+ All Categories
Home > Documents > Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

Date post: 08-Aug-2015
Category:
Upload: amanda-rosa
View: 269 times
Download: 2 times
Share this document with a friend
Popular Tags:
98
CASA DO XEROX 3322-232ti \)(\., 1 Professor: ·r __ . LAURA DE MELLO E SouzA NORMA c CONfliTO DA De NO XVIII RfiMPRmÃO Belo Horizonte Editora UFMG 2006
Transcript
Page 1: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

CASA DO XEROX 3322-232ti

Cui~so;~~~~ \)(\., 1 - · Professor: ·r 1l~ \L~ __ .

Vaior:~~--

LAURA DE MELLO E SouzA

NORMA c CONfliTO A~rcCTO~ DA HI~TÓ~IA De MINA~ NO ~[CUlO XVIII

Iº RfiMPRmÃO

Belo Horizonte Editora UFMG

2006

Page 2: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

Copyright (C) 1999 by Laura de Me llo c Souza

200<1 - 1a rcimpres.s3o

Este livro o u parte dele nao podc ser re produzido por qu~I Iquc r meio sem auto ri7..:-l(ao cscrita do Editor

--- ------ -~---------- ---------- ~--------

Souza. Laura de Me llo e

S726n Norma c conflito: aspectos da hist6ria de Minas no secu!o XVIII/ Laura de Mello e Souza -Belo Horizonteo Eel. \Jf MG , 1999.

23lp. - (Humanitas)

I. Minas Gerais Hist6ria- Periodo Colon ial -

1'500 - 1822

CDD o9RI CDUo9(815.1)

Cataloga~ao na pub lica.;;ao: Div isao de Plane jamento e Divulgaylo da Biblio teca Universitiria - UFMG

ISBNo 85-7041 -170-7

EDlTORA (.AO DE TEXTO Ana Mari:L de Moraes PROJETO G RA FICO

Gl6 ria Campos (Nfanp,d)

CAPA Design g r:Hico: G-ui !i Seara c L{Jc ia Nemer

soh rc fo10s de Jo3o Vargas Penna d e paint is da lgrcja d e Santa ffigCnia (Ouro Pre to - MG)

REVJSAO DE TEXT O E NORMALlZA(.AO O lga M:uia Alves d e Su nsa

REVJSi\ 0 DE PHOVAS Alex:'l.ndre Vasconcelos de Melo

AndrC Luiz Gom es Flavi a Silva Bianchi

PRODU(.AO GMFICA Eduardo Ferreira FORMATA(.i\0

Eduardo Ferreira ElllTOHA IIFMG

Av . AntOnio Ca rlos, 6627- Ala Direita da Bib!ioteca Ce ntral - tE:rreo

Campus Pampulha- 31270-901- Belo Horizonte/ MG T e l.o (31 ) 499-4650- Fno (31) 499-4768

ed ito [email protected] http://www.edirora.ufmg.br

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Re itora: Ana Llici ;l Alme ida Gazzola

Vicc-Rci to r: Marcos Bora to Viana

CONSEUIO Ef) ITORIAI.

J J '~· ·J '

A memoria de !lana Blaj, amiga de todas as horas

Page 3: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

111 l·:.s t:t dt \' tS:to t: tn lll l U " I ·' p:trt l·" s~.-, :tp:Hc t..:c 11 u nLtnu:;cntu d e f:vo ra: :t

dt\' L..;:'t\) num: t scgund:t p: t rl t' :tp:tr{:l't' l' tll :11nhus o . ...; rn an USLT it os. o que sugc..~n:

!.tp-.,, d11 •. :o pi.sLI d:t A)Lida qtutH_ItJ dc.:·tXtlll de Ltdu ;t pritnet r :t di\·is:·to

,_ 1\u ttunu:-.l·r itu dt: !~vu t : t, rl'!"c r i L~t () , l·u rrt gtd() n;t vl!rs ~hJ d:t Ajud:~, fico em duvid :t s v :.;eria u prett:rttu pcrfeilu ~)U ~) futu ro. que. nu c: tsu, teriam fo rnta

idt:·Jlt ic:t n a grafi:t da epo~.·:l.

l! No tll :tnu :-;cr ilo de F.v o r ;t · ··com o a Deus vivo na t ~ rr :~ ''

i\ No manuscrito de (:vo ra : "for(os:t ''

H No tll:tnuscntu d e l~vo r : t, es t:t ft:t St" ClnHinua :qJ{)s o ponto f in:tl antert CH,

se tn p:tr:'tgra fo

t ) No nunusc r ito de f:vor:t, t:1mbt-n1 c~U fra sc: .segut' :tu p on l o final :t ntert o r ,

.st: tll p :11 :'tgr:do

I!· Nu !ltanuscrilo de Evura, ;t p:t.ssagl'!ll ··{lll para tnl"'lhor di zl..:'r :trLtll t...":J ndu ·nl C'

, . t ~_)knt.tm <..: nte " foi aU t_' .'it_' l'lltad: t :1 Jtl:tq~ ettt c~que t t..Lt

1• Nu tll :tnu.-.,u ·itu ck f:vur:t, '"c u sctnptT st:guri.-.,s itnu e l"cli ds~l tnu ur:tgu dc~t:t

cas:1 '" sc.: cncon tra ~t c r esccntado ;1 margenl esquerd :1

tH Nu n tanuSlTttu <.Je l::vt>r:t , t. 'Ste.") n umc:-. d e grupo.s in dtgt.' ll:l." t.'tll..' u tt tra n t- ;)l'

:tnot:tdos ~~ tnargem esquen.b

. ., No lll :tnuscrito d e ( vt)J":t, :t .... : res~..·enLI - .Sl:' ·· o :tl e .-;u :tqLJt:k g r :l!H.k~ ,.t ce- rt:i dl;

1-:git ()'' .

.:.- N11 11 \,t ll US\· r i h J <... k· 1·: \" l ll":l, .t IILI!,.": t n tllh." t:t l b t-' !1\ "t.: :t! Htr ·:--l · < !f J Jcltllllll' J", t r"

c th 11l1lr: t ·."l' :tn ul:td :t :1 tt l.l!J-!l'tt t t.' ~·lJUctd:t

·12

PARTE II -

EXERCfClO S DE H!STORIA SOC I A l.

-----------------------------~-- -----

Page 4: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

I

I I "' .. (

A. INFANCIA ABANDONADA

Page 5: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

MeCANI~MO~ DA eXrO~I~AO De C~IAN~A~ eM MA~IANA,

1150-11~5

Venho trabalhando com Minas Gerais no seculo XVIII desde 1976. 0 primeiro resultado de minhas pesquisas integrou a dissertac;:ao de mestrado que defendi na USP em 1980 e que se publicou em 1982 como titulo Desclassificudus du Ouro -a Pobreza Mineira no Seculo XVIII A investigac;:ao assentou­se sobretudo em fontes qualitativas -- correspondencia oficial de governantes, assentos de visitas episcopais rcalizadas nas freguesias mineiras, varios tipos de docurnc nto::; o ficiais. J;'i naquela epoca havia consultado fontes d e natureza mais quantitativa, a saber, os registros de prisao e so ltura, sem entretanto trabalha-las segundo os procedirnentos pr6prios a tal tipo de testemunho, como o sao os metodos mai s so fisti ­Ciclo~ de tabulac;:ao dos dados. 0 desenvolvime ntu pusterior de minhas investigac;:oes impos o recurso a uma garna muito mais variada de fontes, mesmo porque Q___r_·~_curLe Lornou-se bem mais complexo. A partir de 1987, passei a procurar uma compree11Sao mais global da sociedacle mineira SetCCCntista, buscando expiorai de t<;rma mais sistematica suas relac;:oes

- - d':' _ _F_oliti_<;;I_~ __ d_~t_ nlltuJjt, 0 corte cronol6gico um tanto f1uido, mas corresponde, grosso modo ,

ao perfodo e rn que a dccadencia do ouro se torna irreversivcl, indo aproximadamente do final cia decada Je 40 e se fechando por volta de 1795. A decada de 40 e ain<la s ignifi­cativa por corresponder a um momento Je alterac;ocs subs­tantivas na vida da capitania: ~!:i':'s·ao do bispado d e Mariana e consequente implantac;:ao dos mecanismos de fun cionamento

·---------------------- -- ----- -------------- ------

/- ;1;

Page 6: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

da institui <;:ao eclesiastica; o Iongo governo de Gomes Freire -de Andrade e seu irmao e interino, Jose Antonio Freire de Andrade; o aprofundamento de vasta gama de tensoes sociais, notadamcntc o pipocar de quilombos e de investidas norma­tizadoras contra desclassificados sociiis_ A decada de 90, por sua vcz, indica o fccho de uma epoca, no resc-:iTdo -da-~ep~ess~o a.lnconfidencia e do exilio do grupo mais notavel deintelec­-tuais que a America portugucsa produzira ate entao.

0 trabalho com as matriculas de expostos, e que aqui aprescnto, faz parte dcsta nova fase de minha pcsquisa. Meu objctivo e entender o perfil cia exposi<;:ao de crian<;:as em Mariana no perfodo acima rcfcrido. Para tanto, trabalhei com 4 codices existcntes no Arquivo cia C:imara de Mariana (os de nQ 153/146, 181/17, 558/80, 705/192) e urn univcrso de 478 matrfculas.

Ap6s cstabelcccr-sc as variaveis a serem trabalhadas, os dados foram tabulados por mcio do programa SPSS, e com base nessas tabula <;:ocs, elaboraram-sc tabelas c hip6teses prcliminares. As tabclas c as hip6teses constituem a scgunda parte do artigo. A primeira visa csclarccer algumas questoes referentcs a cxposi<;:ao de crian<;:as na capitania de Minas durante o seculo XVIII.

Gostaria de ;~graclecer muito cspccialmcnte a meu colcga e amigo Hodcio Gutierrez. Sem sua ajuda prcciosa com o SPSS, e scm sua vasta e reconhecida experiencia no tr:Ho quantitativa de fontes desta natureza, eu certamente nao teria avan<;:ado muito. Apesar disto, os resu ltados parciais aqui indicados sao de minha inteira responsabiliclade

0 PAPEL DAS CAMARAS MUNICIPAlS

Antes que a assistencia as crian<;:as abandonadas recaisse sobre as Santas Casas de Miseric6rdias e que nelas se estabelecessem as rodas de expostos, cabia aos senadores das Camaras Municipais responder pelo socorro aos bebes deixaclos ern locais publi cos . As pessoas que encontras­sem cria n c inha s cornunicavam o ocorriclo as autoriclacles competentes e, caso dcsejassern cri;'i-las, rccebiam para isto urn pagamcnto da Municipalidade. Na America Portuguesa, seguia-sc ncsrc tocante as disposi<;:6es da legisla<;:ao portuguesa, sobretudo a at inente a Lisboa, capital do Imperio.

48

N?io era com calma ou com bo8 vontadc, contudo, que os homens do Senaclo encar:1v:1m tais encargos; alegavam constante falta de rccursos, insinuand o que nada sobra­ria para cuidar da inf?incia clesvalida na co16nia caso as Camaras tivesscm de continuar enviando parte da receita de seus impostos par;~ subvencionar obras de assistencia na Metr6pole. A falta de recursos limitava em muito a a<;:ao das Municipaliclade s. Entre 1699 e 1726- ano em que se cstabeleceu na Santa Casa local a roc!a dos expostos -, a Camara de Salvador criava entre 4 e 5 crian<;:as por ano, e entre 174'5 e 1746 n?io sc criaram mais do que 6 crianps com a subven<;:?io da C'tmara do Rio de Janeiro- onde a roda surgiria em 1738. 1

A cria<;:ao das roclas nao exirniria as Camaras de despesas corn cxpostos. Na Lisboa dos Felipes, em 1637, a Municipalidade auxiliava a Santa Casa com 689$360 reis anuais; tal pratica persistiria quasc scculo e m e io depois, ja que em 1778 D. M:1 ria I orclcnava ao Senaclo do Rio de Janeiro qu e assis­tisse a Misericordia local com 800$000 reis. Na Salvador do primciro quarrel do sereccntos, impostos pagos pclo rendi­mento dos a<;:ougue.s permitiam que :1 Santa Casa atendesse melhor a infancia abanclonada-'

Tuc!o inclic;~ , porern, qu e a pcrmanente carcncia de recursos tenha levado, na America Porruguesa, a supressao d e clois funcionarios que, na Metr6pole, eram mantic!os pelas Mu nicipalidadcs: o pai c a mae dos enjeitados, a quem cabia recolher ns p('quen inns :1bandonados, sua c 1sa scrvinclo aind:-1 de espccie de ponto reCcrenci;J\ a toclos que e nviassem crian~~as ~ assistcncia pCib!ica. St:m tais Ciguras, quem cncontrassc behcs na co l6n ia devcri:l cornunicar cliretamente i1s Cilmaras Rcnato Vcnancio, em quem venho me baseanc!o ate aqui, acre­clita que csta a<;:ao mais direta, scm intermedia<;:ao clos referidos funcionarios, possibilitava que fossem mais p rescntes as simula<;:6es e est rategias particulares com vistas a beneficiar-se do auxilio publico. Outra peculiariclacle colonial c a presen<;:a, nos raros registros clas C:amaras, das expressc1es "cri:1cleira" e "criador", praticamente inex istindo referencias, como acontecia na metr6pole, a "amas de Ie ite". ·'

Em Minas, onde as Miseric6rdias surgiram muit o tarde, e oncle nao houvc rocla de expos tos durante o seculo XVIII, :1

49

' '

Page 7: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

criac,:?lo de enjcitados recaiu totalmente sobre as Cimaras Mur~icipais, ac:trr<:tando, :ts vezes , atitucles ambfguas e contraditc) ri:ts , coillO tivc· uponunidaclc de discutir em outro trabalhu. ' A dcKLJ!Tlcni:I<:;io que [J:Isso a ana lisar c toda rcfc­rente aus :tSSL:rllus Ccitus JWl:t C:l.m:na de Mariana no tocante a cria.,:jo de cnan.,:ts expustas entre 175U e 1795

HIPOTESES PEELIM!NAEES COM BASE NA LEITUEA DAS TABELAS

A tabela 1 indica que a media anua l de expostos na cidade de Mariana foi muito baixa, oscilando entre pouco mais de 5 crianc;·as e chegando, no momento de pico- correspondente ao iniciu da decatb de 90 - , a 15 crian.;as. Alias, a bibliografia tem insistido nas moclestas climcnscJes da exposic,:ao no Brasil colonial e mesmo no perfoclo do Imperio, e Maria Luiza Marcilio adianta que, entre n6s, o que caracterizou a natalidade foram antes as "e levacias taxas de ilegitimidacie, presentes em pratica­mente toclas as :neas e todos os tempos".' 0 que nao ressalta, e me parece pertinente considerar, e que a::; altas taxas europeias revelam sociedade muito mais refrataria aos nascimentos ilegf­timos, cnquanto o menor incl ice vcrificado entre n6s sugere m;Iior c:Ipacidadc de ahsorver tais nascimc ntos ou, o que talvez seja :tinda nuis rckvanlt.', :1 barulicladc cia bastardia dada a ;Ilu ocorrenL·i~I dt..: rel:r~: c)es consensuaist'

Fe it:Ls est:ts reso,:~ l v;ls, c:the refletir sobrc o fato de a cxpo­si.;ao de crian\·:1s soh :t responsahilidade da C1mara cie Mariana tcr aumentado con::;id e ravelment e conforrne u seculo foi che gando ;10 final. Tal eviclencia tem, a meu ver, relac;:jo direta com as dificuldades erlt~t o e nfrentadas pcla capitania, advindas cia crise minerator·ia c dus impasses ante a reorienta.;ao oficial das ativicJade s eCOI10111iC::tS: se ja porque O S pai::; nao tinham meios suficicntes para ;lrctr com a cria.;-~1o dos filhos, seja porque, cstratcgi c tmcntc, expunham os filhos a fim cic obter, de modos indirctos, o financiamento de sua manutenc;:ao 7

N:to S t.' pot.lc c<JniiJclu cksconsidccar o aumento populacional da L';tpil:llli:t llU llTU.: illl qu;trtel du Se CUlU, indicacio por gama variada de lontes , e que, por raZC0Jes <'Jhvias, implicaria no aurncnto de nascirncn to s nao-d eseftveisa Cabe aincla lembrar que, como avan~ar clo seculo, a socicdade talvez de::;envol­vesse expec tat ivas rnaiores ace rca da participac;:ao do Estado

50

na cria\;ao cia infancia abandonada, por isso aumentando o numero de expostos.

No conjunto, a quantidade cie crianc,:as do sexo feminino mostra-se ligeiramente superior, sobretudo nas decadas iniciais e finais do perfodo; houve, contudo, momentos de superio­ridacle numerica clos bebes do sexo masculino, como o foram as decacias de 70 e 80. Ao tocio, expuseram-se 245 mulheres e 229 homens, e a d iferenc;:a nao chega, a meu ver, a revelar uma tendencia no senticio de preferir criar homens ou mulheres, sendo apenas reflexo cia flutuac,:ao natural que sempre ocorre no tocante a uma distribuic;:ao de nascimentos entre os sexos, acabando, ao fim e ao cabo, por se auto-regular.

TABELA 1

Expostos por ciecadas, 1750-1795

Periodos Tota l de

Mulheres Homens o/o de Media anual de

expostos n1ulheres exposlos

1750-59 53 30 23 56,6 5,3 -----·-----------------------------~---

1760-69 92 48 44 52,2 9,2

1770-79 110 48 62 43,6 11,0

1780-89 129 64 65 49,6 12,9

1790-95 90 55 35 6 1,1 15,0 -------------------------~

Total 474 245 229 51,7 10,3

Exclusive 3 expostos por nao constar o ano da matricula, e 1 por nilo con star o sexo. FONTE- Ace1-vo cia Clmara Municipal de Mariana, Liuros dos c':xpostos, c6dices n . l53 (146), 181 (17), 558 (80), 705 (192).

No que cliz respeito as pessoas que aciotavam crianc;:as expostas, ou pelo menos aquelas que se apresentavam as camaras alegancio disposi\;ao para cria -las, parcce-me curioso que tenham sido majoritariamente homens. Isto viria a contrariar as teses que inclicam, inclusive para outras partes do muncio, uma profissionaliza~ao feminina ncste senticio: a existencia de criadeiras, voltadas para a cria.;ao de crian~as a fim de, assim, terem meio de subsistencia.

51

Page 8: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

Vejamos contuclo o que estii por tras das aparencias imediatas Apesar da inexistencia de dados acerca da cor das crianc;:as expostas, nao se pode desconsiderar o fato de ser maci<;a­mente mestic;:a e negra a populac;:ao de Minas ja no meado do seculo, nem deixar de !ado as implicac;:oes do escravismo na dinamica da exposic;:ao. Numa sociedade em que os escravos eram a base da vida economica- de forma lapidar, Teixeira Coelho diria que "as riquezas dos moradores de Minas consistem nas roc;:as, lavras e escravos que possuem. Os escravos morrem e as roc;:as nao tern valor sem eles" - 9 muitos desses homens poderiam ser tanto proprietarios de mulheres escravas que haviam exposto seus filhos e os desejavam de volta quanto senhores de escravas que faziam as vezes de criadeiras, ama­mentando crian<;as. Talvez agissem conforme as regras do paternalismo proprio aquele tipo de organizac;:ao social, inter­ferindo por suas cativas e, junto com elas, se valessem estra­tegicamente dos preceitos cia legisla<;:ao, segundo os quais ficava livre o filho cxposto de mae escrava. 10 Talvez, ao contrario, fossem moviclos por cleliberacla ma-fe, visando recondu zir ao cativciro os bebes que a expos ic;:ao, em princfpio, libertava. Por fim, pocli;l s<:-:r que agissem de forma analoga a dos senh o res que runlwm suas escravas ao ganho; ao invcs de leva-las a vender nas ruas gencros comcstiveis ou favores amorosos , va liam-se clos estipendios pagos pela Cimara para atenuar os encargos representados pela subsistenc ia clas cativas.

Nao se cleve contudo descartar a possibiliclade destes homens serem meros representantes de mulheres, uma vez que nao se conhecem suficientemente os mecanismos de funciortamento do "sistema de adoc;:ao" nas Minas do seculo XVIII. E, aqui, a tabela esconclc talvez urna clas peculiaridacles mais interessantcs do mecanismo de exposi<;:ao. 0 maior numero de homcns matriculantes pode estar diretamente relacionado ao fato de se rem os cahec,:as clos fogos que matriculavam as crian<_:as encontradas; neste caso, tem-se justamente o decrescimo de fogos comandados por homens e a emergencia de um numero maior de fogos femininos no final do perioclo. 11

Isto explicaria o aumento significativo do nC1mero de procu­rac!ores - toclos homens - no final do periodo, quando, nos seis anos computados, atingiu a casa dos 23%. Parece mais plauslvel que mulheres vulner:'iveis ou impossibilitaclas de

52

se apresentarem as camaras no momento de ado<;ao recorressem -como o fiz:eram- a procuraclores do scxo masculino, assim tornados seus intercessores em toclo o rrocesso. 0 recurso a procuradores foi contudo semprc minoritario no conjunto das matriculas, nunca ultrapassando a quarta parte do total (tabela 2)

Ha implica<;:oes sociais a screm dcprecndidas clestes dados que, no momento, ainda nao se encontram suficientemente claras para mim: tanto nas rela<;:oes estabelecidas entre os procuradores e matriculantes, a sugerir redes de sociabili­dade, quanto no habito, expresso por certos individuos, de adotarem mais de uma crian<;:a. Se a vasta maioria dos matri­culantes havia se dedicado a cria<;:ao de uma unica crian<;:a-84,4% do total -, encontram-se alguns que retiraram duas crianc;:as - 11,7% -, talvez por scrcm irmas, e uns poucos que, intrigantemente, teriarn se encarregado eLl criac;ao de 3, 4, 5 e ate 6 crianc;:as. 0 que oculta por tras dessas evi -cicncias' Sob o pon to de visu econ6m ico , parcce I'C\'C -

Iarcrn-sc ai es tratagernas c\e sobrevivcncia o cstipend io p:1go pe\a Camara [JOcleria ser significativo para um Or<,:amento minguado, ou a cr ia<;::'io de cr ian <;:as garant ia aos indivic!uos pobres o aumcnto do n(tmero clc brac;:os disronfveis para a lu t;t pe\;t .'iuhsistenci;t. Sob o ponto de vista clas mentali­clades, o faro de uns poucos inc\ivicluos adotarem muitos bebes faz le mbrar o costume de se tirarem crian<;as para criar em fun<_::lo do pagarnento de prornessas fcitas 12

A ta be la 4 complementa a tabcla 3, pois nos cia elementos para a analise do perfil social clo.-; inclivicluos que mais aclota ram crianc;:as e mais servir:1m como rrocuraclores junto a camara de Mariana. Uma das pessoas que ac\otou maior nC11nero de crianc;:as (6) era tratada por Dona, o que reve la cerla condi<;:ao social, e um dos dois a adotarem 4 crian<;as era sargento-mor. Dificil tratar-se, no caso, de filh os indesejados, dado o numero cons icleravel de crianc;:as adot;t­das por ambos. A eviclencia mais parece sinalizar no scnticlo de que pessoas de cabeclal adotavam expostos, re lativizandn a hiporese levantada acima, quando do comentario cia taheLl 2, e segundo a qual a ado<;:ao seria sobretudo estrategia de sobrevivencia. Para homens c mulhcrcs mclhor si tu<~cl os n<1 sociedade, a criac;:ao dessas c rian <;a.s poderia ter o ohjetivu de aumentar o num e ro de agregaclos e apaniguaclos, visando

53

Page 9: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

antes co nferir es uma e statu s du que trazer vantage ns pecu­n i:l ri as. Recles d e so l icl;.~ ri e d a d e c de cornpadri o se fo rma ram dcsta m<tn e Jra , te ndo lo r1gui ssi ma durac;ao na nossa hi s t6r ia. I.c miHe ··SL: d t: toda :1 lit<.:r:t tur: l .~ ()bre co ron el ismo e m a nd o ­nt s m o loc:.t l, para n :·to faLtt d:t fi c<,_:~tu: e m Chupadiiu do Bugre, pur cx e mplo , M{trio l'a lme ri o fala do hab ito d e se ado tare m c ri a n c;:a s 6rfas c aba ndo nadas, muitas das quais v iriam a se tornar h o rnens de co nfia n c;a dos coro n eis do Triangu lo e d o Sui mine iru , na figura dos te mive is jagun<;:os .

No wcante aos proc uracl o rcs , a c xp licac;:ao c ainda m a is e vidente: se u pres tlgi o social e ra , porum lado, garantia para a acloc;:~t o e, po r ou tro, :J pr6pri:t r: tz:'lo de serem procurado res. l' cssoas de cond ic;:tu rna is humilde ou instavel respa ldavam-se, :L'iS lrtl , 11:1 cstlllU soc i:tl d os procuraclores: Luis de Souza Ca rvalh o , da fr<."guesia d e <_; uar :tpi ra nga , inte rce cl e u por 11 p cssuas que de~L: j av: t l ll niar L'Xpos tos, e en tre 1771 e 1789 passou de alfe r L~ ~ :1 tCilent e; Agost inho Pe re ira Braga, que responde u com o procurador cl e 7 cxpostos e ntre 1767 e 1794, pa sso u , nessc pcrioclo, d e a lfe res a capitao: inclivfdu os , portanto, ern processo d e ascc nsao soc ial , ou pelo rnenos e m processo d e a ume nto g ra da ti vo d e prcs tlg io e cs tima n o sc u m e io, o qu e jus t ifi ca se re 111 l ~to procura dos .

P:tssc mos :1 tabe la 'i De ntre os matri cu la ntes, o maio r nCllne ro (29%) res idi:J e m Maria11a, le ndo tambem s iclo estes os res po nsavcis pda c ria<;:~IO d e um rna ior numero de crianc;: as U 1,'i%) . Seg ue m-se as local idades G uarapiranga (1 7,2%), Sumido uro (10,7°/til, Pa.-;sage m (7,3%) e Sao Cae tano (5,6%), que e ntre tanto contam com numerus bern m enos express ivos.

Guarapiranga, o u Piranga, corTespo ndia a freguesia ou par6quia d e Nossa Senho ra cla Conceic;:~'io d e G uarapiranga. 13 Era arraial antiquissimo, re montanclo ao inicio da ocupac;:ao d o territ6 rio, por volt a de 1694 Na cl ccada de 50, o seu contingente demogra­fico conheceu L!lll impulso cons ide ravel, contanclo com muitos home ns de posses. 14 S:to Caetano tambem e ra freguesia, dotada d e vig:trio colaclo e, nesta qualidade, se rvindo d e centro agluti­nad o r do povu:nnento da regi:to 1

' Sumidouro se o ri g ina ra cia funda r,·ao, por Fe rnau Dias, d e urn an·aial no anode 1674 , senclo punanto zona d e ocupar,:ao remo ta. Passagem, ao que tuclo indica, teve me nor import3ncia , sern pre grav ita nclo em torno de Mariana c sendo pratica me nte uma cxtc nsao da c iclade-' 6

54

lf\ c-. ["-.

0 lf\

!:::; ~~

] :5 'Q) w "D

~ 0 f-< 0..

0 "0

~

.....

55

Page 10: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

TABELA 3

Numero de expostos por matriculante, 1750-1795

Niimero de expostos

Total

Numero de matriculantes

331

46

10

392

o/o

84,4

11,7

2,6

0,5

0,3

0,5

100,0

Total de o/o

expostos

331 69,2

92 19,2

30 6,3

1,7

1,0

12 2,5

478 100,0

FONTE - Acervo Ja Cimara Municipal de Mariana, Livros dos Expostos, codices n. 153 (146), 181 (17), 558 (80), 705 (192).

TABELA 4

Principa is matricu Ia ntes e procu radores, 1750-179S

Nome

Grcg61iu Di<ts Pet is

,\na M;1ria Teresa de j esus

Fr: tncisco da Fonseca Fcrreir:1

Tomjs Jose de Olivein

Lufs d e Souza C:llvJ\ho

Agostinho Pere ira Braga

Manoel Fe lix de Mello t~ C:astrn

NCm1ero de cxpost:os

matriculados

Periodo das matriculas

1772-69

1774-78

Patcnte Local cle resid(~ncia

Guarapiranga

1769-78 Sargenro-Mor Sao Caet;1nn

1762-73 Marian :l

177 1-R9 Alferes!Tene:nrc l.nar,q;iGng:1

1777-95

FONTE- Acervo da Cimara Municipal de Mariana, Livros dos Expostos, codices n.153 (146), 181 (17), 558 (80), 705 (192)

56

TABELA 5

Local de residencia dos matricu !antes, 1750- 179'5

Loe1l de resiclencia N° de

% NQ de expostos

% matriculantes matriculados

9(, 29,0 130 5l.'i

Frcg. d e Cunrapirang:-. 56 lh,9 17, 2

Freg.do Sumidouro )7 11 ,2 10,7

P3&"-1f:::em 26 7,9 30 7 .. l

Freg. d e S~o C3cr.ano 5,1 2.l ),6

Furquim ~ ,6

Frcg. do lnfition ado )_() 2,9

Freg dcS . J nSt!·d·, t B:tmt Long:1 .'l/l ~- .j

Frcg. de Antonio Pereira 3.'

~ .. j

C:H.1Si\h :l .<;

f1 :1rc1dn Jbc,dh :lu 2,·1

C:~ n 1;1rgi lS 1,2 1.2

\'a rgcm 0,(1 O, "i

lkn!n Rodrigu es o . .:;

f..lorrodcS:-.mana 0/l 0,)

M<~nj:J LCguas 0,6 O,"i

Gualaxo do Sui 0,\ n . ~:

[)nm in ;.;us Vclhu (l \ 0,2

Cachoci r:1 do Brumadn 0 .;1 (l' -~

H1odol 'cixe 0,5

Di.suito eta Esper.:1 0,_) O."i

S:lojose do Rapo so n,:) 0,'",

C:rastoclcCima O,.l 0, 2

Pon:o Seguro o .. l 0,2

Total .1.11 100,0 41.1 1110,0

Exclusive 61 matriculantcs para os quais nao constou o local de residencia e 6'5 expostos pertencentes a esses marriculanres FONTE Acervo da Cl.mara Muni ci pC~I cl e Mariana, Lim·os dos E>::postos, codices n.1'53 (146), 181 CJ7l, 'i'i8 (80), 70'1 (192)

57

Page 11: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

Vcjam-sc agora os locais ern que foi exposto um numero insignificantl' de bchcs (0,2'Vu do tota l). De alguns, e dificil ate se <:numtr~ll ;1 rderencia, como Domingos Velho e Crasto de Ci11U, estl:' CJ!timu ulvl:'Z pn.)XIrtlu a Crasto de Baixo, lugarejo nas 11m:dia\;<.Jes de l'urqUJm e Je B;.Jrra Longa. Outros, como Gualaxo do Sul ou Rio do Peixe, eram pontus largados em lonjuras semi­dcsabitadas: u prirneiro, para os !ados clas margens do rio Doce, l:'nL"io densamenrc recobertas de mata; o segundo; arraial insig­nificante, surgido apcnas na decada de 70 e perdido nos Campos cbs Vertentes. Pono Seguro, tambem chamado de Tapera, gravitava em torno de Piranga, e nao tinha maior import~tncia. A exce<;:ao Fica por conta de Cachoeira do Brumado, zona antiga que deve o patrimonio de sua capela a potentados dos prirneiros tempos, como joao Pedroso e o coronel Matias Barbosa da Silva. 17

T~1is cvidcnci;ts parecem, purtantu, reiterar o que :1 histo­ri<Jgrafia 1:t sabe: zurus urbanizadas expunham mais crianr,' as do que zonas rurais, onde as !ransformcu,:6es lentas e as suli ­LLiricda<ks nL1is accntu~1das propiciavarn melhor recep<;:,'to aos enjeitadu::>. 1

" Sell\ distribuir gcograficamente, em mapa, as porcenugens, n:1o Sl:' pocle con.tudo ter uma indica<;:ao mais consistente da relar;:lo en tre a intensidade do abanclono c o Clt":"ltcr mais ou mcnos urbano do local e1n que ocorreu

A tabela 6 e St'lll dCivida clas rnais interessantcs e significa­tivas, ilustrando com feliudade as rela(;c)es enrre o fenomeno de ;~du<,· ;!o c a cunjuntura hist6rica. Como avan<;:ar do seculo, ;~umentou o nC1n1ero de expostos; ate 1759 as Can1aras pagavanr .5 oitavas Lk uuro para a criar;ao de cada um deles, mas redu­ziram o estipendio para 2 oitavas ja na decada de 60, acusando maior dificuld:tde economica. Mesmo assirn, a despesa anual com o pagamento de mesadas aumentou sem cessar, com a Cmica excec;.·ao cia decada de 80, quando caiu rnuito ligeira­mente. Aumentou igualmente o periodo de dura<;:ao da mesada: o mais cumum foi arcarem as Camaras como pagamento durante 7 a nos. l\cduzindo a quantia referente as mesadas- que, em geral, deveriam ser ragas a cacla tres meses -, as Camaras parecc terern tentado dest,mpcnhar um papel socia l mais efe­tivo, ;ltL·nuando us (mus advmdu::, du abanclono de crian<;:as. Tra,·o scm dC1vida curioso, a merecer comprova.;ao melhor por meio de outras font e s Jocumentais e a sugerir, muito prova­velmerlle, que tal politica expressava preocupa(_:c"Jes oficiais

no tocante a natureza da popula<;:ao: conforme o coroLirio posto em pratica por Pombal, eram as gentes cia propria colonia que haveriam de povoar e, em ultima instancia, defender a colonia JY Alem d isso, era bom que tais habitantes tivesscm base familiar, sempre importante como elemento estabilizaclor.

Perlodos

1750~59

1760~69

1770~ 79

1780~89

179ll~95

Ic,ul

TAI3ELA 6

Despesas feitas pela camara de Mariana com as mesadas dos expostos, 1750-17')5

NUmero Valor da mesada total Despesa Periodo de durJ.\.':1o

Ja mesada total Je -~------·---- Ja com media anual ~-~-------

expustos 2 uiLav:.ts 3 o itav:.~s expos[Qs da cJ.mar.1 l ano J 3.!lU::. 7 :lllOS

de ouro

53 49 1860 186,0 lL 15

92 76 16 2400 210,0 19 u 109 109 6l04 610,4 H2

107 107 5992 599,2 117

:·h eo 4704 784,0 16

415 380 65 21060 457,8 12 34 229

Excluidos 3 expostos do total por nao constar u anode sua matricula e 30 por nao constar o valur da mesada. No casu das colunas que indicam a dura~·ao da mesada, excluiram-se aincla mais 170 expo.stos, por nao constar o dado sobre a durar;ao. FONTE- Acervo cia Camara Municipal de Mariana, LiVI·os dus Expustos, codices n.l53 (146), 181 (17), 558 (80), 705 (192).

Para efeito dos calculos, consiclerou-se aqui que o perioclo medio de dura<;:au das mesadas foi de 3 anos para as duas primeiras decadas, e de 7 anos para as decadas seguintes.

Se comparadas a receita anual da Cimara de Mariana, contudo, ou se confrontadas com o montante do subsidio literario em meados cia decada de 70 -- e as compara<;:oes devem ser feitas com cuidado, pois os dados cia receita cameraria dizem respeito a 1777 e a 1778, e os do subsfdio a 1775 - o panorama se apresenta bem mais desanimador, reiterando as afirma~oes da historiografia no tocante aos gastos modestos feitos pelo nobre Senado com a infancia abandonada. 20 0 desembargador Teixeira Coelho indica que, em 1777, o total dos rendimentos cia Camara de Mariana or<;:aram em 5:744$987, e jose joaquim

59

----~~~---------- - ~-----------------~----------~

Page 12: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

da Rocha registra, para o ano seguinte, 4:900$000 21 A media anual clessa clecada, conforme a tabela 6, foi de 610,4 oita­vas, ou 915$600 reis 22 lsto significa que o gasto cia C'lmara com o pagamento das mesadas ficou entre 16 e 19% da sua receita global. No anode 1775, a comarca de Vila Rica arreca­clou 2:937$056 com o subsidio literario: a despesa corn os mestres regios ern Mariana - cidacle que sediava aquela co­marca, e tocla a capitania - seria, portanto, consideravel­mente superior as clespesas municipais corn expostos.'l

CONCUJSOES

Os dados analisados acima sugerem que o problema das crian<;:as expostas na regiao de Mariana se tomou mais canclente conforme o seculo foi chcgando ao fim, as C\maras, por sua vez, procuranclo sc defender clianle da crescenre expectativa ante o seu papel de pagadora de est1pendios para a cr ia<;:ao clos pequeninos.

Mesmo que a crise do ouro nao inviabilizasse a vida da capitania, j;'i ha muito dotada d e outras atividades e cono­micas cle relevo, e curioso que muitas variaveis apontcm no senticlo de uma clesestabiliza.;:ao geral ocorricla ao m es mo tempo em que decaia o rendimento aurifero. 0 aumento dos fogos femininos, por exemplo, sugere tanto a maior auto­nOinia econ6mica clas mulheres quanto a evasao dos homens, que talvez partiam em busca de novas atividades - seja nas fronteiras despovoadas, onde se clistribuiam sesmarias e se acenava com boas possibilidades de ganho, seja no encal\,:o de novas jaziclas, quimera constantemente reeditacla no seculo XVlll mineiro.

Mulheres sozinhas a garantir a propria suhsistencia nao abandonaram, contuclo, os padroes tradicionais cia sociec!acle. Na bora de malricularem crian<;:as, come.;:aram a recorrer a pro c ur~tclores d o se xo masculino que gozavam d e certa proje<)lo e estima social.

Por fim, foi nas zonas mais urbaniz.adas que o fen6meno esteve mais presente. Nao apenas porque o rneio rural se rnostrasse traclicionalmente mais refracirio ;t pratica clo abanclono, mas tambcm porque as vilas e arraiais, fruto

60

direto cia minera.;:ao, foram os espa.;:os primeiro atingiclos pela sua crise.

Daclos, cnfirn, a sugerir que o papel clesestruturador da crise minerat6ria esta ainda Ionge de ser dt'SCilftclclo

NOT AS

1 Baseio-n1e, ne.sta passagem, n:1 hcla tcse clc doutoraclo de Ren:Jto Pinto

Venancio, Casada roda, institution cl'assistance infantile au Bresil (XVIII'' XIX' siecles). Paris, Universidacle de Paris, 1993. p . lO"i-I !3 .

2 !VlARCfLIO, M;Jria l.uiza . Arod a dos e a crian,·a ahanclonaci:J na hisl6ria do Brasil. In, FREITAS, Marcos de (Org.). Hist6ria social da in(iincia no Brasil. Siio Paulo , Cortez Editora, 1097. p S7-SR

'VENANCIO. Casada roda, p.I06-J07 , p . IIO

1 SOUZA, Laura de Mello e. 0 senaclo ch c;im<Ha e '" crianp .< c xp<Jstas In DEI Mary (Org.). HistOria do cn'anra no 11rasil S;-tn P:1ulo . Co nt e xt() I991 Artigo rcpuhliodo nesta co let;inc:a ,

' MARCfl.IO . A roda dos expostos c a crian\·a ahandonacb na h 1stc\na do Brasil, p.71

11 Para o alto fndi ce de rela(:Oes conse nsuais em Min;~s, ver. entrt: outros

RAMOS, Donald. Marriage and the family in Colonial VJ!a Hica. Nrsprwir American Histor-ical Reuiew, n )5, 197~. c FJC;JIEIRFDO Luciano R.A v1cla ' XVIII. S~o Paulo ·

7 Ver minha analise d o assunto ern ''0 senado eLI cftmar;.J c " ·"' cri:Hl\::ts

expostas", pass im

;):~~~~~:~;~:il~I~~'~,'~'~)~~i,~rl;'~:~~ac~~:~l; base rus lontes disponiv~is mincm1 no scculo XVIII. Rio de janemy Gra:ll.

' COELHO, jose )oao Teix e ira Minas Gerats (17SO) Bclo Horizonte : (Introduyao de Fran c isco Igl es ias)

'"Para a determina<;ao leg al ric fica re m IJ!Jertos us expostos filhos de escra-vos, ver o meu "0 senado Ja c:i.nt;Ira e as crian<;as exrnsr;Js ", rassirn

"_Devo esla observa<;ao a Alicia Metcalf, qrrc com sua .>e n"hi11clade e expe · n cnet a de h1stonadora clas t' c!:t f:Imll1:1 corngn1 unw leittJr:l pntw() atenta qu e eu vinha c\;!(Jo

12 VF.NANC!O, Rcn:lto Pinto. M;ll crn idadc ncgad<1 In , DFI. Pf~IO!U'. M:1ry (Or~ l

flist6ria das mu!hcres no Brasil. S:i n P atJ)(l : ( ~ t)ntcxtt )/ J :duncsp , ]t) Y-7. p. ]·<).f

1' COSTA, Joaquim Ribeiro rir lvfnras (;era is . Bc·l(J 1 !orizontc

fmrrensa Oficial d o Estadu,

61

Page 13: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

" BARBOSA, Waldemar de Almeida. D•cioncirio !Jist6nco-geop,rcifico de Minas G'emis Uelu lionzonle ls.n.J. 1971 [) .362-363 .

p .2 .); llAHBOSA . Dicioruir·io historlco-

"' llAi(UOSA O•CI<!!l{lrio i.nsujnco-gcogrcifico de Minas Gerais, p.l91, 31j'J

" lhrdeCit p '!I, 1119 , 2116 , :\(12, 381

18 VENANCIU. Maternidade negada, p.l90

" Ver MAXWELL, Kenneth . Pombal - paradox of the Enlightenment. Cambridge: Cambridge \lnivers1ty Press , 1995; ALDEN, Dauril. Royal govem.-rnent in coluniul Brazil- with reference tu the ad1ninistration of tll.e Marquis of Lavradio, Viceroy, Berkeley I Los Angeles: University of California Press, 1968

"' VENANCIO . Casu da roda et seq. Em outro artigo, Venanuo :d irnu que 30% cb 1 eceita das chegou a ser compro1netida corn o :Htxilio ac)s ver "0 :-dcaide clas n1ulheres gr<lvidas", Populcu;:6cs L!ulclim du n ;, , p 10, jul./ dez. l99G,

"COI'LJIU !nslmy·,)o para p.Ft ROC!IA, Jvse .Jva q uim C/erais . !3elu Hurizunt<'

crftica de M:1ria Efig(:nia Lage

de Minas Gerais (1780),

22 Apesar Jo valor eLl oitav~t oscilar, na segunJa 1netade do seculu, entre 1200 reis e 1~(10 " ' "· decic!i adotar este ultimo valor como paclrao por rn c> p:trel·er st: r u mai.s coinunl. De.sta fonna, t<:unbem. o c[1kulo sobre a despes:1 st· Lu~ pe!u tetu, UHie.spundendu au 111 :txin1 o valor pos.sivel. Sobre o v~tl o 1

d:ts uitav:L'-' no Lke<JrTcr do sc·'Culo, vcr PAIVA, Echwrdo 1:.~-:c rauos e

/i/)('rlus uus rt-Jinus C/e,-uis do _..,.<~culu XV!Jl - es trJ.leg ias de atr~tves

d ~ 1s test;unent os Scto l':tu! o 199'5. (Anexo ''Conv e rs:io dl' uitav:ts de ouru em r ~ is t: rn t\·1in:t s , p .22 G).

"1

( ~O EU 10 /nstnq·cJo jJuru <J .~ouenzo do cctpitanic./ de lvtinas Geruis ( 1/SOJ , p.l. :\S

62

CONSIDERA<;OES

A~ CAMARA~, A cXrO~I~AO De CRIAN~A~ c A

DI~CRIMINA~AO RACIAl

No decorrer de uma investiga.,:ao sobre a vida cotidiana e m !V1inas na segunda metade do seculo XVIII, tra ba lhei com o Liuro de Matrfculas de Expostos ng 558, pertencente ao A Ct'ruo Documental da Camara MunictjxA.l de ivlariana e que, ~ttl: o prcscnte mome nto, foi consultadu puuquissimclS vezcs. constituindo urn corpus documental pratic:une nte virgcm. Num total de 226 matriculas, ou seja, registros feitos pelo Senado da Camara com dadus referentes a criancinhas abandonadas nas ruas e logradouros publicos da Cidade Mariana e ntre 1751 e 1779, quatro casos me chamaram a aten<,.:ao por c! es toarcm cornpletarneme do conjunto, --no resto, uniforme, repetiti ­vo e contendo infurma<,:oes secas. Tres dessas matriculas fa­ziam restri<;:oes a possfvel mulatice que se viesse constatar nas crian.,:as enjeitadas; uma outra dizia coisas estranhas acerca cia criar;:ao de um exposto negro por seu senhor. Quero res­saltar que, sendo novara no estudo da exposi<;,:ao de crianr;:as no Brasil colonial, decidi publicar os docume ntos ern ques ­tao ap6s consultar colegas que ha muito vern lidando com o assunto, cotno Renato Pinto Venancio e Iraci del Nero da Costa - autores de alguns dos mais significativos estudos d e mo­gr:ificos publicados no Brasil nos ultimos anos 1 Queria ainda deixar claro que a descoberta documental causou estranheza a jair de Jesus Martins, que trabalhava no projeto como auxiliar

Page 14: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

de pesquis3: foi ele, portanto, quem primeiro perceheu tmt3r-se de algo ciiferentc, pouco usual, transcrevendo as matriculas. ApesM de discutidas com os colegas e com o pesquis3dor, as hip6tcscs e consider3t;oes contidas nesre artigo sao de minha inteira responsabilidacie.

0 grave [)fObicma representado peJas cri3nt;3S 3handonacias remo~ta a Antigi.iid3de, estendendo-se ror toda 3 !dade Media, conforme estuda John Boswell em The Kindness of Strangers. 2 Mas foi na Epoca Modern a que 3 rreocupat;ao com a infanci3 r~br~ndon<Jda mostrou-se mais candente, a partir do momento em que a pobreza se tornou onerosa ao Estado e a icleia d e que o aumento populacional embasava 3 riqueza das n3t;6cs tomou contornos definidos 5 Em Portugal, a legisla<,:ao d e ixava as Cilmaras a taref:~ de passar 0 enc:~rgo

d:1 criat;ao dos enjeitados para as Santas Casas de Misericordia, proccdimento que, como bern viu Charles Boxer, vigorou em toclo o Imperio Luso, constituindo-se ern um de seus pilares." Em Salvador e no Rio de Janeiro os mecanismos de reco lhi­rnento de expostos ja estariam delineaclos na primeira metadc do seculo XVIII, atestando, segundo Laima Mesgravis, ;J im­porL'incia urbana de tais centros.' Mas justamente em Minas, no seculo XVTTT a capitania mais urbanizada da colonia, a situat;iio pcr rnaneceu confusa. Ha inclfcios de que as lrman­dades tnrnaram a si a tarefa de cuidar das criant;as expostas, conforme const3, por exemplo, do !'.statuto da Jrmandade de Santa Ana, Vila Rica, criacla em 1730 e prcocupacla, em seu artigo 2", em fundar, tao logo seus recursos o permitissem, "uma casa de cxpostos e asilo de menores desvalic!os" G Na pratica, e ntret3nto, as evidencias pendem m3is para que sc crcdire ao nobre Sen::~do da Cimara a fun<;iio d e pore dispor da vida clas criant;as abandonadas. Em sua celebre Memoria Hist6rica da Capitania de Minas Gerais, que veio a publico em 1781, Jose Joaquim da Rocha incluia a cria<;ao clos enjeitaclos entre as despe sas cle pelo rnenos tres Camaras Municipais: as de Vila Nova cia Rainha (Caete), Vila do Principe e Sao Joao del-Rei 7 0 fato de omitir tal cncargo quando tratou clas demais vilas cieve antes ser atribuiclo a descuiclo do que :1 :llt ­sencia dos demais Senados na cria<;~lO dos bcbes abandonados .

Durante o seculo XVTTT, a exposit;ao de crian<;as cresceu em Minas de forma alarmante, assumindo, no final do perioclo, proport;ocs catastr6ficas. Entre 1724 e 1733, lraci del Nero da

64

Costa encontrou 4 casos de crian<,·as cnjeiucbs entre os :1ssentos de batisrno que consultou; j;\ para o perfoclo com preendido entre 1799 e 1808, o n(JnKro salrou par:1 Iei7h

Exaustivamente discutida, a rocla dos expostoo; cle ViL! Ri ca s6 se concretizaria, ao qu e tuclo indica, em 18.~ I, apesar cle ter siclo aprovacla pelo Senaclo e ohticlo licen..;a real em 179') -" No penultimo lustro do seculo, j;\ ern plena drama cia deca­clencia aurifera, era a Cimara que continuava arcando com a criat;ao dos enjeitados: ainda em Vila Rica, o Senaclo aceitava a enjeitada Rita, expost3 na port3 de Jose Alves Maciel na Fazenda dos Calc!eiroes , batizada na capela do Chiqueiro e entregue pelos vereadores it crioula forra Filipa Vaz, moradora junto a ponte do Ros:lrio e, a partir de entao, paga com 24 oitavas de ouro por ann durante os trcs primeiros anos, os cia lactat;ao do bebe; nos quarro :trHlS rcsrantes. :1 quanria seria de 16 oitavas anuais, conforrne e; tipulacln por lei.'"

Maria Beatriz Nizza cb Silv:J forrwcc elementos important es para melhor se entencler o papel das C:iimaras Munieipais na cria<;ao dos cxpostos durante o perioclo coloni;tl, chamanclo a atenc;::ao para a alternancia que podia se es tailelecer, nc st:1 tarefa, e ntre o Senaclo c as Misericordias. Scm c itar a data , transcreve um docurnento clirigido it Mesa do Desembargo do Pa<;o por Clara M:~ria cb Concei(,·iio, vit'Jva que morav:1 na vila de Sabara e que tinha sido encarregada pclos oficiais cia mesma vila de criar "varios enjeitados, uns que for;nn matriculados, e outros que nao o foram, se hem que de toclos clc ttma e outra classe lhe foi incumbic!CJ a diu criac;::lo, com a conven ­<;an de pag;tr-se-lh e o cstipcnclio do e stilo, o que :tgo1·:t recus;t a clita Camara"."

Caio Cesar Boschi, por fim, deixa claro que, nas Minas, a criat;ao dos enjeitaclos recal;t basicamcntc sobre as Irmanclacle s ou sobre as Camaras, estas ultimas, muitas vezcs, deixando de cumprir o prometiclo: o pagamenro cLts mensalicl;1dcs aos criadorcs ou as arnas de Ieite. Tais mulhercs, por stJ;t ve z, n8o ohed ec iam as clcterminac;:oes d e aprescnrar perioclicarnenre as crian(as its C1maras, c esta nn·lfua clesconsidera<;;\o cxpli­caria, em pane, o alto nC1mcro cle mortcs entre os cnjcirados.'-'

A st'tpliut ch1 vi(tV<J Chlra rcvcl ;t, de faro, :t clesohedic·nci:.t da C1mara ante a lei, e suge re que. clesra forma, o Nobre Senado deixava ao des::~mp;tro o.s scres frageis c pcqueninos

~\ J\ I

Page 15: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

p I ' . .

colocados - pelu menos em tesc- sob sua responsabilidacle. Por outro !ado, e ineg::ivel que a verean,·a municipal se preo­cupava scriamcnte co m as crian\·as ab:l!Jdonaclas, castigadas, :ts vezes dt~ fom1 a irrev e rslv e l, pcla rudcza do clima ou pelos animais domes ticus . Na cuu UJIII que, e1u tevcreiro d e 1795, o Senado de Vila Rica explicava a necessidade da rocla de exposlos ao Ouvidor-Geral, fkava dito que as maes, enver­gonhadas dos frutos de seus arnores ilicitos,

logo que os ciao a luz os mandam levar as portas de casas particulares, aonde Oll OS nao recebem, Oll, se 0 fazem , e ja quando os mfseros recem-na scidos se acham a expirar, tendo all" succ:dido serem devorados por an11nats, sucessos que fazem gemer a humanidade. ''

l'~tLl Francisco Antoniu Lopes, esses anima is seriam subrerudo os pon.:os que lwb1tu :tlrn e nte vagavam por Vib 1\ict c, clesde a decada anterior, tinham sc tornado objeto de segu iclas criticas por parte das disposi <;ocs oficiais

A dureza da vida cotidiana na capitania do ouro, constan­temente fustigada pelo Fiscu; a clifu~ao clos concubinatos e uniocs cspor:td icas; a precariecbde das condic,J>es de higiene e saneamento nos aglomerados urbanos - os tais porcos que perambulavam pclas vias pC1blicas - servcm como indicadores de qu e seria alta a purcen tagem de expos i<;ao nas Minas . Po r ourro lado, a fragilidad e das Mise ri c(> rdia s no desempcnhu clas func;c)es assistenciaiistas , a impossibilicbde das lr man­dadt.Os assutuireln totalmentc a cria~;·ao clos ex postos e a inde­fini<,J lO legal da Metr6pule, vigc·nte at e 1775, clevc m certarnente ter contribuido para que grande p;ate cl as nian\·as expos ta s morressem ames mcsmo de se rc m matriculadas nus asse ntos camer{nios. 'Ldve z aqui es teja uma possivel resposta a questau colocada por Maria Beatriz Nizza da Silva no tocante ao menor num e ro d e enjeitado.~ paulis ras e culon iais quando comparaclos a os curopeus do mesmo periodo, na socicclade de Antigo Rcgime 14 Nao quero com tsto afirmar, ev id ente ­mente , que l·osse boa a situa<;;io c urupt' ia: basta ler u terrfvel ~trtigu de Michelle Perrot sobrc as crian<;as confinadas n a Petite Roquelle, j:t em pleno scculo XIX, para afastar tal possibilidade. ;<, Queru apt·nas sugerir que a indefini<;ao de uma politica com relar,:ao a expostos e o fato de muitas

66

crian<;:as sequer serem registradas encobre, talvez, uma taxa de mortalidacle mais alta do que a cogi tada :He o presente momento .

Foi em J 775, com um famoso Alvan~ , que o ministru Se­bastian jose de Carvalho e Mello regulamentou cle forma mais estrita e definitiva a quesrao clas crian<;as ex postas: e, sem duvicla, a rnais importante lei existente no seculo XVIII sobre o assunto, mas se volta sobretudo para a rela<;ao e ntre enjei­tados, Santa Casa de Misericordia e Juiz de ()rfaos, deixando de laclo a questao das C.imaras. Ate entao, h a viam s ido elas as principais responsaveis pela cria<;ao dos enjeitados. A parti1 dessa data-marco, intensificou -se a luta pela cria<;ao das rodas de expostos nas Miseric6rdias ou mesmo em casas d e particulares, desde que seus habitantes fossem casais hom·ados e de bons costumes . 16

Mas voltemos a documenta<;ao dos expostos existente na Clrnara de Mariana e abaixo transcrita. Num conjunto d e 226 matriculas, 10 foram declaradas sern de ito p o r se daretll a conhecer o pa i e/uu a mae clo exposto, havendo ainda 2.:) falecimentos. Presume-se que estes digam rcspcito aos expusto~ que continuaram sob cncargo cia Clmara, portanto os demais 216: seria, assim, de 10,65% a taxa de mort.alidade entre os expostos cr iados pelo Senado de Mariana- o que novamente re mete a questao d e uma prcsurnivel taxa d e mortalicladc· elevada entre as crianc,:as expostas que n<lo chegavam a se t matriculacias. Porem, o que mais chama ;Hcn<;:lo nos docu ­m e nros abaixo rep roduzidos e a recusa da Clmara em criar tre s dos e njeitados , que se suspeitava scrern rnulaws, e a cle­volu<;ao de um ex.posto escravo ao seu senlwr- todos elcs, proce dimentos inusitaclos c, provavelmcnte, ilcgais.

Comecemos pelos presumidos mulatinhos. Toclos os tres foram matriculados no mes d e maio de 1753, rnais de vinte anos, portanto, antes que Pombal legislasse sobrc os expostos ern seu Alvara. A todos os tres se prome teu paga r 3 o itavas de u uro por mes, perfazendo 36 oitavas anuais -- quantia supe­rior 3. cle 24 oitavas que a Cl.mara de Vila IZica pagava por ano para a cria<;ao da enjeitacla Rita, no pen(iltimo lustro do seculo XVIII entre 1790 e 1795 (nao temos a data precisa). Em quarenta anos, o Senado passara a economizar uma oitava mensa! n o auxilio dado aos expostos durante o periodo inicial,

67

Page 16: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

o consic!crado de lactac;:ao c que equivalia a 5 anos . A economia mincradora entrara em clerrocacla, mas certamentc tcria haviclo tambem ;litera~·i)es legislativas no rerioclo - a mais ohvia c eviclcnte sendo, como ja foi clito, o Alvar{t pombalino. Num momento de crise, a vercanc;:a consiclerara clispendiosa a contribui(,)lo anteriormente estipulada para a criac;:ao de menores abandonaclos. Creio poder afirmar que, mesmo em 1755, a verba clestinada a este fim nao sairia clos cofres publicos scm peso.

Nao foi possivel definir qual a legislac;:ao seguida pelas Camaras mineiras, em meados do seculo, no tocante a cria­c;:ao de enjeitados. As leis proibiam discriminac;:ao racial no exercicio cia caridade cameriria ou no das Misericordias. 17

Mas as matrfculas de 1755 sao bern claras: com declarar,:ao porem a todo o tempo que se declarar ser o dito enjeitadinho mulato e nao branco !he nao correrti o dito estipendio das tres oitauas, mas antes sera o dito obrigado a repor tudo o que tiuer recebido por conta da mesma crim;;ao ... (documento A); a rnatricula B repete a mesrna formula, praticamente sem alte­rac;:ao, difcrindo apenas no fato de sera crianc;:a do sexo femi­nino; a matricula C apresenta novidade: com declara~ao porem que a todo tempo que se uier no conhecimento ser mil­lata e ndo hranca !he nao correra o dito estipendio de trPs oitauas mas antes sera o dito obrigado a repor ao Senado tudo o que tiuer recehido par conta da dita criar,:iio ... AI em de cleixar claro- o que nao ocorre nas matriculas anteriores -que a beneficiada pela devoluc;:ao e a Camara Municipal, este documento revela que a mestic;:agem do exposto criado com subvenc;:ao pl"1blica poderia ser revelada por acusac;:oes, por ouvir-dizer, tal como ocorria nas Devassas Episcopais e nas Visitac:oes do Santo Oficio, reforc;:ando a ideia de que, nos tempos coloniais, o poder se dissolvia nas microestruturas do cotidiano, fazenclo cla bisbilhotice e cia delac;:ao priticas corri­queiras c aceitas: "a todo tempo que sevier no conhecimento" e uma formula significativamente divcrsa de "a toclo tempo que se cleclarar", pois esta pressupoe um ato voluntario, direto, scm intermediac;:oes. De uma ou de outra forma, a Camara expressa claramente o seu prop6sito de nao criar mulatos, e revela que, por ocasiao da matricula, nem sempre se tinha conhecimento cia cor do enjeitacio- seja por nao ser o mesmo

68

trazido perante os vereac!ores naque!e rnornento, seja por impossibiliciade de se definir a cor de recem-nascidos -como se sabc, e comum que trac:os etnicos se mostrem ap6s alguns elias ou mesrno meses -, seja aincla por estarem cientes os interessados na cria<;::io do cxrx>stn cle que a legislac;:ao vigente ou a pratica usual do Sen:1clo se furLlva a cria<;.':lo cle mestic;:os de sanguc negro.

