MARIA CREUSA DE ARAJO BORGES
ARTICULAO ENTRE DISCURSOS GLOBAIS E LOCAIS NA DEFINIO DA
INTERPRETAO LEGTIMA DE UNIVERSIDADE NAS PROPOSTAS DE
REFORMA DA EDUCAO SUPERIOR NO BRASIL
Recife/2007.
2
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA
DOUTORADO EM SOCIOLOGIA
ARTICULAO ENTRE DISCURSOS GLOBAIS E LOCAIS NA DEFINIO DA
INTERPRETAO LEGTIMA DE UNIVERSIDADE NAS PROPOSTAS DE
REFORMA DA EDUCAO SUPERIOR NO BRASIL
Maria Creusa de Arajo Borges
Recife/2007.
Tese elaborada sob orientao da Prof Dr Silke Weber e apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco para a obteno do grau de Doutor em Sociologia.
3
BANCA EXAMINADORA
Profa. Dra. Silke Weber Presidente
Prof. Dr. Luiz Antnio Cunha Examinador Externo
Prof. Dr. Alfredo Gomes de Macedo Examinador Externo
Prof. Dr. Jorge Ventura de Morais Examinador Interno
Prof. Dr. Jos Carlos Vieira Wanderley Examinador Interno
4
Maria Fernanda, minha filha.
5
AGRADECIMENTOS
Aps um longo percurso de quase cinco anos, uma verdadeira luta para concluir o
curso de doutoramento
nesse perodo, fiz concurso pblico para ingresso numa
universidade pblica federal, em outro estado da federao, tomei posse como professora,
tive uma filha, ingressei no Mestrado em Direito
ou seja, muitas transformaes em curto
espao de tempo. Ento, para cursar e concluir o doutorado, obtive a ajuda de muitas pessoas
- esposo, amigos, famlia e colegas -, que se propuseram a caminhar juntamente comigo
nessa empreitada acadmica.
Em primeiro lugar, agradeo a Deus, pois rezei bastante, principalmente, nos
momentos de maior dificuldade;
Agradeo aos meus pais por terem me oportunizado um ambiente, no lar, propcio
ao desenvolvimento afetivo, social e intelectual, alm de me estimularem na realizao de
meus estudos;
Ao meu esposo, Carlos Luiz Aleluia, por ter me oportunizado apoio financeiro e
emocional. Sem esse apoio, as dificuldades teriam sido maiores;
Agradeo aos meus professores da Universidade Federal de Pernambuco, em
especial, aos professores Clia Salsa, minha orientadora do mestrado; Eliete Santiago; Jos
Batista Neto, por acreditarem no meu potencial e exigirem o mximo de mim;
minha orientadora do doutorado, professora Silke Weber, por ter construdo uma
relao respeitosa, de dilogo profcuo na construo desta tese;
s minhas amigas Maria Patrcia Freitas de Lemos e Roseane Nascimento que,
desde a graduao, me acompanham e sempre acreditaram no meu potencial;
Aos professores Jorge Ventura, Paulo Marcondes e Cinthya Hamlin, por terem
contribudo, em suas disciplinas, na construo da abordagem sociolgica desta
investigao, por intermdio das discusses e do dilogo respeitoso;
Aos colegas da turma do doutorado, em especial, Pricles, Ana Virgnia, Silvana,
Maria Lcia, Emlio, que, sempre, estabeleceram uma relao de amizade e respeito,
oportunizando momentos de estudo e de descontrao;
Aos colegas do Programa de Ps-graduao em Sociologia, em especial, Rui,
Marcelo e Rogrio, por me ajudarem bastante nas conversas descontradas e no uso do
laboratrio;
6
s professoras, colegas e amigas, integrantes do Grupo de Pesquisa Educao e
Sociedade, da Universidade Federal de Pernambuco, por terem me oportunizado os
encontros de estudos, bastante descontrados, sem esquecer os almoos realizados nos mais
diferentes lugares. Conheci vrios restaurantes de Recife atravs desses encontros. Um
agradecimento especial professora Maria da Salete Barboza, companheira de estudos e de
viagens.
Luciana, minha secretaria. Sem ela, no restam dvidas, eu no poderia
desenvolver meus estudos;
CAPES, instituio que me concedeu uma bolsa de estudos durante um ano do
curso de doutorado.
7
RESUMO
Inserida no campo de estudos sociolgicos sobre o papel da instituio universitria na sociedade contempornea, esta tese problematiza questes relativas construo social de discursos sobre a universidade por parte de organismos e instituies internacionais e entidades nacionais no contexto de reforma da educao superior em curso no Brasil, tendo como unidade de anlise quarenta propostas de reforma da educao superior, vinte e duas internacionais e dezoito nacionais. O processo de anlise contempla os discursos em contenda, as temticas colocadas na agenda de discusso sobre a reforma e seus protagonistas, considerados interlocutores autorizados e legtimos, partcipes do campo da educao superior brasileiro. A abordagem sociolgica bourdieusiana constitui a referncia terico-metodolgica principal, cujas noes e conceitos, como campo, posio, condies materiais e simblicas so utilizados no estudo dos discursos dos interlocutores da reforma, anlise complementada com a proposta terica de Fairclough, o qual focaliza o discurso a partir da considerao de trs momentos interdependentes: o discurso como texto, como prtica discursiva e como prtica social. A anlise se volta para as temticas colocadas na agenda de debate; a relao entre as temticas e seus interlocutores; as concepes de educao superior, sobretudo, de universidade, defendidas por esses interlocutores; as orientaes/recomendaes indicadas para a reestruturao da universidade na sociedade brasileira e as posies, no campo em referncia, equivalentes e divergentes quanto matria. A disputa pela definio da interpretao legtima de universidade depende do poder de mobilizao dos interlocutores, avaliado, nesta tese, em termos do acolhimento ou no de suas propostas nas verses do anteprojeto de lei e no PL 7.200/2006 do MEC. So utilizadas, tambm, referncias discursivas globais, representadas pelo BIRD, UNESCO, OMC e agentes e instituies do Processo de Bolonha nas estratgias de luta dos interlocutores nacionais, fundamentando suas posies sobre as concepes de universidade. Entretanto, no se pode afirmar, apenas, que existe uma reproduo de interpretaes, advindas de campos exteriores ao brasileiro. H, por outro lado, a presena de temas globais, os quais se impem nas propostas de reforma dos interlocutores nacionais e de temas especficos, prprios do campo da educao superior brasileiro. Configura-se, pois, uma articulao entre discursos globais e locais nas diferentes propostas de reforma nacionais, no processo de luta em torno da concepo de universidade, onde, somente, algumas instituies detm as condies materiais e simblicas, necessrias definio social legtima de instituio universitria.
Palavras-chave: Reforma da educao superior. Concepes de universidade. Discurso. Bourdieu.
8
ABSTRACT
Inserted in the field of sociological studies on the role of university institutions in the contemporary society, this thesis denounces questions related to the social construction of discourses about the university, from organisms and international institutions and national entities in the context of the reform of higher education uphold in Brazil, based on the unit of analysis of forty proposals of reform of the higher education; twenty two international and eighteen national ones. The review process includes the discourses in contention, the issues placed on agenda for the discussion about reform and its protagonists, considered authorized and legitimate interlocutors, participants from the field of higher education Brazil. The Bourdieusian sociological approach represents the main theoretical-methodological reference, whose ideas and concepts, as field, position, substantial and symbolic conditions, are used in the study of the discourses of the reform interlocutors, analysis complemented by the theoretical proposal of Fairclough, which focuses on the discourse, starting from the consideration of three interdependent moments: the discourse as a text, as a social practice and as a discursive practice. The analysis centers the issues placed on the discourse agenda; the relation between subjects and its interlocutors; the conceptions of higher education, especially, of university, defended by these interlocutors; the guidelines/recommendations indicated by the restructuring of the university in the Brazilian society and the positions, in the field of reference, equivalent and divergent on the subject. The dispute about the definition of the legitimate interpretation of university depends on the power of mobilization of the interlocutors, evaluated, in this thesis, in terms of embracing or not of its proposals in the versions of the draft law and the PL 7,200/2006 of MEC. Global discursive references are also used, represented by IBRD, UNESCO, WTO and agents and institutions of the Bologna Process, in the discussion strategies of the national interlocutors, basing its conceptions of university. However, it can not be affirmed, that there is only a reproduction of interpretations, resulting from fields outside the Brazilian ones. Moreover, there is the presence of global issues, which are required in the proposals of reform from national interlocutors and specific subjects, coming from the field of Brazilian higher education. Therefore, a link between global and local discourses on the different national proposals of reform is set up, in the process of conflicting views on the conception of university, where only a few institutions have the substantive and symbolic conditions, necessary for the legitimate social definition of University.
Key-words: Higher Education reform. Conceptions of University. Discourse. Bourdieu.
