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Michael Chekhov - Para o Ator - Caps 4, 5, 6 e 10

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Michael Chekhov - Para o Ator - Caps 4, 5, 6 e 10
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M ichael Chekhov PARA O ATOR

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Esta obra foi publicado originalmente em inglês com o títuloTO THE ACFOR - ON THE TECHNIQUE OF THE ACFING

PQf Harper & Row Pubíishers lnc., N. York:Copyriglu © /953 by Michael Chekhov:

Copyright © /986, Livraria Marfins Fontes Editora Lsda.,São Paulo, para a presente edição.

Índice

lI! edição

julho de 19863! edição

junho de 2003

TraduçãoÁLVARO CABRAL

Prefácio à edição brasileiraPrefácio de Yul BrynnerIntroduçãoUma nota para o leitor

IXXIII

XVIIXXI

Revisão da traduçãoVadim Valentinovitch Nikitin

Revisão gráficaMorise Stmôes Leal

Lilian JenkinoProdução gráfica

Geraldo AlvesPaginaçãolFotolitos

Studio 3 Desenvolvimento Editorial

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Capítulo 1 Corpo e psicologia do ator 1Capítulo 2 Imaginação e incorporação de imagens 25Capítulo 3 Improvisação e conjunto 41

Capítulo 4 Atmosfera e sentimentos individuais 57Capítulo 5 O gesto psicológico 75Capítulo 6 Personagem e caracterização 99Capítulo 7 Individualidade criativa 109

Capítulo 8 Composição do desempenho 119

Capítulo 9 Diferentes tipos de desempenho 153Capítulo 10 Como abordar o papel 163

Capítulo 11 Notas finais 189

Capítulo 12 Exemplos para improvisação 199

Chekhov, Michael, 1891-Para o ator I Michael Chekhov ; tradução Álvaro Cabral ; [revi-

são técnica luca de Oliveira; revisão da tradução Vadim valentíno-vitch Nikitin]. - 3! ed. - São Paulo: Martins Fontes, 2003.

Título original: To the actor: 00 lhe tedmique of the acting.ISBN 85-336-1791-7

1. Arte dramática 2. Arte dramática - Estudo e ensino 3. Irnpro-visação (Representação teatral) I. Título.

03-2553 CDD-792.028

Índices para catálogo sistemático:I. Atores de teatro: Arte dramática 792.028

2. Improvisação; Artes da representação 792.0283. Representação: Teatro 792.028

4. Técnica da representação: teatro 792.028

Todos os direitos desta edição pará a língua portuguesa reservados àLivraria Marfins Fontes Editora LIda.

Rua Conselheiro Ramalho, 33Ó/340 01325-000 São Paulo SP BrasilTel. (11) 3241.3677 Fax (11) 3105.6867

e-mail: [email protected] http://www.martinsfontes.com.br

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Capítulo 4Atmosfera e sentimentos individuais

A idéia de uma peça produzida no palco éseu espírito; sua atmosfera é sua alma;

e tudo o que é visível e audível é seu corpo.

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Não penso que seja errôneo dizer que existem duas di-ferentes concepções entre atores a respeito do palco em queinvestem todas as suas esperanças e no qual despenderão amaior parte de suas vidas. Para alguns deles, o palco nadamais é do que um espaço vazio que, de tempos em tempos,se enche de atores, carpinteiros e maquinistas, cenários eadereços; para eles, tudo o que ali aparece é apenas o visívele o audível. Para outtos, o exíguo espaço do palco é um mun-do inteiro, impregnado de uma atmosfera tão forte, tãomagnética, que dificilmente suportam separar-se dele de-pois que o pano cai no final de uma apresentação.

Em tempos idos, quando uma aura de romance aindaenvolvia nossa profissão, os atores passavam freqüentemen-te noites encantadas em seus camarins vazios, ou entre pe-ças de cenário, ou vagueando no palco semiiluminado,como o velho trágico em O Canto do Cisne, de AntonT chekhov. Sua experiência de tantos anos ligou-os indisso-

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luvelmente a esse palco cheio de um encanto mágico. Elesprecisavam dessa atmosfera. Ela lhes dava inspiração e forçapara suas futuras interpretações. .

Mas as atmosferas são ilimitadas e podem ser encontra-das em toda a parte. Cada paisagem, rua, casa ou sala; umabiblioteca, um hospital, uma catedral, um ruidoso restau-rante, um museu; a manhã, o entardecer, a noite; primave-ra, verão, outono e inverno - cada fenômeno e cada eventopossui sua própria atmosfera particular.

Os atores que possuem ou que recentemente adquiriramamor e compreensão pela atmosfera de uma peiformancesabem muitíssimo bem que forte vínculo ela cria entre eles eo espectador. Sendo também envolvido por ela, o próprioespectador começa "atuando" juntamente com os atores.Um desempenho coercivo, irresistível resulta da ação recípro-ca entre o ator e o espectador. Se os atores, o diretor, o autor,o cenógrafo e, com freqüência, os músicos criaram verdadei-ramente a atmosfera para a peiformance, o espectador nãoserá capaz de lhe permanecer distante mas, pelo contrário,reagirá com inspiradoras ondas de amor e confiança.

Também é significativo o fato de que a atmosfera apro-funda a percepção do espectador. Pergunte a si mesmo deque modo, como espectador, perceberia a mesma cena seesta fosse interpretada diante de você de duas maneiras -uma sem e a outra com atmosfera. No primeiro caso, apreen-deria indubitavelmente o conteúdo da cena com seu inte-lecto mas seria incapaz de penetrar em seus aspectos psico-lógicos tão profundamente quanto o faria se deixasse a at-mosfera da peça ajuda-lo. No segundo caso, com a atmos-fera reinando no palco, seus sentimentos (e não apenas seuintelecto) seriam acordados e estimulados. Seriam sentidoso conteúdo e a própria essência da cena. A compreensãoseria ampliada por esses sentimentos. O conteúdo da ceqa

tornar-se-ia mais rico e mais significativo sua percepção.Que seria do conteúdo da cena de abertura vitalmente im-portante de O Inspetor Geral, de Gógol, se ela fosse percebi-da sem sua atmosfera? Amenamente resumida, a cena con-siste nos funcionários corruptos preocupados em discutirformas de escapar à punição que esperam com a chegada doinspetor de Petersburgo. Dotemos a cena de sua atmosferaprópria e vê-la-emos e reagiremos a ela de um modo muitodiferente; por meio da atmosfera, perceberemos o conteú-do dessa mesma cena como sendo o de catástrofe iminente,conspiração, depressão e horror quase "místico". Não só asutileza psicológica da alma de um patife nos será reveladaatravés da atmosfera da cena de abertura, não só o humordos açoites a que Gógol sentenciou seus-heróis ("Não res-ponsabilize o espelho quando é seu próprio rosto que estácontorcido"), mas todos os funcionários assumirão novo emaior significado, tornando-se símbolos, retratando peca-dores de todas as espécies, de todas as épocas e de todos oslugares, sem que, ao mesmo tempo, deixem de ser caracte-res individuais com todos os seus traços peculiares. Ouimagine-se Romeu dizendo suas belas palavras de amor aJulieta sem a atmosfera que deve rodear esses dois seres ena-morados. Poderemos ainda deleitar-nos com a incompará-vel poesia de Shakespeare mas sentiremos definitivamenteuma nítida ausência de algo que é real, vital e inspirador. Oquê? Não é o próprio amor, a atmosfera de amor?

Como espectador, você nunca teve essa peculiar sensa-ção de "estou olhando para um espaçopsicologicamente va-zio", enquanto assiste a uma cena representada no palco?Tratava-se de uma cena destituída de atmosfera. Não rece-bemos também, muitos de nós, sensações analogamenteinsatisfatórias quando uma atmosfera cênica errada falseouo verdadeiro conteúdo da cena? Recordo muito bem uma

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apresentação do Hamletem que, na cena da loucura de Ofé-lia, os atores criaram acidentalmente uma atmosfera de levemedo, em vez de profunda tragédia e dor. Foi surpreenden-te ver quanto humor indeliberado essa atmosfera erradaprovocou em todos os movimentos, palavras e olhares dapobre Ofélia!

A atmosfera exerce uma influência extremamente forteem nosso desempenho. Você já notou como, involuntaria-mente, muda movimentos, fala, comportamento, pensa-mentos e sentimentos assim que cria uma atmosfera forte,contagiosa, e como a influência dela aumenta se você a acei-tar e render-se a ela de bom grado? Cada noite, enquantoatuar, submetendo-se à atmosfera da peça ou da cena, vocêpoderá deliciar-se ao observar os novos detalhes e nuançasque surgirão por si mesmos de sua interpretação. Não pre-cisará apegar-se covardemente aos clichês da atuação davéspera. O espaço, o ar em redor que você encheu de at-mosfera sempre sustentará e despertará novos sentimentos -e impulsos criativos. A atmosfera incita-nos a atuar em har-monia com ela.

O que é esse incitamento, donde provém? Em termosfigurativos, provém da vontade, da força dinâmica ou im-pulsora (chame-a como quiser) que vive na atmosfera. Ex-perimentando, por exemplo, uma atmosfera de felicidade,descobriremos que sua vontade desperta em nós o desejo deexpansão, de abertura, de desdobramento, de conquista deespaço. Suponhamos agora uma atmosfera de depressão ouluto. A vontade dessa atmosfera não será completamenteinversa? Não sentiremos, nesse caso, um impulso de contra-ção, de fechamento, até de diminuição de nosso próprio ser?

Mas desafiemos isso, por um momento, com: "Ematmosferas fortes, dinâmicas, tais como catástrofes, pânico,ódio, exultação ou heroísmo, a vontade delas, seu poder

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instigador, é bastante óbvio. Mas o que acontece a essa for-ça poderosa em meio a atmosferas calmas e pacíficas, comoum cemitério esquecido, a tranqüilidade de uma manhã deverão ou o silencioso mistério de uma velha floresta?" Aexplicação é simples: nesses casos, a vontade da atmosfera éaparentemente menos forte apenas porque não é tão obvia-mente violenta. No entanto, ela está presente e influencia-nos com tanta força quanto qualquer outra atmosfera. Umnão-ator ou uma pessoa destituída de sensibilidade artísticarnanter-se-ão provavelmente passivos na atmosfera de umatranqüila noite enluarada; mas uIll ator que se entreguetotalmente a ela não tarda em sentir uma espécie de ativi-dade criativa gerada em seu íntimo. Uma após outra, apare-cerão imagens diante dele que o atrairão gradualmente paraa própria esfera delas. A vontade dessa noite tranqüila logose transformará em seres, eventos, palavras e movimentos.Não foi a atmosfera de aconchego, encanto e amor que cer-cava a lareira na pequena casa de John Piribingle (O Grilona Lareira) que deu vida, na imaginação de Dickens, aoobstinado bule de chá, à fada, à Litte Dot e sua eterna com-panhia, Tilly Slowboy, e até ao próprio Piribingle? Nãoexiste atmosfera desprovida de dinâmica interior, vida evontade. Tudo o que se precisa para obter inspiração a par-tir dela é abrirmo-nos a seu influxo. Um pouco de práticanos ensinará como fazê-lo.

Para fins práticos, devemos agora enunciar dois fatos.Primeiro, temos de fazer uma distinção clara entre os senti-mentos individuais das personagens e as atmosferas das ce-nas. Embora ambas as coisas pertençam ao domínio dossentimentos, são de todo independentes umas das outras epodem existir ao mesmo tempo ainda que formem com-pletos contrastes. Citemos alguns exemplos extraídos da vi-da. Imagine-se uma catástrofe de rua. Um grupo numeroso

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de pesso.as cerca o. lugar. Todas sentem a forte, deprimente,assustadora e torturante atmosfera da cena. O grupo. estátodo. envolvido po.r ela e, no. entanto, é improvável queencontremos sentimentos idênticos em dois indivíduosquaisquer dessa multidão. Um permanece frio. e insensívelao. acontecimento, outro sente uma forte satisfação. egoístapo.r não. ser a vítima; um terceiro (talvez o. policial) está emplena atividade, dentro do. espírito de quem cuida de seunegócio, e um quarto mostra-se cheio. de compaixão.

Um ateu pode manter seus sentimentos céticos numaatmosfera de reverência e devoção religiosas, e um homemenlutado. pode levar a dor em sua alma mesmo. quando. in-gressa numa atmosfera de alegria e felicidade. Portanto, ao.estabelecer uma distinção. entre os dois, devemos chamar àsatmosferas sentimentos objetivos, em contraposição aos sen-timentos subjetivos individuais. Depois, devemos estar cons-cientes do. princípio. de que duas diferentes atmosferas (sen-timentos objetivos) não podem existir simultaneamente. Aatmosfera mais forte derrota inevitavelmente a mais fraca.Vamos dar mais um exemplo.

Imagine-se um velho. castelo. abandonado, onde o. pró-prio. tempo. parece ter parado. há muitos séculos e preserva-do, em invisível mas obcecante glória, o.Spensamento.s e ásfaçanhas, as mágo.as e as alegrias de seus habitantes há mui-to. esquecidos. Uma atmosfera misteriosa, tranqüila, im-pregna esses salões, corredores, porões e torres vazios, Umgrupo. de pesso.as entra no. castelo, trazendo. consigo umaatmosfera ruidosa, alegre, despreocupada, a que não. faltamrisos e gargalhadas. O que aCo.ntece agora? As duas atrnos-feras entrechocam-se imediatamente num combate mortal,e não. tarda muito. para que uma delas se revele a vitoriosa.Ou o. grupo. de alegres pesso.as, com sua atmosfera, se sub-mete à atmosfera solene e imponente do. velho. castelo, 0.\1

este se torna "morto" e "vazio.", despojado de seu antigo. es-pírito, e deixa de co.ntar sua história sem palavras!

Esses dois fatos, devidamente considerados, conferem aatores e diretores o.meio. prático. para criar certos efeitos no.palco: o. conflito entre duas atmosferas contrastantes e alenta ou súbita derrota de uma delas ou os sentimentos in-dividuais de uma perso.nagem travando. uma luta com aatmosfera hostil, com a conseqüente vitória ou derrota daatmosfera em face dos sentimentos individuais.

Esses eventos psicológicos no. palco criarão. sempre sus-pense para o. público, po.rque todos os contrastes, as coli-sões, os combates, as derrotas e as vitórias que ali o.co.rremdevem ser levados à conta dos fortes, se não. os mais fortes,efeitos dramáticos da performance. Os contrastes no. palcogeram essa almejada tensão. numa platéia, enquanto. a vitó-ria ou a derrota com que a luta termina proporciona ao.público. uma forte satisfação. estética, que pode ser co.mpa-rada à decorrente de um acorde musical resolvido.

Muito. pode ser feito em benefício. de uma peça dessemodo, mesmo. que as atmosferas sejam apenas ligeiramentesugeridas pelo. autor. Existem numerosos meios, puramenteteatrais, pelos quais se criam atmosferas no. palco, ainda quenão. sejam indicados pelo. autor: luzes, com suas sombras ecores; cenários, com seus contornos, aparências e formas decomposição; efeitos musicais e sonoros; agrupamento. de ato-res, suas vozes, com toda uma variedade de timbres, seusmovimentos, suas pausas, suas mudanças de ritmo, todas asespécies de efeitos rítmicos, marcações e maneiras de atuar.Praticamente tudo. o. que o. público percebe no. palco podeservir ao.propósito de realçar atmosferas ou mesmo. recriá-Ias.