Por que o "cleslize", o ato falho dos camaristas marianenses que, em tres matriculas de expostos, colocaram a nu sua recusa ante a criac:ao de rnestic,:cx;? Nas rnatriculas subseqi.ientes, retoma-se o tom neutro, seco, formal adotado em tais regis­tros. Mas as tres matrfculas estao Ia, como espinho, como nodoa, mas sobretudo como indicio aparentemente insignifi­cante e, na verdade, digno de exame deticlo. Sobretudo quando sc recapitula o modo de inscrc:ao do aparelhn de estado n<ls Minas, muito mais rreso a padrc)es eurnpeus do que ern outros pontos da coi{>nia, muito mais rrcsente deviclo as necessidades cle arrecaclar,::'in clo ourc> e, tambem mais clo que nunca, atcnto e servil ante os inrercsses cla Metr6pole e dos segmentos clorninantes, surdo c refratario :1s especificidacles coloniais. 1

"

lsolaclos e excentricos no conjunto clas matrfculas de cxpostos exisrentcs na C::lmar:l ·cla Leal Ciclade Mariana, estes trb documentos raros devem St'r associaclos a outros tantos, rnais numerosos rna·s que parcceram igua lmente extraordina­rios aos olhos de A . .J. 1\. Russ e ll -Wood, o hisroriaclor ingles que melhor estuclou a institui<;::Jo c\:1 Santa Casa de Miseric(H· eli a no Brasi I Colonial c, conseqi.i e ntem e nte, Ia nc:ou luz sobre a quest:'io da inffmcia ahanclonada naquclcs tempos. Debruc;:ando-se sobre documentos rd.erentes i1 vida de Manuel Francisco Lisboa, grande arquiteto que passou para a Hist6ria antes como o pai de Aleijadinho clo que devido a seu proprio e inegavel talento, Russell-Wood descobriu que aquele criara um enjeitado que se lhe expuseram a porta a 9 de abril de 1753, e que ele, ja no dia seguinte, batizou como nome de Jacinto, na Matriz de Conceic;::'io de Antonio Dias. 0 historiador ingles aproveita para frisar a difercnr,:a entre a criac;:ao de expostos na Bahia, onde ficavam a cargo da Misericordia, e nas Minas, oncle recafam sobre as Cimaras; mas o extraordi ­nario e que aponte para a cxigcncia imposta pelo Nobre Senaclo aos criaciores dos bebes abanclonados: alcm cla certidao

69

Page 17: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

1'/ ' (

de batismo, deveriam apresentar uma outra, d e brancura. Apesar de exigido pelas Orclens Tcrceiras do Carmo, de Sao Francisco, peb lrmandade da Santa Casa de M!seric(>rdia, o estatuto de purcza de sangue 11~10 er:1 demandadu no CiSO cla cri:;~·ao de expostos· "Nu caso de um enJCitaclo, ul insisten­cia (· bem stupreelldente, c r ill/lUI foi praticada na Bahid na epOC.I colonial, Ol1UC CllJCilaUOS, fossem branCOS, fOSSCll1 pre­[()S, foram aceitos pcld Cimara e pela Santa Casa sem discri­min:u,:au racial"-'" Manu e l Francisco Lisboa, que a esta altura ja era pai de um bastardu, urn dus maiores genios que a mes­tic;:agem pmais produziu em terras brasileiras, apresentou o atestado exigiclo, passado pelo medico e cirurgiao daquela Camar:1. Mas o casu de Jacinto nau foi LII1ico em Vila Rica: no Primeiro Livro de Enjeitaclus criadus nesta localidade as expensas do Senado, c que curresp o nde ao periodo de 17'51 -l7'5H, exigiu-se cntidao de brancura n os anos de 1757, 1758 c 17'5'). Contraditoriamente, t'III 'I 7Ci3 :1 me .~ma C:lmara ace ita­ria :t cria(,:aO clo "enj e itado Do mingos , crioulo uu cabra" .'"

Na dccada de '50 , portant o , na s Minas como um toclu ou particularm e nte na Comarca d e Vila Rica - onde o censo d e 1776 acusaria um tuUl d e l2. 67') brancos, 16.79 1 pardos c 4') 148 negros ( co n s ide rancl o-se am bus us se xos), as a utori ­dades c;mer:trias clcmonstr~tvam, au-aves d e medidas res triti ­v:;s e r:tcist:1s, urn ternor ante a mi scige na c;: ao que tinlu raizes nos primeiros deceni os clu puvo:une nto das Minas. 21

Um ap0s o outru, us guvertLtttlc~s col o niai s sc alarmaram ante o nC1rncro crcscente d e negrus - Assumar, qu e guvemuu Mina s t:nltt: 17 17 c 1721, passuu tod a a sua gest;;o at e rrado cum a possi b ilidadc d e LIIIU insu rre i<;:·ao cscrava- e desqua­litic:tram das mai s divers.as fo rmas a gente m es ti<;:a qu e ia s urgindo a p;trtir c!as incvit:tvcis unii'Jes mistas. Quando, n o inicio da decacl:1 de 30, a Coroa cstudava as possibiltdades d e se estabelecer nas Minas u impusto da c ap ita<;ao, c!irigiu ao governaclor Andre de Mell o e Castro, conde das Galveas. uma serie de cartas urclenando que exa minasse as vantage ns c clesvantage ns da :ili'orri:t. 0 governante responc! e u que. apesar de se re m m c io atrevidos , <>S forrus trab a ll1 av~;m nas l;;vra s c L'OIHrihui:;m ~1u p:;g:;m c nt o dus impo.~tu.~. afirnundu em scguicl:l , qtw <> v,_·rdadt·irn flag elo cram <>S muLitos . "por­qu e ~~ mis lur:; qu e tC·ttt <k· ln:IIKUS, us c ncltc de tanta sul)erba e vaidadc que fog e m :i<> tr~;b:ilhu servil, com que podcriam

70

viver, e assim vive a maior parte deles como gente ociosa". Alarmado, o rei pecliu a Galveas que opinasse sobre a ncccs­.sidade d e se "dar alguma providencia acerca dus mulatos forros que vive m tambem em grande liberdade" 22 Como be m viu Julita Scarano em trabalho extremamente sensive l as con­tradi~'Oes do racismo nurna sociedade escravista e mestic;:a, parclos e forros cram vistos como perturbadores da ordem23

Pilares do poder metropolitano nas Minas, as Clmaras revc­laram em inumeras representac;oes te mor ante a sociedade mestic;:a que se ia inevitavelmente formando na regiao. Na clecada de 50, as autoridades ligadas ao Contrato eta Extrac;:ao de Diamantes no Distrito Diamantino achavam que o contra ­banda desapareceria com a destruic;:ao dos arraiais de pardos e forros, "porquanto os ladri'Jes que rnais perseguem e roubam as terras clos diamantcs sao negros forros, mulatos , cabras, mestic;:os e outros clesta qualidade" ." Em 1775, os rnesmos camaristas d e Mariana que, vinte anos antes , se recusaram a criar mulatos criticavam "a muita clese nvoltura com qu e vivern us mulatos, sendo tal a sua atividaclc qu e n ao reconheccndo superioriclade nos brancos, se querem igualar a e les"; diziam aincla aqueles "homens bons" os "mulatos gastam em superfluiclacles c ofensas a Deus" Em 177'), oo se u famoso Relat6rio, o vice-rei marques do Lavradio via a mesti<;agem colonial como a principal respons{;vcl pelos de­feitos da populac;:ao do Brasil, composta de "tao mas gentes '· Era impossivel sujeitar e acalmar os "negros, mulatus, cahras, mestic;:os e outras gentes semelhantes", pois c ram "gentes cia pior educac;:ao, de um caratet· o rna is libcrtino". 26 A reprova.,;:ao cla mestic;:agcm tomava assim forma oficial, e ra e ndossacla p e lo vice-rei, que sistematizava temores difusos e esparsus, tais como os que, nas Minas, embasaram atitude ilegal, ra c ista e cliscriminat6ria assumida pela Camara cia Leal Ciclacle Mariana no tocante a criac;:ao de bebes rnulatos.

Resta agora refletir um pouco para a igualmente inusitada matricula do e njeitado jose (clocumentu D). 0 bcbe fora ex posto na casa de Manoel Pires da Costa, qu e mediante pagamento das mesmas tres oitavas mensais , se apre senl <J ao Senado cia Camara com a disposic;:ao de cri:t-lo. Entre esta matricula e as anteriores, haviarn-se passaclo sete anos: ta lvez pur isto ela sc mostre mais enfatica no que diz respcito a real condic;::lu de enjeitado do menino, ou seja, ao fato de n:lo se

71

Page 18: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

conhecerem seus pais c:unais: Pires da Costa apresenta petic;:iio com c!espacho para matricular o pequeno jose, ao qual o dito Juiz Presidente deferiu o juramenta dos Santos Evangelhos em um livro dele em que pas sua mao direita soh cargo do qual !he encarregou declarasse se sahia quem eram os pais do dito expos to, e por declarar nao sabiam quem eram, mandaram se matriculasse .. Os c!ados secos que se seguem nao permitem senao conjeturas: dois anos depois, constatou-se que o menino era filho de uma escrava de Antonio de Magalhaes Nunes, que passou entao a cria-lo. Diz o documento: sem e(eito este termo por sair dono a este enjeitado, que e Antonio de Magalhaes Nunes ... Camara e senhor passavam por cima da lei, conscicntc ou inconscientemente, para recuperarem, respectivamente, as oitavas gastas e o escravo extraviado. Maria Beatriz Nizza cia Silva chamou a atenc;:ao para o fato de que a qucstao dos expostos dizia respeito apenas 3 popu­lac;:ao livre, pois segundo o Alvar·a de 1775, o exposto de cor negra ou mulata gozaria automaticamentc de liberdade. 27 Em scu admiravel trab;dho, Percligao Malheiro mostra que remonta a Roma a legislac;:ao que declara a liberdade dos escravos expostos, mesmo contra a vontadc de seus senhores: seria esta a disposic;:ao legislativa incorporada pelo Alvara pomba­lino: "Por nosso direito, devemos, igualmente, consignar que a liberdade pocle vir ao cscravo, mcsmo contra a vontade do scnhor, por virtud e cia lei": dentre tais casos, encontra-se 0

clo "escravo enjeitado ou exposto", que pelo Alvara ficav<1 livre e ingenuo. 28 Nao se pode afirm8r que o exposto Jose tcnh8 de f8to sido reescraviz8do, mas tudo indic8 que sim; for8m freqi.ientes os C8sos de reescraviza<;ao de forros e libertos nas Minas, conformc 8nalisei em twb8lho anterior. 29

Num8 c8pitani8 em que, conforme ja se disse, as Santas Casas eram praticamente inexistentes, as praticas extr8vagantes do Senado de MMiana refletem 8 fluidez das atitucles c8mera­rias ante questoes de 8Ss istencia social, ou sugerem atitudes arbitrarias e indiferentes ante 8 Lei que, de resto, deviam ser comuns a todo o Imperio Colonial Portugues. A recusa em criar mulatinhos as expensas do erario publico se insere num contexto geral de horror 3 mestipgem: 8 lei poderia 8parecer como jusu, mas a pratica acusava a mentalidade discrimina­t6ria clos colonizadores e colonos brancos, bern situados na escal8 social. A situac;:ao era tanto mais estr8nha quando se considera que a sociedade se tornav8 cada vez mais mulata,

72

e m8is dificeis de cumprir os esraturos de pureza de sangue que vedavam o <1cesso cle portaclnres cle sangue impuro as Camar8S e 80 clero: a esquizofrenia :1 hipncrisi:I hr:1sileius no que cli1. respeito ?1 mcstit,'agem ja se clelmeavam esc cons­tituf8rn nas praticas cotidi:tnas mincirJs no seculo XVIII

0 caso do enjeitaclo reescr8viz8do pocleria passar como confusao. 0 f8to se deu em 1762, antes do Alvara que colo­caria 118 letra a lei romana possivelmente ja contida nas Ordenari5es portugucsas ou no corpo cle Leis Extravagances desde o ftm cia !dade Media. De qualquer forma, as qu 8tro matnculas de expostos existentes nos Codices cia Camara Municip8l de Mari8na e a exigencia do Senado de Vila Rica no tocante a apresent<l<;:iio de atestados de hrancura p8ra enrettados sugcrem. que tcoria e pr:itica andavam apanadas corn freqtiencia m::~tor do que norrnalmente se irn8ginou _ mesmo na C:1pitania do Ouro, :1s Minas Cer:1is que, por rodo Cl seculo XVlfT , forarn rclas riquczas que esconcli;Irn "a perola rreciosa do fhasil"'n e. rw<;t:~ qualicLtclc. mais vigiacl:!s do que qualquer outr:1 regi:io cia Colt1nia Tais cieslizcs c "atos r·alhos" vinh::~m 80 cncontro clos intcrcsses rnetropolitanos, mas talvez renham se :1utonornizado algumas vezes. Por outro I:Jdo, o faro de o Sen:~ck1 :tgir clc fomn contraria ;1s leis que JXlSS<lnam a vigorar vintc e d()is :mos depois pock sugerir illp<-Jtese clive rs8 a pr:'itica confus:I e contraclit6ria das C:iirnaras qu e agiam segundo .suas p1·6prias c:Jbe<:;:ls. reria alertado ; Metr6~ole no senticlo d e cri:~r um :1 lcgisi:Ic;::lo cspecff'ica par:~ a m8tcna - o que, ao fim e :1o cabo, n:!Cl significa que cl:1 viesse a ser sistcmaricamcnte cumrricl:I.

Niio sou estucliosa de clcrnografia nem da inf:lncia ahando­nada. As consiclerac;:c'Jes acima clevem scr vistas como <11ert:1

ou sugestao de que, pebs Carnaras clo Brasil, talvcz existam outros documenros estranhos e sugestivos. 0 fato de serem poucos ou esparsos nao deve assust8r o pesquisador, nem inibir hip6teses: ::1 extrav:~giincia e a raridacle sao as vezes m8is signific8tivas do que a quantidaclc e 8 repeti<,'ao, ;ller­tanclo o historiaclor par<1 as limita c;:oes que envolvem o esforr;'o de compreensao do passado. V:'irios significados se perderam para sempre, no decorrer do tempo; outros poclem c clevern ser resg8tados por investigac;:oes que, muit:1s vezes, nao rem outra safda a nao ser 8 utilizac;:ao de um paradigma indicidrio, assentado em hip6teses, conjeturas e intuic;:ao."

Page 19: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

TRANSCRI<:=AO DAS MATRICULAS ANALISADAS

j::~ir de Jesus Martins

A) TERMO DF MA!"I<.iCULA DO ENJEITADO JOSE (p.28V)

"Aos dezesscis elias do mes de maio de mil setecentos e cincoenta c tres anus nesu Leal Cidade e casas de moradas de mim escriv;w adiante nomeado e sendo a[ por Domingos Moreira me foi apresentada uma sua peti.;;:ao como seu despacho nela posto pelo Doutor Presidente e mais oficiais da ciirnara para efe ito de se matricular o Enjeitado por nome jose ao qua\ assiste este Sc nado corn tres oitavas de ouro cada mes para a sua cria<,Jto com dcclar:1<;·ao porem que a todo o tempo que se dccLtrar ser u ditu t' rrj ei tadinh o rnulatu e nao branco lhc nao correr;'t u ditu e :-,tipi":ndiu cbs tres oitavas, mas antes scr{t o dito ulnig:tdu :t repor tudo o que tivcr rc cebiclo por c:unta da nwsrn:t cr i:t ~·:1u tudu na forma do dcspaclro insertu rr:t rncsm:1 pt>ti,_- :tu que fic:t ncst e cart6rio t' de como a ss im o disse e se ohrigou pur sua pessoa e hens assinou com as testt.:munhas prcscmcs Manuel Coelho Varella e jose de Almeida Barreto moradores nesra ciclade e re co nhecidos de rnim escrivao da Camara Joau cia Cost:1 Azevedo qu e o cscrevi."

Assinaram: Domingos Moreira, Manoel Coelho Varclla e

)use de i\lrne id:t B:trr <C to

Consta e m b:tixu · "F:tkccu este cnje itad o em 15 de agosto d e J7S3. E.\t;t pag<) " (rubrictdo pelo escr ivJ.o cla Clma ra)

B) TERMO DE Mi\T!dC\ ILA UA ENJEITADA FOR NOME

MARIA (p.29Vl

"Aos deze nove elias du mcs de maio de mil setecentos e cincoenta e tres :tnos ncsta Leal Ciclade Mariana e casas de moracias de mirn escriv:\o adiante numeado e sendo ai por jose do Couto Cruz morador nus Carnargos me foi apresentada -uma sua petir;;to como seu despacho nela posto pelo Doutor Presidente e mais ufici:tis d:t c;'imar-<t para efe ito de se matri­cular a Lnjcitacb pur n<llllL.' fV'Ltria a qual assistc cstc Senadu com tres oitav:ts clc uu ru ctda mes para a sua criar;ao com declara<;:ao porem quL: a tudo o tempo que se declarar sera

74

dita enjcitada mulata e nao branca lhe nao correra 0 dito estipendio de tres oitavas mas antes sera o dito obrigado a repor tudo o que tiver rece bido por conta cia mesma criac;:ao tucio na forma do despacho inserto na mesrna pet i<;:ao que fica neste cart6rio, e de como assim o disse e se obrigou por sua pessoa e bens, assinou com as testemunhas presen­tes Manoel Coelho Varella e jose de Almeida Barreto mora­dores nesta cidacie e reconhecidos de mim escrivao cia ca­mara joao cia Costa Azevedo que o escrevi."

Assinaram: Jose do Couto Cruz, Manoel Coelho Varella e jose de Almeida Barreto.

C) TERMO DE MATRfCULA DA ENJElTADJ\ POR NOME MARIA DIGO POR NOME CLARA (p.30V e 31)

"Aos vinte e tres elias do mes de maio de mil setecentos e dncoenta e tres anos nesta Leal Cicl:tde Mariana e casas de moradas de mim escrivao adiante nomeado apareccu presente Manoel Rodrigues Viana morador nesta ciciade e reconhecido de rnim esc rivao e por ele me foi aprcscntada uma sua peti­r;ao com o seu despacho nela posto pelo Doutor Preside nte e mais oficiais da carnara para efe ito de se rnatricular a Enjeitada por nome Clara a qual assiste o Senado com tres oiravas de ouro cacla mes para a sua cr ia\·ao, com cleclarar;J.o porem que a toclo o tempo que sevier no conhecimento scr mulata e nao branca lhe nao correra o dito estipendio de trcs o itavas mas antes sera o dito obrigacio a repor ao Senado tudo o que tiver recebido por conta cia dita cria.;;:ao tudo na forma do ciespacho inserto posto na dita peti<;:ao que fica neste car­t6rio, e de como assim o disse e se obrigou assinou com as testemunhas presentes Manoel Coelho Varella e jose de Almeida Barreto moradores nesta c idade e reconhecidos de mim escrivao cia camara Joao cia Cosra Azevedo que o escrevi. E cleclaru qu e a dita e njeitacla a cleu a criar a Luiza Rodrigues do Couto preta forra moraciora nesta cidacle e reconhecicla de mim esc riva o a quem pertence o clito ordenaclo cnquanto c:nar a clita e njeitada e de como a rece beu assi rwu/ com uma cruz pur nao saber ler nem escrever, Jo~tu da Costa Azevedo escr iv:lo da camara que o declarei''

Assinaram: Luiza Rodrigues do Couto - com cruz -, Manuel Coelho Varella e jose de Almeida Barreto.

75

·"

Page 20: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

Consta em baixo: "Faleceu esta enjeitada em 22 de agosto e ate esse clia sc manclou pagar. Esta pago." (ruhricaclo pelo escrivao cl;l C1mara)

D) TERMO DE MATRfCULA DO ENJEITADO POR NOME

JOSE (p.63V)

"Aos nove elias do mes de novembro de mil setecentos e sessenta anos nesta Leal Ciclade de Mariana e casa de mora ­clas de mim escrivao acliante nomeaclo e senclo af presente Manoel Pires cia Costa moraclor em Sao Caetano por ele me foi apresentada uma sua petic;:ao com despacho nela posto pelo juiz Presiclente e mais oficiais da dimara para efeito de se matricular o Enjeitaclo por nome jose que !he foi exposto, ao qual o clito Juiz Presiclente deferiu o juramento dos Santos Eva nge lhos em urn livro dele em que p6s sua mao direita sob cargo do qual lhe encarregou declarasse se sabia quem eram os pais do dito exposto, e por declarar nao sabia quem eram, mandaram se matriculasse e se !he assistisse com tres oitavas de ouro por rnes por tempo de tres anos na forma dos Provi ­m entos do Doutor Corregedor, de que para constar fiz este termo de Matrfcula que assinou e eu Joao cia Costa Azevedo cscrivao cia drnara que o escrevi."

Assina: Manoel Pires cia Costa.

Consta: "Sern efeito esse terrno por sair dono a este enjei­t:ado que e Antonio de Magalhaes Nunes por ser filho de uma sua escrava ao qual se entregou ern 2 de janeiro de 1762. Nao pagou nada o Senaclo." (rubricado pelo escrivao da Cimara)

(E~'te a rtiRo(oi publicado em uersiio men ore um pouco diferente quanto a distribuir;iio daspartes na Revista do lnstituto de

Estudos Brasileiros, Sao Paulo, n 3I,p.207-216, 1989

Publica do tambem em: DEL PRIORE, Mary (Org.). Hist6ria eta crianc;:a no Brasil. Sao Paulo: Contexto, 1991. p.28-42.)

NOT AS

1 VENANCIO , Renat.o Pinto. Jnfancia sem destino: o abandono de crian~as no Rio de .Janeiro no seculo XVT!I. Sao Paulo: USP, 1988. (Disserta<;:ao, mestrado- ex. mimeogr.). COSTA, Iraci del Nero da. Vila Rica (1719-18261. Sao P:wlo : FIPE-USP, 1979. (Colco;:iio Estudos Eccmc•mi•:os.

76

'BOSWELL, j ohn. n.1e Kindness nfStrungers - the 1\hanclnnmenc of Children in \X'estern Europe from L;lfc to the Renaissance. Nov~1 York

Panth eon Books. 1988. Devo csta a rninha colega Mary del l'nore

'Ver_ SILVA, Maria Bearriz Nizz:~ d:~. (J problem:~ clus expostos n:~ Capirania de Sao Paulo. AncltS do Museu Paulista, rorno XXX, San Paulo, 1980/ICJHI

Para a sociedadc europCia, corn enfase no caso milanCs, 0 artigo de HlJNEC:KE, V . Les enfants trouves: contexte europeen er

~a~;:;:;1~a~s~~~ri1-;~~. S1eclesl. Rcr)(IC dHistncre Modez~?e et Contemporazne,

1 BOXER, Charles Ralph . 0 impeno coloma/ portuguPs. Lisboa: Fd 1\·6es 70, 1977. Cap. 12 Co ns e lh e iros municipais e irrnaos de cancladc

' MESGRA VIS, l.aima. A Santa C"asa de Mischuiz·dca de Sao l'rmlo ( 1 S'.J'J'-

188•11. Sao Paulo: C:onsclho Estacluat de Culrur:1. p.170

r. MENEZES, Purr ado cle

Belo Hori zon te : Imrrensa e suda!fcios - bicenlcn;lrio de Ouro Preto de Mtnas Gerais. 1911. p .27"l ·271

'ROC HA, Jose .Joaqucm cia. Mem6ri;~ hisr6rica da Capiunia de Minas Cer:tis !/ems/a do Arquiuo Priblico Mineiro, v .ll. pA57, 'J60 e 470, 1897

lv/inas Colonial 19R2

' CABRAL. I te nrique Barbosa da Silva. 011m Pn·tn. !lcln Horizonre [s.n.] ICJG9. p.61 -G 2

1'1-li.1lico M!!h.'lro . (_:,-l rnara Muni ci pal tk Ouro Prvt<l, Chclic t· n

II 6, Citado rambem em LOPES. f='r:-1 n c isco Antonio. ()s pnldcios de lii/o Rica- Ouro l'relo n o c iclo do ouru. Belo Horizonle : Is n.], IC)SS

11 Citado por SILVA. 0 probl e ma dos exposros '"' Capitan"1 cle Siio l'aulo

p.152 .

12 BOSC!II, Caio Cesar . 0 assistencialismo na Capitania do Ouro. Reuista de Hist6ria (nova serie), n . l16, p .35 , jan ./jun . 1984

13 Cicado por !.OPES. Os palacios de Vila Rica.. p.188.

14 SILVA. 0 problema dos exposros na Capitania de Sao Paulo, p.H7-14H

" .PERROT, Michelle. As c rian,as cia Petite Roquette. Revista Brasilecra de Hrst6na, SJo Paulo, n.17, p . IIS - 128 , set . l988/fev . li)H9.

16 Cito o A!lJard con forme tran sc ri.;;:J o de VENANCIO. Jnf/incia se1n destinu

~1" :t~t,j ~~c 1e8 a ~~~',~~~~~rc~~r~ i~~~ I; i:~ 5fi ;1!1,'~',;:;;;~',: 1 ~c~~~;~~\il~~;"dclc: ~~~ ~~d~;i,;1r (1:1,~~1: 1 rocla de expostos na vtla, o nohrc Sen<tclo resol ve esrabelecer tal roda na

mor~c~a de "u~11 cas~II hunr:-1Uo.' c d~ b~)JlS cnstunlC.:s" Ci!ac!o por LOPES. Os palacws de Vrla Rzu1, p.l88. Tuclo tncltca que aroda st., foi crracla no seurlo seguinte, conforrne ditn ;~rima

17 0 mais imrorranrc conju nr o de le is .-;obre o assunto encontra -se ern

Antonio .Joaquirn de Gouve i:-t Pinto,

da criar;rlo e educa,:dn dos c.\postos ou e acharn

77

Page 21: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

/

e~palhadas enz df:ferenles artigos de legisla~·do pdtria, a que acrescem outras1

que re::,peitando au born regirnerz, e economia da sua adrnint"stra~iio, e sendo contudo }i./bas dus nzesnzas leis, tetn a e.>..periJncia provado a sua utilidade. Cito esta obra a part ir de Maria Beatriz Niaa da Sliva e Renato Pinto Yenancio poLs nJ.o tive acc s:-;o ~~ eta '

'" Vera esse respeitu FAURO, Raymundo Os donas do poder. 2.ed. Porto Alegre: Globo/S:io Paulo: USP, 1975

" 1\USSELL-WOOD, A. J !{. Manuel Franuscu Lishua juiz de Oficio e Filantropo. Belu Horizunte: Escola de Arqu1tetura cb UFMG, p.31 -32. (0 grifo C 111CU)

zo ARQUIVO l'ublicu Mineiru, Clmara :'>lunicipal de Uuro Preto, c6dice n. 61, f.57Y; citaclo pur RUSSELL-WOOD. Manuel Fruncisco Lishoa , p.32.

" "T{lbua clos habitant es cia Capitania de Minas Gerais e clos Nascidos e Faleciclos no anode 1776", citado por I{ClCI !A. Memoria hist6rica da Capita­nia de Minas Gerais, v.!!, p.511, 1897

u Carta de 17 -(J -1735, Arquiuo PLi!Jiicu lHineiro, Se~·Jo Colonial, CC)dice n No flll'Slllo c0dice, ver tamb2'111 C~trta Je 20-'1 - 1732. A respei-to de.ste a.ssu11tu, v~r SOUZA, L.lULl ck i\·1c!lo e LJ~:;clel'S.>1)It:ddus pobre1.:1 rnint'i r:t n u s2cu!u XVIII. Riu de Janeiru t~tlnht"'IIl SCAI\ANO, /Je/'0("/iu e est·rauiddo ->icnhura do Ros~·trio Pretu.s no Di~tritu Di;Jrnanttn o no s e culo XVIIJ.

P:tul,.l: Cump~tnhi:t Fdt!t>r:rNaciunal, 107(). p . l20-121

2' SCARAN() . Or-'I 'O ((iu e escrauicldu , p.ll(J

c~ti x;t 5'1 , Proposta a Sua M;tjesude a

Di:un:lllles, 17'i3· I 7'i4, cap.18. Ver <C.'L'l<t•<tWV. , J'· [ 21)

1' AI-HI, Minas Cer:11s, c·a ixa 37, 3· I 2-1 77 'i. Citado pur SCAH.ANO. Ueuo,·<io

e escn .. luidc.lu p .12 1

" ' RELATOEIO du llLHqui" d o Lavradio · 1779 Nevls!U do lnslllulo l!lsu!rico e c~·eoJ?,rd.jicu LJrrlsilezl"u, \'.IV, p. •J2tj

2c SILVA . U prul>lL'111:1 du.:, ex pu2-tos na C~tpitanta de S~lu Paulo, p.l4B

I'El!LJI(;Au MALHEWO. A escmulc.lcio no Hrasil- ensaio hist6ricu, juridico, socia l (2 vo lulllt") 5 eel Yuzes/ INL, 1976. v . ! . p.95-96 para a

in c lusive nota 537

'" SOUZ/\, Laura Je Mell" e nesc!assli'icu·dos du ouro- a pobreza n1ineira

1982. Cap 4 : Os protagonist<IS da

f:tt.:- ,..; imi le de Afonso Avila, du ou ro e :ts

Estudus Milleirus,

7H

llllHI<..lo b:trruco. Belo Horizonte: Cen tro de V. [ . p .2',

"Apresenta~ao" E ainda uma problematica cara aos historiadores cia feiti~;aria, mas niw cabe aqui nos determos neste assunto. Para a questao do paracligma indiciario, remeto a GINZBURG, Carlo. Milos-emblemas-sinais. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1983, sobretudo no ensaio intitulado "Sinais: raizes de um paradigma indiciilrio" .

79

Page 22: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

B. ESCRAVISMO, NORMAE CONFLITO SOCIAL

Page 23: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

·!!

HN~Ot~ ~OCIAI~ tM MINA~ NA ~tGUNDA MtTADt DO

~~CUlO XVIII

Em 21 de abri l de 1792, no Cunpo de Sao Domingos, Rio de Janeiro, a justi~a de Sua Majestade Dona Maria I manclava executar o reu Joaquirn jose cia Silva Xavier pelo "horroroso crime de rebeliao e alta trai<,;ao" de que foi consiclerado chefe, j:1 que, na distante capitania de Minas Gerais, atentara "com a mais escandalosa tcmeridade contra a Real Soberania, e Suprema autoridade cb mesma Senhora" . Com bara<,:o e pregao, o rcu deveria ser levado pelas ruas pl'Iblicas cia e ntao capital da co lonia, e, no Iugar cia forca, rnorrer "morte natural para sempre", tendo separada do corpo a cabe<;·a, e csta levada a Vila Rica, onde se conscrvaria "em poste alto junto ao Iugar de sua habita~ao", ate que o tempo a consumisse . Quanto ao corpo, determinava-se que fosse clividido em quartos, e estes "pregados em iguais postes, pela estrada de Minas, nos lugares mais publicus, principalmente no cia Varginha e Cebolas". A casa em que tinha residido deveria ser clestruida e salgada, levantando-se, entre suas ruinas, um Padrao que perpetuasse, na posteridade, "a memoria de tao abominavel reu e delito", infamando ainda, atr·aves dos tempos, a clescenclencia do reu. 1

Em regozijo p_ela.descob~rta cia conjl.Jra~;'i_Q, realizaram-se cerimonias religiosas ern que se deram gra<;:as a Deus por ter o epis6dio ficado circunscrito as Minas, sem contagiar a capital cia colonia, e se procurou persuadir os povos a pennanecerem

Page 24: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

fieis ;1 urna sobcrana "tao arnavel, tao pia, tao clemente"

roganclo ainda a Deus por sua vida e saude. Estivcram presente~ o vicc .. rei, a vicc-rainha, o bispo, as varias hicrarquias de que

se compunha o povo. Ardiam na igreja mais de cluzentas velas

"que todas trocavam a noite em dia". Sobre o arco cruzeiro: se via urn emblema que representava simbolicamente o poder e o controle da monarquia portuguesa sobre a possessao ameri­cana, celebrando-os. Sentada no trono, Dona Maria I tinha, a sua clireita, as armas de Portugal guardadas por Hercules, massa ao ombro e musculos a mostra. Do lado esquerdo cia rainha estava Astreia com toclas as insignias cia justip, e no olhar manifestava a soberana a presteza com que executava suas leis.

Sua Majestade com a mao esquerda tocava o proprio peito; e com o cerro, que tinha na mao direita, apontava para a figura da America, que aos pes do trono, muito reverentemenre, lhe oferecia urna bandeja de cora.;:oes, que significavam o Amor, c Ficlelidade clos Americanos. Mais ao Ionge, e como em campo muito distante, se viam os sublevados, representados na figura clc urn indio, posto de joelhos, despojado dos seus vestidos e annas, com as maos erguidas cern um bra<;:o uma cobra enrob(Ll, protestando a eterna vassalagem c suplicando a piedade cia soberana-'

A ordcm de execw;:ao de Tiradentes e a alegoria que cele­brava o fim cia conjura imprimiam no cotidiano o suplicio do insubordinaclo e a afirmas;:ao do pocler. Sc o reu cia horrlve l conspira.;;:ao morara em Minas e, inumcras vezes, percorrera os caminhos que ligavam a capitania interiorana a sede do governo dos vice-reis, situada em tcrras do litoral era ao

Iongo clos caminhos que seu cadaver deveria ficar ~xposto. Desarticulaclo, putrefato, feito em mil peda.;;:os, o corpo lcmbrava que o suplicio era iminente para os qu e amcac,:avarn a integridade da Monarquia, esta sim urn todo inclivisivel. 0 suplicio e a l embran~;~a dele talvez suborclinassem o povo cl;Js Minas, que a tradi.;;:ao politica setccentista pintara, no correr do seculo, como inquieto, revoltoso, sempre prestes a se amo­tinar. A rainha, por sua vez, tinha a seu !ado vercladciros Hercules, her6is fortes e corajosos que nao mediam esfor.;;:os nem cleixavam de recorrer a fors;:a bruta para mante-la senrada

no augusto trono. A .Justi(:l t:Hnht~m csuv:1 com cLt, c ncrn tard:w;t, nem falh:wa. 0., " .Jditu.-, :lllll'ril':Inos !he enm freis em corpn c em alma, c:1pazcs de tirar "cnr:1~::lo do rcito r:lr:t !he oferecercm. E o colono, este ser :1mhiguo, mutjvel, ameas;:aclor muitas vczes, rude e selvagern como os indios, habituado a conviver com feras, tinha, ao fim e ao caho, que se acosrumar com o jugo da Monarquia lusitana, arnavel, clemente, pia, civilizadora

n

A desordem era perigosa ao governo clos povos, ind:1 mais a milhas de clistancia do centro de pocler. Nas Minas, er:1 tambern um entrave a tributas;:ao, e Portugal logo pcrccheu a necessiclade de enquaclrar a capitania a firn de que o ouro e as gemas tluisscm melhor para os cofres do rei, fazendo de Vila Rica, como diria em 1733 o autur do Tnurzfo Fucarfstico,

"por situa<;;ao da natureza cabes;::1 de tocb a America, pel:! opulencia das riquezas a perola preciosa clo I3rasi\" Mas o controle sobrc as Minas cxtrav:tsou em muito :1s pn:ocup:l­\":)es fiscalist:J.s da Coro:1, c c;c atrclotJ :t um contcxto m:1is vasto, de temor ante :1 consci0nl·t;I c rcsn: nt e do qtH' .Sl 'r i:I , cnt;io, "viver e m colonias" Dur:mte toclo o Sl~ cuio XVIII, :1s autoriclacles portugucsas n:'\o sc cansaram cle cliscorrcr sohre 0 rerigo da sublcvac;:'\o ou sobrc a periculosidacle potencial clos habitantes cia colonia, que, como o indio da aiegoria :JCim:l descrita, pocleriam ate se Sl.dlmetcr, mas traziam semprc uma serpente ao alcance cia mao para. com e la, ferir as normas c stahe l cc ici;:~s peio Podcr Central. Contra os propt'isttos normaLi!.adores cia Metr<\pole, con.spiravam in(Im e ras v:ni:iveis, entre elas a clistancia. "A somhra, quando o sol e.st:'t no ;.boit e, e muito pequenina, C tocia SC VOS mete dcilaixo dos pes; !1l:I S

quando o sol cst:'i no o ri ente ou no ocaso", dizia, no frnal do secuio anterior, o grand e jesuft:J Antonio Vieira,

essa rnesm~ sornbra se estcnde t~o imensarncnll:, que mal cabe dentro dos horizont es. ,\ssim nem nuis nern mcnos os que pretendem c alcan,·am os governos ultr:llllarinos. Li ondc o sol esttl n o 7.C nirc, nao sO sc n1 e tc~n1 es f;:IS snn1hr;:1s dcb~~ixo dos

r><"S do prlnc:ipc, ·'CO~O l<llllhl' ~n dos dt> seus ministros. Mas

Cadu
Highlight
Cadu
Highlight
Cadu
Highlight
Cadu
Highlight
Page 25: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

quando chegam :•qu eLl;; !nd•as, onde nasce o ~o l , uu a estas , o nde .se rOenl , cresC l.'ill tant o as 1nesn1aS Solnbras, <...J.Ue exceJem 1nuito a n1cJid~t dos rnc s Jnus rc.:1 s de LJ.U t' s~l o i rnage n s .~

D. Rudrigu just': tie" Mt· ne;.es, urn clos govcrnantes ilustrados d e Minas no periodo imed iatament e an te rior a lnconfidcncia, co nstatava ser dific il impedir d es mandos rn es mo e ntre os membros cia admini s tr'a <; J o imp e rial "es p ec ialm e nt e e m colonias, qu e po r es tarem Ionge d o trono nao podem receber imediatame ntc dde, em te·mpo co m petente, o remedio as suas vexa1,JJes, e que, mais q ue a MJe Patria, necessi tam d e se r r·eg ida s con1 justic;a e sLuvidadc, scm as quais e impossivel nvresce rem ". Como u rn de se us a nteccssores no gove rno, Gomes Freire d e Andr:1de, co nde de Bobadela, D. Rodrigo defendia a t<:itica de se mis turar o agro como doce para melho r harmonizar c submeter os colo nos:

Sempre me persu:<di qu e um a bem calculada e diri gida prudencia seria suficienle em quem gove rn a, para ganhar os ,·n ra<;<)es cl os ilomens e obriga-los com uma forc;a voluntaria a cumprirl' m as sua s ob riga c,:ties sern qu e parecessem cunduzidos nn is que pl' h pnipria \'()11\ ade, e sem que percebessern mao superior e csrra nh a qul· desse os rnovin1entos as suas a~Ues . ·1

Ill

Como intro jeta r o pode r e as normas na s lo njuras do se rtao? Como enquadrar o~ potentados, cont.ornar o desejo Je rnanclo cla s Camaras Munic ipa is, ordenar a po pula~·ao heterogene a compos ta de va rias ganus de m es ti<;os, canter a v io lencia se tn pre rcprcsada do L·o ntingc nte e scravo?

N:t segunda d<~C t cb do sccu lo XV!ll , o Es tado procura ra to mar as r~ d ea s do p me<..' SS O urban izat6 ri o qu e os co lonus tu rbu le ntos h:wia111 inic iado nas Minas, c tratara de lhes cortar as asas , csmaga ndo levant es como o clos Em boa bas ( 1707-1709) c o de Fili pe dos Santus ([720). Foi es te o primeiro te mpo das Mina s, quando o pode r dos governan tes a inda cstava se estabeleccndo , e ne m mesmo as insignias externas dele , como o Palacio dos Govcrnadures , tinham o peso e a

H<>

majes tade que vi riam a adqu irir posteriorment.e. Fundamen ta l, nes te processo, mostrou -se a a tuas;ao d o conde de Assumar, que dirigiu a capitani a e ntre 1717 e '1 7 21. Ac uacl o p e lo s p rotes t.os contra a forma de tributas;ao que, em no me cia Coroa, cle veria implantar nas Minas, e apavoraclo corn a iminenc ia de urn levante escravo, ine vitavel, ante se us olhos, pela rela s;ao descquilibrada entre o pequeno numero de brancos e o enorme conringente negro, o governo do conde foi um divisor de flguas no que diz respeito ao exerdcio do poder em Minao;, tendo s ido ele o primeiro governante portugues qu e, na colonia, executou sumariamente urn h o mern branco e de ce rta qualidade social , passive!, nes ta condis;ao , de ser julgado por uma Junta de justis;a.

No te mpo de seu governo, o espas;o interno da capitania de Minas Ge rais se encontrava ainda em processo incip iente d e configuras;ao. Eram fluidas e indefinidas as fronteiras com as capita nias vizinhas, e o sertao, vasto e temido, era uma te rra d e ninguem, ou melhor , terra de indio bravo e de n egro revoltoso. Fechado por montanhas para o viajante que cle ixava o litora l - a serra do Mar e, e m seg uid a, a se rra da Mantiqueira -, o territ6rio etas Minas e ra de acesso dificil, clotaclo de condis;oes climaticas peculiares. 0 clima instave l, e nevoado, trais;oe iro da capitania fo i comparaclo p e lo conde a populac;:ao que a habitava, associando-se a revolta da natu­reza a natureza em revolta. Escrcve ndo ao brigacle iro joao Lo bo, e m 1719, Assumar reprovou a rebeliao que contra aquele intentara a Vila de Pitangui e o aconselho u quanto a mane ira de pa cificar os povos, dentre os quais haviarn se cles tacado os negros: "Que se aplaquem as tempestades e se se rene m se melhantes borrascas, se mpre perigosas para o bem comum e para o servis;o de Sua Majestade." A analogia entre revolta dos e le mentos e revolta social foi retomada quando , ao rclatar ao conde de Vimieiro, governador da Bahia, os fatos ocorridos na Sem a na Sa nta de 1719- ocas iao e m que se acreditou que os cscravos, aprove itando-se do fato dos senho res se encon­trarem na missa , promoveriam enorme matan c;:a d e brancos e fug iriam em seguida -, o governador desvenclou um pouco me lho r o significado politico de que se revestiam: "lrnprovisa c repentiname nte se levantou neste gove rn o uma horrasca rao feia , que o podia , nao s6 por e m comingencia, como a toda a America." No famoso Discurso Hist6rico e Politico, escrito

il7

Cadu
Highlight
Page 26: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

com o intuito de justificar a execw;:ao arbitraria de Filipe dos Santos, Assumar aperfei<;:oou a analogia: "Os elias nunca amanhecem serenos; o ar e um nublado perpetuo; tudo e frio naquele pais, menos o vicio, que esta ardendo sempre. C. .. ) a terra parece que evapora tumultos; a agua exala motins; o ouro toea desaforos; destilam liberdades os ares; vomitam insolencias as nuvens; influem desordens os astros; o clima e tumba da paz e berro da reheliiio; a natureza anda inquieta consigo e, amotinada la por dentro, e como no inferno".

Na decada de 20, portanto, quando o Estado se instalava na convulsionac!a capitania das Minas, separando-a cia de Sao Paulo para melhor governa-la, o conde de Assumar tinha claro que a revolta de colonos e de escravos podia por a perder os c!ominios portugueses na America do Sui; percebia tambem que o grande numero de escravos negros e a minguada popula<;:ao de brancos fazia de Minas urn barril de p6lvora: "Qu e como ainda agora sao aqui mui pouco os homcns brancos, ?t propor<;:ao clos negros, tiveram estes atrcvirnento rara intent<1r urna subleva\:ao universal e se cornunicavam das partes mais clistantes ... " Apesar d e escravos, tinham ca pa ci­clade de organiza<;:ao, poclenc!o ganhar aclcptos para a sua ca usa . Dotac!o de aguda sensibilidac!e politica e ciecifranclo bema trama social, o governador usava o imaginario c!emo­nol6gico para definir a natureza cl<1 socicdadc mincraclora e acusar a propensao a revolta: os colonos eram dem6nios, e a capitania, enevoada, borrascosa e hostil, lembrava as cl escri<;:oes do inferno correntes na epoca, como por exemplo as prese ntes no Compendia Narratiuo do Peregrina da A nu?rica (1728), de autoria do moralista Nuno Marques Pereira. A nega<;:ao cia ordem social era coisa do Diabo como o fora para muitos dos pensadores politicos ingleses que antcce­deram a Revolu<;:io de 1640. A revolta era o ami -munclo. assirn como o inferno era a antftese do ccu.'

Governadores subsequentes talvez nao tenham chegado a enxergar a popula<;:ao mineira com os olhos da clemonologia , mas, a exemplo de Assumar, usaram as metMoras cla natureza e m revolta para ilustrar os perigos cia secli<;:ao. Entre maio de 1736 e dezembro de 1737, o ilustrado porrugu~s Martinho de Meil(:Jon~:a de Pina e Proen<;:a governou interinamente as Minas Gerais, queixando-se sempre do clima, dos min e iros ,

RR

do cargo que o clesgastavCI e exauria na idacle provecta em que ja se achava. Em 1736, reprirniu o levante de Sao Romao, no qual, talvez pela ultima vez ate a lnconfidencia, homens pode­rosos se insurgiram contra o governo da Metr(Jpole." MclS nunca dormiu tranqliilo, scmpre farejando sinais de uma revolta iminente, e na noite de 30 cl e outubro de 1737 sobressaltou -se com as vozes que, alto e bom som, proclamavam na principal rua cia Vila do Carmo, clepois Mariana: "Viva El-Rei, viva o P~ .. ':~.S_<:_I!l()rr,:;J Ivi;Jrtinh()de Menclo!2S_'!~ .. Jf.~ .. fian classico dos

levantes da socieclade de Antigo Regime, no qual se poupava a figura do rei, pai e protetor de seu povo, e se atacava a do executor das leis duras - no ciso, a tributa<;:ao do ouro -, o vozerio acabou por se mostrar de menor importancia 7

Mas o governante nan sossegava, intuinclo catastrofes futuras, dizendo-sc precavic!o contra "uma tempe.qacJe" que vi;l armada h:l rnuito te mpo, a gritaria noturna n:to senclc, sc n;'io n "prirneiro trouao", tard e ou ccdo r ·;~t;tlmcntc sc l;~n <;anclo, "sc n;io forem raios, ao me nos re!ampagos" . 1 Jrna vcz clcflagracla, ;1 rcvolu da socieclade, co mo a cia natureza, n:\o podia ser intcrrom ­pida: era fatal e inexor{lvcl. Martinho cle Menclonc;:a c!izia que, "movic!o e alterado 11nu vez o vulgo, nao e facil ror termo aos seus desat.inos", ou qu e , ltrn :t vcz se clesen­freia este povo, n:lo ser:i Li c il rcduz i-lo" . Possn ser me c.Jmso, confess;lVa o velho govcrnantc, mas n:lo sou vision5rio. Sc sua afli<;:ao passasse por "quirnera mel:l!lc6lica", sc e lc caisse em desgra.;:a junto ao re i. ou se os s(Jclitos suhlcvados o ma­t.assem, pross e guia, "meno r sera a percla de minha casa, que a das Minas". Nesras, soh se11s ol hos, sc ati<;::tva "uma fogu ei ra oc:ulta" mas corn pode1· cl c clestrui,·;to suficicnrc para fazcr sair do letargo as autoridaclcs m et ropoliunas , indiferentes ante os seus avisos, "clcsprezando as Minas como se nao foram de mai s importJ.nc:ia que a colonia" 8

IV

Os anos co mpreendidos t'ntre 17()7 e J7i() for;lm c!csta maneira urn periodo extremarnentc crilico p;1r:1 o govcrno das Minas, c a continuiclade cia dominac;:a o portuguesa sohn~ a ca pitania corrcu scrio risco . Os anos quarenta c cinqLient;l presenci:1rarn ;1 irrup<;·:lo cle im"tmeros quilomhos, provocando

89

Cadu
Highlight
Page 27: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

[! r

a mobiltza\:;1u de ltupas empenhaclas em combate-los e arras;'t -los de funna sanguin{nta e brutal. Estes :1nos marcam ralvez uma petcepC;'<Io difere nte da revolta. Nao as houve mais espeuculares, capitaneitdas por poderosos como Manuel Nunes Viana- um clos principais chefes e mboabas ern 1707-1709 -, Pascoal da Silva Guimaraes - que, em puni<;:ao a seu destacado papel no epis6dio que culm inou com a morte de Filipe dos Sanros, em 1720, teve queimado pelo governador o morro em que residia, e que levava seu nome- ou Dona Maria da Cruz, ;t virago sertaneja clas lonjt.lfas de s;w Romao qulc, chde de fatnilia aputentada e revoltosa, foi presa pe los puderl~S t:'stabelecidus em 1 7,')6 e trazida ate Vila Rica em t.'Xpecli~· ;lo tluvi;d pelo Sao Francisco e pe lo rio das Vclhas, a passagem de sua barca<;:a coberta de sola bordada provocando constcrnac,:ao e solidariedade entre a popula(ao ribeirinha.'' A partir de meados do seculo, como sc ia dizenclo, as revoltas tornararn-se surdas, constantcs, clisseminaclas, cotidianas: mudara tanto sua anatomia como a forma de encara-las. Desde cntao, c ate o governo de Lub da Cunha Menezes, us oligarcas mineiros estiveram antes do lado do puder du que contra e le , gozandu de lJeneficios e prupinas; enraizando-se local-1\lt~IHl:, l'CH\\tl viu Ke nneth Maxwell e m A !Jeuassa da Deuassa; 1noldando-s t::' cada vez mais pela vida intensamente urbana cb capitania; ciot:lllclo-se de fe it;:ao espccffica, diferente cia dus grupos de potentados patriarcais pr6prios a outras regioes da colonia. No imaginario politico cia epoca, lnimigo com I mai(isculo sc tornara, cada vez mais, o gentio bravo, comedor de gente nas florestas que margeavam o rio Doce; o quilombola fugiclio, sempre pronto a atacar as colunas que entravam pelos matos, scmpre presto na pilhagem de pai6is c ro<;:as de fazen­deiros imprcvidcnte.s; o vaclio itincrante biscateiro, que rodava pclo scn ;-to e peLts vilas, pesando, com sua forma intcrmitcntc dL' trabalhar, por sobre os homens bem mori­gcr;HJus t' niticLtmt·nte situaclus na hierarquia soc ial Era o inimigo in rerno que assornbr;tva adminislrado res desde a cl ecada de 20 , qu:ll1do, nas vestes do escravu lugidu, Assuma1 us temera como o diabo a cruz. Era o exercitu difuso e informal que homens como D. Antonio de Noronha, nos anus 70, viram tao perigosos con1o os castelhanos que, ao sui, fustigavam :1 fronteira aind:1 carnbi:tnte da co l(m ia hrasileira 1 0

'JU

T :

A) iNDIOS

No imaginario colonial, indios eram tradicionalmente agentes de Sata que a catequese se esfor,<;:ava por metamor~ fosear em almas de Cristo , antitese da cultura que a expansao das fronteiras e a conversao ao trabalho sistematico poderia, talvez, reduzir ao mundo dos brancos civilizaclos. No espa<;:o geografico das Minas, os indios foram vistos como os ini­migos da colonizacJto, como barbaros comedores de gente , como feras ind6mitas. Mas, talvez pelu fato do trafico ja se achar plenamente estabclecido- a diferen <;: a dos primeiros momentos de ocupa.,:ao do espa<;:o litoraneo - ; talvez ainda porque, entao, tucla a !ide colonial j;l residia, indubitavel­mente, no trabalho de cativos negros, os indios nao foram o maior dos pesadelos que assombraram burocratas, gover­nantes e colonos nas Minas do seculo XVllL Mesmo ass irn atemorizaram muito os homens brancos, para quem f~ran~ freqOentemente associados aos bichos ferozes.

Na decada de 70, nas frentes avan<;:adas de povoamento, os colom~acl?res brancos procecliam a unu verdadeira tipo­logta dos md10s com que mantinham contato. Havia os mansos do~1esticos, como Manax6s e Maxacalis, aos quais as expe~ dt<;:oes que entravam pelo sertao distribuiam ferramentas e rosarios. Havia os pacificos, mas traidores, capaze::; de matar outros indios ou soldados quando os achassem descuidados. Sendo infames, eram indignos de tregua, como os Copox6s . l~or fim, no limite, havia os Puris e os Botocuc!os , "na<;:ao tao brava, e de pessima natureza, que trazem continua guerra com as mais nac;:oes, sustentando-se de carne humana tanto dos indios que matam como dos cat6licos", Contr~ e les havia que se mover a "peleja" de que falam os textos e qu~ procurava extingui-los "por meio de ferro e fogo", vis to nao quererem se utilizar cia amizade dos brancos e continuarem escandalosarnente sendo "verdugos e inimigos capitais do trato civile humano"1 1

Venclo como ilegitimos us atos de violencia dos Indios, os sertantstas relatavam de forma natural e serena os mas­sacres cometiclos contra aldeias, como o ocorridu no final cia decada de 60, na regi:'io fronteiri.,:a com a capilania clo Espinto Santo:

91

I

' I I

I

Page 28: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

r

Subinclo pelo clito rio Doce, ja perto cl~ ilha da Esperanc,:a. urn dia entramos a avistar fuma,:as de fogo;; do gentio Botocudo, e indo naveganclo em clistancia de meia-legu" os avistamos estarem passando o clito rio em b~dsas de pau do sui para o norte; virci as canoas rio abaixo um quarto de legua, e meti- me em uma ilha ate serem perto de 4 horas da tarde por nao se rmos sentidos do dito gentio, e a essas horas passei para a parte oncle estavam, endireitando ~ rumu clireito para eles; caminhei de noite com luzes, ate indagar estar perto dos ditos; chegada a madrugada, os mandei cercar, e sentindo-nos os cachorros do dito gentio, se embraveceram de sorte que os motivou a desconfianc,:a, pegando logo nos arcos, e setas, e inda com escuro se iam retirando do alojamento, e rapicla­mente me vi precisado comete-los, por ver perigo se chegassem a sair fora do dito alojamento pelas traic,:oes e ciladas com que haviarn de nos atacar, e ajudou-nos Deus que ainda haviam de morrer deles para cima de 20, e como o cerco nao es tava de todo fechaclo, fugiram por aquele mesmo !ado desunido, e s6 fizcmos de presa uma mulher com tres filhos, e clois tnai s, que rP.r3o 7 para R anos pouco n1ais ou menos, co 1n

feliciclaclc grande, sem pessoa a lguma clos nossos ter pcrigo."

Os pr6prios governantes justificavam a violencia clos atos contra os indios com base na rcsistencia que viessem a opor. Valadares, por exemplo, acreditava, na mesma epoca, que talvez o "born agasalho" conquistasse mais do que o ferro; mas nao titubeava em aconselhar dureza: clisperso ou aldeado, o gentio deveria ser reduzido ao gremio cristao- ou "com branclo e suave modo", cnt, caso nao quisesse abrar;:ar o "amigavel trato" dos brancos, com () terror provocaclo a for(,:a de ferro e fogo. Conseguir-se-ia, assim, "ou a redur;:ao do gentio, pelo rneio cia persuasao, ou arruina-los de todo, para que vivam sossegaclos os moradores daquelas vizinhan<;<~s. em quem e les tem feito repeticlas hostilidades". 13

0 temor its ar;:oes indfgenas subvertia o corpo juridico, p'i que leis como a do Diret6rio dos Indios pareciam, no cotidiano, terem se tornado lctra morta Ainda na regiao fronteirir;:a entre Minas e Espirito Santo, nas imediar;:oes do rio Doce, onde matas espess::ts ahrigavam tribos antrop6fagas, os indios se achararn aldeados na localidade de Nossa Senhora da Estrela. Munhox6s, Cornunhox6s e Maxacalis eram d6ceis e domesticos , mas os Macunis, Panhamas e Catax6s deveriam ser vistos com reserva, prontos para se rebelarem qu::tndo a submissao a vida do alcleamento cleixasse de lhes ser

92

T interessante. Fingindo paz, sobretudo os Carax(Js continuavarn rnatando genre hranca. Minavam a base interna d:1 organi~

z;H,J!O dos ctviltzados, que tinharn, como oponente externo e terrivel, os lendarios Aimores. "rebeldes, pertinazes e vorazes de carne humana, que nunc:1 cessam nem cessarao de nos cianificar, e :1os nossos confeclcraclos", afirmava o vig:\rio cla aldeia, Manuel Vieira Nunes. Para corn os Aimorcs, "enquanto o seu orgulhn n8o for prostraclo como justarne nte pode e parece se deve efetuar", caberia, para o vigario, ser "neces­saria e conveniente a escra vicEio, por ser a causa cia nossa guerra agressiv::t e JUtHamente defensiva com titulo muito ju_s ro, em direito funclado, e os prisioneiros d e justa guerra, nao sendo cat6licos, tem por clireito cornum imperial a pena da servidao p erpe tua ... " 0 p:1clre salJia que suas palavras pocliam soar mal em tempos de reformismo ilustraclo, como erarn aquelcs, capitaneaclos pelo ministro Pombal. Mas m:tnteve '' pos i('?iO: :1 riccl:lde qu e . :1 p :Hllr de Lt sho:t, sc postulav;t para com os hahir:tntcs d:1 Amct·ica c-r:t ··s tmuL!da" 1rre:1l. p0 .,~; 1 na boca de trH.Itviclu os "n :1cla zelaclores do IJ elll comum·· em cu jos bra(·os c1ir:1, e ngan:1cl o . ''a te' o g;1hinctc de no~sos augustissimos reis, e at( o ScJiio l'onrificio". Ccnsurar atos duros contr::t os indios propit'iar;t "a Ctltima rr:q:;cdia d e rantos vassalos portuguescs", e cl e mcncia c:thi;t ;tpen:ts par:t corn o gentio d(Jcil, e n;io para com "ta ntas nacJles ferocissimas c indomaveis que ex is tern por es t a America"

Indios eram, port:1nto, inirnigos pcrmancnrcs: quando mansos, trafarn, descrtavam, voltav;tm -st: contr;t os brancos se a alian<;a com e les nao mais intere ss:tsse. S1· hravtos corniam genre, amcac;;avam os alcle1mentos, pelos qtLtts o mt;ndo civi ­lizaclo procurava clomar o se rtao. Na document:l<;:ao oficial, sao os culpados de tudo, in c lusive cia violencia clos brancos. Para irnpedir que se aliassern a outros se res tcmive is (os quilombolas que tambem se e mhrenhavam pelos matos), 05

poderes estabeleciclos procuraram:· clesde ceclo- as primeiras referencias remontam a 171 4 -, rnanclar esqu::tdras de indios seguirem no encalr;:o de negros fugiclos. Enquanto dividiam os opositores da ordem, tais rnecliclas, astutamente, aproveitavam-se dos indios como capit8es-do~m:Ho rwla m;tior familiaridad e que tinham corn o sertao. No tempo de Bobaclela, chegou-se a determinar que '50 casais tapuias fossem deslocados de

93

Page 29: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

' I

Sao Paulo para cada uma das comarcas mineiras, "para dali sairem a destruir os quilomhos dos negros que frequente­mente costumam roub;tr e matar aos vianclanre~, visto que os rneios que .sc lt~rn aplicado p:tra evitar estes insultos tem sido inefictzes'' ''

13) NEG!\OS

A ideia de que uma guerra campeava nas Minas, opondo os colonos brancos aos escravos nc:gros, encontrou expressao admir{tvel na Heprcscntar;ao anonima que, nos anos 70, um colono brasileiro encaminhou a Dona Maria L Dizia o docu­mento que os colunos, em nome dus quais falava, desejavam ardorosamente que a conquista portugucsa se propagasse, e se prontificavam a marchar, casu fosse necessario. para a de-fesa do territorio. Entretanto, deviam por na do rei o risco em que cleixavam su:ts rnullleres e "nas maos do inimigo m:tis pcrniciosu', ou seja, ";t gcnle prct;t b{trbara de /\trict l' Cuint\ que todos os muradorcs possuern, uns mais e outr()s menus, umtonne su:L'i posses cum a .'iujei<,·Ju de ctt.ivos, por os l'Otnprarem naquc:L! regdo pur dinh e iru" Os tai s negros csn:tvos ~_·r;tm import:tntes, dtzia ainda o vassalo, porque tod:ts :ts fvlinas cr:ttlt pur t::les, e sc'J pur eles, cultivadas. M:ts sua :tp:ttTnlL' dumesticicbck e ncobt'i:l a fer(·za natural. pois er:tm "domt'sticos ?1 tor<,, :t de temor, e inclinados s() a faz e­rem male m:ttaretn ()S hr:ttwos, que julg:tm cupitues inim(r;,us

por os priv:tr d:t libert_bdc" . Para cada branco pululavam nas l'vlin:ts cen1 "etiopes", uu St: j:l, negros cb Africa que tent:lvant, sempre que se cJferecia a uca'si:'to, "despoJarem" os colonos br:tncus de su:ts vidas, mull1cres e filhas. Dispersos pelos mato.'i e brenlus, o.'i escravus fugidos roubavam, matavam, ata­cavam as povoa<;cws qutc sabiam "menus fortificadas para a defesa", erguiam suas malocas nas paragens mais inacessi­vcis aos brancos, ondc viviam "sem lei ncm obediencia" as normas do Estaclo portugues. Com a dirninuir;ao do numero de brancos que seguiam para fora da capitania, recrutaclos para as guerras do Sui, faltariam for<,:as para enfrenrar os ne ­gros, "vindo-se a seguir terrivcl percla de umas Minas que, pt:los seus haveres de ouro e pedr:1s preciosas"- continuava o vassalo -- faziam Portugal "temiclo att0 do mesrno Turco". Havia-se p:tssado cerc:t de rneio seculo descle os tempos

T I

tumultuac!os do governo de Assumar, c, no entanto, continuava grande, talvez maior, ate, o ternor de que a multidao clos negros se voltasse contra a minoria branca das Minas . As mediclas propostas pelo vassalo eram cluras: invocavam o bom tempo de Bobadela, quando, por prudencia do governante, determinara-se que houvesse em toclas as povoar;oes um certo numero de capitaes-do-mato pagos pelas Camaras para, "sem a minima piedade", mataiern os negros que se encontrassem armados fora do dominio de seus senhores. Estes, por sua vez, deveriam ser instados a reprirnirem duramente os ajunta­mentos de escravos em assembleias, pois nelas nao faziam outra coisa senao maquinarern a "intentada sublevar;ao". Ao finalizar, desvendava um poueo do complexo exercicio do poder nas Minas: "E cerro que vale rnais sobras de cautelas do que falta delas". 16

Se a guerra campeava, era preciso desenvolver es trategias Os homens uesignados para perseguir e prender quilomllolas deveriam primeiro busc'i-los nas imedia<;c)es das estradas, que, reclamavam os habitantes, viam-se "infestadas" deles. Quando estivcssem limpas, passariam entao para os quilombos. uncle deveriam primeiro cuidar ern prender os negros fugidos scm machuca-los. Havendo resistenci a, tinham autorizar;a o para matar, incendiar, destruir as aldeias. 17 Con tra os quilombos, er;~rn enviadas expedi<,:oes belicas que, JLJ rna ior parte das vezes, parti a m sem alarde, as esconcliclas, para rnelhor surpreender o inirnigo. Pocliam contar com 100 homcns, entre os quais havia clragoes, soldados pcclestrcs, auxiliares. A p6lvora, o chumbo, as balas, os rnantime ntos seguiam em lornbo de bestas, que eram 20, 30 ate, cumo as que acompa­nharam os destruiclores do quilombo do Tabua, em 176'), onde se fizerarn 80 presos entre cativos c agregados "estabe­lecidos em ten·as do mesmo quilombo com famflias, e ror;as ", crian<;;'as e mulheres. Alem da casa principal, existente na maioria dos quilombos de que se tem mapas ou descrit;:ao, o do Tabua contava corn mais 200 casas, todas cobertas de telha, sendo a metade delas frJJtificacla. Por ordem do entao governador, conde de Valaclares, elas foram destrufdas, "arrombando-se portas e janelas, e metendo os pedestres a saque tuclo o que acharam". 18 A expedir;ao que, um a no antes, se dirigiu ao quilombo do rio Pornba, teria contado com 60 soldados armados de espingardas e facoes, 6 granadas de fogo, 40 alqucires

95

Page 30: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

tie farinha, 8 capados, uma bruaca de sal. 19 Toclas as duas ostentavam, entretanto, modestas dimensoes se compara­tlas ao corpo cle 400 homens mais muni<;oes de guerra e boca que, por ordem de maio de 1747, destinava-se a destruir qui­!omboszo Eram tambem quatrocentos os integrantes da len­daria expecli<;ao de Bartolomeu Bueno do Prado, que, em 1759, percorreu sert<'Jes rnineiros destruinclo alcleamentos de ne­:gros fugidos e prendendo centenas cleles 21

Contra os quilombos, voltava-se tambem a "civil sociedade", os homens comuns, como um certo Gon<;alo Pais que, em 1770, se oferecia para patrulhar o sertao as suas expensas, exploranclo-o e, ao mesrno tempo, atacando os aldeamentos de negros fugidosa Tal proceclimento remontava a decada de 30 e ate, talvez, a perfodos anteriores, quando, em peti­•;oes, os moradorcs pediam permissao para ajuntar gente e ussaltar quilombos como o que ficava proximo a Pitangui, na heira do rio Gomes, poclendo, em troca, tomar para si os bens rn6veis que encontrassem e ainda as crias nascidas nos qui­lombos. Solicitavam tambem que nao fossem consideradas criminosas as rnortes que porventura viessem a provocar nos escravos, "mortes em natural defensa" que convinham ao :servi<;o de Sua Majestade e ao bem comum. 25 Esses particulares que, por conta propria, ca<;avam escravos fugidos, procurariam, lalvez, neurralizar a et.erna falta de capitaes-do-mato e de tropas i1dequadas, expressas nas queixas incessantes das C'imaras Municipais e das autoridades administrativas ou judiciarias. [ntrojetavam molecularmente as Jisposi<;oes oficiais contra quilombolas, rCSJ'ondenclo, de forma individual e pulverizada, iis investidas violentas dos "barbaros etiopes" que, arrancaclos tla Africa e atirados ao cativeiro, tinham mesmo, com freqi.iencia, i1titudes tao inumanas quanto as clos senhores a quem cram .sujeitos. Nas fazendas ou nas pequenas ro<;as e sitios, em ilmitas ocasioes os colonos viveram aterrados, inseguros, 'cada um em sua casa", esperando "por instantes o rnesrno estrago que na de outros os fugitivos negros fizeram".