9
RESUM
Insre dans le domaine d'tudes sociologiques sur le rle de l'institution universitaire dans la socit contemporaine, cette thse aborde des questions concernant la construction sociale des discours sur l'universit de la part des organismes et des institutions internationales et entits nationales dans le contexte de rforme de l'ducation suprieure en cours au Brsil. Les lments d'analyse de cette thse sont quarante propositions de rforme de l'ducation suprieure, vingt-deux internationaux et dix-huit nationaux. La procdure d'analyse envisage les discours en conflit, les thmatiques places dans l'ordre du jour du dbat sur la rforme et leurs protagonistes, considrs interlocuteurs autoriss et lgitimes, participants du champ de l'ducation suprieure brsilienne. La perspective sociologique bourdieusienne constitue la rfrence thorique et mthodologique principale, dont les notions et les concepts de champ, de position, des conditions matrielles et symboliques sont utiliss dans l'tude des discours des interlocuteurs de la rforme. Cette analyse est complte par la proposition thorique de Fairclough qui focalise le discours partir de la considration de trois moments interdpendants : le discours comme texte, comme pratique discoursive et comme pratique sociale. L'analyse se tourne vers les thmatiques places en dbat ; la relation entre les thmatiques et leurs interlocuteurs; les conceptions d'ducation suprieure, surtout d'universit, soutenues par ces interlocuteurs; les orientations et recommandations indiques pour la rorganisation de l'universit dans la socit brsilienne et les points de vue quivalents et divergents sur le contenu. La dispute pour la dfinition de l'interprtation lgitime d'universit dpend du pouvoir de mobilisation des interlocuteurs. Celui-ci est valu dans cette thse d aprs l acceptation de leurs propositions sur les versions de l'avant-projet de loi et sur le PL 7.200/2006 du MEC. Sont galement utilises les rfrences discoursives globales reprsentes par le BIRD, l UNESCO, l OMC et les agents et les institutions du Processus de Bologne, dans les stratgies de lutte des interlocuteurs nationaux qui basent leurs positions sur les conceptions d'universit. Cependant, on ne peut pas affirmer qu il y a seulement une reproduction des interprtations extrieures au champ d ducation superieure brsilienne. Il y a, d'autre part, la prsence de thmes globaux qui s'imposent dans les propositions de rforme des interlocuteurs nationaux, ainsi que de thmes spcifiques, propres au champ de l'ducation suprieure brsilienne. On configure donc une articulation entre des discours globaux et locaux dans les diffrents propositions de rforme nationaux, dans la procdure de lutte autour de la conception d'universit, o seulement quelques institutions dtiennent les conditions matrielles et symboliques ncessaires la dfinition sociale lgitime d'institution universitaire.
Mots-cl : reforme de l ducation suprieure. Conceptions d'universit. Discours. Bourdieu.
10
LISTA DE SIGLAS
ABC Academia Brasileira de Cincias
ABRUC Associao Brasileira das Universidades Comunitrias
ABRUEM Associao Brasileira dos Reitores das Universidades Estaduais e Municipais
AGCS Acordo Geral sobre o Comrcio de Servios
AID Agency for International Development
ANDES-SN Associao Nacional dos Docentes das Instituies de Ensino Superior
ANDIFES Associao Nacional dos Dirigentes das Instituies Federais de Ensino Superior
ANPED Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Educao
ANUP Associao Nacional das Universidades Particulares
APEX Agncia de Produo de Exportaes e Investimentos
BIRD Banco Interamericano de Reconstruo e Desenvolvimento
BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social
CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior
CEFET S Centro Federal de Educao Tecnolgica
CET S Centro de Educao Tecnolgica
CF Constituio Federal
CONAES Comisso Nacional de Avaliao da Educao Superior
CNE Conselho Nacional de Educao
CNI Confederao Nacional da Indstria
CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico
COPEA Coordenao de Programas de Estudos Avanados da Universidade Federal do Rio
de Janeiro
CRUB Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras
ECTS European Credit Transfer System
ESIB The National Unions of Students in Europe
EUA Estados Unidos da Amrica
FINEP Financiadora de Estudos e Projetos
FMI Fundo Monetrio Internacional
FNDCT Fundo Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico
FUNDEB Fundo de Manuteno da Educao Bsica
GATS General Agreement on Trade in Services
11
GATT General Agreement on Tariffs and Trade
GT Grupo de Trabalho
ICT Instituio Cientfica e Tecnolgica
IES Instituio de Ensino Superior
IFES Instituies Federais de Ensino Superior
INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
IPEA Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada
LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional
MDE Manuteno e Desenvolvimento do Ensino
MEC Ministrio da Educao e Cultura
OMC Organizao Mundial do Comrcio
ONU Organizao das Naes Unidas
PDI Plano de Desenvolvimento Institucional
PDG Plano de Desenvolvimento Gerencial
P&D Pesquisa e Desenvolvimento
PL Projeto de Lei
PNE Plano Nacional de Educao
PROUNI Programa Universidade Para Todos
SBPC Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia
SESu Secretaria de Educao Superior
SINAES Sistema Nacional de Avaliao da Educao Superior
TCU Tribunal de Contas da Unio
UNE Unio Nacional dos Estudantes
UNITWIN University Twinning and Networking
USP Universidade de So Paulo
UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e Cultura
WTO World Trade Organization
12
SUMRIO
AGRADECIMENTOS 5
RESUMO 7
ABSTRACT 8
RESUM 9
LISTA DE SIGLAS 10
NDICE 12
I INTRODUO 15
1.1 A PROBLEMTICA, OBJETO E OBJETIVOS 15
1.2 A ORGANIZAO DOS CAPTULOS 24
II O PROCESSO DE DISCUSSO SOBRE A UNIVERSIDADE NO BRASIL: AS
CONCEPES DE INSTITUIO UNIVERSITRIA 26
2.1 A REFORMA DA EDUCAO SUPERIOR COMO DISCURSO 37
2.1.1 A reforma da educao superior em curso no Brasil: percurso histrico-analtico e
cenrio 49
2.1.1.1 Concepes de educao superior como um direito fundamental, um bem pblico e
como um servio comercializvel: referncias discursivas no processo de reforma 64
III A ABORDAGEM SOCIOLGICA E A METODOLOGIA 79
3.1 CONSIDERAES INICIAIS 79
3.2 A SOCIOLOGIA DE PIERRE BOURDIEU 80
3.2.1 O debate estruturalista e a posio de Bourdieu 80
3.2.2 As noes de campo e de capital 85
3.2.3 O simblico em Bourdieu 88
3.2.4 As crticas abordagem sociolgica de Bourdieu 91
3.3 A CONCEPO DE DISCURSO 94
3.4 A METODOLOGIA SELECIONADA 98
13
3.4.1 Agentes e instituies: a caracterizao do campo da educao superior brasileiro 98
3.4.2 Os interlocutores internacionais e nacionais e as propostas de reforma da educao
superior 101
3.4.3 Os temas de anlise e os objetivos 107
3.4.4 Os critrios de anlise 108
IV OS DISCURSOS GLOBAIS SOBRE A EDUCAO SUPERIOR 113
4.1 INTERPRETAES SOBRE OS PROCESSOS DE GLOBALIZAO 113
4.2 OS PROCESSOS DE GLOBALIZAO NO CAMPO DA EDUCAO 121
4.3 AS CONCEPES DE EDUCAO SUPERIOR E DE UNIVERSIDADE NOS
DOCUMENTOS ANTECEDENTES DO PROCESSO DE BOLONHA 123
4.4 AS CONCEPES DE EDUCAO SUPERIOR E DE UNIVERSIDADE NO
CONTEXTO DO PROCESSO DE BOLONHA 128
4.5 AS CONCEPES DE EDUCAO SUPERIOR E DE UNIVERSIDADE DO
BANCO MUNDIAL 137
4.6 AS CONCEPES DE EDUCAO SUPERIOR E DE UNIVERSIDADE DA
UNESCO 148
4.7 AS CONCEPES DE EDUCAO SUPERIOR E DE UNIVERSIDADE DA
OMC 165
4.8 ANLISE COMPARATIVA DOS DISCURSOS GLOBAIS 176
V OS DISCURSOS LOCAIS E A ARTICULAO GLOBAL-LOCAL 192
5.1 O DISCURSO GOVERNAMENTAL 192
5.2 O DISCURSO DAS ENTIDADES REPRESENTATIVAS DAS INSTITUIES DE
EDUCAO SUPERIOR PBLICAS E PRIVADAS 209
5.2.1 A proposta de reforma da ANDIFES 209
5.2.2 A proposta de reforma do CRUB 215
5.3 O DISCURSO DAS INSTITUIES ACADMICO-CIENTFICAS 218
5.3.1 A proposta de reforma da ABC 218
5.3.2 A proposta de reforma da ANPED 223
5.3.3 A proposta de reforma da SBPC 226
5.4 O DISCURSO ACADMICO-SINDICAL: A PROPOSTA DE REFORMA DO
14
ANDES-SN 228
5.5 O DISCURSO ESTUDANTIL: A PROPOSTA DE REFORMA DA UNE 238
5.6 O DISCURSO DO SETOR PRODUTIVO-INDUSTRIAL: A PROPOSTA DE
REFORMA DA CNI 241
5.7 EIXOS NORTEADORES DO DEBATE SOBRE A REFORMA 252
VI CONSIDERAES FINAIS 257
REFERNCIAS 260
15
I- INTRODUO
1.1 A PROBLEMTICA, OBJETO E OBJETIVOS
Esta investigao tem como objeto de estudo os discursos sociais sobre a
universidade nas propostas recentes de reforma da educao superior no Brasil. Tem como
foco de anlise o campo1 da educao superior conforme se encontra estruturado atualmente,
estruturao2 esta dada a partir da promulgao da Lei n 9.394/1996 (LDB/1996).
Tomando como referncia o campo da educao superior atual, nem todos os
discursos sobre a universidade se constituem em objeto de anlise nas diferentes propostas de
reforma da educao superior, pois os agentes e instituies no detm as condies materiais
e simblicas, condies estas necessrias produo de discursos autorizados, portanto,
legtimos. A universidade, por estar inserida num campo3 em torno do qual so produzidos
discursos que, no seu bojo, pretendem impor uma concepo legtima de instituio
universitria e de seu modo de insero na sociedade, alvo de proliferao de construes
discursivas. Tem-se como pressuposto que somente determinadas instituies esto em
situao de colocar em pblico suas concepes e modelos de universidade, participando de
construes discursivas, tanto locais como globais, sobre a educao superior, e, nesse
sentido, so delas que so selecionados os discursos que constituem objeto desta pesquisa.