Sabe-se que o. domínio da arte é, primordialmente, o.domínio dos sentimentos. Seria uma boa e verdadeira defi-nição. dizer que a atmosfera de cada obra de arte é seu cora-

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ção, sua alma sensível Por conseguinte, é também a alma, ocoração de todas e de cada performance no palco. Para queisso fique claramente entendido, façamos uma comparação.Sabemos que todo ser humano normal exerce três principaisfunções psicológicas: pensamentos, sentimentos e impulsosvolitivos. Imaginemos agora, por um momento, um serhumano completamente desprovido da capacidade de sen-tir, um ser humano que possa ser qualificado de inteiramen-te "insensível". Imaginemos ainda que seus pensamentos,idéias e concepções intelectuais abstratas, por um lado, eseus impulsos volitivos e ações, por outro, contatam mutua-mente e se encontram sem nenhum elo interveniente, semsentimentos entre si. Que espécie de impressão tal pessoa"insensível" causa em você? Seria ainda um homem, um serhumano? Não se apresentaria a seus olhos como uma "má-quina", um robô inteligente, refinado e extremamente com-plexo? Semelhante máquina não lhe pareceria estar numnível inferior ao de um ser humano, cujas três funções (pen-samentos, sentimentos e vontade) devem trabalhar em con-junto e em plena harmonia entre si?

Nossos sentimentos harmonizam nossas idéias e nossosimpulsos volitivos. Não apenas isso; eles modificam, con-trolam e aperfeiçoam as idéias e os impulsos, tornando-os"humanos". Uma tendência para a destruição surge nos se-res humanos que são destituídos de sentimentos ou que osnegligenciam. Se quiserem exemplos, folheiem as páginasda história. Quantas idéias políticas ou diplomáticas con-vertidas em ação sem serem controladas, modificadas e pu-rificadas pela influência de sentimentos merecem que lheschamemos humanas, benévolas ou construtivas? Existemefeitos idênticos no domínio da arte. Uma performance des-provida de suas atmosferas gera a impressão de um mecanis-mo. Mesmo que o público seja capaz de apreciar a excelente

técnica e habilidade dos artistas e o valor da peça, poderá,não obstante, permanecer frio, sem que todo o desempe-nho o impressione ou o comova. A vida emocional das per-sonagens no palco é somente, com raras exceções, um subs-tituto da atmosfera. Isso é especialmente verdadeiro em nos-sa era intelectual e árida, em que tememos nossos própriossentimentos e os dos outros. Não esqueçamos que, no domí-nio da arte, no teatro, não há desculpa para o banimento deatmosferas. Um indivíduo, se assim o desejar, pode prescin-dir de seus sentimentos por algum tempo em sua vida priva-da; mas as artes, e o teatro em particular, avizinham-se lenta-mente da morte se as atmosferas deixam de resplandeceratravés de suas criações. A grande missão do ator, assimcomo a do diretor e a do autor teatral, é salvar a alma do tea-.tro e, concomitantemente, o futuro de nossa profissão.

Caso deseje aumentar seu senso de atmosfera e tambémadquirir uma certa técnica para criá-Ia de acordo com suavontade, seguem-se algumas sugestões de exercícios.

Exercício 14

Comece com a observação da vida a sua volta. Procuresistematicamente diferentes atmosferas que possa encon-trar. Tente não ignorar ou rejeitar atmosferas porque lhepareçam fracas, sutis ou dificilmente perceptíveis. Preste es-pecial atenção ao fato de que cada atmosfera que observaestá realmente difondida no ar, envolvendo pessoas e even-tos, enchendo recintos, flutuando nas paisagens, impreg-nando a vida de que ela é uma parte integrante.

Observe as pessoas enquanto estão cercadas por umacerta atmosfera. Veja se se movimentam e falam em harmo-nia com ela, se a ela se submetem, se lutam contra ela ouem que medida lhe são sensíveis ou indiferentes.

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Após um período de observação, quando sua capacidadede perceber atmosferas estiver suficientemente treinada eaguçada, comece fazendo experiências consigo mesmo. Cons-ciente e deliberadamente, procure submeter-se a certas at-mosferas, "escutá-Ias" como se estivesse ouvindo música, edeixe que elas o influenciem. Consinta que elas mobilizemseus próprios sentimentos individuais. Comece a movimen-tar-se e a falar em harmonia com as diferentes atmosferasque encontrar. Depois, escolha casos em que possa lutarcom uma atmosfera específica, tentando desenvolver e pre-servar sentimentos que forem contrários a ela.

Após ter trabalhado por algum tempo com atmosferasque encontra na vida real, comece a imaginar eventos e cir-cunstâncias com suas atmosferas correspondentes. Inspire-se na literatura, na história, em peças teatrais ou invente-asvocê mesmo. Visualize, por exemplo, a tomada da Bastilha.Imagine o momento em que o povo de Paris invade umadas celas da prisão. Deixe que a cena, criada por sua imagi-nação, apareça em seu espírito com superlativa clareza edepois diga a si mesmo: ''A multidão é inspirada por umaatmosfera de extrema agitação, ébria de força e de ilimitadopoder. Todos estão envolvidos nessa atmosfera." E agora ob-serve os rostos, os movimentos, os distintos grupos e cadauma das figuras da multidão. Atente para o ritmo do even-to. Escute os gritos, o timbre das vozes. Observe minuncio-samente todos os detalhes da cena e veja como a atmosferaimprime seu cunho em tudo e em todos nesse agitadoacontecimento.

Mude agora um pouco a atmosfera e, uma vez mais,observe sua perjormance. Dessa vez, deixe que a atmosferaassuma o caráter de perversa e implacdvel crueldade. Vejacom que poder e autoridade essa atmosfera alterada muda-rá tudo o que estiver acontecendo na cela da prisão! Rostos:

movimentos, vozes, grupos, tudo será diferente agora, tudoexpressará a vontade vingativa da multidão. Será uma per-formance diferente, embora o tema seja o mesmo.

Mude a atmosfera uma vez mais. Faça com que ela sejaarrogante, digna e majestosa. Uma nova transformação terálugar.

Aprenda agora a criar as atmosferas sem imaginar qual-quer ocorrência ou circunstância. Você pode fazê-lo imagi-nando o espaço, o ar seu redor repleto de uma certa atmos-fera, assim como pode enchê-lo de luz, fragrância, calor, frio,poeira ou fumaça. Imagine primeiramente qualquer at-mosfera simples e tranqüila, como aconchego, respeito, so-lidão, pressentimento, etc. Não se pergunte como é possí-vel imaginar um sentimento de respeito ou reverência ouqualquer outro sentimento flutuando no ar a sua volta antesde realmente rentá-lo. Dois ou três esforços o convencerãode que isso não só é possível como também extremamentefácil. Nesse exercício eu apelo para sua imaginação e não parasua razão fria, analítica. O que é nossa arte senão uma bela"ficção" baseada em nossa imaginação criativa? Faça esseexercício tão simplesmente quanto eu estou procurando trans-miti-lo. Não faça mais do que imaginar sentimentos que sepropagam e sedifondem a sua volta, enchendo o ar. Realize esseexercício com uma série de diferentes atmosferas.

Dê agora o passo seguinte. Escolha uma atmosfera defi-nida, imagine-a propagando-se a sua volta no ar e depois des-creva um movimento leve com o braço e a mão. Cuide queo movimento esteja em harmonia com a atmosfera circun-dante. Se escolheu uma atmosfera calma epacífica, seu mo-vimento será também sereno. Uma atmosfera de cautela con-duzirá seu braço e sua mão cautelosamente. Repita esse sim-ples movimento até ter a sensação de que braço e mão fo-ram impregnados da atmosfera escolhida. A atmosfera deve

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encher-lhe o braço e expressar-se completamente por meiode seu movimento.

Evite dois possíveis erros. Não seja impaciente em "de-sempenhar" ou "representar" a atmosfera com seu movimen-to. Não se iluda; tenha confiança no poder da atmosfera,imagine-a e corteje-a todo o tempo que for necessário (nãoserá realmente rnuitol) e depois movimente o braço e a mãodentro dela. Um outro erro que você poderá cometer é tentarobrigar-se a sentir a atmosfera. Procure evitar esse esforço.Você a sentirá a sua volta e dentro de si logo que concentrarnela adequadamente sua atenção. Ela agitará seus sentimen-tos naturalmente, sem nenhuma violência desnecessária e per-turbadora de sua parte. Acontecerá com você exatamente oque acontece na vida: quando depara com a atmosfera de umdesastre de rua, não pode deixar de senti-Ia.

Passe para movimentos mais complicados. Ponha-se depé, sente-se, apanhe um objeto e transporte-o para algumoutro lugar, abra e feche a porta, dê uma arrumação dife-rente às coisas sobre a mesa. Esforce-se por obter os mes-mos resultados que antes.

Diga agora algumas palavras, primeiro sem o acompa-nhamento de gestos, depois com eles. Palavras e gestos de-vem ser profundamente simples no começo. Tente-o comum diálogo corriqueiro, como: "Sente-se, por favor!" (umgesto de convite); "Já não preciso disso" (gesto de rasgarum papel); "Dê-me esse livro, por favor" (um gesto deindicação). Tal como antes, cuide que esses gestos estejamem total harmonia com a respectiva atmosfera. Executeesse exercício em diferentes atmosferas.

Avance um pouco mais no exercício. Crie uma atmos-fera a sua volta. Deixe que ela se fortaleça o bastante para quevocê se sinta totalmente familiarizado e íntimo com ela.Realize uma ação simples decorrente da atmosfera escolhi~

Nesse ponto retomamos à questão dos sentimentosindividuais e de como conduzi-los profissionalmente.

Os sentimentos individuais de um ator são, ou poderãotornar-se a qualquer momento, muito instáveis e capricho-sos. O ator não pode ordenar a si mesmo: ''Agora sinta-severdadeiramente triste ou alegre, amoroso ou odiento." Os

da e depois, pouco a pouco, desenvolva essa ação, conti-nuando a ser guiado pela atmosfera que flui do ambiente, atéconvertê-Ia numa cena curta. Faça esse exercício em diferen-tes atmosferas, com aquelas que têm um caráter mais violen-to, com êxtase, desespero, pânico, aversão ou heroísmo.

Volte a criar a sua volta uma certa atmosfera e, tendo-avivido por algum tempo, tente imaginar circunstâncias quese harmonizem com ela.

Leia peças teatrais e tente definir as respectivas atmosfe-ras, imaginando as cenas repetidas vezes (em lugar de usarseu raciocínio). Para cada peça, poderá organizar uma espé-cie de "tabela" de sucessivas atmosferas. Para criar essa "tabe-là', não precisa levar em conta a divisão de atos ou cenasdada pelo autor, porque a mesma atmosfera pode abrangermuitas cenas ou mudar várias vezes numa única cena.

Não esqueça tampouco a atmosfera global da peça.Cada peça possui essa atmosfera geral de acordo com suacategoria de tragédia, drama, comédia ou farsa; e cada peçatem, além disso, uma certa atmosfera individual.

Os exercícios sobre atmosfera podem ser feitos commuito êxito por um grupo. No trabalho de grupo, a atmos-fera mostrará seu poder unificado r a todos os participantes.Além disso, o esforço comum para criar uma atmosferaimaginando o espaço ou o ar como impregnados de um cer-to sentimento produz um efeito muito mais forte do que seesse esforço fosse exercido somente por um indivíduo.

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atores são compelidos, com excessiva freqüência, a fingirque estão sentindo no palco, e são numerosas por demais astentativas malogradas para fazer brotar esses sentimentosde seu íntimo. Na maioria dos casos, não se trataria mera-mente de um "feliz acidente", mais do que de um triunfode habilidade técnica, quando um ator é capaz de despertarseus sentimentos, sempre que quiser ou deles necessitar? Osverdadeiros sentimentos artísticos, caso se recusem a apare-cer por si mesmos, devem ser induzidos por algum recursotécnico que faça o ator adquirir o controle sobre eles.

Parecem existir muitas maneiras de despertar sentimen-tos criativos. Já mencionamos uma imaginação bem treinadae a vivência dentro de uma atmosfera. Consideremos agoraum outro recurso e, passo a passo, o modo de concretizá-to naprática.

Levante um braço. Abaixe-o. O que foi que você fez?Executou uma simples ação física. Fez um gesto. E o fez semqualquer dificuldade. Por quê? Porque, como toda e qual-quer ação, esse gesto está completamente dentro de sua von-tade. Agora execute o mesmo gesto mas, dessa vez, matize-ocom uma certa qualidade. Seja essa qualidade a cautela. Vocêfará seu gesto, seu movimento, cautelosamente. Não o fezcom o mesmo desembaraço? Repita-o várias vezes e veja en-tão o que acontece. Seu movimento, feito cautelosamente,deixou de ser mera ação física; agora ele adquiriu uma certanuança psicológica. O que é essa nuança?

É uma sensaçãode cautela que agora enche e impregna seubraço. É uma sensação psicofísica. Do mesmo modo, se movi-mentar seu corpo inteiro com a qualidade da cautela, entãoseu corpo todo será naturalmente invadido por .essasensação.

A sensação é o vaso onde seus sentimentos artísticosgenuínos são despejados facilmente e por si mesmos; é umaespécie de magneto que atrai para si sentimentos e emoção

análogos à qualidade, seja ela qual for, que você escolheupara seu movimento.

Pergunte-se agora se forçou seus sentimentos. Deu a simesmo a ordem de "sentir-se cauteloso"? Não. Você apenasfez um movimento dotado de uma certa qualidade, criandoassim uma sensação de cautela através da qual despertou seussentimentos. Repita esse mesmo movimento com váriasoutras qualidades, e o sentimento, seu desejo, será cada vezmais forte.

Aqui está, pois, o mais simples recurso técnico para des-pertar seus sentimentos se eles se tornarem obstinados, ca-prichosos e se recusarem a funcionar exatamente quandovocê deles necessita em seu trabalho profissional.

Depois de alguma prática você descobrirá que, tendoescolhido uma certa qualidade e tendo-a convertido numasensação, obterá muito mais do que esperava de seus esfor-ços. A qualidade de cautela, para dar apenas um exemplo,poderá despertar em você não só um sentimento de cautelamas também toda a gama de sentimentos afins dessa caute-la, de acordo com as circunstâncias dadas na peça. Comosubproduto dessa qualidade cautelosa, você poderá sentir-se irritado ou alerta, como se enfrentasse um perigo; poderásentir-se consolador e terno, como se protegesse uma crian-ça; frio e reservado, como se se protegesse a si mesmo; oualgo atônito e curioso quanto aos motivos pelos quais deveser cauteloso. Todos esses matizes de sentimentos, porvariados que sejam, estão ligados à sensação de cautela.

Mas, perguntará você, como se aplica tudo isso quandoo corpo se encontra em posições estáticas?

Qualquer posição do corpo pode ser impregnada dequalidades, exatamente como qualquer movimento. Tudoo que você precisa fazer é dizer a si mesmo: "Vou ficar depé, sentar-me ou deitar-me com esta ou aquela qualidade

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em meu corpo", e a reação virá imediatamente, convocan-do um caleidoscópio de sentimentos a partir do mais ínti-mo de sua alma.

Pode facilmente acontecer que, enquanto trabalha umacena, um ator fique em dúvida sobre que qualidade, quesensação terá de escolher. Em face de tal dilema, não hesiteem adotar duas ou mesmo três qualidades para sua ação.Pode experimentar uma após outra em busca daquela queserá a melhor ou combiná-Ias todas de uma só vez. Supo-nhamos que você adote a qualidade do abatimento e, aomesmo tempo, as qualidades de desespero, reflexão ou có-lera. Seja qual for o número de qualidades adequadas queselecione e combine, elas se fundirão sempre numa únicasensação para você, à semelhança de um acorde dominanteem música.