A este rcspeito vale a pena deix:u falar um documento tlc 1768:

Qu:1ntas vezes aos nossos ouviclos chegaram os tristes clarnores d<t donzela branca, CttJaS cntcrnccidas lagrimas, e ;~t e nclfvei s

rogos nenhuma piedacle enconrraram nos inexor:lvcis reilns

claqueles negros, Johns vor:~zes d:1 ·"'" virginclade' Que que1xas

despecle an k'Lr a casacla, porque aqucles rnonstros da crucld:<cle e lasciv1a, nun ca clernentes a t:1o JUs tos gemidos, prostituida a pllscram. cleixando-a inculpavel ofensora ao scu t<ilamo! (!uantos os cle menor f;jlxica, que n:1o tenclo familia, corn que resistam aos assaltos clestes scm remedio, ou rnanietados, ou com rnorda<;as nas ou f>Or maltrataclos quase mortais, vcm roubar-se-lhes seus pohres pen.J!ios, que corn tanto suor adquiriram, e as almas lhcs lcvarn nas rnulheres e filhas 'lll e os negros lhes concl uzern 121 • • '

0 terror-panico cia a<;_::lo clos quilornholas levava ainda a que solclaclos agissem por conta prc'Jpri:I, sem ordcrn de supe­riores. Ern maio de 1770, no sitio clo Brurnadinho, fregucsia do Sumiclouro, Jois soldacios crioulos viram, as 11 horas cia noite, o vulto de dois negros .:que passavam pela beiracla do arraial. "Querenclo reconhece-los e pega-los na fe de que cram fugiclos", seguiram os negros e co nseguiram alcan<;ar um deles em uma praia logo aclianre. Enquanto um clos so ldaclos perseguia o neg ro que sumira, o outro arnarrava o que se conseguira ca prurar; de repen te, do meio cia escuricl ao, o que ficara 3 marge m do rio corn n aprisionaclo ouviu o companheiro gritar que o matavam. Lirgou o csc ravo c foi acudir o soldado que gritava, mas chegou tarde dern::~is o agressor ja escapara, e ;I e le sc juntou o qu e permanecer·a na beira clo rio. Nao conseguiram saber quem seriarn, nem prencle-los novamente. Deles, o que ficou foi, no local da prisao, urn saco velho com umas espigas de milho, levanclo o comandante do distrito a cogitar que se tratava de negros "que iam mudando para a lguma J'<Ht e", e que, nem de Ionge, planejariam qualquer a<;ao contra os horn e ns hrancos."

Bem mais tenebroso foi o fim de epis6dio semelhante ocorrido no mesmo ano, no distrito das Catas Altas, oncte alguns negros comeri:Hn furtos No seu encal<;o ciesta cara rn -se espontaneamente so lclados do mato , danclo com eles a tres leguas do arraial. Aincla estavarn atnrcloaclos como cncontro qu::~ndo um dos negros saltou sobre um soldaclo cabra c tomancio-lh e a faca, o rnatou, clespojando-o em seguida da~ outras armas que trazia. Os companheiros do morto, por sua vez, a lvejaram o negro eo mat8r;lm. cortanclo-lhe a cabe<;_:a c levando-a puhli camente para n arr::~ial.'" 0 habito de cortar ;Is cabe<;as clos negros procurava justificativa na violencia

<) 7

·------------------·- ------- .... ·~ --

Page 31: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

que estes exerceriam contra os hrancos. Na pratica, as coisas se passaram de forma diferer1le, havendo reclarna<;:oes contra as arbitrarieclacles corneticbs pelos capit~!es~do~mato que, a qualquer pretexto, dcccpa1·am cabe~'as. E chocante a rutu~ r~tlidade com que, nos anus quarenta, urn hornern como Gomes Freire de Andrade se rt'feria ao assunto:

Rece!HJ a cont" que Voss" Mere(· me d{r que teve do dito Coronel Luis Jose Ferreira de Couveia dos negros que os Caf)itJes-clO-ll1dtU ITLlt:Jf<lll1 SL'n1 rcsistirCill, t'Starem arJnados OU

em quilombo: us ditos ctpitaes·do-mato vicram a minha pre:..;enc;a cont as cabe\--~Ls dus negros n1ono.s, e atesta(n o contrario do que o dito Coronel diz.. u

Para nussas st:nsibilidadcs de ilumens clo seculo X:.,X, que ulvc;, sc: IlltJ.strcm e mhut:rcla:; :rnte outras barbaridades, a

iclcr:r de ilunren.s que c:rrTq.;:rv:rm c rbe-,·as de outms homens em hols:rs ou s:rcos p:.rLr exiiJi - l:t..., :r<l govcrnantc 0, sem dr.Ivida, iilSLljJUrl:'rl' t'l

Outra forma de crstigo exemplar t:mpi'Cgada sobre quilom­hohs c·r:t o curte de orc~lhas. e ,,,.., .st·nhores solicitavam :.ro

guvcnudur '' dircitu de c·:-:crc0-lt, sulnL~ os scus cscravos fuj<'>e .'i . l lrn:r ordcm de 7 dl' nur,·o de 174 1 detenninava que os ncgrus ;rclt:tdus L'Ill quilumbus, c·st:tndo nclcs vulunt:rria ­mentc, tt'ri;tm urna da . .., t>sp:'r,du:rs m:trcadas com a lctra F, e scndo cncunlr:rclos pel:r st·grrrrd:t ITZ com csta marct, teri:rm uma orelh;t l'llrt:rd:r. "scm 111:ri.s pron~s.o.;o CJl.lt' :r notoriedad e do I;Ito" Como de reslo e m loci:Js as suc inl:rdes d e Antigo l\cgime, o corpo do infrator - aqui, e.scravu - expunha pl'Ii)lica e espct:Icul:rrmentc os sinais cb inf5.mia, para que todos ficassem cientes dos horrorcs que cometera e bem ins­truiclos sobre o que aconteci:r :r quem trilhasse igual caminho. Quando as normas come<; ;rvam aincla a se estabelecer nas Minas. Assum:n dcte rminava :HJ Mestre de Campo Pascoal cia Silva Cuimar;'tes- o mcsmo a se envolver, no ano seguinte, n:r snli\,·:ru --- que·, no :naque :1 quilombos, us Gtpitaes~do~mato dcv<.eri:rm tt·r" ctiid:rdu de tuz<.erenl alguns negrus VIVOS "em que se l·:t\,':1 t'Xt::IIlJll""'" Sc· 1udos fossem massacrad<>S nas lonJur:Is do scnalJ , " JlllVU de na cLl s:1beria, ou , sabendo, nac> tci·i:t vistu :1 mort:rnd:rde. 0 cxcoinplo tinha, pois, estc objetivo de tomar visfvcl a infr:rt;:io, liJscr<.evendo·a no corpo do criminoso.

C) VADIOS

Os vadios eram urn grupo infrator caracterizado, antes de

mais nacla, por sua forma de vida. Era o fato de nao fazerem

nada, ou de nacla fazerern de forma sistematica, que os tornava suspeitos ante a parte bern organizada da sociedade. Pur nau

terern la<;:os - familia, dornicilio certo, vinculo empregaticio - constituiam urn grupo fluido e indistinto, dificil de controlar

e ate mesmo de enquaclrar. Passaclos o.s primeiros tempos dos descobertos auriferos, quando, como disse o jesuita

Antonil, os arraiais foram "m6veis como os tilhos de Israel no cleserto",30 a itinerancia passou a ser cada vez menos tolerada. Em 1766 surge contra os vadios das Minas a primeira investida oficial de que se tern noticia: uma carta regia clirigida em 22

de julho ao governaclor Luis Diogo Lobo da Silva, e incisiva na condena<;:ao cia itinerancia dos vadios e da forma peculiar de vida que escolhiam. Tais homens, dizia o documenro, vivem separados do convfvio cia sociedade civil, enfiaclos nos sertocs, em domicf!ios volantes, ou seja, scm residencia fixa. Isto nao podia ser tolerado, e deveriam passar a viver em

povoa<;:oes que tivessem mais de cinqi.'Ienta casas co aparelho aclrninistrativo de praxe nas vilas coloni;,tis: juiz ordin:.irio , vereadores etc. Uma vez estabelecidos, scr~lhcs~iam c.listribuidas

terr·as adjacentes ao povoado para que as cultivassem, c os

que assim nau procedessem seriam prcsos e tratados como salteadores de carninhos e inimigos comuns. ·"

Tres anos depois, a 25 de abril, o governador conde de Valaclares enviava a toclos os capitaes-mores e cornandantes dos distritos da capitania uma serie de unze i!lstru<;:oes que

determinavam a forma pela qual se clevcria proceder com rela<;:ao aos vaclios, visivelmente c:ada ve z mais inc:omoclos.

Logo no inicio, ha uma curiosa distin<;~lO. reveladora da preocupa<;:ao corn a errancia:

Assim C]Ue chcgar a notfcia a cada um dus cumandantes 'I'"' nos seu.s distritos vivem ou assistein algurLs vaclios ou facino·-

rosos, vagabundos que transitan1, e niiu existente.•; nesse mesrno os prenderao e farau reculilei a ordem de S.Exa. na cadeia publica mais vizinha ... ·"

Cj')

Page 32: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

•" ·~

0 preso cleve ria se r inquiriclo sobre uma sc ri e de t6picos: se vivia com senho r o u patrao, se tinha "oficio (ou se ja , atividade artesa naD o u outro mister em que tra halhe, ou ga nhe a s ua vida", e, no caso de ser estra nho ao arraial, se estava nele residindo por a ndar "negoc ia ndo algum neg6cio seu, o u a lhe io" . Perguntava-se a inda se tinha molestia que o impedisse de trabalh ar , se era "ladrao, matador, revoltoso, escandaloso", se vivia em Iugar despovoado, sem cultiva r a terra ou torna-la uti! de a lg uma forma, o que se ria, por exemplo, "rancho para a hospitalidade dos viandantes". 0 curioso destas instrw;;oes e que reve la m a fluidez da soc iedade mineira setecentista: ha um cuidado extrerno e m alertar os comq.ndantes no sentido de prendere m vadios verdadeiros, nao se fiando e m acusa-;:oes falsas de inimigos, averiguando se, d e faro, as pessoas tidas por vadias nao dese mpenhavam algum tipo d e at ividade uti!. Comportame ntos desviantes e m pessoas com oficio clefinido e ra m considerados irrelevantes. 0 obje tivo da instru-;:ao, diz o texto, nao era regu lar procedimentos particulares "enquanto estes nao ofendem ao pt:iblico". Ta mbem os crimes cleve riam se r ju lga dos co m cuidado: desocupaclos que roubassem, fizes­sem toea ia, desafiassem terce iros, provocassem ferim e ntos graves -- ou mesrno !eves, desue que fe itos de n oi t t: -se ri a m presos. Mas ho me ns "bem morige raclos, que vivem co m sossego" e que "por caso acidental clelinquiram" - rnesmo se provocando mortes - nao se ri a m punidos pelas disposi<;oes cia instru <;ao, pois seu ob je ti vo maior e ra mesm o a exti rp a~·ao d os vac.lios e fac in o rosos. A (J!tima inst ru <;:ao , a 1 P , e incisiva no se nticlo de clistinguir o bom e o mau s t:iclito, e merec e ser· transcrita na integra:

Devem os comanclan tes raze r que de noite nao andem vadios faz enclo disturbios pelos arraiais clos seus clistritos, porem ncio devem impedir· que andem de noite aque/as pessoas que vao a net:;6cios precisos, nem os criados ou escravos, que uiio a algu rna parte. por ordem de set.ts amos e senhores, nem aquelas pessoas que andarn uiajcmdu, pur que cia pri sao ou reten<;:ilo clestas se pocle segu ir gravfssi mo prejufzo na clemora etas con tas , e cia entrcga, e encomendas, que levare m ou reca clos que forem mandaclos.J3

Ta is caute las .sugerem que muitas vezes e ra diffcil , nurna socie­dade de secl im entayao recente e de alto g rau d e m esti pgem,

100

separar o infrator do bom st.Jcli to: como c.life re nc iar us criados e escrauos clos bandi cl os e fac in orosos' Suge re m a ind ;:~ que, de noit e, tudo podi;:~ aco nt ccc r: cr:t csr.c o mome nto p rop icio ao crime, na forma ret! o11 im :tgin;:iria . Toclas as socicci:"Jcles de Antigo Regime teme ram qu e . de no ite. co isas te rrivc is aconte­cessem. ·''1 Quem andava de noire, portanto, era suspeito em potencial, e pod ia se r confunclido com vadios e facin orosos .

Ate a decada de 70, as a utoridades se preocuparam mais com o modo de vida marg inal dos va dios e com as fo rmas poss!veis cle conrrola-los do que com as alternativas para a sua utilizayao . Corn o apro funcl ame nto cia c rise a urife ra , po rern , surgiu a necess iclade de trans fo rmar o "peso inutil cia te rra" em cle mento (nil a o rcl e m ptlblica . Neste contexto, cresceu a ideia de qu e os vadios pocleriam se r ut e is. Seu principa l defensor foi o gove rnador IJ . Antonio de Noronha, qu e e m carla ao vice-rei marqu es do Lavradio clesaprovou o recruta­mento destes desocu pados para as guerTas contra os castelhanos, ao sui , e defende u o se u e mprego numa ser ie de ati vidades inadequadas ;l m?to-de-obra escrava o u ao bra nco de maior qualidade 5

' As ideias de D. Antonio foram ce lebrizadas pe lo desernbargador Te ixeira Coe lho, qu e foi ouviclo r ern Vil a Rica, trabalhou e m estre ita colabora<;;ao corn o gove rnante e escreveu a excele nt e Instnr,:ao para Cl p,ouern o da Capitania de Jl1inas Gerais, que se costtJma dat :tr ell' 1780 . C: it emos o desernbargaclor:

().s vadios s;io o ()clio de 1nd a .s ;1s n ;H,·f)~S civ il iz;tdas, <.' co nr r;~

ele~ se tern n1ui1:1s Vt'Z< 'S leg!s\adn; porCrn as regrr1 s cnn1uns

re !a ti vas a e~l<.; ponto nao pode 1n ser aplicjvei~ en1 roda a sua

t'XtenS:io ao lerr it6ri o lk- Minas, ro rque estes va clios, que em outra parte ser iarn prejudicia is, ser i3 m ali Lite is.·\6

Ganhava corpo , ass im, a ide ia cle que o peso morto clos vad ios poc.lcria se metamo rfosear e m utilidade.

.Ja e ntra ndo pe la clecad :1 de RO - a decacla qu e ve ria a lnconficlencia -, D . Rodrigo J ose de Me nezes continuou defendendo a rolit.i ca de lltili i'.: l\::-io dos desocup<!clos com vistas :1 neutraliza r o onus p o tenc ial que re prese nta va rn . Para tr<~halhar nas consr rw;oes do presid io do Cuie te, o gover­nante mandou prendc r os \'adios q ue se enco ntrassem por rocla a capi rCJni a e os re me tc u pant Iii, "fa zendo deste modo com pouca despesa aq ue la impnr1a nte o hra , e pu.rp,ando tarn be m

]()]

Page 33: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

' r

:1 soc·ied:tde ctvt! de>.' p cr turh:tdun:s deb". " Seu s ucessor, Luis da Cutl!Lt Menc·le.-,, u F<~llj{unio ;H/ni'siu, renut o u v:ldtos a fur<;;t c cktt•t-tllin"u que tr:;IJ:tl l>:tssc m net constru<,·ao cia Casa d<~ C:ltnau c C:tdc:t:t, tncutnortusc :tnd o , mais unu vez, o o nus dos vadios em utili chdc', mc·.,rno .se circunstanciaL"

v

Enquanto c:t~·av:tm indios bravos, quilom!Julas uu vadios fujc)es , os homens bern murigeraclos cias Minas iam construindo a icleia de in cu n ficl enc ia como insubo rdinac;ao. No inlcio cia clectda de 70, as auto riclades se queixavam dos indios aldeaclos que, e m conluio como capitao Antonio Cardoso de Souza­sertaniset a servir;o cia Coroa -, ocultaram descobertos de ouro. Para a ave rig ua,·:io dos fat os, proce deu -se a sumariu extra -o ficial, que o c:tpit:to-regente do Cuiete - onde se pas~ara o :tcontectmento enviou a o conde de Valaciares. Num:t c·ana :tne xa, acus:tv:t Cardoso de Souza de !nconfi­dcJncio , pois clevc ndo , "por qualicladc de sua obriga-;ao", servir cJ lwm pCthlico. Deus, a J!(ttri~t . Sua Majestade Ficielis­StJll:t, :tC:til:ll-:1 :tgintic> Ul!llr<l <: it'S ' ''

1-:rn :rgosl< > rk J77(J c·st<Juruu un1 e pisr) dio curiosissimo, ucurritlo cerct cit: quinzc :tnus :tnles no C: u rvelu , o u Santo Antonio do Curvelu, vil:t situ:td:t no centro de Minas, entre u rio S:io Fr:trKtscu e u riu das Velhas. Denuncia::; apontavam que, pou co tle pu is tla ex puls:iu dos J<:'Suitas , v:irias pessoas comentararn, revol t:tdas, qu e D. jose I e seu ministro Pombal :tgiam cle forma auturit:'tria e incunccbivel ao cxpulsarcm us je.,uita s . rt~fcrinclo - s e :linda ;,s cxe cu~;~c'>es co ntra Tavoras e demais nwmlno., d:t nuhrc;.a lusitarJ:t. Vale a pena cit:tr trc' cho s cbs den(tnci:t.'o ''() ut: c> d ito sobcranu Monarc:t e ra qtul uutro, uu pi<JJ q ue Nt·nJ = Que pur es t:n dernente, o u p:tlc'Li , sujc·it:t v:t <l d e sputistll<J du se u governo au ilume m ma1s c-ruc·l du mundo. qu:tl cr·a c> llustrissimo, c· Exce le ntissi mo fVl:trqu(·s de l'urnl x t! = Que· fur:t tiranict guntl e u ex terminio ci<ls jcsuius, pur s erem uns hume n s in ocen tcs, que nao tinl!am dt'linq('tidu em coisa algurn<l, us rrui::; doutos, e as luzes du Mundo; :ts qu:ti s , cum o dito ex te rmini o, se haviam acabado, junt:tmente Ullll as ciencias, vinudes, e riquezas

102

dele ... " Havia um tom jocusu e debochado no cpis6clio, pois consta que, n a epoca, v:1rias cartas fa lsas circularam pela capitania, algurn;Js dela::; em nome do Papa. Este, mui to bra vo, dirigia "rt~ preensao escancialosa e clesaforacia" a D. Jose I, ciizencio:

Extatico e admirado da crueldade com que Vossa Ma jcstade castigou a· esses pobres fidalgos, cuja barbaridade s6 sc viu nesta Cidade de Eoma no tempo de Nero, e Deocleciano, e em Re i cat6lico tal se nao viu, porem se Vossa nao razao, no Tribunal Divino se """'·l.(U<ll<l ...

tcve o u

D. Antonio de Noronha manclou procecle r a clevassa, e sairam incriminacias 16 pessoas, das quais 15 foram presas e remeticias para o Rio de Jane iro , oncle, ap6s urna estacia na Ilha cias Cobras, seguiram para Portugal. Na Metr6pole, parece que as culpas foram consicicraclas irrelevantes: em janeiro de 1778, D. Antonio recebia ordens para devolver u,, bens sequestrados aos presos do Curvelo e soltar os que se encontravam deticios na cadeia locaL 11

Os principais acusacius da Inconficlencia do Curvelo forarn um clerigo , o vigario Carlos j ose de Lima, e um antigo ouvidor da comarca do Sabar{t, o Doutor Jose de Goes de Ribeira Lara de Muraes. Muitos outros padres estiveram incriminaclos , e es ta combina-;ao de religi osos esclarcciclos e rnagistrados clescontentes faz pensar na composi<;·ao social clos revoltosos d e 1789. Apesar de n ;lO clispo r d e bibliuteca que se compa-­rasse a do cCmego Luis Vieira cia Silva, futuro incon fide n te, u vigario d o Curvelo tinha, como e ntao se dizia, livrari a consi­cle-ravel, se bem que versacia sobretudo em assuntos re ligiosos.

Nos vin te anos subseqiientes, os ilu strados clas Minas, "guiacios pelas luzes da razao e pelos cunhecimentos que ministram as hist6rias"; sabendo, como le tr·ados, -sao palavras de Tomas Antonio Conzaga- que "a oc:tsiao mais oportuna pa ra urn Jevante e aque]a e m q ue Se altc ra m OS a nimos dos vassalos ", ciesenvolveram u h(tbito das reuni ucs clomcsticas e clas co nve rsas diarias. Nes ta s , e ntraram, certamente, cogitac;oes sobrc a situa-;ao tensa, que nas Minas extrapolava a quest1o merame ntc fiscal e dizia respe ito , sobretudu, as forc;as ciesagregacioras, aos agentes da clesorciem, aos acleptos de uma contra-soc ieclacie que desprezava o d o micilio fixo, a

103

- ----~---------------------------------------

Page 34: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

familia nuclear, o trabalho sistematico, a propriedacle privada, enfim os valores que a parte melhor constituida do corpo social reverenciava como essenciais. A situa<;;:'to explosiva da capitania tornara-se evidente nao apenas para os governantes, para quem a continuidacle da domina.;:ao colonial exigia urgencia em encontrar solU<;:oes. Os escravos negros sao protagonistas do Canto Genetliaco de Alvarenga Peixoto, e na 4• clas Cartas Chilemu ha simpatia e solidariedade para com o sofrimento clos vadios obrigados a construfrem a Casa cia Camara e Cadeia . Se os negros se sublevassem ou se os vadios tivessem consciencia de seu peso, voaria em estilha<;;os o mundo restrito dos homens brancos, entre os quais se achavam

os inconfidentes.

VI

Memhros c!a elite mineira, OS inconfidcntcs nao foram apenas, como quiseram tantos historiadorcs - entre eks, mais recentem c nte, o hrilhante Kenneth M;1Xwell -, alguns inte lectu<Jis icl e alistas que sonharam com a emancipa<;c'io politie<l, nem colonos corruptos e endividaclos que procuraram, na sedi<;ao, uma saida imecliata para dificuldades pessoais . Descle 1717, pclo menos, falava-se de revolta em Minas, seja do laclo do poder estabelecido, seja do !ado dos colonos descontentes. No tempo de Assumar, a revolta era vista como natural, ou seja, an{tloga aos fenomenos da natureza, uma vez que clesencadeada e, irrefreavel. Comparada a borrasca, era tambem excepcional, pois intemperies nao ocorriam com frequencia. No decorrer do seculo, passou a ser vista como coticliana, pulsando nos quilombos, nas andan.;:as desordenaclas de vaclios, na desobediencia de indios semi-domesticados. Antes de 1736, circunscrevera-se no ambito dos potentados, que as autoriclades metropolitanas se esfor<;~:wam por domar e alquebrar; o emblema deste momento talve?: seja a

altiva de Dona Maria da Cruz tal como se ci~sde () n-~rte de Minas -

no cora<;:ao aeE1s, . na Vila Rica onCle flcava A partir da decada de 40, a revolta se infiltrou nos intersticios do teciclo social, fazendo corn que os capitaes-generais das

104

T Minas se vissem as voltas corn uma guerra surda que fustig:wa simultaneamente varios flancos.

1776, no Curvelo, inaugura-se uma tcrceira possibilidacle de revolta nas Minas. Enquanto governaclorcs mat:wam indios c quilombolas ou prendtam vadios par<l, com cles, empurrar a fronteira interna para leste ou para oeste, homens lctrados cliscutiarn ideias, apoiavam os jesuftas, criticavam a Monarquia -como ;1contcceu no Curvelo. 0 temor do peso social, aliado <to poder de fogo das icleias ilustradas, atcrr:1ria as autoridades. Tendo al<;acla, desde 1775, para sentenciar nas Minas OS reus de inconfic!encia,·o governador D. Antonio cle Noronha, que era tamh(~ fTl presiclentc cia Junta de justi<;a, rcsolveu manclar para Lishoa os secliciosos do Curvelo. "Me horrorizarn tanto as sacrilegas, blasfernas e secliciosas palavras que temerariamcnte proferiu o primeiro clerigo, as quais sc provarn dos autos, que me n:lo animo a convocar os mintstros clcsta capitani ;t p:u;J um:t junu, ondc os mcsrnas sedir:iosas jwlauras se hrln de f(lzc r p1ihhcas nos termos do proccsso (' cia defesa que se dt:vt· cLtr dos rC·us", cscrevia o governaclor ;I Pombal a 1<1 de c!ezcmiJro de 1776 . F terminava "Qucira V. Excia. rersuac.lir-s e de que eu procttro e me cmpcnho em scrvir a S. Mgclc. com aquela horHa e /.elo que ckvo; c se :tcaso errei ncsta materi:t, .foiporquc a grauidadc del(/ e . .,·cedc a minha capac/dade

Em 178'), Tiradcntcs pregava pelos caminhos que o povo das Minas fic;tva pobrc, sem nacla de scu, enquanto Portugal sugava todo o seu ouro c e nriquccia. Todos ouviram, toclos souberam que se conspir:tva, c muitos clcpuseram na dcvass: 1,

comprovando :1 publicidacle das p;ri:Ivr:~s scclicios;t-;. Tamhem a dcvassa foi pt'tblica, como publico e exemplar foi o suplicio, e publ~c:amente ainda se celebroun fracasso cia conspira<;;:lo, pencluranclo-se no te to cL1 igreja m;;triz do Hio de J;tneiro um emblema que transformava o indio bravo da fron~eira do rio Doce, ou o indio ja brasileiro da bandeira idealizacla pelo.s inconfidcntes, no indio docil que, de joelhos, reverenciava Dona M:1ri:1 I, a Mon;uqui:t Portugucs:1, o Imperio Colonial.

A prega~,:~n de Tiradcnrcs co cxcmplo do suplfcio calaram funclo no imagin<'trio cln.s mincirns Em l7')k, no :lfT<li:ll clo Calhambau ou Clih:lmh:\() , fregtwsi;I de Guarapir:1ng:I - pr<l ­ximo, portanto a i'vLtrian:t - -" s;t.rgento-mor i'vLtnucl C:Ictano

lOS

-------------------------~-- ·· --· -

/

Page 35: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

Lopes de Oliveir:1 viu-~e atdc:Ido por pasquins afixados nas ruas do lugarejo fndig11auo coin as injurias neles proferidas, moveu processu cuntu us pretcnsos agressores, o alferes Domingos de Oliveira Alves e seu c:1ixeiro, Raimundo de Penafort, que acabaram absolvidos por falta de prova. Nos pasquins, Manuel Caetano era acusaclo de ter siclo inconficlente dez anos antes. Em versos rCJstil·us pr6prios :1 cultura popular, o sargento-mor reconhecia o crinw

ceus, espanto! F.u o meu delito De ser falso ct solwrana E a mcu Deus infinito

Fortes cngl-Jri:ts (agrurasn eu passei

F todos ns mvus p :-t rent.es F tod{J." n< -J.'i padtTt'JJH)S

Enf<Jn_·ad<) (J Tir:1den!es

Esus disurdcns ftc :t

Cun1u ~~ boruct CbuLtcor> du rato

Cheguei n u 1\iu clc .J:tnciro 1\ Sl'J' vnrurc:Jdo t:m t'SL\tua

Tudo isso foi prcciso

Para o exe1nplo do nHJndo

Abateu-se a soberba Castigar-nc:.')s todos juntos

Para que, no futuro, n:-Jo se repetissem as insolencias dos colonus, o autor do pasquim pregava a repressao e a denuncia:

roc,

No jardim s<"> cornpe le Que nas,·a a tnelhor lie"

0 senhur M:muel Caeunu Ficuu hun1ern scn1 valor

Quem eou neLS c·SljUinas achar espalhe tus Mitus Gerais que rnorra Manuel c~H.':iallu

viva a r:J.inh:J. de Portug a l.'1'1

A existencia deste pasquim sugere a de muitos outros que, como ele, amea<;"ariam os revoltosos potenciais com a forca, pregariam a puni~'ao do desacato ao monarca nos moldes do suplfciu de Tiradentes. Dez anos ap6s a pris:lo dos presu­midos conspiradores, quando alguns deles ja haviam morrido e os demais amargavam o exflio ou engordavam, distantes da tensao social das Minas, denuncias d e inconfidencia ainda amedrontavam os habitantes da capitania do ouro. Os pasquins detratores indicam que, para a Metr6pole, o suplicio nao fora vao. Em outras paragens, as revoltas podiam estar deixando o segredo das reunioes clumesticas e ganhanc!o as ruas, como o levante que, naquele mesmo ano de 1798, os baianos promo­veram em Salvador; mas a coen;ao, a violencia, a represen­ta<;"ao emblematica do poder ainda calavam fundo nos animus dos mineiros , sendo capazes de disseminar o meclu e trazer , no seu rastro funesto, a desagrega<;"ao do tecido social. A dela~:ao era a medida miuda deste estado de cuisas, a contra­partida dolorusa das secli<;:oes informais que sacudiram Minas durante quase um seculo, o indfcio revelador do enraizamento cotidiano da revolta e da sua nega.:_:ao. Na Inconfidencia -revolta formal - a dela<;:ao se t1ze1:1 secreta; no dia-a-dia tenso das revoltas informais, nos pasquins pregados nos muros das vilas, cia se fazia publica.

NOT AS

(Publicado em NOV AIS, Adauto (Org). Tempo e hist6 ria. Sao Paulo: Companhia das Letrus, 1992 p.]47-366.)

' "Mandado para execw;:ao da pen a imposla a Joaquim Jose da Silva Xavier". ln: Autos de Devassa da lnconjldencia Mineira. Rio de Jane iro: Ministerio da Educa<;:ao e Cultura, 1938. v.VIl. p.241

In

'Citado pur SOUZA, Laura de Mello e. Desclassijiccuius du oum. 2.ecl. Rio de Janeiro: Craal, 1986. p.91.

' Carta a Martinho de Mello e Castro, in "A justi<;a ru capitania de Minas Cerais", J<evisla do Arquivu Ptib/ico Mineiro, IV, p.3-82, p.4, 5, 1899.

107

Page 36: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

1 ARQUIVO Publico Minciro, Se<;ao Colonial, c(Jdicc n.11, f.47 et se q VEIGA, J. P Xa vier cia (Eel.) . Discurso hist6rico e poUtico. !3elo Hori?.onte Oficial de Minas Gerais, 1898. p.S. PEREIRA, Nuno Marques. narratwo do peregrina da America. Rio de janeiro: Acaclemia I.etras, 1930. Para as re la<;oes entre demonologia e politica, vcr CLARK, Stuart . Inversion, misrule ancl the meaning of witchcraft. Past and Prescw, 87, p.88 - 127, 1980

6 Sobre a sedio;:ao, rnuito pouco esrudada, ver ANASTASIA, Carla Maria Junho. A sedi(:do de 1736: estudo cornparativo entre a zona dinarnica cia minera<;ao e a zona marginal do sertao agro-pastoril do Sao Francisco. Departamento de Ci<', ncia Politi ca, UFMG, 1983. (Dissertar;:ao, Mestrado ern Ciencia Political

' A discussao acerca dos levantes do Antigo Regime e vastissima. Pcnso, aqui, ern quesroes levanradas, de forma diversa, pelos seguintes aurores MOUSNIER, Rolancl. Fureurs paysannes. Paris: Calmann-Levy, 1967: PORCHNEV, Boris. Les soulevements populaires en France au XV!f' siec/e. Paris: Flamarion, 1972; ELLIOTT, J. H. eta!. Revoluciones y reheliones de Ia l:uropa Moderna. Alianza, 1970; MANDROU, Robert. Classes et tulles de classes en France au debut du XV!f' siec/e. Florenr;:a: Casa Edirrice G. d'Anna, 196S; RUDE, George. Revue/ Ia populary consciencia de classc. Barcelona: Editorial Criri ca, 1971; VILLARI, !{osario . Rebeldesy refor·madores del siglo XVI a/ XV!fl

Barcelon<J: Ecliciones d e l Serbal; !3ERCE, Yves-Marie. Revol!cs et reuohuions dans !'Europe Moderne- XVI'-XVIII' siecles . Paris: PUF, 1980; ZAGORIN, Perez. Revue/las y revoluciones en !a Edad Moderna. Madrid: Cateclra, 1985. 2V.

""Prenuncios de uma sedi~ao"- carta de Marrinho de Mendonp de !'ina c l'roe nca a Gomes Fre ire d e Andrada. Institute Hist6rico e Geogr:Hico Ilrasil e iro, Se<;:?JO de Manuscritos , lara 10, doc. 16.

'' Notavel descri<;:i1o do epis6dio de Dona Maria da Cruz se encontra em VASCONCELOS, Diogo de. Hist6ria media de Minas Gerais. Ilelo Horizonte Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais. [1.122-129.

'" MAX\"qEJ.L, K. A devassa da devassa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

Rer)feo:ent;l<;:an do capitan Paulo Mendes Ferreira Campe lo ao gnvernador Nacional do Rio de janeiro, Se<;:ao de Manuscritos, c6dice n.l8, 2,

6, f.l 075, 927 e 953-959.

12 Relar6rio de Cardoso de Souza a Valaclares, Vit6ria, 15/9/1769 FlNRJ, SMs, c6dice n.18, 2, 6, f.1399-l400.

' ·'"Memoria do que se deve observar na derrota que tem de Antonio Cardoso de Souza para a conquisr.a do gentio, a

h:l de pr;lli ca r nesta imporrante diligencia. IlNR), G,

''Carta clo l'aclrc Manuel Vieira Nunes, vig{•rio do Cuicre, ao governado1 conde d e Valadares. BNRJ, SMs, c6dice n .18 , 2, (i, f.1489-149'i

"Ordens rea is clc 1745, Arquivo Publico Mineiro, Se.;;ao Colonial, c6dice n .il<l, 2'5 e m;lC;:o 27. Para ant e riorcs, ve r Carta Je D. Br;is

Silveira ao rei. APM, S.C., n .4, f. .'\71. Ver tambem ca rl a de

108

T I

.'6

:odas as cita<;:OPs em "Repr~senta un1 va~.salo amanrc da p;ltria e clese­

~o;'~1'1~1;3se propague a conqu•sta porruguesa "APM. S.C., c6cl•ce n .2 IR.

17

~·Q~1i:?mbos em ~inas Gerais" . Rcvista dn Jrzstituto f-list6rt"co e GeoP,rd(icn Brasrluro, v.VI, p .4.)4-447, passim, 1959 ·

:.~~1-rr~d;, ~:~~ra~o/1~S<' Cordeiro ao conde de Valad;ncs. J3NRJ, SMs, C<'>dice

10 "Coleya~ sum<lria clas pr6prias leis, cartas regias, avisos e ordens

v. XVI, p .331 -472, titulo I 'i, n.11 "RAPM,

""Batedura cle quilornbos" RAPM·, v. VIII, 1903, p .. 383·384

"-Carta de lnacio Correia Pamplona ao conde Je Va!adares cochce n . llJ, 2, 3, due . n .S · f:INRJ, SMs,

' ·' Pe tir;oes sobre ca!hambolas. A I'M, S.C., c6dice n.'i9, r 32v-Yl

l·i Esta cita y:d~) e a anterior encontrarn -sc em carta de Francisco Pinto Roiz J~sc ph Fcrre1r<1 de Souza, Bernardo Alz da Nc yva, Andre llento cb , ,. Jos0 cle Aime•cla ao conde de Valadares. BMRJ, SMs, c(>clicc n.lR, .'1. G, doc. ~ R2 2s Carta c6dice

da Silva Pontes ao conde Je Valadares J/S/1770 f:INI{f, SMs, 2, 5, sem numera<;an '

16 Ibidem 28/4/1770, doc. n.4

n APM, S.C., c6dicc n .67, f.55v.

'"Carta de Valadares. APM S.C. c6dice n 199 p 8-8 "C 1 .- · pr6priasleis ... ",titulol5,~.11, . , . v .. ne\',10sumari:Jclas

29 "Caru de Assumar ao Mestre de Campo Pascoal da Silva Guirnar~e.<"

S.C., cod1ce n.ll, f.163-16.)v APM,

'" ANTONI!., J~;lo Andre . Cultura e npu/(mcia do Bmsrl por sttclS

;;;l:~~a2~~~raSvaa~. Paulo: Companhia Editora Nacinn:JI. p .264 Untrod

:'>1 "Coler;ao sum3ri;t das pr6rrias leis, ca rt as regia::-;, avisos e ordens 1n RAPM, v .XVI

109

Page 37: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

' ·' AI\QUIVO I'(Jblicu Mincrru, Sc:v1o Colonral, c6dice n.l63, 151. Grifo meu

H V e r entre outros <_:;EFEMEK, Bronisbw . CriminalitC vag:abcJndage,

risnu~: Lt Inargin:tltt C ~~ l'auhc des te1nps rnodernes.

e/ Contemporauu.', XXI, p .. V11i, julliu- setelllbru 1s>74

' ' HNI\J, C'Ms, codrc·e 11 2, ,2 , 24, f. ~2 - 'S'l, carla Je 19-Xl-1770.

"'COELHO, 11 Teixerr:r. "lnstnr<;"aO para o governo da capitania de Minas

Gerais" RAPM, v.VIIl, pA79.

do governador D. Rodrigo Jose de Menezes sabre o estado de

da capitania de Minas Gerais e meios de remedi:i-lo". RAPM,

v .ll, p314-31')_

·'"GONZAGA Tom{~> Antonio. Canas chilenas. Sao Paulo: Editora Referencia,

1972. Tarqui~io Jose de Oliveira (Ed.)

"Carta de Paulo Mendes a Valadares. l:lNR_I, SMs , 18, 2, 6, f. 1104,

"'ARQUIVU 1-lrst<Jricu Ultranrarino, caixa 110, 11 .26, 'Tlevassa de lnconfidencia"

"1\NIZI, S~·b, c 6 dice 11.2, 2, 2•j , f.l4H--14\J

":\ll l:\1, , , VII , p.2'!2 29.l

"lJf'\I{J , SMs, cmJ rcc' n .!, 2, 24, f.67

"AIZQUIVO d,t Cascr Setecentrsta de Mariana, FNPM, auto 'il02, c6dice n.204,

2Y o ficio , 173H; cc1dicc n .224, auto 'S565, 2'2 oflcio. 0 pasquizn acha-se em

:tnexo a t'Sle ldtin1o

110

V!OUNCIA c rRATICA~ CUlTURAl~ NO COTIDIANO De

UMA cXHDI~AO CONTRA QUilOM~OlA)

MINAS GeRAIS, 1109

OS QU1LOMBOS E OS FAZENDEIROS DA FEONTEll\A

Os quilombos em Minas existiram durante todo o scculo XVIII, espalhando-se com uniformidade pelo territ6rio e assombrando incessantemente os habitantes. 0 puvoamento mal se seclirnentara, a regiao recebia o segundo governante, a burocracia enga tinhava e as cartas entre autoridades ja falavam do perigo dos aldeamentos de negros fugiclos . Tudo indica que eram numerusos no final do primeiro quarrel do seculo, e na decada seguinte j{t se s istematizara a forma de combate-los, nao se passando ano, ent:lo, sem registro das investidas armadas contra quilombolas, recompensando-se bern os capitaes-do-mato que apresentassem cabe<;:as de ne­gros rnortos em combate. Mas foi a partir cia decada de 1740 que o cerco se apenou de fato e se criou o habito de constitu ir , com base em contribui<;oes das Camaras e dos moradores , verdacleiras expecli<;oes belicas para vascu!har o sertao arras de quilombos. A popula<;;ao aumentava, o ouro ficava escas­so e urn numero crescente de pessoas buscava alternativas de sobrevivencia, clisputanclo com os negros fugidos terras

Page 38: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

mais fcrtcis e afasLtcl : i.~ do n(rcleo mineraclor, ate entiio deixadas cle !ado por causa d;~ k ine aurlfera. Por isso, o encargo pesac!o de financiar expecli<;: i'Jes c r:t :t ce ito sem muita delonga pelos fazencleiros estabelecidos nc ss:ts paragens, como form:1 de garantir a posse das terra s e , quando participavam eles mesmos cia guerra, conseguir <I recompensa de uma ou mais scsmarias, ampliando assim a explorac;:ao rural.

Para "alimpar" o interior e dar continuidacle ao povoamento de uma frente avanc;ada, houve em 1746 verdadeira guerra contra quilombos na regiao do alto Sao Francisco- zona cle cerrados, mais plana e propria a agricultura do que as escaq;as pedregosas da regiao mineradora e diamantifera. Situado entre Sao Gotardo e Tbii, onde ainda hoje existe uma povoac;Ao como nome d e Qu ilombo, o maior de todos era o do Ambrosio, e contra c le o govcrnador Jose Antonio Freire de Andrada -que substituia inte rinarn e nte se u irmao, Gomes Freire, conde de P.obacle la - e nviou quatroce ntos homens comandados pelo capitao Antonio Joao de O live ira. Apos uma !uta terrivel , que se arrastou por sete horas e na qual se usaram ate granadas, o quilombo foi arrasado, e muitos escravos feitos prisioneiros. 1

Houve c:alm;J por algum tempo, mas logo recruclesceram us mocambos de negros fugidos. Os LJZendeiros se queixavam de nao poclerem tocar direito cl vida nas suas terras, e a popula<;:ao em geral morria de mcdo, talvez fantasianclo um pouco sobre invasao de quintais, criac;ao roubacla, assaltos nos caminhos ou sobre a desonra de uma filha. Durante cerca de tres anos se arrastou a organiza<;:ao de nova forp. Afinal, contando entre seus quatrocentos integrantes com indios Bororo, guias negros, capelao, c irurgiao e botica, ela segu iu em 17'iSl para o quilombo do Ambr6sio, que ressu rgira. Consta que o pn'iprio governador t.rans ferira provisoriarnent.e p;.ILI

Sao fo:'to del-Rei a secl e administ. ra tiva, visando clesta form:t a ficar: mais proximo d o c tmpo cle operac;oes- o que ilustra bcm a amea<;:a qu e os quilornbos chegaram a represcntar' Durante mescs :1 c xpe di c;: :i o atacou e destruiu quilornbos, matanclo scus habit :1ntcs c aproveitanclo-se das roc;as hem plantadas c (los p :t i<"Ji s che ios de mantimentos; a guerra termin o u nos t'tltittius dias de clezembro e custou as C1ma ras

mais de :1 0 r11il ntt/.:Idos.

I 12

Pelo trabalho de "limreza", B;trtolomcu Bueno do Prado recebeu sesmaria de tres leguas ror um:1. em paragem que conhece ra quando clas anclan\·as atr<1s de quilombo no serr;to do Campo Grande. Era clessa forma que muitos agricultores futuros tomavam contato com as terr:1s que depois se tornariarn suas. Moraclor em Ttapecerica, Francisco Ferreira Fontes fora autorizado por Gomes Freire a combater quilombos por sua conta e risco, no sertao en tre o Lambari c o Sao Francisco. Gostou de certa paragem, clescrevendo-a como cle "capaciclacle paret se poderem cultivar [ ... ] para mantimentos como para cria<;oes e cavalaric;:as"; fixou-se nela, trabalhou-a e, quinze anos mais tarde, pediu e obteve sesmaria das terras. Depois de participar das lutas contra os negros fugiclos, Antonio cia Camara Portugal decidiu se estabelecer nos "matos incultos e bravios do scrtao cla Picada de Goias" 5

Os capdores de quilornbolas defendiam suas terras e ainda obtinham outras, novas, mas nem sempre os scnhorcs recuperavam os negros fugiclos; clos incont:1ve is que sc prenderam no assalto de Bartolorncu Bueno ao quilornbo do Ambrosio, consta que nenhum voltou a ser rropricdade do antigo amo: tidos clescle e ntao como extremamente perigosos, foram enviaclos para as gales do Hio de Janeiro.'' As rela<;:6es entre posse de terras e de escravos mostravam-sc, clessa forma, extremamente complexas e contraclit6rias. Sem escravos, nao se concecliam sesmarias aos requerentes, pois nao teriam como comprovar sua c:tpacidade em cu ltiv;1 -las; apesar disso, os escravos recuperaclos nao e ram muitas vezes clevolvidos ao dono, passanclo a servir :to Estaclo. Cac;ar negro fugiclo, por sua vez, ahri;~ n :1cesso ~ posse de tcrras, garantinclo igualmente a continuidaclc clo tr:1halho rus f:1zenda.s antigas , que, acossaclas pel:1s irl\'cst iclas quilomholas, n:1o conseguiam prosperar. Tu do indic1, pnrtanto , n;1n scr :1pcnas por cuidado com a ameac;a de revolta ou por temor ante a possibilidade de os negros assumirern o comancio cia socie­clade que se batiam os matos atr;'t.~ cle mocambos. Tratava-sc cla continuiclacle e da sobrevivencia da explorac;:ao agricola nas zonas afastaclas, e ainda do acesso mais ou menos livre as terr·as, abundantes naquela situac;ao de fronteira aherta.

Nos sertoes cle Minas, re editava-sc portanto a pdtica antiquissima de recompensar corn te rras o nnssacre cio aclversario religioso e cu ltural, presa dos europeus n:1s Cruzacl:1s r· dos

115

Page 39: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

ihcricos rn Reconquisu da Peninsula_ Motiva<.,·oes econ6micas , poliricas, socrats <~ culturais l~IICCllltr· arn - se, poi::;, na base cia vrolencia c·resc·enle dos hrancos (c de seus agentes) contra os ncgros fugidus n~1s deGld:ts de 1740, 50 e 60. Este Cdtimo periodo - us anos 1760 - lui co incidentemcnte um dos momentos ern que ruais se concederarn sesmarias em Minas: entre 1764 e 1768, o gove rnador Luis Diogo Lobo da Silva concedeu um total de 362, o que cor-responde 3 media anual de 90,5; jose Luis de Menezes, conde cle Valadares, sucedeu-o no governo e, entre 1768 e 1773, concedeu 443, ou seja, 88,6 a cada ano_ 5

Apesar de a dinfllnica propria a capitania aurit-era ser capaz de explicar o incremento das doa<;:oes de terras e o empenho em empurrar a fronteira para oeste, cabe lembrar o sentido tornado pela explora<;,:ao colonial desde os ultimos anos do governo d e D. Jo;lo V, quando as duas potencias ibcricas arquitetaram o Tratado de Maclri. Num momenta em que os ingleses da America do Norte continuavam agarrados :1 costa leste e os espanhois se satisfaziam com o controle do~ altipLmos conquistados durante as investidas do primeiro seculo de coloniza<;:ilo, as preocupa<;:oes geopoliticas clomi­navam a aclministra<;:ao metropolitana, mais do que nunca a p:utir da ascensao do ministro Sebastiao Jose de Carvalho e Mello, depois marques de PombaL Afinado com a tenclencia do seculo, que via o aumento demografico como um dos ele­lllentos mais significativos cia riqueza das nar;:oes, Carvalho e Mello se ernpenhuu 11:1 pulitica de multiplicar os povos da co16nia, sobretudo nas front~iras, onde eram a base impres­cindivel i1 defesa territoriaL 0 empenho em povoar a fronteira sudoeste da capitania de Minas, portanto, nao dizia respeito a uma politica regional, clevendo ser compreenclido no quadro mais amplo do esfor<;:o pombalino em povoar a America Portuguesa a qualqu e r pre<;:o - fosse com im1ios e mesti.;·os, que, no cli ze r de um conselheiro do ministro, tambem sen-'iam -- "toclos s;-10 homcns, e sao bons quando bern govemados" -, fusse c·om Glsais de ilheus, que, de fato, invacliram a regiao do alto e medio S ~1o Fr-:1ncisco na segunda metade do seculo XVIII.'~

Foi jusramente essa a parte cia capitania onde o confronto de agricultores potenciais e quilombolas se manifestou com maior intensiclade, assim como a que huje mais propriamente se conhece como Triangulo Mineiro , Foi tambem, pelos motivos

114

expostos, onde proliferaram os quilombos: por todo o perfodo, o do Ambrosio ou do Campo Grande; e aindJ. o de lncL\i{t, Pedra Menina e Abaete, em 1768; ode Paraibuna, em 1769; cJ

de Bambui e o de Tamandua, em 1770 7

UMA PERSONAGEM: INACIO CORREIA PAMPLONA

Na seguncla metade do seculo XVIII, essa regiaoc era conhecida pelos nornes genericos de Campo Grande, Sertao cl; Bambui, Picada~ de G()ias: A dific~_ddade em precisar decorre da propria indefini<;:ao dos limites da capitania, entao ainda muito fluidos apesar dos esfor<;:os anteriores de Gomes Fre~n::_ cie _1\ndrad~e deLufs DiogoLobo da Silva en1 ~~t~belecer as fronteiras com maior rigor. Este ultimo governante chegara a realizar uma expedi<;:ao e percorrer "as raias da capitania" para, pessoalmente, verificar os pontos em que as divisas deveriam ser guarnecidas e cercadas com registros e vigias, assim garantindo a cobranr,:a mais adequada dos quintos re ais. Acompanhado de seu secretario de governo, Claudio Manuel da Costa, Lobo da Silva percorreu 356 leguas em pouco mais de tres meses, voltando convencido de que existia ouro para os I ados cla Picada de Goias-" Empenhado, como seriam tambem

seus sucessores, em aumentar os rendimentos aurfferos cia Coroa por meio de novos clescobertos e, ao mesmo te mpo, "abrir novas dire<;:oes ao excesso de gente ociosa, qu e vivia sem meio de trabalho nas vilas e arraiais antigos", o governador conviclou para tal empresa Inacio Correia Pamplona, encar­regando-o de formar uma expedi<;:ao com pessoas interessaclas em se estabelecer "na zona do Campo Grande e alem da serra da Marcela"_ A companhia partiu, e a 1 Q de maio de 1767 Lobo da Silva assinou as primeiras vinte cartas de sesmarias expedidas a colonizadores do oeste mineiro. 9

Inacio Correia Pamplona nascera em 1731 na ilha Terceira, bispado de Angra, filho legitimo de Manuel Correia de Melo e Franc:bca Xavier Pamplona, Antes clos trinta anos se tornara cumerciante no Rio de Janeiro, logo passando a trazer merca­dorias para Vila Rica e Sao joao del-Rei. Fixou-se nessa vila e trabalhou conief ccibtador do Contrato das Entradas no tempo em que foi caixa jose Alvares Maciel, o pai, depois capitao-mor

de Vila Rica e, junto com o fil]:w mo<;:o, reu da devassa da

115

--------~----~----------------------------------------------------------------~

Page 40: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

Inconficlencia. Nao se sabe quando, ao certo, casou-se, como tantos portugueses, com a mulata ou negra forra Eugenia Luisa cia Silva, filha de pai incognito e de Teresa Francisca S:intarem, \ natural cia costa cia Mina e depois forra ela tambem. Ell11765, ou, segundo certas Fontes, urn ano antes, ja anclava desbra-· vanclo sertocs nas nascentes do rio Sao Francisco, exterminando indios, quilombolas e se instalando perto de Bambui num Iugar chamaclo Desempenhado, que recebera, alem de outros sete, como sesmaria pelos scrvi<;:os prestados. 10

As sesmarias doadas em 1765 tinham todas tres Jeguas de terra em quadra, ou seja, nove leguas quadradas. 56 a do Desempenhado estava em seu nome, porque pedira as outras sete para os filhos e filhas, apesar de administra-las todas e, ao Iongo da vida, vender tres delas. Extensoes de tal monta s6 sc concecliam, desde meados do seculo XVIII, no se rtao ou "deserto" alem do Sao Franciscon Em pouco tempo, Pamplona tornou-se o maior potentado daqueles sertoes; tinha aincla as fazendas do Menclanha e do Capote, no atual municipio cle Lago::J Dour::Jcla; a do Candarai e o sitio do Mat.ozinhos, perto de Saojoao del-Rei, onde faleceri::J em 1810 com 79 anos. 12

Depois de 1765, Pamplon:l realizou rnais cinco entradas naquela · regi:lo, uma clelas, a de 1782, atacanclo os indios Caiap6. Apcs;H de nao se ter registro de toclas as expedi,:<'Jes, devcriam ser, como era entao de praxe, for<;:as bern armadas e de comrosi<;:ao variada, contando entre seus membros corn indios rnansos c ncgros fiCis que, no sertao desconheciclo, fa ziam as vczcs de e de_g_u_ias.

Mas Pamrlona nao se tornou __ celebre pelas ativiclades desbravadoras, nem pela confianc;:a nele depositada por todos os governantes das clecadas de_U6.D, 70 e 8_0- exce<;ao feita a D. Antonio de Noronha:-qu~- lhe votava profunda antipatia. Ele e conhecido, antes de tudo, como o terceiro delator cia Inconfidencia Mineira, prececlido no ato vi! por duas pcrso­nagens sinistras, Joaquim Silverio dos Reis e Basilio de Brito Malheiro, tambem po.rtugueses. Amigo intimo e vizinho do

. padre Carlos Correia de _Tol~Q£L Parnplona fora por ele convidaclo a participar d~-levante, tendo, na ocasiao, se ajoelhado e erguido as maos para o ceu, dizendo: "Deus assim o permitira!" 13

116

Denunciou de forma muito sucinta a 20 de abril de 17H9 parecendo esconder alguma coisa. 0 visconde de n:nbacen:; nao se deu por satisfeito, e pecliu-lhc que 3umentasse c ratificasse a denuncia, o que foi feito a 30 de maio. Tudo indica que, entao, Pamplona falou ern particular corn o governador, contando tudo o que sabia em troca de prote<;:ao incondicional. De fato, quando os devassantes do Rio de Janeiro, Marcelino Pereira Cleto e Jose Pedro Machado Coelho Torres tentaram obter urn depoi~ento seu, o governador acobertot; uma viagern ficticia que teria feito a serra da Canastra em missao oficial, atras de diarnantes; descoberta a fraude, e convocado novarnentc a dcpor, alegou determina<;6es c!e Barbacena "que o impediam de obedccer". 14 Relatando o epis6dio, Pereira Cleto escreveu:

Por estas razcSes se n~o tiruu por testemunha o

lnacio Correia Pamplona ; em Vila Rica por na

de que ele tinha jA p ;111iclo para a dita serra cia Canasrrot , L' no Arraiod

da Lagoa Dourada, porque ele nao quis obeclecer a norifica1·;t 0 , c dcu as insuficientes razc)cs, que constan1 da sua cu1a . 1 ''

Dessa forma, Pampl o na csca pou cl:1 conclc na\,· :10. AtC· o f11n cla vida, bajulou autoriclaclcs c pccliu favort' S in cont;\vcis -nun c1 em nom e cia c!ei<1\:ao, con1o o fizer:J!ll Silverio dos Hers e Brito Malheiros, rnas sempre em nome clos servi<,·os prestaclos como "entrante" clos sert6es. Houve quem visse merito nisso: 0 que tal atitude part'CC inclicar, cntretanto, e 0 clesejo de esquecer um epis6dio que !he poderi:l ter siclo fatal. 16 Quando, ·) instado por Darbacena,_ o ministro Martinho de Mello e Castro 1 recompensou os oflCJaJs regulares cos auxilrares que h::Jviarn. ajudado na repressao a Inconficlcncia, escreveu, ao !ado do\ nome de Pamplona: _:',f"Jada':. "F. acrescenrou 'Atendidas as I circunstancias da devas·s.:i , nan se julg<l digno de alguma \ conternpla<;:ao e bastante gra<;a se lh e faz de n:lo ser contado \ entre o nurnero dos culpados'.""

