts. Por este considera-se qualquer pessoa que, a título profi ssional, preste, a terceiros, um dos seguintes serviços:

i) constituição de sociedades ou outras pessoas colectivas; actuação como administrador ou secretário de uma sociedade, associado de uma socie-dade de pessoas (partnership) ou como titular de posição semelhante em relação a outras pessoas colectivas, ou execução das diligências necessá-rias para que outra pessoa actue das formas referidas; fornecimento de sede social, endereço comercial, endereço administrativo ou postal e outros serviços conexos a uma sociedade, a uma sociedade de pessoas, ou a qualquer outra pessoa colectiva ou centro de interesses colecti-vos sem personalidade jurídica; actuação como administrador fi duciário (trustee) de um fundo fi duciário explícito (express trust) ou de um centro de interesses colectivos sem personalidade jurídica similar, ou execução das diligências necessárias para que outra pessoa atue das formas referidas;

ii) intervenção como accionista fi duciário por conta de outra pessoa (nomi-nee shareholder) ou execução das diligências necessárias para que outra pessoa intervenha dessa forma.

IV. As recomendações do Grupo de Acção Financeira (GAFI)

A Directiva 91/308/CEE, do Conselho, de 10 de Junho, defi nia o bran-queamento de capitais em termos de infracções relacionadas com o tráfi co de estupefacientes e impunha obrigações exclusivamente ao sector fi nanceiro.

Por sua vez, a Directiva 2001/97/CE, do Parlamento Europeu e do Con-selho, de 4 de Dezembro, veio alargar o âmbito de aplicação da primeira Direc-tiva, seja quanto aos crimes abrangidos seja quanto ao leque de profi ssões e actividades cobertas.

Com o objectivo de, a nível nacional e internacional, desenvolver e pro-mover políticas de prevenção e combate ao branqueamento de capitais e ao fi nanciamento do terrorismo e da proliferação de armas de destruição massiva, foi criado em 1989 um organismo de carácter intergovernamental: o Financial Action Task Force, conhecido entre nós por Grupo de Acção Financeira (GAFI), de que Portugal é membro desde 1990.

Este Grupo emite Recomendações que estabelecem um quadro abrangente e consistente de medidas que os países devem implementar, como standards internacionais, através de medidas adaptadas às suas circunstâncias específi cas.

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Desde logo, com o sentido de reforçar a transparência e a disponibilidade de informação sobre os benefi ciários efectivos das pessoas colectivas e das entidades sem personalidade jurídica (legal arrangements)27.

As Directivas 2005/60/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Outubro, e 2006/70/CE, da Comissão, de 1 de Agosto, seguem a revi-são das Recomendações do GAFI, operada em Junho de 2003. Desta feita, abrangendo-se o fi nanciamento do terrorismo e elaborando-se requisitos mais pormenorizados no que respeita à identifi cação e verifi cação da identidade do cliente, às situações em que um risco mais elevado de branqueamento de capi-tais ou de fi nanciamento do terrorismo pode justifi car medidas reforçadas, e também às situações em que um risco mais baixo pode justifi car controlos menos rigorosos.

Na sua revisão das Recomendações, em Fevereiro de 2012, o GAFI apre-sentou como medida preventiva, no âmbito do dever de diligência relativo à clientela (customer due diligence – CDD), que integra a Recomendação 10, a identifi cação e a adopção de medidas adequadas para verifi cação da identidade do benefi ciário efectivo (benefi cial owner), de tal forma que as instituições fi nan-ceiras obtenham um conhecimento satisfatório antes ou durante o estabeleci-mento de uma relação de negócio ou quando realizam operações com clientes ocasionais.

Para impedir a utilização abusiva das pessoas colectivas para fi ns de bran-queamento de capitais ou de fi nanciamento do terrorismo, devem os países assegurar que existe informação adequada, exacta e actualizada sobre os bene-fi ciários efectivos e sobre o controlo das pessoas colectivas, susceptível de ser obtida ou consultada, em tempo útil, pelas autoridades competentes (Reco-mendação 24).