Assim que seus sentimentos forem estimulados, vocêserá arrebatado por eles, e o seu exercício, ensaio ou peifor-mance terá encontrado a verdadeira inspiração.

mentos a se manifestarem, em vez de seguir e confiar natécnica sugeri da. Não se apresse em obter os resultados.

Faça o mesmo com movimentos amplos e largos, talcomo no Exercício 1.

Escolha novamente uma qualidade de movimento ouação e acrescente-lhes duas ou três palavras. Profira essaspalavras com a sensação que surge em você.

Casose exercite com parceiros, faça improvisações sim-ples e use palavras. Pode improvisar um vendedor e umprovável cliente. Antes de começar, combine as qualidadesque você e seus parceiros irão usar em cada caso.

Não empregue um número excessivo de palavras desne-cessárias enquanto se exercita com parceiros.

As falas supérfluas levam-no freqüentemente a deso-rientar-se; dão a impressão de que está fazendo ativamenteo exercício quando, na realidade, paralisam a ação e a subs-tituem pelo conteúdo intelectual das palavras. Assim, umexercício densamente verbal degenera numa conversa vul-gar e insípida.

Exercício 15

Execute uma ação simples, natural. Apanhe um objetoda mesa, abra ou feche uma janela ou uma porta, sente-se,ponha-se de pé, caminhe ou corra pela sala. Execute essaação várias vezes, até que possa desempenhá-Ia facilmente,com desenvoltura. Agora invista-a de certas qualidades,executando-a com calma, segurança, irritação, mágoa, afli-ção, sorrateira ou delicadamente. Depois, tente a ação comas qualidades de modelagem, flutuação, vôo e irradiação.Em seguida, imprima a sua ação as qualidades de staccato,legato, desenvoltura, forma, etc. Repita esse exercício atéque a sensação ocupe todo o seu corpo e seus sentimentoslhe respondam facilmente. Procure não forçar seus sen:i-

Esses exercícios simples também desenvolverão uma for-te sensação de harmonia entre sua vida interior e suas ma-nifestações.

Talvez convenha resumir este capítulo sobre Atmosferae Sentimentos Individuais com os seguintes destaques:

1. A atmosfera inspira o ator.2. Une o público e o ator, assim como os atores entre si.3. Aprofunda a percepção do espectador.4. Não podem coexistir duas atmosferas contrastantes.

Mas os sentimentos individuais das personagens, ainda quecontrastem com a atmosfera, podem existir simultanea-mente com ela.

5. A atmosfera é a alma da peiformance.

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Para o ator

Capítulo 5O gesto psicológico6. Observe a atmosfera na vida.

7. Imagine a mesma cena com diferentes atmosferas.8. Crie atmosferas a sua volta, sem nenhuma circuns-

tância dada.9. Movimente-se e fale em harmonia com a atmosfera

que criou, seja ela qual for.10. Imagine circunstâncias adequadas para a atmosfera

quecnou.11. Organize numa "tabela" as atmosferas que cria.12. Concretize movimentos dotados de qualidades-sen-

sações-sentimentos.

A alma deseja habitar no corpo porque,sem os membros do corpo, ela não pode

agir nem sentir.

Leonardo da Vinci

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No capítulo anterior, eu disse que não odemos con-trolar diretamente nossos sentimentos mas que podemosinstigá-los, provocá-los e induzi-los por certos meios indi-retos'IA mesma coisa deve ser dita acerca de nossos desejos,necessidades, anseios, carências, apetites, nostalgias e aspi-rações, que se geram, embora sempre misturados com sen-timentos, na esfera de nossa força de vontade.

Nas qualidades e nas sensações encontramos a chavepara o tesouro de nossos sentimentos. Mas existirá tal chavepara nossa força de vontade? Sim, e encontramo-Ia nomovimento (ação, gesto). Você pode facilmente provar isso asi mesmo tentando fazer um gesto forte, bem delineado,mas simples. Repita-o várias vezes e você verá que, após umcerto tempo, a força de vontade tornar-se-á cada vez maisforte sob a influência desse gesto.

Além disso, descobrirá que a espécie de movimento quefizer dará a sua força de vontade uma certa direção ou incli-

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nação; ou seja, despertará e animará em você uma necessi-dade e um desejo definidos.

Assim, podemos dizer que o vigor do movimento insti-ga nossa força de vontade em geral; que a espéciede movi-mento desperta em nós um definido desejo correspondentee que a qualidade desse mesmo movimento evoca nossossentimentos.

Antes de ver corno esses simples princípios podem seraplicados a nossa profissão, apresentemos alguns exemplosdo próprio gesto, a fim de oferecer uma idéia geral de suasconotações.

Imagine que você vai interpretar urna personagem que,de acordo com sua primeira impressão geral, possui urnavontade férrea e inquebrantável, está dominada por desejosautoritários, despóticos, e cheia de ódio e desprezo ou repulsa.

Você trata de procurar um gesto global adequado quepossa expressar tudo isso na personagem e, após algumastentativas, talvez o descubra (ver Desenho 1).

É forte e bem delineado. Quando repetido várias vezes,tenderá a fortalecer sua vontade. A direção de cada mem-bro, a posição final de todo o corpo, assim corno a inclina-ção da cabeça são tais que evocarão inevitavelmente umdesejo definido de dominação e conduta despótica. As quali-dades que enchem e impregnam cada músculo do corpoprovocarão dentro de você sentimentos de ódio e desprezoou repulsa. Assim, por meio do gesto você penetra e esti-mula as profundezas de sua própria psicologia.

Um outro exemplo:Dessa vez, você define o caráter como agressivo, talvez

até fanático, com urna vontade algo veemente, apaixonada.A personagem está completamente aberta a influências vin-das do "alto" e obcecada pelo desejo de receber e até forçar"inspirações" oriundas dessas influências. Está cheia .?e

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o gesto psicológico

DESENHO 1

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qualidades místicas mas, ao mesmo tempo, planta-se comfirmeza no chão e recebe influências igualmente fortes domundo terreno. Por conseguinte, é uma personagem capazde conciliar em si mesma influências de cima e de baixo(ver Desenho 2).

Para o exemplo seguinte, escolheremos uma persona-gem que, de certo modo, contrasta com a segunda. É intei-ramente introspectiva, sem o menor desejo de entrar emcontato com o mundo de cima ou de baixo, mas não neces-sariamente um caráter fraco. Seu desejo de isolamentopode ser muito forte. Uma qualidade cismática, melancóli-ca, impregna todo o seu ser. Pode gostar de sua solidão (verDesenho 3).

Para o exemplo que se segue, imagine um caráter intei-ramente ligado a um tipo terreno de vida. Sua vontade po-derosa e egoísta é constantemente atraída para baixo. Todosos seus apaixonados desejos e apetites ostentam o cunhodas qualidades baixas, ignóbeis ou mesquinhas. Não temsimpatia por nada nem por ninguém. Desconfiança, sus-peita e reprovação enchem toda a sua vida interior, intro-vertida e limitada. A personagem nega um modo reto ehonesto de vida, optando sempre por caminhos sinuosos edesonestos. É um tipo de pessoa egocêntrica e, por vezes,agressiva (ver Desenho 4).

Ainda outro exemplo. Poderemos ver o vigor dessecaráter em sua vontade negativa, contestadora. Sua princi-pal qualidade poderá parecer-nos o sofrimento, talvez como matiz da cólera ou da indignação. Por outro lado, umacerta fraqueza impregna sua forma inteira (ver Desenho 5).

Um último exemplo. Dessa vez, sua personagem é denovo um tipo fraco, incapaz de protestar e de lutar paraabrir caminho na vida; altamente sensível, propensa aosofrimento e à autocomiseração, com o forte desejo de.

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o gesto psicológico

DESENHO 2

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Para o ator o gesto psico16gico

DESENHO 3 DESENHO 4

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Para o ator

DESENHO 5

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o gesto psico16gico

DESENHO 6

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Para o ator o gesto psicológico

expressar-se por meio de lamentações e queixumes (ver De-senho 6).

Também nesse caso, como nos anteriores, estudando eexercitando os gestos e suas posições finais, o ator sentirásua tríplice influência sobre sua psicologia.

Recomendamos com insistência que tenha em mente ofato de todos os gestos e suas interpretações, tais como fo-ram demonstrados, serem apenas exemplos de casos possí-veis e não, em absoluto, obrigatórios para seu enfoque indi-vidual, quando estiver procurando gestos globais.

Chamerno-lhes GestosPsicológicos(doravante citados co-mo GPs), porque seu objetivo é influenciar, instigar, moldare sintonizar toda a sua vida interior com seus fins e propó-sitos artísticos.

Passamos agora ao problema de aplicar o GP ao traba-lho profissional.

Há uma peça teatral escrita, que você tem diante dosolhos, com o papel que lhe foi nela destinado. Por enquantoé apenas uma obra literária inanimada. É sua tarefa e de seuscompanheiros de elenco transformá-Ia numa obra de arteteatral viva e cênica. O que terá de fazer para cumprir essatarefa?

Para começar, deve fazer uma primeira tentativa de in-vestigação de sua personagem, penetrar nela, a fim de saberquem é que vai interpretar no palco, que espécie de pessoaela é. Pode fazer isso usando sua mente analítica ou aplican-do o GP. No primeiro caso, escolhe um longo e laboriosocaminho, porque a mente racional, de um modo geral, nãoé suficientemente imaginativa, é demasiado fria e abstratapara que possa realizar um trabalho artístico. Poderá facil-mente enfraquecer e retardar por muito tempo sua capaci-dade de interpretação. Talvez note que, quanto mais suamente "conhece" a respeito da personagem, menos você está

apto a representá-Ia no palco. Isso é urna lei psicológica. Tal-vez você saiba muito bem quais são os sentimentos e os de-sejos de sua personagem, mas esse conhecimento, por si só,não o habilita a satisfazer verdadeiramente a seus desejos oua vivenciar sinceramente seus sentimentos no palco. É comoconhecer tudo a respeito de uma determinada ciência ouarte mas ignorar o fato de que essa inteligência per se estámuito longe de significar proficiência nessa ciência ou arte.É claro que sua mente pode ser e será muito útil para quevocê avalie, corrija, verifique, faça aditamentos e ofereçasugestões; entretanto, ela não forá nada disso antes que suaintuição se tenha afirmado efolado plenamente. Isso não querdizer, em absoluto, que a razão (ou o intelecto) seja posta delado na preparação do papel mas é uma advertência paraque não recorra a ela, não deposite nela suas esperanças epara que, no início, ela seja mantida no background, de mo-do que não obstrua nem dificulte seus esforços criativos.

Mas, se escolher um outro método, mais produtivo, seaplicar o GP a fim de estudar sua personagem, estará recor-rendo diretamente a suas forças criativas e não se tornará umator "livresco" ou um que se limita a "papaguear" seu papelmecanicamente.

Mais de um ator me perguntou: "Como posso encon-trar o GP sem conhecer primeiro o caráter da personagempara a qual deve ser encontrado o Gp, se o uso do intelectonão é recomendado?"

Pelos resultados dos exercícios anteriores, você terá cer-tamente de admitir que sua sólida intuição, imaginaçãocriativa e visão artística lhe proporcionam sempre algumaidéia, pelo menos, do que é sua personagem, mesmo nosprimeiros contatos com ela. Pode ser apenas uma conjetu-ra, um palpite, mas você pode confiar nele e usá-lo comotrampolim para sua primeira tentativa de construção do

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GP. Pergunte a si mesmo qual poderá ser o principal desejoda personagem e, quando obtiver uma resposta, mesmoque seja tão-somente uma sugestão, comece construindo seuGP passo a passo, usando primeiro a mão e o braço apenas.Pode jogá-Ios para diante, agressivamente, apertar os pu-nhos, se o desejo lhe lembrar agarrar ou capturar (cobiça,avareza, cupidez, ganância, mesquinhez); ou poderá esten-dê-los lenta e cautelosamente, com reserva e prudência, se apersonagem deseja tatear ou explorar de maneira pondera-da e tímida; ou poderá dirigir ambas as mãos e braços parao alto, suave e facilmente, com as palmas abertas, caso suaintuição lhe diga que a sua personagem quer receber, im-plorar, suplicar com devoção; ou talvez você queira dirigi-Ias para baixo, bruscamente, com as palmas voltadas para ochão, os dedos retorcidos como garras, se a personagemanseia por dominar, possuir. Uma vez iniciado esse méto-do, deixará de sentir qualquer dificuldade (de fato, aconte-cerá naturalmente) em ampliar e ajustar seu gesto aos om-bros, ao pescoço, à posição de sua cabeça e torso, pernas epés, até que todo o seu corpo esteja assim ocupado. Tra-balhando desse modo, não tardará a descobrir se seu pri-meiro palpite quanto ao primeiro desejo da personagem eracorreto ou não. O próprio GP o conduzirá a essa descober-ta, sem muita interferência por parte da mente racional.Em alguns casos, poderá sentir a necessidade de realizar seuGP a partir de uma posição que lhe foi sugerida pela: perso-nagem, e não a partir de uma posição neutra. Considere onosso segundo GP (ver Desenho 2), onde se expressa umaabertura e uma expansão completas. Sua personagem podeser introspectiva ou introvertida, e seu principal desejo po-de definir-se como um impulso irresistível para se mostraraberta e receptiva às influências vindas de cima. Nesse casovocê poderia partir de uma posição mais ou menos fecha-

da, em vez de neutra. Na escolha de uma posição de parti-da, você é, evidentemente, tão livre quanto na criação dequalquer GP.

Agora continue desenvolvendo o Gp, corrigindo-o e me-lhorando-o, adicionando-lhe todas as qualidades que en-contra na personagem, levando-a lentamente até o estágiode perfeição. Após uma breve experiência, estará apto a en-contrar o GP correto praticamente de imediato, e só teráque o aperfeiçoar de acordo com seu próprio gosto ou como de seu diretor, enquanto visa a sua versão final.

Ao usar o GP como um meio de exploração da perso-nagem, você faz realmente mais do que isso. Na verdade,prepara-se para interpretá-Ia. Elaborando, melhorando, aper-feiçoando e exercitando o GP, ao mesmo tempo você estáse tornando cada vez mais a própria personagem. Sua von-tade, seus sentimentos são instigados e despertos em seuíntimo. Quanto mais progredir nesse trabalho, mais o GPlhe revela a personagem inteira em forma condensada,fazendo de você o detentor e o senhor de seu núcleo imutá-vel (a que aludimos no Capítulo 1).

Assumir um GP significa, portanto, preparar o papelinteiro em sua essência,após o que se tornará uma fácil tarefaelaborar todos os detalhes nos ensaios realizados no palco.Não terá de vacilar e tatear o caminho, como freqüentemen-te acontece quando o ator começa vestindo um papel comcarne, sangue e nervos, sem ter descoberto primeiro suacoluna vertebral. O GP fornece-lhe justamente essa colunavertebral. É o modo mais curto, mais fácil e mais artístico detransformar uma criação literária numa obra de arte cênica.

Até agora falei do GP como aplicável à personageminteira. Mas o ator pode igualmente usá-lo para qualquersegmento do papel, para cenas ou falas separadas, se assimo desejar, ou até para frases separadas. O modo de desco-

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bri-lo e aplicá-lo nesses casos mais breves é exatamente omesmo que para a personagem toda.