Contudo, sc sao fortes os inclicios de particirac;:ao n:1 conjura, sao n~_b_tJio_sos os possivcis motivos de tal envolvimento. Ap6s tres clecadas na capitania, Pamplona sc tornara urn potentado rural as custas de heneficios formidaveis extraidos dos governos regiona1s, de resto rnerecidos, dentro da etica vigente na epoca: o antigo mascate soubera dosar bern o

117

Page 41: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

, 'j

esfor~:o pessoal - que <.:UilLli~! inclusive COlli significativo desgaste fisico - e ~~ mais deslavac!a bajula.,:ao, presente a cicla linha cbs cart as untuosas e nviaclas aos capit3es-generais. '" l'ur qu e um homem <.~ Ill t~d lLiriiioni~I cum u si.stema pe11saria <:Ill revoltar-se contra ele'

Que continue a ciuvicla , pois nao e disso que se trarara a seguir, mas da ac,:ao de Pamplona como desbravador de sertoes e destruidor de quilomhos.

A EXPEDI<,::AO DE 1769

LEVANDO A C!VILIZA\:Ao A Fl\ONTE!RJ\

A 18 de agosto de 1769 partia da fazencla do Capote uma furmidavel expedi<;:~iu chefiac!a pur Inacio Correia Pamplona. Um pouco antes, ele Cora chamado a Vila Rica pelo Jove m cunde Je Valadares, jose Luis de Menezes Castelo Branco e Noronha, que sucedera Luis Diogo no guverno da capitania 0 novo capitao-general !he dera patente de mestre -de-campo e provisao de regente dos di s tritos de Piuf, Bambui, Campo Grandee Picada de Goi:is, dele fazend~ ·o chefe militar e civil de regiao vastissima, on de cl e veria dar continuiclade ;t obra de deshravamento iniciada anos antes e se apoiar, para as excursoes ao sertao, nos povoados j{t existentes. Com isso , pensava-se descobrir novas zonas auriferas, dar ernprego aos desocupados que a decadencia da minera.,:ao s6 fazia proliferar nos centros antigos e, o que nao era de menor importancia, cxterrninar os quilumbos de negros fugidos que teimavam em cresccr sobre as ruinas dos anteriores: nada diferente, portanto, das incurst">es usu a is em frentes avan-;:adas de povoamento da capitania.' 9 Por outro !ado, o tra-;:o Jistintivo da expecli<;:ao d e 1769 reside no fato de ter sido minuciosa ­mente relatada por um de seus participantes. 0 motivo que lcvou ;t reda<,'ao do relato nao e evidente, mas cabe cunjeturar que tenlu a ver com a gabolicc de Pamploru , um obcecado em autoprumu~·:iu. N~1 pJrte final do documenro, o autor rcvcla que, no tocantc aos mapas, foram d e fato encomendaclos pelu mestre -de-G!Illpu. lndependentcrne nte do motivo, o resultado permite que hoJe se cunhe<,:am os detalhes de excursoes dcssc tipo na seguncla metade do seculo XVIII.'"

llH

T A fazenda do Capote pertencia ao mestre-cle-campo, e foi

o ponto cle encontro para onde at1uirarn homcns vinclos de diferentes panes da comarca do rio das Mones no intuito cl e acompanha-lo ao sertao. Alguns fizeram-no apenas nos primeiros momentos da marcha, "por amizadc" e a cavalo. A pe seguirarn inicialrnente 58 escravos de Pamplona, armados, como em expedic,:ao de guerra, de espingardas, clavinas, facoes , patrona, p6lvora, chumbo e bala. Carregavam as provisoes e remedios de "uma bem preparada e sorticla botica" 52 bestas de carga. Sempre que possivel, o perrwite era feito nas fazendas ao Iongo do caminho, onde vez por outra novos entrantes sornavam-se aos originais . No clia seguinte, repe­ria -se invariavelmente um mesmo ritual: o dono da casa e urn grupo de hornens seus- "os mais luzidos nugnatas do pais", verdadeira oligarquia em marcha- acompanhavam a cuntitiva durante algum tempo, como que procurando atenuar o instante da ruptura entre a vida mais bem ordenada clos nucleus de culoniza.;:ao e o imprevisto clos maros virgens e das zonas aincla indevassadas; entao, uns voltavam a vida sedentaria enquanto os outros - que chegararn a mais de cluzentos - seguiarn destino errante, embora tempor:irio.

0 contraste entre barbaric e civiliza-;:ao marca todo o relato, sugerindo ser constitutivo das expedi-;:oes desse genero e mostrando uma face insuspeitacla do cotidiano dos c-aC;:adores de quilombolas. Nao eram apenas homens d este miclos e sertanistas semifacinorosos que entravam para o sertao na busca de novos achados de ouro e mocambos de escravos fugidos, ou na esperan.,:a das sesmarias obtidas como recom­pensa. A comitiva tinha tambem urn capelao - no caso, o padre Gabriel da Costa Resende -, um cirurgiao e uma companhia de oito musicos, dos quais um s6 era branco e sete eram escravos negros de propriedacle do mestre-de-campo, contando-se ainda "dois pretos tambores, com suas caixas cobertas de encerado"-"

A presen.,:a dos escravos-musicos revela um clos aspectos civilizadores mais intrigantes dessa entrada. Municlus clos mencionados tambores e ainda de violas, rebecas, trompas e f1autas transversais - todos eles, instrumentos f:keis de carregar, e, por isso, muito usaclos nas Minas de entao -, os musicos, a cacla an1anhecer, tocavarn e cantavam "suas letras", as vezes em cantochao, as vezes entoando ave-marias, laclainhas ou

119

Page 42: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

Te Deum Laudamus, executando missas, forneccndo o funclo musical de prociss(Jes solenes em acompanhamento do Senhor crucificado ou cia Senhora da Conceic;:ilo. Em momentos cle euforia, recorriam tambem a pe<;:as profanas, confirmando mais uma vez o que hoje ja e conscnso no tocante a sensibilidade setecentist;~ dos mineiros, verdadeiramente obsedada por musica:

No dia 12, muito de madrugada, se mandou tocar alvorada, e os m(Jsicos, com muita alegria e prazer de terem chegado a sua estancia de Santo Estevao, tocaram belos minueros que serviram de admirac;ao - nao a n6s, que os mais dos elias ouviamos, mas sirn a umas familias do senhor mestre-de-campo, digo, agregado do dito senhor, onde se achavarn j{• de morada, para clai a pouco se irern transportando para o sertao, aonde tern destinacbs suas fazendas, conceclidas na presente distribuic;ao. 22

Era assim que os doubles de assassinos de escravos fugidos e clescobriclores de ouro partiam para a !ide diaria, embalaclos pelo snm mavioso procluzido por outros escravos, que naquele momento mostravam-se corclatos e afeitns ao universo cultural dos brancos. Alem cia musica, tambem a religiilo imprimia sua marca no coticliano incerto, escandindo os atos civiliza­dores dos entrantes. A cada alvoracla, junto com os dinticos vinham as missas, sempre ouvidas pela comitiva e ainda pelos que a ela eventualmente se somavam. Dava-se muita atenc;:ao aos locais do culto. No Piui, Pamplona chegou a encontrar uma capela transformada em curral de gado e destituida dos ornamentos, que haviam sido vendidos:

se enfadou contra a gente tao barbara e indomita, que ahusa­vam [sic] de Deus e de seus santos por nao conservarem um templo em o qual tributassem ao mesrno Senhor os clevidos cultos [ ... ]23

Musica, missas e preces disciplinavam os homens rucles, clesvendando a outra face cia truculenci:J "civilizadora" cia comitiva. Antes que urn destaeamento partisse como objetivo de aterrar uma ponte, ordenava-se em fila clupla, ouvia missa e, por fim, erguia a "santissima cruz bastantemente alterosa para ser reverenciada naquele Iugar de todos os passageiros, como sinal cia nossa reden<;ao"; 24 reeclitava-sc, nos dcscampados

120

do alto Silo Francisco, a pr;ltica lusitana consagracla na circunavega,·:'io cia .Africt e repericl:l ror t"do o Imrcrio nos cern ;tnos scguinrcs , do Brasil ~i fncli;t . Fm nenhum clos cli;ts cia jorn;tci;J sc cicscuici:Jr:Jm os entr·;llllt'S dl' rcz.;tr o rcr<,·o ao

cair cia tarde, no que o cxemplo semprc veio cia barraca clo mestre-de-campo, aclepto clo "dcvoto exercfcio" cotidiano. A essa freq(iencia clevocional atrihuiu-se o succsso cia empresa, experimentada na epoca das aguas, "tempos tao impr6prios para explorar sertoes": mais urna vez, reeditava-se na situa<;:ao de fronteira o providencialismo lt~so clos tempos da expansao."

Musica, missas e preces cievolviam a dimensao hurnana a sertanistas as voltas com atos muitas vez.es violentns, e ritua­lizavam a entrada aventuros;J clos civiliz.;tdos nas brenhas habitadas por inimigos h<irharos e fugiclios Venclo mulripli­carem-se os vestigios deixadns por quilomholas, e cstimanclo a fJrOXimidacle de Ulll quiJomho cont;tllcJo lll;JJS de cluz.entos ncgros, Pamplona organi7.<HJ urn clcsucamcnro de 42 homens para seguir no seu encalc,:o. N;1 noire ;Interior ?1 partida, laclainhas a Nossa Senhora e "devoi;Js ora~·oes" combinaram-se com os preparativos comanclaclos ror Jose Cardoso, que supervisionava o provimento acfequaclo da pcSivora, chumbo, bala "e mais as armas curtas". 2

''

Enquanto uns and;w;Jm ;ltr;\s cle corregos auriferus e oulros batiam matos na demancla de quilomhos, o capcl;io confessava homens "por sat.isfa~·ao clo preceito cL1 qu:1resm8 passada" t'

batizava tanto as crian(.:as clc colo como uma j;i "bastante­mente grande", procuranclo sanar os pre1uiz.os espirituais decorrentes do abanclono a que sc viam fadados os mor;~clores daquelas fronteiras 27

Constitutivas cia sensibilidacle mineira clo seculo XVIII, a mJS!ca·e- as prcccs requeriam especializac;:ao profissional, c!ernandavam agentcs rrcinaclns nos misterios religiosos ou na arte clos sons. Por isso, talvez mais surpncenclente aind:1 do que a orquestrinha itinerante cle escravns negrns ;1 toc1r instrumenros cle sopro c d e corda p;tr;·J ;l.'> hand:~.'> d;J PicHLI de Goi8s scja a pdr.ica igualmente C<Jticli;llu d(-' verscjar. Em cada fazend;t, em cacla pouso, em c1d:J rcfeic;;ln ;1o ;1r livre )1oetas c!Cl roc;: a" oferecia m versos "pen sohremesa" -- versos pobres, malfeitos , de·srituiclos de m:1iores preoc:up:~c;-tJes esteticcts

121

\

Page 43: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

e acusddores Je urn gusto Juvidoso. M3:; que significado podem ter u de:;lel.xu uu ;r irnperfei~·~io diante da evrJencia extraordi.n{lfia

dessc bem pat1tlluc!o apre~·o pelas letr·as, abarcancio indivfduos em toda a amplitude da e:;cala _social' Entre aventureiros e sertanistas facinurosos, empenhaclos na persegui<;~w a negros e a pepitas de ouro, atraidos pela possibilidade de obter terra abundante sem maior dispendio, o que se poderia esperar de mais inusitado do que o gosto por metaforas e estrofes'

V;'irios clos poetas que tem os versos transcritos pelo escriv;'iu cia entrada permanecem an6nimos, e a forma muitas vezes estropiada cle tais obras sugere bomens cle poucd instrw,::to. Apes~rr drsso, foram capazes de criar sonetos acr6sticos enaltecendo as virtudes do mestre-de-crrnpo e exaltando a rn:lo proviclencial que o colocara naqueles sertoes, "Pamplona, das tlores quintessencia"m Forarn capazes cle produzir poemas consideravelmente longos, como aquele em que, humanizados. o scrt:lo cos campos do Bambui, na regiao do rio Sao Francisco, clirigem-se ao regente para cxaltar-lhe as qualiclades civilizadoras.>9

Esse poema e particularmente interessante por repet!r v:trias das inngens prescntes no "Vila !l.ica", que, mais ou menos na 111c~snra epoc;r , esuva sendu ehborado por CL1udiu Manuel cb CosLI: ,., ;1 te ns:lu entre barb;.rrie e mundo civiliz:rclo.

uina ccna rc·tc)ric·a que cclclJLIVa <1 prilllaZi~l da sucicdade organizad;r sobrc· a natureza, a idcia de que tesouros haviam perrnaneciclo ocultos par:r enr;'io sc revclarem por meio da a~':lo colcmizadur;r ern regiues in6spitas ~ por meio, mais precisamenre, de um her(>i civilizador, como o Hercules clos gregos , ou u Moises dos hebreus e que, no c1so, era lnacio Correia Pamplona, como reza um outru soneto inedito:

Hercules !he d:'1 a clava e diz a fama rc:speite1n :L'-:> idades u tllt:'U brado; :tqui uru Akides novu l ~1oje se acL.una

JCI que foi como H(:rculcs csfor<;,aclo cinFI o Pan1plona a verde rarna

que 0 semriterno e decantacJo.l'

Sob a a.,:ao ordenadora do Regente, seria transformada a paisagern, e o sertio se tornaria urn jardim: 32

l22

Descle que o mundo foi criado pela clivina onipot2ncia

aos filhos c!e Adao se rem negado en1 nossos paLicios a assistCncia Agora parece que e chegado o tempo da melhor correspondencia porque se ate aqui serrao silvestre hoje corte, os campos que tem Mestre.

[ . ]

Alvissaras, Bambui, que vem chegando a fazer um jardirn deste sertao a tiio luzic!as tropas comboiando um Senhor que a um tempo em sua mao clois bast6es dourados maneanclo ao mundo em tudo d::i llr;ao ensinando e regendo sern segundo e capaz de reger a todo o rnundo

lmagem csta curiosamente oposta ~~ de cenas prega~:6es de Antonio Conselheiro, para quem o sertao nao teria jamais a feic;.·ao ordenacla e civilizada, mas os trar;os revolto s do mar imprevisivel e incontrolavel.

Ao !ado dos frgurarn outros

nada ao do seculo XX, misturando-se, pela ausencia de qualquer relevo em nossa literatura, aqueles cujos nornes se perderam. Assim, Manuel Bernardes de Cristo, autor de tres sonetos tosquissimos. pr6digos, mais urna vez, na utilizar;ao das imagens civiliza­doras e oferecido.s "por sobremesa" a Pamplona "em aplauso de suas famigeradas operar;6es" .33 Da mesma forma um Domingos Antonio, possivel companbeiro de jornada do mestre-de-campo, um juliao Alvares, morac!or no C6rrego do Arantes, uu certo Francisco Camacho, "homem casado morador na picada de Goiascs", este antes um repentista a moda do

Nordeste do que urn poeta afeito a norma culta. 14 Por fim, dois padres-poctas: o reverendo vigario cia Scnhora Santa Ana,

autor de pocmas absolutamente insipidos mas metricamente corretos, e o padre coadjutor do mesmo Iugar, que a Pamplona

ofereceu um bestial6gico !audat6rio exa!tando sua contribuir;ao ao incremento do dominio portugues na America55

123

Page 44: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

0 confronto entre os poemas peclantes clos padres e os versinhos ingenuos de Camacho revela a existencia de pelo menos duas tr:tdi-;-oes distintas na poesia "de ro-;-a" praticacla e usufnJfda durante a expecli('io de Pamplona contra quilombolas: aquela mais culta e afeita a norma eruclita, e a tradi.;:ao mais propriamcntc popular, referida ao munclo da oralidacle. Escravos negros analfabet.os a tocarem minuetos,.musica sacra e a entoarcm cantochoes; fazendeiros de fronteira que invo­cavam "a csp;~cla de Roldao" em repentes encomi<'isticos mas espont;'meos; padres pern6sticos que poetavam ap6s o jantar e, no dia seguinte, aclministravam o batismo a pagaozinhos ja taluclos: todas essas praticas fazem pensar em arranjos culturais complexos e contrastantes, trama variada tecida com

tradi.;:oes dfspares.

Com seus cluzentos e tantos homens, a entrada clelibera­damente impositiva de Pamplona consolidava a coloniza.;:ao fronteiri.;:a c, simultaneament.e, levava a norma ao espa<;:o aincla clesorclenaclo do alto Sao Francisco; do seu rastro normativo e repressor, contuclo, iam se destacando praticas menos 6bvias e conscicnres, refericlas ao universo cia cultura num senticlo mais rcstrito e menos ant.ropol6gico, apesar de igualmente multifacetaclo. Mesmo quando entreticlos em espreitar quilom­bolas e incendiar-lhes os alcleamentos, os entrantes nan dispensavam tais praticas, que assim amaciavam seu dia-a-clia, clanclo-lhe um senticlo nem sempre encontraclo nas a.;:oes semifacinorosas a servi.;:o de uma ordem infqua. Talvez esse o nexo profunclo de vivencias aparentemente tao intrigantes: talvez ai o motivo de persistir em pleno sertao, por entre os escombros d e mocambos arrasaclos, o paradoxa! gosto pela musica e pela poesia, enquanto pairava no ar o panico latente

de urn ataque quilombola.

SUBMETENDO OS BARBAROS E 0 MEIO HOSTIL

Apesar clos poemas "por sobremcsa", cia orquestrinha a tocar alegremente minuetos comemorativos, dos fieis reinte ­

graclos ao gremio cia Igreja mediante a a<;ao pastoral do padre Gabriel de Rese nde Costa, apesar de tudo isso pulsa por todo o rclato urn clim<t de trageclia iminente. Nao se haviam passado scni'\o tres elias da partida e seis bestas ja "afrouxavam"

124

T [ ... ]"como peso clas clemasia cbs cargas", assim impecliclas de chegar ao pouso '"N o quarto di~l co me\~ ~Hdlll a.'> tenl<ltivas clo regcnte no scntido cle h;lrrnontz ;tr co nr!itos (' rC.'>Cllvcr pcndcncias; <lo descrever a popula,.·~o se rLl!Wja, n cronista carrega nos tons, pejorativo, rcssaltanclo assim o talento de Pamplona no trato com tal cliversiclade clc gente: "87 pessoas brancas, fora a mais pardagern c negraria em quanticlade"." Nas semanas suhseqi.ientes, suceclem-se os casos de conflito sempre arbitraclos pelo mestre-cle-campo urn negro qu~ assassinara o senhor em conluio corn :1 senhora; presos de cliversas culpas, prontamente remeticlos a Vila Rica; hornens que descrtaram cia comitiva e se viram clericlos com presteza; scsmciros clcsconrcntes a se insurgircm contra a cobran<,:a de dfviclas. A reprcss:io gerava 6dios e criav;1 inimigos, e o cronista nao ns omite, invocando c!ess<l vcz a prudcncia de Pamplona em liclar com situa<,:tJes tt:nsas

Conforrne a expcdi<,:ao ia sc afundando pelo interior, come.;:avam os reveses: algurn;1s clas colunas cnviadas na busca de ouro retornam sem sinal d e le, impossihilitanclo qualqucr justificativa plausivel para o grande custo do empreendimento. Outras passam elias sem dar sinal de vida, levanclo o mestre­cle-carnpo, apreensivo, ;1 ir pessoalmenrc "assistir :is aureas diligencias", o que rcsultou em iclentico h:tsco. \ll Pontes arTuinaclas ou a ausenci;l cle vaLLS clemanclavam trahalhos c nclcs sc gasrava um tempo prec ioso, rouhado cia prospcc<,:Jo de ouro c do rastreamento de pegadas de quilomhola. Sainclo no encal<,:o de um veaclo, Pamplona passa o dia perdido, vagando scm rumo pelos matos e trazendo preocupa-;-ao aos companheiros, que o acreclitaram presa de quilombola, indio ou bicho bravo. Depois, como que se insurgindo contra a natureza, o mestre­de-campo mC~ssacra um<J cor<;:a prenha c promovc a matan.;:a de 24 porcos rnonteses de queixad:1 branca, assistido pelo clevoto capelau. 39

Corne(·arn cb m es rna form ;! a cheg:tr notfcias alarmantcs: negros rnorto.s por urn destact!lll''nlo , outros tantos evadiclos, um que chega an pouso ;ltll;Hr:ldo, <> cncontro corn ve.~tfgio.s de urn acampamento. CerU rnanh:l, logo ap<'>s '' offcio matutino, a caravana mal montar:1 nos animais qu:tndo sc vtu alcm<,:acb por um parclo e dois pretos qu e havi<l!ll ficado para tras, cuidando de urna hcsra cloente vinham :tssustados, "dizenclo

12'1

Page 45: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

\ .\~

L

que o~ negrus cdharnbola~ o~ tinham andaclo espiando cle noite, pur causa do ladrar de dois cachorrinhos que corn ele~ ficaram"; pela manha, haviarn dcparado no chao como rastro de tres negros, u que mais serviu parZJ aumenrar u terror ante inimigos invisiveis .'"

Aqui 1ne.sn1o divulgararn dois horncns do cunpo a notfcia de

ljlH.' :1 clu rJ111 rastos de rH.·gro.s, que nos andav:1rn espreitc-lnUo:

deste su:-,surru se !~vanlou entre u povo ha.stante re ceiu,

entranJo caJa qual a rnurmura r cuni"urme o valur e a cobarJia de que erA adorn:tdo .. 11

Fogos que ardiarn no escuro da nuite inclicavam negro pur pertu: "puis cornu no sertao nao mora mais ninguern, e infalivel consequencia que os fogos h:wiam de ser dos mesmos negros" As voltas corn oponentes sempre a fugir de um quilombo vi?:inho para outro, mais distanrc, semprc J. esprcita por entre rruncos de :lrvon:s, verdadciro fogo-f{ttuo em permanentc dissoluc; :hJ :tntc seus o lhus, us sert:lllist;Js perdi:tm-sc: t::m

incenez:1s , cheg:trH.Io :1 cluvicl:1r d:1 pr(Jpria existerKia corp(nea clos negros lugidos

A espera sc cstendia, as nJlun;ls e nviacLts p e lo mestre­dc-carnpo retornandu sem p6r us olhos e rn negro , as ocupa<J1es coticlianas partilh;tclas entre a bateta e a enxada snvindo para dissolver urn pouco a len.-;;lo. Mas ern dado rnornenlu as quime[;i.~

ganhavarn corpu: pur lJxernplo, quando se ating_iu o quilombo do AmbrC!sio, OS entrantes n:l.u conseguinclo esconder a adrnir:u,:~'io ant..: "us :uruinados eclificios e multiplicados fossos, todos crivados de cs tnc:pes'', corno de resto o conjunto do alclearnento. Os negt·os portanto existiam, cavavam fos sos e kvant:tvam guaritas nus rnorrus para divisar ao Ionge o inimigo, tinharn casas, roc,-as bern plantaclas, paic)is, garnelas e potes de bar-ro para cozinhar seus alimentos - testemu nhos que se somavam a outros rantos restos e ncuntrados nus caminhos ou nos matos, cvidencias que o p:lnico de um massacre c a prcssa da fuga clcixavarn para tr{ts

Reconhecida a capacidade organizar6ria clo inirnigo, nao havia como clesconsider:u sua aptidao para a guerra; arran­chaeta pr6ximo :1 urn c6n·ego vizinho ao celebre quilombo, recruclesccu en lr"c, :1 co mltiV ~ t ":1 rnurrnurac;:ao do receio dos

)2(!

negros", fomentada subretudo pelos indios-linguas, co mestre­cle-carnpo acabou se enfurc:cendo corn os ''mcclrosos que semelhante meacla teceram". 1

; De uutra feita, margeando o ribeirao do Salitre, foram dar nos resquioos do Catigu:t, antes urn "quilon-ibo de muita forc;:a e muito poder", o que o conhecimento venat6rio dos sertanistas p6de evidenciar pela observac;:ao clas varias clareiras, dcstoantcs no conjunto de uma vegetac;:ao bastante cerrada"'

Dos boatos e referencias vagas ia igualrnente surginclo uma geografia mais precisa. 0 primeiro contato com o quilombo de Sao Gonc;:alo foi feito do allo da serra de Sao Rafael: um Iugar perdido na paisagem. ldentificado, sobre ele caiu de surpresa urn clestacamento cia expedir,;au, comandado pelo tenente Jose cia Serra Caldeira; seus hornens encontraram apenas uns poucos negros ocupaclos em fazer farinhas, de imediato confiscadas, juntarnente com "v:trios trastes e panos de algoc.loes feitos ricamente pelos mesmos negros" :1' De perto, era inofensivo, nem parecia rnorada cle negro fugido.

Num munc.lo cheio de incertezas, a agricultura, atividade sistematica, reforc;:ava a norma e soterrava os indicios cia desordcrn: na paragem cia Sam.ambaia, onde florescera um farnoso quilombo homonirno, os scrtanistas apt~aram das montarias e plantaram uma ro<;a de rnilho, feijao e algocl<!o. Da mesma forma, a religiao institueionalizada espantava lembran<;as de rebelclia: us terrenos contfguos ao quilombo do Ambrc'isio foram cloaclos a Nossa Senhora cia Concei<;:ao para servirem de patrimonio a sua capcla.'' 6

Localizar, nomear, conhecer, reorc.lenar o e-;pa(,·o dos aldeamentos de negros fugiclos forarn desta forma procecli­mentos e estrategias adotados pelos homens que cac;:avam quilombolas sob as orclens de Pamplona em 1769. Mcsmo porque disso resultariam beneficius ~~ busca cle uuro, a clistri­buic;ao de terras, ao clesenvolvimenlu du.'i cultivos, que cran1 outras importantcs ativiclades a sercm desenvulvidas pelos entrantes. Depois cl e ja tercm vasculhado paragens ate enUlo clesconheciclas, os ternores arrefeciam, e quilombo passava a ser um mero _ponto d e referencia: ror,:a, paragem, aciclente gcogrMico. /se ' fora cercacla de cuidaclos, a 16 de outubro, a primcira apr~;ximac;:ao do quilomho do AmbrC!sio - quando us sertanistas aclmir~ir:nn a estrutura do aldeamento --,

127

Page 46: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

o retorno ao mesmo Iugar, vinte dias depois, a 8 de novembro, fez-sc clespreocurada e naturalmente, rara o que contribuiram as marcas anteriormente deixadas: "Chegamos ao quilombo clo Amhr6sio ainda ceclo e tivemos tempo de ir ver o milho que estava plantado, e o achamos todo bem nascido- e bem bonito".'17

· · Nomeando sesmarias, morros, serras, rios, c6rregos, o termo quilombo perpetuou-se na toponimia mineira. Ainda hoje e frequente , e mais de vinte povoados conservam-no em seus names, sem falar nos acidentes geograficos, como a serra do Quilombo, entre Divin6polis e Santo Antonio do Monte, ou o morro do Quilombo, entre Arcos e Pains 48

Nessc scntido, ha um certo pioneirismo protogeografico na cxpecl_i<;:ao _de Uma ·vei desvanecido o me do cle quilombola e a poeira dos confrontos, o escrivao cia empresa pocle fornecer dados precisos sobre a localizas;ao c!o s quilombos e, preciosidade entre as preciosidades, deixar-nos o desenho nitic!o de sete deles (Mapas 1, 2 e 3).

128

1

12')

Page 47: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

13 1

Page 48: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

' "

\

CONCLUSAO

Dos horrorcs do escravisrno, da iniquidade da explora~:ao colonial, do racisrno violento da sociedade luso-brasileira de entao estarnos hojc bern conscientes, ernpenhados no esfon;:o hercCileo de lavar suas n6doas e superar seu legado tragico.

Um:1 cronica como a que serviu de base a estc trabalho nos poe, contudo, cliante de outra ordern de fatos ou, melhor dizendo, cliante de urn aspecto insuspeitado das horriveis expedit;oes de exterminio enviadas aos sertoes da America portugues8 contra negros fugidos.

D~1 incerteza diante do desconhecido ao rneclo panico sus­citaclo por relatos sobre homens-feras; do terror de se percler entre morros e matos cerrados ao domfnio pragrnatico cia geografia, flutuaram as emo~:oes e sentimentos dos entrantes claquela expecli<;:ao de 1769, encabet;ada pelo mestre-de-campo rcgente ln8cio Correia Pamplona. Emo.;:oes e sentirnentos cornplexos, capazes de encher de Furia antiquilombola o cora<;:<1o clos entrantes e, momentos depois, de levarem-nos a se enternecercm no oficio cia missa, permitinclo que a mais autcntica dcvo.;:ao tomassc conta de seus senticlos.'" Elementos. pois, cle urna sensibiliclade que nos parece praticarnente im­penct.ravel, como se pertencesse a urn povo e a uma cultura t<1o distantes de n6s como os trobriandeses ou os balineses; sensibiliclade historicamente definida, lembrando ao historieldor el necessiclaclc de se tornar urn pouco antrop6logo quando se debn.J\,:a sohre o passado ou espreita as motiva~oes de seus av6s 50

\

·-· Pamplona certamente nunca foi flor que se cheirasse, e se a complacencia clos historiadores o eximiu do comando de massacres de negros e Indios - ~~-Caiap6, por clc cxtcrminados com sanha no ano dt;_l782 -, nao haver{! ce···r tamente argumentos que justifiquem seu comportamento ver,gonhoso na Inconfidencia Mineira 51

, · Os hornens que seguiam com ele ou que se beneficiavam das terras que clistribufa no devassamento do sertao, por sua vez, dizcm-nos muito pouco: quando nao sao an6nirnos, c quase como se o fossem. E~ _ :)s po<:!~>'2 _g_l:!_~ o c:ortejav:nn, _ nenhum poclcria, nem de longe, ser comparado a Clauc!to Manuel del Costa ou Tomas Antonio Gonzaga, assim como os musicos que 0 clcspcrtavam de manha ou <ldensavam-lhe Zl

clevot;ao durante as missas campais muito pouco tinhelrn a

132

ver corn artistels do porte de um joaquim Emerico Lobo de Mesquita .. Nao e a excclencia do criador que import a aqui, mas a conSfata~:ao de que a arte e as letras eram hah;tcls Foti ­dlan_~s, partilhados ate por homens rucles.

1 { _No centro de Minas, nas regi6es aurtfe-r-as mais antigas e urhanizeldas - rio clas Mortes, rio das Velhas, Ouro Preto, Distrito Diarnantino - brotou el mell1or flora~:ao do Setecen­tos luso-hrasilciro~.{l se constituiu urna civiliza<;·ao no senticlo plcno del palavra , que transcende oslimites cia cna.;:?!o literX· ria e artistica para imprcgnar a pr6pria S()('I;~il_g,de o habi­to das cliscuss()es inrelecruais, clos s~raus literarios, dos es­pet;1culos de mlisica e de rc;Hro

Dai ta!vez o faro de tcrern os colonos mineiros carregado para as zonas de tronteira - novas, incultas, mal clevassadas, moradia de quilombola c de indio bravo - habitos sem os quais nan pocliam rnais viver: h8bitos cle policlcz e de civili­zar;-;lo que, num <lpare nte p;n;~doxo, conviviam c contrastivan1 com o seu revcrso de crucldaJe, rtJclez;l c explora<,'?io- clc homens c clo meio natural Tr;1r;-os que hojc: nos p:lrt~n:m clispelres e contraclit(Jrios. mas que, ncssL~ dcscncontro, servcm p;na ilust1·z1r que "h;nh;il·ic'' c '·clvili7.ac1o" pudcm sc1 cluas faces clc uma rnoccb

(!'uhlicado em RFIS,.foiiojo.0 , (;()Mf~\'. F'lcir•io (Org. )_ Liberch1de

porum fio - histOria dos quilornhos brasileiros. Srlo Paulo

Companbia das Lctra.s, J9%.p 193-212)

NOT AS

1 Fni ;\]v~lro d<1 Silve ira quem cnn . ..:;rg11iu loc;dizar exatamentc o qui!ombo d(l

AmbrOsio ern NarTtJI!'uus e memrllias, Belo Horizonte, 1924. Para o relato das expedi<;oes con(ra os quilombos. ver BARBOSA, Waldemar de Almeida

Negros e qui/ambos em Minas c;aws. Belo Horizontc: Edic:;;o do auror, 1972 p.:)7 Para uma sinlese rjpida mas sensivel dos quilornhos em Minas.

Siu~ur R. Slaues, peasants rlnd rebels- reconsidering I3razilian

slavery. Urbana e of Illinois Press, 1992. p 1!8 er clitccreJ1Cicl~6es entre ajuntamentos de negros

clos na R;-~hia e ern Minas, cnrre el~ls o mainr uso rnineiro da

lllt'nos na prirneira metadc

I''

-------~·-------------------------------------~

Page 49: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

-' UA!UJUSA . Negrus e tJlll/cJm/Jos l'm ,\,fu:us Ceru i.-.; , p.48 -) 2; CINTH.A, Sebas-

1i:-!t> de O l h ·l·ir:t l:fenll>ritfes de s·ttujodo dei -Ne1. 2. eJ. Uelo Horizonte : lm­pre u sa O lkia l, 19H2 , .. I. p .22ll. IH de maio : 'S. joo10 de i-Hei P""" a ser . ...;ede cb l . ." :!p iLi l d e Mina~ c;t'f~liS, p ois nesta d~lta chegalll a en tao vil a ()

g<}\'l·rn:tdor _lose Ant(,n iu Freirt' d e t\ruJ r:1d a c su :1 conliliva "

1 Ciudu pur BAHBOSA . Net_:ros e qullonzhos e m :'\1inus Gera is, p.65. Cit aL.iu por BAHBOSA, Walde rnar dl' Almeida. A decadencia das .Hinas e a fuga d a minerarlio. He lu H urizo nt e: I mprens:1 da Universidade f-ederal Je Minas Ger:~is . 1971. p .4 1

1 BARBOSA . 1\'ef,rus e rjtlllrnn!)(>S e m /V! Tnus (/e r a Is, p . -)2. Suhre~~ difi c u! Ja­

dl:' de rec UlJt;r:l l esLr:Jv o.'> fug iJus, vt:r HIC GINS, Kalhlt: c nJ u an . Theslaue ..;uc Ee tr 1n <'IMhfeenth-t"enttuy Sahau i : a c.:u nnnun ity !:! l udy in culon i ~tl l3 ra-;. il. Y:rk l JMl, J')H7 Cle-w, du tH or:tdo l'h. D .J; na p.275, a autor" 1nust r:1 ;1 rc~o:o rrt~ r1 -.: 1 a J>r ol> l e u~:l .::. curncap i r :1es·· do ~ rn ato , 4ue ora pre n -

...ILrnt t:SL'Lt vos qul' n;.to 1\ ;rvi :t lll fu g rdo, e por ta l at o peJia tn recum pensa , ura u til i zavanl u~ c.sc t :lvu:-. c1p turadus como se us servi~ ai .s, dcixando d e

cl evu lvt· - lu s ;_IOS .sen i\(J r es

"Meu.s c:·tl cu los b:r .se i:am -se n:l listagen1 furneci<..la pur 13ARB()SA , \'Valdernar de Aln1eicla . J)icio n(lrio da terra e gente de 1\1inas Gerais. Be lo Horizonte Sec re ta r i:r du Esu du cb C u ltu u, Pul.> li c a\'<..Je::; do Arqui vo Ptl b lico M in d r o,

n .'S , l9H '1. Vt' rh(:tl..' :·;e .... ;ma n a , p 17 1_- 172

1'Nt.:St a p: I SS: tget rl, h ;rsero-m<.: n;t OtillLI si ntese de Kennet h M:IX\'.:ell, "Action i (\ tl1e nati u n~d interC'st" in Pumbol -·- p ;tracJo x of tht· Enli g hte n m e nt t::tlll ilr idgl' lilli,·ersr ty l'ress, I ')')). Sobretuclo p.52-5). As considera <;Oe s dt . .' JlonJiu l sobrl· a ll t:'l'l'SSH.l:1de de puvoar as f ro nteiras in tegr arn u n1a "Ca rta set..: rl:' tissim :t" du ministr1> :1 C.~u !l\e s Fre ire d e Andrada , c nt:1o governador de Min:ts v l ·u rnis ."i:"tr!o po rtt tg u t·s I LI.'i p~trtida:.; d o sui, lJ.U<:~nUo da negoc ia c,·ao do

l' r :r tado de Maclri c:Jit 17)0. II fr :r se cit:t cla , de a u to ri a do cluque d e Silva Tarouca, fo i t radu zida por mirn d o in g les, e nao tive acesso ~t forma origina l e!Il portugu 2s : un1a carta e nv iada d e Vi e n tl. a Pon1ba l a lL ago . 17 52 e publicada nos Ana is da Accull.!mia For!UJJU.esu, p.323-529. Sobre a coloniza(.{lo

dos sertoes mine iros por ilhb1s , vc: r llARBOSA. A decadencia das Mir~as e a fut<a da minerar;cio, p.':l7 · 10H.

7 P ~1r:t ur n a list :t h:1st:1n te comp leta d o!> quiln n1hos m ine iros d u ran te o secu lo XV III , ver t~U I M t\1\AES , Ca rl os Ma g no. A nega~clu da o re/em esc ravista­quiloJttl>tlS L' rn Min:r.s t;c:rais no S<·Tu lo XV III . s;ro Pa u iLJ leone, 1988. Sobre· tudo p . l •iU- I<il

/'l E!ll 1 7)<~. 2S s~..->dus lt :tvia tl t requerido ~\ Gotnes Freire Jc Andrada li cen~a

para ahrirc m a PIL':tda Lk < ;ui:.ts, suli c il;tiiJu preferencia na.s sesrnar ias q ue se C..:UIH."t:d es.s~lll :tu l un~o dtJ novo t·aminhu. BARI30SA . l.Jicionc.lriu du lerru e ~en I<' de Minas Cei·~~~·s, v.er bete ptcada, p. l ~ I - 152 . A picada i:t de Sao j oav ck i-He i " l'a rac·atu , e p;rra Barbosa te r ia sido confundida por Diogo de Vasconce los L·o nl ou tra , qu e ia d e Pitangui J Paraca tu, c' que se ::tbr i u na m esm:t e p uca. ll AI\l.lOSA. Wa ldemar Je Alrn e id :t. Nist6rio de Mi >tas. Uel o Ho rizontl': Edi to ra Cum unio,·}u, 1979. v . l. p.l 85·l9l. No enta nto, uma re!"e rt-ncia vaga feita pel\) :tU!t)f' cL1 "Notfci~l di:'tria e indi v idu:d " da expedi\::to de tn;iciu P~tm plun ~l ;to sert:lo do a lto s~lo l;r:tn c isco, l'II"l 1769, fala da "p icada v(· lh:r dos < ~uu .... t;· .... , ll q w.· ... u ge 1e a e~i~te n ~ i:.l de m ais de u rn::.~ picada . Ver

1.\· t

··No ticia Ui::iria e indiv idual das 1narchas e acontecinH: ntus lll:ti s condignos da jurnada q ue fez u se nhor Ine.stre -de-ca n1po rege nt e <:: g u :1rd:1- n1or In;J.c iu Corre ia P'11 nplo n a, dcsd e que sa iu de s ua casa e fa z.e uda J o Capote ~l S con­quistas do sertav , a te ,;e tor nar a recolhe r i.t mcsma s ua dit a fazenda do t:apote, etc·. etc. etc." rn lliblioteca Nacio n a l do I< io Je jane iro, Se<;ao de r'-'bnuscritos. 18, 2, 6. 0 rela to foi puhlicado nos Ana is da Hiblioteca Nacio· net!, Rio d e jane iro, v .l08, 1')88 (1 992) , p. 53-1 1.3. Daq ui p o r diante, todas as cita~Oe.s se referem a e.ss :.t eJ i \~{l o. A refe rCnc ia a Pi cada Ve lha se encontra na p .10l.

' VASCON CELOS, Diogo d e. Nist6r1a media de Minas Gerais. Uelo HoriZ<)nte: lrnprensa O fici a l d e Minas, 1')12\. p.18l

111 ji\RD IM, Monc io. A Jncunji'dencia Mineira - tuna sintese fac tual. 1{io de J a ne iw : BibliOleca . do Exerc ito, 19!39. p.201 -2U5. FRANCO, Fran cisco de Ass is Carvalho. I Jiciu niin·o de barzdeirante.\· e sertanistas do Bra.sil. Sao Paulo: Comissao do IV Cc n te nario da Cidade de Slo Pau lo, 1954 . p .281. BARBOSA . A decacli!ncia das Minas e afuga da miiiera(:iio, Cap. Vlll. p .109-B7.

11 UARUOSA. A d ecaden c ia das Minas e a fuga da tni>tera~do, p.l09.

12 Waldema r d e A lmeida llarbos a diz que a legua de sesmaria m e dia 6,6 krn, a legua quadrada correspo ndendo a 43,56 krn' e a sesmaria em q uesta o (de nove legu« s qu adradas) correspv ndendo a 392,040 krn' ou 8 100 alqueires mineiros! Ver BARBOSA . A decadencia das Mina s e a fuga da mi1W1'f.l (:clO, p .44 . Ver ainda p.124 e 125 para as re feren cias as fazendas.

"OLIVE IRA , Tarquinio J. ll., MATIAS , H e rc ulano Go mes (Ed.). Autos de devassa da !nconfidencia Mineira. Belo Horizonte: lmprensa O fi c ial d o Esta­do, 19 77 v 5. p.444-44~

14 JARDIM. A Jn conjiden cia Minei ra .. , p .203-205 .

11 O LI VE IRA, MATIAS (Ed.). Autos de devassa da In conji'clencia Mineira , v.4. p.25 4 .

16 A pos i<;a v de BARBOSA. A decadencia das Minas e a fuga da minerar,:clo, p. l1 7-120, oponho a d e j AR D IM , Marcio. A Incorifidencia Mineim - uma sintese factual. Rio de Jane iro: Biblioteca d o Exe rcitu, 1989. p.204-205, por me parecer m a is jus ta .

" JARDIM . A lnconfidencia Mineim , p.205.

18 Nem rnesrno Alm e ida Barbosa , clararnente simpatico a Pamplo na , d eixa de rne ncionar este tra r;:o desagradave l do rnestre-d e-carnpo d e la tor : "Ta1vez nenhum o utro p o rtugues te nha escrito tao cop ioso numero de canas ao go­ve rnado r e, em to das, nota-se a preocupa,ao do auto-elogio" . BARBOSA, Waldemar de Almeida. Diciondrio h is t6 r1co -geogrdfico de Minas Gera is. Bela Horizunte: ls. n.l , 1971. p .57.

19 VASCONCELOS. Hist6ria media de Minas Gerais, p .l99.

"' NOTiCIA eli:\ ria e indi v idua l. In : Biblioteca Nac io n a l do Rio de j a n e iro , Se~all d e Manuscritos, 18, 2, 6. No que diz res peito a e ncome nda do re lata por Parnplo na, agrade~o " ' o bse rva,oes e s uges tOes de joao jose 1\e is, que n es ta passagen1 , com o e n1 v:Jrias o u tras, aj udo u , com seu faro agudiss irno, a melhmar o meu estudo

135

Page 50: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

"NOT[ CIA diaria c individual Anais da Biblioteca Nacional, p.53.

Ibidem. p.R1

Ibidem . p.SH.

"Ibidem. p.62.

"Ibidem. p.6S.

"Ibidem p .71

27 Ibidem. p.R3, 85

'"Ibidem. p.53-54.

29 "Fala o serrao e campos do Bambui do rio Sao Francisco com o senhor ln;icio Correia Pamplona, mestre-de-campo regente e guarda-mor etc." In: NOTfCIA diaria c individual. In: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Se<;:ao de Manuscritos, 18, 2, 6. p.54-55.

"' Os estudiosos hesitararn ace rca da data da elabora<;ao do "Vila Rica", e ]oao Ribeiro cogitou do a node 1773, mas sem certeza. RIBEIRO, Joao. Cl:'iudio Manoel eta Costa - carta ao sr. Jose Verissimo sohre a vida e as obras do poeta. In: Obras poetic as de Claudio Manoel da Costa. Rio de Janeiro: Garnier, I 903. torno I. r-36 . Na verda de, a pagina de rosto da primeira edi<;:ao do

nao deixa dCrvidas: "Vila Rica, poema de Claudio Manne! d;r Costa, ultrarnarino como nome de Glauceste SatUrnio, oferecido ao iln1o. e

exmo. sr. Jose Antonio Freire de Andrada, conde de Bobadcla, etc. , anode 1773 . Dado a luz em obsequio ao lnstituto Hist6ri co e Rn1silciro, r or um d e seus s6cios correspondentes. Ouro Preto. Ano de 18.'\9" Ouro Prero, 1959. Tip. do Universal.

.ll "i\o senhor lnacio Correia Parnplona condecorado com varios honrosos para a conquista do Campo Grande, cabeceiras do

rio de Sao Andaia [sic] e Pernaiba [sic]". In: NOT[CIA diaria e individuaL Ana is da Bihlioteca Nacional, Rio de Janeiro, v.1 OR, 19RR (1992), p.56. A compara.;:~o entre Pamplona e Moises encontra-se em outro soneto, tambem an6nimo

E n6s todos que temos a ventura

de a um segundo Moises acompanhar

as g ra~as lhe rendamos corn ternura ... [p.70]

~ 2 Para urna an {I lise da sociedade mineira setecentista marcada sociologia cultural de Norbert Elias, e onde se destaca a tensao entre liza<;:ao e rnundo inculto, rcmero ao excelente estudo de SILVEIRA, Marco Antonio. 0 uniuerso do indistinto- cultura e sociedade em Minas no secldo XVT!l Sao Paulo: Hucitec, 1997.

33 NOT( CIA diaria e individual. A nais da Bib/ioteca Nacional, p.62-63

34 Ibidem. Respectivamente p.67, 84 e 76-77.

"Ibidem. Respectivamente p.R2, 84-85 e 87.

'" Ibidem. p.S(i

Ibidem p .SS

136

"NOT[CIA diaria e indivicluctl Anais da lirh!IO!ec(l Naciona/, p.C1C)

'' Ibidem p.G9, 76. 79

111 Ibidem p 79

"Ibidem p .6H

"Ibidem p .79

1J Ibidem p.68 .

·H Ibidem Sohre a habilidacle do sertanista em locomovcr-se no m;lln e ler os remeto ao cl,issico de HOI.ANDA, Sergto Buarquc: cle . Cami-nhos efmnteiras 2.ecl. Sao Paulo: Companhia clas Let r"s . 1 ')9~. Sohrctudo o capitulo Veredas de pe posto, p 19-35

11 NOTiCIA diaria e incliviclual Ana is da Bibliotr1ca Naciona/, )1.!02

"'lhiclem. p.70

17 Ibidem . p. 79

"BARBOSA Negros e qwlombos em Minas (;Pm•s, p RG

rninha fonte evidc nt e de inspira<;~lo e :l ohra-rrima de

1:'1 oto,Zn de Ia Fdad !vfedicl . HL·vist:I dt· Occidt· ntL', Buenos Aires, 194 7 , .sohrctudn () Gtpft t!lo 1. Fj tono de L1 Vi(Lt. p . ll -"i5

'r1 Aqui, inspiro -mc S()hrctlld() n:~ "Aprc:·;ent: l( ;-t(J .. de Dr\HNT()N, 1\o!)t:r\ . ()

Rrande rnas.'>acredt'gato ... ;_ Hio de _I;Jncirn: Cr:~:tl, 19H(l Xlll - XV!II_ Rcmct(l

t:nnhCrn ;1n hrln en..;;lio dn rl1esmo ~HJt<Jr, " In fe rno eLl Nacinrul ('Ill

Paris" (Fo!ha de S.F'aulo, 9 j11l Jt) i)S_ Caderno lvlnis, pil--7); ncs.sc ens:t in,

publicado origin:1 l mente em 7}Je New YodJ Retn'eli. J, Da rntD!l discorrc· sohre :1

irnportf1ncia cia pornogr:1fia no contcxtn hist (Jr ico du lil)L-rtinislllo c do llumi ­

nismo, al e rtando nossa impo ssihilidad f' de cnmprccnder pr;lticas e sig ­nificados ent~o

de Almeida Barbosa prucura extmir nosso anti - he rr)i cia culpa ciPc rP rr=<<or"' m·8s, ao bzC-Io, fornece claclos e sta rrecedores sohre o genn -

do qua! com loeb a prohah!li c!:lde, p:1r·ticipou

128, cliz "A corura o.s ciiclp6s foi, pode-se af"irrnar, a n1ais te rrlvel e a mais lul:l tr:1vac.b contr:1 incligenas. e m tocl<l a AmCrica. Os documentos falarn -nos cia fcrocidack clns

desse::; hi lreirn .s, ()que motivou a rcfer1cL!. N;\<l se t.·sque<._:a. de os caiap(ls torn:tram -se d e te rrivclm c nrc clepois

at:1ques que sofrerarn dos brancus e manH:.:Iucos" p;lg1na a justificat iva : "Quando Pamplona rc ;1l i;.ou su1 primeira entrad a, en1

o que encontrou foran1 rem;:.Inescente.s da grande na<;:1o . E. quandn preparou a investida de 1782, os caia p(,s na regiJo" I>ARilOSA. A da mi'lera(:tin, p.l27-1_)6

1.)7

-----~--------------------------------~

)

Page 51: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

0 GOVc~NADO~, 0~ GA~IM~ci~O~

c 0~ QUilOM~OlA~ t~IADO McHOrOliiANO, t~C~AVI~MO t

HN~Ot~ ~OCIAI~ fM MINA~ NA ~tGUNDA

MtrADc DO ~~CUlO XVIII

0 TEJUCO: ( JM AKRAlAL FORA DO ESQUADRO

Dvscollt'rtos "fici:tlnwnt c c1n 17 29 na regiao do Tejuco. em Min:ts Ger:tis, us di:lmantes represenrararn p a ra a Coren purtugues:t UllU de suas prin<c·ipais fonlt:s de reL·eita durante boa parte do seculo XVIII. Monop6lio regio, a explora-;:ao foi clesdc cedu vedada aos particularcs, ficando limitada ao controle do Es tado <c' variando na fo rma. A regiao foi d e limitada e, ilatil.:tcla de Distrito Diamantino, passou a dep e nder clirctamente cia Metr(>pole. Houve basicamente dois sistemas d e administra<;:lo: o cia lntendencia dus Dia ­mantes (17:)5-1771) eo cla lkal Extra-;::lo, qu e , iniciado em 1771, persistiu :tp6s a Independencia e clesaparec e u pur volu de 1041 Durante o primeiro periodo, a explora-;:;lo dus di:ttlt:trr~t>.s foi L'tHrcguc aos contratadores, ou seja, :trrenuLtntc.s quv ckt in ham a sua l:'xclusividade. Os de­rna is particul<tres viam-se proibidos de extrairem as peclras preciosas. Corn o :tdvento cia Real Extra-;::lo, os cliarnantes passaram a ser extraidos apenas pela l{eal Fazenda, excluindo-se do processo os particulares.

No tempo dos contratos, destacou-se o cuntratador jo:lo Fernandes de Oliveira, nao apenas pela riqueza amealhacla como tambem pela vida pessoal. No arraial do Tejuco, diz a tradi<;:lo, apaixonou-se perdidamente por Francisea cla Silva, mulata pobre e pouco dotada de encantos ffsicos, com quem teve varios filhos. 1 A rela<;:ao com mulheres de cor, muito comum, nao seria, por si s6, capaz de. provucar espanto no Imperio Portugues, sobretudo na America 2 0 que causa especie no caso do contratador sao a paixao e a vida comum que construiu corn a parceira, respeitanclo-a e, sempre con­forme a lenda ou a historiografia romantica que a incorporou, sujeitando-se as suas vontades e caprichos.

0 Tejuco nunca chegou a ser elevaclo a categoria de vila durante o periodo colonial, apesar de ter logo se tornado urna aglomera-;:ao urbana de propor<;:oes consideraveis, conforme atesta ainda hoje o casario antigo, um dos mais belos exemplos cia arquitetura civil setl:'Centisra no mundo luso-brasileiro. Talvcz isso se cl evesse au intuito de manter menos aut6noma a popu­la-;:ao local, controbndo melhor a extra<,;~lo cliarnantina. Em 1771, aincla no periodo pombalino, dotou--se a circunscri<;:'to diamantina cle Ll!ll rl:'gimento proprio, o Liuro da Cupu Verde.l

Tuclo indica que nunca foi obscrvado estrit:unenle, como acon­tcce quase sempre com leis e scritas, notaclamente as rnuito rigidas, e o feitic,:o virou -se contra o feiti ceiro : gozando de certa inde pendencia com rela<;:ao ao governador da capitania de Minas Gerai~, o Distrito virou valhacouto de bancliclos e, sobretudo, de autoriclades venais e co rrupras. 1

No decorrer do seculo XV!ll, o Tejuco foi assim senclo envol­viclo por uma especie de mitologia clepreciativa, tecida sobre­tudo pelos que ficavam fora cia Demarca~;ao Diamantina. 0 mandonismo de Chica cia Silva e a submi.ssao "conjugal" do contrataclor sao a face er6tico-afetiva de uma desordem maior, que impregnava o cotidiano, subvertia a norma e criava urn tnrit6rio em que tudo andava as avessas. Mais d e um gover­naclor, representante maximo da Metr6pole na regiao, viu-se ~ls voltas com as autoridades e com os infratores Jocais, curiosa­mente igualados por esses olhares externos. 0 caso que aqui se estuda aconteceu durante o governo de D.Roclrig.o]ose de. Menezes (17H0-1783), conde de Cavaleiros, homem ilustrado,

1.)9

Page 52: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

cheio de boas ideias e que esteve a frente cia capitania por um periodo talvez curto demais para pocler implementa-las.

0 GOVERNADOR: VIAGENS E IN QUIET A(:OES DE UM ILUSTRADO

No ultimo dia do anode 1781, D. Rodrigo jose de Menezes juntou uma serie de cartas que autoridades militares do Distrito Diamantino e regioes limftrofes lhe haviam enviado desde ahril e as remeteu ao ministro Martinho de Mello e Castro. Todas tratavam da crescente minera.,:ao ilegal de diamantes que se desenvolvia aos olhos de todos, e narravam pequenas expedi.,:oes e alguns choques de porte consideravel havidos entre garimpeiros e tropas oficiais. 0 governador adiantou ao ministro que tal ordem de coisas dcvia muito a negli­ge n c ia das autoridades administrativas do Tejuco, preparanclo talvez o terreno para a.,:oes que, num futuro muito proximo, se visse obrigaclo a tomar. 5

Entre junho e setembro claquele mesmo ano, D. Rodrigo se cleslocna pa ra as regioes fronteiri.,:as cia Mantiqucira c do rio Doce, obscrvanclo, in loco, como vinha sc tornanclo praxc de sua aclministra.,:ao, desaven.,:as entre colonos, autoric!aclcs administrativas e inclios 6 De volta a Vila Rica , as sucessivas cartas que chegavam do Distrito foram !he dando a climcns:!o c!as graves ocorrencias locais. Nao p6cie partir para o Tejuco de

imediato, pois, ap6s a travessia clos matos fechadfssimos que margeavam o rio Doce, vira-se acometido de febres palustrc.,, tao comuns a cpoca. Despachou ent8o para o local, com tropa de \inha, Jose Joaquim d e SequeirC~ e Almeic!:J Carvalhaes, seu ajudante de ordens, dando-lhe carta branca para "sossegar o pais e prendcr os clelinqi.ientes" 7

Quando escreveu ao ministro, eneerrava os preparativos para uma nova viagem, desta vez ao epicentro dos disttirbios: a serra de Santo Antonio de ItacambirussuB Antes de :'lt3Cl-ICI, deteve-se por 3 elias no Tejuco, onde andou as volt::ts corn despachos c atividades administrativas. Decidiu que seria prudence levar consigo joao da Rocha Dant3s, o intendente dos diamantes, desejando que testemunhasse o que estava

HO

por 3Contecer.? Afinal, ;t 23 clc Janeiro estacionou no Cjll:trtel cle Santa Cruz, a 24 leguas clo Tijuco.

D:1 ltacambira ?1 scrra rropriarncntc dita, ondc C:lll1JW:l\':l solta a minera.,::1o clanclestina, havi:1 que veneer 16 kguas, o que na epoca se fazia em 3 elias. A es ta~' :i< l clas :igu:1s engross:1va os rios e os varios c6rregos, irnponclo que se armassern fllngu el as para atravessa-los. Os cavalos passavam a nado, vencendo o caudal "com o rnaior risco que se poclc imaginar" '" Os caminhos, ja precarios em tempo de estio, viravarn aroleiros de bma, aumentando as jornadas. Mesmo assim, e diante clas repeticlas noticias de desordens, o governaclor nao hesitou, uma vez cleixacla par3 tras a serra, em cstcnder sua marcha para a Vila de Born Sucesso e haver-se pessoalmentc com Seixas Abranchcs, o ouvidor do Serro. Os desmanclos ocorridos na rcgiao cliannn ­tina tiravam-lhc o sono. No Tejuco c demais loc:Jiid:Jdes d:1 Dem:1rca.,:J.o, relatava ao ministro clef) Mari:1 I , faL1va-se "na negocia.,:ao clos diamantes como m esmu clesemhara\'O com que sc poclc tratar na Pra ~; ;1 cle Lisbo:1 do c:'irnhio rara Londrcs"." As autoriclacles loc1 is insistiam em sc furtar ;1 jurisclic,-ao clo governador, aleg;tnclu que este era rn:Jnclado :1s min:1.s "p:H;J governar os solclaclos", e n;lo a Dcm;nca<:,:jo

Em abril, de ViLl 1\i ca, sua se de :rdl1lillistrativ:l, D. l{<lllrigo tornava a cscrL'Vcr :1 ,'vl:irtinho d e IV!cllo c C:rstro, :Jncx:Jndo uma st:rw de-: ducumc:ntns CJU<:' incriminav:Jlll o ouvidor do Serro, Seixas Ahran ches. e rc lat:lJHio :1 viagcrn iniciacb <· 111 2 <I<·' j;Jneiro de 1782 12 0 conjuntn clcssas c:Jrtas, cscrJt:IS por :JUto ­rid;Jcies :Jdministr<ltiv;Js e mili.Llrcs cL1 c:lpirani:l, dcix:1 cntrcvcr a lut.;J surda e const.antc que op(ls us li<lllll'I1S du govcrno :r [JO[JU!a<;:JO JocaJ, indfcio cio c!Jv6rcio e ntre OS pro[Jc)s itos de uns e a pratic;J coticli;Jna clc outros. Mcsmo qu e sc tratc clc c!ocument.os rroduzidos por agentes nwtropolitanos 011 por seus auxiliares diretos, e que t.rag;1m ;1 marca do discurso oficial - muitas vezes preconce ituoso e clcformaclor- e possivcl, com base nest:ts fontes, rcfazcr um rouco cia rcvolta pcrma ­n e nt.e e clifusa que caractc, ri7.Clll a vicl:1 n:1s Minas dur:1nte a seguncla metade do seculo XVIll. H.e volt:l qu e cstcvc Ionge clc contestar o jugo colonial lll:ls qu e sc· \·:lieu. com asrt·rci:l c·

clete rminac;:8o, clo cl:Jcle de cnntcxtns veis conforme a circunst:1ncia h1.st6ri ca . mas c1pazes cle c.:ri:11 uma tradi\~ao c on test atari;J e uma mem6ri:t insurgentc.''