Em particular, os países onde as pessoas colectivas possam emitir acções ao portador ou warrants sobre acções ao portador (bearer share warrants), ou que autorizem accionistas ou administradores fi duciários actuando por conta de outra pessoa (nominees shareholders ou nominee directors), devem adoptar medidas adequadas para assegurar que essas pessoas colectivas não sejam indevidamente utilizadas, facilitando o acesso à informação sobre os benefi ciários efectivos e o controlo das pessoas colectivas por parte das instituições fi nanceiras e das acti-vidades e profi ssões não fi nanceiras.

Segundo o GAFI, os países devem adoptar medidas para prevenir a utili-zação abusiva de acções ao portador ou da opção de subscrição de acções, por

27 São fundos fi duciários explícitos (express trusts) ou outras entidades sem personalidade jurídica semelhantes. Fiducie, treuhand e fi deicomiso são exemplos de outras entidades sem personalidade jurídica semelhantes.

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exemplo, aplicando um ou mais dos seguintes mecanismos: proibi-las; con-vertê-las em acções registadas ou em opções de subscrição de acções registadas (por exemplo, através de desmaterialização); imobilizá-las, exigindo que estas sejam detidas por uma instituição fi nanceira ou por um intermediário profi s-sional sujeitos a regulação; ou, impondo aos accionistas com uma participação de controlo que o comuniquem à sociedade, e à sociedade para que esta registe a sua identidade.

Com o intuito de evitar a utilização indevida de ações nominativas ou administradores que actuem por conta de outrem (nominee shareholders and nominee directors), por exemplo, pretende-se que os Estados apliquem um ou mais dos seguintes mecanismos: a) obrigando os accionistas ou administrado-res que actuem por conta de outrem a divulgar a identidade da pessoa que os designou à sociedade e a qualquer Registo competente, e que essa informação seja incluída no Registo competente; ou b) obrigando os accionistas ou admi-nistradores que actuem por conta de outrem a estar devidamente autorizados, que o seu estatuto de mandatários seja registado nos Registos Comerciais, e obrigando-os também a conservar a informação que identifi ca a pessoa que os tenha designado, bem como a disponibilizar essa informação às autoridades competentes, a pedido destas.

Em relação às sociedades de responsabilidade limitada (limited liability part-nerships), os países deverão adoptar medidas e impor obrigações semelhantes às impostas às sociedades, tendo em conta as suas diferentes formas estruturas.

Na cooperação internacional entre países, em particular quanto à informa-ção básica e à relativa aos benefi ciários efectivos, deve ser facilitado o acesso pelas autoridades competentes estrangeiras aos Registos Comerciais, partilhada informação sobre accionistas e utilizados os poderes, nos termos da respectiva legislação nacional, para obter informação sobre os benefi ciários efectivos por conta das homólogas estrangeiras.

No que respeita às pessoas colectivas e entidades sem personalidade jurídica (legal arrangements), as instituições fi nanceiras devem adoptar medidas adequadas que lhes permitam compreender a estrutura de propriedade e de controlo do cliente e impedir assim a utilização abusiva de tais entidades. E os países devem assegurar a existência de informação adequada, exacta e actualizada sobre os fundos28 fi duciários explícitos (express trusts29), incluindo a informação sobre os fundadores, administradores (trustees)30 e benefi ciários, susceptível de ser obtida ou consultada, em tempo útil, pelas autoridades competentes. Também aqui facilitando o acesso à informação sobre os benefi ciários efectivos e o controlo

28 Isto é, quaisquer bens corpóreos ou incorpóreos, tangíveis ou intangíveis, móveis ou imóveis, independentemente da forma como sejam adquiridos.