1 A utilizao da noo de campo justificada pela opo terico-metodolgica assumida nesta investigao, opo esta baseada na lgica de anlise do social prpria da abordagem bourdieusiana. Sobre essa noo, ver os trabalhos de Bourdieu, entre outros: Os usos sociais da cincia: por uma sociologia clnica do campo cientfico (2004); O poder simblico (2003); La noblesse d tat: grandes ecoles et esprit de corps (1989); Homo academicus (1984). 2 O estudo do processo de estruturao do campo da educao superior brasileiro foi realizado por Cunha em seus diversos trabalhos sobre a educao superior, tais como A universidade tempor (1980); A universidade crtica (1983); A universidade reformanda (1988), trabalhos estes que tm como foco de anlise as diversas fases de desenvolvimento da educao superior no Brasil. 3 Cunha (2005) discute se, efetivamente, a universidade se insere num campo especfico, colocando no debate a questo de que a instituio universitria partcipe de vrios campos, tais como: o campo educacional, profissional, pesquisa, cultural e poltico-partidrio. Nesta investigao, se analisa a insero da universidade num campo especfico, o campo da educao superior, e as relaes estabelecidas entre diferentes instituies no interior do campo em referncia. No se relega, portanto, a posio de Cunha, mas apenas se focaliza em um campo especfico, campo este que no deixa de se relacionar com os diferentes campos citados pelo autor.
16
Uma primeira aproximao com o campo de estudo nos indica a necessidade de
considerarmos quais agentes e instituies apresentam condies legtimas de produzir
propostas sobre a universidade, pois, como mencionado, nem todos os interlocutores detm
condies materiais e simblicas de se expressarem socialmente por meio de propostas
sistematizadas que versam sobre uma instituio que, por sua importncia scio-cultural,
interfere na produo de vises de mundo, participando do processo de luta pela conservao
e/ou transformao das relaes sociais. Em segundo lugar, as diferentes propostas de
reforma partem de um referencial, de pressupostos epistemolgicos, ticos e polticos que
traduzem a viso de mundo, as crenas e os valores dos seus proponentes. Em terceiro lugar,
os diferentes interlocutores partem de um diagnstico da atual fase vivenciada pela
universidade, trazendo consigo uma concepo de universidade e se esforam para impor e
tornar legtima essa concepo. Em quarto lugar, ao partirem de um diagnstico, as diferentes
instituies propem alternativas para a reforma da educao superior e, mais
especificamente, da universidade e essas alternativas constituem o alvo de lutas maiores, pois
esto em jogo os rumos, a direo a ser tomada pela instituio universitria e de seu modo
de insero no social, como instncia produtora de cultura, como instituio superestrutural e,
por isso, produtora de sentidos sobre o mundo e balizadora de posies sociais.
As diferentes propostas de reforma da educao superior, pela linguagem utilizada,
pelos termos empregados, pelas temticas colocadas em pauta, pelos interlocutores
autorizados, constituem propostas socialmente determinadas. As instituies envolvidas no
ocupam posies igualitrias no campo da educao superior, pois estas esto fundamentadas
nas condies materiais e simblicas, as quais possibilitam a entrada de uma determinada
instituio na qualidade de proponente, de interlocutor, de protagonista no processo de
discusso sobre os rumos da universidade no Brasil. O que esto sendo colocadas, como
objeto de luta, so as diferentes interpretaes sobre o sentido e os fins sociais da instituio
17
universitria (CHAU, 2001). Interpretaes estas fundamentadas nas diferentes posies
ocupadas pelas instituies no espao das posies de poder. O que vai ser discutido, no
sentido de sua relevncia, consiste tambm em objeto de lutas e, portanto, est relacionado
com o poder de mobilizao das instituies. Nas palavras de Bourdieu (2001b,p. 35), "a
definio (...) dos temas dignos de interesse um dos mecanismos ideolgicos que fazem com
que (...) temas no menos dignos de interesse no interessem a ningum, ou s possam ser
tratados de modo envergonhado ou vicioso".
Nessa perspectiva, esta investigao parte do pressuposto de que os discursos sobre
a universidade, nas propostas de reforma da educao superior, a partir da segunda metade
da dcada de noventa do sculo XX, se constitui como um campo de luta, cujo objetivo
consiste na definio da concepo de universidade legtima e de seu modo de insero na
sociedade brasileira.
A instituio universitria, desde as suas origens na Idade Mdia europia, esteve
ligada ao poder poltico, caracterstica que tem sido uma de suas marcas principais. Sempre
exerceu funes ideolgicas e polticas (CHAU, op. cit.). O fato que essas funes nem
sempre foram as mesmas, mas, pelo contrrio, so determinadas historicamente. A
universidade de cunho liberal, por exemplo, que tem como base a formao de elites
dirigentes, no se apresenta mais como uma concepo consensual, pelo menos como nico
modelo ou como um modelo predominante de instituio universitria, cujo acesso se baseia
numa mistura de privilgio e de mrito. Nesse sentido, diferentes propostas, com diferentes
concepes de universidade, so colocadas em campo de disputa4.
No contexto de proliferao de discursos sobre a universidade, nas diferentes
4 Na sociedade brasileira, nunca existiu, de fato, a implantao de um modelo homogneo de educao superior. A coexistncia de concepes diversas constitui uma realidade, mesmo que a produo de conhecimento e a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extenso sejam propaladas como o padro de referncia da universidade no Brasil, isto porque assegurado pela Constituio Federal de 1988, art. 207. Entretanto, como afirma Martins (2000), o modelo universitrio constitui parmetro legtimo de organizao da educao superior no Brasil, integrando, predominantemente, o imaginrio acadmico nacional, mesmo que o processo dominante de constituio da educao superior tenha se efetivado mais pela aglutinao de cursos pr-existentes, do que pela formao de uma verdadeira universidade.
18
propostas de reforma da educao superior no Brasil, a presente investigao coloca a
seguinte problemtica: como so concebidos e construdos esses discursos, quais discursos
se contrapem, quais temticas so colocadas na agenda poltica e quais protagonistas
participam - ou esto em condies de participar - da construo de interpretaes legtimas
sobre a direo a ser tomada pela instituio universitria?
Os objetivos da pesquisa so os seguintes:
Retraar o processo de construo e de concepo dos discursos sobre a universidade
nas propostas de reforma da educao superior no Brasil, discursos estes construdos
a partir do ano de 20035, identificando os discursos em contenda, as temticas
colocadas em pauta e seus protagonistas, bem como a posio dos mesmos no
interior do campo em referncia;
Captar os pressupostos norteadores desses discursos e analisar as concepes e os
modelos de universidade propostos pelas instituies partcipes do processo de
reforma, processo este desencadeado, de forma sistemtica, em 2003, no Brasil.
Nesse mbito, a pesquisa tem como foco a anlise dos discursos das entidades
representativas dos interesses das instituies de educao superior pblicas e privadas; dos
discursos das instituies acadmico-cientficas; da instituio acadmico-sindical; dos
estudantes; do setor produtivo-empresarial e governamental.
A escolha dessas entidades e instituies se deu em virtude de vrios aspectos.
Primeiramente, participaram do processo de discusso da reforma da educao superior,
retomado em 2004, enviando propostas para o Ministrio da Educao do Brasil, 97
(noventa e sete) entidades e 29 (vinte e nove) pessoas fsicas, perfazendo um total de 126
5 O ano de 2003 consiste num ano fundamental para o processo de reforma da educao superior no Brasil, pois se trata de um ano em que foram realizados os conhecidos Seminrios Temticos, tais como o Seminrio Universidade: Por que e como reformar? (agosto, 2003) e o Seminrio Internacional Universidade XXI (novembro, 2003). Esses seminrios constituem um marco referencial no atual processo de reforma, colocando, na agenda de debate, temticas e recomendaes que se encontram presentes em documentos, propostas e nas verses do anteprojeto de lei da reforma da educao superior.
19
(cento e vinte e seis) contribuies ao anteprojeto de lei da educao superior. Em segundo
lugar, as propostas envolvem interlocutores de diferentes nveis de potncia de poder - ou
numa linguagem bourdieusiana, com posses desiguais de capital social -, muitas vezes, no
sendo contemplados, no anteprojeto e, posteriormente, na verso final do PL n 7200/2006,
encaminhado ao Congresso Nacional, os pontos de vista desses agentes e instituies, em
virtude da posio e do poder de imposio que detm no campo da educao superior.
Portanto, na definio das instituies, se levou em considerao a posio dos diferentes
proponentes no referido campo; a capacidade de se fazer escutar que cada interlocutor
detm, analisada em termos das temticas, concepes e recomendaes colocadas em pauta
e do posterior acolhimento das mesmas nas verses do anteprojeto e no projeto final e a
presena dessas instituies, no cenrio nacional, como interlocutores autorizados, no
processo de debate sobre os rumos da educao superior e da universidade, especificamente.
Diante do exposto, foram selecionados os discursos de 9 (nove) instituies ou
entidades nacionais, as quais se constituem como interlocutores autorizados no processo de
reforma em curso no Brasil, os chamados protagonistas internos, e 4 (quatro) referncias
discursivas globais, protagonizadas pelo BIRD, UNESCO, OMC e instituies do Processo
de Bolonha, referncias estas que detm um alto poder de imposio de temticas, de
concepes e recomendaes sobre a universidade no campo da educao superior
brasileiro. Entretanto, no significa dizer que foram analisados 13 (treze) documentos, pois
cada protagonista, na maioria das vezes, elaborou vrias propostas sobre a reforma em curso,
as quais, conjuntamente, constituem a posio de cada interlocutor sobre a matria.
Definidos os aspectos que nortearam a escolha das instituies participantes, como
proponentes de discursos legtimos sobre a universidade, nas diferentes propostas recentes
de reforma da educao superior no Brasil, so detalhadas as referidas entidades e
instituies, cujos discursos constituem objeto de estudo. A fim de localizar os interlocutores
20
legtimos, num primeiro momento, se coloca uma espcie de mapeamento desses
interlocutores, sem levar em conta a posio que cada um ocupa no processo de discusso,
uma espcie de campo no-posicionado, antes da anlise propriamente dita - se me permitem
fazer uma digresso na noo de campo, j que falar em campo significa se referir a um
espao posicionado, um espao estruturado de relaes objetivas entre as posies ocupadas
pelos diferentes agentes e instituies.