Se tiver quaisquer dúvidas sobre como reconciliar o GPglobal para o papel como um todo com GPs particulares,menores, para distintas cenas, a seguinte ilustração servirápara esclarecer esse ponto.

Imagine três personagens diferentes: Hamlet, Falstaff eMalvólio. Cada uma dessas personagens pode encolerizar-se, tornar-se pensativa ou começar a rir. Mas não farão ne-nhuma dessas coisas do mesmo modo, porquanto são per-sonagens diferentes. Suas diferenças influenciarão sua cólera,sua meditação e seu riso. O mesmo ocorre com GPs dife-rentes. Sendo uma essência da personagem toda, o GP glo-bal influenciará espontaneamente todos os GPs menores. Asensibilidade bem desenvolvida do ator ao GP (ver o exer-cício seguinte) rnosirar-Ihe-á intuitivamente que matizesdevem ser elaborados em todos os GPs menores a fim deque condigam e se harmonizem com o GP maior. Quantomais se trabalhar os GPs, mais se perceberá como são flexí-veis, que possibilidades ilimitadas oferecem para colori-losdo modo que se quiser. O que pode parecer um problemainsolúvel para a mente estéril e calculista é resolvido comextrema simplicidade pela intuição criativa e a imaginação,que é donde promana o GP.

Por outro lado, poderá usar esses GPs menores apenasenquanto precisar deles para estudar sua cena, sua fala, etc.,e depois abandoná-los completamente. Mas o GP globalpara a personagem ficará sempre com você.

Uma outra pergunta que pode surgir no espírito do atoré esta: "Quem me diz se o GP que encontro para minhapersonagem é o certo?" A resposta: "Só você e ninguémmais. "É sua própria e livre criação, através da qual sua indi-vidualidade se expressa. Está certa se lhe satisfizer como arti~:

ta. Entretanto, o diretor tem todo o direito de sugerir alte-rações ao GP que o ator encontrou.

A única pergunta que o ator pode permitir-se a esse res-peito é se executou o GP corretamente ou não; isto é, se ob-servou todas as condições necessárias para tal gesto. Inves-tiguemos essas condições.

Existem duas espécies de gestos. Uma que usamos tantoquando atuamos no palco como na vida cotidiana: são osgestos naturais e usuais. A outra espécie consiste no quepoderíamos chamar de gestos arquetípicos, aqueles que ser-vem como modelo original para todos os gestos possíveis damesma espécie. O GP pertence a esse segundo tipo. Os ges-tos cotidianos são incapazes de instigar nossa vontade por-que são excessivamente limitados, fracos demais e particula-rizados. Não ocupam todo o nosso corpo, psicologia e alma,ao passo que o Gp, como arquétipo, apossa-se deles inteira-mente. (Você se preparou para fazer gestos arquetípicos noExercício 1, quando aprendeu a executar movimentos lar-gos e amplos, usando o máximo de espaço a sua volta.)

O GP deve ser forte, a fim de poder estimular e aumen-tar nossa força de vontade, mas nunca deve ser produzidopor meio de desnecessária tensão muscular (a qual enfra-quece o movimento, em vez de aumentar-lhe a força). Éclaro que se o GP é de natureza violenta, como o escolhidopara nosso primeiro exemplo (ver Desenho 1), então não sepode evitar o uso do vigor muscular; mas até mesmo nessecaso a verdadeira força do gesto é mais psicológica do quefísica. Pense numa mãe carinhosa apertando seu bebê con-tra o seio com toda a veemência do amor materno e, no en-tanto, com os músculos quase completamente descontraí-dos. Se você exercitou adequada e suficientemente os movi-mentos de moldagem, flutuação, vôo e irradiação (ver Ca-pítulo 1), saberá que a verdadeira força nada tem a ver como excesso de tensão de seus músculos.

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Em nossos dois últimos exemplos (5 e 6), supusemosque as personagens eram mais ou menos fracas. Por conse-guinte, pode suscitar-se a pergunta sobre se, ao apresentar-seuma personagem fraca, o próprio gesto não deve tambémperder sua força. A resposta é não, em absoluto. O GP devepermanecer sempre forte, e a fraqueza deve ser encaradasomente como sua qualidade. Assim o vigor psicológico doGP pouco sofrerá, seja ele apresentado com brandura, ter-nura, afeto, amor ou mesmo com qualidades como preguiçaou cansaço, combinados com fraqueza. Além disso, é o ator,e não a personagem, que produz um GP forte, e é a perso-nagem, e não o ator, que é indolente, cansada ou fraca.

Ademais, o GP deve ser tão simples quanto possível,porque sua tarefa consiste em resumir a intricada psicologiade uma personagem de forma facilmente verificável, emcomprimi-Ia em sua essência. Um GP complicado não tempossibilidade alguma de fazê-Io. Um verdadeiro GP asse-melha-se aos largos traços a carvão na tela de um artista,antes de ele começar a elaborar os detalhes. É, repetimos, oesqueleto em torno do qual será edificada toda a complica-da construção arquitetônica da personagem.

O GP deve ainda ter uma forma muito clara e definida.Qualquer imprecisão nele existente deve provar ao ator queainda não é na essência, no cerne da psicologia da persona-gem que ele está trabalhando. (O senso de forma, comorecordarão, estava implícito no exercício sobre movimentosde modelagem, flutuação e outros, Capítulo 1.)

Muito depende também do ritmo em que se exercita oGp, uma vez que este tenha sido encontrado. Todas as pes-soas empregam diferentes ritmos na vida. Isso dependeprincipalmente do temperamento e do destino de cada um.Pode-se dizer o mesmo das personagens de uma peça. Oritmo geral em que a personagem vive depende largamen.:e

da interpretação que o ator lhe dá. Comparem-se osDesenhos 2 e 3. Você reconhece e sente como o ritmo devida é muito mais rápido no primeiro? _

O mesmo GP realizado em ritmos diferentes pode termudadas suas qualidades, sua força de vontade e sua susce-tibilidade a diferentes nuanças. Tome qualquer de nossosexemplos de GP e tente produzi-los, primeiro em ritmoslentos, depois em ritmos rápidos.

Estude o gesto do primeiro desenho, por exemplo:reduzido seu ritmo, ele evoca em nossa imaginação umapersonagem ditatorial, um tanto obstinada, sagaz, refletida,capaz de planejar e de conspirar e, de certo modo, pacientee auto controlada; acelere o ritmo e a personagem torna-seum caráter cruel, implacável, criminosa, de uma vontadesem freios, incapaz de qualquer conduta racional.

Muitas transformações por que pode passar uma perso-nagem no decorrer da peça são freqüentemente suscetíveisde expressar-se mediante uma simples mudança de ritmono mesmo GP que foi encontrado para o papel. (O proble-ma de ritmo no palco será discutido adiante mais porme-norizadamente.)

Tendo atingido o limite físico do Gp, quando seu corpoé incapaz de ampliá-lo mais, você deverá ainda continuar atentar por algum tempo (dez a quinze segundos), ultrapas-sando as fronteiras de seu corpo mediante a irradiação desua energia e de suas qualidades na direção indicada peloGp. Essa irradiação fortalecerá imensamente e verdadeiraforça psicológica do gesto, habilitando-a a produzir maiorinfluência sobre sua vida interior.

As poucas condições precedentes são aquelas que de-vem ser observadas a fim de se criar um correto Gp.

Agora sua tarefa será desenvolver uma fina sensibilidadepara o gesto que executa.

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Exercício 16

Adote como ilustração o GP de uma personagem que sefecha calmamente em si mesma (ver Desenho 7). Encontreuma frase que lhe corresponda; por exemplo: "Desejo queme deixem só." Ensaie o gesto e a frase simultaneamente,para que as qualidades de vontade comedida e calma pene-trem em sua psicologia e em sua voz. Depois, comecefazendo pequenas alterações no GP. Se, digamos, a posiçãode sua cabeça tinha sido ereta, incline-a ligeiramente parabaixo e projete seu olhar na mesma direção. Que mudançaisso efetuou em sua psicologia? Sentiu que à qualidade decalma foi adicionada uma leve coloração de insistência, obs-tinação?

Faça várias vezes esse GP alterado, até ser capaz de pro-ferir sua frase em completa harmonia com a mudança queocorreu.

Realize uma nova alteração. Dessa vez, dobre levementeseu joelho direito, transferindo o peso do corpo para a pernaesquerda. O GP poderá agora adquirir um matiz de renúncia,de capitulação. Erga as mãos até o rosto, e a qualidade derenúncia pode tornar-se mais forte e novas e ligeiras nuançasde inevitabilidade e solidão serão introduzidas. Jogue a cabeçapara trás e feche os olhos: surgirão as qualidades de sofrimentoe empenho da palavra. Volte as palmas para fora: autodefesa.Incline a cabeça para o lado: autocomiseração. Dobre os trêsdedos do meio de cada mão: poderá ocorrer uma leve suges-tão de humor. Com cada alteração, diga a mesma frase demodo que se harmonize com ela.

Recorde-se de que esses exemplos também são apenasalgumas das possíveis experiências que o GP pode trazer-nos à mente; de fato, sua gama pode ser ilimitada. Sinta-sesempre livre para interpretar todos os gestos com suas alte-

DESENHO 7

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rações. Quanto menor for a mudança em seu gesto, mais sutilserá a sensibilidade que se desenvolverd em você.

Continue esse exercício até que seu corpo todo - a posi-ção de cabeça, ombros, pescoço, os movimentos de braços,mãos, dedos, cotovelos, torso, pernas, pés, a direção de seuolhar - desperte em você reações psicologicamente corres-pondentes.

Escolha qualquer Gp, exercite-o por algum tempo emritmo. lento e depois aumente-o gradativamente, até atingiro ritmo mais rápido possível. Procure vivenciar a reaçãopsicológica que cada ritmo suscita em vo.cê (poderá usar,como ponto de partida, os exemplos sugeridos). Para cadagrau de ritmo encontre uma nova frase adequada e diga-aenquanto executa seu gesto.

Esse exercício sobre sensibilidade também aumentaráconsideravelmente o senso de harmonia entre seu corpo,sua psicologia e sua fala. Desenvolvido em alto grau, vocêdeve estar apto a dizer: "Sinto meu corpo e minha falacomo continuação direta de minha psicologia. Sinto-oscomo partes visíveis e audíveis de minha alma."

Você não tardará a notar que, enquanto atua, desempe-nhando seu papel, declamando suas falas, fazendo gestossimples e naturais, o GP está, de algum modo, sempre pre-sente no mais recôndito de seu espírito. Ajuda-o e orienta-ocomo um diretor, amigo e guia invisível, que nunca deixade inspirá-lo quando você mais necessita de inspiração.Preserva sua criação numa forma condensada e cristalizada.

Também notará que a forte e colorida vida interior quevocê invocou em seu íntimo por meio do GP lhe propiciamaior expressividade, por mais econômica e discreta queseja sua atuação. (Penso não ser sequer necessário mencio-nar que o próprio GP nunca deve ser mostrado ao público,assim como não se espera que um arquiteto mostre "ao

público os andaimes de seu edifício, em vez da obra-primaconcluída. Um GP é a armação de seu papel e deve perma-necer como um "segredo" técnico.)

Se você se exercitar em grupo, faça improvisações cur-tas, usando diferentes GPs para cada um dos participantes.

Além dos exercícios iniciados com o Desenho 7, reco-menda-se o seguinte:

Escolha uma frase curta e diga-a, adotando diferentesposições naturais ou fazendo distintos movimentos cotidia-nos (não-GPs). Podem consistir em sentar-se, deitar-se, pôr-se de pé, caminhar pela sala, encostar-se a uma parede, olharpor uma janela, abrir ou fechar uma porta, entrar ou sair deuma sala, apanhar um objeto e voltar a colocá-lo onde esta-va, e assim por diante. Cada movimento ou posição corpo-ral, invocando um certo estado psicológico, sugerir-Ihe-ácomo dizer sua frase, com que intensidade, com que quali-dade e em que ritmo. Mude suas posições e movimentosmas diga a mesma frase de cada vez. Isso aumentará emvocê o senso de harmonia entre corpo, psicologia e fala.

Agora, tendo desenvolvido suficiente sensibilidade, ten-te criar uma série de GPs para diferentes personagens, ob-servando todas as condições previamente descritas: arquéti-po, vigor, simplicidade, etc. No começo, escolha persona-gens de peças teatrais, da literatura e da história; depois,descubra GPs para pessoas vivas que conheça bem; emseguida, para pessoas que encontrou acidental e brevemen-te nas ruas. Finalmente, crie algumas personagens em suaimaginação e encontre GPs para elas.

Como passo seguinte desse exercício, escolha uma per-sonagem de uma peça que você nunca viu ou na qual nuncaatuou. Encontre e desenvolva um GP para ela. Absorva-acompletamente e então procure ensaiar uma cena muito

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Para o ator o gesto psicológico

curta da peça com base nesse GP. (Se possível, faça-o comparceiros.)

Cabe dizer aqui algumas palavras finais a respeito doritmo.

Nossa concepção usual de ritmo no palco não faznenhuma distinção entre as variedades interior e exterior. Oritmo interior pode ser definido como uma rápida ou lentamudança de pensamentos, imagens, sentimentos, impulsosvolitivos, etc. O ritmo exterior expressa-se em ações e falasrápidas ou lentas. Ritmos interiores e exteriores contrastan-tes podem apresentar-se simultaneamente no palco. Porexemplo, uma pessoa pode esperar algo ou alguém impa-cientemente; as imagens em sua mente desenrolam-se emrápida sucessão, pensamentos e desejos acendem-se-lhe noespírito, perseguindo-se uns aos outros, expulsando-se mu-tuamente, aparecendo e desaparecendo; sua vontade é exci-tada ao máximo; e, no entanto, ao mesmo tempo, a pessoapode controlar-se de modo que seu comportamento exte-rior, seus movimentos e sua fala permaneçam calmos e emritmo lento. Um ritmo exterior lento pode desenvolver-seconcorrentemente com um ritmo interior rápido e vice-versa. O efeito de dois ritmos contrastantes desenvolvendo-se simultaneamente no palco produz inevitavelmente umaforte impressão no público.

Não se deve confundir ritmo lento com passividade oufalta de energia no próprio ator. Seja qual for o ritmo lentoque você use no palco, seu eu como artista deve ser sempreativo. Por outro lado, o ritmo rápido de sua performancenão deve converter-se em pressa óbvia nem numa desneces-sária tensão psicológica e física. Um corpo flexível, bemtreinado e obediente e uma boa técnica declamatória aju-dam o ator a evitar esse erro e possibilitam a correção e ouso simultâneo de dois ritmos contrastantes.

Exercício 17

Faça uma série de improvisações com ritmos interior eexterior contrastantes.

Por exemplo: um grande hotel à noite. Moços, commovimentos rápidos, eficientes, habituais, retiram baga-gens dos elevadores, separam-nas e carregam-nas até osautomóveis que as aguardam e devem apressar-se para pe-gar o trem noturno. O ritmo exterior dos moços é rápido,mas eles são indiferentes à excitação dos hóspedes que estãoliquidando suas contas para sair. O ritmo interior dos mo-ços é lento. Os hóspedes que saem, pelo contrário, tentan-do conservar uma calma exterior, estão intimamente exci-tados, receando perder o trem; seu ritmo exterior é lento,mas o interior é rápido.

Para mais exercícios sobre ritmos interiores e exteriores,podem ser usados os exemplo contidos no Capítulo 12.