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das pessoas colectivas por parte das instituições fi nanceiras e das actividades e profi ssões não fi nanceiras (Recomendação 25). 29 30

Os países devem exigir aos administradores (trustees) de qualquer fundo fi duciário explícito (express trust) regido pela sua legislação que obtenham e conservem informações adequadas, exactas e atualizadas sobre os benefi ciários efectivos desse fundo31. Tal deverá incluir a identidade do fundador, do(s) administrador(es), do curador (se aplicável), dos benefi ciários ou da categoria de benefi ciários, e qualquer outra pessoa singular que detenha o controlo fi nal do fundo fi duciário (trust).

Também deverão os trustee conservar informações básicas sobre outros agentes reconhecidos e prestadores de serviços ao trust, incluindo consulto-res ou gestores de investimento, contabilistas e consultores fi scais. Bem como declarar o seu estatuto de administradores às instituições fi nanceiras e às acti-vidades e profi ssões não fi nanceiras designadas quando, nessa qualidade, esta-belecem uma relação de negócio ou executam uma operação ocasional num montante acima do limiar.

Os trustees não devem ser impedidos em virtude da lei ou de outros meios vinculativos de fornecer às autoridades competentes32 quaisquer informações sobre o trust ou de fornecer às instituições fi nanceiras e a designadas actividades e profi ssões não fi nanceiras , a pedido destas, informações sobre os benefi ciá-rios efectivos e os bens do trust detidos ou geridos no quadro dessa relação de negócio.

Os países são encorajados a assegurar que as várias autoridades, pessoas e entidades relevantes detenham informações sobre todos os trusts com os quais estabeleceram uma relação. De entre as possíveis fontes de informação sobre os trusts, os administradores e os bens visados pelo fundo incluem-se os con-

29 Instituído por via negocial e não por efeito da lei. Trata-se de um fundo claramente criado pelo fundador, geralmente por meio de um documento, por exemplo um acto constitutivo de fundo fi duciário (trust), em contraste com fundos fi duciários que resultem da força da lei e não de uma intenção ou decisão clara de um fundador de criar um fundo fi duciário ou entidade sem perso-nalidade jurídica (legal arrangement).30 Podem ser profi ssionais (por exemplo, em função da jurisdição, um advogado uma trust com-pany) se forem remunerados para agirem na qualidade de administrador a título profi ssional, ou não profi ssionais (por exemplo, uma pessoa que aja sem recompensa em nome da sua família).31 Tratando-se de trustees profi ssionais, devem ser obrigados a conservar a informação durante um período de pelo menos cinco anos após a cessação do seu envolvimento com o fundo. 32 As autoridades competentes nacionais ou autoridades competentes relevantes de um outro país em virtude de um pedido de cooperação internacional adequado.

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sultores ou gestores de investimento, os advogados e outros os prestadores de serviços aos trusts e às sociedades33.

As autoridades competentes devem dispor dos poderes necessários para ace-der em tempo útil às informações detidas pelos trustees dos fundos fi duciários e pelas outras partes, em particular às informações na posse de instituições fi nan-ceiras e por designadas actividades e profi ssões não fi nanceiras. Em particular, sobre os benefi ciários efectivos, a residência do trustee, quaisquer bens detidos ou geridos pela instituição fi nanceira ou actividade e profi ssão não fi nanceira relacionados com qualquer trustee de fundos fi duciários com o qual tenham uma relação de negócio ou para o qual executem uma operação ocasional.

Pelas suas Recomendações, o GAFI pretende que nos vários países se pro-mova o sancionamento criminal, administrativo ou civil do incumprimento dos deveres que recaem sobre os trustees, em particular no tocante à obrigação de colocar à disposição das autoridades competentes, em tempo útil, as infor-mações sobre os trusts.

V. Da Directiva (UE) 2015/849

A Directiva (UE) 2015/849, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Maio, é a quarta directiva destinada a fazer face à ameaça do branqueamento de capitais. Segue a revisão de Fevereiro de 2012 operada nas Recomendações pelo GAFI.