As entidades e instituies nacionais so as seguintes:
Entidades representativas das instituies de educao superior pblicas e
privadas6: ANDIFES (Associao Nacional dos Dirigentes das Instituies Federais
de Ensino Superior); CRUB (Conselho dos Reitores das Universidades Brasileiras);
Instituies acadmico-cientficas: ABC (Academia Brasileira de Cincias); SBPC
(Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia); ANPED (Associao Nacional
de Ps-Graduao e Pesquisa em Educao);
Instituio acadmico-sindical: ANDES-SN (Sindicato Nacional dos Docentes das
Instituies de Ensino Superior);
Instituio estudantil (representao nacional): UNE (Unio Nacional dos
Estudantes);
Instituio que representa os interesses do setor produtivo industrial: CNI
(Confederao Nacional da Indstria);
Instituio governamental: MEC (Ministrio da Educao e Cultura).
Os diferentes blocos de entidades e de instituies no constituem uma fora
homognea e monoltica, se traduzindo em arenas de disputas, nas quais interlocutores
divergentes lutam pela imposio do discurso que vai se tornar legtimo. Por exemplo,
6 Nesta investigao, as entidades pblicas e privadas integram o mesmo bloco pelo fato de se ter tomado como referncia a condio de serem representantes dos diversos tipos institucionais presentes no campo da educao superior brasileiro. Mas, isso no significa dizer que as pblicas e as privadas detm a mesma fora poltica no cenrio de formulao de polticas educativas ao nvel nacional. A esse respeito, ver o estudo de Gomes (2003).
21
mesmo que o CRUB e a ANDIFES estejam agrupados no mesmo bloco - entidades
representativas das instituies pblicas e privadas, representantes dos interesses dos
diversos tipos institucionais presentes no campo da educao superior brasileiro - no detm
o mesmo poder de imposio no processo de discusso sobre os rumos da universidade no
Brasil, pois no ocupam a mesma posio no espao das posies de poder, o campo de
poder. Isso significa dizer que, na anlise dos discursos sobre a universidade, essas
instituies ocuparo posies diferenciadas, mesmo integrando o bloco das entidades.
Gomes (2003) j havia chamado a ateno para o poder que detm essas entidades no
cenrio nacional, influenciando na formulao das polticas estatais referentes educao
superior e, tambm, para o fato de que, em algumas situaes, as entidades privadas
apresentarem um maior poder de imposio do que as pblicas7. Por outro lado, instituies
integrantes de blocos diferentes podero se aproximar no espao das posies de poder, por
defenderem propostas referentes universidade mais ou menos equivalentes. Por exemplo, a
ANDIFES, uma entidade que representa os interesses das instituies federais pblicas,
poder ocupar uma posio mais prxima do MEC, no campo da educao superior, do que
de uma outra entidade. Como sugere Bourdieu (2004: 153), possvel:
(...) comparar o espao social a um espao geogrfico no interior do qual se recortam regies. (...) esse espao construdo de tal maneira que, quanto mais prximos estiverem os grupos ou instituies ali situados, mais propriedades (...) tero em comum; quanto mais afastados, menos propriedades em comum (...). As distncias espaciais - no papel - coincidem com as distncias sociais.
7 Em artigo escrito por Gomes (2003), baseado em estudo de doutoramento, o autor acrescenta uma quarta fora poltica ao modelo triangular de Clark (1983), o qual explica os potenciais de coordenao e controle, no campo das polticas de educao superior, a partir de trs foras: Estado, mercado e academia. Para Gomes, a quarta fora consiste na forma institucional de coordenao, que traduz, em algumas situaes, um forte potencial de coordenao e controle no campo da formulao das polticas de educao superior. Ao revisar o tringulo de coordenao de Clark, acrescentando a forma institucional de coordenao, esta ltima sendo subdividida nos setores federais e privados, pois, para o autor, ambos os setores no possuem a mesma potncia de poder no processo de participao na formulao de polticas de educao superior. Para o autor, as instituies do setor privado apresentam um elevado ndice de potencial de coordenao, influenciando mais incisivamente nas polticas em nvel nacional. No entanto, Gomes localizou, tambm, que, quando certas instituies, representantes de interesses do setor federal ou privado, agem de forma associada, por exemplo ANDIFES e ANDES, o seu potencial de coordenao e sua fora poltica no cenrio nacional passam a ser mais elevados.
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As posies das diferentes instituies, participantes do processo de discusso sobre
a universidade, no interior do campo da educao superior, esto condicionadas s
distribuies de recursos especficos ao referido campo, recursos estes que permitem a
entrada ou no dessas instituies no processo de luta pela imposio da interpretao
legtima de universidade. A possibilidade de mobilizao desses recursos que, segundo
Bourdieu (2001a), se refere ao capital social (econmico, poltico ou simblico) permite o
acionamento de certas redes de relaes, relaes as quais condicionam a construo de
discursos sobre a universidade8. Nessa perspectiva, o campo da educao superior, no qual
est inserida a instituio universitria, se constitui como o lugar de relaes de fora, onde
se observam estratgias de luta pela definio social legtima do que vai continuar sendo
universidade, os requisitos para uma instituio ser denominada universidade e para aquelas
que no tm condies de obterem o status de instituio universitria. No quadro dessa
definio, as diferentes propostas de reforma da educao superior tentam legitimar
interpretaes sobre os rumos da universidade no Brasil, colocando na agenda de debate
questes relativas ao papel social da instituio universitria, produo do conhecimento
na universidade e sua aplicabilidade, interao universidade e setor produtivo, questes estas
que se inserem no contexto de surgimento de novas demandas e presses para a universidade
na chamada sociedade/economia do conhecimento.
Esta investigao, portanto, se prope a ampliar a discusso sobre a temtica da
educao superior, mais especificamente, da universidade nos seguintes aspectos:
primeiramente, no obstante a existncia de um grande volume de estudos, tanto ao nvel
nacional, como internacional sobre a educao superior, sobretudo, a universidade, a
8 A extenso do conceito de capital social, para alm das relaes entre agentes ou pequenos grupos, marca presena na atualizao das aplicaes empricas do referido conceito. Tradicionalmente, as anlises sociolgicas que fazem uso da noo de capital social tm sido baseadas em relaes entre atores ou entre um ator individual e um grupo social. Estudos recentes, sobretudo na rea da Cincia Poltica, tm ampliado o uso do capital social para a anlise das relaes entre comunidades e at naes, enfatizando a dimenso coletiva do capital social. Sobre o assunto, ver: Portes, A. Social capital: its origins and applications in modern sociology (1998).
23
referente temtica ocupa uma posio privilegiada no campo de estudos sociolgicos e
educacionais, no sentido de que integra a agenda de debate contemporneo, fato este
desencadeado, em boa medida, pela relevncia poltica, social e acadmica que esse nvel
educacional tem alcanado na chamada sociedade do conhecimento 9. Segundo, se
utilizando de uma referncia terico-metodolgica baseada na lgica de anlise do social
bourdieusiana, esta pesquisa pretende ampliar o escopo de discusso dessa abordagem
terica, para alm de agentes ou pequenos grupos para instituies de grande monta, como
o caso das propostas produzidas por sindicatos, organizaes estudantis, empresariais,
acadmicas, governamental e entidades representativas dos interesses das instituies de
educao superior privadas e pblicas, alm daquelas de carter internacional. Nessa anlise,
no se relega os aspectos crticos da teoria de Bourdieu, como o caso de sua abordagem se
prestar mais a uma anlise posicionista das relaes sociais do que a uma anlise mais
focalizada nas transformaes dessas mesmas relaes. Terceiro, como esta pesquisa se
insere no campo de estudos do discurso, se pretende analisar o valor heurstico da
abordagem bourdieusiana10 para a anlise de discursos sobre a universidade. Essa proposta,
ao partir de noes como campo, capital, posio, constitui uma referncia terica frtil para
o estudo de diferentes propostas sobre a instituio universitria, produzidas por diferentes
interlocutores, os quais apresentam condies de produo diferenciadas e desiguais.
Complementando a abordagem bourdieusiana, na anlise dos discursos sobre a universidade,
9 A relevncia que as temticas educao superior e universidade tm alcanado na sociedade contempornea exemplificada pela multiplicao de textos e documentos que versam sobre as referidas temticas, produzidos por instituies e organismos internacionais, tais como o BIRD, UNESCO, entre outros; a produo de um arcabouo legal, responsvel pela regulao desse nvel educacional, tambm, retrata a existncia dessa relevncia; o estabelecimento de redes de intercmbio de pesquisadores, de redes de conhecimento, de realizao de projetos de pesquisa com a participao de investigadores de diferentes universidades, a criao de grupos de estudos e de pesquisas institucionais indicam o interesse crescente pela temtica educao superior , sobretudo, pela universidade . 10 Bourdieu, no campo de estudos do discurso, no ocupa uma posio privilegiada, tal como Foucault. Este ltimo se dedica, em seus trabalhos, ao estudo do discurso como objeto principal de anlise. Por sua vez, o foco de anlise de Bourdieu consiste nas questes referentes ao habitus, ao poder simblico, aos diferentes campos que estruturam a realidade social. No livro A economia das trocas lingsticas (1996a), Bourdieu se esfora por analisar o discurso, partindo de uma crtica ao Estruturalismo, relacionando o processo de formulao de discursos com as condies de produo. Estas so analisadas a partir das noes de campo, capital, poder simblico, habitus.
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utilizada a proposta de Fairclough (2001), o qual analisa as prticas discursivas a partir de
trs dimenses, a saber: o discurso como texto, como prtica discursiva propriamente dita e
como prtica social. A essas dimenses, presentes na anlise do discurso, so referidos
procedimentos de anlise diferenciados, tais como a descrio e a interpretao.