Leia peças teatrais com o propósito de tentar identificardiferentes ritmos em distintas combinações.

Resumo sobre o Gesto Psicológico:1. O GP estimula nossa força de vontade, dá-lhe uma

direção definida, desperta sentimentos e oferece-nos umaversão condensada da personagem.

2. O GP deve ser arquetípico, forte, simples e bem for-mado; deve irradiar e ser desempenhado no ritmo correto.

3. Desenvolva a sensibilidade ao GP.4. Saiba distinguir entre ritmos interiores e exteriores.

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Capítulo 6Personagem e caracterização

Transformação - eis aquilo por queanseia a natureza do ator, consciente ou

subconscien temente.

Consideremos agora o problema da criação da Perso-nagem.

Não existem papéis que possam ser considerados os cha-mados papéis "convencionais" ou papéis em que o atormostre sempre ao público o mesmo "tipo" - ele próprio, talcomo é na vida privada. Há muitas razões para as lamentá-veis concepções errôneas sobre a "verdadeira arte dramáti-ca", mas não temos por que insistir nelas aqui. É suficientesublinhar o trágico fato de que o teatro, como tal, nuncacrescerá nem se desenvolverá se se consentir que prospereessa destrutiva atitude de "sou eu mesmo" - já profunda-mente enraizada. Toda e qualquer arte serve ao propósito dedescobrir e revelar novos horizontes de vida e novas facetasnos seres humanos. Um ator não pode dar a seu público no-vas revelações se apenas se mostrar invariavelmente ele mes-mo no palco. Como avaliar um autor teatral que em todasas suas peças se dramatiza a si mesmo, persistentemente,

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Para o ator Personagem e caracterização

como o protagonista, ou um pintor que só é capaz de criarauto-retratos?

Assim como nunca encontraremos duas pessoas preci-samente iguais na vida, também nunca encontraremos doispapéis idênticos em peças teatrais. Aquilo que constituisuas diferenças faz deles personagens. E será um bom pontode partida para um ator, a fim de apreender a idéia inicialacerca da personagem que irá interpretar no palco, pergun-tar a si mesmo: "Qual é a diferença - por mais sutil ou ligei-ra que possa ser - entre mim e a personagem tal como foidescrita pelo autor?"

Assim fazendo, o ator não só perderá o desejo de pintarseu "auto-retrato" repetidamente como também descobriráas principais características psicológicas de sua personagem.

Depois o ator defronta-se com a necessidade de incor-porar essas características que estabelecem a diferença entresi mesmo e a personagem. Como abordar essa tarefa?

A abordagem mais curta, mais artística (e divertida) con-siste em encontrar um corpo imaginário para sua personagem.Imagine, como caso ilustrativo, que você tem de interpretaro papel de uma pessoa cujo caráter é definido como indo-lente e desastrado (tanto psicológica quanto fisicamente).Essas qualidades não devem ser necessariamente pronun-ciadasou enfaticamente expressas, como talvez na comé-dia. Poderão mostrar-se como meras indicações quase im-perceptíveis. E, no entanto, existem traços típicos de cará-ter que não devem ser menosprezados.

Assim que delinear essas características e qualidades deseu papel - ou seja, compará-Ias com as suas próprias -,tente imaginar que espécie de corpo essa pessoa preguiçosa einapta teria. Talvez você ache que ela poderia ter um corporechonchudo e atarracado, com ombros descaídos, pescoçogrosso, longos braços pendentes e uma cabeça grande e

maciça. Esse corpo, é claro, está muito distante do seu pró-prio. Entretanto, você deve parecer-se com ele e procedercomo ele procede. Como tratará de efetuar uma verdadeirasemelhança? Assim:

Você imaginará que no mesmo espaço que ocupa com seupróprio corpo real existe um outro corpo - o corpo imagináriode sua personagem, que você acabou de criar em sua mente.

Vista-se, por assim dizer, com esse corpo; ponha-o co-mo se fosse um traje. Qual será o resultado dessa "mascara-dà'? Pouco depois (ou talvez num abrir e fechar de olhosí),você começará a sentir-se e a pensar-se como uma outra pes-soa. Essa experiência é muito semelhante à de uma verda-deira mascarada. Você já notou, na vida cotidiana, como sesente diferente com roupas diferentes? Não é uma outrapessoa quando veste um roupão ou um smoking, ou quan-do está dentro de um terno velho e puído ou de um novi-nho em folha? Mas "vestir o corpo de outrem", é mais doque vestir qualquer traje ou costume. Essa adoção da formafísica imaginária da personagem influencia dez vezes maisfortemente a psicologia do ator do que qualquer roupa!

O corpo imaginário situa-se, por assim dizer, entre ocorpo real e a psicologia do ator, influenciando a ambos comigual força. Passo a passo, começa a movimentar-se, a falar ea sentir de acordo com ele, quer dizer, sua personagem viveagora dentro de você (ou, se prefere, você habita dentrodela).

O vigor com que você expressa as qualidades de seucorpo imaginário enquanto atua dependerá do tipo de peçae de seu próprio gosto e desejo. Mas, em qualquer caso,todo o seu ser,psicológica efisicamente, será mudado - eu nãohesitaria até em dizer possuído - pela personagem. Quandorealmente assumido e exercitado, o corpo imaginário esti-mula a vontade e os sentimentos do ator; harmoniza-os

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Para o ator

com a fala e os movimentos característicos, transforma oator numa outra pessoa! Discutir meramente a personageme analisá-Ia mentalmente não pode produzir esse desejadoefeito, porque a mente racional, por muito ágil que seja, ésuscetível de deixar o ator frio e passivo, ao passo que ocorpo imaginário tem o poder de recorrer diretamente a suavontade e a seus sentimentos.

Considere a criação e a adoção de uma personagem co-mo espécie de jogo simples e rápido. "Jogue" com o corpoimaginário, mudando-o e aperfeiçoando-o até estar comple-tamente satisfeito com sua realização. Você nunca deixará deganhar nesse jogo, a menos que sua impaciência apresse oresultado; sua natureza artística não pode deixar de serempolgada por ele se não o forçar "interpretando" prematu-ramente seu corpo imaginário. Aprenda a confiar nele comtotal confiança e não será traído.

Não se exceda exteriormente, enfatizando, insistindo eexagerando aquelas inspirações sutis que lhe chegam de seu"novo corpo". E só quando começar a sentir-se absoluta-mente livre, verdadeiro e natural em seu uso é que deverácomeçar a ensaiar a personagem com falas e situações, sejaem casa, seja no palco.

Em alguns casos, achará suficiente usar apenas uma partede seu corpo imaginário: braços longos e pendentes, porexemplo, poderão subitamente mudar toda a sua psicologia edar a seu próprio corpo a necessária estatura. Mas cuide sem-pre que todo o seu ser se transforme na personagem que deveretratar.

O efeito do corpo imaginário será fortalecido e adquiri-rá muitos matizes inesperados se lhe for adicionado o cen-tro imaginário (ver Capítulo 1).

Enquanto o centro permanece no meio de seu peito (fa-ça de conta que está algumas polegadas para dentro), você

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Personagem e caracterização

sentirá que ainda é você mesmo e está no absoluto controleda situação, só que mais enérgica e harmoniosamente, comseu corpo aproximando-se de um tipo "ideal". Mas, assimque tenta mudar o centro para algum outro lugar dentro oufora de seu corpo, sentirá que toda a sua atitude psicológicae física muda, tal como muda quando você entra num cor-po imaginário. Notará que o centro é capaz de atrair e con-centrar todo o seu ser num lugar donde sua atividade emanae irradia. Se você, para ilustrar esse ponto, resolvesse mudaro centro de seu peito para a cabeça, perceberia que o ele-mento intelectual começou desempenhando um papel ca-racterístico em sua peiformance. De seu lugar na cabeça, ocentro imaginário coordenará súbita ou gradualmente todosos seus movimentos, influenciará toda a sua atitude corpo-ral, motivará comportamento, ação e fala e sintonizará suapsicologia de tal modo que você terá naturalmente a sensa-ção de que o elemento intelectual é adequado e importantepara seu desempenho.

Mas, onde quer que você escolha colocar o centro, eleproduzirá um efeito inteiramente diferente assim que suaqualidade for mudada. Não é suficiente colocá-lo na cabeça,por exemplo, e deixá-lo aí para que faça seu próprio traba-lho. Você deverá estimulá-lo ainda mais, investindo-o comvárias qualidades desejadas. Para um homem sábio, diga-mos, você deve imaginar o centro em sua cabeça comogrande, brilhante e irradiante, ao passo que, para um tipoestúpido, fanático ou intolerante de pessoa, você deve ima-ginar um centro pequeno, tenso e duro. Você deve estar li-vre de todas as restrições ao imaginar o centro de muitas ediferentes maneiras, desde que as variações sejam compatí-veis com o papel que está desempenhando.

Tente alguns experimentos durante um certo tempo.Coloque um centro macio, caloroso, não pequeno demais,

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Para o ator

na região de seu abdome e poderá sentir uma psicologia queé enfatuada, presunçosa, um tanto grosseira e até jocosa.Coloque um centro minúsculo e duro na ponta do nariz etornar-se-á curioso, indagado r, bisbilhoteiro e até intrometi-do. Mude o centro para um de seus olhos e notará com querapidez terá a impressão de que se tornou astuto, ardiloso eaté hipócrita. Imagine um centro grande, pesado, apático edesleixado colocado fora dos fundilhos de suas calças e teráuma personagem risível, covarde e não muito honesta. Umcentro localizado alguns centímetros adiante de seus olhosou de sua testa pode invocar a sensação de uma mente pene-trante e até sagaz. Um centro caloroso, veemente e mesmofogoso situado dentro de seu coração pode despertar emvocê sentimentos heróicos, apaixonados e corajosos.

Você pode também imaginar um centro móvel. Deixe-o oscilar lentamente diante de sua testa e gravitar em tornode sua cabeça de tempos em tempos e perceberá a psicolo-gia de uma pessoa perplexa, confusa; ou deixe-o circularirregularmente em redor de todo o seu corpo, em ritmosvariáveis, ora subindo, ora mergulhando, e o efeito será, semdúvida, o de embriaguez.

Inúmeras possibilidades se lhe abrirão se realizar expe-riências desse modo, dentro de um espírito livre e lúdico.Em breve se habituará ao "jogo" e o apreciará tanto pelodivertimento quanto por seu grande valor prático.

O centro imaginário serve principalmente para a perso-nagem como um todo. Mas pode ser usado para diferentescenas e movimentos separados. Suponhamos que você estátrabalhando o papel de D. Quixote. Vê seu corpo velho,esquálido, delicado.. vê sua mente nobre; entusiástica, masexcêntrica e confusa, e você pode decidir colocar um peque-no mas poderoso centro, .irradiante e em permanente rodo-pio, bem acima de sua cabeça. Isso pode servir-lhe para a

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Personagem e caracterização

personagem de D. Quixote como um todo. Mas agora chegaa cena em que ele está combatendo seus inimigos e bruxasimaginários. O Cavaleiro avança aos trancos e barrancos esalta no vazio com a velocidade de um relâmpago. Seu cen-tro, agora escuro e rijo, despenca das alturas para seu peito,sufocando-lhe a respiração. Como uma bola presa na pontade uma longa tira de borracha, o centro projeta-se para dian-te e ricocheteia, arremessando-se para a direita e para aesquerda 'em busca tresloucada de inimigos. Uma e outravez, o Cavaleiro persegue a "bola" em todas as direções, atéque o combate termina. Exausto o Cavaleiro, o centro afun-da lentamente no solo e depois, com igual lentidão, ergue-sede novo para seu lugar original, irradiando e rodopiando in-cansavelmente como antes.

A bem da clareza, demos alguns exemplos óbvios e tal-vez grotescos. Mas o uso do centro imaginário na maioriados casos (especialmente em peças modernas) requer umaaplicação muito mais sutil. Por mais forte que possa ser asensação que o centro produz no ator, a extensão em que eledeseja exibir essa sensação enquanto atua dependerá semprede seu julgamento.

Mas o corpo imaginário e o centro, quer sejam usadosem combinação, quer apenas um de cada vez, ajudarão acnar a personagem.

Tentemos agora distinguir entre a personagem comoum todo e a caracterização, que pode ser definida como umacaracterística pequena epeculiar da personagem. Uma carac-terização ou característica peculiar pode ser qualquer coisainata na personagem: um movimento típico, um modoespecial de falar, um hábito recorrente, uma certa maneirade rir, caminhar ou vestir um terno, uma forma insólita desegurar as mãos, uma inclinação singular da cabeça, e assimpor diante. Essas pequenas peculiaridades são uma espécie

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de "retoques finais" que um artista aplica a sua criação. Todapersonagem parece ganhar mais vida, ser mais humana everdadeira, assim que é dotada dessas pequenas característi-cas peculiares. O espectador começa gostando e esperandopor isso, logo que sua atenção é atraída para esses traços.Mas tal caracterização deve ser um fruto da personagemcomo um todo, derivada da importante parte de sua com-posição psicológica.

Vejamos alguns exemplos. Uma pessoa ociosa e tagarela,incapaz de realizar qualquer trabalho, poderia ter uma carac-terização que se expressa nos braços colados ao corpo, oscotovelos em ângulo reto, as mãos pendendo inertes. Umapersonagem distraída, enquanto mantém conversa com umaoutra pessoa, pode mostrar uma maneira característica depiscar rapidamente os olhos, ao mesmo tempo que dirige umgesto de dedo espetado a seu interlocutor e faz uma pausa,com a boca ligeiramente entreaberta, antes de coligir seuspensamentos e pô-los em palavras. Uma personagem obsti-nada, um ranzinza, sempre disposto ao bate-boca, enquantoescuta outras pessoas pode ter o hábito inconsciente de aba-nar levemente a cabeça como se estivesse preparando sua res-posta negativa. Uma pessoa tímida ficará remexendo a roupa,torcendo botões e alisando pregas. Um homem covardepode manter os dedos apertados, tentando esconder os pole-gares. Uma personagem pedante pode inconscientementetocar as coisas a sua volta, arrumando-as mais ou menossimetricamente; um misantropo, de modo igualmente in-consciente, talvez afaste de perto de si coisas que estavam aseu alcance. Uma pessoa não muito sincera ou hipócritapoderá adquirir o hábito de lançar rápidos olhares para o tetoenquanto fala ou escuta. E assim por diante.

Por vezes, só a caracterização é suficiente para, de súbi-to, pôr a nu a personagem inteira.

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Personagem e caracterização

Enquanto cria uma personagem e uma caracterizaçãopara ela, o ator pode encontrar grande ajuda e talvez muitassugestões inspiradoras observando as pessoas a sua volta.Mas, a fim de evitar uma mera cópia da vida, eu não reco-mendaria tais observações antes de ter feito primeiro bomuso de sua própria imaginação criativa. Além disso, a capa-cidade de observação torna-se mais penetrante quando sesabe exatamente o que se está procurando.

Não há necessidade de descrever aqui, em linhas gerais,quaisquer exercícios especiais. Você poderá criá-los por simesmo, "jogando" com corpos imaginários e centros mó-veis e transferíveis e inventando-lhes caracterizações ade-quadas. Será proveitoso se, além desse "jogo", você procu-rar observar e descobrir onde e que espéciede centro esta ouaquela pessoa possui na vida real.

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Capítulo 10Como abordar o papel

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Depois de todos os nossos estudos,adquirimos somente aquilo que pomos

em prática.