'··~· ·· ---~~--~~~~~~---------~------~--------~~~~~~~~-

Page 53: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

DE GARIMPEIROS A QUILOMBOLAS

Nus prirneiros meses de 1781, tropas do tenente coman­dante Antonto Jose de Araujo deram com mais de trezemos homens trabalhanc!o :1 flor cia terra nos morros de Santo An­tonio de Itacambirussu. Houve !uta, resultando um mono, varios feridos e tres presos, que seguiram para a Intendi':ncia clos Diamantes. 0 exito relativo deveu-se a pouca informa­c;:ao dos garimpeiros acerca do tamanho real das forc;:as ad­versarias, que julgaram maior do que na verdade o era.H

A tensao continuou durante todo aquele ano. Ora era um furriel a subir o morro e encontrar dezenas de escravos que, mesrno sem trazerern ferramcntas de minerar, cram presos, enquantu rnais de cem garirnpeiros clebandavam diantc dos ulhos dos solclados, irnpussibiliudos de os perseguir por ir <."~Iindo :~ noire.''• Ora er;; um grande choque em que o s soldacios c·ncontravam rnais de 200 pessoas minerando clan ­destinamentc e ctpazes de os receber a tiros. Desta feita, ocor­reu Ulll com!Jate d e mais de m eia hora, animado porum pa­dre da Vila do Principe que incitava us garirnpeiros a berra­r·em : "Morra, morra aqui tudo · As trupas do guverno mara ­

ram ccrca de 6, entre cles urn artifice ferrador, e feriram deze­n;L~, entre outros o filho de uma crioula lnes, que ficou che io de cutiladas. \Jns puucos , por esl:lrem cloentes, nao ofcrece­ram t·csistencia, sendu presus com Llcilidade: jo~10 da Cos­ta, brancu;"' Apolinario Teixeir:t, pardo forro; Filipe, escra­vo mina; urn molcquinho n ov o , de nume )oao. Jogados n o ch;"to, achararn-se uns papeizinhos que cmbrulhavam dia­mantes pequenos. Quando os soldados voltaram no dia seguinte, os mortos do inimigo haviam sido enterrados du­rante a noire, indica ndo o respeito pelos rituais mesmo em condic;oes adversas. A patrulha que seguiu procurando pela serra encontrou outros servic;:os que davam mostras de con­tar cum muita genre. Contudo, esta havia debanclado, deixandu tudo para tras. 17

Sun"cliarn- sc cxpedi\'i'>es: "Mateus Afonso foi corn 80 arnus, o Vascu clu Arassuai cum 150 annas, e cem bestas carrcgadas com mantimentos " Curria qu e cada vez se ajuntava tnais gente na serra, entre a qual contavam 12 clerigos: "0 puvo e muito; a se rra, muito gran<..le, e e impassive! vedar-se

142

sem muita fore; a de soldados e pedestres." Dizia-se que os garimpeiros c.lesceriam para queimar todos os solclados nos quarteis, que, sendo de capim, arderiam sem rnaior esfon;:o. 18

0 rnedo se alastrava, e falava-se de 1000 homens armaclos a trabalharem clandestinameme no alto de Santo Amonio de Itacambirussu. 19

Doquartel ao pedo morro, o soldado_com obrigac;:ao de cabo Sebastiao Antonio da Silva escreveu para o cabo de esquadra Felix Dias Bicalho ut~ dos melhores relatos desses combates ocorridos na serra, Vale a pena transcreve-lo:

.rnarcharnos corn os 10 soldados das nossas guardas, e 8 pe­destres; e logo chegando ao retiro chamado o Barreiro avista­rnos urn grande numero de garirnpeiros, que seria mais de 200, que se vinharn avizinhando a esta serra, os quais avistando­nos nao fugiram; mas antes se uniram a uma Jinlra corn as armas trar,-adas, e nos esperaram, e assim que chegalllos a tiro de clavina, seguirnos a falar-lhes tao somente n6s :.uniJos, e os mais deles se achavam corn as caras tintas de diversas cores, a fim de nao serem conhecidos; e a estes lhe dissemos que retro­cedessem, e que se o nao fizessem naquele Iugar rnorreriamos todos, o que assim fizeram ate ce rra altura, e da[ se foram espalhando, que julgo se tornaram a unir, e por diverso carni­nho sc m e terarn na serra. Da[ a duas leguas de dist:lncia en­conrrarno.s outra igual tropa que seg uia o rnesn10 run1o; rnas

assirn que no s avistaran1 ao Ionge sc forarn retirando, e Irteten­

do aos raboleiros; e por ser grande n(JJnero de gente armada, os nao seguimos; e seguindo para o clito s[tio do Vira-Saia, chegando a ele entramos na diligencia das buscas tanto na casa do morador, como em ranchos a de imediatos, e avistamos logo a tiro de bala aquele sitio rodeaclo de garimpeirus armaclos, que mostravam ser mais de 500; e como praticamos as buscas, e nao achamos cousa de contrabando, nos fomos retirando ao Brejo das Almas, onde demos de repente, e nao encuntri (sic) mais os rnascates, e s6 achamos duas caixas de fazenda, que declarou o dono cia casa ser esta do chamado o Fruta, que a[ a tinha deixado para a mandar buscar. E como se lhe nao acharam diarnantes nos recolhemos a dar algum descanso aos cavalos, e ternemos subir a serra porque ha notlcia andarern nela mais de 1000 garimpeirus, e estas nossas fon;:as nau pod em competir con1 eles. 20

Voltando de noite para enterrar seus mortos e cuidar de seus despojos; pintando as caras para nao serem identificados;

143

Page 54: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

dispondo-se em fileiras e aguardando disciplinadamente as negocia.;:oes sem dispararem urn tiro sequer, apesar de se acharem bern armados, esscs garimpeiros sugerem born grau de organiza.;:ao e coesao interna. Quando algum morria trabalhando, soterrado por urn penedo, os companheiros iam buscar o capelao cia administra.;:ao diamantina para que lhe ministrasse os ultimos sacramentos. 21 Havia, portanto, la.;:os de solidariedade que os uniam ao resto da popula.;:ao, muitas vezes participe das atividades infratoras. Corria que varias autoridades do Distrito Diamantino achavam-se envolvid;:~s nas atividades ilegais. Em plena luz do dia, muitos subiam o morro com ouro em p6 para comprarem diamantes 22

E havia os que vendiam alimentos aos garimpeiros. Para sua subsistencia, estes contavam com pontos de abasteci­mento esp;:~lhados pelo sope do morro. Um deles, o Vira-Saia, localizava-se a 7 leguas cia serra, e guardava grande quanti­clade de mantirnentos, periodicamente procurados pelos garimpeiros. Assim que se deram conta disto, as autoriclades militares tratararn de ciesmantelar o ponto, colocancio no local urna esquaclra que irnpedisse seu novo crescimento 21 Outra forma d e interceptar o abastecimento cia serra, diziam alguns clos oficiais, era compr:u todos os gencros que, nas imedia<:_:oes dela, sc cncontrassem clisponfveis nas maos cle comboiciros, quebrando, assim, as for<;:as c!os mineradores clandesrinos-' '' lsto nao era facil: o circuito cia serra tinha entre 11 e 12

leguas de extensao, e dele partia urn sem numero de estradas, "por toclos os !ados deJa, e tinham caminhos tao seguiclos e tao trilhados como estraclas ptiblicas" .>I

Para complicar o controle sobre o abastecimento, havia as venclas privaclas, de conhecimento exclusivo clos interessaclos. Nelas, como ja foi clestacaclo por outros estudos, garimpeiros e quilombolas teciam la~;os de soliclariedade. 26 Em junho de 1782, Pedro Gomes Barbosa, comanclante de uma cL1s esquadras que patrulhavam as imedia~;oes do Tejuco, escre­veu a D. Rodrigo urn 6timo relata cia ronda que realizar;r no mes anterior, testemunhanclo a existencia Jesse tipo de sol idarieclade:

144

Dei husca na casa do alferes Antonio Moniz de Mcc.leiros, por ter notfcia que na dita casa havia uma venda, aunde os negros

fugidos e garimpeiros se iam rrover de mantimentos; achei a dita veneta, liz tomadia em tuclo qttanto nela se achav:J, e avi-sei ao dito alferes que n:!o conl!nuasse em ter a diu ven-da, como semprc ali tinha It-ito; porque se eu o rornassc :1

achar o havia prenc.lcr. Ele disse que a ve nc!a era para os seus negros, e que nao vendia a ourros; porem nao e provavel que ele sortisse uma venda de t.ocla a qualidade de mantimentos, e com muita abunc!ancia, para vender a tres ou quatro negros, que e o mais que podia ter em casa; pois os mais todos estao no contrato; mas ainda no caso de ter muitos, nao ha pessoa alguma que ignore u ele nao vender aos seus negros; mas s6 aos fugidos e garirnpeiros; e tanro assim que nunca cleixou de haver quilombo ao pe da sua casa; e com tanta liberdade que ate as suas escravas iam de dia ao quilombo conversar com os ncgros fugidos ... (. .. ) Dei tambem busca em cas a do Sargento-mor Jose Luis Franca porter notici:t do rn e smo: achei a venda; rorem n~o tinha rnanrimentos. _c.;() ~1cht'i cin co harris clc al'ttarrtenre rcrr;1dos, os quais c ll!ll roln de furnn aviso que an

Gomes Barbosa foi cnrao p:Hrulhar o cc'irrego do Bandeirinha "por rer noricia que andavam negms trabalhando nas areias" Deu com clois, que fugiram rna! :lVisraram a tropa. Orclenou que se lhes atirasse nas pernas, "porem um, querendo saltar cla outra parte do c6rrego, cscorrcgou. c caiu embaixo; no tempo em que ele ia s:rlt:ttHl<i lhc :lfir:Iram os pcdestres, e atirando-lhe as penns !he cleram n:1 c::tlw(a, por clc tcr caido e morreu". 28 0 outro negro, apesar de encontraclo garimpanclo, foi entrcguc ao senhor. Arr:rnjo informal. com a conivh1cia c instru<;:iio do Tntenclcnrc, pois n<t vcrci:Jde negros garimpeiros deveriarn ser confiscados. 0 lntcndentc, contuclo, preservanclo a propriedacle dos senhorcs de cscravos, manclava que tais negros fossem tratados como quilombolas, c. uma vez castigaclos ao arbftrio do captor- tronco, a~;oite -, entregues mediante 0 pagamento cia tomaciia, Oll seja, 0 valor devicio aquele que capturasse um escravo fugiclo 29

Os v:irios carninhos que uniam o mundo melhor orclenado clas aglornera<:_:oes urhan:1s an do garirnpo cbnclcstino; os homens de patente a acobertarem vend:t.-; c l:tndestinas ondc g:rrim­peiros e quilombolas se encontravam;. o f:tto cle "a maior parte dos quilombos" estarem "ao pe das fazencbs para clestas serem providos cle mantimcntos", como informava Gomes Barbosa, indicarn a interpenetra<;:iio cia orclem e cia desordem; ilustram

145

Page 55: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

a t1uidez de limites entre o lfcito e o ilfcito; ciao elementos para se compreenuer melhor a conivencia entre autoridades e infratores- ao fim e ao cabo, uma entre outras manifesta<;oes peculiares a sociedade que se formou nas Minas do seculo XVIII: muitas vezes rigida na normae na letra, quase sempre an{trquica na pratica c no costume."'

Nao causa assim estranh:1mento que u mesmo Barbosa iniciasse o rclato falando de garimpeiros e, aos poucos, passasse a tratar de quiloml)olas, sem sequer esclarecer seu corresponclente acerca cia mudan<;a de assunto.

.como estes los quilombolasl tiveram aviso, assim que foi noite fugiram, e de madrugada, inclo-se dar no quilombo, nao se achou pessoa algurna; seguiram-se pelo rasto todo o dia, porem nao se puderam alcan.;ar; porque eles, alem de nao pararern, der:.!In aviso a cJois quilombos mais que cstavam no c:munho, JUntaram-se to dos, e forarn fugindo sernpre: no o utro di:t :H:turam-se os ranchus deles ; c:tcl:l <.jUilornbo unha 9 r:tn-l-hus grandes, que fron!e d<J (Ht!ro

~nrai~ti s , e e.stava u1n quilornbo de

Mas estari:t Cumes Barbosa, de fato, mudando de assunto' Vej:t-se o que escreve na seqiiencia

1nas isto e nada, ~l vista da gente que anda nos c6rregos: a maior parte sao porem nao se pocle explicar a quanti-dade, pois e maior 4ue V.Exa. pode supor, e maior do que eu julgava; porque s6 a pucle compreender depois que a tenho vista ; ern uma palavra esta o Serro perdido; porque nao b:i quem deixc de manclar o seu negro trabalhar para os c6rregos, e como acham a bondacle do lntendente. estao com a maior liberdade que pocle haver, de tal sorte que ate os administrado­res e feitores dos servi~c·os, como ja disse, estao mandando os negros nos domingos e dias santos trabalhar para os c6rregos: o povo vendo este exernplo e tendo quem !he de de comer aos negros, e tudo quanto eles querem, sao muito raras as pessoas que nao trazem negros nos c6rregos corn o pretexto de que anc!am fugiclos ... "

CONCLUSOES

No Distrito Diamantino, as autoridades locais fingiam que os garimpeiros eram quilnmhulas par:t assim dar continuidade

146

ao extravio e poupar os senhores do confisco de escravos postos de caso pensado na minera<,:ao clandestina de dia­rnantes. D. Rodrigo jose de Menezes, o governador ilustrado das Minas que dali seguiu para administrar a Bahia, ja feito conde de Cavaleiros, percebeu como poucos, antes e depois dele, que a situa<,:ao na capitania era cornplexa, diffcil de con­trolar e, no limite, explosiva. Tarnbern por isso viajava: tudo queria ver com os seus olhos, e nao com as dos subalternos. Dentre estes, alguns parecem ter intorporado a obsessao do chefe: Gomes Barbosa, par exemplo, escreveu da desordcm do garimpo clandestino que "s6 a pude compreender de­pais que a tenho visto"_ Das medidas tomaclas no reino, sem o conhecimento corografico cia regiao, D. Rodrigo diria que resultavam em enganos. 33 Se os governadores tives­

sem mais autonomia, e amplo poder "para mandar comi­natoriamente toda a qualidade de pessoas", fazendo au mes­mo tempo "todo o bem que soubesse a sua capirania, sem o receio de ver sua autoridade embara-;:ada e ultrajada por ho­mens insignificantes" - leia-se, entre elas, as autoridaues do Distrito Diamantino - as coisas poderiam ser diferentes, e manter-se o controle sobre os dominios ultramarinos. En­quanto tal nao se passava, prosseguia D. Rodrigo, "hao de os povos das col6nias chorar mil calamidades, c Sua Majes­tade ha de ser nelas muito mal servicla" Jq

0 reformismo ilustrado de D. Rodrigo jose de Menezes esbarraria nao apenas no desconhecimento de causa do Con­selho Ultramarino como tambem na mcscla <Je corrup<;a o administrativa, contrabando e defesa a ferro e fogo clos interesse$ escravistas vigentes nas Minas e, no caso deste estudo, no Distrito Diamantino. I:'9-_r_a. C:Ot11plicar ainda mais as coi_s_as, havia formas de orga-niza<,:ao e solidarieclade a uni~:~~ diferentes segmentos sociais. Solid;riedades verticais, irmananclo garimpeiros e quilombolas, homens livres pobies -e . escravos; solidariedades horizontais, dando -mesmo que mome~tanea, a senhores de escravos, homens patente e reles infratores. -- --

Poucas sao as correspondencias aclministrativas capazes de fornecer tantos subsidios para o melhor entendimento das tensoes sociais na America Portuguesa como a que deixou D. Rodrigo enquanto governador das Minas Gerais.

147

Page 56: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

NOTAS

1 Para as versOes tradicionais sobre o Distrito Diamantino, ver SANTOS, )oaquim Fclicio dos . Mem6rias do distrito diamantino. 3.cd. Rio de Janeiro Edic;:6es 0 Cruzeiro, 19">6; MATTA MACHADO FILHO, Aires cia. Arraial do Tejuco, cidade Diamantina. Sao Paulo: Livraria Martins Editora, [1957]. Esta em curso, no momenlo, uma hrilhantc reintcrpretac;:ao do fen6meno Chica da Silva, realizada por Junia Ferreira Furtado. Aguardam-se ansiosamente os resultados finais desta pesquisa.

2 Tocla a obra de Charles R. Boxer chama a aten(:ao para este aspecto. Veja­se, entre outros, 0 imperio colonial portugucs. Lisboa: Livraria Martins Fontes, 1969. Gilberto Freyre notabilizou a versao da sociedade portuguesa como mais miscigen;ivel, idealizanclo-a e, ao fim c ao caho, cunhando a teoria do luso-tropicalismo. Ver Casa grande & senzala formac;:ao da familia brasileira sob o regime de economia patriarcal. 9.ed. Rio de janeiro: Livraria jose Olyrnpio, 1958. 2V.

3 A melhor analise deste Regimento se encontra no capitulo hom6nimo de FURTADO, Junia Ferrerra . 0 livro da capa verde. Sao Paulo: Annablume, 1996 p.73 -112

·< Ver o rrahalho rrccmsor de FURTADO. 0 liuro da capa verde, onde se realiza pela primeira vez uma revisao critica cia eficacia da legisla<;:ao metro­politanfl no Distrito. Divirjo ligeiramente de sua interpreta<;ao: se compreendi bern, ela sustenta a ideia segundo a qual a vida no Distriro Diamantino seguiu seu curso malgrado as restri~Oes do Hegimento, e as infra~Oes nunca deixaram de prolife rar. Pe nso que foi justamente a rigidez formal do Regimento que levou boa parte cia popula<;:ao a agir ao arrepio da lei. No que cliz respeito a ineficacia do Lim·o da capa uerde em impeclir a organiza<;:ao colicliana cia subsistencia, a analise de Jlinia e muito convincente, e nao h<i como discordar

5 LIVRO Prirneiro dos Offcios dirigiclos a Corte pelo limo. e Exmo. Sr. D Rodrigo jose de Menezes, governador e capitao general desta capitania de Minas Gerais, Arquivo Publico Mineiro, Sec;:ao Colonial, c6dice 2211, f.139 et seq . .Junia Ferreira Furtado chamou a aten(:ao para o aspecto interventor das administra<;:oes do conde de Valadares, de D. Rodrigo jose de Menezes e de Luis cia Cunha Menezes, o Fanfarrao Minesio, todos "entrando frequente ­mente e m choqu e com os intendentes". FURTADO. 0 livro da capa verde, p.33. Alias, cheguei ao precioso c6clice que aqui analiso gra<;:as a uma indi­ca<;:ao generosa clesta historiadora c amiga, a quem registro o meu debito e a minha gratidao.

6 Tratei clessas viagens em outro artigo: "Frontiere geographique et frontiere sociale a Minas Gerais dans Ia seconcle moitie clu XVTII' siecle" In: MATTOSO, Karia de Queiros, SANTOS, Ildelette Muzart-Fonscca dos (Org.). Naissance du Bresil moderne. Paris: PUF, 1998. p.273-288.

'VASCONCELOS, Diogo de. Hist6r-ia m<5dia de Minas Gerais. Belo Horizonl e· Imprensa Oficial de Minas, 1918. p.239.

R Santo Antonio de Jtacambirussu e hoje 0 municipio de ltacambira, originado de povoaclo que remonta a 1698, quando dos primeiros descohertos de ouro na capitania de Minas Gerais. Muitos dos colonos inicialmente fixadus

1.18

oeste arralal desceram nos an o s Ver BARBOSA , Walclcmar clc Mrrzas Ccr·ar·_, _ Bclo HortZtHliC: ls.n I

para minerarem no Serro Frio

hisr'onco-,Qeo)!rrl/"ico de :1 atual

cicl:lci e de Oiam<~ntin;-1, sendo c--·lcv:Jdu ~ ~ viL1 apcrus em e ~~ c11egona

d e cidacle ern 18.'\H, j:i no p c rinclo rq~encr;rl Em lil~j rornava-sc o segundo bispado de Minds, o qu e :Itt'S!;! sua lll'ipurlfincia_ JhidC'm . p.103 - J6t-f

a Corte pelo limo . c Exmo. Sr. I)

e capit:1o general Jesta capitania de Minas ArCJuivo Minciro, Se<;ao Colonial, c6dice n. 224, f.l39 et seq. Carta de 15/0;./1782 , f191-19lv

"' UVRO Primeiro dos Oficros dirigiclos iJ Corle pelo limo e Exmo Sr D Rodrigo _lose cle Menezes. Carta de 17 I 12/ 17HI, f. 1 58

"LIVRO Primeiro dos Of"icios c Exmo Sr D f.215 -2Hv

e Exmo. Sr. [) nova c1rta cb

Fe!fcio dos Santos :trresenta uma dcscri,-;.lo d e ssa vi;:.Jgcm com ausentes dos clocllrnentos que consultei- poi.s certarnente os que tev e e m m:los e r~1m divcrsns - , c cnlnrc sua vcrs8o com uma forte animosidade co ntra n guvernador, bcm do seu es[i]o inflamado e lihen:irio. Vcr o hra e ll ada, p.200-202 ainda .JCmia Furtado quem apresenta a rn e lhor descri<;:~to dos epis6dios ocorridos na serra, centrando a an31i.se na rensao entre autoridades adn1inistrativas e adotando percurso diferente

do yue apresenLo aqui. Ver ohra citacb "As rela~oes de poder", p.l89-199

'3 ANASTASIA. Carla tvlaria Vassalos mhcldcs . Bclo Horizonte: [s.n.l,

1998. Remeto ~l meu "Os ricos, os pobres e a revolra nas

Minas do XVfll ( 1707- 1789)" In : A nrllise e conju ntura - InconfidCnci ~ 1 Mineira e Revolu,,lo Francesa - hicenten:irio: 17H01!9Wl, v.<i. n.2. 3 Rein Horizonte : Funcla<;J o .Jo;io Pinherro, maio / dez. 1989 . p .. 31- )Ci

,_, LIVRO Primeiro dos Ofic ios dirigidos a Corte pelo limo. e Exmo Sr D Rodrigo Jose de Meneze s. Clrt<J de 22/04/1781, f 142v-143v .

15 LIVRO Primeiro dos Oficios c!irigidos a Corte pelo limo. e Exmo. Sr D Rodrigo jose de Menezes. Carla de 10/10/1781, f.H5v-147v

16 Seria este o lenclario joao Costa, senhor cia serra de Itacambirussu ate 1787, quando foi preso pelo capitau Jose de Sousa Lobo e Meio' Parece que sim, pois, conformc o termo de prisao, habito e tonsura entao lavrado, Joao Costa Pereira era "homem branco, forro". Bastante minucioso na clescri<;:ao das atividades de Joao Costa na serra, Joaquim felicio clos Santos nada diz, contudo, sobre essa 1781. Ver SANTOS

17 LIVRO Prirnei ro Uos Oficios Ro drigo _los e d e Menezes . C:rrt:J

11/1 781, fi~Ov-1~1

c Exmo. Sr. [) Carta ck 31/

111 l.JVRO Primciro d o s nficios c!irigidns ;1 Corte relo limo e Exrno. Sr. D .

Rodrigo Jose de Menezes. C:rrta sern data, ll. 149v - I~O; carra de 9/11/178!, f 150-ISOv; carta de .) l / li / 17Hl, f1)0v-IS1

149

Page 57: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

l<t LIVRO Pri1neiro dos Oficiu:-;

Roclngo Jose de Ment>zcs Carta

lo LlVRO Prirneiru dos Oficius

Rodrigo Jose de Menezes. C;trta

e Exmo. Sr. !)

;, Corte pelo limo e Exrno Sr D I!J/11 / 1781, f.l'i9 · 1'i9v.

"l.lVRO Primeiro clos Oficios dirigidos ;, Cone pelo limo e Exrno Sr 0 Rodrigo Jose de Menezes Carta de I 'i/04/ 1782, 1.192

21 LlVRO Pritneiro do.s

Rodrigo Jose de Menezes dirigiclus a Cone pelo limo. e Exmo. Sr D.

de 21/12/1782, f.I60v

"LIVRU l'rimeiro dos Ufiuus Rodrigo Jose de Menezes. Carta

a Cone pelo Ilmo e Exmu. Sr. D 17/11/1781, flSI-152

14 l.IVRO Primeiro clos Oficios dingidos ;, Corte pelo limo e Exmo Sr D Rodrigo Jose de Menezes. Carta de 22/04/1781, f.l42v-143v Carta de 10/ 10/1781, fl48v

l'> LlVRO Prirneiro dos Ofkius

Rodrigo Jose de Menezes. Carta e Exmo. Sr. D

l 6 Ver sobretudo o meu do ouro - a n11ne1ra no

seculu XVIII. Rw de Janeiro Paz. e 1982. Cap.<\ protagonistas da miscria. Vcr :11nda u cxcelentc trabalhu de l'ICUE1REOO, LuCiano Raposo de AlrneiJa. 0 ovesso da niemc)h{~ cotidiano trabalho cb rnulhcr ern Minas Gerais no seculo XVIII. Fttu de Janetru .Jose Olympio/Brasilia: EDUNB, 1995

n Ll Vl\() Prirneiru do.s Oficius

Rodrigo Jos(~ de Menezes. C;!rta

ln LIVRO Prirneiro dos Offcios

1\odrigo Jose de Menez<:s. Carta

"LlVRO Primeiro dos Otkios

o leg:d e

p . .34

\] LlVRO Prirneiro dos Oficios lhH..lnRO .Jo.se de Mene:st:s. Caru

.'ll LIVRO Primeiro Jus Ofrcius

1\odrigo Jose de Meno.cs. Carta

e Exmo Sr D

e Exrnu Sr l)

e Exmo Sr D

a existenua de un1a "fragil linha HJ]{TADO. 0 livro da capa verde,

;, Corte pelo limo. e Exmu Sr D . 1)/ 0(>/1782, f.216-216v .

~ Corte pelo limo e Exmo Sr D 15/06/ 17tl2, f.216v

"LIVRO l'rimeiro dos Oficios dirigidos a Corte pelo limo e Exmo Sr. D. Rodrigo Jose de Menezes. Carta de 3/06/1781, f.29v

.l·' LIVRO Primeiro dos Oficios dirigidos a Corte pelo Umo e Exmo. Sr D Rodrigo Jose de Menezes. Carta de 31/12/17R1, f.141v

1 so

COA~TA~AO rRO~lcMATICA c cm6DIO~ HfcRcNH~ A

MINA~ GcRAI~ NO ~fCUlO XVIII

ESCRAVIDAO, MEDO E PODER

Urn enorme contingente escravo criou, desde o inicio cia ocupa-;:ao territorial em Minas, uma situa.;;.,ao sui generis e especffica no contexto colonial. As Minas forarn incorporadas ao ambito da coloniza-;:ao no exato momento em que Palrnares estava sendo destruldo pelos paulistas: de 1693 data o primeiro dcscoberto aurffero, de 1695 a dcstruir;ao do famoso quilombu, que tanto terror espalhou entre os colonizaclores. 0 trabalho da minera-;:ao cxigiu, de imediatu, grandes quan­tidades de cativos; e a revolta das Alagoas - o prirneiro quilombo de grande porte na hist6ria da coloniza-;:ao da America Portuguesa- pairou, portanto, como exemplo a ser evitado. A consciencia de que o desequilfbrio entre homens brancos e negros escravos podia ser fatal surgiu, assim, junto com u assentamento dos colonos em solo mineiro. Todo o primeiro quarrel do seculo XVIII foi marcado pelo temor ante as con­seqi.iencias desse desbalanceamento. Por outro !ado tambem para os escravos valeu o exemplo, e as tentativas d~ levante pontilharam os anos entre 1714 e 1720. Medo por parte dos colonos e administradores, pressao constante por parte dos escravos: o imaginirio politico proprio as Minas seria marcaclo por estes tra-;:os durante todo o seculo XVIII.

Lendo de forma curiosa, ou ate intrigantemente enviezada, a bibliografia que tratou das Minas durante a decada de 80 deste seculo, uma historiadora american<~ concluiu que tais

-·· ·- ·-----·-------------------------

Page 58: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

autores - entre os quais fui inclufda - hipertrofiaram 0

papel do Estado na analise clos movimentos sociais e cia escravicL'\o mineiras, cleixanclo escapar a capacidacle de resistencia e organiza;;:ao das classes subalternas em geral e dos escravos em particular. Valenclo-se da oposi;;:ao, com objctivos analiticos, entre o esquema explicativo de Faoro e o de Caio Prado Jr. para a administra;;:ao colonial- a mesma de que me utilizei em Desclassificados do Ouro- conclui que estc ultimo autor estaria, no tocante a Minas, mais certo, ou seja, a aclministra(,~ao e o estaclo pouco puderam, na regiao, contra os intuitos e as praticas independentes e, no limite, autonomistas ali manifestadas - mesmo porque funciona­vam de forma muitas vezes ca6tica e ciesordenada.

Deixando de !ado a discordancia quanto a leitura de minhas ideias (passo por adepta fervorosa do esquema weberiano de Faoro, "his perspective is wholely adopted by Sousa, Boschi and Guimaraes", a firma serena mente a historiadora, 1 reunindo tres autores de filia;;:8o tao diversa quanto o somos, os tres citados), gostaria de reafirmar que, nas Minas, autoridades administrativas se viram clesde muito cedo as voltas com san;;:oes e tentativas de enquadramcnto da popula;;:ao cativa, pois caso contrario a colo­nizar;3o n3o poderi;1 prosseguir. 0 intuito normatizador toma colora;;:ao de f(iria sob o governo de D. Pedro de Almeida, conde cle Assumar, celebre pela raiva ante o que consiclerava soltura e excessos clos e scravos, responsaveis por leva-lo a propor, entre outras mediclas coercitivas, o corte do tenclao de Aquiles aos negros fujoes 2 Governantes posteriores, como D. Louren;;:o de Almeida, continuaram batenclo na mesma tecla. Carras regias e bandos sucessivos proibiam o porte de armas por parte dos negros, mesmo que fossem meros bordoes; impecliam ainda que os negros vagassem pelas ruas das vilas fora de horas, determi­nando aos capitaes-mores e oficiais de justi;;:a que realizassem rondas noturnas para prencler na cadeia os que perambulassem "depois do sino corriclo". 3

PROLIFEHAC,:AO DE FORROS: UM PROBLEMA

Ve jarn -se cluas explica;;:c>es correntes na historiografia sobre Minas. A primeira cliz que a ativiclade mineradora e o carater urbano cia coloniza;;:3o criaram nessa capitania

152

concli<,/ >es, mesmo mocicst as, para qu e os escravos amealhassem p ect"ilins sul"icie nte s :1o pagamcnro clc suas alforrias 0 cscravo qu e faisc;tv;t r o r conta pr<'Jpri;J :tp< S.s cumprir o hor:\rio clc trahalho, our> que cxcrci;l fun.;:c1 es artesanais panicularmcntc requisltaclas nos ;nr:1i:1is c vilas mmeiras e figura recorrente na tracli;;:ao oral. A scguncla e xplica;;:;lO c:ompleta a prirneira, e mostra que sernpre resrou aos senhores a possibilidacle cle diminufrem os revezes pecuni{Jrios- frcquentes em empreen­climcnto economico tao SLIJeiro a percal;;:os como a minera;;:ao - mediante a liberta-;:ao de seus escravos, que os eximia das despesas com a reproclu;;:ao cia for;;:a de trabalho cativa. A primeira exrlic;J~3o foi atribuida a urna forma mais branda de escraviclao, c '' uma sociedacle mais ll e xivel e permcavel a mohiliclade vertical -' A s e guncla, a presteza com que as classes dominantcs cscravistas acionavam urn mec<Jnismo de clefesa capaz de arcnuar suas perclas cconomicas ern epoca de crise.' Tendo ;mre riormcntc simpatizado com esta ultima posi;;:ao, acreclito hojc: que a rcaliclacle clas Minas foi muito mais complexa e rica do que cleixam entrever tais esquemas explicativos, simplificaclores e presns ainc!a a uma perspectiva traclicional cle focalizar a e sc:ravicl:io. Neste sentido, Kathleen Higgins, a mesrn a que nao entenclcu hem as nuan<;as do poder ern Minas, acerta quando cliz qu e e necess;lrin atemar para formas clisrintas de resist e ncia, engenclradas no seio cia carnada escr;wa. Acerra, igualmente, ao mostrar a larga inci ­dencia cle forros rroprietarios de escravos e cconomicamente remediaclos, a rrdtic;l coticliana cliscrepanclo das meclidas restritivas a que s e aludiu acima e a esrrutura social se mostrand o bem rnais complexa clo que as leis forjadas no Rcino, ou sugcridlas por adrninistraclores aincla pouco afeitos a realidac!e cia A(lli Cri c: a Portuguesa 6 A abordagem clas alforrias cleve, ponanro, levar ern conra ambo.~ us aspe ctos: o temor c as restri<;oes anre a me~ior inc:ic!encia cia pr;]tic:a, expressos pelo Estaclo c seus age ntes; a g e n e raliza<;:ao cia pr{Jtica, mostranclo qu e ~~ soci ecl;Jcl e ni10 apcnas a tolerava como , po.~siveln1 e nr e . ncccssitav;1 clt-Lt ."

Quem conrudo abri11 p e rspectivas p ;na Ds estudiosos hrasilcir()s da esc raviclao, cl cscortinanclo um scm num e ro de possibilidades an:alfticas. foi SilviJ Hunoldt Lara, em Campos da Vio!encia, ohr<n hastantc insriracla numa certa historiografia

153

Page 59: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

anglo-sax6nicaH HuJe, v:1rius estudos mais especificos, seja sobre a natureza da :;ociedade rnineira, seja sobre as rela<;c'ies escravisus rLt regi:~io :1dot:tm, em grau variado, :1 pcrspectiva segundo :1 qual as estrategias de resist.?~nci:J se constrocrn a partir de pr:ttJClS cotidianas."

0 problema cbs alforrias parece-nJc~ central para repensar a problernatica do escravismo nas Minas Cerais. Desde rnuito cedo, foi gr:1nde u n\1mcro de forros na capitania. Em vez de relativiz:n c> papc~ l d:1 escr:lvicEio, tal presen~;a conviveu corn t~.'·;te regime :1tl- o final clu seculo XIX - epoca em que, no clizer de Roberto Horges Martins, a rcgiao se havia tornado "o maior sistema escravista das Amc'ricas". 10

A presen<,_·a de forros come<;ou a incomoclar de forma rnais sistematica no momentu em que a prospericlade advinda cia extra<;ao aurifera atingia seu apice. Ern 1733, ano ern que teve Iugar o Tn'unfo Eucar[stico -·expressilu, a meu ver, da euforia decorrente de tal orclem de coisas -, D. joao V escrevia ao conde das Galveas, cntao governador da capitania, pedinclo que prun~des.se a um recc·nseamentu do numero de homens livres t: cle cur existentes n<J capirania. No ano anterior, o t'ondt· IJ:Jvie~ m:JnifesLtdu ;1o mon:rrc:1 inquieta<;ao ante o n\Jmero crescent<: d e fo rros, rec o nh ecendo contudo seu peso e papcl nas ativichdes econ6rnicas. Se orclinariamente eram atrevidos, considerara o governante, "no mesmo tempo trabalhavalll todos nas lavras do ouro, diamantes, ro<;as e

, paganclo os quintos reais. A tocla urna ve rtente explicativa

que, desd e ent:io, procu rou dar co nta d a problem{nica clas alforrias· "Nilo !tavi:t d(Jvida que muiras sc faziarn, umas por gJ·aticl:'lu de scus se11hurcs p o r alguns servr<;os que deles rec-eiJi:Jill, c <>utr·as cornu dinhciro que ajuntavam os mesmos negros." Veind:rv;J, igualrncnte, a idCia- qu e j{t existia, oriunda das zon;ls :mt1ge~s de puvo:rrnento, e que sc tornaria corol:i.rio no seculu seguinte- que cJ rnulatu cr;J urn ser desprczivel: '' No que respcit:1 ;los mulatos furrus , que estes sao mai s insokntcs porque a mistura que tt'rn de hrancos os enche cle tanta solx~rba e vaic.!ade que fogem :to traball!u servil com que poderiam vivcr, c assim vive a maior parte deles como gentc ucios:1." 0 rei tcrmin;~ perguntandu se o guvernadur :lc·hav:J Jlec·t'.>.<tric> turnar provid(·ncia:; quantu :10 excesso ck

IS·i

forros, tanto negros quanto mulatos, mas sobretudo quanto a estes ultimos, por viverem "em grande liberdadc"-' 1

Com u passar dos anos, a popula~au livre cle cor cresceu tanto em Minas que , na scgunda metacle do seculu, tornava-se clez vezes superior a de outras areas escravistas cia America, como a jamaica ou o Sui clos Estados Unidos 1 2 Gratidao de senhores generosos, sensfveis ante a dedica.;;ao de um cativo; pecLilio aclvindo do sobre-trabalho que os poros da economia escravista mineira possibilitava: estas as formas basicas as quais se atribuiram tradicionalmente as alforrias em Minas.

Tudo indica que, no correr clos anos, os parclos forros foram se diferenciando, procurando, talvez, furmas peculiares de obten<;ao da liberclade. E o que parece indicar urn docu­mento curiosfssimo, unico mas intrigante o suficiente para fazer pensar na possivel varieclade de propostas de alforria correntes ou em gesta.;;ao na sociedade mineira.

Ern 1798, ern Mariana, um capitao do Regimento clos Pardos chamado Miguel Ferreira de Sousa andava "publicamente espalhando a cizania" de que o governador cia capitania tinha ordem regia "para que us pardos cativos sejam forros e igualmente tudo o mais, ate os pr6prios negros depois de haverem servido dez anos". 13 Tais vozes causaram um "movi­mento geral" entre os homens de cor: comec,:aram a cleixar o servi.;;o de seus senhores, "meio alucinados", e, por serem muitos, temeu-se que promovessem uma sedic;:~lo e pusessem em risco o "sossego dos vassalos de Sua Majestade, e seguran~:a de seu Real Patrim6nio".

Aberta a devassa, Manuel Ferreira d e Sousa, "homem pacffico mas falador", revelou ter enviado ao m o narca uma representa<;ao opinando que os pardos ou nc~gros cativos deveriam ser forros ap6s servirem por clez anos. Precipitado, <HI mesmo visionario, disse que o governador a tinha em seu poder, e a faria publicar como bando. Para ass istir tal atu, muitos escravos sc dirigiram a Mariana. lnformado, Ferreira cle Sousa exibia lei analoga, mas referente ao Reino de Alga1ves e a outras comarcas d e Portugal. Espertalhao, pecliu "mimos" para tratar cia liberdacle clos interessados: ouro, algodao ou "ate mesmo galinhas". Popular, seus apelos ca laram fundo entre os companhciros, e correu que os mulatos o aclamaram como seu "Redentor". Reivindicadur, apregoava que "brevemente

15 5

--------------------------------------------------~-- ~--

Page 60: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

os parclos haviam de servir nas Cimaras e nas Irmanclacles do Sacramento, e Orclens Terc:eiras".

Por f;mLlsioso nu anecl6tico que seja, o epis6clio expressa o anseio corrente entre os homens de cor- tanto livres quanto escravos por liberdade juridica, acesso a cargos e honrarias. 0 que justificava tal anseio era o fato de cumprirem com suas obriga<;:oes c:ivis. Nos doc:umentos, nao aparece o vocabulo cidadao, e e discutivel que o conceito fosse, entao, de domi­nio comum. Em ultima instanc:ia, c:ontudo, e de cidadania que se trata, ou melhor, da sua extensao aos homens de cor, livres ou esc:ravos, que faziam a sua parte, cumprindo com suas obriga<;:oes.

De fato, aqui residia o engodo e a contradi<;:ao de uma ordem social que aceitava a alforria, promovia-a ate, mas continuava considerando os forros como suditos subalternos, incapazes de govcrnar as vilas ou integrar as irmandades mais prestigi<1das - que seguiam senclo, pelo menos de direito, espa<;:o privilcgiado dos homens hrancos.

A COARTA(=AO: MODALIDADE ESPECIFTCA DAS MINAS

Uma clas pcrsonagens mencionaclas na devassa aheru contra o cxcentrico capitao do Regimento dos Parclos era escravo de uma senhora ja falccicla, Ana Joaquina, e sc chamava Antonio. Diantc dos boatos sobre a iminencia cla liberdacle dos negros c mulatos, declarou que "nao queria pagar o se u clquartamcnto '' porque "vinha uma lei dizenclo sobre o s cscravos, homens mulatos, cabras e crioulos serem forros" Antonio abria mao, assim, de uma das formas rnais peculiares de se obter a alforria nas Minas, o coartamento, ou coarta<:;ao, esperanclo que esta outra, menos clemoracla c

incerta, o bcncficiasse .

A. coartac;:iw rcpresenta modalidade de alforria pouquissimo estudada entre n6s, e, ao que tuclo indica, pouco difundida no territ6rio cia America Portuguesa, mostrando-se contudo mais usual na capitania de Minas Gerais. Stuart B.Schwartz referiu-sc rapidamcnte a tal modalidade em seu trabalho

156

basilar, Sef!,redos Infernos. No minucioso estuclo :1cima ref.erido Kathleen Higgins c:ertclmentc sc clcpamu corn a couta<:;a~J, scm: contudo, perceher su;1 especificicl:ldc : p:1rece te-la incorporado ao rol clas manumissoes "condicionais", pois nao a menciona separadamente, cleixando-a confundicla n:1 massa das alforrias obtidas por meio de contrato, as mais nurnerosas clentro do universo em estudo. 14 Numa 6tima dissertac;:ao de mestrado, Eduardo Franc;:a Paiva mostrou, estudando a mesma regiao abordada por Higgins - a comarca do rio clas Velhas, com sede em Sabara -, que, nela, a pratica do coartamento foi muito comum; mas, apesar de escrever sobre o assunto as mclhores paginas de que tenho notic:ia, nao chegou a apro­tundar a analise."

Schwartz menciona de passagem a coarta<;'ao p:1ra mostrar a existencia de variac;:oes e nuan<:;as no seio cia condi<:;ao escrava; dentre tais variac;:oes contava a do escravo coanado ou seja, aquele que conseguira o direito. "cxpresso por sel; propriet;.'nio em testamenlo ou outro documento, de pagar pela prc'Jpria alforria", permilindo-se-lh e certa liberdade cle movimentos "ou :1 capacidacle clc ohter t' conserv:1r a pos.sc de hens que lhc pc rmitissem ;IcumuLtr ;1 qu:Inli:l ncce.ss:lri:I .. F rt~ sumc. cl e tininclo: "o coan:1do er:1 um e scravo em processo cle rr;tnsi\·;lo p:1r·:1 :1 concli~·Jn soci:1l clc livre".'''

Fclti:trclo Franr,::1 h1iva aprnxima ;~ condi t,;::l<.l clo escravo coartaclo claquel<1 do negro clc ganho, hoje bem estudaclo entr·c n6s inclusive por alguns lrabalhos j<l classicos, como o de Leila Mezan Algranti. 17 Acertadamcnte, a meu ver, o autor mostra que, "entre o cativeiro e a lihe rta<;,::lo, o coartaclo inseria-se no mercaclo cle trabalho resguardado, geralmente, porum clocumcnto :1ssinaclo pelo proprietario, clenominaclo Carta de Corte", que confcria ao portaclor "o clireito de procurar, prc'i­xirno uu di.slante cln dominio scnhorial. ns meios para salclar presta(_'oes refercnt es i1 comrr:1 de sua Cl!1a de AlforTia".'"

C;:lnho e coart:1<;·:lo se ri:1m mais frcqi.icntes e m rneio urhano, pois a ciclade propici:1v:1 clivcrsificat;·:'to profissional c dinamt ­za<:;:1o cia economia. Nu c1.so cL1.s Min:1s, :1s vanragcns do meio urbano somavam-se a certas peculiaridacles do trabalho cia minera<:;ao, pois nas ciclades, assim como nas minas e bateias, os escravos podiam, segundo ohservou Higgins, exercer atividadcs autonomas, nao supervisionadas, das quais,

157

Page 61: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

estrategiclnlent<::', extrairi~1m mais facilmentc beneficios pecuni~1rios.''' Cabe lembrar que, apcsar da preponcleranci<l do bras:o escravo, sabe-se hoje que us cativos encontLlvam, nos poros e intcrsticios do sistema, possibilidades para "vender" sua fon;·a de trabalho- f'usse diretamente, conseguindo ganhos com uma ativid:1cle suplementar rcalizacla fora do tempo cledicaclo au senhor; fosse incliretamente, trabalhando ao ganho, ou aluguel

VoltandtJ :1 coanas:{lo, 0 impurtantc salientar seu aspecto de ~dforri~1 condicional sem contuclo dcscurar os tra\·os rnuitO peculiarcs que a Clractcrizam. 0 escravo seria beneficiado se pagassl' determirucb quar1ti:1 previarnente cleterminada, dividicla ern p~1rcelas que puclia111 t>Ll nao ser fixadas de ante­m:1o. Er:1 cumum que ul forma de alforria viesse ap6s a rnorte clo senhor, e que sC> f'osse concedicb mediante certas condir;:oes: bom comportamento, obriga<,;:lo de, primeiro, servir o senhor ou sua Llrnilia ate a mente de clctcrminados membros etc . A Cana de Corte, quL' d~lV~l a libcrdade ao cativo, s(J era conce­did~l :IJl<->S ~ ~ quit~l\· ~·lu l'lHllJlki:l da divida, ou seja, quando u csc·r;lvcJ p~1g:1SSL' ~~ quanti:~ correspondence ao seu valor. Stu~lrl Sc· hw~lriZ foi porl:lnlo h;lsLlnte feliz ao se referir a coarta~·:1u como forma interrnedi<'iri:l entre o cativeiro e a liberdadc: um cscr;lvc> coartado, tudo indica, nao era o mesmo que um mcro escravo, nem tamrx>uco se igualava au forro, .'iitiJanc!o-se, de fato, nurn meio-caminho entre uma condir;:ao e outrazo Para o cstudioso da hist6ria antiga de Minas, chama a. atenc;:ao a referencia constante aos escravos coartados, pre­sentes numa gatna variada de docun1entos: invcntarios, testa­rncntos, c1rtas ao govcrnac!or·, querelas, as:oes de liberclade.

CAl\ACTEH.bTICAS UA COAHTA<;=AO EM MINAS

Os dois trabalhos que mais subsidios fornecern para uma an;'llise d~1 co:lrla<Jlo ern Minas durante o seculu XVIII dizem respeitu :1 com:Hcl du rio clas Vdhas, a maior das Minas, e a rnais populosan Nela, o crescirnento da popular;:ao escrava rarece acompanhar o do ciesenvulvimento cia explorac;:ao auri­fera: ocorreu um grande :1rranco entre 1720 e 1735, quanc!D quadruplicou, pass~.mdo dcpois ~~ ~1urnentar menos, ate o fin~d

do seculo-" As manumiss6es condicionais, ramo aquelas a serem realizadas em data futura como as que ::;e seguiam i1 morte do senhor, cresceram, conforme o estudo de Higgins, ap6s 1759: denlre elas, certamente se encontravam as coarta­r;:c>es, ja que, como foi dito, a autora nao p:uece se dar conta das nuanc;:as envolvendo a alforria.

A analise de Franp Paiva corrobora esta hip6tese, pois cons­tatou o aumento das coartac;:6es a partir cia decada de 30 -cabendo ressalvar, contudo, que seu universo documental c mais restrito, dizendo respeito aos testamentos post -mortem. 0 habito de coanar os escravos foi sendo paulatinamente mais comum do que o de alforria-Jos, correspondendo possivelrnente a uma estrategia senhorial com vistas ao aumento de seus ren­climentos- o que explicaria, a meu ver, a maior incidencia de coartac;:oes em epoca de rnenor dinamismo econ6mico. 23

As interpret<J<,'oes de ambos os autores mostram-se, as vc­zes, conflitantes e contradit6rias, sobretudo clevido ao fato de Higgins nao destacar a coartar;:ao do conjunto c!as alforrias. Suas hip6teses sobre o momento de maior incidencia de alforrias e coartac;:oes se apresentam aparenteme nte di.'icre­pantes: a primeira metade do scculo para !Iiggins, a segunda para Paivaz4 Ha constatar;:t)es, entretanto, que parecem bem assentadas, tais como a de que o pres:o das alforrias em geral e das coartac;:oes em particular caiu na segunda metade do seculo - o que, a meu ver, talvez tenha facilitaclo a acior;:ao cia pratica por um numero maior de cativos 2 '

Se todas essas constatac;:c>es se baseiam. em evidencias referentes a comarca do rio das Yelhas, que tinha por cabes:a Sabara, creio que podem ser generalizadas para o conjunto da capitania_ Isto se justifica dado o volume do contingente escravo naque!a regiao. Yarias:oes ocorreriam, com certeza: mas nao de forma especialmente significativa_

Resumindo, o aprer;:o pelo sistema clas coartac;:oes cresceu conforme avanr;:ou o seculo. Sendo a coartac;:;io uma forma de alforria paga, pode ter siclo a mancira encontrada pelus senhores para minorarem os efeitos advindos da crise minera­L(>ria. Por outro ]ado, a capacidade clos escravos comprarern

::;ua liberclade em parcelas atesta o ciinamismo cia economia em Minas, mesmo na epuca de "decadencia": esta cliria

159

Page 62: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

m a is respe ito ao d ec resc imo dos re ndim e nt os a urffe ros e , co nseqll c nte m e ntc, d a tributa .;:ao, o qu e fe r ia d e forma es p ec ia l o Era ri o Reg io; m as nao s ig nifi cava, p a ra a m a ior parte clos habita ntes, estagnac;:a o 26

Nao sendo propria me nte espe cialista e m estudos sobre a esc rav id ~r o , re uni , contudo, ao Iongo d e a nos de pesquisa declicada a hi st6 ri a d e Minas no seculo XVIII, ce rca de uma vintena d e casos re fe re nte s a coartac;:ao de ca tivos naquela e poca e regiao. 0 ca ra te r excentrico e atfpi co q ue ocupam no conte xto ma is ge ra l d as alforrias tern -me in trigad o durante todo esse te mpo. Sem ap rese ntar ex plicat,;6es acabad as e sem pretende r conclui r a lgo ma is cons is te nte sobre o fe no me no , passo <1 a prescnta r hip6 teses so bre o assunto, funda me nta­clas e rn evi cl e nc ias e m pfricas .

Me u uni vc rso docume nta l e variado . Refe re -se a 22 casos, contidos e m 23 d ocume ntos : te s ta mc ntos (6), ca rt as e ntre a uto riclaclcs ad mini s trativa s , inclusive o gove rn aclo r ()) , a r,: c) c s c ive is (4) , ca rtas de a lfo rria 0). requ e rime ntos (2) , escritura cle :llforria e li bc rclade (1), provisao ( 1) , carla de coa rta rn e nto (1). Estes doc u mcntos se e ncontra m es pa lh acl os po r dive rsos uq ui vos: Hib li otL'C<1 Nac io na l clo Ri o de Ja ne iro ClO), Arq u ivo da C:asa Se tece nti s ta cle Ma ri a na (8), Museu do Ouro- Casa cle Borba Gato , Saha r{J (5) , Arqui vo Pu b lico Mi nc iro , flel o 1-lo rizonte en. l~ e fe rem-se, na sua qu ase tota li cb cl e, aos qu :l­re n ta (dt imos a nos do secul o, co m exce~ao cl e clo i .~ casus s itua d os e nt re '17 18 e 1719: a d e cacla de 60 conta com 8 casos, a de 70 com 5, <1 de 80 co m 3 , a de 90 co m 3 e h :l 2 casos se m d ata. Tal pre d o min ii nc ia se deve ao fa to d o recorte c ro nol6-g ico d e minha pesquisa a tual, sobre soc ie dacle e cultura em Minas , es ta r re fe ri do a segunda m etade do secu lo XVIIT; coin c ide nte m e nte, o u tros estudos, como os ac ima co me nta­dos, cons ideram- n a o pe rf o d o e m qu e ma is ocor re ram co a rt <1 me ntos. Os loca is re presentados ta mbe m nao sao fruto cle q ua lque r le va nt a m e nto ma is s is tema ti co: Ma ria na conta com 8 casos , Sa ha r:r com 5, Vil a Ri ca com 3, Paraca tu com 2, c r~is t a i s e Lav r:1s do Fun il com 1, havenclo It clocume ntos sem refe re ncia p rc c isa a loca l. 27

Ve j;rm-sc· : q:.~o , ~a as caracte rfsti cas dus age nt es e d a ar;ao (o coartamc rJt o). Dcn tre os e nvolviclos, pre clo minam as mulhe res: sao 15 contra 9 h o m e ns, estancl o com p utados, e m d ois clos

casos, os filhos me no res (as "c rias''). Ta l s rtu ac;:ao ac ha -se co nfo rm e o resu lt ado d a pesq ui sa d e Higg ins, muit o m ~Jis s is te mati ca mas refe re nte as a lfo rri as e m gera l: es t:1s fora m be m m a is n u m e rosas en tre c rian t,;as e m ulh e res, Sa ba r:l acompanhanclo , nesta mate ri a, a tendencia ge ral da Ame ri ca Latina 28 No toca nte a procedencia, pode-se te r seg urant,;a quanto a de 18 d os e nvo lvidos, e ela se distribui ig ua lme ntc: 9 eram africanos, 9 c ra m na turais do Bras il - se conside rar­m os co mo ta is tocios aq u e les designados po r "cri o ul os" , o qu e pod e aca rreta r e rros m as re m s ido o proccdime nto usual e n tre os es tudi osos.

Os va lo res a tri bu iclos a o mon ta nt e d e cacla coarta rn c nt n osc ilaram e ntre 150 mil rc is c 96 m il re is, o va lo r ma is re p e­t ido sen d o o de 1 ')0 rn il rt• is (4 c asos), scgui clo pc lo de 120 m il re is (3 casos). Para os a nus d e 17 18 c 17 19. co ntud o, te m -se o s valo res de 18 ~'3 mil re !s e o ut rn, e leva d fss im o, d e 240 mil rc is.'9 Ta is ev ide nc ias corrobo ram, ma is lllll:l vez, o es tr1do cl e Hi ggi ns, qu e mos trou, confo rm e a lu d i ac ima, u clec rescim o d o va lo r clas a lfo rri as no cl ecorrer do sec u lo . Se 0 a lto va lo r nao imped iu , na a nali se d esta a ut o r:1, q ue 0

maior numero d e al fu rrias sc ve rifi cassc n;l p rimc ir;l mcrade clo secu lo, no pe rioclo :lure<> d a rnin cra<;:iio- q u :1 ncl o. diz c ia. c r<1 ma is f{J c il re po r a m;'io-cle -o ilra --, ;r (p JCd: r d o mcs­m o valo r ce rta me n tc fa c ilit a ria o coar ta mc n to, q u ;r nd o o esc ravo a rcava intcg ra lmente com o pagame nto d e sua li­be rcla cl e, d iv id in clo-o e m p a rce las. Ali as, Hi gg in s fo rnece , indiretame nte, s u hsi cl i o.~ CJ U C re fo r<; am esta hip6 tese , po is mostra qu e as ma numissc'>es condici o nai s - e ntre as q uais c re io pode r incluir o coa rtamento - parece m rer s ido em Sa bar<i mais importantes na seguncla metad e do secul o, quando as in co nd ic io na is to rn a ra m-se e xce <;: ao. 30 Po r fim , no toca nte ao pril zo esti pul ado pa ra que o esc ravo cum prisse scu coa r­ta me nto precl o mina o de 4 a nos (8 casos), segu ido pe lo pra zo de 7 anos U casos); tndos os de m:1is prazos sc'> cont :lll1 co m u rn exe mpl o: 8 a nos, (> a nos , 3 :m os. 2 a nos. ·"

Alg uns clos coa rt ame n tos es tipul am co nd it,;ocs: ap6s a con­cessao, uma esc rava te ri a q ue tra balha r por rn ais 6 rncses;'2

um outro s6 se ri a coa rtaclo se tivesse fiad o r.l 1 Hav ia os qu e se viam livres de imecliato, e pocliam ir para o nde clese j:1ssem 51

Cenos senhores most rava m-se mais gene rosos c to lera nt es:

Page 63: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

coanavam u escravu pur um prazo detcrminado, estipulando, entretanto, que o testamcnteiro completaria a quantia caso o

escravo n}o conseguissc pagar o montante rcferente ao valor do coartamento. 5

' Outrus cram mais rigidos: se o escravo nao cumprisse corn o determmado, seria venclido pur seu justo pre-;:o.'(' Havia us que d e terminavam precisamente a forma como se processana o pagamento: assim, o que definiu o pagarncnto de lOU mil reis no espa<;:o de 4 anos, em paga­mentos feitos de 6 em 6 r1wses, ·" ou ainda a scnhora que estipulou 4 anos comu tnnpo a ser observado, as parcelas dcvendo ser todas iguais 5 " _Joana de Sousa Guimaraes esti­puluu cuidadosarnente o destino do crioulo que coartava: o pagarnento c!os 96 mil reis -- quantia pequena- seria satis­feitu ern 4 anos, a contarern do c!ta do seu falecimento, quando ajudaria a sepulta-la; antes disto, o escravo cleveria estar sernpre a seu !ado; se n:ro conseguisse pagar o devido no prazo estipulaclo, o tcstamenteiro !he daria uma tolerfrncia de mai~ 2 anos; caso nem assim fosse capaz de pagar, ver-se-ia rcc()nduzrdo :·r escr:1vidao c 1endido pelos tes tamenteirus da senhor:r. :rpr()veit:1ndo~se :1 qu:l!lti:r apurada na venda do rnlc·liz l·:rtivu p:rr:r nr111prir .su:rs disposic;-oes ou satisfazer () lwm d:r :rlnLr d:r dvlur1t:r, "qrw significava, neste lJltirno caso, :tr·c:rr u>m o s custus d:r:-; rlliss:r.s rczadas em sua intencao. Este C· um episodio curioso e nuel, nil que o universo simb6lico reveLr :rs contradi\-·l)es cia vida material: a possibiliclade de uma boa vida eterna para a senhora depenclia cia superex­plor:~<;:io do trabalho cscravo, que a beneficiaria mesmo ap6s sua morte-''1 Alguns se faziarn de magnanirnos, procurando, na verdade, tirar proveito, por rninimo que fosse, da aparente generosidade e c!esprcndimento: certo senhor vencleu urn tear a seu escravo tecelao justific·ando que, clesta forma, facilitava-lhe o curnprimento do cornpromisso 40 Outro, ao morrer, permitiu que o e:-;cravo !he cornprasse a botica, a casa e seus t:rastes, dando-lhe o prazo de 7 anos para honrar o pagamento, que dcveria ser fetto ern parcelas iguais; finclo o tempo, e satisfeito o pre<;·o, ficari:r livre; caso contrario, todos os bens- inclu­sive o escravo- seriam encarnpados pelo testamenteiro, que clele s passaria a tomar conta. 11 Esta e antes uma forma condi­

cional de alforria do que urn coartamento, mas traz cleste alguns tra~·os, L·orno :rs parcel:ls iguais, representando aincla.

com tocla a niridez, modaliclacle onde o cararer transit6rio entre o cativeiro e a libcrclac!e e bastantc acentuac!o. Forma

curiosa, que tambem apresenta carater hfbriclo, e aquela segundo a qual se deixa uma quantia ao escravo para se proceder ao seu coartamento, cleterminando que ele termine de pagar sua liberdade 42

OS PERCAL\=OS DO COARTAMENTO: HISTORIAS INDIVIDUAlS

Como rnuitas das alforrias conclicionais, a coarta\;ao e moclaliclacle que clesnuda as contracli<;:ocs e a complexiclacle do sistema escravista na America Portugucsa, reiterando o que a melhor historiografia recente tem clito sobre o assunto_·u Por urn !ado, a cruelclacle e a violencia ineg~'ivel,

que e rnparedava o escravo no universo do urtiveiro; por outro, as estrategias de sobrevivencia que, tecidas com paciencia, astucia e cornbatividade, permitiram enfrentar tal situa<.;ao e abrir brcclws na muralha.