Nesse mbito, convm chamar a ateno para o fato de que a produo de sentido
no se realiza num vazio, mas se encontra permeada por relaes de fora simblica - pois o
uso da fora propriamente dita neste campo seria ineficaz -, relaes de fora que se
fundamentam nas posies dos diferentes protagonistas da reforma no campo da educao
superior no Brasil.
1.2- A ORGANIZAO DOS CAPTULOS
Esta investigao se encontra organizada em cinco captulos. No primeiro captulo,
realizada uma introduo, onde so enfatizados o objeto de estudo, a problemtica e os
objetivos, alm de conter, de maneira sucinta, o referencial terico-metodolgico da
pesquisa.
No segundo captulo, intitulado O Processo de Discusso sobre a Universidade no
Brasil: as Concepes de Instituio Universitria, realizada uma incurso histrica, onde
se busca realar os condicionantes histrico-sociais da instituio universitria e os seus
modelos de organizao na sociedade brasileira. Neste captulo, tambm, se processa a
anlise da reforma da educao superior em curso, no Brasil, a partir dos Seminrios
Temticos, concretizados em 2003, bem como so analisadas as referncias discursivas,
relativas s concepes de educao superior, que se colocam no processo de reforma em
curso.
No terceiro captulo, intitulado A Abordagem Sociolgica e a Metodologia,
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discutida a teoria sociolgica, a qual constitui referncia principal na anlise dos discursos
sobre a universidade, bem como o caminho metodolgico utilizado nesta investigao.
No quarto captulo, intitulado Os Discursos Globais sobre a Educao Superior,
so colocadas, primeiramente, as interpretaes sobre os processos de globalizao e so
analisadas as referncias discursivas globais, representadas pelos agentes e instituies do
Processo de Bolonha, BIRD, UNESCO e OMC.
No quinto captulo, intitulado Os Discursos Locais e a Articulao Global-Local,
tem lugar a anlise dos discursos locais e a articulao entre os discursos globais e locais nas
propostas de reforma da educao superior no Brasil.
Por fim, so tecidas as consideraes finais, onde se realiza um exame das
concluses realadas nesta tese, se colocando as vantagens e desvantagens interpretativas da
abordagem bourdieusiana, bem como os interlocutores legtimos e suas interpretaes sobre
a educao superior e a universidade, especificamente.
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II- O PROCESSO DE DISCUSSO SOBRE A UNIVERSIDADE NO BRASIL: AS
CONCEPES DE INSTITUIO UNIVERSITRIA
Falar em universidade, na sociedade brasileira, significa se referir a uma instituio
tardia em comparao s instituies congneres europias. Por conseguinte, a anlise de seu
processo de reforma, nesse mesmo contexto, implica consider-lo, tambm, como um
movimento tardio e de poucas recorrncias11. Nesse contexto, se coloca necessria a
considerao da universidade e de seus modelos de organizao a partir de seus
condicionantes histricos.
As origens da instituio universitria remontam ao sculo XII, isto , no mbito da
sociedade medieval europia, sociedade esta dominada por uma viso de mundo teocntrica,
isto , centrada em Deus. No entanto, a universidade conhecida hoje emerge a partir do
sculo XIX. Vrios movimentos promovem a transio da universidade medieval dos
sculos XII e XIII para a universidade moderna que se institui no sculo XIX nos pases
centrais, sobretudo, europeus.
A instituio universitria, em suas origens medievais, se constitui em torno de uma
catedral e consiste numa corporao de professores e alunos, em que a autonomia e a
liberdade acadmica se encontram presentes. O modelo de universidade medieval tem como
cerne, portanto, o corporativismo, a autonomia diante do poder poltico e da Igreja Catlica
e concentrao da formao nas reas teolgicas e jurdicas (TRINDADE, 1999).
As transformaes ocorridas na Europa, a partir do sculo XV, contribuem para o
desenvolvimento de um modelo de universidade aberto ao progresso das cincias. A
expanso do poder real, a construo do Estado-Nao e a expanso martima e comercial,
isto , sob o signo do ancien rgime e tendo como base uma viso de mundo centrada mais
11 Presencia-se, atualmente, o segundo movimento pela reforma da instituio universitria no Brasil. O primeiro processo reformista ocorre, apenas, na dcada de sessenta do sculo XX, no contexto da ditadura militar, processo este o qual culmina na publicao da Lei n 5.540, de 28 de novembro de 1968.
27
no homem, a instituio universitria vai se distanciar do modelo vigente na sociedade
medieval europia.
Os sculos XVII e XVIII, na Europa, so fundamentais para a constituio da
universidade moderna. O avano cientfico, a Revoluo Industrial Inglesa, a valorizao da
razo, do esprito crtico, bases do movimento Iluminista europeu, contribuem para instaurar
uma concepo de universidade mais prxima dos referenciais modernos e distante do
modelo medieval. O desenvolvimento da cincia como instituio social e do Estado
provoca mudanas na instncia universitria e inaugura novas relaes entre essas
instituies e a universidade. A concepo de universidade que emerge no sculo XIX se
traduz numa instituio baseada em novos princpios de racionalidade, provocados pelo
avano da cincia, se vincula ao poder estatal e suas atividades sofrem interferncia das
relaes entre cincia e Estado. Como afirma Chau (2001), conhecimento e poder so
indissociveis e se traduzem na marca do Ocidente. Portanto, a anlise da universidade, a
partir do sculo XIX, requer inseri-la no contexto das relaes entre cincia e poder estatal.
Seus rumos, a partir da, so interferidos por essas relaes. Sob a tutela do Estado, a
concepo de universidade baseada no trabalho de pesquisa cientfica desinteressado,
articulado ao ensino, amadurece. No entanto, essa nova universidade vai perder em muito a
sua autonomia e passa a se converter numa corporao de professores e alunos tutelada pelo
poder estatal.
Na histria da universidade moderna, dois modelos de instituio universitria se
sobressaem - o modelo germnico e o napolenico. O primeiro foi institudo por Humboldt
na Universidade de Berlim, em 1808, e tem como princpio fundamental a atividade da
pesquisa, princpio este que distingue a universidade de outras instituies de educao
superior. Por sua vez, o modelo napolenico foi institudo na Frana, em 1811, com a
criao da Universidade Napolenica, e tem como foco a formao de funcionrios
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necessrios composio de uma elite indispensvel ao funcionamento do Estado
(HORTALE & MORA, 2004). Trata-se, portanto, de dois modelos de universidade que tm
uma origem histrica especfica, num contexto eurocntrico, mas que obtiveram sucesso em
seu processo de generalizao, alargando sua influncia para outros campos educacionais,
inclusive, no Brasil. Esses modelos se fazem presentes na histria da universidade brasileira,
sendo objeto de disputa por parte das instituies participantes do processo de reforma da
educao superior e da universidade a partir da segunda metade da dcada de noventa do
sculo XX.
No quadro da sociedade brasileira, a instituio universitria surge tardiamente12.
Sociedade esta que foi se constituindo a partir do latifndio de exportao, uso de mo-de-
obra escrava e cultura patriarcal (CHAU, 2001). Esses traos polticos, econmicos e
sociais determinaram o surgimento tardio da universidade no Brasil, tardio at em relao
aos pases vizinhos da Amrica Latina13. Na condio de Colnia de explorao da
metrpole Portugal, restou ao Brasil esperar at o sculo XIX para que fossem criados, em
seu territrio, os primeiros cursos superiores oficiais. A universidade, portanto, na sociedade
brasileira, consiste numa instituio tempor, no dizer de Cunha (1980).
No entanto, ensino superior no significa o mesmo que universidade. Esta se
institucionaliza no Brasil, apenas, a partir da dcada de vinte do sculo XX. Antes, existiam
escolas e faculdades isoladas, voltadas para a formao profissional. Diferentemente, na
Amrica Latina, a universidade se implanta logo aps a conquista espanhola, sendo a
12 No somente a universidade se instalou tardiamente no Brasil. A instituio de um sistema pblico de ensino foi uma conquista do sculo XX, implantao que se deu em decorrncia das lutas progressistas da dcada de trinta, identificadas nos movimentos dos pioneiros da educao nova, movimento defensor de uma escola pblica e laica. Sobre o assunto, ver: Romanelli (1998), Histria da educao no Brasil e Vieira (2000), O pblico e o privado nas tramas da LDB. 13 No sculo XVI, existiam seis universidades na Amrica Latina e o Brasil entra nas dcadas de vinte e trinta do sculo XX ainda discutindo sobre a necessidade de existncia de uma universidade em seu territrio. A esse respeito, ver: Castro (1985), Cincia e universidade.
29
primeira implantada em Santo Domingo, em 153814.
O ensino superior tem incio com a chegada da famlia real portuguesa em 1808 e
foi criado tendo-se em vista as necessidades materiais e polticas de sua presena no Brasil
(CASTRO, 1985; CUNHA, 1980). Com a vinda da famlia real, so instalados os primeiros
cursos superiores no Rio de Janeiro e na Bahia. Direito, Medicina e Engenharia constituem
os primeiros cursos implantados com o objetivo de satisfazerem as necessidades da Coroa e
da elite latifundiria brasileira.
Entretanto, para exibir o status de universidade, alguns requisitos so fundamentais.
A simples agregao de cursos j existentes no define uma instituio como universidade.
O fato que, no Brasil, o modelo dominante de criao da instituio universitria se d por
meio da aglutinao de cursos imperiais
Direito, Medicina e Engenharia. O primeiro
estatuto das universidades, instituindo o regime universitrio na organizao do ensino
superior, somente aparece na dcada de trinta do sculo XX15. O decreto n 19.851, de 11 de
abril de 1931, institui o regime universitrio e estabelece a elevao da cultura geral e a
investigao cientfica como os principais fins sociais desse nvel de escolarizao16
(ROMANELLI, op. cit.).