Entre as medidas de diligência quanto à clientela, avulta «A identifi cação do benefi ciário efectivo e a adoção de medidas razoáveis para verifi car a sua identidade para que a entidade obrigada obtenha conhecimento satisfatório sobre a identidade do benefi -ciário efectivo, bem como, em relação às pessoas colectivas, aos fundos fi duciários (trusts), a sociedades, a fundações e a centros de interesses colectivos sem personalidade jurídica similares, a adopção de medidas razoáveis para compreender a estrutura de propriedade e de controlo do cliente» – artigo 13.º, n.º 1, alínea b).

A verifi cação da identidade do cliente34 e do benefi ciário efectivo deve ser efectuada antes do estabelecimento de uma relação de negócio ou da realiza-ção da operação ou, excepcionalmente, durante esse estabelecimento. Estando dispensados desta obrigação «os notários, outros membros de profi ssões jurídicas inde-pendentes, os auditores e revisores ofi ciais de contas, técnicos de contas externos e consul-tores fi scais, apenas na estrita medida em que essas pessoas estejam a apreciar a situação

33 Tratando-se de trustees não profi ssionais e das outras autoridades, pessoas e entidades referidas, existe o dever de conservar estas informações durante pelo menos cinco anos.34 Novo ou já existente.

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jurídica do cliente ou a defender ou representar esse cliente em processos judiciais ou a respeito de processos judiciais, mesmo quando se trate de prestar conselhos quanto à forma de instaurar ou evitar tais processos» (artigo 14.º).

As sociedades e outras pessoas colectivas, bem como os administradores fi duciários dos express trusts35, estão obrigados a obter e conservar informações sufi cientes, exactas e actuais sobre os seus benefi ciários efectivos, incluindo dados detalhados sobre os interesses económicos detidos. Como, outrossim, terão que apresentar às entidades obrigadas, além das informações sobre o proprietário legal, informações sobre o benefi ciário efectivo, quando aquelas tomarem medidas de diligência quanto à clientela.

As informações sufi cientes, exactas e actuais sobre os benefi ciários efec-tivos, conservadas num registo central em cada Estado membro (ex: registo comercial), podem ser consultadas em tempo útil pelas autoridades competen-tes36, sem restrições. Mas também por quaisquer pessoas ou organizações que possam provar um interesse legítimo37, as quais terão acesso, pelo menos, ao nome, mês e ano de nascimento, nacionalidade e país de residência do benefi -ciário efectivo, bem como à natureza e extensão do interesse económico detido (artigo 30.º).

Os administradores fi duciários dos express trusts estão obrigados a obter e conservar informações sufi cientes, exactas e actuais sobre os benefi ciários efec-tivos do trust. Essas informações incluem a identidade do fundador, do admi-nistrador ou administradores fi duciários, do curador (se aplicável), dos bene-fi ciários ou categoria de benefi ciários, e de qualquer outra pessoa singular que exerça o controlo efectivo do trust (artigo 31.º).

VI. Por terras de Sua Majestade

Toda a reforma legislativa na área das sociedades do Reino Unido, operada pelo Small Business, Enterprise and Employment Act 2015 (The Act), foi prevista para estar totalmente implementada até Abril de 2016. Enquanto os demais Estados membros da União Europeia se comprometeram a pôr em vigor as

35 No caso dos administradores fi duciários dos express trusts estão obrigados a obter e conservar informações sufi cientes, exactas e actuais sobre os benefi ciários efectivos do trust. Essas informações incluem a identidade do fundador, do administrador ou administradores fi duciários, do curador (se aplicável), dos benefi ciários ou categoria de benefi ciários, e de qualquer outra pessoa singular que exerça o controlo efectivo do trust.36 Em cada Estado e entre Estados.37 Por exemplo, as entidades obrigadas, quando tomam medidas de diligência quanto à clientela.