Dificil saber o que rnovia os senhores a coartarem se us '"scravus. Talvez se arrependessern no meio do caminho, como a4uele que, em 1760, em Vila Rica, impediu durante trf~s meses que seu coartaclo trabalhasse, impossibilitando-o de pagar as parcelas estipuladas e, assim, objetivando reconcluzi-lo ao cativeiro: foi esta, pelo menos, a versao dada pelo escravo em carta dirigicla ao conde de Valaclares, guvernador cla capitania, sem explicitar o tipo de atividade que desempe­nhava e, assim, nao permitindo saber se era negro ao ganho ou escravo artifice, capaz de tocar sua vicla. 44

Quando o escravo nao conseguia pagar o combinado, explodiam os conflitos, e vinham a tona ressentimentos e contradi<;:oes. Mariana Xavier entrou em litigio com certo inclivicluo, de nome Barros Brandao, possivel testaclor de seu proprietario, entao ja morto. Dizia Barros Branclao que ela se arruinara, venclo-se incapaz de honrar o compromisso assumido, e que ele chegara a interceder por ela junto ao amigo falecido; a escrava, por sua vez, alegava ter tudo pago. A versao senhorial vern carregada de preconceito: dizia que

163

Page 64: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

o requcrimento era falso, "nao que ela ignore a vcrdacle do caso; mas sim pcla sua natureza scr negra, tem :1 seu favor a propensao de nega-lo (sic: a verdade), assim como o beneficia que !he fiz, para o clefunto seu senhor a nao recluzir ao cativeiro"." Gon<;:alo da Silva Minas, o escravo a quem o senhor legara, mediante pagamento, a botica, a morada de casas e os trastes, foi citado por Manuel Francisco Moreira, testamenteiro do antigo senhor. Este, como se viu, lan.,;:ara mao de uma forma hibricla cle coartamento e alforria, amarrando o legado a liberdacle de Gon.,;:alo; exigira ainda que o escravo nao se entregasse a maus costumes, e cle tcria feito tudo ao contrario: gastara "superfluamente os bens do testador seu senhor", portara-se com "escandalosa ingraridao", clenuncianclo o testamenteiro por malversa.,;:ao clos bens do falecic!o. Passanclo por livre, "talvez com falsa narrativa e ocultar,~ ao cla verclacle" , fora promovido pelo conde de Valaclares ao posto cle sargento­mor clo ter.,;:o de parclos cia vila (nao cliz qual): prorno<;ao indevida, pois esc ravos nao podiam ser al.,;:aclos a tal digni ­dade, privar.iva dos libertos 46 lnstalara-se, pois, a confusao: como oficial de orclenan.,;:as, era obrigatoriamente Iiberto, e gozava clas prerrogativas que tal status lhe conferia; como alforriJdo conclicionJlmente, ou coartJdo que nao cumprira com o combinaclo, era cativo. Como Iiberto, nao rnais pagaria as parcelas, deixando o testamenteiro de maos ataclas; como escravo, deveria ser clestitufdo cia distin.,;:ao recebida.

Havia portanto na coarta.,;:ao urn carater contratual que as partes cleveriam observar: caso contrario, quebrava-se o com­promisso, e como que ambos os !ados se viam desobrigaclos c clesimpedidos para voltarem atras. Em Aplica.;;ao das Ca rrancas, Freguesia de Lavras do Funil, em data nao rrecisada, Jose Mina havia rogac!o ao padre Francisco cia Costa Miranda que o coartasse. 0 padre concordou, mas exigiu um fiaclor que se responsabilizasse por escrito; este negaceou e acabou tiranclo o corpo, cliJnte do que o padre mandou seu escravo para a lavra do Glpitao Jose Ferreira Mis., "como destino de o favorecer" - nao diz de que modo, mas possivelrnente tra ­balhando mediante o sistema de jornais. 0 escravo, contudo, foi acumulando infra<;:i)es: municlo de chave falsa, roubou cerca de 28$500 reis ern oitavas de ouro, arrombou a casa de urn faze ncleiro cia vizinhan<;:a, invadiu a igreja e surripiou um

1h4

peda<;:o cia pedra ci'ara, p8rtinclo-a e m bocadinhos pua os vender a outros negros, "c!izenclo-lhes que er;1 fortuna" i\

principio, o padre pagou os prejuizos causaclos porjose Mina; aos poucos, porern , foi-lhe tomando horror, talvcz por causa cia franca afiniclade clo negro com procedimentos de feiti.,;:aria. Decicliu entrega-lo a Bernardo Pereira da Silva para que dele clispussesse a seu bel -prazer; preferia ficar sem ele, mesmo corn prejufzo, mas irnpunha a concli.,;:ao de que deixasse a capitania, passando para a de Sao Paulo. Pereira cia Silva nao cumpriu o combinado e levou Jose Mina para Sabara, onde o cscravo come.,;:ou a jactar-se de livre. 0 padre voltou ;"I carga: o pacto fora rompido, fi cando portanro scm valid<lde e ele autorizaclo a rec lamar o escravo cle volta, assim como todos os jornais corresponclentes ao periodo ern que perma­necer3 na companhia de Bernardo Pereira cia Silva. 47

E se sucedem as hist6rias de pi!cto desrespeitadu. Em 1795, na localidade d e Guarapiranga, o negro Pedro Benguela move u "i!<;:?io de liberclacl e " contr:1 o tenenre ]o:10 cia Cunha Pacheco e certa mulher mencionacla apenas como Maria Luiza. () reu era rest<lment e iro d o a ntigo dono d e Pedro, Alexandre Soares, que 0 cl eixa ra CCl arLJcio pe la qu;Jntia de 1 ':iO mil rcis ;J ser honracla em 4 anns, em pagam c nrns igu;1is. 0 f:Jlecido scnhor deixara ainda determinado qu e n te nentc rcstamen­teiro vencless c ao escravo, que era oficial de tece l?io, um scu tear e outros instrumentos pr6prios a tal oficio, paril que, rrabalhando, Pedro Benguela pudesse "satisfazer o pre.,;:o men­cionado em que hi! via ficaclo coartaclo". 0 tenente assim fez, eo escravo "logo come<;:ou a trabalhar corn um zelo incansavel pelo seu oficio, sem falha alguma". Todo pano que tecia, entregava ao testamente iro, e juntos faziam ilS contas do lucro, aboni!nclo as somas cia clivida referentc ao coartarnento. Qu<lse imperceptive lmente, comudo, verificou-sc o processo de reescraviza.;::ao de Pedro. Primeiro, o tencntc o retevc em SUi! casa, fazendo-o cozinhar e carregar c1pim. Ern seguicla, rnanclou-o trabalhar numa es talagcm que tinha no arraial cia Piranga, scmpre scm pagar nacla, quando "o rnenos que o autor (Pedro) merecia pela sua grande cliligencia ( ... ) era a meia oitava por semana, que num mes impor1am em 2 oitavas" Por fim, emprestou-o aos mineradores associados Domingos de Moura e Antonio cla Fonseca, moraclores do Calhambau,

16~

Page 65: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

u11Je tr:iiJa ll ~<nJ pur 7 :t nos scm reccbe r os jurna is que, nestes casus, e r:1 d e pr:1xe sc· pagarc m . Na e poca, e naquel:.t regiao, pagav:un-sc JO rn a is de meia u ita va, O U 750 re iS; pe los c;J. lcuJos de Ped ro, fic :t ram assim lhe deve ndo 146 oi tavas e meia d e o uro, o que e m d inhe iro seria igual a 202 mil re is - soma qu e su r e ra va os 1 50 mil devidos para a ob t e n ~ a o d o c o a rtam e nt o. Ma s o clesfccho fo i tr:igico: o testa dor , al heio a tudo , vencleu -o :1 ci tada Ma ria Luiza pela qua ntia de meia libra de o uro, p rev alecendo-sc d o fato de Pedro se r, conforme o mesmo fez co nst:tr na at,:ao, "u m p re to rustico e ig norante, c·a p:tz de s<:r c ngan:1do". Nu mun do escrav is ta , o a to de se :tu tudt:squ:J!ifictr podia ser uma es trategia, que se al iava ao recursu :i ju s t ic;a clo re i:

E '<:'11clo () >IU IOr como e homem Ii berto, nao clevc ndo p res tar escravid:!o alguma, e in justo o dumlnio que ne la tern a re (Mar ia l.ui za) r:~ra sc• uti lizar de se us servi <;-os, a ntes a re cleve allri r IIJ }u d o autnr c: rl' co nh ece- lo li vre , p agando-l he igua l­me nte os seus 1o rna is cl escle u clia Ja comp ra ate p6 -lo em ld>c:rdack .. .''"

l' :trti cul: trJn c·n t<: cumpil'x:Js e d o lo rosas era m as si tua<,;c-ws c· •rvulvt'Jldo m:h·s c· f tl hos ern d es ig ualda de de co ndi \~lo

juridiL·:t . Er :r c•Jll :'tu <JLIL' t) em ~t rcll1ltado legctl sc f:.t z ia ma is int r inc: td u, sc:: Jdton:·s e esc ravos ma nipula nd u, cada q ua l :r s ua manc ir:t , iJ llerpretacJles dist intas c cont1itantes ace rca du ca ti ve iro c cl:t liberda d e . Se. o rebc nto d e ve ntre Iib e rt o na sc ia fora cia cscrav id:lo, a pa rtir de que m omento o filho do esc r:tvo co: Jrr ado podia se r cons ide rado livre?

l\osa Gun ~·: tl vc's da Fonseca fo ra coa rtad a p ela senho ra , Ursu la c;on<;: tl ves da Fo nseca, em 5 quartos t.l e o uro; o coa r­l: tmc nto dcve ri :1 ter inicio ap6s 4 :.~nos, a partir dos quai s se llw Ltculi:tv:tlll .:\ p: tr:t que sa tis fi zessc a d lvicl a. Durante esses 'l :t lll>S , l ~os:t eo nt inuaria senclo escrava c como ta l se rviria a se n llu r:J. 0 vil.JVu d e Ursula dizia que o pape l do coa rtamen­to fora p:1ssa do a 24 de janeiro de 17'55, e Rosa a legava q ue es te era d:tt;tt.lo d e unt a no antes , o u se ja , 1754. Em 1756 e em 17'57 lhe nasce ram duas filha s, Antonia e Clem e ncia; e m 1759, nasce u j osefa . 0 se nho r, Fra ncisco da Fonseca , e ntenclia q ue todas as crian ~':.ts lh e pe rte nciam , po is o coa rta m e nto s6 te rm1n :ma e m 176 1, q uando findasse u segundo p razo , o dos

3 a nos, e era "ce rr o que os filhos e nqu a nto :r li!Jerdade segue m a na tureza e cond i ~ao das maes". Co mpl etava o rac iocln io di zendo q ue "to d as as vezes qu e a a lguma escra va se confe re a liberdade d e baixo de condi t,:ao ( .. . ), e nqu anto se nao e nc he a condi~ao, sao servos os filhos que nascem da dita esc rava" , e, com o no caso d os estatulibe ros, a li berdacle se achava pend e nte . E co nclula : "por c uj a ca u sa se nao d e vem as mesmas e ntrega r a dita Rosa Gonc;:alves , por serem como sao minhas esc ravas , das quais sempre estive de posse, e dela nao d evo ser privado" 49 A jus ti s;a opino u fav o rave l­me nte a Fra nc isco da Fonseca, e tudo indica que Rosa, coartada pe la senho ra, teve o benefic ia parcia lmente ne utra lizado pelo t.l issabo r de v ive r sem as filhas. 50

Quando rno rre u, Anto nio Me ndes determinou e m testa­me nto que se coartasse a crioula Maria Mendes pela q uantia de 120 mil reis, a serem cumpridos em 8 anos. 0 re verendo Manuel Francisco Torres fi cou como testador do falec ido; es pcrou 10 anos, e com o Ma ria nao pagasse o d ev it.lo , foi ju cl ic ia lme nte d e terrninaclo que sc a reconduzisse ao c:n ive iro. Por me io de um re la to co tnpli caclissi mo, viciado p e la tortuosa ling uagem juridica, fi ca -se sa be ndo qu e o fal ec id o Anl<l Jli o Me nd es Jeixara ao slnclico da Te rra Santa um legaclo de j lll il cruzados, que o revere ncl o tes tador nao pode sa ti sbzer. Por me io de ac;::l o ordina ri a, o s lnclico o bteve o d ireito de penhora sobre a cscrav:.1 Ma ri:.1 Mendes, qu e p o r terce iro pago u :.1 q u:.1ntia dev ida e ficou li vre , o l>t e nclo quita~ao. Ora, inadvertidamente - co rn ce rteza, por pressao e habilidacle t.la mae - , se us 1 filhos cons taram como li vres neste d ocume nto. 0 sfndico da Te rra Santa p ro tes to u , ve ndo se esvair a quanti a co ns ide­ravc l q ue p e n sava ob te r co m a penlwra das c riancinhas; l a n~ou mao do argume nto legal acerca da condic;:ao do ventre d e finir a do fruto :

e e ce n o e m Dire ito que nao r aga nd o as m aes o pre\'O d e s ua liberdacle no tempu esripu lado, nao s<'> fica cativa a m ae , cumo os filhos, porque estes seguern o ventre , e se o ve ntre e ra ca ti vo, tambem os partos o sao ..

Maria Mendes protesto u ; alegou viole ncia do slndico, tentou reaver os filhos . A jus tic;:a, mais uma vez, pende u para o !ado

167

Page 66: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

mais forte. Mas a c rioula nao parece, nessa hist6 1·ia, uma pobre coitada se m vontade: se realme nte fi cou sem as cr i an~as, e se e verdadeira a argumenta <;:ao vitoriosa, mentiu e manipulou os fatos , adulte ra nclo d a tas e levantando fa lsas acusa<;:oes contra o sinclico, que parece mesmo ter tido pac ic ncia para com seus debitos, ampliando os prazos para receber os valores."

CONCLUSOES

Alforrias e coarta<;:oes tinham duas faces, con forrn e alguns estudos rece ntes tern frisado. Para os pocleres cstabelec idos. alforriar e coartar significava por agua na fcrvura, aplacar 6di os e ressentimentos, arrefecer animos revoltosos; m as significava tambe m propiciar o aumento do continge mc li vre e d e cor, semp re temido porqu e consiclerado virtualmente p e rigoso. Para os esc ravos, era o cami nho , talvez apcrtado e tortuoso, que conduzia a liberdade : nao era m me ras conccssocs, mas "conquistas d e uma massa an6 nima de age ntes hist6ricos", forma s d e re siste ncia que atuavam dentro d o sistema , scm p rocurar rompe-lo , como os quilombos 52 E havia muit os ca sos padficos, e m que o processo de coa rtame nro transcorria scre namc n tc, coroaclo porum final feliz.

Higgins ap resen ta uma analise interessante da alforria d e cri a n<;:as , onde pesava muito o !ado afet ivo, e consiclerou in­trigante a alforria clos adultos:

Freeing adu lt slaves suggests instead a slrategy 10 bcn er manage captive labo ur by providing a significant rew~ rcl in exchange for satisfactory behaviour. On the o ther hand , fre ein g aclu l1

sl aves a lso c reated a potentia l sou rce o f unruly free c itizen s wh o could n o t be fo rced t.o work -'3

Ate onclc posso faze r ?. firma<;:oes com base em uni ve rso documental ainda muito restrito, a coarta<;ao at ingiu sobretu cln ns e .~cravos aclultos. Prcfcriram-se aquelcs que e ram capazes de prove r ;J prc'i pria subsiste ncia, como os anifi ces e as mulheres qu e co me rc iavarn com tabuleiros ou vcnclas. Neste se ntido, foi mecanismo que procurou d e fender os senhores contra o n ao-cumprimento clos tratos e stabelecidos, possibilitando ,

168

ainda , que lhes fossc a h c rt :t cc rLt ll l:l l.gL'Ill dr · c;tpil :iliz:t( :lo num a ecnno mia caracrc riza d a pe l<~ csc1ssc/. d e n tlllwr:i rio r:

]J eJa gen c ral izatJ io das c.ifvidas, dos C1'e d1tos <.~ dos pe niHHes. Po r outro lacl n - c nes ta mat e ria semprc h:'t q u e consid c ra r as duas fa ces - poss ih ilitllll que, e m c poc;.t de difi culclade econ6mica, os cat ivos nao p erdessun as espc ran<;:a s de libe r­clade, m a ntcnclo , para co mpra-la , um ritmo consicl e ravel de produtiv ic.lacle.

Os coartamentos contr ibuiram em muito para compl icar uma estrutura soc ial ja ba s rant c co m p lcx:1, ab rind o v:lsta s areas d e indefini <;: ao en tre o c ttiveirn c a lihe rclacl e. Se cr:t comum recondu zir forros ao Glt iVL' iJt l, muit o mai s L\c il se ri a faze -lo com coartados: as rarres nun c:1 cnn cn rclav:1m quant o ao mont.ant e cia:; dividas c cbs cl<iusula s :1nten o rn1cnt(~ fix:rdas, emba ra lh avam o s pra zos, m a nipula vam as da ta s. Po r out ro !ado, a co nfusao benefic iava ta m!Jem os esc ravos e m vias cl e se a lforri a re m , como ates ta r:1m os excmp los :tc im :t ex posros: nes te sentido , o coa rta me nto int cg rou as cst.rat eg ia s q ue os esc ravos souheram clese nvolve 1· clc l·o rnu p:1c ie ntc: . nn:1 jos:1 e, nao raro , malandra

Os coartamentos e nsc j:1 r:1rn, po rt :rnt o . um v:1st o cs p:l(·o ck ma nipula ~:a o ml'ttu:1, em que se nhort· .s ,. c.sc r· :t\·os 1og:tv :111l un1 xaclre z co rnpli caclo. As c ha nces de v it< \r i:l e r:1 111 m:1i o res p :tr:r o senhor, e nan h;l co mo refrc ar a IT \·o lt: t :tnt c :1s hi s tc'J rias cl e farn ilias se paradas, pre potenci ;ts cl c pocl crosos, d esq ualifi c l­<;:6es que h o je qua lifi ca riamos de ahe rtarn c nt e ra c is tas- sc b e m qu e, mcsmo es tas, tao o cli o sa s, te nham s ido , como se viu acima, rn a nipulacla s astutarncnte pe los csuavos. Ao fim e ao cabo, numa so c iedad e esta me nt:tl com o e ra ada America Portugu esa, as e lite s dit:1vam o.s ct>n1pnrt:1m e ntos c muitas vezcs mo lda va m as vonr:1cks . N ~1o c Lk cn:lll :tc;ao o <'p is<id io qu e esco lh i p ;11a c ncc rrar cs1a s cn nsi d c r:HJ>L'S, m:1s re flclc d t· form:l mode l a r <Is co ni r:1 c.l i ~'c'1cs do mundo cscr:1 VISI:l c ilti.SI r:t com o ne n h u m a v:t ried:rdl' d, · fo m u s c· nu :1n r.: :t.s qt ll ' a ss umi :1 o CJtive iro·

Ant o nia Cava lg antc .. lu v ia a ju s1ado com o diw M:ll>U cl Du :nlc de Crasro a se rvi-lo como ~ua escrava ck pon:rs aclen1ru de ~ua

cas a em to do (J serv i' "" qu e ll>c 111:1 nclasse razer por oil enl:l oitavas que hav ia rece h icl " pa ra o serv ir na fn rrn:1 qu e 1ern cl i1o

p o r 1empo d e um ano qu e co rre LiL' l>oje em di:tfll<' .. . ' '

t 6'J

Page 67: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

Anto!lia C~tvalgante era parda e livre. For que raz(ies

complexas teri~t cia se submetido voluntariarnente a escravidao,

llW.'ifll() que tcmpor:Hia 1 NJ.o e dificil imaginar. Sugiro aus que: n1e leern que el:thorein .'iLLts verst>es

NOT AS

' HIGGINS. Ka!hleen joan. '!'he slave society in eigiJteenth-centwy Sabara: a

community s!udy in colonial Brazil. LIM! Dissertation Services, 1994. p.l6, nola 21. (Tese defendtda na lJniversidack de Yale, 1987) .

2 Vcr, entre outros, cana de 21 de n ove rnbro de 1719 ao ouvidor-geral da

cunwrca do rio das Velhas, Arquivu PL1blico Mineiro, Se<;.~ao Colonial, u)clice

11 II. 1.170

1 Ver, entre outros, APM, SC: , c6clice n . 27, f.27 (bando de 10/02/1728) e f.G5 (hando de 31/0.)/1730)

1 Entre outros, ver CC)lJI.AH.T, Mauricio . A

origens :1 exlin(:io do Irafico, 3.ed. SJo Paulo 110 Brasil- cbs

1975.

"C:ANO, \'V'iL\()11 . Fconomu du ouro ern Minas Gerais (seculo XVlll). Cunre:\:to, S:io l':ttdo, n 5, llJ77; SOUZ1\, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro ·a

J><Jim:l .. l 11111ll'lr:t 11u seculu XVIII. 1\iu de janeiro: Cra:1!, 1983. p 'il el seq . F

(__· uri u . ...,u qtH.: , !Ilc':->Ith> qu:tndu v~ tri:tlii u c..: u ubjetu, chega - ~e ,:-;enqne

,!u: ts p(lS.-.;Ihilid:tde:~ ntcnL·ionad:ls . A<) rela<.,~6es e ntre con1padriu

h:tti smo de esc r:1v os e a!forrias, Kathlcl'n Hif_.;gins co n sta l:l : ''F iv e of tile

ilkgittillale chi ld! ell l>apltzed were the children of slave women and freed :1t the ti1ne of their baptisms; of these, four \\.:ere girls and one w:..ts a boy This 1nay suggest that rnasters fe lt kindly toward the n1others and freed thei1

(less valuable and mostly female) infants as a reward for good SC' rvices . It could also suggest that these maste rs did not wish to provide food to raise children and thus passed !he fo1 to the female parent" HICCINS. Theslm:esocl<>ty 111 p.l41

r,! ll GCJ INS. '/'he slaue society t'n eighteenth-century Saburu p.71-125

u qu t' esLI sugerido em H!Gc;INS. 71Je slave sociefy ill e(v)Jtee?zth-century \'(l/Jam , p.9.)

"LAIZA. S!lvia l tunoldt. c.'u mpus do. fliulthu .. : iLJ- c.scr;~vos e .senhores na Clpit~mi:l

du Hiu de J~ulelru _ }\io de .Janeiru Jl:1z e Tt.·rr~J, 1988

') Par~1 o Distrito Dianl:lntino cas cotidiarus 4ue garanti:J.m a sobrevi-

vt:'JICia e burlava111 us rigores da ver Fl_ii{TADO, jtlnia. 0 huro da capa verde- a vida no Ui.stritu Ji:_unantino no periodo da re a l extra~ao . SJ.o

Paulo: Annablun1e, 1996. Para a organiza<;J.o t.ius qui lurnbos e sua rela«.;au

com a economia cia capitama, GUIMARAES, Carlos Magno . Uma neg(/l;ao da ordem escravista- quilombos ern Minas Gerais no seculo XVlll. Sao Paulo kone, 1988; para uma rel e itura da escravicLlo a luz dos testa m e ntos, PAIVA,

170

Eduardo Fr:1np. Escravos e /ihenos nas Minas Gerais do seculo XVIII- estrategias de resistencia atraves dos testarnentos. Sao Paulo: Annablume, 1995

10 MAI\TlNS, 1\oberto llorges. Growing i!l silence: the slave economy of nine ­

teenth -ce ntury Minas Gerais, Brazil. (Tese de duuturaJu apresent:.~J~ ~t Un iversidade de Vanderbilt, 1980). MARTINS FILHO, Arnilcar, MARJ'lNS, Roberto Borges. Slavery in a Nonexport Economy : Nineteenth-Cemury Minas Cerab Revisited. Hispanic American Historical Reui~w. v.6:;, p.S.:l7-590, 1983.

"APM, SC, SC 35, f.l75

12 HIGGINS. The slave soczety ill eighteenth-century Sahara. , p.317 e p.321.

1.1 APM, S.G., caixa 40, doc. 52. Esta e as cita<;oes seguiutes referern-sc au rnesn1o Uocurnento.

"HIGGINS. 71Je slave society in eigbteentb-centwy Subara , p . IZZ.

''SCHWARTZ, Stuart B. Segredos intenzos- engenhos e escravos na sociecladc colonial. Sao Paulo: Com panhia das Lctras/CNI'q, 1988. p.214. HIGGINS The slave society in eighteenth-century Sabara ... , passim. PAIVA. Escrauos e /ibertos rws Minas Gerais do seculo XVJII, sobretudo p.83 et seq.

16 SCHWARTZ. Segredos internos ... , p.214.

"AI.t-;1\ANTl, Lei la Mezan. 0 feltor cmsente. estudos sohre a escravicDo urbana no Rio de janeiro- 1808-1822. Petr6polis: Vozes, 1988.

'"PAIVA. Escrauos e /ihertos nas Minas G'erais do secu/u XVIII , p.83

"HICCJNS. 7he slave society irz eigbteentb-century Sahara , p.l24

w Segundo cornentJ.rio de Franc;a Paiva, F.ebeccJ Scon aludc ~l coarta<;:~lo como forma usua l em Cuba, observando conludo que a rnocblidacle assim qualificaua difere d:1 enconlrada em Minas Gerais. Ale o momento, nao Live

de con.sultar o estudo Lie Scott, o qu e seria necess:irio para forrnar urn acerca do assunto; mas o cornent:lrio d e Fr:tu\·a Paiva acertado. Ver PAIVA.

p .KG-il7. Quanto ao trabalho de Rebecca, trata -se de: SC:OTf', Rebecca. L'rll<4n ·

em Cuha- a transi\'ao para o trabalhu livre- 1860- 1899. !(i u Paz e Terra I Carnpinas: EDUNlCAMP, 1991

11 Trata-se dus trabalhos j:l citados cle Eduardo Franp I' a iva e Kathleen Higgins

n A pupular;:Ju escrav::.t de Sabara representava parcela da de Minas: 17 .6%no infciodo 31.6o/onasegunda (i conlarca.s mineiras, e a

escravus. HIGGINS. ,-/mu' '''"'"'"

c:uino j;l se disse, rnaior nU.ntero de

p .7i

''PAIVA Escrauos e /ibertos nas Minas Gerais do suculo XVIII , p.83-89

cuntesta veen1t'nten1ente a tese Ue que as r-nanumissbcs se tornam

e1n periodo de decadencia econ6rnica : Sab~uf1 contradiria tal tese, sea rnesn1a fosse exata, as tnanurni.ssbes deveriam ser rnais fre~

qLi e ntes na segunda metade, quando o sao na primeira: "[n fact, it appears from this sample that the highest rates of manumission per year occur during the period of greatest economic growth, i.e. the first decades of Sahara's existence". HIGGINS. lhe slave society in eighteenth-century Sahura ., p.199

171

............_ ___ , _ _ , ____________________________________________ _

Page 68: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

As alforrias seriam portanto numerosas em epoca de rrosperidacle porque esta perrnitiria compr<H outros escravos, substituindo o plantel. A substi­tui~ao, em epoca de escassez, ficaria cliffcil E conclui: "In a gold-mining

and perhaps in urban economies as w ell, it m:1y make more sense

higher rates of m(lnumission with booming economic circuns­tances" HIGGINS. The slave society in eighteemh-centwy Sahara ... , p.200

25 HIGGINS. The slaue society in ezj;hteenth-century Sahara ... , p.I97. PAIVA F'scrauos e lihertos nas Minas Gerais do seculo XV711 ... , p.89 e Anexo I, Hela<;:ao dus valores de coarta~oes, alforrias e arrestos a partir clos testamentos inves­tigaclos cia comarca do rio das Velhas 1720-I784, p.2I6-223.

26 Heformulo aqui, de forma rap ida e superficial, as ideias que enclossei ha mais cle quinze anos acerca cia clecadencia cconomica das Minas, e aquelas referentes a rela<:;oo entre maior numero de alforrias e decaclencia economzca, segundo as quais as alforrias significariam o sucateamento sum:hio de uma forp de trabalho cuja reproclu<;:ao se tornava cacla vez mais onerosa. As pesquisas posteriorcs sohre a hist6ria da capitani:l vern relativizando ou mesmo contestanclo, a meu verd e forma muito convincente, tais afirma<;:oes, endos­saclas, entre outros, por autores como jacob Gorencler e Wilson Cano, nas obras acima citctclas. Sobre a econ6mica, ver FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. 0 avcsso memoria. Rio cle Janeiro: Jose Olympio I I3rasflia: EDUNI3, 1995, oncle mostra a forp do comercio fe~ini -no :-tmhu!ante. Para a de :.1tivicJades econ6n1icas no Distrito Diamantino, em plena das mais c!ur;1s mctrorolir;lnas, ver FURTADO. 0 lioro da capa uerde. Sobre a na capitania, ve1 CIJJMARAES, C:trlos Magno, REIS, Liana Maria. Agricultura e esc ravidao em

Minas Gerais (1700-17SO). Reuista do Depurtwnento de Htst6ria, FAFICI-I, n. 2, p .7-.16, 198() Paiva cliz CJU C , quanto mais clinamica a economia,

opc>r!uniclacle·s, "sobretuclu de maneira informal", d e nela huscar o valor clas PAIVA. Fscrauos e libertos nas Minas Gerais do seculo XV!l! ., p.8.). Quanto a meu trabalho, refiro-mc a Desclassificados do ouro - a pobreza mineira no seculo XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

27 0 univcrso documental utilizado eo seguinte: Arquivo da Casa Setecentista de Mariana, Cart6rio do Primeiro Offcio, c6clice n. 159- auto 33II; c6clice n. 200 - auto .7935; c6dice n. 204 - auto 3907; c6dice n. 22I - auto 4I43; c6dice n. 235- auto 4331; 255-4687; c6clice n. 392 ---auto 8704; c6dice n_ 397- auto 8704_ Arquivo Publico Mineiro, SG, caixa I6, doc. 52 Riblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Se<;:ao de Manuscritos, c6dice n. 18,3,2, clocumentos n.142, 144, I48, 149, I53, 151, 161, 287, 289; c6dice n. 18,3,3 , documento n .. 'l; Museu do Ouro- Casa de Borba Gato, Cart6rio do Primeiro Offcio, 5N, f.158-159, 164V-I65V; It'i4V-165V; 90N, f.33V-34: 78N, f.5t'i-57V, f.I78- 178V

"HI\,C INS. The s!auc society in eighteenth-centu'y Sahara. , p.20 1

29 Quando as quantias estao em oitavas, usei as equivalencias vi gentes nos anos correspondentes, consultanclo, quando necess:lrio, a tabela elahoracla

Eduardo Franp PAIVA

·30 HIGGINS. Tbe slauc socie(y in eighteenth-century Sabara .. _, p.226.

I72

-~ 1 Cabe ressaJ[ar, aqui, que cnntci um mcsmo caso r:-~nto par~l o pr;u.o de 7

anos quanto para o de 4; isto porqu e o escravo deveria ser coartado no

prazo de 4 a nos, mas caso nao o conscguisse, ser-lhe-iarn dados rna is 5 a nos BNRJ-SMs, 18, 3. 2, cloc.I4'J

32 MOCBG, 1Q offcio, 5N, f15R - 1S9

"APM, SG . caixa I6 , doc. 52

,., MOCI3G, I 0 oficio, 5N, f.I64v 165v

"ACSM, I 9 oficio, c6dice n. 200 o\1 20G, auto 3'J_'\5; ACSM, PO. coclice n 204, au to .'\907

"'ACSM, 19 ofic1o, 255-46lJ7

"Idem

'" ACSM, IQ oficiu, c6dice n . .092, auto ll572

39 MOCBG, F oficio, 78N, f.'i6-57v

40 ACSM, JO oficio , cod ice n . . 392 - :wto 8572

11 BNHJ, SMs, 18, 3, 2, doc. 1 4oi

.Jz E o que aconrece com ;-l forr:t dt' Suus:! !Ltrrn.'> , que cleix:t. em testame nto, a qu~lntia de 100 nit:t Vtl.'> mil rL;is) para sua negr<l rnin :1

_loaquina, dando-lhe 7 a nos para fin:di!.Jr :1 C<>;tri~H,';\o . ACS!"v1, I'-' oficin. cc)<li­ce n. 235, a111n tf.)51

u Rcn1ct o mais urn;t vez ao tr;dJ;llh() piurH'Jrn de Sfh·i;.I llt!!l< ddt Lar:1. ( -"t-i ntf)( JS

c.ia uio/idncz'a, ttnl<l heL1 an:lll,..;c dt~

e m Eug Cn t' (;en<l\"L'Se ci<>S j:'t rc fe ric!ns tr:lh:l -

de Stu<lrt c F.dt.Llrd() Pr:ln\_':1 P:1iv:1, !emhrp ainda () relevo d<JS

varios estudos realizaclos ou organTzaclos REIS, Joan .Jose . Rehe!iiin Pscraoa no Brasil. A hi st6 ria do levant e dos (1835). Sao Paulo: I3r:~siliense,

I986; A morte e - ritos fCtnebres e revolta popular no Brasil do seculo XIX. Sao Paulo 1991; E'crauidiiu e inuenr;iio da !iherdade-estudos sobre o n egro no Brasil . S~o P<llllo: Brasiliense-CNPq, 1988: HEIS, Joao Jose, SILVA, Eduardo (Org.l. Negociar;do e conjlito - a resistencia no Brasil escravista. Sao Paulo: Companhia das Letras, J9H9; GOMES, Flavio dos Sanros A libc•-dadc por '"'' .fw - hist<in:~ dos quilombos no I3rasil. Sao Paulo clas Lelr:~s, 1996. Sohre Minas, o estudo j:l citado d e Carlos Magno Gu1maritcs sobre os quilombos representou um n1arco, apesar d e certu Para o periodo posterior, rcfcrcn -

te ao ocaso cia escravidJo, os tr:~balhos de CHALHOUI3. Sidney. VisOes de liberdadc - uma hist6ria d:1s tlltim:-:~s c!Ccadas cia e.scravicLio na Corte. Sao Paulo: Companhia clas Le tras, I990; de AZEVEDO, Celia Marinho de. Onda negra, 1nedo brancn- o n egro no imagin;hio das elites - sCculo

XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1987: de MACHADO, Maria Helena Toledo 0 planO e 0 pdnico - OS movin1entos SOCia iS n~t decacia cia abuli\·Jo. S}o

Paulo: Edusp, 1 99i: de GOMES, Fl:ivio clos Santos. fizstnhas de quilombolas - mocambos e comunidades cle senzalas no Rio cle Janeiro - seculo XIX. Rio cle Nacional, 1995: de CASTf<O, llehc M.M Das cores do

- os cia liberchc!e no suclestc escr:Jvist;J - nr:1 si l sCculo XIX. Rio de ,lanciro: Arquivo Naunn:Ti. ll)'JS

Page 69: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

'' BNHJ, SM,, IS, .l. 5, doc.:,

,., BNR), SMs, IS, :1 , 2, doc.l•12 , ISJ / 12 / 1770

'''Ibidem . doc.I44, 30/911769

n Al'M, SG, caixa !6, doc. 52

'"ACSM, I Q oficio, c6clice n.392, auto 8572

19 BNRJ, SMs, 18, 3, 2, doc.l49

" Ibidem doc .148

"Ibidem. doc.I64

'2 A re:,pei to, ver sobretudo PAIVA Escu.u·u . ...; c libertos rza . ..,· Mznas Gerais do <ticulo XV/11 , p.I06 et seq

~~ HICJCINS. The slave sociely in et~l..!,hteerLtJ.J.-centuJy Sc.~buru , p.2fttl

"·1 "E.scritura Je obriga<;J.o 4ue faz Antonia Cava lgante nniiher p:.nda, a Manoe l

Duarte de Custo . 19 de Maio de 1721''. MOCll(;, Livro de Notas (13 de abril de 1721), f.42; citado por HIGGINS. Thesluvesociely in eighleenlh-cnllury Sabar·a , p .308

0~ NO~RC~ GOVtRNADOH) Ot MINA~

MITOlOGIA~ t HI~TO~IA~ fAMiliARtS

UM POVOAMENTO SEM BASE FAMILIAR

Muito ja se escreveu sobre o povoamento rapido clas Minas, encetado sobretudo por aventureiros que entravam sos para a regiao, muito raro levando consigo a familia. Desde cedo a

familiar preocupou as autoridades, que acre-ser ao !ado da crescent~ escravaria, o trar;:o mais

perigoso da popula<;ao mineir·a. D. Loure1~c;;o de Alr11eida loi rnrtic-uraiJ;~~i1te se.risfvtTa-qUestao, e nao por acaso quando assumiu o governo, em 1721, ainda estavam expostas as chagas abertas pela repressao violenta movida pur seu antecessor, D. Pedro de Almeida, contra o levante de Filipe dos Santos.

Acreditava-se, entao, que motins tinham a ver coin povos ind6mitos: e esta a tonica do Discurso Hist6rico c Politico .. com que Almeida, alias conde de Assumar, procurou se defender na Corte clas acusar;:oes de arbitrariedade imedia­tamente levantadas contra sua atua~ao. E na mesma tecla que bate D. Louren(,:o: em Carta ao rei, explicava que us povoadores vindos do Reino cram quase todos mor;:os solteiros, que nada tinllarn a perder, "por ser o seu cabedal puuco volumoso, pur consistir todo em oiro, nem mulher nem filhos que deixar"; dai se atreverem a faltar a obediencia e ;l justi<;a de Sua Majestade, cometendo delitos sem conta. 1 Dez anos mais tarde, semprc em carta ao .soberano, D . Lourenr;:o informava

l

Page 70: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

que a situae,:ao melhorara bastante, pois muitos casais haviam emigraclo para as Minas. Para que a base familiar con­tinuasse aumentanclo, o governador sugeria a D. Joao V que proibisse a ida de moe,:as brancas do Brasil para Portugal, o que acontecia devido ao costume dos pais fazerem as filhas freiras 2

Originarios de familias nobres - alguns mesmo da alta nobreza lusitana -, OS governantes defendiam uma coloni­zae,:ao de base familiar consoante aos interesses metropolita­nos, uns e outros acreditando ser ela o unico meio de conter e normatizar a populae,:ao das Minas. Por outro lado, rarfssimos foram os administradores que vieram para a Colonia com suas familias, e a conclic;:ao de solteiros temporarios fazia cleles inclividuos que, como todos os outros, estavam sujeitos a relac;:oes afetivas esporadicas. Sabernos pouco das amantes dos governaclores, mas sabemos que as tiveram, ficando assim na posic;:ao inc6mocla de pregarem alga que nao praticavam .

Na memoria popular e na tradic;:ao historiografica proces­saram-se filtragens curiosas. Aqueles que trouxeram familia­res para Minas sao quase sernpre invocados como prot6tipos de virtucle. E ha os que, segundo as evidencias hist6ricas, nao o fizeram mas ganharam a fama de re-lo feito. Por que a memoria e a tradi<,~i\n conferiram a estes, e nao a outros, os atrihutos cia virtude' Oncle termina a hist6ria e comec;:a a mi ­tologia cia base familiar dos governadores de Minas?

MODELOS DE VIRTUDE PUBLICA

Os textos coevos- como os de Jose Joao Teixeira Coelho e Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos - omitem todo co­mentario critico c se limitam a arrol;u as virtudes morai s dos governanres, nao poclenclo ser diferente numa epoca em que a col6nia sui-americana e a Metr<'ipole integravam um s<'i Im­perio. Assim, Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho "foi homem de resolue,:ao e superior aos perigos": "o grande Albuquerque". 1 Fazendo-se "respeitar e obedecer", D. Bras Baltasar da Silveira "foi muito prudente e feliz porque soube clominar com brandura o corac;:ao dos povos, que o amavam como pai". 1 Do saber e atividade de Assumar ficaram "ilustres

17()

mem6rias" ." Luis Diogo Lobo cia Silva notahilizou -se porter sido "zelozissimo, incansave l e :rrivo na aclministra<;:~ro e arrecadac;ao da Real F:tzencla·' c porraclor de uma "honclade natural"/' "verdac!eiro homern de hem" "pacifica e de muito bom carater", "benemeriro cia humaniclade", "souhe manter a tranqiiilidade pt:iblica" 7 Menor de vinte e cinco a nos ao tamar posse, o conde de Valadares teve a pouca idade suprida por "seu talento" e por "sua prudencia": "tinha uma compreensao grande, um genio indagador, consranre e inal­teravel; foi pruclentfssirno e de um procedimento exemplar; foi muito desinteressado, rnuiro reto e muito zeloso na ad­ministrac;:ao e cobranc;:a da Real Fazenda; foi incansavel no servic;o de Sua Majestacle e procurou, com tnda a atividade, o reduzir a capitania a uma boa ordem para fazer felizes os povos dela"." D. Antonio de Noronh:1 dcu mostras de "grancles talentos e um genio forte", de "ardur natural" e inclinac;:ao "as ac;oes grandes", ouvindo "com afabiliclade os pequenos, e eo terror dos grandes". 0 E sobrc D. Rodrigo Jose de Meneses nunca escasseiam os qualificativos: "C:oncluziu-se de tal modo na Carreira de sua aclrninistrac;;:1o que ainda hoje, depois d e 2_'3 an o s cle ausf~ n c ia, c rccorcl :tdo com sauclade clos povos de Minas, por su:rs boas parrt~ s c. mats que toclas, pelas cia hurnanidaclc t:1o he rcclit:iria, como :1 nohrt~ !.a destc :rpclido". 10

Nos t. ex tos coevos, ponanto, as virtudcs ex;dtcrd:ts s;lo as do home m pt:"tblico , d o hom vass:1l o que serve hem :10 rei n:1s possessoes clistantcs, cumpr·indo corrctamcnte suas cleterrni­nac;:oes. Ni\o h:'i refe rc nc ias a aspectos m<tis privados: ;1s csposas, aos rebentos, ;l vida domestica que os poucos deles que trouxeram a familia poderiam ter usufruiclo nos interva­los permitidos pe lo t.rahalho hurocdtico e administrativo cia governanc;a. Na sua corresponclencia oficial, D. Rodrigo Jose de Meneses conta ter leva clo consign Lltll clos filhos meninos quando foi averiguar as rosses ilegais qu e se esparrarnavam pcla Mantiqueira, na reg i~o da :rlual Harhaccna , c que o pequeno - seria D. GregcSrio Jose ou D. Diogo'- o ajudou e~ distribuir cartas de sesmarias: fr es ta r:rr:1 que clesvenda um pnuco cia vida familiar dos :tclministr:1c!nrcs portuguescs em servic;:o nas possess6es ultramarin;rs. 11

No mais clas vezes, domina o silencio sobre a esfera privacla , e s6 as cartas pessoais conseguem revelar, de modo esparso c fragmentario, que a grande maioria vein s6, cleixando

177

Page 71: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

para tr:is filhos pcquenus, espo s~ts )Ove ns ou noiv:-ts pacientes - essas outr:ts Penelopes, t~lo desconhecidas apesar de tao comuns na hist 6 ri~t doinestica do Im perio Ponugues

MODELOS DE VIRTUDE DOMESTICA

Reza a tradir;ao inaugurada por Diogo de Vasconcelos, urn dos fundadores da historiografia mineira, que D. Bras Baltasar da Silveira nao veio s6. Tornando posse em Sao Paulo a 31 de agosto de 1713, quando ainda eram recentes as cicatrizes do conflito emboaba e em Minas se com er;ava m a fundar as vilas, havia -se feito acompanhar cla familia, como a criar modelo para unu popular;ao racialmente heterogenea e afeita a li g;u,fJes conscnsuais . Dou a pabvra ao grande historiador:

Tendo D. flr"•s trazido a sua mulh er e fililos, a essa familia ilustre e virtuosissirna se deve em grande parte a nobilita<;:ao dos lares cristaos c a vida reli giosa na Vila [do Carruol. Nesta nasceu-lhe o filho D. Jose, lntizado na Matriz a 21 de junho de 1714 pelo Padre Dr. Antonio Cardoso de Aze redo Coutinho, vig:uiu lb freguesia, e S<"rvindo de padnnho o Padre _lose de Sousa, hullrerll noilre e vig:hio dc Vila Fic:~u

Excmplo de virtudc dumeo tJ Gt, 1). Br:'rs clari;r scqLi<?ncia au esfor~·o organizador iniciado pur Albuquerque, c rianclo as vilas do Principe, Sao _) oao clel -1\ e i, Caete, Pitangui c demar~ cando os limites cbs tres com~trcas da capitania p;na, assim, melhor ed ificar o ap;:rrelho judici;.lrio 13 NCrcl cos urbanos, justi<.:a e vida domestica confluem punanto na sua pessoa, sugerinclo aproxima<,:oes com os her6is civilizadores cia mito~ logia classica.

D. Pedro Miguel de Almeida l'ortugal, conde de Assumar, foi talvez o maior "justicciro" c clisciplinaclor dos primeiros tempos clas Minas , semp re queixuso cia ingovernabil idacle c!as gentes, que qucriam viver ";t Le i da Natureza, que eo que ate agora n:iu lhes ll:nliu cunscntido, e nem enquanto eu pucler !he o hei de permitir". 1

'1 Defensor da ador;ao do Code Noir

nas Minas - o que possibilitaria que se curtasse o te nclao de Aquiles aos esnavos fLlJOCs -- e tristemente celebre pur tei manclado matar Filipe dos Santos sem julgamento quando do

178

mntim cle 1720, Assumar, sem dt.'rvida truculentu e autoritario, nao deixou contudu de conquistar admiradores ao Iongo dos seculos'' Feu de Carvalho e Diogo de Vasconcelos contam en tre eles, e ambos sublinharn no conde as qu:diclades do mando e da organiza~ao. Vasconcelos alude a presen~a - ­ficticia, como procurarei mostrar - da condessa no palacio da Cachoeira, onde teria vindo residir com o marido, dela se esperando, em horas dificeis - como durante a seclir;ao de 1720 em Vila Rica - que o aconselhasse. Mais um her6i civi~ lizador, portanto, desta vez reunindo as qualidades de "legis­lador" e chefe de familia.

MITOLOGIAS

D. Bras Baltasar da Silveira e D. Pedro Miguel de Almeida Portugal tiveram, ate certa altura da vida, trajet6rias impres~ sionantemente paralelas. D. Bras e ra mais velho: nascera em 1674, quatorze anos antes de D. Pedro. Ambos pcrtenciam a grancles familias, sendo que D. Pedro era o hercleiro titulado da casa e D. Bras, filho de um filho segundo, nao tinha titu~ lo. Ambos serviram na Guerra de Sucessao Espanhola, e am­bos chegaram, ap6s varias promor;oes, ao posto de Mestre de Campo General dos Exercitos de Sua Majestadc. 1). Pedro secundou o pai quando este foi embaixador junto ~~ corte do Arquiduque Carlos, futuro imperador Carlos VI, sediada em Barcelona. D. Bras serviu sob as ordens do tio, o rnarques das Minas - um dos maiores vultos de toda a gue rra -, acompanhando~o ate a Catalunha. Foi feito pris ioneiro na batalha de Almanr;a, senclo trocado e gueneando quase ate o fim cia peleja. D. Pedro, por sua vez, dirigiu a retiracla portu­guesa cia Catalunha. Ap6s servirem no Ultramar, ocuparam comandos militares no lkino: a D. Br{ts foi confiado o governo das Armas da Provincia cia 13eira, enquanto D. Pedro assumiu o posto de Mestre de Campo General da Cavalaria do Alentejo. r~>

Em 1713, antes de terminar a refrega, D . Br:ts e ra nomea~ do governador de Minas Gerais. Contava quase 40 anos e aincla nao havia casado. D. Pedro Miguel o sucedeu naquela capitania, assumindo o posto em 1717, sern ter completado os 30 anos mas ja com esposa jovem, um hcrdeiro mono e outro recem~nascido.

179

----------------------------------~----------------- -----~- --- -

Page 72: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

D. Rr<is e D. Pedro ilustram assim as duas alternativas que cabiam aos nobres no caminho que levava a constitui<;:ao da familia e ao cumprimento da func;:ao burocratica no Imperio ou serviarn antes clc casar, ou casavam e seguiam para o posto sozinhos, cleixando a mulher e os filhos na Metr6pole. D. Bras adotou a primeira via; D. Pedro, a segunda. Havia ainda os que se casariam com ajunr;ao, geranclo eventual­mente filhos naturais: foi o caso de Gomes Freire de Andrade, o grande Bobadela, que governou Sao Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e ainda as entao vagas capitanias da por<;:ao sui do Brasil, representando Portugal nas negociac;:oes do Tratado de Madrid, vencendo em quatro elias de cavalgacla a distan­cia entre Rio e Minas, ficando pouco tempo disponfvel para a filha, enclausurada no Convento de Santa Teresa do Rio d e Janeiro. 17

Os pais cle D. Bras Baltasar cram D. Luis da Silveira e D. Luisa lkrnarcb cle Lima, filha de D. Fr:mcisco de Sousa, primei­ro marques das Minas e terceiro conde do Prado. Pelo !ado matemo, pertencia, como Assumar, a nobreza titulada promovicL1 pela Restaura<;:ao cle 1640. Pelo laclo paterno, seus ascenclentes irnediatos n;'io tinham titulos, mas o avo, Fernao cia Silveira, era irmao do primeiro conde de Sarzedas_ A familia acumulava <JS comencl<Js cle praxe, habitos de Cristo, senhorios. 18 A crfmica cia cpoca referia-se a D. Bras como a urn cortesao que vivia de forrn<J rna is opulenta do que comportavam seus rendimentos. Em fins de 1712, pouco antes, port<Jnto, cle seguir para Minas, partici­pou de urn sarau festivo no Pa<;:o, oncle se celebrou o primeiro aniversario cia infanta D. Maria; mascaraclo, danc;:ou junto com a melhor nobreza cia Corte, assistido pelo rei, pela rainha e prin ­c ipes da casa real, "sentados em cacleiras, e as clamas e donas e outras ficlalgas, sentaclas nas alcatifas cia casa. Toclos os qu e clan<;:aram iam cobertos de diamantes, em cliferentes trajos"19 Em 1733, celebrctrctm-se os seus anos "com muito luzimento", "uma casa bcm alumiacla, com cluas musicas portuguesas que cantam e tocam bern instrumentos , havenclo representar._:ao castelh<Jn<J e outros bons instrumentos , com uma excelente merenda" 2 0 Era figura rnuito conhecida, relacionada, pelas alianc;:as familiares, a mais alta nobreza de Portugal, e dificilmente um homem como Caetano de Sousa, seu contemporaneo, pocleria se equivocar acerca d e seu estado civil quando partiu para governar uma capitania coloniaL

180

I I

J - - - --- ------ --------------

Quem se equivocou, portanto, foi Diogo de Vasco n cc lo.~

Longe cle p e rm ancce r snltciro ~ concli\' ;\o que ce rtarnentC' era a su a e m 1713, quando chegou so1.inho i1s Minas -- [)_ Bras cas<Jria cluas vezcs, de volta ao Re !flo ern 18 de outubro de 1719 com D. Joana Viccncia de Men eses , filha de Aleixo de Sousa d e Meneses, segundo conde de S<Jntiago, e cia con­dessa D. Leonor cle Meneses; em 1732 com D. Maria Caetana de Tavora, clam<J da rainha D. Muia An<1 de Austria, filha de Tristao da Cunha cle Ataide, primeiro conde de Povolicle e da condessa D. Arcangela Maria de Tavora 2 ' So gerou filhas: tres no primeiro consorcio, cluas no segundo. D<1s cinco mo<;: a.~.

trcs se "acabaram em tenra iclacle", e a hercleira presuntiva ac<Jbou senclo a scguncla filha do primeiro casamento, D. Lui sa Francisca Anroni;l cia Silveira, nascida em fevereiro d e 1722 e cas<Jda, no tempo em que Caetano de Sousa concluia seus escritos, com Nuno Gaspar de Tiivor:1, filho clos segundos concles cle Alvor.

De oncle te ria Diogo d e V;~sconcelos extraido os detalhes sobre a familia de D. Brits, 11 hat.izado do hlho home m, o nom e do mesmo, o seu paclrinho' Com h~1se em que eviclencia te ria transfo rmacl o um co rtes~io :10 qu e tudo indica afeito ;, vida rnuncL1na e fC1til do pc rioclo j o~mino e rn um p:1 i de f:unili:1 clcsvelaclo , modclo par:1 os i:Hcs crist:1os; 0 que intriga s:\ o

os clctalhcs a cb u d o barizaclo, o filho home m que nun c1 teve, 0 pad re o fi c iante ~. pois :l iclcologt:l suhjaccnte e c lara aquela que, e m outro rcmpo c em conrexto posterior ao cla s Minas nascentes, embasou :1 mi to log ia cia "trac!icional familia mine ira". 22

E Assumar' Sem pocler passar por moclclo estrito d e vi11ude, couhe- lh e , na Hislciria !vfl'dia d e Vasco nce los, pe lo m e nos o papel de mariclo zeloso clos deve res conjugais, trazenclo consigo a esposa para JS Min as e feste j<Jndo-lhe o anivers[nio Quando escreve sobre o intuit o cle Seh:lsti;1o cia Ve iga Ca bral em cleixu Minas :1s pressas, ciurante o conflito de 1720,

Vasconcelos con ta te r ele pecliclo aos dois padres wsuitJs que mor<Jvarn com Assumar que "houvessem de apresentar as suas despe did<Js <JO Conde e a Condessa"z 1 Como o conflito nao se resolvesse, continu<J o histori<Jclor mineiro, o sargento-mor Manuel Gomes recomcnclou a urn criaclo de D. Pedro "que ele e mais pesso<Js, cstando nisto a Conclcssa, persuaclissem

181

Page 73: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

{ !'! I!

j! ao Conde ter rnais :tttH>r ;, vtda, puis us revultusus, infeliz­mente, haviam jurado ntal~t-lo"

Mas a condess<~ nunc:t esteve em Minas. D Maria jose Nazare de Lencasrre, filha dos condes de Vila Nova de Portimao, casou-se em 21) de fevereiro de 1715 com D. Pedro Miguel.

No mesmo ano nasceu-lhe u primeiru filho, D. Joao, mono ern tenra idade; em julho de 1717, no mumento em que o pai deixava o Rio cit: Janeiro p:1r:1 tomar posse do governo em Sao Paulo - u qu e fez no inicio cle setembro - , nascia em Portugal o segundo filho , D. Jose, faro que, por si s6, impos­sibilitaria a presen-,-:t da condessa junto ao marido." Tambem este pequenino rnorrcria ceclo, e o casal s6 tornaria a ter filhos ern 1723: um Iongo hiato de 6 anos, mais condizente com a ausencia do conde, no Brasil are fins de 1721, do que com qualquer tecnica de conrrole cia nauliclacl e .

Por fim, a corrobor:tr a hipc!tcsc de que os concles nao estiveram juntos rl:lS Minas, hj o depoime nto de :tmbos. Ao procurar, anos d epui s, curwenccr n Ci lhu mais ve lho - um outro .loa o , na ~x i do c:m 172(, -- :1 sc· ctsar c·um unu prima gord:t, ki:t c· Jttuitu ric ·: t. :1 cundc . .'is:t- c·ntao 1:1 marquesa de Alorn:t , titulu q ue· u ttl:tt·idu lliJti\·c·r:t o;crvinuo co rnu vice-rei na India---- dou1 ·: tv: t :1 pilul:t Ul lll :1 vi: tgem que, imecliatamentc ap11s as budas, <l juveJtl poderi:J r·:J/.c:r suzinhu a P:nis, u ncl e r11ora va u m 1rrnao rnenor·

poder{ts tu ir buscH Luis quando hnuver de vir, e com esse pretexto ir esur seis ou oito meses em Paris [ ... ]; hem sei que tu:l mulher nau gostara, mas ha de se acomodar assim como eu rne aco1nudei co!ll as.llue teu pai tern feito lviagensl, por­que as mulhe res de bel!l, ainda cJ:un con1 o que :::iC LLS 111aridos dc~ ter nn in:un .

0 conde, por sua vez, lamentava, conforme mostrou Feu de Carvalho, a separar;ao da familia e em carta de 22 de mar<;:o de 1720 se soliuarizava corn um funcionario, queixoso por ter cle servir ao re i numa clas vilas mineiras enquanto a mulher residia em o utra localidade:

Hl2

n>io duvido que V. Mercc p ese nesta ocasiao na balan,:a da prudencia qual pesa1·;i nuis: se o sossego que eu procuro dar a

esse pais por meio de V. Merce, se o seu descomodo, do qual nao dcixo de cornpadecer- rne rnuito, cuu1o queru o experi­

menra em si mesmo, e sei o que isto custa; e p a ra V. Mercc se inteirar bern desta verdade, julgue qual de nos estara mais de­sacomodado, se V. Merce em Pitangui, donde todos os tres elias pocle ter novas de sua casa, se eu lunge da minha tantas leguas, com a incerteza de saber clela apenas uma vez no ano, e vindo para uma distancia tao dilatada, pudera ser que quan­do saisse de Lisboa deixasse minha mulher em maior perigo em que na o esteja a de V. Merce, e depois de ca estar, e d e me haver mono o Lll1ico sucessor que tinha a minha casa, fiz to ­dos os esfun; us com S. Majestade para que me aliviassc deste governo; e agora, pelas cartas que recebo de Lisboa, vejo que o ditu Senltor nao foi servido deferir-me ao meu requerimento; antes entendo que me dilata aqui o tempo que eu nao quisera; a vista deste exemplo que EI-Rei me da, porque talvez entende­ra que as:-;in1 convern rnais ao seu servi~: o, julgue Y. MercC como por aten,::l.o ao mesmo servi,·o !he poderei eu cleferir, mas se V. Mercfc acha que pode ter conveniencia e m fazer ai conduzir a sua familia, raz:lo e que se n;io prive desta mesma cons ula<,'~l O, que eu nJ.o posso lograr cu n1 :1 rninlla. 2 7

Nu caso de Assumar, c possivel saber como surgiu a icleia de que a esposa o leria acompanhado a Minas: nasceu do fat o de se te r comem< 1rado em 1720 o seu natalicio na Vila do Canno, pois o LJiscu rsu fiisL()rico e Politico .. aluclt.: :rs "festas, que aos anos cia Condessa se fizerarn em abril" 2 " Como esta nao se encontrava presente, o registro infonna sobre pratica curiosa, talvez corrente em Minas ou ate na colonia: o habito de os govemadores festejarem o natalfcio das esposas, mesmo estando elas ausentes . Se Assumar nao levou a condessa as Minas, valeu-se de sua existencia - o aniversariu comemorado - e cia imagem do casamento e da familia para reforc,:ar normas e melhor inculcar o nuncio. Durante toda a vida foi um curnpri­clor zeloso das ordens reais, urn funcionario dedicaclo que a monarquia soube premiar etn momentos cliversos, fazendo-o sucessivarnente conde de Castelo Novo, vice-rei da India e marques de Alorna. Contudo, em diversos momentos alegou razoes privadas, assentadas nos deveres familiares, para conseguir encurtar as estaclias ultramarinas. Se a mitologia posterior fez dele um defensor cia familia, nao esteve tao Ionge

da realiclade quanto no caso de D. Bras Baltasar cia Silveira , conesao antes frivolo do que patriarca cristao e devotadu .

183

Page 74: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

A LINHAG EM COMO VALOR

No mundo do Antigo Regime, onde a nobreza era a classe fundamental, boa patte da estima, do status e da preeminencia assentavam-se na linhagem. A familia comer;;:ava apenas a adquirir entao um sentido que s6 se consolidaria posterior­mente, e que ainda e o que !he atribufmos hoje, ligado de forma indissociavel a ideologia burguesa e assentado no nu­cleo domestico. Casava-se, naquela epoca, para preservar bens e linhagem; quando os filhos comer;;:avam a crescer, cram tirados do convivio domestico para aprender um offcio ou estudar. Nosso sentimento de famflia, assentado no amor e nas afiniclades, era ainda incipiente no mundo do Antigo Regime, como Philippe Aries indicou num estudo classico de forma b:1stante convinccnte. 29 Assim, ao escolher administr:l­clores par;.t o Imperio, a monarquia lusitana daria preferenci:1 antes aos nobres de linhagem antiga e reconhecida do que a bons e morigerados pais de familia.

Num estado imperial como era o portugues descle o seculo XV, a :lntigliiclacle e o reconhecimento da linhagem assenta ­v<~m-se tanto em feitos de armas, percliclos na noite dos tempos e rcmontando aos prim6rdios cia Reconquista, quanto no exer­c icio cl;1 funcilo hurocratiC3 e aclministrativa. Muitos foram os sCtditos que, tendo nasciclo nobres, aceit:1riam o s:1criffcio cle exercer cargos em possessoes longinquas, para assim melhor dourarem os brasoes e apurarem sua nobreza, acrescentando novos tftulos aos ja existentes em suas casas. Outros, ao con­tra rio, :1clquiriram a nobreza que originalmente nao tinham, servinclo 30 rei nas cliferentes regioes do imperio.