Historicamente, a universidade moderna se constitui como uma instituio
destinada a realizar a investigao cientfica e o preparo profissional. Num pas, como o
Brasil, em que o ensino e a pesquisa caminham de forma dissociada, em virtude do modo de
organizao da educao estruturada pela Igreja Catlica, atravs da ao educacional dos
14 No obstante o surgimento tardio da universidade e da universidade de pesquisa no Brasil, as instituies universitrias pblicas respondem em torno de 90% (noventa por cento) da produo de pesquisa da Amrica Latina. Sobre o assunto, ver Trindade (1999). 15 A primeira universidade criada no Brasil foi a Universidade do Rio de Janeiro, pelo decreto n 14.343, de 7 de setembro de 1920, no governo de Epitcio Pessoa. Essa universidade foi criada a partir da agregao de trs escolas superiores existentes no Rio de Janeiro, a saber: Faculdade de Direito, Medicina e Escola Politcnica. No entanto, a primeira universidade, criada com base nas normas do estatuto das universidades, foi a Universidade de So Paulo, em 1934. 16 O modelo dominante de criao da universidade no Brasil consiste na aglutinao de cursos profissionais preexistentes. A universidade brasileira constitui-se, portanto, mais como uma federao de escolas do que como efetiva universidade. O Estatuto, de 1931, responsvel pela instituio do regime universitrio, consagra esse modo de constituio de universidades, por aglutinao de cursos (SGUISSARDI, 2004).
30
jesutas, a tradio de pesquisa no encontrou terreno para se instalar. O currculo e o
mtodo de estudos jesuticos baseavam-se no exerccio da memria, tendo pouco espao
para a reflexo crtica e, por conseguinte, para a pesquisa. Aos jesutas, agentes da ideologia
da Igreja Catlica e a servio do projeto de explorao portugus, no interessava estimular
um tipo de ensino que priorizasse a pesquisa e a reflexo crticas.
A pesquisa, como afirma Castro (op. cit.), um corpo estranho, distante da
mentalidade cultural brasileira. E falar da universidade, no Brasil, como uma instituio,
cuja marca fundamental e que a distingue de outras instituies de ensino, tem sido a
produo de conhecimentos acerca da realidade social na qual se insere, se traduz num
problema terico-conceitual. Se a universidade uma criao tardia no caso do Brasil, a
universidade de pesquisa se constitui mais tardiamente ainda, se configurando como
verdadeiras ilhas. Somente a partir da criao da USP, em 1934, que se configura a idia de
universidade de pesquisa no contexto brasileiro17.
com a institucionalizao da ps-graduao, em meados da dcada de sessenta do
sculo XX, que se instala uma tradio de pesquisa na universidade pblica brasileira. Essa
institucionalizao ocorre no contexto da ditadura militar, no mbito de implantao da
primeira reforma universitria18. Por meio da Lei 5.540, de 28 de novembro de 1968,
efetivado o sistema de ps-graduao na universidade. A partir da, o Estado assume a
poltica de estmulo de estudos ps-graduados. Poltica esta que se insere no processo de
17 com a USP que a prtica de pesquisa se inicia nos quadros de uma universidade brasileira. Mas isso no significa falar em inexistncia total de pesquisa e, sim, de tradio de pesquisa cientfica. Anteriormente criao da USP, existiam esforos isolados de prtica de pesquisa, como, por exemplo, as pesquisas desenvolvidas na Escola de Minas de Ouro Preto, cujo curso de engenharia passa a operar, em 1876, com professores-pesquisadores, uma das condies de exerccio de pesquisa e no Instituto Manguinhos, criado em 1901, responsvel pelo controle de doenas endmicas. Alm disso, antes da criao da USP, foi fundada a Academia Brasileira de Cincias (1924), depois Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia. A esse respeito ver: Castro (op. cit.), Cincia e Universidade. 18 A Reforma Universitria de 1968 vai consagrar o modelo neo-humboldtiano de constituio da universidade. Nessa perspectiva, a associao entre ensino e pesquisa colocada como condio para a existncia de uma instituio como universidade. Entretanto, de fato, esse modelo no se implantou, de forma majoritria, na educao superior brasileira. Nesse sentido, a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extenso se constitui mais como um preceito constitucional, preconizado na Constituio Federal de 1988, do que na realidade do campo da educao superior brasileiro (SGUISSARDI, op. cit.).
31
reorientao do desenvolvimento do capitalismo em pases perifricos, como o Brasil, e se
baseia em pressupostos que pretendem adequar a universidade s novas estratgias de
desenvolvimento econmico (CHAU, 2001; ROMANELLI, 1998; CASTRO, 1985).
A reforma universitria, realizada no contexto da ditadura militar, tem como base o
Relatrio Atcon (1966) e o Relatrio Meira Matos (1968). Diante das manifestaes
estudantis, responsveis, em grande parte, por presses em torno de uma nova poltica para a
educao superior, e das exigncias colocadas por organismos internacionais para a
reorientao da educao brasileira segundo as diretrizes do desenvolvimento do sistema
capitalista, foi imposta uma reforma que pretendia erradicar a contestao interna e
modernizar a instituio universitria, mas sem romper com as tradies enraizadas
(CHAU, 2001; ROMANELLI, 1998).
Na dcada de sessenta do sculo XX, a demanda por ensino superior cresce de tal
forma que a falta de vagas nesse nvel de ensino cria o problema dos excedentes do
vestibular. Diante das presses dos movimentos estudantis que reivindicavam uma reforma
para a universidade pblica na perspectiva da reorientao dos seus rumos, por intermdio
de uma nova poltica educacional, a ditadura militar brasileira, com o apoio de organismos
internacionais, como a AID19, assume a realizao de uma reforma, cujo objetivo consistia
na modernizao da universidade, modernizao esta controlada de cima pela tecnocracia
governamental. Trata-se de uma reforma centralizada, imposta pelo governo ditatorial,
visando o controle do movimento estudantil e da universidade como instncia produtora de
vises de mundo.
Nesse contexto, a universidade se converte num problema poltico e social.
Problema este que precisa ser resolvido atravs de uma reforma universitria que erradicasse
19 Os acordos realizados entre o Ministrio da Educao do Brasil e a AID
os acordos MEC-USAID previam assistncia tcnica e financeira para a reorganizao do sistema educacional brasileiro. Nessa reorganizao, a instituio universitria tratada como problema poltico e social prioritrio. Sobre esse tema, ver Chau, 2001; Romanelli, 1998.
32
a contestao interna e externa e atendesse as demandas de ascenso social de uma classe
mdia que apoiara o golpe de 1964. Essa reforma, portanto, se insere no propsito de
ampliao do acesso da classe mdia ao ensino superior (CHAU, op. cit.).
O Relatrio Atcon sugeria a necessidade de considerar a educao numa
perspectiva quantitativa, a partir da relao custo-benefcio. Para isso, propunha a
implantao de um sistema universitrio baseado no modelo administrativo gerencial das
grandes empresas. Por sua vez, o Relatrio Meira Matos centrava-se na questo das
manifestaes estudantis, e visava reconduo das universidades ao regime da ordem
social (CHAU, op. cit.). Com base nos pressupostos da ideologia do desenvolvimento social
e econmico com segurana, assumidos pela ditadura militar, a reforma universitria de
1968 introduziu modificaes na universidade20, e uma das mais importantes foi a
institucionalizao do sistema de ps-graduao, considerado um sistema de xito na
educao brasileira (WEBER, 2006; MARTINS, 2002).
Vrios fatores institucionais contriburam para que, na dcada de sessenta do sculo
XX, fosse criado o sistema de ps-graduao brasileiro. Em 1951, foi criada a CAPES,
rgo que se tornou uma das maiores agncias de fomento dos programas de ps-graduao,
financiando projetos de mestrado e de doutorado, tanto no Brasil como no exterior, sendo,
tambm, uma instituio responsvel pela avaliao e credenciamento dos cursos e pela
formulao dos planos nacionais referentes a esse nvel de ensino. A CAPES, portanto, se
consolidou como agncia de fomento, alcanando papel central na elaborao e conduo
dos rumos da ps-graduao (WEBER, op. cit.; VELLOSO, 2003; CLOSS, CASTRO &
SOUSA, 2002; CASTRO, 1985).
O CNPq, criado em 1951, consiste, hoje, numa agncia tambm responsvel pelo
financiamento dos cursos de ps-graduao, atravs do financiamento de projetos, ncleos,
20 Entre as modificaes introduzidas pela reforma universitria de 1968, a departamentalizao
reunio de disciplinas afins num mesmo departamento -, a matrcula por disciplina, a unificao do vestibular por regio e a criao do vestibular classificatrio foram as mais importantes. Sobre o assunto ver: Chau (op. cit.).
33
grupos, linhas de pesquisa e de concesso de bolsas de estudos para os alunos dos cursos de
mestrado, doutorado e ps-doutorado no Pas e no exterior.
A criao de fundos especficos para o financiamento da ps-graduao tambm
contribuiu para o desenvolvimento desse nvel de ensino. O FNDCT, criado pelo Decreto-
Lei n 719/69 e a criao da Finep, dois anos depois, instituio responsvel pela
coordenao das aplicaes desse Fundo, foram determinantes para a expanso dos
programas, sobretudo, nas universidades pblicas federais.
Ainda no contexto da ditadura militar, atravs do Parecer 977/65, o Conselho
Federal de Educao estabelece o perfil da ps-graduao brasileira nos moldes do modelo
americano, distinguindo explicitamente dois nveis seqenciais, o mestrado e o doutorado,
ambos stricto sensu.