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disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à Directiva até 26 de Junho de 2017.

A grande maioria das empresas no Reino Unido está obrigada a identifi car e a manter, desde Janeiro de 2016, um registo sobre as pessoas com um con-trolo signifi cativo (persons with signifi cant control ou PSC’s). Ou seja, todo aquele que, em última instância possui ou controla mais de 25% das acções ou direitos de voto de uma empresa, ou que detém o poder de nomear ou remover a maioria dos administradores (directors), ou que, de outro modo, exerce controlo sobre uma empresa ou a sua gestão.

Esta obrigação também se aplica aos sócios ou membros das Limited Liability Partnership (LLP’s), sociedades colectivas de responsabilidade limitada, geral-mente constituídas por profi ssionais (exs: contabilistas, auditores, advogados).

Haverá uma isenção para as empresas cotadas em mercado regulamen-tado, sujeitas que estão às regras de divulgação da União Europeia – no Reino Unido, relatam pelas Disclosure and Transparency Rules (DTR 5) – ou a normas internacionais equivalentes.

Fornecida esta informação ao registo comercial (Companies House), o PSC Register disponibiliza-a, pública e gratuitamente, online, na sua totalidade. Ou seja, para já, mais além do que o previsto na Directiva comunitária. E também mais cedo, a partir de Abril de 2016.

A partir de Junho de 2016, as entidades abrangidas pelo PSC Register provi-denciarão a informação à Companies House como parte do seu novo confi rmation statement, que veio substituir, o Annual Return, confi rmando ou alterando os elementos cadastrais, pelo menos, em cada doze meses. O mesmo é dizer, as autoridades britânicas fi cam munidas de um registo actualizado sobre os accio-nistas e administradores das sociedades.

Com oportunidade, foi implementada já desde Outubro de 2015 a redução do período de dissolução (stricke-off ) da sociedade que tenha visto o primeiro aviso publicado pela Companies House que, salvo alguma objecção, será removida daquele registo comercial. O que obrigará a que os registos das sociedades, onde se incluem as novas obrigações acima descritas, sejam cumpridos em tempo.

Por outro lado, são abolidas as acções ao portador ou acções emitidas sem registo do seu proprietário, em que a propriedade era estabelecida pela posse física do mandato (share warrant). Desde Maio de 2015, as sociedades britânicas estão proibidas de emitir acções ao portador e mesmo os accionistas ao portador já existentes têm um prazo de nove meses para efectuar a conversão, entre-gando as acções à sociedade em troca de acções nominativas.

A utilização de sociedades na administração de outra sociedade (corporate directors), que também permitia uma grande opacidade, passa a estar vedada a partir de Outubro de 2016, exigindo-se que sejam pessoas singulares a admi-

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nistrar uma sociedade, e fazendo-se cessar a nomeação dos ainda existentes e substituí-los por pessoas singulares.

Pela nova legislação, estende-se os deveres de responsabilidade pelos danos da gestão (liability) e de prestação de contas (accountability) àqueles cujas instru-ções o board da sociedade está acostumado a pôr em prática – conhecidos por shadow directors (que poderíamos traduzir por “administradores na sombra”). Trazendo, assim, uma maior clareza e compreensão acerca dos seus deveres legais, perante os diversos stakeholders.

Estas disposições entraram em vigor em 26 de Maio de 2015. Os envol-vidos nas estruturas de gestão, nomeados ou por conta (estes últimos, nominee directors), os controlling shareholders38, ou outros com infl uência signifi cativa sobre as decisões de gestão, fi cam assim cientes de que, em algumas circunstâncias, poderão ser convocados, pessoalmente, a cumprir deveres no âmbito de uma responsabilidade pessoal.