Goethe

Esse ponto vem sendo desde longa data objeto de con-siderável controvérsia em nossa profissão, sobretudo entreos atores mais conscienciosos. Parece ser de especial interes-se para o ator que prefere abordar seu papel sistematica-mente, a fim de economizar tempo e esforço até chegaràquele feliz momento em que está no âmago da persona-gem que irá retratar. Pois todos nós sabemos muito bem serna fase inicial de nosso trabalho que sofremos freqüente-mente incertezas e vacilações.

Como base no que estivemos discutindo até agora, exis-tem numerosas maneiras de abordar o papel. Uma delas épor meio do uso de nossa imaginação; vamos supor, portan-to, que escolhemos abordá-los dessa maneira.

Assim, logo que você receba seu papel, comece lendo apeça várias vezes, até estar inteiramente familiarizado comele como um todo.

Depois, concentre-se somente em sua personagem, ima-ginando-a primeiro cena após cena. Em seguida, demore-se

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nos momentos (situações, frases, diálogos) que mais atraemsua atenção.

Continue fazendo isso até "ver" a vida interior da perso-nagem, assim como sua aparência exterior. Espere até 4ueela desperte seus próprios sentimentos.

Tente "ouvir" a personagem falar.Você pode ver sua personagem tal como foi descrita pelo

autor ou poderá também ver-se a si mesmo desempenhando apersonagem já caracterizada. Ambas as maneiras são corrdas.

Comece colaborando com sua personagem, fazendoperguntas e obtendo suas respostas "visíveis." Faça suas per-guntas a respeito de qualquer momento que escolher, ind-e-pendente da continuidade das cenas tal como dada na p{!ça,melhorando assim alguma coisa em seu desempenho aqui,aperfeiçoando alguma coisa ali, à medida que vai passandoos olhos por toda a área da personagem.

Comece incorporando-a pouco a pouco, com moVI-mentos, frases e pausas.

Continue esse trabalho mesmo depois de iniciados osensaios gerais da peça. Guarde todas as impressões que acurflU-

lou durante os ensaios no palco: seu próprio desempenha, odesempenho de seus colegas de elenco, as sugestões e marca-ções dadas pelo diretor, cenários, etc, Inclua tudo isso em guaimaginação e depois, recapitulando uma vez mais seu pró-prio desempenho, formule a pergunta: "Como posso melJ:1°-rar este ou aquele momento?" Responda melhorando-o f'ri-meiro em sua imaginação e depois. submetendo-o à prOvareal (trabalhando ainda em casa entre os ensaios).

Usando sua imaginação desse modo, concluirá que i.?SOfacilita seu trabalho. Também comprovará terem desapare-cido muitas inibições que dificultavam seu trabalho atéentão. Nossas imagens estão livres de quaisquer inibiçges,porque são produtos diretos e espontâneos de nossa indi vi-o

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Como abordar o papel

dualidadé criativa. Tudo o que dificulta o trabalho de umator provém de um corpo subdesenvolvido ou de peculiari-dades psicológicas pessoais, como timidez, falta de confian-ça e medo de causar uma falsa impressão (sobretudo duran-te o primeiro ensaio). Nenhum desses elementos perturba-dores é conhecido de nossa individualidade criativa; ela estátão livre de limitações psicológicas pessoais quanto nossasimagens estão livres de corpos materiais.

Sua intuição artística lhe dirá quando esse trabalho com aimaginação tiver cumprido seu propósito de ajudá-lo a estabe-lecer a personagem. Poderá então ser posto de lado. Não seapóie exclusivamente nele por tempo demais, ou pesadamentedemais, como se fosse esse seu único esteio para abordar um pa-.pel. Você pode usar mais de um meio simultaneamente.

Também pode começar seu trabalho na base de atmos-feras.

Imagine sua personagem movimentando-se e declaman-do suas falas nas diferentes atmosferas a dadas ou indicadaspela peça. Depois, crie uma dessas atmosferas a sua volta (comono Exercício 14) e éomece atuando sob a influência dela.

.Atenre para que seus movimentos, o timbre de sua voz e asfalas que diz estejam em plena harmonia com a atmosfera queescolheu; repita isso também para as outras atmosferas.

Stanislavski costumava dizer que é uma boa coisa umator poder "apaixonar-se" por sua personagem antes de co-meçar a trabalhá-Ia. Em meu entender, em numerososcasos ele quis dizer apaixonar-se mais pelas atmosferas queenvolvem a personagem. Muitas produções no Teatro deArte de Moscou foram concebidas e interpretadas atravésde atmosferas, por meio das quais os diretores e os atores "seapaixonavam" tanto por personagens individuais quanto pelapeça toda. (Peças de T chekhov, Ibsen, Górki e Maeterlinck,densas de atmosfera, sempre forneceram aos membros do

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Teatro de Arte de Moscou tais oportunidades pata prodiga-lizarem suas afeições.)

Acontece freqüentemente que compositores, poetas,escritores e pintores comecem a fruir a atmosfera de suasfuturas criações muito antes de iniciarem seu trabalho con-creto com elas. Stanislavski estava convencido de que, se odiretor ou o ator, por alguma razão, não passavam por talperíodo de "paixão", poderiam encontrar mais tarde inú-meras dificuldades em seu trabalho numa peça ou num pa-pel. Sem dúvida essa devoção, esse amor, poderia ser cha-mado o "sexto sentido" que nos habilita a ver e a sentir coisasque se mantêm obscuras para outros. (Os amantes semprevêem mais dos admiráveis aspectos recíprocos do que as ou-tras pessoas.) Portanto, sua abordagem do papel por meiode atmosferas dar-lhe-á uma grande oportunidade de des-cobrir na personagem muitas características interessantes eimportantes, e nuanças sutis que, de outro modo, pode-riam escapar facilmente a sua atenção.

Também pode constituir um bom começo a aplicaçãodo que chamamos a sensação de sentimentos (como no Ca-pítulo 4). Procure definir a qualidade ou as qualidades geraise mais características do papel em que vai trabalhar. Poderádescobrir, por exemplo, que as qualidades gerais do caráterde Falstaff são a malícia e a covardia; ou que D. Quixotepode possuir a qualidade de desenvoltura combinada comas de romantismo e coragem. Poderá ver Lady Macbeth co-mo possuidora de uma vontade forte e sinistra; Hamlet po-de parecer uma personagem cujas qualidades principais sãosuscetíveis de ser definidas como penetrantes, indagadorase meditativas. Joana d'Arc talvez pareça a seus olhos comoimpregnada das qualidades de tranqüilidade interior, fran-queza e extrema sinceridade. Cada personagem tem suasqualidades penetráveis e definíveis.

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Como abordar o papel

Tendo encontrado a qualidade geral pata a personagemcomo um todo, e tendo-a vivenciado como uma sensação desentimento desejável, procure interpretar seu papel sob ainfluência dela. Interprete-o primeiro em sua imaginação, sedesejar, e depois comece ensaiando-o concretamente (emcasa ou no palco).

Assim fazendo, você poderá descobrir que as sensaçõesque usa pata despertar seus sentimentos genuínos não sãointeiramente corretas. Se assim for, não hesiste em alterá-Iasrepetidas vezes, até se considerar inteiramente satisfeito.

Tendo escolhido certas sensações gerais para sua perso-nagem, faça apontamentos à margem do script. Como re-sultado desse procedimento, você terá sempre um certo nú-mero de seções ou fragmentos em que seu papel inteiro serásubdividido. Não faça um número excessivo de seções, casocontrário elas podem tornar-se um tanto confusas. Quantomenor for o número de fragmentos ou seções, mais úteisserão para seu trabalho prático em cima do papel que lhecoube. Serão suficientes umas dez seções para um papelteatral ou cinematográfico de tamanho médio. Ensaie suapersonagem de novo, obedecendo fielmente às anotaçõesque registrou.

Lembre-se de que as qualidades e as sensações tratadasno Capítulo 4 nada mais são do que o meio de despertat seussentimentos artísticos. Portanto, logo que tais sentimentossejam acordados em seu íntimo, entregue-se a eles inteira-mente. Eles o conduzirão ao pleno desempenho do papel. Asanotações que fez enquanto tentava descobrir as sensaçõescorretas lhe servirão como um meio de reanimar seus senti-mentos, se acaso, por alguma razão, eles se tornarem tórpi-dos ou mesmo desapatecem inteiramente.

Uma outra abordagem do papel é por meio de GestosPsicológicos (GP).

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Para o ator

Tente encontrar o GP correto para a personagem comoum todo. Se não conseguir descobrir imediatamente o GPglobal para o papel, pode inverter o processo e recomeçarpela descoberta de GPs menores, através dos quais o princi-pal ficará lentamente à vista.

Comece a atuar, realizando movimentos e dizendo fra-ses na base do GP que elaborou. Se, quando aplicar um GPna prática, descobrir que ele não é inteiramente correto,deverá melhorá-lo de acordo com seu gosto e sua interpre-tação da personagem. A força, o tipo, a qualidade e o ritmodo GP devem ser livre e habilmente manipulados e altera-dos tantas vezes quantas você repute necessárias. As suges-tões de seu diretor durante os ensaios, os encontros com osdemais colegas do elenco e as mudanças do scriptpelo autorpodem constituir outros tantos estímulos para a alteraçãode seu GP. Assim, mantenha-o flexível até se considerar in-teiramente satisfeito com ele.

Use o GP durante todo o período de desempenho dopapel, quer nos ensaios, quer nas apresentações públicas.Exercite-o antes de cada entrada no palco.

Defina o ritmo geral em que vive sua personagem, assimcomo os ritmos particulares de diferentes cenas e momen-tos, e pratique seu GP de novo, de acordo com esses dife-rentes ritmos.

Explore também seu papel com vistas à interaçâo dosritmos interior e exterior. Use todas as oportunidades paracombinar os dois ritmos contrastantes (ver as últimas pági-nas do Capítulo 5).

Enquanto emprega o GP como um meio de abordagemde seu papel, aplique-o também para determinar as diferen-tes atitudes que sua personagem manifesta em relação a ou-tras. Pensar que uma personagem permanece sempre a mesmaenquanto contracena com outras personagens da peça é um

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Como abordar o papel

erro crucial que até grandes e experientes atores cometemcom freqüência. Isso não é verdade no palco nem na vidacotidiana. Como pode ter observado, somente pessoas mui-to mais rígidas, inflexíveis ou extremamente presumidas se

A " I "dmantem sempre e as mesmas quan o se encontram comoutras. Interpretar personagens teatrais dessa maneira é mo-nótono, irreal, e está mais próximo do teatto de marionetes.Observe-se a si mesmo e verá de que modo diferente começainstintivamente a falar, a movimentar-se, a pensar e a sentirquando se encontra com pessoas diferentes, mesmo que amudança que os outros produzam em você seja pequena ouquase imperceptível. É sempre você mais outrem.

No palco, isso é ainda mais pronunciado. Hamlet mais oRei Cláudio, e Hamlet mais Ofélia, são dois Harnlets diferen-tes, ou melhor, dois aspectos diferentes de Hamlet, que nadaperde de sua integridade ao mostrar facetas distintas de suarica natureza. E, a menos que seja intenção do autor apresen-tar uma personagem que é rígida e monótona, você devefazer todos os esforços por descobrir as diferenças que asoutras personagens produzem naquela que você está inter-pretando. A esse respeito, os GPs serão de inestimável ajuda.

Releia todo o seu papel e tente definir que sentimentosgerais (ou sensações de sentimentos) as outras personagensdespertam na sua. Fazem-no sentir-se cordial, indiferente, frio,desconfiado, confiante, entusiástico, hostil, tímido, covarde,circunspecto ou o quê? E que desejosengendram no íntimo desua personagem. Incutem-lhe o impulso de dominar, subme-ter-se, vingar-se, atrair, seduzir, fazer amigos, ofender, agradar,assustar, acariciar, protestar - qual deles? E não esqueça osexemplos, ao longo da peça, em que sua personagem tambémmuda de atitude em relação à mesma pessoa.

Descobrirá freqüentemente que o principal GP que ex-pressa sua personagem como um todo necessitará apenas

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Como abordar o papel

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Para o ator

de uma ligeira alteração para incorporar sua atitude geralem relação às outras personagens. A aplicação do GP per-mite a oportunidade ímpar de pintar seu papel em váriascores, tornando assim seu desempenho rico em tonalidadese fascinante de observar.

Caso deseje iniciar seu trabalho construindo a persona-gem e a respectiva caracterização (como se descreveu no Ca-pítulo 6), comece seu "jogo" com o corpo e o centro imagi-nários, procurando traços característicos que sejam apro-priados a seu papel. No começo poderá usar separadamenteo corpo e o centro imaginários e combiná-Ios mais tarde.

A fim de adotar e adquirir fácil domínio sobre eles, su-gere-se que tome seu script e copie todas as intervenções desua personagem, incluindo entradas, saídas e cada movi-mento, por mais insignificantes que possam parecer-lhe.Depois, um por um, comece executando todos esses acon-tecimentos, grandes e pequenos, tentando obedecer às ins-pirações, sejam elas quais forem, que lhe sejam porventuradadas pelo centro ou pelo corpo imaginários, ou por am-bos. Não exagere, não enfatize excessivamente a influênciadeles, ou então seus movimentos se tornarão artificiais. Ocentro e o corpo imaginários são, em si mesmos, suficiente-mente poderosos para mudar a psicologia e o modo deinterpretar de um ator sem precisar de uma "ajuda" forçadade qualquer espécie. Se o que você sinceramente deseja éuma expressão sutil e delicada de sua caracterização, deixeque seu bom gosto e sentimento de verdade sejam guiasnesse agradável "jogo" com o corpo e o centro imaginários.

Após um certo lapso de tempo, acrescente ao exercícioalgumas frases ligadas a seu papel; umas poucas, no início,depois cada vez mais, até que o texto de seu papel sejaensaiado na íntegra desse modo. Logo aprenderá que espé-cie de fala sua personagem está propensa a adotar - lema,rápida, tranqüila, impulsiva, refletida, leve, pesada, seca, fria,

cordial, apaixonada, sarcástica, veemente, amistosa, con-descendente, sonora, moderada, agressiva ou serena, paraCItar apenas algumas espécies. Todas essas nuanças de fala

. se lhe revelarão através do mesmo meio do corpo e do cen-tro imaginários, se você obedecer fielmente às sugestõesdeles, sem ter pressa em obter resultados. Desfrute seu"jogo" em vez de se afadigar impacientemente.

Não só sua interpretação e sua fala se tornarão cada vezmais características, mas até sua caracterização será claramen-te visualizada por você, por meio dessa simples abordagem dopapel. Toda a extensão e a profundidade da personagem sedesvendarão diante de você como um panorama, no maiscurto espaçode tempo. Mas não abandone seu "jogo" enquantoa personagem não tiver sido tão absorvida por você que já nãoprecise mais pensar em seu corpo e seu centro imaginários.

Desde o começo de seu trabalho coma personagem,poderá também utilizar algumas das Leis de Composiçãoque foram detalhadas no Capítulo 8. Comentários adicio-nais sobre o assunto apenas iriam repisar esse ponto, por-quanto os exemplos e as análises das personagens do Rei Learsão amplamente ilustrativos de suas aplicações nesse caso.

Nesse pomo, recomendo fortemente a sua atenção osprincípios sugeridos por Stanislavski para a abordagem deum papel. Stanislavski chamou-Ihes Unidades e Objetivos, eencontramos descrições completas deles em seu livro AnActor Prepares", Unidades e objetivos são, talvez, sua maisbrilhante invenção e, quando adequadamente entendidos ecorretamente usados, podem conduzir o ator imediatamen-te para o próprio cerne da peça e do papel, revelando-lhesua construção e dando-lhe uma base firme sobre a qualinterpretar sua personagem com plena confiança.