Dentre os governadores de Minas, alguns pertenciam a famflias cujo nome estava indissociavelmente ligado a adminis­trar;;:ao portuguesa no Ultrarnar. Assirn foi o primeiro cleles, Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho, nomeaclo pela mesma carta regia que criava a capitania de Sao Paulo e Minas do Ouro , c!esde entao separacla da do Rio de Janeiro. Tuc!o indica que escolhcram-no a declo para assumir o comando cia regiiio recem-clilacerada pela guerra emboaba: "Os grandes talentos de Antonio de Albuquerque eram constantes a Sua Majestacle e por isso o mesmo senhor o nomeou, ou passou daquele governo [Rio de Janeiro] para Governador e capitao-general

1H4

---- -- ·-- ---···-- - ---

1

I I

J.

desta nova capitani;1 [Min:ls]""' Charles Boxer o consicler;J um:1 das pe rson:!lidades clest :lclcla s clo imperio portugues, c lliogo de Vasconcelos se refe re :t ele como "o rnaior vulto do govcmo coloni:1l cia Amcric.l'' em seu tempo." 0 pai ja fora um cmi ­nente burocrata colonial; cum o mesmo nome (m:ls cognomi­naclo "o Velho"), nascera no Br:1sil, governando o Maranhilo e o Para no ultimo quartet do seculo XVII. 0 filho tambem administrara o Maranhao, mas na virada do seculo, entre 1691 e 1701, retornanclo ao Rei no em licen<;:a de saude. Depois, junto com peritos franceses, voltou a colonia para clem:1rc:1r a fronteira com a Guian:1- regiao que conhecia bem por J:i ter combaticlo :lnteriorrnente. Quando, no calor do conflito emboab<1, a integriclade d:ts Mmas correu risco serio, a Co­roa clesignou Antonio de Albuquerque, ent:1o governador do Rio de janeiro, rara solucionar as pencl(~ncias: governou Mi­nas e Silo Paulo d e 1710 ate 171.">, acorrcnclo ao l~iu em 17ll

par:t delcncler a ciclacl<: clo :Haque fr;Jnc:es de Dougay-Trouin. Foi o governanrc que csrabelcceu as bases do poder r<::d nas Minas, c riando tri'>.<; vilas: Hibeirilo do Carmo, Vila Rica e Vil;1

I\eal de Nossa Senhora cl:t Cunccic;ilo (Sabara)."

D. Loutenc,;o de i\lrncid<J, que tanto ~c preocupou com ;r

base f:1milt:tr d;1 popul;l<,' ;\o rnirH ~ ir:t. pc rt c nci;l :1 urna casa ck ilustrc linil :1ge m e , :to mesrnr> lcrnpr>, linha su;J histr 'ni ;r f:1miliar estreiramentc ligacla ao alto cornandrJ do lrnpt'·rio" Seu pai era D Antonio de Almeida, segundo conde de Avinrc.-;. e a mae era D. Maria Antonia cle Borb6n, filha de D. Tom;is cle Noronha, terceiro conde elm; Arcos, membro do Conselho de Estaclo e presicl e nte clo Conselho Ultramarino. Uma de suas irrnas havia-se casaclo com Diogo clc Mendon<;a Cone Real, o toclo -poderoso rninistro de D . .Joao v.

D. Louren<;o nao tinha o titulo cia familia , que for<J para seu irmilo D. Luis de Almeida, o terceiro conde cle Avintes. Mas tinha as c mnendas de Borba e Gondirn na Ordem clc Cristo, onde era cavaleiro pmfesso desde 1697, e integrava o grupo dos familiares clo Santo Offc:io, tendo solicitaclo p:na cntrar na lnquisir;;:ao de Goa e m iCS9(J -' 1

Por que Goa) Porque. tendo estudaclo em Coimhra com 0

fim de seguir a carreira eclesiastica - onde se notabilizou seu irmiio, D. Tomas cle Almeida, bispo do Porto e primeiro patriarca de T.isboa -,l5 cleixara a univcrsidacle e passara :t

ISS

Page 75: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

II

fncli<t nu aiJo de 1<)')7 a fim cJe se casar cum sua prima-irma,

D Maria Xus~t de Portugal, e sen1 tr naquele vice-reinado. 0 t1o, D. Miguel de Almeida, 1:1 d ev ia estar a scrv ir;o do rei, e na mesma condir;;Jo ficou D. Louren r;o qu:tsc 10 anos; em 1706 fazia o caminhu de volta, "transportando a sua casa, mulher e filhos p~1ra a sua patria". 16 Eram ent}o tres os rebentos, todos "indianos"; em Lisboa nasceram mais tres, e em 1715 parria sozinho para Pernambuco, que deveria governar ate 1718. NJo h:t dados que indiquem se, naquela altura, j:l se encon­trava viuvo. Quando assumiu o guvcrno d e Minas beirava os 4') anus, c aincb se ctsou unLt vcz, possivclmcnte depois das atividade.~ ~tdministrativa.'> no Ultr:tmai· t.as informar;oes sobre a vida pessual escasseiam nesse periudu), cum a sobrinha Isabel I !enriques, filha de su~t Macble na de Borb6n e ja vi{Iva na ocasi}o

Luis Diogo Lobo da Silva, se m d Ctvida um dos mais impor­Lintes governadores que :ts Min;ts tiv e1·am, e ra neto de Luis Lubo cb Silv:t, govern:tdor de Angob que caiu em c!esgrac;a pur iiTt'guLli·icl:ldcs de que u :tcus~tr:tm em sua Residenci a . N:'to po1qHlli vsfor,·os p:tr:t re:thtlit:ll- o :tvb e limp~ll'-lhc a

ntc·lnui 1:1 , u ljllt' :lt·:Li><>ll UJILsq_;tlilltiu Jl"r m e iu d e um Auto tk l.ivr:llllt'l1tu. ,- l'ertenci;t :1 hrni]i;l n:-tl! titubc!a mas de boa nobrcz:t, c_· t'Ll scnhur du ;\hng~tdu de fl,lugure. 0 pai, Manuel

Lobo da Silva, fora her(>i cia Cuerra de Sucessao Espanhola, ocupanclo os rustos ck capitao de cavalos , comiss<'irio geral d e um tru~,·u, ccncHtel brigadeiro, sargenro-mor de batalha e, por fim, general de batalha, sum:llldu ao todo 45 anos de sen'i\'OS ao rei, de quem era Moc;:u Fidalgu 58 A espusa, D. Antonia de Noronh:1, er:t dam;t do Pa\:o, o nde sen•ir:1 como clanLt da r~tinh:t D. Mari:t Ana de Austria e camarista da rainh~t D. Mari:ttl~t Vit(Jria de Bourbon, mcrccendo tenr;a anual dt~ 'iUO ltlil rt'•is D . i\ntoni:1 deve tcr ncscido no ambiente cia Cork, puts su~t m;tc, D. Aru .Juaquin:t de Purtugal, fora , e b umht'm, cLtm:t du l'a~,.-u 1\t:~tl."'

Em 17-)'), :tus vinte ;l!lus de idadc, Luis Diogo se tornara Ltmiliar do Santo Ofluo."' Tres <tllt>S depui.,, reccbe ra o alvar{t de Cavaleiro l'rofesso cia Ordem de Cristo e a cumcnda de Santa Maria de Moncorvo. ;1 Ia assim ilustrando a linhagem com ~ts m e rces clisrinrivas pr6prias :1 nobreza. Mas faltavam us nwios pccuni:trios, c em 17')') era prccarissima a situa.;;:lo

lh (>

financeira de sua casa, acossada por credores e premida pela iminencia de execur;ao por clividas. A catasrrofe foi contornada graps :1 intervenr;ao real:

Fa~o saber que Luis Diogo Lobo da Silva fidalgo de minha casa me representou por sua peti~ao: que a sua casa se achava com a maior consterna,_:ao pelas rigorosas execUI;-oes que ao suplicante faziam v<'trios creclores, de sorte que o suplicante nao tinha com que se sustentar, e para evitar estes e outros prejuizos: Me pedia lhe fizesse merce rnandar por rneu real decreto nao fosse o suplicante penhorado por bens m6veis, carruagens e bestas de que precisava para o decente trato da sua pessoa e de sua mulher, que tivera a honra de ser darna da lbinha minha muito amada e prezada lllulher.'"

Tres rneses depois, o rei o nomeava governador de Pernam­buco. A interven.;;ao real ante a amear;a dos credores fora certamente invocada para garantir, durante a ausencia do chefe, a sohrevivencia cia familia: a mulher, D. Antonia, e um filho Linico, jose H.airnunclo, que tudo indica ser crianc;a na epoca, puis se encontraria ainda sem estado no a no de 1775. ' 3

Pernambuco e, logo a scguir, Minas Gerais entraram assim na negucia<;~lu financeira armada entre Luis Diogo, nobre de estirpe, e seu rei, senhur de urn vasto imperio colonial. 0 rei

dava prote~:~to ao Mo<;:o Fidalgo de sua cas a, lig ado por matri­rn6nio a uma dama de honra da rainha, e, em troca, reccbia seu sacrificio na fun.;;ao administrativa a ser exercida do outro !ado do mundo. Luis Diogo desencumbiu-a a contenlo, e ao voltar tinha consolidada a sua posi<;:ao de destaque naquele munclo: em 1769 e ra eleito para servir na Mesa cia Misericordia de Lisboa como Yisitador de Nossa Senhora; no a no seguinte, escolheram-no Tesoureiro do Hospital cia Misericordia; em

1775 foi reconduzido provedor da Santa Casa cia Misericordia de Lisboa. Garantida a estima social, obtinha tambem a preeminencia polltica: em 1773, tomuu posse de um Iugar de membro do Conselho Ultramarino 44

Se Antonio de Albuquerque era filho de um governador do Norte do Drasil; se Luis Diogo era neto de um governador de Angola e D. Lourenr;o cle Almeida de um presidente do Conselho

Ultramarino, alem de cunhado de um rninistro do Reino pcrtcncenclo toclos, portanto, a linhagens de aclministradores

187

Page 76: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

do Imperio ~. o conde de Valadares e D. Rodrigo jose de Menezes, depois conde de Cavaleiros, pertenciam a alta no­brcza mais cliretamente subordinada a corte, nao havendo registro de parentes pr6ximos que tenham, antes deles, exer­c iclo a governanc;:a.

D. Jose Luis de Meneses Abranches Castelo Branco e Noronha, sexto conde de Valadares, nascera em 1742 e fora nomeado governador de Minas em 1768, antes de completar' 26 anos de idad e - e nao 24, como escreve Diogo de Vasconcelos." Nada havia feito ate entao que fosse digno de nota, tendo apenas assentado prao;:a no Regimento de Aveiras e siclo promovido a capitao em 1762; indicia de que o cargo viera mais devido a importancia de sua familia do que ao merecimento.' 6 Seguiu para o posto solteiro, e o bom governo que realizou nao mostra as marcas da pouca idadc.

Deve ter ido com o casamento ja ajustado, pois passou o governo ao sucessor em 22 de maio de 1773, pcdiu liceno;:a ao rei para casar em 15 de janeiro de 1774 e casou a 28 de junho deste ano: o tempo, portanto, de viajar para o Rio, esperar a frota, atravessar o oceano, chegar a patria e entregar-se aos preparativos das boclas.'17 Nao eram muitas, entao, as herdeiras ricas, e a escolha cia noi va implicava uma estrategia complexa, ciific il de urclir cia noire para o clia. 48 A eleita foi uma prima. D. Luisa Llllsta (ou josefa, conforme outro clocumcnto) de Noronh:~, filha clos segundos marqueses de Angeja e en tao com :Z.Ci anos de idacle: para os paclroes cla epoca, estav:1 Ionge de ser uma mocinha, o que corrobora a hip6tese de que ja a haviam reservado para o primo quando este partira para a col6nia. 49

A hist6ria posterior de D. Jose Luis de Meneses revcla que o governo de Minas foi epis6clio deslocado em sua vida de nobrc palaciano: Gcntil Homem cia Camara cia Rainha D. Maria I, Deputado da Junta c!os Tres Estados, lnspctor Gcral do T e rreiro PCiblico e cL1s Estraclas, Envi;1do Extraorclinario c Ministro Plenipotenciario em Madrid em 1785; por firn, o escolhido para receber na fronteira D. Carlota Jnaquina, futura princesa do Brasil, que se dirigia a Portugal para clesposar o primo D. joao, futuro rei de Portugal, Brasil e Algarves: Valadarcs foi "o primeiro que a serviu naquela ocasi;'io cia sua fe licissirna entrada nestes reinos", servi\'O

188 J

invocaclo pela rainha 30 reconhcccr em 1791 o titulo de seu filho D. Alvaro de Noronha, o se~timo conde."'

D. Rodrigo Jose de Meneses pcrterK1:1 ;J uma cLts m:1inres farnilias de Portugal. Seu p :1i, D. Pedro Jose Antonio dl·

Meneses, qu:~rto marques de Marialva e sexto conde de Cantanhede, foi c!as figuras mais destacadas cia corte portu­guesa na segunda metade do seculo, que viveu quase inte­gral mente, pais nasceu em 1713 e morreu em 1799. 51

Oliveira Martins tra<,;ou dele e de sua corte particular um retrato pouco edificante, cleformado pelo vies empenhada­mente liberal que era o seu; mas registrou: "0 rnaior ficlalgo cia corte era, no tempo de D. Maria l, o marques de Mari:dva"_" Lendario cavaleiro - qualiclade ridicularizada por Oliveira Martins, que descreveu o pal:\cio clo marques a recendcJ estrume c a ecoar "as patacla.'i c os rclinchos dos cav:llos" -. cortesiio semprc ern evidencia, conseguiu rn:1nrcr o prcstigio mesmo durante o consulaclo pomhalino. ;qx~sar de pouco :1feito as icl eias do ministro. Rcza :1 traclic;:ao que D. _lose CoSt\1111:\V:J clizer a Pombal: "Procecla como julgar mais accrt:1do como rcsto cia minha nobreza, mas guarcle-se de se intrometer com o m:nques de Maria lva "" 0 vi:Jj:~nle inglcs \X'iliiam Ikckford e xaltou-lhc a urhanidacle, o hCJm hunJrl!· e o rr:Jto scmprc :1f':lv e l. ncle vcnclo um tipi c o p:ltl·i;JrC:I . Foi um :Js.sidurl freql'1 e ntador cie seu pal :tcio de f\clc-m. cc11tro de· ITuni(lcs na Lisboa clc entiio, nnclc sc a'cotovcLJv:Jill '·nn1sicos, prwt;l.'i, toureiros, lac1ios, mac1cns, annes c cr·i:m<,' ;t.s de :Hllbos os scxns. f:1nt:1siosamente vestid;Js", como os "anjinhos " clor:tdos cl c "umas asinhas transparentes pres:1s aos scus ombros cnr-de-rosa". 51 0 outro palacio, o do Loreto, no Bairro Alto, cles;1p:necer::~ com o terremoto de l7S'i: uma L\ srim:J, pois abrigava "rnuiras e importantlssimas pinturas de Rubens e clos primitivos, oiro e prata, t:~pq: arias e tapetes persas de clezoito a vinte e dois metros de comprimento", ruclo desrruiclo para semp re 55

Quando Beckford travou :lmiz:Jdc com su:1 l:1mili:l. aproximanclo-se de scu irrn:-lrl m:1is vclhu, f) Diogolo .'i l; Vito de Meneses, que dcpois succdcJI an p:1i no titulo, D. 1\orlrigo j:'i niio se encontrav:J rnais em Portug:Ji."' Nono c l'iltimn lilho. niio hcrclara o titulo familiar, e csta sua condi<,':'io clevc t.er influfdo na op<;:ao pcla C:lrreir:J co lonia l, que, depoi.s dele,

18')

Page 77: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

lui a de su~; descendenu~;, L'CJllstltuida pur tipicus 11uiJres clo

imperio luso-brasileiro." .):1 estava nu fim da vicla e ocupava o

posto cle morclomo-mor cb pri.ncesa do Brasil, D. Carlota joaquina, quando o principe regente, celebranclo o nascimento do principe

D. Miguel, fe-lo conde de Cavaleiros por duas viclas. 58

D. Rodrigo chegou a Minas no inicio de 1780, pennane­cendo a frente da capitania ate o final de 1783. Uma carta

patente passada a 11 de julho de 1778 indica que fora primeiro

nomeado p~tra o Grao-P:ua, tendo mesmo prestado juramento :1 rainha. 5" Mas a 27 de Jllnho de 1779 saia sua nomeac;:~'io para Min~1s, paragem menos remota e in6spita para um jovem

ctsadu havia pouco, e que desejava fazer-se acompanhar da famili:t. Tcria a rnuclan<;·a ocorrido em virtucle de pressao da famili:1 importante junto :1 rainh;t' Ar-risco afirnur que sim.

Uma vcz em Minas, fui um governante notavel, cheio cle boas inten<;·c')cs c sincer·;;mente crnpenhado na recuperac;:ao c'Con(lll1icr cia c;tpiuni:1 dccadcnte. Como bem viu Diogo de

V:tsumcelus,

t!(),-.; ler, v

qtH.' L'lll 1~urcz. t de furnu e v;t!ur

ft•i!:l r"lur· [) Hodrigo de Mcnest..:.s ;J(J SeLTeLlriu

IVkl l\) , cl:~i:ld:i de •I de de r~lat:mdo a dec·;tdl'nua d~t capil:tni;t l' os 111t.'ius

D. Rodrigo cnivaria pela inreligencia, gentilcza e amabili­dacle, tornando-sc :tmigu da elite intelectual local, anos depois envolvicb nu epis<'JCiiu cia inconfidencia 6 ' Trouxera consigo :t rnulher, num:t viage111 que deve ter sido penosa: D. M:tri:t Jose Ferreir:1 d'E~-a e Bourbon, herdeira cla antiga casa ck C:tvalciros, vinh:t em estado ~tdiantaclo de graviclez, e cleu :1 luz ~1 bordo, possivelmente ern alto mar, oitenu elias antes de chegarcm :1 S:1h·:tdor . N~t m es ma nau, a "Gigame", vinham u marques de V:llt:.·n,·:t p:u:t assumir o governo cia Bahia e, designado para o hispado de Mar·iana, [) Frei Cipriano de S:\o Juse . Foi cle quem h:ttizou a cri:m~:a, D. Manuel, que (.ironias

do destino), n:tst.·ido no mar, morreria afogaclo em 1808 no Rio de Janeiro(" D. Maria jose teria ainda tres filhos em

Minas: D. Eugenia Jose de Meneses, D. Isabel cle Meneses e Jose Tomjs de l'vkrwse.,, que succdcria ao pai na casa de I

I i')ll

_ __l_

Cavaleiros ap6s a morte dos dois innaos mais velhos, D. Gregorio e D. Manuel, desaparecidos scm descendencia.r.3

Jose Tomas deve ter nascido por volta de setembro de 1782, epoca em que Alvarenga Peixoto escreveu a senhora do go­vernador aludindo a "genre nova" que ela teria no palacio 64

No final daquele ano, o poeta concluiria ci poema conhecido por "Canto Genetlfaco", feito em homenagem ao jovem rebcnto dos Meneses e celebrando, ao lado da exaltac;:ao da America - e clas Minas -, o valor daquele · luso-brasileiro, filho de linhagem ilustre e que poderia , hipoteticamente, vir a governar a capitania do ouro:

Rornulo porventura foi Romano' E Roma a quem deve tanta grandeza? NJo era o grande Henriqu~ Lusitano: quem deu principio a glc:iria portuguesa? Que importa que Jose Americana tr~ga a honr'l, a virtude e a fortalcza de altos e antigos troncos portugueses, se e patricio este ramo dos Meneses'

QuCJndo algum clia permitir o Facio que ele u mando real nwderar venha, e que o bastao do pai, com gloria herdaclo, do pulso invic:to pendurac!o tcnha, qual esperais que seja o scu agrado? V0s exp'rimenwreis como se empenha em louvar estas serras e estes ares e venerar, gostoso, os patrios lares. 65

Jose Tomas nao governou Minas, e sin1 o Maranh;lo, entre 1809 e 1811, havendo-se "com tal prudencia e discrimina<_~flO que u Senaclo, e o Povo requereram que ele nao fosse rernovido claquele governo" 66 Inicialmcnte, haviam-no cogitaclo para Goi:'is, mas, sem que os testemunhos documentais clucidem o motivo, acabou senclo enviado para o Norte.('7 Morreu em 1819 no Rio de Janeiro, ao que tudo indica doente, sem condir;oes de assumir o governo dos A\·ores, para o qual achava-sc designado desde 1811 68

D. Gregorio, o mais velho, Mo\:o Fidalgo do rei desde 1785, integrou o Conselho de D. Joao VI, foi Estribeiro-Mor de D. Carlota Joaquina e, nesta qualiclade, acornpanhou a famflia

l')l

Page 78: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

real ao Brasil" 69 0 pai, D. Rodrigo, havia morrido urn ano antes, em 6hidos, na sua quinta do Furadouro, tendo, depois de passar por Minas, governado a Bahia, pertencido ao Conselho Real e integrado a Junta de Administrac;:ao do Tabaco 70 A mae, D. Maria Jose, se fora em 1796, a saude talvez abalada pelas gestac;:oes consecutivas. Com a famflia real seguiram em 1808 tres de seus filhos, no rastro do sonho de urn imperio luso-brasileiro.

CONCLUSAO

Quando comecci a trabalhar com os governadores de Minas, tinha cluas hip6tcses que buscava comprovar. Primeiro que, salvo raras excer;i'ies, foram homens capacitados e aptos a clesempenh3rem as func;:<)es diante c!as quais se vir3m, ;1lguns clanclo mostras cle rara scnsibilidade e visiio polfric1, como D. Antonio de Noronha e D. Rodrigo Jos{~ de Meneses. Ta l ic!eia ia contr3 uma tradic;:ao bastante sec!imentacla na historiografi3 busil e ira em geral, sobretudo a de matiz mais cr fti co, c na hi storiografia rnineira em particular, ambas preo­c up<Idas em rcssaltar os horrorcs da cxplorac;::'io colonial cas origens estrutur;lis ci;1 clepenclencia econ6mica br;Jsileira ." A seguncla hip6tese, muito vaga e huscando rnelhor fundarnento, cogitava ter havido relac;:ao entre o empenho oficial em clotar a capitania de estrutura populacional mais assenta da na familia e a esco lha de governadores que estivessem cl ispostos a vir para as Minas com suas consortes. 0 exemplo viria de c ima, e as refercncias d e Diogo de Vasconcelos a D. Bras Baltasar c.\8 Silveira, D. Pedro Miguel de Almeida Portugal e D. Rodrigo Jose de Meneses, todos tendo viviclo as virtucles cia vida conjugal na capitania, rcforc;:avam minh<1s dt1vidas.

No que diz respeito a primeira hip6tese, continuo acredit.anclo que tern fundamento, e procurarei prova-la num tr3halho maior, aincla e rn curso. Ja no tocante a .seguncla, as eviclencias clocurnentais mostraram situac,:ao diversa, ilus­tranclo mais uma vez que a licla permanente com as fontes arquivisticas ineditas e imprescinclfvel a realiza.;;:ao d e um certo tipo de investiga.;;:ao hist6rica, como a que mais aprecio e procuro fazer.

192

.. . "1· . .. -~

I

! i 1

I

__l_

De todos os governaclores de Minas ate 1780, o 1"mico qu e trouxe consign a mulher e os filhos foi D. l{"clrig" . A hast' familiar possivelrnente nao e ntrava nas cogitar;c)cs clos ministros regios ou do proprio rnonarca, rnuito mais rreocupados com a linhagern e com a necessidade de atender as pressoes locais das grandes familias nobres, :ividas por cargos que beneficiassem seus filhos segundos.

Nem sernpre e possfvel recuperar tais intrigas palacianas, e aqui nao conscgui faze -lo, apesar de intuir que se cncon­tram nos bastidores das escolhas realizadas. Mas e possivel cletectar a importancia sirnb6lica cia linhagem, que, no rneio rude das Minas, onde a sociedacle se 3ch;1va em processo de sedirnentac,:ao, assumia, inclusive, fun<;·:'io pcc!agc)gica. obri­gando an respeiro cleviclo ;1os gr;1ncles nohrc.s c ent?lo tido por natural.

As fantasi c1 S ell" Diogo de V;Jscnncelos sohrc :1 vida l":1mili:u cle pelo menos clois gnvernadorcs d e Min:1s s;"1o, ck ccrt;J forma, mitologias. Ilustram qu e , ap6s a decadenci;J minera­dora, a f;Jmilia tornou-se para os mineiros o "nt"icleo esscncial clc ic! e ntificJ,:ao" impondo a ritu;J]iza\<10 do passado."' Assim , corresponclem muito mais :10 universo menu! deste historiaclor do que :1 preocup:1<;ocs efcriv:1s dos ministros regios, conselheiros u It r·;1 m;1 r·i nos ou do.s pr·r·lprios sohl'r;l no.s Procuram criar her6is civiliz;1cloces c inuentar !IIIla trad1<;r:io­para usa r exp ress:lo cons:1gracla.'' Assent a m-sc 11:1 hw;ca clas origens e das id e ntidacl es, tao pr6prias ao universo mental clorninantc no Brasil entre o final do seculo passado e o moclernismo, e tao necess;'irias a construc;:ao de urn nexo que ordenasse tanto a hi.st(Jria nclCion;J] quanro :1 regional.

Nao deixa contudo de ser curioso que o mais ilustrc dentre toclos os governantes cle Minas (penso sobretuclo no prest.fgio social, pois em antigLiid :1de da linhagem muitos se equivaliam) fosse igu:1lm e nte o exemplo mais acabado cL1 virtucle domestica, o t'1ni c:o que trouxe consign :1 csposa, viu nascc rem filhos em tcrritcirio mineiro c. mais irnport:1ntc clo que ruclo , teve a desccndencia cx:tlrada co mo mod e lo de mando para um imperio luso-br;lsilciro, ondc contdrios apa ­rentcmentc irredutfvcis sc concili;niam. Alval'cnga Peixoto previra, de certa forma, o destino dos Me neses, c n;Jo e :lleat(lrio o fato deter escolhido os v:1lore.s lLr linhagcm rwm o rehento

19.\

Page 79: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

, r

de urna familia harmoniosa para ilustrar a possibilidade reformista - e ut6pica - de conciliar perspectivas tao radicalmente distintas como cram a do colunizador e a do

colonizaclo.

( Uma uerstjo rnuito preiuniuar deste ar11go Jot t .. presentada rul

ANPUH Regional deSt4o Paulo (UNICM1P) em 1994 Sou grata a Lu i.s Carlos VlihJ!tu f.Xu·ter insishdo em t.jlle eu elaborasse aquela

cunnuziccl~·Uo, tran .. sj(Jnncuulo-u nu ljltt! aqui estd. Sou tjj,ual­

nzet1lc grato a Tiogu Custcl Pi11tu Jus Reis 1Hinuzda pel as

intirneras sugestOes sobrejiuzdus documentais:fui ussirn t.;ue

cheguei a fwzdospouco explorados pelos IJistoriadores brasilei­ros conzo os f)ecretos e necrelturwrllos de Servit;-·o do Mini.su!t1o

doReino.)

NO' lAS

1 Citadu por BOXER, Clude::.; R A idade de ouro do Hrasil L.eci. S:lo P:\ulo

Con1panhi:i J::ditura Nal·Junal, 1 96~J. p . l 84

1 Ibzdezn. p.HJ5

'VASCONCELOS, Diogo Pereira Ribeiro de. Breve j(sica e pohtica da capitania cle Minas Gerais. Belo Horizonte:

Jo>ro Pinheiro, I 994. p .90. (Estudo c ritico de Carla Maria junho Anastasia); -COELHO, j ose jo;zo Teixeira. Instru,:iio para o governo da capitania de Minas Ge r·<~is. Belo Horizont e : Funda1:ao _joao Pinheiro, 1994 p.126.

'COELHO, _juse _luau Terxeira. Insln<l'iio p<~ra o guvenw da de Minas Gerais. llelo I lorrzonte: Funda,ao _joao Pinheiro, 1994.

'VASCONCELOS. Breve descri1:iiu geogrufiw, fisica e politic ada capitania de Mnws G'erars, p.90

"COELHO. /nslm,uu para o guverno da capitania de Minas Gerais, p .146.

7 VASCONCELOS. Hreue descri,:do geografica, jfsica e politic ada capitania de i\h11as Cera is, p.92

"COELHO. !nstnu;dopara ugovemo da capitcmia de Minas GeraLs, p.l47 e 155

'lbrclem. p.l62-16)

'"VASCONCELOS Hn'l'<' descri,·uu geognifrca, fisica e pulitica da capitania de i\-1inas (;'era is, p.s>5

194

I 1

l

11 AI\QUIVO Publico Mineiro, Se<;ao Colonial, c6ciice n. 224. Ver tarnbem zneu "Frontiere geographique et frontiere sociale". In : MATTOSO, Karia de Queiros, SANTOS, ldelette Muzart-Fonseca clos, ROLLAND, Denis (Org.) Nt~issance du Bresil modeme- 1500-1808. Paris: PUF, 1997. p.273-288.

11 VASCONCELOS, Diogo Pereira Ribeiro de. Historia Ullliga de Minas Gerais. Belo Horizonte: lznprensa Oficial, 1904. p.305-306 . Conferir a alusao a vinda da mulher de D. Bras igualmente a p.287.

"COELHO. Instru~ao para o guvemo da capilania de Minas Gerais, p.l28-132. VASCONCELOS. ffistoria antiga de Minas Gerais, p.288. Para uma d iscussao sobre as comarcas --que znuitos historiaclores, entre eles Vasconcelos, acreclitaram criadas por D. Brase que Feu de Carvalho rnostrou terem siclo criadas antes de 1714 - ver BARBOSA, Waldemar de Almeida. Historia de Minas. I:lelo Horizonte: Editora Comunie<l\:ao, [1979J. v.l. p.ll5 et seq.

14 Citadu pur VASCONCELOS. Hist6ria antzga de Mi>ws Gerais, p.307.

"Ver meu Desclassijlcados do ouro- a pobreza mine ira no seculo XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1982. p.91-140. Ver igualrnente o "Estudo Critico" de rninha auto ria en1 Discu.rso bist6rico e politico sabre a su.b/euat;du que nus JV!inus lrorwe no ww de I 720. Belo Horizonte: Funda<;ao joao Pinheiro, 1994. passim

''' Tud:" as informa,-6es sobre D. Bras Baltasar cia Silveira em SOUSA, Antonio Cae tanu de. Ifist6ria geneulogicu da Casa Real Portuguesa. Coimhra: Atlantida Livraria Editora , 1954. torno XII, parte II, e tomo XII, I. p.157 (pa rte Jl) e pA ·1 e t se4 . (parte 1). Para Assumar, ver rncu Crftico", Discurso l>ist6rico e politzco sobre a subleva,:iio que nas Minas IJouve no ana de I 720 lk lu Horizonte: Funda~;ao joao Pinheiro, 1994. p.28-32.

1,. Para Go1nes Freire, ver ALDEN, Dauril. Royal Goverrunent in Colunia/

Jimzil- with reference to the administration of the Vice-roy, Berkeley and Los Angeles: of Californ ia Press, 1968. Para a filha fr e ira, ver ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da colonia_ Estudo sobre a condi,:ao ferninina nos conventos e recolhirnentos do Sudeste do Brasil (1750-1822). Rio de janeiro:

_l ose O lyznpio I Brasilia: EDUNB, 1993.

w A carta de habito de Cristo foi passacia a D. Bras Baltazar cia Silveira a 12/3/1699. Arquivo Nacional cia Torre do Turnbo, Cbance/aria da ordem de Cristo, livro 86, f.75v.

19 Devo estas inforrna\'6es sobre a vida munclana de D. Bras a Tiago Costa Pinto dos Reis Miranda, assirn como as referencias bibliograficas que se­guem. !'or lllclo isto, sou-Ihe znais urna vez profundamente agraclecida. Para a participa~ao de D. Bras no sarau e rn homenagezn a infanta, ver ATAiDE, TrisLio cia Cunha e, conde de Povolicie. Portugal, Lishoa e a corte nos reina­dos de D. Pedro II e D.joiio V. Mern6rias hist6ricas. [Lisboa]: Chaves Ferreira, 1990. p.240. (Introd. Antonio V. de Saldanha e Carmen M. Eadu!et)

20 BRAZAO, Eduardo (apresenta\'aO e notas). Diario do 4" conde da Er-iceira, D. Francisco Xavier de Meneses 0731-1733). Biblios. Coimbra: Faculdacies de Leu·as XVIII(!), 1942. p.100.

"Caetano de Sousa nao cia a data do segundo casamento de D. Bras Baltasar; esta me foi fornecida por Tiago Costa Pinto dos Reis Miranda, corn base na

195

Page 80: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

seguinte bibliografia : SERRAO, Joel. Dicioncirio da hist6ria de Porlugal. Porto: Figucirinhas, 1971. v.V. p. 581; FREIRE, Anselmo Brancaamp. Brasoes da sa/a de Sintra. v.I. p.222; v.II. p.148; FARINHA, Manueljose dos Santos. Subsidios para a hist6ria da "Lisboa Antiga": o Palacio de Palhavam. l.isboa : Parceria Antonio Maria cia Fonseca, 1923. p.33

22 Vcr ARRUD h., Maria Arminda do Nascimento. A mitologia da mineiridade ­o imaginario mineiro na vida polftica e cultural do Brasil. Sao Paulo Brasiliense, 1996. p.192-195

23 VASCONCELOS. Hist6ria antiga de Minas Gerais, p.349.

24 Ibidem. p.352.

""Diario da jornada que fez o Exmo. Sr. D . Pedro desde o Rio de Janeiro ate a c idade de Sao Paulo, e clestas ate as Minas-anode 1717" (c6pia fie! do Manuscrito 382-8 da Academia das Ciencias) In: Revista do Semi(:o do Patri­monio Hist6rico e Ar·tistico Nacional, Rio de Janeiro, n.3, p.29S-316, 1939 Ver igualmente o texto des te livro, "Urn Documento Incdit o: o Discurso de Posse de D. Pe dro de Almeida, Conde de Assumar, como Governador das Cap itanias de Sao Paulo e Minas do Ouro, em 1717". p.27

"ARQUIVO Nacional cia Torre do Tombo, Casada Fronteiru, l22. Carta cia marquesa de A lorna a D. joao de Almeida, seu filho

27 Citaclo por CARVAU!O, Feu de. Ementdrio da hist6ria mineira- dos Santos Freire na secli~ao de Vila Rica em 1720. Belo Horizonte J-list6ricas, [s.d.]. p.67-6H

-"' DISCURSO hist6rico e politico sobre a subleva<;ao que nas Minas houve no a no ci c 1720. Bclo Horiznntc: Funda<_:ao Joan Pinheiro, 199'i p.93

29 ARIES, Philippe ['enfant et Ia viefamiliale sou.s I 'Ancien Rep,ime. Paris Seuil, 197.~.

3° COELHO. Jnstrw;ao para o governo da capitania de Minas Gerais, p.l25

3' BOXER. A irlade de ouro do Brasil ... , p.97 et seq. VASCONCELOS Hist6ria antiga de Minas Gerais, p.247. Ver tambem LEITE, Aureliano Antonio de Albuquerque Coelho de Can;alho- capitao-general de San Paulo e Minas do Ouro, Brasil. Lisboa: Agencia Geral das Colonias, 1944.

' 2 COELHO. Jnstrur;ao para o governo da capitania de Minas Gerais, p.l28.

3 1 Pan1 as informa<;oes que se seguem, ver SOUSA. Hist6ha gcncalogica da Casa Real Portuguesa, torno X. p.SOI-502 (para D. Louren<;o), p.40J6 et seq (para o pai c irmao)

,., AllQU!VO Nacional eLl Torre do Tombo, Chance/aria da Ordcm de Cristo, livro 60, f.327-327v. Arquivo Naciom1! cia Torre do Tornbo, Santo Ojicio. Habilitar;:i5es, ma<;o 1, n.3 5.

35 BOXER. A idade de ouro do Brasil ... , p.575 -376

' 'SOUSA, Antonio Caetano d e . Hist6ria genea/6gica da Cas a Real Portugucsa Coimbra Atlantida, 195,'1. tomo X. p.501-502

"ARQUIVO Nacional cia Torre do Tombo, Minist<5rio do Reino, Decmlamentns de Scrvi<;o, mav' 210

19<i

lH ARQUIVO Nacional da Torre do Tombo, Chance/aria da Oulem de Crislo. livro 76, f 118-v

'"GAYO, Manuel Jose da Costa Felgue~ras . Nnhc/lrino defamilras de l'or·t 11gal Braga: Ecii<;ilo clc C:<rv:~ lhos cit- Llastu, 1992. XII v, costado Ill, :\r-vorc 1)6 vo. p.219. Arquivo Nacional cb Tc1rrc clo Tombo, /L-1ordomia da Ct-Jsa Real, livro 1, f .207-v. Arquivo Nacion :.d da Torre do Tomho, l'vfinistdn'o do Reino,

Decrctos, ma<;:o 28, rloc. 71

40 ARQUJVO Nacion"l cia Torre do Turnbo, Santo Ojlcio, Habilitar;oes, ma\' 0

19, doc. 40.">

"ARQUIVO Nacional d:J Torre do Tombo, Cbancelan·a da Ordem de <.risto, livro 76, fl.'\8-139 e 22'i -227

42 ARQUIVO Nacion'li cia Torre cln Tomho, (.'f>OI/cclarias R<'gias, D . .Jose I, livro 84, f.47- v

j' GA YO. !Vobilid no d e fam(/itts de !'ouup,n!, Torre do Tomho, Chance/arias f(d).!.ias, D

4" ARQl JJVO Nacional tb Torre ctu Tumhu, ;\1inistt_;rio do Rcino. neo·etamentos de Sen}ic;o, n1ac;o 210. Arquivo N;1cional cia Torre do TDmho, Ch{Hlcelan·as Regias, D . .Jose I, livro 76, f.'i2v

"VASCONCELOS . ffcslc5ria rm'dia de Mi11as c·emcs. p . I <)S

Dr. Afonso Eduardo Martins (Clrg.l. Nnhri!za de f'ortugal e do Brasil: ls.n.l, l\l6l. v.lll. p.4 S\l et seq Diogo de Vasconcelos ;Jiega

que Valadares l'r~1 "cli:unanrc S( ' fll j:l(:l, e amigo clu Rei", ma.s n~lo 1onscgui confe rrr ul in fnrma<;:-lu /lisuiria nu:;dia de,Hinos Gcrars, p 19S

1' VASCONCEL()S. lftsfr5rir7 nl(;r/t(l (/( ;\-Iu1as (,·(TOts, p .20 l Arq\Jivo f\:tl·ion:ll

da Torre do Tnn1ho . .rHinisrr;rio dn Rei!lo. /)(·c·n·tns , rn ;!(n 22 , do c . £()

ZUQUETE. Nnhrezr1 de l'ortugol c rln /Jrasil. v. lll. ll.~S'J e t .<cq

lA A rc.spcito de rnatrimoniais de nuhrl'.'-i em Ponu gal, Vl'r mcu

'Fragmentos Ja vida Portugal setcccnri.s1:l", onc!e csruclo a.s maqui-

na('oes que antecedcrarn o casarnento de D. Jo;lo de Almeida Portugal, se­gundo marques de Aloma, corn D. l.eonor de T:ivora. Conferir GALVAO, Wain ice Noguei ra, GOTL!fl, N:\d"' Batel!a (Org. ). f'rezadn senb,w, prezada scnhora. Sao Paulo: Cmnpanhia clas l.etras, [s .cl.l. (No prclo.)

"ZUQUETE. Nohreza d e Portugal c do /Jrascl, v.ll1 et seq., onde a como Luisa Josefa da Torre do Tombo,

do Rein o, D e o·N;>.", nl:l\'O doc. 2(), unde, no pediclo de licen~: :-1 real~ 1nab fidedigno --- aparecc como l.11is:t F;lt!sLt

so ARQUJVO N;~cional cla Torre dn Tnmh(), :\finislt;rio do Neino, !Jecrctos, m ~t ( o -'19, cln c_ / 1

~~SILVE IRA PINTO, Alb :-1no da. Resenhr~ dasfnmihos tilulares e graudes de Lishn;l: Frnpr('Stl Editora d e Fr ~tnci.sn) i\ rltJI cL1 Silv~r. l8H.~. tnmo I

"MARTINS, _1 . P. Oliveira . 1-h s triria de l'ortllgfll 6 eel l.is ho:r l':rrceria Antonio Maria J> e re ir:t LivrJ. ria Eclnor:1, 1901_ tomn 11. p .2 21

197

Page 81: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

q BECKFlJHD, \X.t dli .!! ll. A cu rre c./a rcJzn h u I J. ,Huria/. Ll.Sbl >a : J.,, . r ~1 ria Editor(..!

Tava re s C:trdoso <.: l rm :•o. 1\!0 1 p . l 8

" Ibidem . p . l 6 - 17 .

" DIARIO d e William lleckforcl em Portu gal c Espanlu T rad . Joao Gasp a r Simt'ies . Li s b oa o Empres:< Na c iona l d e l' u blic idade , 19S7. r .244 . llntrodtH,:ao e nvtas cit: Uoyd Alexa n der.)

'" Pare• as rcb<;: Cies l' ntre [kc kfu rJ e o~ Mar i: li va , ver o DIAR IO de William Be ckford ern Po nu ga l e Es panha , passim

" Fnco nt rei d a ta s d ife re ntes r a ra o nasc imento de D . Hod rigv Manins Zuquete d iz :1 p . 'i24 que n asc·e u em 17'i0; na p agin a segui nte, d3 o utra data: 1742 Cf. ZUQU ET E. Nobreza de Pot1ugule d o Bra sil, v. lll . p. 459 e t seq. Ja a Enu c loped•a e O icion:ir iu lmernac io nal d ;, a d:H:. de 17'i2 e revela que foi o n o no filhu do ma rques de Mar ia iva. Con1o D . niugo j ose:! Vito de Me neses, o h e rdei ro. n:1 sceu e ll! 1739, 0 . Rod ri go s6 pvde ria te r nascid o ce re • de 10 a nos d epois - ra ziio pe la q u a l nao se pocle aceita r 1742 com o a data de seu nascin1e nto, q ue recai ern 1752. Enciclup2dia e D iciona n o l nte rn acional, LOV. Rio de jane iro e No va Yo rk : W. M. Jackson , inc., [s. d .]. vA. p.23 29 Este li vro j ~l es tav:.t co 1np o.s lo quando JUni a F u rt ado m e confinn u u a da{a d e 17'i2 co m o a do n asci me niO de D . Rodri go, que e b e ncontrou na Gazer:.t d e l.ishoa, n° 10 . (Arquiv o Na c ional cb T o r re Jo To mbo, Hea l Mesa Ce n­'o ri;~ , G :~ z~e t;~ d l' Lish o a , Cx 46'il

\~ AHQU IV() Na cio n: .. ll d :t T orre du T omho, Chanc;l!lu rias R(!gias, /) _ A-tariu 1, 1i ,·ro 67 . ;-; IL VE I HA PINTO . f.!. est! niJa clt ~ ~frJmilias trtulan.-.... t! )!,randes de 1-'u , -lllft(..J/ , !um o I p .-i_ij -4.:35

~·l AHQlJJ \'0 N :t (· itnl :d d:t T u rre dP T o tn hu , CIJ cn ttelon{.l::; Rc;gias, L> 1\Jaric~ 1 Ji, ·rt > HO, f. ')· i\' - 'SS

·~ V ASCONCELOS. 1/ist<iria IIH' rlia d e Mill <IS Genu s, p .22j .

co~ I..APA , M :tnue l Rodr igues . Jlref:.tcio a Vida e o hra de '"1 /uan?ngt~ Peixoto. Ri o de .J a n ei ro o lnSiiluto Nac iu n al d o li vro , 1960. p.XLV

"' SILYEIHA PI NTO . l<ese rrfJa dasfa m.-tias rirulares e g mrzdc•s de Portugal, 10111 0 I. p .tij3-'135. Pa ra o nasci m e nto de D. Ma n ue l e os de ta lh es sabre a nau "G igante ", ve r VARN HAGEN, Fran cisco Ad o lfo d e. Hist6ria geru/ do BrasU - an tes Lit: .su a se para \·:-to e independe nc ia de Po rtu gal. 3 .ed . integral S:i o Paul o: Cump:11li1 ia Melll o r:IIHt' n iOs d e S:i<) l'au lu, [1 9361. to mo V. p.36!

"'S ILVEIRA !'I NTO. Nesen/.w dasfamOias lilulares c g ruwles de Porwgal, tl) ll]() l. p . ·l:\ ~

"' LA I' A Prefacic> " Vida <'u lna de Alvu renga Peixoto , p .XL!.

6' ViDA e o br" Je Al vare ng a Peixu tu. Rio J e Jane iro : lns li turo Nac ional do

Li v ro, 1960. p .33-34.

66 ARQUIYO Nac io nal da To rre d o To rnbo, Minish!rio do Rei no, Decretamentos d e Servi\'O, ma r;o 186, doc. 36.

" Ibidem . d oc. 37 . YARNHAGEN. Hist6ria gera l d o Bmsi/, romo V. p.342.

""ARQ U!YO Nacional d a To rre Jo Tombo, Minisl<in'u do Rei110, Decretamentos tie Servi~CO, mar;o 186, doc. 36

I ') H

· .• ''

9 ZUQUETE . No/J ,.eza d e Porrugal e do Brasil, v. ll. p.525.

' "S ILVEIRA PINTO. Resenba das familias titu/ares e gnm des de Portugal, tomo I. p.433-435. Arquivo Nac io nal da To rre do T o m bo , Cbmzce/urias Reg ias, D. Maria I, livro 45; livro 43; Ministerio do Re inu, Decreros, rna , o I \!,

n .39

71 PRADO J R., Caio. Forma;:iio do Brasil .contemporiineo. l3 .ed. Sao Paulo: Brasil iense, 1969. p.333. TORRES, j oao Camilo de Oliveira . Hist6ria de Mi­nas Gerais. 2.ed . Belo 1-lorizonre: Difusao Pan-Ame ri ca i1a Jo Livro , [1966]. p.l53 el seq.

72 ARRUDA, Maria Ar~inda do Nascimento. A mitologia da mine iridade - o imaginario mineiro na vida p o lftica e cultural do Bras il. Sao Pa ulo: Uras ili e n ­se , 1996. p .192 -194 .

" Refi ro-me, ev ide ntemente, ao lraba lho de HOHSI3AWM , Eric J . c RANGER, Terence (Org.). A inven~CiiO da tradi~Ciio. Rio de J a neiro: Pa z e Te rra, 19fl4

199

Page 82: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

MAGIA t RtliGIO~IDADc ~O~UlAR eM MINA~ NO

~~CUlO XVIII

Nas Minas d o se c ul o XVIII, a re ligi os id a d e popu la r fo i muiro marc ada pelas formas assoc iativas , e xpre ss as na s irma nd ades , n as confrar ias, nas proc issoes ao sant u;h io do Senho r d o Matos inhos, na s fe s ta s b a rrocas do Triunfo Euca rfsti co c d o Au re o Trono Episcopal. Estas formas, rna is ev ide nces e v isive is, tern s ido estudadas c me recido d ive rsas a bordage ns , cab e ndo d es taca r os trabalh os pione iros de Fritz Te ixei ra de Sa ll es, j ose Fe rre ira Ca rrato c, ma is recenteme nte, as a n:'ilises de Afo nso Avi la e Ca io Cesa r Boschi. 1 Por baixo desta re ligi os id a d e m a is definida , en treta nto, pulsaram p rat.i c as e fo rmas p ouco o rtodo xas , e m que a mag ia se mis tu ­ra va ao cato lici smo , as tradi <;oes africanas se m escla ndo as portugu esa s e , muitas vezes, o ri g inando sfnteses nova s. Contra e las se voltaram os esfor<;os aculturadore s d o poder ec lesiast ico e d o inquis ito rial, qu e , atraves das d evassas e pis copa is e d as inquiri <;oes fe itas por familiares do Santo O ffcio, vasculharam os a rraiais e vilas aurffe ros a partir el i! decada de 20 d o seculo XVTTI. Nos assentos dessas devassas e n os processos cia ln q ui s i<;:a o aparcce m manifes ta<.;c'ies rn a rg in a is ao catol ic ismo, que se apropriavam cl o s sfmbolos , d ogmas e co nte uclos d a fe c;Jt6 lica pa ra ap rox irn:'i -los das n ecess idacles cotid ia nas e tornii -los ma is conformes aos anseios clos co lo nos- homcns n1cl es , mesti <; os e neg ros na rnai o ri a.

Procurare i exe mplifi ca r cste o utro laclo da re li giosiclad e m inc ira at raves clas p r:iticas e desventuras de cl o is col o nos q u e, e m 175.), foram a ting idos pe lo hr<1c;o compriclo do San to

Offc io : sao eles Salvador de Can,al ho Se iTa e scu inn:-1o i\ntonio .2

Perte nc ia m ao mundo do artlf1 ccs rnu laros , t;io pcc ul i:1r :1s Minas d o sec u lo XV I !!. 0 p:l i u:1 um po rtu g ues hr:ITlco qu e casara o u sc j11n ta r;1 com um:1 csc r;1v:1 ne gra , na tura l do Ri o de j a ne iro, e por elc li bc rta da e m no me do a fcto c da prol e co murn. Os avos rn are rnos dos do is irm aos e ram ca rivos d o Congo, e nao fi ca claro se vivera m na Afr ica o u v ie ram pa ra o Rrasil. Apesa r da e sc ravida o lhes se r tao pro xima , o sele iro Salvadore o sapa te iro Anto nio, tambem conheciclo como o "Requibimba ", parec iam se ide nt ific<J r ma is com o mundo dos b ran cos, reneganclo as ra fzes afri ca nas. A pr;:itiGl qu e os pe rdeu , joganclo-os nurn a clo lo rosa pe reg rin a<;:ao po r c:n cc res d 'aqucm e d' a lem m a r, foi o rouho de h6s tias para fi rts :-;acr ll cgos. Denunc ias va ria s a cusara m-nos de funar cia igre ja tre s parrf­culas consagradas, o u , numa n u tr<l ve rsao, d e gua rcl :n as h6stias qu e um terce iro artfftce, o pin to r esc nlvo Anton io Co rre ia, fiz e ra c heg <1 r as sua s mans .

Em fins do sec ul a XV!! c d urante o s&c ul o XVTII, e ra comurn q u e co lo nos bra ncos, neg ros e mes ti (,.'OS rou hasse m peda <;;os cia peclras d'ara, sob re " qu a l se ce le hr<1Y:l a missa , para usa rem- nos como amu lc tos , costur;~ cl os em he nrinhos o u e m bo lsas d e p atu;]_ M;1s , no que diz respe it o ao ro uho de hc'istias, es te caso min e im e o Cmico d e qu e se tern no rfc ia . Anto ni o ac hava qu e a h6s tia e r ~1 rel fqui a "melhor clo que o sa nto le nho", c ao lad o d e ou tros co mpanhe iros c hegou a a tirar com espingarcla em ba lsas corn e la confecc ionacla s, "e nenhuma fi cou ro ta". A h6st ia aj ucla va p a is a fecha r o corpo, a livra r de fe rimentos; cl e fc ndi a os infra tores: sa patei ro po ­bre, Antoni o hu scava re nclimen to supl e mentar na ga rimpa­gern de cli a mantes, en tao pe rsegu icl fss im a pela lcg is la<;;ao portugu esa, pois '' e x pl o r;~ .;;ao dcssas ge mas e ra mo nop6 1i o re al. Fo i ju sta me nte num :1 in cu rsao furti va, n: ts cerC';1ni as d o arra ia l de Co ncei<;;iio d o Sc··rrn . o ncl c nHna,· :l. fl Ue tl·s to t1 ns p()d t' rC s ma g icos d o amu Jd o

Jii n;l Euro pa, o usn ell- l11is ti :t.<-. para fin s mjg icCJs L'1":1 com11111 cles<i c os tins eLl !dade Mccl i:1. l{otJh:1va m-sc hcis ti as do s:tn:\ ri o pa ra qu e, enterradas, con fe ri sscm fc rtilid <~ d e :10 so lo , assegu ­ran do ma ior rendime nto nas co lhc itas ; mesmo em plena e poca de neforma re ligiosa , ns l"i <~ i s a inda se acotovc lavam nas ig re jas e suhiam aos bancos na hora tl:1 con s<~ gra <.;iio, a fim de me lhor

201

I l

Page 83: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

I "

olharem ;! particula v captarem .'ivus c!h'rvius, que acreditavam magicos . Ap(Js Tn~ nto , que real ir·r11ou ;1 importancia dos sacr:lnWtllll.'i, getiL'r:dizar;Jm .. se 11:1 Lurup:1 Glt6licl as clenuncus cotllra pr:tticas sacrilcg:1s envolvendo h l'is ti:1s: na verdacle , eL1s revelavam o !ado rnais profundo da religiosidadc popular. que rnisturava tracli<;:<'ies rn:\gicas e pagas :1s cristas: eram indicio da religiao lolclorizada . Salvador e Antonio foram presos e conclenados por atentaretu, portantu, contra o San­tissimo Sacramento cia Euc:l!IStia , e apesar do s:mgue negro :1giram de forma :ln{doga aos campuneses f1amengos, franceses

ou tUltanos.

Em seu depoimento, entretanto, Antonio confessou ter renegado as hc>stias roubadas , dizendo, ao ve-las, que amuletos com elas confeccionaclos eram "coisas de negros" Num munclo dirigido por brancos, os mesti~'OS pobres relutavarn em aceitar seu bc!o africano, que os desclassific:lv;J. Num momento de perigo, ante u interrogatlSriu rigurosu e secu du inquisidcn, desqualific·~lr c> uso de :nnulctus Feitus com h6stias como sendo h:d>ito de escr:1vos signific:1v~l clistmguir-se ante: a massa dus c1tivos "imperfeitamentc" cristi;tnizaclos. 0 que Antonio n:io plldi~l sahL·r C· que sua :ldc's:'l<l :t o mundo dos br~lllc o s, clos c:uropc·u.'i , c> r~1 mais lut1cb e itlc:<>!J.'icwntc, (1 que~~ pr:nica qtw :Jlna~· av:l rinlu raizes acentu:td~lllleillc eurupei:ts. Antes cle se tornarem "coisas de negros " na co i Cmi;~, :1s h c)sti~ts desempc­nluram irnportante funr;ao na religiosidade popular dos paises cia Europa; o fato de serem adotadas como amuletos nas Minas sc clevia :1 iclcnticladc entre os conteC1dos cia rcligiao viv1cla por mesti<;os e escr:1vos, ens cia partilh:1cla pelas populac;-oes eurupt'ias 11:1 epoca dos descubrime ntus, ambas compusus po1· um :lm:·ilg~tma de eleme ntos m:tgi cus e crtst;ios

S:dv~1dor L' Antun1u n :iu desc· !~tv:ttll , 11:1 verdacle, se afasta1 d:t fc C:ltc)lrcl, c· muit'J mc·rms nc:·g:t-!:1. Sabendo-se persegLilllu pot <>rdcm do p;ircJCo ck su:1 vil~1 - moi':IV:t prc'Jximo :1 Vil~1 du l'rinupe e, como o irmau, 11:1 Comarca do Serro do Frio, ondc se achav:1 incrustado o Distrito Diamantino -, Salvador nao hl'sitou em deix~1r o esconderijo onde se ahrigava para ir a missa, sendu "dia de pwceitu". AmlJus e1~Jtll batizados, crismados

e sabiam de cor us Dez Mand:trnentos e as ora\·oes- Ave Maria, Pai Nosso, Credo. Cotno tantos du.'i que se rnoviam no munclo dos oficios mec:micos e d<J pequeno c:omercio, e que

202

I i i

_ _j

vau citados nas clenCmcias e confissoes - o pintor Antonio, j3 refericlo, o ferraclor Marcelino Batista, seu primo Paulo, o Jornaleiro Flurencio, o mercaclor Luis Pereira, o taverneiro _)o:1o de Almeida, "que tinha sido estuc!antc" -, Salvador e Antonio dissolviam, no coticliano, as frunleira.s entre magia e religiao. Ap6s tres anos perambulando pelas cacleias d e Minas e do Rio, os dois irmaos continuaram o cativeiro em Lis boa. Salvador teve mais sorte: ern 1761, saiu pcnitenciado num Auto-de-Fe, vendo-se condenado ainda a pagar as custas clo processo com os pequenos renclimentos de seleiro; h:t noticia de sua chegacla no couto de Castro Marim, no Algarve, onde cumpriu pena de degredo; ap()s tantos inciclentes, talvez ainda !he tenha restado energia para voltar its Minas. ja Antonio, o "Requibimba", nao resistiu as mudan~·as bruscas que alteraram o curso de sua vida: enlouqueceu nos carceres do Santo Oficio, onde permanecia sempre nu, recusando alimentos ou os comenclo toclos crus, "ate o bacalhau", gri­tanclo muito e descompondo quem dele se aproximava, cantanclo ate tarde da noite e pensanclo cunver.sar com a mulher e corn os clois filhos que haviam ficaclo no arraial de Tapanhuacanga. faleceu em junho de 1762, c sua identifiGJ<; ~io

dizia: "A.C.S., homem douclo, que sc ignor:1 scu cstaclo , pais, pc'irria e ocupa<;ao."

Durante quase clez anos, Salvador e Antonio de Carvalho Serra ha vi am penado por nao compreenderem claramente o significado dos sacrarnentos e cia religiao, na forma como os definiam os doutores da lgreja e rezavam os inquisidores. Ambos sabiam ler e escrever, mas de uada Illes acliantaria tcr ac:esso aos tcxtos dogmiticos, pois sua religiosidacle se pautava pen outra medida; ela era partilhacla por rnuitos , mas nao cabia nos molcles clas irmandacles, frcqi.ientemente talhados segundo interesses de Estado, conformc mostrou Caio Boschi. Era aut6noma, definida pelas nece.s.sidades con­cretas, vincada pelas tensocs sociais - uma carta an6ninta clenunciara os clois irmaos ao paroco cia Vila do Principe, desencadeanclo tocla a investigar;ao - que exigiam valcntia no manejo clos facoes e sorte ante os tiru.s de espingarcla, clesfericlos pelos soldados do rei sobre us garimpeiros. Era f1exivel, receptiva a acrescimos e arranjos: "eu ja nao fa~:o

caso de orac;:c"ies", dissera Antonio ao atravessar um rio, "c lancei tuclo fora clepois que tenho uma coisa superior a

203

Page 84: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

rodos" Rcferia-se a bolsa de h6stia, que o acabou atraic;:oanclo e permitinclo que cafsse nas malhas cerradas da Inquisic;:ao portuguesa.

A hist6ria trisre dos clois artifices mineiros e, assim, um cxemplo excelente do modo pelo qual os aparelhos de podcr -- no caso, o Santo Oficio - podiam desenraizar praticas do univcrso coticliano e, sem medir-lhes o peso ou alcance, ian<;::i-las no universo pantanoso da infrac;:ao. Nele, e apenas nele, e que magia e catolicismo apareciam clistintos e incle­pcndentes um do ourro, sabe Deus a que duras penas

NOT AS

' SJ\Ll.F'S, Fritz l"eixeira de. Associac;;6es religiosas no ciclo do ouro. Belo Horizonte: UMG/Ccnrro de F'studos Mineiros, 1963. CARRA TO, jose Ferreira

Sao Paulo: Companhia Eclitora lgreja, iluminismn e f?scolas

minciras coloniois. S;lo Companhia Editora Nacional, 1968. AVILA,

Afonso . Re:·>fduos .r.;c;scentistas ern Minas textos do S<~cu lo do ouro e <ls

do mundn barron) 13elo Horizonte: UFMG/Centro de E'ruclos 1967. 2 V. A VI LA, Afonso. 0 hidico e as projer;6es do m11ndo barroco.

5Jo Paulo: Pcrspcctiv:.:l, 19 71

' V c r, ARQUfV() Nacional cia Torre do Tombo, Inqui,i yao de Lisboa,

tivarnente Processo n. 40R4 e Processo n. 1078. Devo " indicao;:ao CI!timo, o do "Req ui b irnba"," meu colega e amigo Luis Mott, que gentilmente rne cedeu algumas cle suas anota<;:6es.