Dessa forma, a cincia brasileira, atravs das pesquisas desenvolvidas,
principalmente, nas universidades pblicas, se consolida a partir das polticas de fomento
concretizadas na vigncia da ditadura militar. Nesse contexto, a ps-graduao assume
importncia estratgica na poltica de educao superior, se convertendo em objeto de
planejamento estatal. As necessidades do desenvolvimento da indstria, no interior dos
parmetros determinados pelo sistema capitalista internacional, concorrem, como um dos
fatores, para a institucionalizao da ps-graduao na instncia universitria, fato este
responsvel pelos avanos na prtica de pesquisa no interior das universidades.
A reforma universitria de 1968, responsvel pela institucionalizao da ps-
graduao no Brasil, colocava como objetivos, para esse nvel, a formao de professores
universitrios, a preparao de pessoal de alta qualificao para as empresas estatais e
privadas e o desenvolvimento de estudos e pesquisas estimuladores do desenvolvimento
econmico e social do Pas (CASTRO, op. cit.). No entanto, como afirma Chau (op. cit.), as
finalidades reais consistiam em conter a expanso do ensino superior, comandar a carreira na
34
universidade e conferir status aos portadores dos ttulos ps-graduados.
De fato, a institucionalizao da ps-graduao provocou um crescimento
quantitativo de cursos de mestrado e de doutorado, com a ampliao da abrangncia quanto
a reas de conhecimentos oferecidas pelos programas. Antes da regulao da ps-graduao,
os cursos de doutorado se concentravam em reas restritas, tais como Biologia, Fsica,
Matemtica e Qumica (VELLOSO, op. cit.).
A partir da dcada de noventa do sculo XX, sobretudo aps a regulamentao dada
pela Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional, Lei n 9.394/1996, a demanda por
estudos ps-graduados cresce, devido ao fato de essa lei colocar a exigncia de no mnimo
de 1/3 de mestres ou doutores no corpo docente, como requisito para uma instituio receber
o status de universidade, alm de vincular o ingresso e o desenvolvimento da carreira
docente universitria titulao (WEBER, op. cit.; WEBER, 2003).
Nesse contexto, sobretudo a partir de meados da dcada de noventa do sculo XX,
no governo de Fernando Henrique Cardoso, atravs da ao do ento Ministrio da
Administrao Federal e Reforma do Estado, sob a liderana do Ministro Luiz Carlos
Bresser Pereira, foi proposta uma reforma do Estado brasileiro, com o objetivo de realizar a
reforma do aparelho estatal conforme os princpios da modernidade, eficincia e qualidade
do servio pblico. Nessa perspectiva, o propsito de reconstruir o Estado se daria pela via
da reforma gerencial. Essa reforma parte do pressuposto de que (...) o Estado pode ser
eficiente, desde que use instituies e estratgias gerenciais, e utilize organizaes pblicas
no-estatais para executar os servios por ele apoiados (...) (BRESSER PEREIRA, 1998,
p. 31).
A reforma da Administrao Pblica, nesse mbito, emerge como a principal rea a
ser reformulada, segundo a lgica da relao custo-benefcio, na busca de melhor qualidade
na prestao de servios pblicos. Nessa perspectiva, colocada uma proposta de diviso da
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administrao pblica em setores ou ncleos, conforme o objetivo de delegao ou no das
tarefas estatais21.
Para a universidade pblica, especificamente, foi colocada a proposta de integr-la
no mbito do ncleo dos servios no-exclusivos do Estado, sendo redefinida como
organizao social22. A universidade pblica, como organizao social, significa que a
instituio universitria deveria buscar parcerias com o mercado para a sua sobrevivncia
institucional, parcerias estas que podem inaugurar novas relaes entre universidade e
mercado, passando pela problemtica da imposio de uma lgica do mercado no interior da
universidade pblica, uma lgica exterior a sua especificidade institucional. Essa redefinio
pode levar a instituio universitria a se sujeitar a (...) valores, princpios, prticas e
rotinas heternimas e heterodoxas prprias do mundo mercantil e empresarial,
convertendo-se em bem privado e mercadoria (GOMES, 2006, p. 5).
No contexto de redefinio da universidade, duas concepes se colocam e
constituem objeto de disputa: a universidade como instituio social e como organizao
social23. Nas palavras de Chau (1999, p. 3), a universidade como instituio social se
constitui em:
(...) ao social, uma prtica social fundada no reconhecimento pblico de sua legitimidade e de suas atribuies, num princpio de diferenciao, que lhe confere autonomia perante outras instituies sociais, e estruturada por ordenamentos, regras, normas e valores de reconhecimento e legitimidade in
21 Os ncleos so os seguintes: ncleo estratgico (as funes indelegveis do Estado
Poderes Legislativo, Judicirio, Ministrio Pblico e, no Executivo, Presidncia da Repblica, ministros e auxiliares diretos); atividades exclusivas (descentralizao das funes do Estado, por meio da criao das Agncias Executivas); ncleo de servios no-exclusivos (funes em que o Estado atua juntamente com o setor privado, nas reas de ensino, sade, pesquisa cientfica, universidades, hospitais); ncleo de produo de bens e servios para o mercado (privatizao das empresas estatais). 22 As organizaes sociais so novas formas jurdicas de direito privado, no integrantes da administrao pblica, voltadas para a prestao dos servios pblicos naquelas atividades integrantes do Ncleo de Servios No-Exclusivos do Estado. Suas origens esto ligadas experincia britnica de reforma administrativa adotada na gesto de Margareth Thatcher a partir de 1979. Na Inglaterra, essa experincia associou-se privatizao de estabelecimentos industriais estatais, reduzindo a esfera de atuao do Estado, principalmente, nas reas de sade e educao. 23 A distino entre universidade como instituio social e como organizao social realizada por Michel Freitag, no livro Le naufrage de l universit (1996).
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ternos a ela. A legitimidade da universidade moderna fundou-se na conquista da idia de autonomia do saber diante da religio e do Estado, portanto, na idia de um conhecimento guiado por sua prpria lgica, por necessidades imanentes a ele, tanto do ponto de vista de sua inveno ou descoberta como de sua transmisso.
Por sua vez, a universidade como organizao social se fundamenta em critrios
externos a ela, critrios estes que vo de encontro a sua especificidade como instituio social
e que passam a nortear as atividades desenvolvidas no interior da instituio, mas sob uma
lgica diferente, uma lgica que enfatiza a produtividade marcada pelos princpios de
mercado, pela relao custo-benefcio.
A universidade, como organizao social, traz em seu bojo uma concepo de
universidade voltada para a prestao de servios, prestao esta definida pela lgica do
mercado. Trata-se, como afirma Chau (op. cit.), de uma universidade operacional24, voltada
para a definio de estratgias para a busca de receitas e parcerias com o mercado,
preocupada com a consecuo de meios para conseguir novas fontes de financiamento.
A universidade operacional estrutura-se por uma lgica no preocupada com a
produo de conhecimento crtico, produo que passa a ser definida por setores externos a
ela, setores estes responsveis pela definio da agenda da universidade. A produo de
conhecimentos avaliada em relao ao tempo, ao custo e ao quanto foi produzido, no
sendo objetivo primordial a criao de pensamento crtico. Contrariamente, a universidade,
como instituio social, se define como uma instituio pblica destinada criao de
conhecimentos e sua transmisso (CHAU, 2001, p. 80), e no como uma prestadora de
servios guiada pelo princpio da relao custo-benefcio.
No debate atual, a discusso sobre as concepes de universidade defendidas nas
propostas de reforma da educao superior e a definio sobre o que e o que no
instituio universitria encontram terreno frtil. Diferentes protagonistas se esforam por
24 Expresso de Freitag (op. cit.).
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legitimar a interpretao de universidade considerada necessria no contexto de maior
presso por educao superior, contexto histrico este que se fundamenta nos princpios e
valores de uma sociedade pautada no conhecimento. Por sua vez, a discusso referente
manuteno do status de universidade para as instituies que, realmente, praticam a
pesquisa, sobretudo, na ps-graduao, e onde se encontra presente a indissociabilidade
entre pesquisa, ensino e extenso, parte do pressuposto de que nem todas as instituies de
educao superior, inclusive as pblicas, tm condies de serem definidas como
universidade, pois no se encaixam nos critrios supracitados. Esse pressuposto utilizado
como justificativa do processo de hierarquizao da educao superior, hierarquizao esta
que se encontra na base das propostas sobre a reforma da educao superior neste incio do
sculo XXI.
Nesse contexto, discutir a questo das concepes de universidade encontra
respaldo quando se pretende analisar as propostas de reforma da educao superior no
Brasil, incluindo as referncias discursivas internacionais, as quais, certamente, contribuem
para balizar certas posies a respeito da instituio universitria. Diferentes interpretaes
sobre a universidade so colocadas em embate no processo de discusso sobre a reforma em
curso, processo este em que as instituies participantes se utilizam de estratgias
discursivas para impor a concepo de universidade legtima.
2.1- A REFORMA DA EDUCAO SUPERIOR COMO DISCURSO
O discurso da reforma da educao superior, especialmente, da universidade surge
concomitantemente com o discurso da crise dessa instituio. A assuno do discurso de que
a instituio universitria se encontra em processo de crise tem levado diferentes agentes,
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organismos internacionais, instituies e entidades nacionais a proporem um movimento de
reforma da universidade.
O movimento atual em prol da reforma da instituio universitria se insere no
contexto de uma sociedade pautada no conhecimento, sociedade esta a qual coloca novas
demandas de formao, de produo de conhecimentos e de novas tecnologias necessrias s
demandas de competitividade da economia capitalista global.
Nesse mbito, se coloca a necessidade de analisar as concepes de crise que tm
sido dominantes no debate acadmico, bem como a anlise das concepes de reforma
colocadas como respostas crise da instituio universitria na sociedade contempornea.