Para a destituição judicial do cargo de director passam também a concor-rer as infracções cometidas pelo mesmo no estrangeiro, podendo causar-lhe a expulsão ou impedimento de actuar como administrador no Reino Unido. Donde a importância dos procedimentos de KYC (Know Your Customer) que as empresas devem implementar no seu seio de modo a protegê-las contra os riscos reputacionais, operacionais e legais. Acresce ainda que, se um director é destituído por razão da infl uência ou controlo exercidos sobre ele por outrem, inidóneo (por exemplo, um accionista signifi cativo que, de facto, actua como shadow director, ainda que, formalmente, não pudesse administrar a empresa) este também passa a ser impedido, judicialmente, de actuar como se de um administrador se tratasse.

VII. O levantamento da personalidade jurídica colectiva

A revelação dos benefi ciários efectivos das entidades societárias ou outras, expondenciada pelos apontados desenvolvimentos legislativos a que se vincula-ram os Estados membros da União Europeia e, em particular os implementados no Reino Unido, pela relevância dos trusts e dos serviços fi duciários admitidos no Common Law, faz emergir a pertinente questão do levantamento da perso-nalidade jurídica colectiva. Basta recordar, por exemplo, as sociedades consti-tuídas com o intuito de salvaguarda de bens patrimoniais, com guarida numa jurisdição em que os serviços fi duciários asseguram a confi dencialidade sobre

38 Accionistas que interferem na gestão (management) da empresa.

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o benefi cial owner, não residente, ante o risco ou evidência da responsabilidade por dívidas, civis ou tributárias. A que os anglo-saxónicos chamam ring fencing.

Consabidamente, a personalidade jurídica da pessoa colectiva defi ne-se como a susceptibilidade de esta ser titular de direitos e obrigações, nos termos do artigo 5.º, do Código das Sociedades Comerciais (CSC), mas corporiza-se pela vontade dos seus membros. No caso das sociedades, a autodeterminação resulta da determinação dos administradores ou gerentes, acobertados pelos poderes de representação que a lei e os estatutos lhes conferem.

Enquanto nas sociedades de maior dimensão os sócios poderão até nem intervir ou infl uenciar a gestão, mais profi ssionalizada, nas demais é frequente aqueles assumirem, pessoalmente, os cargos de administração ou gerência, mesmo que não remunerada.

De qualquer modo, a personalidade jurídica reconhecida à pessoa colectiva implica uma separação patrimonial e uma correlativa limitação da responsabili-dade dos sócios, como se obseva nas sociedades por quotas ou anónimas. Assim, é o património social que responde, perante os credores, pelas dívidas da socie-dade, nos termos dos artigos 197.º, n.º 3, e 271.º, ambos do CSC.

Mesmo quanto às dívidas fi scais, a responsabilidade pelas mesmas cabe, sub-sidiariamente, aos «administradores, directores e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas colectivas e entes fi scalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas», por meio da reversão do processo de execução fi scal (artigo 24.º, da Lei Geral Tri-butária). Podendo os sócios ou membros considerar as dívidas como coisa alheia.

Não obstante, esta limitação a benefício do sócio apenas terá uma ponde-rosa razão de ser na medida em que a sociedade prossiga os seus fi ns ou interes-ses e não os do sócio. Se assim não acontece, o Direito há-de estar municiado de um expediente técnico que, ultima ratio, assegure a reposição da legalidade, protegendo a sociedade, atingida no seu objecto e património, bem como os ter-ceiros de boa-fé (os demais sócios, os fornecedores, os clientes, os trabalhadores, o Estado), e não permitindo que tal sócio se respalde numa forma alheada da substância. É o levantamento39 da personalidade jurídica, por reacção ao abuso da responsabilidade limitada.

Cumpre recordar que um contrato de sociedade «é aquele em que duas ou mais pessoas se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício em comum de

39 Tal como António Menezes Cordeiro, em O Levantamento da Personalidade Colectiva, no Direito Civil e Comercial, Coimbra, Almedina, 2000, p. 102-103, preferimos esta denominação, em lugar da desconsideração. Mais do que desatendida ou derrogada, a personalidade jurídica é levantada, por delimitação negativa da personalidade jurídica colectiva. No Direito anglo-saxónico, o instituto é conhecido, por exemplo, por disregard of corporatness.