* Há edição brasileira: A Preparação do Ator, trad, Pontes de Paula Lima,Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, cuja 7a ed. é de 1986. (N. do E.)

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vontade (de sua personagem). Sentimentos e emoções, na-turalmente, acompanham seus objetivos, mas eles própriosnão podem ser convertidos num objetivo. Assim, temos delidar com um certo número de objetivos menores, assimcomo com os superobjetivos de cada papel individual, porum lado, e com o superobjetivo da peça inteira por outro.

Vejamos agora qual a melhor maneira de integrar essesconceitos de Stanislavski com o que discutimos neste livro.

Quanto ao processo de dividir o papel (assim como apeça inteira) em unidades, são sugeridos os princípios queapresentamos no Capítulo 8. Comece por dividir primeiroo papel ou a peça em três grandes unidades ou seções; de-pois, se necessário, faça qualquer número de subdivisões.

Na peça A Morte de um Caixeiro Viajante, de ArthurMiller, a Primeira Unidade para o protagonista seria assimconstituída: Willy Loman, o caixeiro viajante, está cansado,sente o peso da idade, está desapontado, perturbado pelosnegócios e assuntos de família. Tente fazer um inventário doque foi sua longa e estéril vida. Perde-se em reminiscências.Mas ainda não quer abandonar a luta contra o destino.Acumula forças para um novo assalto. A Segunda Unidade:começa a última batalha. É um caleidoscópio de esperanças,desapontamentos, breves escaramuças, pequenas derrotas,recordações alegres e dolorosas do passado. Mas o desfechodessa batalha é apenas maior perplexidade e a destruiçãofinal de toda esperança. A Terceira Unidade: Willy renunciaà luta. Não tem mais energia, nenhum senso de realidade, odesânimo é total. Caminha rapidamente para a morte.

A Primeira Unidade para Lopakhin, uma das persona-gens de O Jardim das Cerejeiras, poderia ser esta: Lopakhin,apesar de seu caráter rude, inicia cuidadosamente e até comdelicadeza sua luta com os Raniévskis; lenta e gradualmen-te, embora ainda comedido, torna-se cada vez mais agressi-

Em essência, Stanislavski disse que, para estudar a estrutu-ra da peça e do papel, é necessário dividir uma e outro em uni-dades (ou seções). Aconselhou que se começasse com as gran-des unidades, sem entrar em seus detalhes, e que só se subdivi-dissem as grandes unidades em outras de tamanho médio, eem pequenas, se aquelas parecerem demasiado gerais.

Stanislavski disse ainda que o objetivo é o que a perso-nagem (não o ator) deseja, quer; é sua meta, seu propósito.Os objetivos seguem-se uns após outros em sucessão (oupoderão sobrepor-se parcialmente).

Todos os objetivos da personagen se fundem num objeti-vo global, formando uma "corrente lógica e coerente." A esseobjetivo principal chama Stanislavski o superobjetivo da per-sonagem. Isso significa que todos os objetivos menores, sejaqual for seu número, devem servir a um único propósito: rea-lizar o superobjetivo (o principal desejo) da personagem.

Ainda mais adiante, disse Stanislavski: "Numa peça tea-tral, toda a corrente de objetivos menores, individuais (as-sim como o superobjetivo da personagem), deve convergirpara a realização do superobjetivo da peça inteira, o qual é oLeitmotiv da produção literária do autor, o pensamentodominante que inspirou sua obra."

No intuito de denominar o objetivo, de fixá-lo em pa-lavras, Stanislavski sugeriu a seguinte fórmula: "Eu queroou eu desejo fazer isto e aquilo ...", e depois segue-se o verboexpressando o desejo, a meta da personagem. Eu quero per-suadir, eu quero livrar-me de, eu desejo compreender, eu de-sejo dominar e assim por diante. Nunca use sentimentos eemoções enquanto estiver definindo seus objetivos - comoquero amar ou desejo sentir-me triste -, porque sentimen-tos ou emoções não podem ser jeitos. Ou você ama ou sen-te-se triste, ou não". O verdadeiro objetivo baseia-se na sua

* O modo de despertar seus sentimentos e emoções já foi discutido emcapítulos anreriores deste livro.

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vo. A Segunda Unidade: Lopakhin desfere seu golpe decisi-vo - ele compra o cerejal. Está vitorioso, triunfante, masainda não age contra os Raniévskis. A Terceira Unidade: Lo-pakhin passa à ação total, agora irrestrita. As cerejeiras tom-bam sob os golpes dos machados. Os Raniévskis são força-dos a empacotar seus pertences e abandonar a propriedade.O Velho Firs, o criado senil e fiel, que é quase como ummembro da família Raniévski, morre encerrado e esquecidona casa abandonada (como para mostrar simbolicamente avitória de Lopakhin).

Em O Inspetor Geral o Prefeito prepara-se para a batalhacontra o Inspetor, dando instruções detalhadas a seus íuncio-nários. Essa é a Primeira Unidade para a personagem doPrefeito. A Segunda Unidade: chega o falso Inspetor e a bata-lha começa. A longa, paciente e laboriosa trama do Prefeito écoroada de êxito. O perigo passou, a vitória foi garantida. ATerceira Unidade: a descoberta do fatal equívoco. A chegadado verdadeiro Inspetor. O Prefeito, os funcionários e asmulheres são derrotados, humilhados e aniquilados.

Tendo encontrado desse modo as três unidades princi-pais, você pode passar ao estabelecimento de suas subdivi-sões, acompanhando sempre o desenvolvimento da batalhaque está em curso na peça. Considere cada nova fase signi-ficativa da batalha uma unidade menor. (Mas tendo sem-pre presente a advertência de Stanislavski: "Quanto maio-res e quanto menos numerosas as divisões, com menos terávocê de lidar e mais fácil lhe será dominar o papel todo.")

Isso quanto às unidades. Vejamos agora os objetivos.Meus comentários sobre o assunto dizem respeito princi-

palmente aos meios e à ordem de descoberta desses objetivos.O próprio Stanislavski, quando falou das dificuldades emencontrar os superobjetivos para as personagens, admitiu sernecessário um longo e laborioso trabalho, porque, disse ele,tem de cometer-se muitos erros e rejeitar muitos superobjeti-vos falsos antes de se lograr descobrir o certo.

Stanislavski acrescentou que, com bastante freqüência,só depois de muitas representações, quando a reação do pú-blico se torna evidente, é que o verdadeiro superobjetivopode ser percebido e fixado. Dessa afirmação de Stanislavskisomos levados forçosamente a inferir que o ator deve con-tentar-se, muitas vezes, com um certo número de objetivosmenores da personagem, sem saber aonde eles o conduzem.

Mas minha asserção pessoal é que, para um ator, é desuprema importância conhecer de antemão ou ter algumconhecimento prévio sobre a meta final dos objetivos se-cundários; ou seja, compreender a principal finalidade dapersonagem. Em outras palavras, o ator deve estar bem cons-ciente do superobjetívo para o papel inteiro desde o começo.Pois de que outra forma poderá fundir todos os objetivosnuma "corrente lógica e coerente" sem cometer erros? Pa-rece-me que essa dificuldade seria mais facilmente resolvidase o ator conseguisse encontrar primeiro o superobjetivo desua personagem. Após muitos anos testando a teoria, sugi-ro respeitosamente que esse método é mais prático, e a pro-posta que se segue decorre dessa convicção.

Sabe-se que cada personagem mais ou menos significa-tiva trava um combate ao longo de toda a peça, está emconflito com alguém ou alguma coisa. Ela vence ou perde abatalha. No caso de Willy Loman, ele luta contra o infelizdestino que o oprime - e perde. Lopakhin, de O Jardim dasCerejeiras, luta com os Raniévskis - e vence. O Prefeito, emO Inspetor Geral trava combate com o fantasma do Ins-petor vindo de Petersburgo, e sofre uma derrota.

Suponha-se que ponderemos as seguintes perguntas: oque acontece à personagem, o que é que ela faz ou pretendefazer depois que obteve sua vitória? O que faria ela se ven-cesse sua luta, o que deveria fazer? .. A resposta a essas eoutras perguntas semelhantes (projetando-se freqüente-

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mente para além da própria peça) pode indicar mais preci-samente a troco de que esteve a personagem combatendoao longo de toda a peça ou qual era seu superobjetivo. Porexemplo, como seria Willy, o caixeiro viajante, e o que fariase levasse a melhor sobre seu destino? Com toda a probabi-lidade, tornar-se-ia um tipo banalíssimo de vendedor, co-mo a tendência da peça pressagia. Seu ideal seria, talvez,assemelhar-se à vida de Dave Singleman na mesma peça,que aos oitenta e quatro anos de idade ainda "batia" as pra-ças de trinta e um estados sem sair de casa: "E o Velho Davemetia-se no quarto, calçava seus chinelos de veludo verde ...nunca esquecerei - e punha-se ao telefone, falando comcada um de seus fregueses. E o caso é que com oitenta equatro anos continuava ganhando perfeitamente sua vidasem sair de casa. Não imagina, isso para mim foi uma reve-lação ... Daí em diante, ninguém me viesse dizer que haviamelhor carreira para um homem do que a de vendedor." Ese, somado a esse ideal, Willy pudesse ter um rádio, umpequeno jardim nos fundos da cozinha e "ser benquisto",ele seria inteiramente feliz. Assim o superobjetivo para elepode ser definido como: "Eu quero ser como o velho DaveSingleman." O ator tem plena liberdade, é claro, de procu-rar melhores superobjetivos e considerar o primeiro comoapenas uma indicação da direção que ele tem de aceitar emsua busca de um superobjetivo que o satisfaça.

Examinemos agora Lopakhin com vistas ao superobjeti-vo. Tendo sido um servo na propriedade dos Raniévskis,Lopakhin elevou-se à posição de um "cavalheiro". Usa agoraum colete branco e sapatos amarelos. Tem dinheiro masanseia por mais. Entretanto, ainda não é capaz de superarseu complexo de inferioridade na presença dos Raniévskis.Estes ignoram-no; ele não se sente completamente livre e àvontade com eles. Sua oportunidade chegou agora, final-

mente, e a vitória é dele. Derruba o cerejal, arrasa a velhapropriedade, já conta seu imenso rendimento futuro. Por-tanto, seu superobjetivo poderia ser: "Desejo tornar-me gran-de, autoconfiante e 'liurepelopoder do dinheiro. "

Vejamos, do mesmo modo, o caso do Prefeito em OInspetor Geral. Escapou afortunadamente à punição e sen-te-se triunfante por sua falsa vitória. O que faz ele, o que lheacontece? Converte-se num déspota implacável. Já humi-lhou seus concidadãos e pretende ser tão arrogante e autori-tário em Petersburgo quanto em sua própria cidade. Seusdevaneios são baixos e perigosos. Portanto, o superobjetivodo Prefeito é: "Eu quero dominar e espezinhar tudo e todos osque estiverem em meu alcance."

Agora, se assim desejarmos, poderemos tentar descobrirobjetivos menores para a personagem cujo superobjetivo jáestá desvendado ou, pelo menos, já nos foi indicado. Já nãovacilaremos, como teria acontecido se começássemos bus-cando primeiro os objetivos menores. Daí em diante, o su-perobjetivo revelará todos os objetivos menores que lhe es-tão subordinados.

Mas, uma vez mais, insisto em que se adie o trabalho deencontrar os objetivos menores. Existe ainda um ponto devista superior a ser atingido. Pode-se galgar ainda mais alto,até o próprio cume, do qual é possível observar toda a peçacomo um vastíssimo panorama, com todos os seus eventos,unidades e superobjetivo das personagens nele contidas.Esse cume é o superobjetivo da peça inteira.

Você encontrará o superobjetivo da peça inteira ou, pelomenos, preparará o caminho para sua descoberta se aplicar omesmo método de fazer perguntas. Mas, dessa vez, não sedirija às personagens. Recorra diretamente ao público. É claroque não precisa nem deve esperar por um público real maspode imagínarseu público e antever-lhe as reações futuras.

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As perguntas que o ator e o diretor podem fazer a seusespectadores imaginários quando procuram o superobjeti-vo da peça são numerosas e variadas. De primacial impor-tância é pedir-lhes que revelem o resultado psicológico queexperimentam depois que caiu o pano final.

Assim, com sua mente meditativa, você pode penetrarno coração dos espectadores. Examina-Ihes o riso e as lágri-mas, a indignação e a satisfação, se seus ideais foram abala-dos ou confirmados - de fato, tudo o que levam para casaconsigo após a performance. Essas serão as respostas do pú-blico a suas questões; elas lhe dirão melhor do que qualquerespeculação erudita por que o autor escreveu sua peça e oque inspirou seu trabalho. Em suma, qual é o superobjetivoda peça toda.

O ator curioso poderá perguntar-se por que será neces-sário consultar o público imaginário. Não seria mais sim-ples consultar diretamente o autor, estando sua peça comvistas à descoberta de sua idéia mestra, de sua concepção dosuperobjetivo? O resultado não seria, afinal, o mesmo?

Não, não seria o mesmo! Por mais fielmente que umator ou diretor leia uma peça, trata-se ainda de sua própriainterpretação do que o autor pretendeu dizer. E, seja qualfor a intenção do autor, o que o público interpreta de suapeça é que constitui o superobjetivo decisivo. A psicologiado público difere profundamente da do ator ou do diretor,ou mesmo da do próprio autor. É mais que uma coincidên-cia o fato de sermos freqüentem ente surpreendidos pelasreações dos espectadores na noite da estréia. Por quê? Por-que o público como um todo sente a peça com o coração,não com o cérebro; porque ele não pode ser desencaminha-do pelos pontos de vista pessoais do diretor, ator ou autor;porque sua reação na estréia é imediata, livre de quaisquertendências e incondicionada por influências exteriores; por-

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que o público não analisa mas vivencia; porque nunca per-manece indiferente ao valor ético da peça (mesmo quando opróprio autor pretende manter-se imparcial); porque nuncase perde em detalhes, ou evasões, mas capta intuitivamentee saboreia a própria essência da peça. Todas essas reações dopúblico potencial nos darão uma garantia mais idônea, maisconfiável, de que o pensamento dominante, a principalidéia do autor, ou o que chamamos o superobjetivo da peçainteira, serão encontrados como um resultado psicológico nogrande e imparcial "coração" do público.

Vakhtangov, o famoso diretor russo, foi certa vez inda-gado: "Por que todas as peças que dirige e, especialmente,os inúmeros detalhes que elabora para seus atores atingemsempre o público com inconfundível sucesso?" A respostade Vakhtangov foi aproximadamente esta: "Porque eu nun-ca dirijo sem imaginar um público assistindo a meus ensaios.Prevejo suas reações e obedeço a suas 'sugestões'; e tentoimaginar uma espécie de público 'ideal' a fim de evitar astentações de insipidez."

Tudo o que acabo de dizer não deve ser interpretado, demaneira nenhuma, como um convite a negar o significadoe a importância da interpretação da peça pelo ator e o dire-tor ou tornar-se ressentidamente subserviente ao público.Pelo contrário, recomenda-se uma cooperação genuína eartística. Pois, tendo consultado o grande "coração" do pú-blico imaginário, a interpretação da peça por atores e direto-res será melhor guiada e mais inspirada pela "voz" do públi-co. Esse é um co-criador ativo da performance. Tem de serconsultado antes que seja tarde demais, especialmente quan-do se busca o superobjetivo da peça.