No debate acadmico, a questo da crise da universidade tem sido analisada no
contexto de crise do Estado Providncia nos pases centrais, a partir da dcada de setenta do
sculo XX, crise esta que tem repercutido nos pases da Amrica Latina nos anos oitenta e
noventa do mesmo sculo. Esses pases, diante da crise, tratada como crise financeira do
Estado, tm adotado polticas de cunho neoliberal, principalmente, a partir da segunda
metade da dcada de noventa do sculo XX, como o caso do Brasil, polticas estas
responsveis pela reduo do investimento estatal na promoo de polticas sociais,
sobretudo, educacionais. Nesse contexto, a universidade tem sofrido com a reduo do
financiamento estatal, sendo objeto de recomendao, por parte de organismos
internacionais, sobretudo do BIRD, a adoo de mecanismos voltados para a diversificao
das fontes de financiamento das instituies, sendo estas pressionadas a buscarem novos
recursos no-estatais. Os estudos de Gentili (2005; 2001; 1998); Leher (2005; 2004; 2002) e
Pires & Reis (1999) constituem exemplos tpicos de estudos que assumem essa direo de
anlise.
A compreenso da questo da crise do Estado Providncia exige que seja tomado,
como ponto de partida, o processo de formao do Estado Moderno nos pases centrais. O
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Estado Moderno surge como uma instituio responsvel pela regulao da vida social, com
o objetivo de manuteno da ordem no contexto de valorizao da ordem sobre o caos
(SANTOS, 2000). A fundamentao moderna da necessidade de um Estado forte e
centralizado, responsvel pela ordem e segurana sociais, realizada por Hobbes. Nessa
perspectiva, por intermdio do contrato social,
(...) o povo renuncia ao estado de natureza
ou seja, liberdade total e igualdade que necessariamente conduz guerra de todos contra todos
e cria uma sociedade civil baseada na soberania absoluta do Estado que, em vez da liberdade e da igualdade, garante a paz, a autoridade efetiva e, finalmente, a nica sociedade justa possvel (...) (HOBBES, 1946, p. 113-129, In: SANTOS, 2000, p. 133).
A justificativa, portanto, da existncia de uma instituio como o Estado vem da
necessidade da vida social moderna, uma vida regrada segundo a idia de superioridade da
ordem sobre o caos.
Essa idia moderna de um Estado forte e centralizado, responsvel pela distribuio
dos produtos sociais, presencia um notvel desenvolvimento, nos pases centrais, a partir do
Ps-Guerra. O Estado Providncia, denominao dada forma de Estado que imperou nos
pases capitalistas desenvolvidos, responsvel pela extenso dos direitos sociais e
econmicos s classes trabalhadoras, resulta de um pacto social entre capital e trabalho que
se estabelece no contexto de reconhecimento da questo social . A segurana no trabalho, a
proteo deste atravs de uma legislao especfica, polticas de universalizao dos
sistemas de educao, de sade e de habitao integram o conjunto de aes do Estado de
Bem-Estar Social.
As tarefas que o Estado passa a realizar aps a Segunda Grande Guerra so
resultado de um consenso pautado na idia de que o aparelho estatal constitui agente
responsvel pela promoo do progresso tcnico e pelo estmulo da acumulao capitalista.
Esse tipo de Estado busca promover o investimento, basicamente, em infra-estrutura e
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garantir um mnimo de distribuio de renda. Nesse contexto, o aparelho estatal contrata
diretamente funcionrios pblicos, objetivando garantir o cumprimento das tarefas
assumidas na perspectiva de promoo do bem-estar social e o desenvolvimento econmico.
Entretanto, essa forma de interveno estatal esteve centrada nos pases capitalistas centrais,
no se podendo falar, no contexto brasileiro, em Estado Providncia.
Entretanto, no significa dizer que, na sociedade brasileira, o Estado no
desempenhou um papel fundamental. A partir da dcada de trinta do sculo XX, se assiste
construo de um modelo de desenvolvimento econmico, pautado na industrializao
apoiada pelo Estado nacional varguista. Trata-se de um modelo baseado na substituio das
importaes devido conjuntura internacional sob o efeito da crise de 192925. Nesse
modelo, o Estado intervm no crescimento industrial, atravs da realizao de duas tarefas
fundamentais: o de papel econmico de agente regulador da acumulao de capital e de
produtor direto. O Estado assume novas tarefas: interveno no sistema de crdito, na
poltica cambial, na poltica tributria, fiscal e salarial, financiamento de setores bsicos da
produo, desenvolvimento de uma infra-estrutura prpria para possibilitar a instalao de
novas indstrias (ALENCAR, 1996).
O modelo de substituio das importaes, adotado no Brasil a partir de 1930,
resultado de uma conjuntura internacional, marcada pelas conseqncias da crise mundial de
1929, crise esta que teve maior repercusso naqueles pases que viviam sob a influncia dos
Estados Unidos da Amrica. A sada da crise e de suas conseqncias foi proposta por
intermdio de uma maior interveno estatal, colocando o Estado como o organizador do
processo econmico. Essa resposta foi responsvel pela configurao de um Estado
centralizado e de cunho nacionalista na era Vargas.
A forma de Estado intervencionista
Estado Providncia nos pases centrais e
25 A crise de 1929 consubstanciou-se mais visivelmente na quebra da bolsa de Nova Iorque. Em um s dia, foram lanados no mercado 16 milhes de ttulos, para os quais no foram encontrados compradores. Assistiu-se, pois, queda vertiginosa do valor desses ttulos. Sobre o assunto, ver: Caldeira (1997) e Alencar (1996).
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Estado centralizado, nacionalista e promotor da industrializao, no caso do Brasil, entra em
processo de crise. Esse processo de crise se agudiza na segunda metade do sculo XX,
sobretudo a partir da dcada de setenta, no contexto de transformaes do sistema capitalista
em escala mundial.
O crescimento espetacular dos mercados mundiais, juntamente com a emergncia de sistemas mundiais de produo e de agentes econmicos transnacionais, minou a capacidade do Estado para regular o mercado ao nvel nacional. A industrializao do Terceiro Mundo, a expanso internacional da subcontratao e dos contratos de franquia, bem como a ruralizao da indstria, tudo se conjugou para destruir a configurao espacial da produo e da reproduo nos pases centrais (SANTOS, 2000, p. 154).
As transformaes sociais, responsveis pelo estado de crise, dizem respeito,
principalmente, reformulao do papel do Estado na produo dos bens econmicos e
sociais e na sua distribuio para a populao. Essas transformaes se efetivam no contexto
de proliferao de polticas neoliberais e de entrada de novos agentes, tais como os
organismos internacionais, na orientao das polticas mundiais sob a gide do princpio do
mercado26. Nesse mbito, o Estado perde, relativamente, o seu protagonismo no processo de
construo e de implementao dessas polticas, ocasionando impactos diferenciados
conforme o pas ocupe o centro ou a periferia do sistema capitalista mundial.
No caso do Brasil, que no vivenciou as polticas de distribuio do Estado
Providncia, a crise do aparelho estatal pensada como crise fiscal do Estado. Nesse
sentido, a partir dos anos oitenta do sculo XX, o Estado comea a evidenciar essa crise que,
num primeiro momento, aparece sob a forma de crise da dvida externa e, posteriormente, as
capacidades gerenciais do Estado so colocadas em xeque. A partir da, propostas de
reestruturao do Estado, em moldes neoliberais, emergem como possveis sadas para a
26 O princpio do mercado nunca obteve a hegemonia alcanada nos pases centrais. No obstante, propostas de regulao das polticas sociais por intermdio do mercado so colocadas como alternativa para a crise do aparelho estatal, tanto nas sociedades centrais como nas perifricas. Sobre o assunto, ver Santos (2003).
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crise estatal (REZENDE, 1996).
A reforma do Estado, proposta em meados da dcada de noventa do sculo XX, no
governo de Fernando Henrique Cardoso, se insere no movimento de reformulao do papel
do poder estatal no contexto de reduo dos gastos pblicos, recomendado por polticas de
cunho neoliberal, encabeadas por organismos internacionais. Entretanto, a questo da crise
da universidade no pode ser analisada, exclusivamente, como resultado da crise financeira
do Estado e da adoo de polticas neoliberais no mbito educacional, mas se insere no
contexto de crise da prpria instituio universitria no quadro de desenvolvimento da
sociedade capitalista ocidental, baseada no conhecimento, sociedade esta que coloca novos
papis e demandas para a educao superior, especialmente, para a universidade.
Pela primeira vez na histria, a crise da universidade a crise da prpria instituio multissecular na sociedade do conhecimento em que os mecanismos seletivos desenvolvidos, de financiamento da pesquisa cientfica ou social, bsica ou aplicada, querem restringir a universidade sua funo tradicional de formar profissionais polivalentes para o mercado (TRINDADE, 1999, p. 21).
Segundo Santos (2004), tem sido difcil operar uma definio de crise da
universidade que no seja em termos de crise do Estado Providncia e, conseqentemente,
de adoo de polticas neoliberais. Nesse sentido, (...) crucial definir e sustentar uma
definio contra-hegemnica de crise (SANTOS, op. cit., p. 63). Assim, nessa tica, se
realiza uma definio de crise numa perspectiva multidimensional, analisada a partir de trs
aspectos: crise de hegemonia, legitimidade e institucional (SANTOS, 2003).
Essas crises constituem resultado do acmulo de funes que a universidade veio a
desempenhar, muitas delas contraditrias entre si. A contradio e a incompatibilidade entre
as funes provocam pontos de tenso na relao entre a instituio universitria e o
aparelho estatal e no interior das prprias instituies. O resultado disso, na perspectiva de
Santos (op. cit.), a exploso da crise da universidade em trs dimenses.
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A crise de hegemonia resultado de uma contradio entre a funo social de uma
instituio que esteve centrada, desde a Idade Mdia europia, na produo de alta cultura,
necessria formao das elites, e que, agora, passa a ser pressionada a produzir padres
culturais mdios, voltados formao de mo-de-obra qualificada necessria ao
desenvolvimento capitalista em curso. (...) em lugar de criar elites dirigentes, (a
universidade) est destinad