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certa actividade económica, que não seja de mera fruição, a fi m de repartirem os lucros resultantes dessa actividade» (artigo 980.º, do Código Civil).

Como vimos, a interposição de uma sociedade trading no exterior pode servir para aumentar, artifi cialmente, os gastos na sociedade nacional (e/ou, acrescentamos, reduzir o valor declarado das vendas de bens ou prestações de serviços) e assim provocar a erosão da base tributável, diminuindo o imposto a pagar. Vindo, posteriormente, os valores excedentários subtraídos ao Fisco a ser transferidos40 para conta bancária de uma sociedade domiciliada em jurisdição off -shore e da qual o sócio é o ultimate benefi cial owner.

Entendemos que esta descapitalização não deve ser resolvida apenas no âmbito da responsabilidade dos administradores ou gerentes perante a socie-dade, mas também na esfera dos sócios, através do levantamento da personali-dade colectiva, em favor, directamente, dos credores41. Estaremos aqui perante um «atentado a terceiros»42, designadamente, ao credor Estado.

Conforme, de modo lapidar, sancionou o Tribunal da Relação de Lisboa, em Acórdão de 3 de Março de 2005 (Proc. n.º 1119/2005-6):

«I – Na apreciação da Personalidade da Pessoa Colectiva, a limitação legal da sua res-ponsabilidade deve ser usada para a satisfação dos fi ns sociais, para que foi criada e quando assim não aconteça a sua personalidade, não pode deixar de ser desconsiderada, para evitar com o abuso prejuízo de terceiros. Quando o abuso se mostre evidente, deve haver desconsi-deração, devendo o instituto desdobrar-se em dois grupos de abusos: A invocação abusiva da limitação da responsabilidade e o prejuízo causado ao património social».

II – Existe abuso da limitação da responsabilidade, quando alguém invocar e insistir na autonomia patrimonial da Sociedade usando e abusando da limitação da responsabilidade dela em seu favor e em prejuízo dos credores da Sociedade, desrespeitando a limitação da responsabilidade, através de alguém que realiza na prática os negócios controlando a Socie-dade, sem aparecer como administrador ou gerente (homem culto) actuando através de pessoas fi ctíciais “Off shores”, ou de gerente fi cticiamente designado, o marido da sua empregada doméstica (homem de palha). Era (…) que através de procuração com todos os poderes, para tudo poder fazer, que actuava em nome da Sociedade».

40 Vimos, por exemplo, que no Reino Unido o pagamento de dividendos a uma sociedade não residente, mesmo que sedeada em off -shore, não é tributado. Não só ocorrerá uma evasão fi scal em sede de IRC, como de IRS, pois assim o sócio furta-se a suportar imposto sobre os dividen-dos auferidos.41 Como vimos, a descapitalização da empresa teve como medida correlativa o enriquecimento ilícito do sócio.42 António Menezes Cordeiro, em Código das Sociedades Comerciais Anotado, Coimbra, Alme-dina, 2014, p. 25.

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Ou seja, o desvirtuamento do princípio da autonomia patrimonial faz com que a sociedade seja titular dos deveres e obrigações perante terceiros e não o seu sócio, tornando-se assim mister que os efeitos dos actos lesivos praticados atinjam o sócio.

O nosso ordenamento jurídico permite o levantamento da personalidade jurídica, de modo que os sócios respondam por actos praticados com abuso do direito: «É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fi m social ou económico desse direito» (artigo 334.º, do Código Civil).

Do mesmo modo que se pode afastar a personalidade jurídica do ente societário, devedor principal, para acossar o património dos sócios (levanta-mento “directo”), será de admitir que se possa também levantar o véu do deve-dor para se atingir o património que tenha sido transferido para uma sociedade (por exemplo, domiciliada num paraíso fi scal). Esta última modalidade surge designada na doutrina brasileira como “desconsideração inversa”.