No começo, as experiências do público imaginário sur-girão a nossos olhos como uma impressão espontânea, im-precisa e geral. Mas devemos deduzir daí todas as conclusões

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nítidas e específicas, formular todos os pensamentos poten-ciais e definir todas as emoções. Um pouco de prática comesse experimento deve tornar-nos competentes em sua exe-cução e assegurar-nos o sentimento de que o público imagi-nário não nos desapontará.

Para uma visão mais profunda do "coração" do público,é necessário voltar uma vez mais a nossos exemplos com pe-ças teatrais.

Quantos caixeiros viajantes mal sucedidos calcorreiam opaís todos os dias, em todas as direções? Quantos deles umcidadão comum vê durante a vida? Dúzias e dúzias, até cen-tenas? Alguma vez derramou uma lágrima pela "má sorte"desses vendedores na vida? Não está mais inclinado a supor-tá-los como um fato inevitável ou a ignorá-Ios? Alguma vezparou para pensar que, como uma classe e uma profissão,eles têm suas atribulações e seus infortúnios pessoais? ..Entretanto, no dia 1O de fevereiro de 1949, num palco deNova York, um modesto caixeiro viajante chamado WillyLoman agitou de súbito os corações e chocou o espírito demuita gente. As pessoas choraram, amaram, seus coraçõesencheram-se de compaixão, elas pronunciaram o veredito:Willy, o caixeiro viajante, é bom. E quando, no final, o caixei-ro viajante pôs deliberadamente fim à vida, os espectadoressaíram do teatro preocupados a respeito de "alguma coisa" eforam incapazes de esquecer Willy e a peça por muitos dias.

Onde está a explicação para esse efeito? Talvez a respostaseja: "a magia da arte". É claro, sem artistas da grandeza deArthur Miller, Elia Kazan e seu excelente elenco, nada de tãosurpreendente e significativo poderia ter ocorrido. Mas o quefoi que eles revelaram ao público com sua magia? Avaliemosa peiformance em retrospecto, tal como poderia ter-se refle-tido na mente e no "coração" do espectador. (Recorde-seque estamos procurando o possível superobjetivo da peça.)

O pano sobe e Willy, o Caixeiro Viajante, entra em cena.O público sorri com agrado. Seu primeiro e primitivo instin-to teatral está satisfeito: "Como é natural, como é fiel à reali-dade da vida." Mas as paredes são transparentes e ouve-seuma flauta. Os spotlights passeiam seus raios de um lado aoutro. Gradualmente, de maneira quase imperceptível, oespectador sente-se "sintonizado" de um modo algo diferente,pois vê através das paredes, ouve música dentro de algo, seguea luz que o encaminha para além de suas usuais concepçõesde tempo e espaço. A magia da arte começou. A percepção doespectador é agora aprofundada e alterada. Ele observa o ven-dedor, vê sua perplexidade e inquietação, acompanha suamente levemente caótica.

Entretanto, de algum modo, as coisas não são inteiramen-te "naturais"; agora é esse "algo" evanescente, dentro e além,que causa a inquietação, o cansaço e a depressão de Willy.Mas em que consiste esse "algo"? Deseja ele alguma coisa deum modo vigoroso e apaixonado e não a consegue? É claro,ele quer ser "benquisto", bem sucedido nos negócios, e preci-sa de dinheiro para pagar as contas. Mas, subconscientemen-te, o espectador já não se satisfaz com essas explicações sim-ples e óbvias; as paredes são transparentes e os sons de umaflauta ainda chegam de algum lugar. Willy é simpático, ébom. Então, o que se esconde atrás da ânsia de dinheiro, desucesso, de ser "benquisto"? Seja o que for, também deve serbom, para cunhar um silogismo. Linda, sua mulher, ama-o eadora-o. Por que sua necessidade de dinheiro?

Quanto mais atentamente o espectador observa a se-qüência de cenas, mais penetrante se torna sua mente, maissensível seu coração, e mais nítida e forte cresce a suspeita deque esse vendedor, com seu patético destino, não é um serreal. Talvez seja apenas uma máscara para alguma outra pes-soa. Linda, Biff e Happy são reais; nada escondem dentro de

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si, são O que são, nada existe a conjeturar, a suspeitar por trásdeles. De fato, seria estranho e "antinatural" se eles, comoWilly, a quem cabe essa prerrogativa, rompessem as frontei-ras do tempo e do espaço. Mas somente a Willy é permitidoque seja uma outra pessoa, envergando a máscara de um cai-xeiro viajante. E a máscara parece torturar Willy.

Em breve a máscara começa torturando o próprio es-pectador. Ele quer livrar-se dela, libertar-se do "caixeiro via-jante." Começa percebendo que a intranqüilidade de Willypromana do mesmo desejo, que também ele combate suamáscara, luta pela liberdade, tenta arrancá-Ia de seu rosto,de sua mente e de seu coração, de todo o seu ser. Mas Willyestá irremediavelmente cego, ignorante e inconsciente desua própria luta. Quanto mais a peça progride, mais trans-parente a máscara se torna e, de súbito, o espectador perce-be que um "Homem", um valioso ser humano, está aprisio-nado e agrilhoado dentro e para além do "caixeiro viajante."A verdadeira tragédia começa a ser evidente. O "caixeiroviajante" flagela, tortura o "Homem" e impele-o cada vezpara mais perto do desfecho fatal. É o "Homem", não seusósia perverso, que preocupa o espectador: "Willy, desper-ta! Pára de recriminar o destino fora de ti", anseia o coraçãodo espectador por gritar. "Culpa a pior parte dele que estádentro de ti. O 'caixeiro viajante' é teu destino sombrio",adverte-o. Mas é tarde demais. Willy renuncia à luta. Énoite. Com a enxada na mão, a escuridão envolvendo-o,Willy planeja o jardim nos fundos da cozinha. É o derra-deiro grito de protesto do "Homem" prestes a sucumbir.Ouve-se o ruído do motor do automóvel... Willy mata o"caixeiro viajante" e o "Homem".

O pano cai. O resultado psicológico da última batalha co-meça a amadurecer na mente do espectador. E talvez até digaa si mesmo: "Na verdade, em toda a história humana nunca,

houve uma época em que a 'máscara' do caixeiro viajante fos-se tão ameaçadora e poderosa quanto na nossa. Se não son-darmos e recordarmos o que está por trás dela, crescerá e de-senvolver-se-á como um tumor maligno."

É um~ tragédia tipicamente americana, e uma tragédiahumana. E uma advertência vital que o autor nos faz pormeio de sua criação. O superobjetivo da peça, que se tornoumanifesto na alma do espectador de um modo não muitodiverso desse delineamento, embora talvez não articulado,pode resumir-se assim: "Aprenda a discernir o 'caixeiro viajante'do 'Homem' que existe dentro de si e tente libertar o 'Homem'. "

O Jardim das Cerejeiras fornece-nos um segundo exem-plo e um outro tipo de superobjetivo.

Desde o começo, o espectador dá-se conta de que aprin~ipal personagem da peça é o próprio jardim das cerejei-ras. E velho, belo, imensamente vasto, famoso e, segundo apeça, até mencionado na Enciclopédia. A batalha trava-seem torno dele, mas é uma espécie peculiar de batalha, naqual ninguém realmente defende o cerejal. Lopakhin lutacontra sua existência. Os Raniévskis - rebotalho inútil, dege-nerado e pusilânime da intelligentsia - escondem as cabeçasna areia; sua resistência é débil e improfícua. Ánia, a filha,sonhando com algum futuro deslumbrante, vive nas nu-vens. Os empregados e os servos da família ou são hostis ouindiferentes ao Jardim das Cerejeiras, com sua velha beleza.E, no entanto, ele aí está e floresce, embora indefeso.

A simpatia do espectador vai toda para ele. Ama-o comose pode amar a beleza de um antigo monumento; ele mesmoquer defendê-lo, despertar as pessoas adormecidas, sacudi-Iasde sua indiferença. A sensação de profunda impotência apo-dera-se lentamente do espectador. Observa Lopakhin avizi-nhando-se cada vez mais da posse do cerejal. Lágrimas en-chem os olhos do espectador, e a sensação de cansaço e fragi-

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lidade torna-se quase insuportável. Ouvem-se distantes gol-pes de machado derrubando as árvores. É o fim. Cai o pano.O público deixa o teatro profundamente comovido com a"morte" de uma personagem inanimada que assumira quali-dades de um ser vivo: o alvinitente Jardim das Cerejeiras. Opúblico quer dar voz a seu protesto: "Preservem a melhor par-te do passado, para que não caia vítima do machado dospoderesque estão sempre a postos para construir seufoturo." Esse pode-ria ser o superobjetivo de O Jardim das Cerejeiras.

Vejamos o terceiro exemplo.Desde o instante em que sobe o pano, o público que

assiste a O Inspetor Geral tem muitas razões para estar feliz ealegre. Os tão detestados funcionários cometem um erroem cima de outro. Encostados contra a parede, cegos demedo, travam sua batalha contra o falso inimigo. O Malcombate o Mal, perdendo tempo, desperdiçando argúcia edinheiro. O Bem só participa nessa batalha já no final dapeça, mas o público sabe que ele está chegando e aguardaansiosamente seu golpe esmagador contra um Mal que seconsumiu em ardis inúteis. Quanto mais o Prefeito seufana de um imerecido orgulho por sua vitória espúria,com mais veemência o espectador anseia por uma justa vin-gança. E quando o Bem finalmente aparece e em dois gol-pes sucessivos (a carta pelo falso Inspetor e a chegada doverdadeiro Inspetor) varre o Mal, o público sente-se recom-pensado, agradecido e triunfante. Pois os habitantes da pe-quena cidade, perdida e oprimida numa vasta nação, foramresgatados finalmente. Mas, para o espectador, essa cidadeé apenas um microcosmo, um símbolo. A nação inteira estáirremediavelmente tolhida nas teias aranhosas tecidas portodas as espécies de "Prefeitos." O público excitado, cujavontade foi instigada e seu senso de decência triturado até amedula, reflete a intenção do autor: "O país deve ser salvo do

cruel despotismo e do poder absoluto das hordas de [uncioná-

rios desprezíveis! Eles são, com freqüência, mais perniciosos edesapiedados do que os altos foncionários!"

Diga-se de passagem, na estréia de O Inspetor Geral essesentimento do público foi, num momento vulnerável, ad-miravelmente resumido por um dos espectadores, quandoexclamou: "Todos tiveram seu castigo e, mais do que to-dos ... eu!" Essa foi a voz do maior de todos os "Prefeitos" -a voz de Nicolau L Apesar de sua natureza fria e cruel, oczar tinha compreendido muito bem o superobjetivo dapeça, não menos do que seus súditos.

E esse é o modo como o ator e o diretor podem usar orecurso do público imaginário para chegar ao superobjetivoda peça muito antes que o público real encha o teatro.

Uma vez mais, solicitamos ao leitor que tenha presenteo fato de que as interpretações dadas em todos os meusexemplos nunca têm a intenção de impor um arbítrio artís-tico. Meu único propósito é sempre ilustrar o método e demaneira nenhuma restringir a liberdade criativa de qual-quer ator ou diretor talentoso. Pelo contrário, para bem desua arte, é exortado a ser tão original e inventivo quantoseu talento e suas intuições lhe permitirem.

Tendo encontrado, ainda que apenas aproximadamen-te, os superobjetivos da peça inteira e de personagens indivi-duais, você poderá passar para os objetivos de tamanhomédio e menores. Mas nunca tente discernir qualquer obje-tivo com sua mente racional. Esta pode deixá-lo frio. É pos-sível que o conheça, mas não o deseje ou não o queira. Poderápermanecer em sua mente como uma manchete, sem insti-gar sua vontade. O objetivo deve ter suas raízes no ser todo enão na cabeça apenas. Suas emoções, sua vontade e até seucorpo devem estar inteiramente "cheios" com o objetivo.

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Procure perceber o que realmente acontece em sua vidacotidiana quando alimenta um certo desejo, objetivo oumeta que não pode ser imediatamente satisfeito. O que sepassa em seu íntimo enquanto é compelido a esperar atéque as circunstâncias lhe permitam satisfazer seu desejo ourealizar seu objetivo? Não está interiormente realizando-o deforma constante com todo o seu ser?A partir do próprio mo-mento em que o objetivo se concebe em sua alma, você é"possuído" por uma certa atividade interna.

A título ilustrativo, pense no desejo de querer consolaralguém em dificuldades e, sendo incapaz de fazê-lo, dizen-do simplesmente: "Não se preocupe, tranqüilize-se", vocêprecisa de dias e dias para realmente realizar seu objetivo.Nesse meio tempo, você permanece estático? Não é nadaprovável. Descobrirá que em todo esse tempo intervenienteteve a sensação de estar consolando constantemente a pessoaem apuros, estando em sua presença ou não. Mais do queisso, "vê", por assim dizer, essa pessoa como se já tivessesido consolada por você (a despeito de quaisquer dúvidasque tenha sobre se a pessoa pode ser realmente consolada).O mesmo podemos dizer em relação ao teatro. Se você nãose sente "possuído" pelo objetivo, pode estar certo de que,em menor ou maior grau, ele permanece ainda em sua men-te e não em todo o seu ser, de que ainda o está pensando enão verdadeiramente desejando-o. Essa é a razão pela qual tan-tos atores cometem o erro de esperar, interiormente passi-vos, pelo momento da peça em que o autor lhes permiterealizar o objetivo. Digamos que o objetivo principia na pá-gina dois do scripte sua realização não ocorre antes da pági-na vinte. O ator que não absorve inteiramente o objetivo,que não o deixa impregnar toda a sua psicologia e seucorpo, é compelido a aguardar passivamente até a páginavinte para realizá-lo. Atores mais conscienciosos, sentindo

que o objetivo não está funcionando de forma apropriada,tentam repetir mentalmente: "Eu quero consolar ... eu que-ro consolar ... " Mas isso tampouco adianta, porque essa re-petição mental é apenas uma espécie de atividade da cabeçaincapaz de estimular a vontade.

O objetivo, convertido num GP que instiga o ser intei-ro e o ativa, pode ajudá-lo a superar essa dificuldade. Umoutro método seria imaginar sua personagem (desde essahipotética página dois até a página vinte) como estando"possuída" pelo objetivo. Sonde atentamente a vida interiordela (ver Exercício 10) até despertar um estado psicológicoanálogo em você mesmo ou use as sensaçõesque examina-mos para despertar seus sentimentos.

Um resumo final das principais sugestões para Abordaro Papel na fase inicial de seu trabalho:

Por mais consciencioso que você ou seu diretor possamser, não é necessário usar todos os meios disponíveis de umasó vez. Pode escolher aqueles que mais o atraem ou aquelesque lhe propiciam os melhores e mais rápidos resultados.Não tardará a notar que alguns são mais adequados paraum papel e alguns para um outro. Faça suas escolhas livre-mente. Com o tempo estará apto a experimentar todos elese talvez a usá-los com igual facilidade e êxito; mas não sesobrecarregue com mais do que o necessário para o desem-penho ótimo de seu papel. O método deve, acima de tudo,ajudd-lo e tornar seu trabalho agradável; se for adequada-mente usado não o fará, em circunstância nenhuma, árduoe deprimente. Pois o trabalho de ator deve ser sempre ummotivo de júbilo e nunca um trabalho forçado.

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