20·1

" \

PARTE Ill -

L E T U R A S

Page 85: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

toclos". Re feria-se a bolsa de h6stia, que o acabou atrai.,:oanclo c p c rmitindo que cafsse nas malhas cerraclas cia Inquisi.,:ao portugu e sa

A hist6ria triste dos dois artifices mineiros e, assim, um e xemplo e xce lente do modo pelo qual os aparelhos de poder - no caso, o Santo Offcio- podiam desenraizar praticas do universo cotidiano e, sem medir-lhes o peso ou alcance, lan.,:a-Jas no universo pantanoso cia infra<;:ao. Nele, e apenas nele, e que magia e catolicismo apareciam distintos e inde­pendentes um do outro, sabe Deus a que duras penas.

NOT AS

' SALLES, Fritz Teixeira de. Associafoes religiosas no ciclo do ouro. Belo Horizonte: UMG/Centro de Estudos Mineiros, 1963. CARRA TO, Jose Ferreira. As Minas Gerais e os prim6rdios do Carafa. Sao Paulo: Companhia Editora Nacional, 1963. CARRA TO, Jose Ferreira. Igreja, iluminismo e escolas mineiras coloniais. Sao Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968. AVILA, Afonso. Residuos seiscentistas em Minas textos do seculo do ouro e as proje<;6es do mundo barroco. Belo Horizonte: UFMG/Centro de Estudos Mineiros, 1967. 2 V. A VILA, Afonso. 0 ludico e as projer,:oes do mundo barroco. Sao Paulo: Perspectiva, 1971

2 Ver, ARQUIVO Nacional cia Torre do Tombo, Inquisi.;ao de Lisboa, respec­tivamente Processo n. 468'i e Processo n. 1078. Devo a indica<;ao clesre CJ!timo, o do ''f;~quibimba", a meu colega e amigo Luis Mott, que gentilmente me cedeu algumas de suas anotar,:oes.

204

PARTE Ill -

L E T U R A S

Page 86: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

0~ tX-VOTO~ MINti~O~

Enraizados no paganismo, os ex-votos viram-se assimilados pelos cristaos ja no seculo IV, expressando, atraves dos seculos, a fe do povo nos milagres. Na fonna pouco atraente de membros de cera desbotada, figuram ainda hoje nos grandes sanruarios cat61icos, penclendo do teto como estalactites macabras. Entretanto, a partir do seculo XVII, foram as t~'ibuas votivas que ganharam popularidade na Europa meridional e central: pequenas pinturas de tempera sobre madeira, a exprimir, de forma ingenua e muitas vezes tosca, a presen<;:a do sagrado e do milagre na vida cotidiana; a viabilizar, pclo mcnos naquele pcqueno retangulo colorido, o encontro entre a personagem sagrada e o benefici<1rio cia gra<;:a - cada LHll devidamente c ircunscrito ao cspa<;:o que !he era pr6pno.

Mais do que em qualquer Olltra pane do nr·asil, foi em Minas que esta tracli<;:ao vicejou. Antes clos muclernistas "des­cobrirem" o barroco minciro, Olavo Bilac e Artur Azevedo admiraram os ex-votos locais , o primeiro consiclerando-os "quaclros ador:nreis de ingenuiclaclc ", o segundo clescrevendo-os com minucia, e ambos, iri'Jnicos e irrevercntcs, arestando que, no inicio do seculo- como bern ohserva Mar-cia de Moura Castro- "a mcnt:diclade e a rc ligiosidacle J{L haviarn muclado" (p.J4).

Os estudos de sociologia rcligios:t t~, 11uis reccntcmcnte, de hist6ria das mentalidacles der:rm :rus ex -vutos o estatuto de clocumento respeitavcl, reconhcn:nclo-lhcs o relevo de testemunho no ambito cbs socicdaclcs traclicionais. Fur con­ta rem estas com urn gr:nr cnnsidcr:lvcl d e analfahetismo, n:lo

podem ser estudadas apcrLls por mcro de fontes escri tas d;ri a imponancia das cenas wprc~sc·ntacLis nos quaclrinhos de madeira para a cornpreens:io do cutitli:1no c clas scnsibilidacles de outrora.

Page 87: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

A iniciativa de Marcia de Moura Castro em publicar parte do levantamento que fez ao longo da vida e digna de todo 0

louvor. No pequeno estudo inicial, escrito de forma despre­tensiosa mas cercado de rigor e, mais do que tudo, espelhando urn conhecimento profundo sobre o assunto, a autora tra<;a o rapido hist6rico das tabuinhas e esbo<;a reflexoes senslveis sobre seu significado . Aponta, por exemplo, que elas eram provavelmente entregues a profissionais, do que resulta certa uniformidade e padroniza<;ao no tratamento das cenas: "a maneira como o cortinado esta amarrado, as nuvens que envolvem o santo ou a cruz em que esta pregado o Cristo" (p.20). Ressalta ainda a consonancia entre os estilos mais em voga nas manifesta<;oes artisticas mineiras e as modestas tabuas votivas, fornecendo assim elementos basicos para se pensar questoes te6ricas atualissimas, como a da circularidade entre nlveis de cultura (conforme desenvolvida por Carlo Ginzburg em varias obras, com destaque para 0 Queijo e os Vermes e Mitos - Emblemas - Sinais), ou da apropria~:ao das praticas culturais (como a concebe Roger Chartier, sobretudo em A Hist6ria Cultural entre Prdticas e Represental{:oes). Veja -se o caso das rocalhas: ao !ado dos arabescos, elas foram tao caras a Aleijadinho e a outros artistas atuantes nas Minas durante 0 ultimo quartel do seculo XVIII que , hoje, OS

estudiosos do perlodo,preferem qualificar esta fase de Rococo, opondo-a ao perfodo anterior, mais propriamente Barroco. Rocalhas e arabescos acham-se presentes tambem nos ex­votos: de forma explfcita nos medalhoes que encimam a cabeceira do doente; de forma estilizacla no arranjo das nuvens que emolduram os santos protetores.

Quase todas as tabuas votivas possuem textos que relatam o infortunio e a gra<;a que o sanou. No final do livro, ha urn apendice com transcri<;oes destes escritos, feitas por Djalma Andrade e referentes aos quaclros do santuario de Congo­nhas do Campo. Po rem, o melhor de Ex- Voros Mineiros sao mesmo as reprodu<;oes dos quadrinhos. L1 estao filhos, pais ou maes arrancaclos das garras cia morte p e la intercessao do santo; cavaleiros feridos por terem cafdo sob o peso da montaria; t.rabalhaclores a quem uma quecla de escada escalavrara a perna; homens abatidos a borcloadas por bandidos; urn burro doente salvo gra<;as a Nossa Senhora da Oliveira; escravos

208

que se altercaram por entre a trempe da cozinha, assisticlos por um cachorro clomesrico - fragmentos preciosos de um mundo ao qual as outras fontes nem sempre dao acesso, e que permitem ao historiador clesvendar melhor certos temas caros as socieclades tradicionais: a familia e suas estruturas, a hierarquia dos papeis no interior deJa, os c6digos dos valores que a regulam, o sentido da efemeridade da vida e a iminencia da cat:istrofe.

Documento de hist6ria demografica, social e cultural, o ex-voto desperta no expectador rea<;oes afetivas. Nas pala­vras de um grande especialista, "cada ex-voto nos coloca em contato com uma aventura individual que foi vivida como maravilhosa. E e isto que nos comove, quando descobrimos ou decodificamos estes ex-votos: reencontrar a normalidade a mais humilde mas, ao mesmo tempo, mais profunda: a hist6ria dos medos, das alegrias, das esperanps" .1 Na sua brevfssima aprese nta<;ao, Lucia Machado de Almeida captou muito bem este scntimento de familiaridade: diante do ex-voto esmaecido , diz ela, sentimos o impulso de perguntar­lhe, "como a um amigo fntimo": "Como foi isso7 Voce est;\ melhor7"

( Os e:':1.:-uolo:• min eirus. resenhupublicad(l na Folha de S.P:nJ!o,

em 13 d e nouembrode 1994, de: CASTRO, Mcircia de Moura Ex-votos nlineiros - as t8.buas votivas no Cicio do ouro. Rio de

janeiro: Expresstlo e Cultura. 1994. 63 p . .30 ilustmr,:aes co!ondas lntrodur,iio de Lucia Machado de Almeida.)

NOTA

1 VOVELLE, Michel. G li ex vot o del tc rritoriu n1 arsigliese. In: frnmagini c>

immaginario nella sro ha - fant asmi e cc n c zze nclle mentaliU1 dal rn cdioevo

al Novece nto. Roma : Eclitori Riunili. 1989

209

Page 88: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

~I~HMA~ Df ~ODcR

No decorrer da decada de 1720, descobriram-se diamantes na regiao cia serra do Espinha<;o, no centro das Minas Gerais. A importancia econ6mica das pedras seria responsavel por um controle mais efetivo da Coroa sohre toda a area: o governu rortugues cercou-a, chamando-a de Demarca<;ao Oiamantina, e dctcrminou, inicialmente, que sua explorat;ao

se fizesse na forma de contratos arrendados por particulares. Foi o te mpo dos contratadores, o mais celebre deles, Joao Fernande s de Oliveira, notabilizando-se tanto pela imensa fortuna :llnealh:tda quanto por ter sucumbido aos encantos de tllna cscrava negra. Chica cia Silva. Em 1771 mudou 0

sistern:1 de cxplora(:Jo dos diamantes, criando-se a Real Extr·:tt.·:io. fnaugur:tva-se a era dos intenclentes: nomeaclos pela

rnetr<.lptl ic. aut6nomos ante o governo das Minas, deviam

olwc!ece r c comanclar a Demarca<;ao segundo urn regimento prr'1prio, que o povo chamou de Livro cia Capa Verde por ser desta co r o cxemrl:~r, em marroquim, que existia na sede cia lntemlt'ncia, no Tijuco.

Tijuco , o mais desracaclo centro urbano daquela zona, entrou pelo seculo XIX como arraial, apesar do seu bom

nC1mero de homens cultos, das bibliotecas de qualidade que possuia e do linclo casario, ainda hoJe urn dos mais bclos accrvos da arquitL.·tura civil setecentista em nossa terra. S6

em lil.">J, j:i no ltnp(0 rio, conseguiria o estatuto de vila, chamandu-se Diamantina e conservando o nome quando, sere anos clepois. lornou-sc cidadc.

A tr:ldi\::lu loc1l tixou os te mpos da Dem:Hca<;ao Diamantina como um ;t era de arl(oritarismo e iniqLiidade. Sobretudo os intcndentcs fur;!rll semrHe invocados COll10 clespotas a oricnLJ!. pnndt> L, dispondo de tuclo e de todos, aJheiOS as

leis e ao governo da capitania, do qual, alias, seriam, conforme o Regimento, independentes. Boa parte das mem6rias, como a de Joaquim Fellcio dos Santos, ou mesmo da melhor histo­

riografia, como e o caso de Caio Prado Jr., reproduziram a

irnagern de diamantes a engolirem os homens, impedindo

qualquer outro tipo de produt;ao e impondo um estado de miseria e anomia social.'

0 Livro da Capa Verde, original mente disserta<;ao de mes­

trado, procura acertar contas com essas construc;oes. Baseado em abundante documenta<;ao, a maior parte manuscrita, o trabalho avan<;a muito no conhecimento do Distrito Diarnan­tino e, sem duvida, relativiza boa parte das generalizat;6es

abrat;adas pela historiografia. Tal crftica, alias, perpassa os quatro capftulos: "A Sociedade Diamantina", onde se indica

diversifica<;ao economica maior do que a tradicionalmente considerada; "0 Livro da Capa Verde", que se debrut;a sobre o regimento e o contexto no qual veio a luz, quando ainda vigoravam as reforrnas de Pombal e a tentativa de abrir o

aparelho administrativo as elites locais; "A Real Extrat;ao", capitulo esclarecedor quanto ao volume de empregos forne­cidos por tal instancia aclministrativa; "As Rcla<;:oes de

Poder", on de e esmiut;ada a atua<;ao de alguns dos gover­nadores de Minas dentro do Distrito.

··Junia Furtado e convincente em boa. parte dos reparos

feitos aos estudiosos de Minas, e consegue mostrar que o

regimento de 1771 nao foi capaz de estrangular a vida cotidiana

nem de isolar o Distrito do resto cia capitania, ilustrando a distancia que vai entre a letra escrita e a pratica social. Os

governadores continuaram se intrometendo na politica da

Demarcat;ao e jogando as cristas com as autoridades locais. Estas, por sua vez, mostraram-se muitas vezes corruptas e

lenientes, fazendo vistas grossas para o extravio de diamantes

e para as alian<;as espurias com a minera<;ao cia nclestina. A

justi<;a manteve-se restritiva e excludente, penalizando escravos e desclassificados sociais.

A parte do trabalho referente as rela<;oes entre os potema ­

dos locais e a maquina burocratica metropolitana e ralvcz a mais bem sucedicla. Seguindo as pegadas de Maxwell,' a aurora

211

Page 89: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

nos mostra que tais poderosos usaram-na em beneffcio proprio, e em sentido contr<irio ao desejado pelo ministerio pombalino, entao cioso de coopta.;;:oes regionais. Consegui­ram distender as amarras do regimento e manobrar os instrumentos coercitivos que a metropole lhes punha nas maos para, com eles, alvejar os mais pobres, perpetuando iniqi.iidades. Valeram-se da boa posi.;;:ao junto ao poder para fazerem do contrabando urn negocio solido e disseminado pela capitania. Aqui, e ainda Maxwell quem a inspira, apesar de ir alem ao examinar mais detidamente os mecanismos de tal estrategia, central no papel desempenhado pelo Distrito Diamantino no processo da Inconfidencia. Doi muito, mas tudo indica que Claudio Manuel da Costa, alem de Gonzaga e, sem sombra de duvida, o Padre Rolim, estiveram envolvidos no comercio ilegal de diamantes - atividade que, uma vez sufocada pelos novos governadores a partir de 1784, contou bastante na sua adesao as ideias libertarias.

A argumenta.;;:ao quanto aos arranjos cotidianos dos menos favorecidos e mais fragiL Esta indicado que eram variadas as suas atividades, fugindo da monocordia mineratoria, mas faltam evidencias documentais e ha uma falha bibliografica consideravel: nao se usa nem se cita o trabalho de Luciano Figueiredo, 0 Avesso da Memoria, fundamental para o estudo do comercio ambulante em geral ·e feminino em particular. 3

Os quadros estatisticos, da maneir~ como estao, nao acres­centam muito ao entendimento da situa.;;:ao social do Distrito, mesmo porque os dados, bastante esparsos, nao se prestam a urn tratamento qualitativo.

Ressalvas a parte, o balan.;;:o final e altamente positivo e o livro veio para ficar. A editora Annablume merece todo o louvor por editar trabalhos que, apesar do otimo nivel, tern autores pouco conhecidos. Seus livrinhos sao simples e bonitos, mas cabe caprichar mais na revisao. Ha urn sem numero de erros de pronome, erase, nomes da mesma pessoa que aparecem de forma diferente, datas truncadas. Urn unico exemplo: a introdu.;;:ao de Maria Odila Leite da Silva Dias alude o tempo todo ao "famoso regimento de 1772" ou ao fato de o livro estudar "o perioclo que vai de 1772 a 1808" quando, ja presente no titulo, a data inicial e 1771, a mesma, alias, da edi.;;:ao do regimento, o famoso Livro da Capa Verde.

212

(Sistemas de poder, resenha puhlicada no Jornal de Resenhas,

rz.22, em 10 de janeiro de 1997, a pdp,ina 4. de FURTADO, Jrinia Ferreira. 0 livro da capa verde - o regimcnto diamantino de

1771 e a vida no distrito diamantino no periodo cia real extra"ao. Sao Paulo: Annab/ume, 1996. 234 p.)

NOT AS

1 SANTOS, joaquim Felfcio dos. Mem6nas do distrito diamantino (1868). 3.ed. Rio de Janeiro: Edi~C6es 0 Cruzeiro, 1956: PRADO JR.,Caio. Forma,:ao do Brasil contemporiineo 0942). 13.ed. Sao Paulo: Brasiliense, 1973.

2 A DEVASSA da devassa -a Inconfidencia Mineira: Brasil e Portugal -1750- 1808. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1977

'0 AVESSO da memoria- cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no seculo XVIII. Rio de Janeiro: jose Olympio I Brasilia: EDUNB, 1993

213

Page 90: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

Urn dos grandes meritos do livro Vassalos Rebeldes- Violencia Coletiua nas Minas na Primeira Metade do Seculo XVIII de Carla Maria Junho Anastasia, que apesar de pequenino ~eio para ficar, c propor alternativas de analise sobre 0 protesto social na America Portuguesa. Tarefa corajosa e pioneira, sobretuclo porquc nao se debru~a sobrc revoltas espetacula­res, classicas, que foram capazes de magnetizar gera~oes sucessivas de historiadores. 0 recorte e Minas Gerais na primeira metade do seculo XVIII, mas, fugindo novamente ao 6bvio. evita a rcvolta dos Emboabas , ocorrida entre 1707 e 1709. Da lnconfidencia de 1789, marco- malgre elle-meme - de nossa nactonalidade , n:lo ha, salvo engano, men~ao sequer . A raz;lo cb escollu e evic!cnte. Como Evaldo Cabral de Mello em "A Froncb dos Mazornbos··- referencia biblio­gr;Jfica inexplic!v c lrn e nte ausente neste estudo - Carla Anastasia procura pcnsar a revolta do rnundo colonial fora dos cleterminisrnos de varios matizes que, com frequencia, rnarcaram o enfoqtw. As rcvoltas foram parte da vida cotidiana, pontuaram espasmodicamente um munclo caracterizaclo pe Ia violencia pernunente , c nem sempre tiverarn objetivos politicos niric!os. Para usar o jargao classico- distante tambem desre tr:lh;!lho- as revo ltas estiveram quase sempre Ionge d e desemhoc:u em revoluc;-oes. Nao se propunham a subverter ;t orclem nem virar o mundo de ponta-cabe~a. A exemplo cia interpreu~;-:lo dt-' E.l'Thomp~ cm p:lra a Inglaterra nas vespe­ras da Revolu~-:lo Industrial. AnasLL~ia sugere que essas rcvoltas mineir;Ls - - rnotins, como prefere charnar, marcanclo seu aLlsUmento ;trlle :ts tcscs "rcvo lu ciun::irias" - assenta­v:lln-sc nao r:1ru r1uma cconomi:t moral, visanclo antes resL1ur:1r a ordcrn :tnterior -- ;tt e Tiraclentes falava em "resL1ur:H a lCIT:I'·rrr - do <-Jll<_' ncg;i-la

Compreender os objetivos dos agentes, colocando-os em seu proprio tempo e, assim, o primeiro- e sem cluvida merit6rio - objetivo cia aurora. Para tanto, realiza uma clescri~ao cletalhada de motins desconheciclos do grande publico (quem ja ouviu falar da sediyao de _ Catas Altas, do motim da Barra do rio das Velnas, do d_e_ CamJ2.ill].b_a__do _ _rio Verde?), crianclo uma narrativ~ miiftas~v~ envolvente e

--empolgante. Apesar disso, nem sempre os esquemas analfti­cos e a fundamentayao empfrica se coadunam com a harmonia. A introcluyao e o fecho do livro sao sobretudo te6ricos, mostrando o talento reflexivo da aurora e sua desenvoltura no manejo de bibliografia mais sociol6gica. No tocante a problematica das revoltas pre-industriais, discussoes como as de Charles Tilly !he sao mais caras do que as que sao mais propriamente hist6ricas, como as de Roland Mousnier, Boris Porschnev, Ana Lublinskaya, Yves-Marie Berce ou Perez Zagorin.' _Ia o miolo do livro e acentuadamente empfrico e, apesar da qualiclade intrfnseca das partes, fica as vezes a imprcssao de que faltam rela~oes mais consrantes entre teoriza~ao e empiria.

Dividido em tres partes, o livro atem-se primeiro aos motins que, sem contestar a ordem colonial, tem carater acen­tuadamente fiscal e se batem quase sempre pela restauray:lo de uma ordem alterada por novos ou cliversos lanyamentos de tributos. Alguns desses levantes nao sao meramente fiscais. Com lucidez, Carla Anastasia deixa claro que o anti-fiscalismo nunca e urn fim em si, pois traz sempre a tensao social, mas e tambem expressao de lutas pelo controle dos aparelhos cle poder, por eta denominados contextos de soberania fragmentacla. Casos hfbridos, portanto.

A seguncla parte e a mais interessante e inovaclora, versando sobre casos em que a soberania fragmentacla sc apresenta na sua forma mais pura. E oncle tra~a raridos retratos de lendarios potentaclos sertanejos, como Dona Maria da Cruz e sua familia, ou Manuel Nunes Viar;a- e --a c-ori:lola que o cercava. Capta muito bern--a ambi-gi.iiclade d csscs personagens e das atitudes oficiais diante deles: ora eram aliados da Coroa; ora matavam ou mandavam matar genre do rei, enfurnando-se na impunidade das brenhas; ora recebiam cloa~ocs e honrarias; ora eram presos ou, uma vcz foragidos,

215

Page 91: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

queimados em efigie. Q_I:~l;Jto S()br(': os _f11otins de Pitangu!, que se. estenderam de 1717 a 1720 e tiraram o so no do governador conde de Assumar, e particularmente feliz. La esta urn caso paradigmatico, o de Domingos Rodrigues do Prado, regula terrfvel que levantava a vila a seu bel-prazer, assassi­nava funcionarios da Justi\=a real e, tendo as casas queima­das, arrasadas e salgadas como acontecia nos casos de in­confidencia e trai\=aO, foi capaz de associar-se a Bartolomeu Bueno da Silva o Mo\=O, seu sogro, e a Joao Leite da Silva Ortiz, seu cunhado; de obter licen\=a real, sabe-se Ia como, pois era reu condenado a morte; de entrar para os matos de Goias onde, em 1722, descobriu as fantasticas minas que tan­ta alegria trariam a Coroa portuguesa.

A terceira parte, sobre "As amea\=as do rei negro", evita entrar na questao dos quilombos e elenca as referencias, muito abundantes, a motins escravos. Talvez seja esta a parte mais nebulosa do trabalbo. Se e possfvel cogitar dos moti­vos que levaram Carla Anastasia a nao abordar a questao dos quilombos, em si mesma muito complexa e demarcada, sente-se a falta de uma problematiza\=aO sobre as razoes do recorte. Afinal, a prolifera<;ao de quilombos em meados do seculo XVIII foi uma das caracteristicas marcantes da bist6-ria mineira, mostrando quao inextricavelmente escravista era aquela sociedade. Mais: motins de escravos ei':? sociedade escravista impoem questoes te6ricas especificas, que aqui nao foram contempladas.

Procurando entender as razoes peculiares dos agentes hist6ricos, Carla Anastasia e reticente com rela\=aO a teoria do sistema colonial e diverge de Fernando A. Novais. Acba que nao existia consciencia da condif!o colonial na epoo que estuda- noque ~a-conc0rd;r com ela, assim como, estou certa, Fernando A. Novais - e que nao cabe estudar motins especfficos com o tino nas razoes da Metr6pole, nem sempre previamente calculadas. Duvida que existisse urn projeto clara e coerente de explora<;ao colonial, o jogo de cintura ante os desvarios perpetrados pelos "prfncipes das Minas" sendo urn exemplo flagrante clessa polftica metropolitana mais contemporizadora do que rigorosa ou intranslgeme. Alinha-se com os que acham que a analise da l6gica interna do fun­cionamento da colonia exclui a aten\=ao aos mecanismos

2]()

1

externos, dependente em excesso de conclicionantcs pr6prias a hist6ria europeia.

Vinte e cinco anos depois de defendido como tese de doutorado na Universidade de Sao Paulo, Fortugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonicll, de Fernando A Novais, continua sendo parametro para qualquer discussao sohre o universo coloniaL Isto, por si s6, atesta a sua estatura de classico, ao !ado de outros 4 ou 5 livros da historiografia brasileira. Como qualquer classico, permanentemente discu­tido, ha os que afinam com ele, ha os que discordam. Carla Anastasia diverge com elegancia e sobriedade.

Nao creio, sinceramente, que os pressupostos funclamentais de Vassalos Rebeldes invalidem a tese de Novais. Ao tentarem trilhar caminho proprio, clistinto do da Metr6pole, os vassalos acabariam divergindo da sua politica. Como cxplorar pressu­punha ter a colonia minimamente organizada . a Coroa nao podia prescindir da ajuda dos poderosos locais. Sc batesse muito - como eu ja disse em urn escrito antigo ~ a corda arrebentava e se perdiam as caixas de a<;Licar, os rolos de fumo, o pagamenro clos direiros de cntradas, os quintus, as bateias ou o que fossc. Por isso us administLtdorcs coloniais e os funcionarios da Justi<;a - quando buns, s,>h a 16gic:t da explora\:ao colonial- batiam e sopravam. C:t\~tvarn fvlanucl Nunes Viana pelos rastos do Sao Francisco e depois agrade­ciam oficialrnente os servi\·os prestaclos il Coroa.

Isto posto, cabe ressalur que Carla Anastasia ;quda a trazer a tona urn problema serio da historiografia br;tsil e ira. Ternos pensado_mal a questao da revolta social noier11po da .c0I6nia c

70s marxistas, porque se co!1strangem ante as limtta<;oes '- ' te6ricas iner'entes ao objeto·, temporalmente localizad()

antes do capitalisrno mac!uro e da eclosao da !uta de classes. , os ·mais conseryg_dcl-H?$.~ porque se enervam coni as explo­soes cre-Vrol~ia que lhes parecem gratuitas Quase todos, porque teimam em escarafunchar o surgimenro do nativismo. Beckman, Amador Bueno. Filipe dos Sarll<>S, os Emhoah~ts c seus conternporiineos a Nordeste , os M~tS<..' atcs de fkcik ou os senhores de e ngenh o de Olinda, _nenhum d e les pcnsou numa P3tria comum Sao fritgeis as cvic!~;:;(-i;IScfr:~oc-n1iimfi>s" em 1789 e ·b3l"anose!Tr1"7')0 ten ham pe ns~tdo un algo scme­lhante. Por que, CtrJ:, An:t:;t;tsia constr<'ii

21 7

Page 92: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

com rigor sua posi<;:ao oeste debate. E, concordando ou nao, teremos, daqui para diante, de nos reportar a ela.

NOTA

( fnsurreir;Oes nzineiras. resenbL~ publicada no jornal de Rese­

nhas, n4J, em 8deagostode l'J98, apagirw3, de. ANASTASIA, Carla Mariajunho. Yassa los rebel des- violencia coletiva nas

Minas na prime ira meta de do secu lo XVI II . Bela Hon·zante

Editora CIArte, 1998. 152p)

1

Charles Tilly, soci6logo e historiador norte-arnericano, e autor de vasta obra sobre protesto popubr, como European revoluti011S, 1492-1992, ou La uemlee(trad. francesa, 1970). Os demais historiadores cirados sao alguns dos principais esrudiusos cuntemporaneos das revolras populares do Antigo Regi­

m e: Roland Mousnier, Fureurspaysannes-les paysans dans les revoltes du XVJJ< siede ( 1967); Boris Porschnev, Les soulevements populaires en France au XVIF" siecle ltrad. 1963); A.D. Lublinskaya, La crisis del siglo XVII y Ia soc iedad del ahsolutismo (trad. 1979); Yves -Marie Re rcc, Reuoltes e/ reuolu­tzons dans /'Europe moden-ze- XVI'-XV!ll'" siecles 0980); Perez ?.agorfn, Rebels and mlers, l ~U0-1660, (1982) 2 V

210

j

·-o-OUTRO lADO DO OURO MINfiRO

Em 1983, atraves de seminarios realizados pela Fundas;ao Carlos Chagas, tive conhecimento do trabalho de Luciano Figueiredo. Foi das impress6es mais vivas de minha vida pro­fissionaL Sua pesquisa era muito seria, dava conta de todos os arquivos mineiros que eu conhecia e revelava inumeros acervos dos quais nunca ouvira falar ate entao, como o Acervo Documental da Camara Municipal de Mariana, que s6 agora comes;a a ser aberto ao ptiblico e consultado por pesquisadores.

Naquela epoca, eu abandonara OS temas e arquivos mineiros t:m busca de praticas magicas coloniais, aprisionadas nos processos da Inquisis;ao de Lisboa. 0 contato com a pesquisa de Luciano me puxou de volta para a desordem das Minas setecentistas, para a pobreza· ·9os des·crassihcados e a multi­plicidade dos arranjQ_s e solus;oes cotidianas 0 Avesso d~ ;\1e;]6rla·ap-rol\;-;.;:d~v~ --t~-~~~-~-{;" - t~cara de !eve alguns anos antes, e revelava outros tantos, importantfssimos para a melhor compreensao do perfodo. Dai o interesse imediato, a e mpatia que se estabeleceu entre mim e o trabalho de Luciano.

Ha oito anos atras, quando a hist6ria do cotidiano e das mentalidades ainda engatinhava entre n6s, quando o ato de vasculhar prateleiras e descer a por6es atras de papeis velhos passava por excentricidade, a obsessao de Luciano Figueiredo pela pesquisa empfrica era incomum, rara e, aos olhos de muitos, anacr6nica. Muito jovem, ainda sem vfnculos com os cursos de p6s-graduas;ao das universiclades, Luciano mostrava ser urn pesquisador notavel, reviranclo rnanuscritos mineiros a_~spreita de menta]idades e incli<:i(?_S da_vjc]a clos tempos antig-os, reconstruinclo, com -paciencia e clade, comportamentos e praticas eco'riomicas ])OUCO ()rtocJoxas.

Page 93: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

Conforme os jovens historiadores e os estudantes recem­formados come~;avam a refletir sobre a questao das mentalidades e do cotidiano no Bras il - recuperando~-o melho~ -de Gilbe----;:t()­Freire e m Casa-Grande & Senzala, Sobrados & Mucambos e Nordeste; rele ndo o grande Sergio Buarque de Holanda de Caminhos e Fronteiras, descobrindo o v e lh o Alcantara Ma c hado de Vida e Marte do Bandeirante -, era fatal que dessem com os relat6rios datilografados de Luciano Figuei­redo acerca do comercio feminino nas Minas de ouro, que se s urpreendessem com sua pesquisa minuciosa sobre a prosti­tui\=ao nos arraiais aurife ros, que seguissem as pistas sobre as devassas eclesiasticas que afloravam a cada pagina de seu trabalho.frloje, passados oito anos, 0 Avesso da Memoria, na forma de relat6rio datilografado, e OS artigos que Luciano foi publicando nas revistas especializadas sao ponto de referenda o brigat6rio para que m estuda Minas:lEm Sao )o~o del-Rei, Serro ou Maria na , o autor e conhecfaiS dos arquivistas, acos­tumados a ve-lo, horas a fi o, d estrinchando codices e caixas de docume ntos coloniais. Portanto, nada mais adequado do que publicar, mesmo se com cerro atraso, urn trabalho que vern c irc ulando em c6pias e abrindo carninhos ja ha algurn tempo.

0 Avesso da Memoria e pi o ne iro c originaL 0 primeiro capitulo, "Comercio Ferninino e Te nsao Social" contribui d e forma decisiva pa ra a anali se cia fun c;ao economica e socia·r .. das mulhe res ern nosso pais; re toma os passos de Luis Mott e m "Su bsidios a Hist6ria d o Pe que no Comerc io no Brasil",' cles taca ndo seu papel na s Minas e as contradic;oes qu e , naquela capitania, envolviam ta is ativiclades~ As mulhere s se dedicavam ao comercio a mbulantc- as afamadas· ~~ne-gras de

tabuleiro' -, mas e ram ta mbe m proprietarias d e ve ndas, o ncle, ao c ontrario dos homens, pre fcriam negociar com 'm o lhados' ; no se io cia fa ina com e rc ial, criava m espa<;o proprio, caracte­rizado pelas a tividades tidas como tradi c iona lme nte fe rnininas:

as ligadas ~--"HIJ:l~.n~-;~_,.;: a_g j\Jras dos balcoes ou pera rnbul a ndo - -pelas lavras e e s tradas , tabul e iro em pu[]h_o, vencleiras e

q uitancle iras exerceram pape l imprescindivel n o abastecimenro,~ gara ntindo v ive res p a ra a popula~;ao _rnir]f i [<J.~ -_l:o ntribuiram na a rrecada~·ao fiscal, pagando impostos. Mas, ao mesmo te mpo, foram a lvo constante de perseguic;oes, tidas co mo d esord e iras o u agasalhadoras de infratorcs, as suas vendas d;;;;-~-~pe~hando,

220

f ~ j

I j

no interior cia Colonia po rtugu esa, p a pel am'i logo ao das tave rnas europeias cia epoca pre -indus trial - OS tempfum diaboli de que fala Bronislaw Geremeck - 2 e as suas andanc;as pelos nucl eos mineradores sendo vistas com horror, pois ~:sviavam os jornais que os negros, em vez de e ntregare m aos senhores, acabavam consumindo e m cacha c;a, fum o e quitutes . Por urn lado, as mulheres com e rc iantes se inseriam

- ho sistema- basta ver os _assento s e co ncessoes d e licen-;:as para vendas existentes na Camara Municipal de Maria na, onde predomina o ele m e nto feminino de fo rma irnpressionante_ Por o utro, eram tidas com o age ntes da d esordern mineira : de s uas vendas, dizia-se com freqtiencia que acobe rtavam e ncontros furtivos e rela~oes illc itas, abrigando ainda fes tas sus peitas , 'batuques' , bebe d e iras d e mesti c;os e esc ravos .

As insinua-;:o es e a taques oficiais tinha m s ua 16g ica . A documentac;ao m os tra que, de fat o , co rn e rcio fe minin o e prostitui~;ao po diam andar d e rn aos dadas, muitas vendeiras e e s ta lajadeiras forncce ndo pousada aos "homens do caminho" e, eventualmente, procura ndo- lh es parce iras , "alcovitanclo mulhe res p a ra homcns''_ A compreensao cleste faro , entre tanto , estava muito alem clas poss ibilidades dos burocra tas col()niais Numa economia pobrc , dcscapitaliza<.Ja - na segunda meudc do secul o , os inven tar·i os e testamelllos acusam um ntime ro assustador de dividas e re\·c lam o h::ibito da troca em espccie - . muita mulhe r trabal hade ira tinha de rect>IT<~r a prostitui <;: ao o u a alcovitice para comer c pagar os impostos que a Coroa, irnplacavel, cobrava sun tregua_ No segundo capitulo , "Pros­titui c;ao e Desordern", Luciano Figueired o e mpree ndc uma das melho res an a lises ja fe itas entre n6s sobre esu a tivida cl c, ma is urna vez sob o vies cb s l'vlinas do secul o XV III. A pros tituic;ao era decorrencia ci a fo rlll : r ~·ao soc ial nuicla , cli"c;rrencia de mulheres brancas, do ;lito nCtmcro d e mac hos cl esenraiz:1dos, solte iros, sem familia. qut· tin ham acorrido 3 r eg ia r) aurifc ra para tentar sortc, cn ri qucce r. Era um fe no me nn d in ii mico:

--b'a-r1dos i.le 'mulh ercs-dan'us' st:gui am os minc rado res, vaga nd o como el es pelos arraiais :1 ella d e p cpius e cl e o uro em p6, que lhes chegavam :1s m:1 o s a tra vfs de a tivi clades difercnt es Outras mulhe rcs fi cavam para tr;'ts e nquan to os companlll'iros seguiam rumo e rn bu sca cle novos rcgatos auriferos; zon ;Js rnu~to pobres , com o :1s im e cliar,:CJL'-" d o Distrito O iarnan ti no c

22 1

Page 94: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

a prc5pria Demarca<;ao, ou locais de passagem de tropas, como a atual Barbacena, abrigaram um nCllnero especialmente alto de prostitutas e Je 'casas de alcouce' Sobrc elas, recalam epltetos crucis e cstigmatizadores: ·sopinha' , 'Rabada', 'Cachoeira', Tuguete', 'Pisca·, num habito secular que remere a uma das clecanas cia prostitui<;ao e da feiti<;aria entre n6s, processada na Primeira Visita<;ao do Santo Oficio ao Brasil, em fins do seculo XVI: Maria Gon<;:alves Cajada, de alcunha 'Arcle-lhe-o-Rabo' .

A analise de Luciano revela grada<;oes cornplexas existentes no seio da pratica das prostitutas: a alcovitice pura e simples, a prostitui<;ao ativa, os prostlbulos, mas, sobretudo, o habito de 'dar casa de alcouce'. Tal multiplicidadC' sugcrc que, nas Minas setecentist<~s, nao ocorrera ainda uma especializa<;ao profissional ou a circunscri<;ao de espa<;os e s peclficos: rnulhC'rcs se prostitulam para complementar renclimentos, vendas se metamorfoseavam em prostlhulos como atividade suplementar ao nJnHo; rcio .

T~tmbent o concubin:Ho tinha pontos cotnuns com a pros­titui(':lo. Do ponto de vista oficial, mulheres arnasiaclas cram ticbs l·omo levianas . Na pratica diaria, lig;~,-(,cs espor;ldicas sucessivas poderiam de fato levar a prostitui•; :lo lvLLS o que o autor ressalta em "Vtcla Familiar", o terccim ctpitulo de.sle Ji,-ro, 0 que, nas Minas. o concuhinato foi norma, e n:io excec.;;1u. Ohe dientc as disposi<,-c'JC's tridentinas, a Igrcja e xigia a apre­sent:t<Jto clas ccrridoe s de batismo para ~~ rcaliza<;ao dos casamento.s; 11:1 capitania do ouro, era grande o numero cle forastciros, nascidos c barizados no bispado do Rio de janeiro, da Bahi<t ou, mais Ionge ainda, no de Angr:I --- na llha Tcrccira -, no de Coimbra, Braga, Porto. Pt-ovicle nciar cenidi'lcs :1 dist:tncia ou arrum:n testemunhas fidedign:~ s podia cust:lf caro. eJc,·:mclo :tincb nuis o clispendio com o casamento. Al e m di.sso. :t indissolubilidade do la<,'O conjugal n;!o cumbinava

flu ida e movedi<;a clc -~"i_i_!_!~l"_ _ Por fim, os nrr·r·'"''''>'''"' cstamenr:IJS pocliam se afrouxar :mtc o concubitnto con1 nL·gr;ts t' indi:1s, mas clespe rtavam <~niL' u cts:tnwnto com pesso:ts dv rnenor concli~·ao·. Nes ta <CJnjuntur:t, Luci:lflO Figueircdu delt,Ct:I a existencia cle grupus Ltmili:nes bast:tnte

·car;tcteristtco.>;, um:1 'rica cliversidade' que ll'ndi:t aos domicllios matrifoc:tis, uu SVJa, controlados por mulhL'res ':tlJ.SL·ntes de

222

I

seus maridos' ou de seus companheiros, que a lide mineradora - empurrava para lugares distantes do nucleo domestico ou

que, covardemente, as lan<;avam fora de casa quando se anun­ciava uma visita episcopal, sempre vigilante na puni<;:ao dos amasiados.

0 col1cubinato com · negrcis e .inesti<;:os, ·as unioes desre­gr;das- foram colorindo de negro e de pard~a p6pula<;:ao das

'-~Minas, - para desespero das autoridades metropolitanas. Em ·meados do seculo, janos quadros da polftk:a pombalina de tolerancia ante os casamentos com Indios, o grande perigo passou a ser mesmo o negro, que teimava em se misturar com os brancos e brancas: nao era a mesti<;agem em geral que desgostava, mas "a que decorresse da presen<;a negra ou mulata, grupos que na visao estatal sintetizavam a desordem" . Desta forma, Luciano mostra que o concubinato foi talvez o ponto em que melhor se expressaram os tra<;os peculiares de "uma sociedade rnarcada longamente pela distancia entre a vontade de seus dirigentes e a realidade cotidiana de seus integrantes" .

Para resolver e desvendar o outro !ado da memoria das Minas setecentistas, a utiliza<;ao das clevassas eclesiasticas

- te-ve papel basi co I-ioje, Luciano Figueiredo talvez seja o maior conhecedor deste riqufssimo acervo documental, tendo in­clusive localizado urn volume inedito no Arquivo Eclesiastico da Arquidiocese de Belo Horizonte. No. infcio do quarto capitulo, "0 Uniyersq_Beligioso", encontra-se uma 6tima con­tribui<;ao ·;~- ~studo das visitas episcopais no Brasil colonial, complementando os trabalhos pioneiros de Lufs Mott, Iraci del Nero da Costa e Francisco Vidal Luna, assim como os mais recentes de Caio Cesar Boschi e Fernando Torres Londoiio .3

Mas nao foi apenas nos assentos das visitas episcopais que o autor se baseou para trazer a tona aspectos novos da religio­sidade mineira. 0 exame de series documentais inexploradas do Arquivo Eclesiastico da Arquidioceg_g<:: _ _l?_~rnantina, referentes aos estatutos de irmandades, possibilitou que arriscasse hip6teses muito interessantes acerca da maior participa<;ao feminina em tais organismos, discutida e mcsmo contestacla por certos especialistas . Dados extralclos destes clocumentos mostram, por exemplo, que, entre 1752 e 1759, ingressaram na Irmandade clo Rosario de Vila do Principe

223

Page 95: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

67 pessoas, das quais 66 mulheres1 Mesmo que referentes a urn contexto espedfico e talvez limitado, as evidencias docu­mentais devem ser consideradas com cuidado pelos pesquisa­dore_::. sugerindo reformula~c-oes e novos enfoques.

~para as mulheres pobres o trabalho era confundido com a infra~ao, os momentos de lazer e divertimento eram quase que invariavelmente vistos como perigosos e lesivos a ordem vigen~m "Poder, Resistencia e Trabalho", o ultimo capitulo do livro, fica clara que os batuques e danps foram sistemati­camente hostilizados e perseguidos. Em meados do seculo, no tempo do governador Jose Antonio Freire de Andrade -irmao e sucessor do ilustre Gomes Freire, conde de Bobadela -, as festas de negros e mesti~os deveriam "ser dispersadas por rondas de seis homens e urn sargento, organizadas expressamente com esse intuito", argumentanclo-se que tais reunioes degringolavam sempre em brigas e ferimentos. No interior das vendas, nas casas de alcouce nas festas dominicais tradi~oes portugucsas e praticas african~s se combinavam, s~ superpunham, geravam sfnteses originais . Religiao e magia andavam !ado a !ado, olhaclas com temor pelos 'homens bons': numa sociedade majoritariamente negra e mesti~a. em que poucos brancos detinham o mando a custa da coer~ao e da violencia, estava semp re presenre o ternor do outro, do desconhecido, que poderia quem sabe organizar urna grande insurrei<;ao escrava. Muitas mulheres recorreram a filtros e sortilegios amorosos com o firn de prender arnantes, mas outras tantas se aliaram a escravos para com ervas unhas pelos e bonecos de pano, intentarem a t~orte clos s~nhores, Muitos indivfduos pobres esqueceram momentaneamente do infortunio ao som dos atabaques e clas violas portuguesas , mas varias fan·as servinm para facilirar encontros entre pessoas de igual concli~ao e apertar la<;:os de solidarieclade. No primeiro quarrel do seculo XIX, incorporando a ideologia oficial, o viajantc frances Saint-Hilaire se escandalizaria com os requebros sensuais dos batuques e os espasmos er6ticos clos 'calundus': urn inclfcio a mais, com ceneza, do forte signi­ficado politico inforrnalm en tc conticlo nas prjticas coticlianas.

Bonito, emocionado e original, 0 Avcssu du Memoria mos­tr::l'q;:;e e·possfvel esrniupr praticas cotidianas scm perder de VISta o contexto ern que se engastaram, h a rmonizando a

224

r r

micro-hist6ria com a analise mais globalizante. E ponto de referencia obrigat6rio para estudiosos da familia brasileira, do papel da mulher em nossa sociedade, do comercio interno na Colonia, das constru~oes ideol6gicas acerca da socieclade mine ira serecentisra - que nao foi rica, nem igualitaria, ne~- __ clominada exclusivamente pela !11i!!~ra~_~Sl_e trabalho se

- atrela, port~nt~: i melflc)r-trndi~a-o cia historiografia brasileira, inovando ern muitos pontos. Agora, urn publico mais amplo podera percorrer com ele a desorclem mineira, revirando pelo avesso a memoria das Minas do seculo do ouro.

(0 outm /ado do oum mineim, publicado em.· FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida . 0 avesso da memoria · cotidiano e

trabalho da mulher em Minas Gerais no seculo X\111!. Brasl?ia· WUNB; Rio de janeiro. jose Olympia. 1993. p .9 -14)

NOT AS

'REVISTA DE HI STOIUA , v 53, n.105, p .8 1-106, 1976

u u'r:."'L'--" • Oronisla\v. CriminalitC, vagabondage, paupCrisme: la margina-litC ~l ten1ps rnoderncs . Revll e d'ffistoirc A1odenze et Contemporaine, v.21, p.338, JUl/sel. Je 1974

' MOTT, Luis. Os pee ados Ja Bahia de Todos os Santos (1813). Boletim do·., Centro de Estudos JJaianos, Salvador, n.98, 1982 ; LUNA, francisco Vidal e COSTA, Iraci del Nero da. A vida cotidiana em julgamento: devassas em Minas Gerais. In: Minas colonial: economia e sociedacle. Sao Paulo: fipe/ Pioneira, 1982 ; BOSCH!, Caio Cesar. As vis•tas diocesanas e a lnquisi\'ao na "Colonia". Revista Brasileira de Hist6ria, n.14, Marco Zero, mar./ago. 1987; LONDONO, Fernando Torres. Visila pas to ral a Sao Luis de Vila Maria do Paraguai en 1785 [ex e mplar mimeografado] e Iglesia y transgresi6n. Las visita s paslorales [exemplar mimeografado].

225

Page 96: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

\j I

CIVIliZA~AO eM MINA~

Nao se pode entender o seculo XVIII luso-brasileiro sem ter clareza sobre o que entao se passou nas Minas Gerais. Zona interior, Ionge do litoral e dos povoados de coloniza<;?io antiga, eri<;ada de montanhas pedregosas ricas em minerio, incorporada ao ambito da coloniza~;ao !usa em razao da mobilidadc dos paulistas que prcavam indios e buscavarn no

. ouro o "remedio para a sua pobreza", as Gerais foram, ate os . ')ultimos anos do seculo XVII, moraga de indios e de teras. - Menos de rneio secu ln deRois, surpreendentementc, )a

contavam-c~m nucleos urbanos be m-sedimentados, aparelho burocratico-:t"~mplos, irma.nda.des religiosas e pratiza!ner1ie todos os elementos que const itu em a vida social, como registrou a descri~· :io cb fesra do Triunfo Eucaristico, ocorrida em 1733, em ViL1 l~ica. No ultimo quarrel do seculo, me nos de cem anos, port:1nto. ap(Js Antonio Rodrigue-s Arzao ru encontraclo no Tripui u prinwiro ouro, havia em Min<J s apre<;o tao acenruaclo p c las pclos espetacu los tcarrais, pelas audi<,·t'ics pela encomcncia e compra de livros, pcla frui.,:ao csret1ca qu e, scm exagero, pode-se

Ta!ar CJUe existia Ji, talve z pela primc ira vez na America Por-'i tuguesa, um vercladciro sistema c ulrural. Qualquer pessoa

rnecl ianamente'C'UltJ sa lw, ai~dano)'e~quern foi Aleijadinho, Manuel cia Costa Ataiclc, .Joaquirn Emcrico Lobo de Mesquita, Claudio Manu e l cla Costa, Tomas Arllr'Jnio Gonzaga, Alvare nga Pe ixoto. Estes CI!tirnos, mesmo que su a l'ontrovertiJa atuar;:?w na lnconfidencia Mineira n;lo fizesse dcles her6is d e nossa inclependencia, pass:rriam :r posr e riclaclc como poetas rcno­mados- no c;rso de CL!uclio e Conzag;1, figur;inc1o e nrre os maiores das letr;Js luso-bLrsil e iras serece nri sras.

Por tudo isso, n1rm livro de clivulga,,:lo, :1firmei ha pouco menos de quinze ano.s que Minas era a s intesc da col6n i;L 1

Generaliza~;ao ulv<"z rlln pouco :Jpress;HJ:r e dcstitLJicla -c1e

maior fundamento, mas cabfvel no ambito de urn estudo introdut6rio, onde fazem sentiJo as tipologias que visam possibilitar apreensao rapida do assunto ~o-~~~u~? __ X:YIII, tenho certeza hoje, nao havia uma colon_i~dll<.l$. Y.aria.s_qela,s, CI!Si:intas e-ntre si e, as rna is das vezes, pouco conectadas. De ·ql.1alqu~~ fo~rria, se Minas nao sintetizava, dado ser impossivel a sfntese, exprimia, de forma bastante privilegiada, as con­tradi<;6es do v_i\i'f;':_Lertl-CG!4nias - como diria, no inicio do

. sectilo XIX, o ilustrado Luis clos Santos Vilhena.

E justamente destas contradis,:~es que trata 0 Universo do Jndistinto. Contradir;:oes entre o ser e o parecer, entre os va­lores da honra e os do dinheiro, entre a posse de lavras, terras e a atividade mercantil, entre a liberdade institucional que o escravo obtinha quando comprava sua alforria e a cor negra da pele que, indelevel, impedia-o de viver plenamente a sociabilidade. Contradi<;ao incontornavel entre o clesejo de civilizar-se, policiar-se- no sentido de ter polfcia, ser polido, cortes -, cultivar-se e, simultaneamente, ser obrigado a viver Ionge dos centros civilizados, da metropole, da Corte e seu monarca, fazendo dinheiro a custa do trabalho de escravos negros, tratados, quando fosse preciso, sob a chibata e todas as formas mais cruas de coer<;ao.

De urn !ado, pois, havia os elementos comuns ao processo civilizador proprio do ocidenre moderno, e aos qu~is as elites ilustradas se agarravam, tenazes, procurando transiorma-los em forma que contivesse a selvageria colonial. De outro, havia o conteudo que transborclava sem se moldar-;a- colonia que fugia ao controle e ao previsto, seus habitantes reinventando, na pratica cotidiana, as solu<;6es possfveis ante os impasses e, neste senticlo, engendrando uma vivencia cultural propria e irredutfvel aos padroes conhecidos. Constitufram, dessa forma, uma cultura especifica, c, sujeitos ativos da propria historia, imprimiram-lhe rumo diferente, em ultima instancia, do que as elites ilustradas pensavam para eles.

No que diz respeito a utilizar;:ao, ern chave hist6rica, dos conccitos da sociologia cultural de Norbert Elias,~[\1arco

_..Antop iQSilv~jra se aproxima da melhor historiografia cultural europ~ia e norte-americana das ultimas decadas 2 0 irnpacto queo so('iologo aletn~o_ provocou sobre os estuclos de histo­rla das mentalidades e sobre' a htstona cultural fran cesa ja foi varias vczes ressaltado - entre outros por Roger Chartier.

227

Cadu
Highlight
Cadu
Highlight
Page 97: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

A antropologia norte-americana contemporanea, que tern em Marshall Sahlins e em Clifford Geertz dois expoentes, tam­bern se faz notar no arcabou.:,:o te6rico adotado por Marco Antonio, possibilitando identificar preocupa<;:oes presentes em sua analise com as desenvolvidas por historiadores como Robert Darnton e Natalie Zemon Davis.3 No apre<;:o pelo detalhe iluminador, pelo aparentemente insignificante, ou ainda pelo excepcional normal, 0 Universo do lndistinto paga tributo a micro-hist6ria italiana, destacando-se contudo a influeilcia do percurso muito peculiar e original que, dentro dessa tenden­cia, ou a partir dela, foi tra<;:ado por Carlo Ginsburg 4 Por fim, no cuidado quase carinhoso com que examina o tecido da conDitualidade mineira, sublinhanclo-lhe as solu<;:oes parti­culares, Marco Antonio mostra a influencia recebida das analises de E. P. Thompson, que aliam tao harmoniosamente sociedade e cultura, enfoque hist6rico e antropol6gico. 5

No plano especifico da historiografia sabre as Minas, 0 Universo do Indistinto dialoga com alguns dos melhores trabalhos surgidos sobre a capitania nDs U.ltimos anos, e que foram esfuma<;:ando um pouco os contornos analiticos tra<;:ados ha meio seculo por Caio Prado jr e aincla muito presentes em alguns estuclos da decacla cle 80, como o mcu pr6prip - con­tornos que clefiniarn a cconomia mineira como depcndcnte quase que d e form a s;xdusiva da n1inera <;:ao do ouro e, nao raro, deixava_t:!! do_}ac:Jq .de fora 3 irnportancia do mercad0 interno, da agricultura, d3 pecuaria(' Alcir Lenharo, de forma urn tanto inclireta, e Luci:lno Raposo de Almeida Figueire do, mais incisivamcnte, contribufram para firmar o papel do comercio na economia mineira setecentista - mesmo do de pequeno · porte, exerciclo pelos ambulantes e pelas negras de tabuleiro 7

A pesquisa e mpfrica foi assim relativizando e, no limite, in­valiclanclo muitas das forrnula<;:oes abstratas acerca das vias d e acumula<;:ao de capital, como as adotadas por certos estu­cliosos cla economia. 0 qu e Marco Antonio rnostra, aqui, e uma sociecbcle em que o comcrcio e _ os_ offcio~ medinicos dorninavarT1 a vida urbana,e t~ l11· c][r e -as estrategias c!e ascensao· -social e rar~ montada s com base numa sucessao de papeis e atividacles, dcn tre as quais nc m sempre se clestacava a do mine rador; um munclo em que a baixa monetariza<;:ao - a fatalidade deter ouro_em pc) como meio circulante- impunha ao creclito un=;- -papel d ec is ivo. determinanclo <:;omportarnen­tos, sociabilidades e ;r_ptidoes Sugere-sc, por exernplo, uma

22il

generalidade do conhecimento da escrita e da leitura em ambito muito rnaior do que o tradicionalmente consrderado, os numerosos bilhetinhos que permaneceram anexos a inventa­rios e a pe<;:as de disputa judicial fundamentando tal hip6tese.

0 Universo do Jndistinto contern, por fim, uma fina analise da sociedade mineira, valida, em muitos pontos, para outras situa<;:oes existentes na America Portuguesa. ~i_o Prado Jr., Sergio Buarque de Holanda _ e, entre __ contribui<;:oes rna is modestas,- eumesma -liav!amos frisado a fluidez social, 0

-·crescredito crc;··-rormalismo, a dinamica cle um processo que classificava e desclassificava os hornens livres pobres de forma intricada, contradit6ria e dialetica,8 Marco Antonio Silveira Ja~mfo do conceito de sociedade aluvio1131 para ilustrar, com casos rnuito felizes, o mov_i!l1...5:0.~9-constante de -;~-~undo marcado pelo desassossego, em que os escravos, movendo-se em ambiente urbano, d_~!:l!Qenhando papeis ~;:;;u;-·-~·wis . variaclos do que o de rneros faiscadores, ganham larg;rnTatgem de autonomia, caracteristica, alias, das Minas setecentistas. Autonomia, mas nao liberclade: e a op.;;ao vocabular e ch~i-a de significados, reconhecenclo os poros existentes no escravismo colonial mas, simultaneamente, apon­tando para seus limites ferreos.

Em 0 Universo do Jndistinto, portanto,_e _g(Or<!l e o p<}rt_icular se relacionam cle modo· ,-,omplementar e contraclit6rio, seja -. no plano clas op<;:oes te6rico-metodol6gicas, seja no recorte. Notarn-se as influencias que rnclhor tern fecundado hoje, no plano internac ional, as ciencias sociais- ou, como p re feria Brauclel, as ciencias do homem - e nota-se, igua!mente, a !eitura do q~e de_ r:1ais interessante se !_em escrito sobre Minas, rec:;fientan-clo a -prc)blematica cia_ histc~ria regio_n~- H <1 a-preocupa~·ao em nao perder-de viSta OS proceSSOS Comuns a epoca, aqueles que, em outros lugares, situados no ce nt~o do sistema, tornavam generalizaclo o apre<;:o pela crvrltza<;:ao dos costumes e pelo controle clos impulsos mais espontaneos, distintivos do homem polido. Mas ha igual empenho ern ressaltar as e specificidades do objeto escolhido-_:;~~~eclade , polftica e cultura em Mitl~ ~~ capitania que se diversificava

· cada vez rna is no tocante a prodU<;:ao economica. rernventava padroes de convfvio social, permitia que os escravos se alforriassem sem contudo deixar de se manter profundamente escra-v1sta. Para a analise clas peculiaridades mineiras , Marco

229

Page 98: Norma e Conflito - Parte II e III - Laura de Melo e Souza

Antonio se vale, muitas vezes, de c!ocumenta.;;:ao manuscrita inedita, tendo trabalhado sobretudo com a que se refere a coma rca de Ouro Prcro. Aqui, pela primeira vez, utilizam-se as a.;;:oes de alma - forma curios!ssima, referida pelas Orclena.;;:oes do Reino mas, ate oncle sei, muito pouco utilizadas pela justip !usa na sua pratica corriqueira .

Trata-se port;rnto de um belo estudo, elegante e discreto, capaz de harmonizar os dois p6los centrais que alicer.;;:am o argurnenro e de mostrar, corn grande felicidade, como o universo social das Minas se teceu no mundo do Antigo Reg~f1_l_e para resultar em algo distimo, mesmo se tribut<1rio cia matriz originaria.

r Ciuilizardo em Minas, prefdcio public ado em: S!l VE!RA, Marco Arztonzo. 0 universo do indistinto - esLtdo e sociedade nas

Minas screccntistas (173'i-l80R) Sao Paulo: 1-/ucitec,

!997. p .Ij-17)

NOT AS

I vr: Rc UEJHO Laura. Opuh;ncia e nzisPria de Airnus Gerais. S~i() Paul o: Br:J. s i ~ liensc: , 1<)02

~ Denrre os trab:1lhos de Norbert Elias. dt:."iLICI - se a influ2nci:I de dois cleles

0 proces ... ;n ciu tlizadur Rio de jane iro: }urge Zahar, 1 ')9:). 2 V . La societe de

cour Pref:~cio de Roge r Chartier. Paris : F!amaril)fl, 1985, ate onde sei, sem rradtH:;io no Brasil

'SAJILINS, 1-brshall. //has de hist6ria. Rio d,· Janeiro, _Iorge Zahar, 1990 GEEHTZ. Cl ifford. A rnterprctar;tio das cul£ums. Rio de Janeiro , Jorge Zahar, l 97t> DARNTON, Rohcrt. 0 grande massacre de gatos e uutros epis6dios da hisrr5ria cul!ura!francesa. Rio de Janeiro : G ra~d. 1986. DAVIS, Natalie Zemon

CulrunJs du povo- sociedJ.de e cultura n o in fc io cb Fr;..tn<,-·a mod C'rna. Rio de Janeiro : Paz e Terr~t , 1990

4

lEVI , G" '"'"'"i Soh re a micro-hist6ria. In : lll'JU\E, Peter. A escrira da bislr ina ""''"s Sao Paulo. Eclitura cia Unes r . 19')2 . (j JNSBURG, Carll) . . )'incns de urn paradigma incliciJ.rio. S;iu P:1ulo: Compan hia das Letras , l9R<J

' Tal rcl:i(·:iu se c·xpliciu sobretudu n;, cokt:irw:~ de Tl-lOMPSO:\, F. P

c ulrura pur11zia ~otto .saggi di :uHro polng ia .-;rnri~·J. Turim

6 PHAUO .JH. , Caio. 1:-ormar;iiu du Brasr·l rn rllemj)ortlneu. 15 .ccl . S:.lo Pau!u

l3rasili"nse, 197.1. SOUZA. L:wra de Mello c d o rmro - a pobreza rnincira no st>cu!o XVJfi. Rio de _l:irH:iro

7 LENHARO, Alcir. As tropas da moderat;:do. Sao Paulo: Sfmbolo, 1979.

FIGUEIREDO, Luciano R. de Almeida. 0 avesso da memoria - cot1d1ano e trabalho da mulher em Minas Gerais no seculo XVIII. Rio de Janeiro: jose Olympia I Brasilia: EDUNB, 1993

'PRADO JR. Forma(:do do Brasil contempordneo, Capitulo: Forma~;ao social HOLANDA, Sergio Buarque de. Meta is e pedras preciosas. In, Hlst6ria_geral da civilizar:do brasileira- I -a epoca colonial. Sao Paulo: Difusao Europe1a do Livro, 1961. t. 2, p.259-310.

231


Recommended