Por outro lado, o Direito Civil acolhe uma defi nição ampla da fi gura da simulação, onde poderão ter cabimento os vários tipos e subtipos de que se pode revestir: «Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado» (artigo 240.º, n.º 1, do Código Civil). Assim, se por acordo entre declarante e declaratário e no intuito de enganar terceiros, houver diver-gência entre a vontade exterior ou declarada e a vontade interna ou real do declarante, o negócio diz-se então simulado, com a consequência da nulidade.

A esta luz, a simulação é composta por três elementos diferenciadores e estruturantes:

i) o acordo entre os contraentes (pacto simulatório) com o propósito de criar uma falsa aparência de negócio;

ii) a divergência entre a vontade declarada (negócio exteriorizado) e a vontade real (negócio efectivamente celebrado);

iii) o intuito de enganar terceiros.

Pela estruturação societária com a interposição de sociedades instrumentais e de sociedades recipientes, em outras jurisdições, de preferência com serviços fi duciários acoplados para não serem conhecidos os benefi ciários fi nais, e assim subtraídos valores às sociedades nacionais, encontramos na fi gura da simulação (civil ou tributária43) aqueles mesmos elementos.

43 Artigo 39.º, da Lei Geral Tributária.

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Para o que aqui nos pode interessar, existe uma contradição dolosa, bilate-ral, entre a vontade declarada e a vontade real de um negócio jurídico. Com o intuito de, a fi nal, serem frustrados os créditos de terceiro. No caso dos impos-tos, poderá ter-se em vista uma liquidação, entrega ou pagamento de menos ou nenhum tributo, ou mesmo a obtenção, indevida, de benefício fi scal, reem-bolso ou outra vantagem patrimonial44.

No plano tributário, todas as «pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas colectivas e entes fi scalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas» (artigo 24.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária). Cabendo pois à Administração Tributária a imputação ao sócio da prática de actos de administração ou gestão (shadow director).

Uma nota fi nal para lembrar que o direito inglês surge apontado como tendo sido o precursor da teoria da desconsideração, em 1897, com o famoso caso Salomon v. Salomon & Com. Porventura, antevendo a possível derrocada do seu grande estabelecimento, de fabrico de calçado em couro, Aaron Salomon cuidara de emitir obrigações garantidas, que deveriam ser pagas antes de outros em caso de falência, que ele mesmo tratou de adquirir. No momento em que a empresa se revelou insolvente, Salomon, que passara a ser credor privilegiado da sociedade em razão dos títulos que ele mesmo emitiu, obteve preferência em relação a todos os demais credores (que não tinham garantia), liquidando o património da própria empresa e não precisando de pagar as dívidas.

Mr. Aaron Saloman, podemos hoje dizê-lo, não fi cou recordado pelas suas boas intenções, mas porque tinha conseguido reunir dinheiro, utilizando a sua própria empresa como proteção para lesar os demais credores. Afi nal, o fenó-meno de dissociação entre propriedade e interesse, que a cultura anglo-saxónica tanto tem prodigalizado. As alterações implementadas, repetimos, são históri-cas, mas uma coisa é certa: business as usual…

VIII. Bibliografi a

Amaral, Diogo Freitas do – História do Pensamento Político Ocidental, Almedina, Coim-bra, 2011.

— Manual de Introdução ao Direito, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2012.

44 Temos pois uma identifi cação da simulação tributária com a simulação civil, no que respeita ao essencial dos traços conceptuais da fi gura na sua proveniência. Não obstante, esse desejável alinha-mento está longe de esgotar o sentido da fi gura da simulação no âmbito tributário. Por exemplo, neste último a simulação acontece também em negócios jurídicos que não cabem na simulação civil – por exemplo, os negócios unilaterais.

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