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O ANIMAL SOCIAL

Date post: 10-Jan-2017
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DAVID BROOKS O ANIMAL SOCIAL As origens ocultas do amor, caráter e sucesso Tradução JOSÉ MENDONÇA DA CRUZ
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O A N I M A L S O C I A L

D A V I D B R O O K S

O A N I M A L S O C I A LA s o r i g e n s o c u l t a s d o a m o r ,

c a r á t e r e s u c e s s o

Tr a d u ç ã oJ O S É M E N D O N Ç A D A C R U Z

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O A N I M A L S O C I A L

Introdução

Tomada de decisõesA aliançaVisão mentalMapeandoApegoAprendizagemNormasAutocontroloCulturaInteligênciaArquitetura das escolhasLiberdade e empenhoLimerânciaA grande narrativaMétisA revoltaEnvelhecer

Í N D I C E

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2347557185

103137157177207223241259277299323339

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MoralidadeO líderO lado moderadoA outra educação

Post Scriptum

Agradecimentos

Notas

Índice remissivo

353377399431461

481

489

493

529

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I N T R O D U Ç Ã O

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Após a ascensão e queda, do frenesim das apostas e da derroca-da de Wall Street, a classe-bem regressou, mais uma vez, à boca de cena. E não fez fortuna com feitiçarias de fundos nem com uma

da meritocracia do sucesso. Tirou boas notas na escola, estabeleu relações sociais sólidas, foi recrutada por companhias, consultórios e empresas com qualidade. A riqueza foi aumentou de forma tão

É possível ver um arquétipo da classe-bem almoçar na esplana-da de um qualquer bistro recatado de Aspen ou Jackson Hole. Aca-bou de regressar da China e fez escala ali para uma reunião com a administração, de onde seguirá para uma maratona de ciclismo de oitocentos quilómetros em apoio ao combate contra a intolerância à lactose. É bem-parecido, tem menos massa gorda que o David de Miguel Ângelo e cabelo tão farto e ondulado que, se o víssemos em Los Angeles, perguntaríamos: «Quem é aquele tipo tão bem-pare-cido que vai ali com o George Clooney?» Quando cruza as pernas, notamos que são compridas e magras. Não chega a ter coxas. Cada perna é um elegante estilete pousado sobre o outro.

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A sua voz é como o som de alguém a andar com meias em cima de um tapete persa – tão calma e composta que faz Barack Obama soar como Lenny Bruce. Conheceu a sua mulher numa reunião da Clinton Global Initiative. Traziam, por acaso, pulseiras idênti-cas de apoio aos Médicos Sem Fronteiras e depressa descobriram que partilhavam o mesmo instrutor de ioga e que as respetivas bolsas Fullbright lhes tinham sido atribuídas com poucos anos de diferença. Formam um par maravilhosamente equilibrado, sendo que a única verdadeira fonte de tensão entre eles tem que ver com os horários das sessões diárias de exercício. Por alguma razão, os homens de sucesso correm muito, andam de bicicleta e só exerci-tam os músculos da parte inferior do corpo. As mulheres de alto estatuto, por seu lado, dedicam uma atenção especial ao tronco, bíceps e antebraços, para poderem usar vestidos sem mangas du-rante todo o verão.

E assim, o Senhor Elegância Descontraída casou com a Senhora

-

das classes média-alta e alta, estas crianças são boas em desportos obscuros. Há uns séculos, os membros das classes instruídas cons-tataram que já não eram capazes de competir no futebol, no base-bol e no basquetebol e, por isso, roubaram o lacrosse aos índios, para terem alguma coisa que pudessem dominar.

Todas as crianças obtêm resultados de excelência em escolas privadas homogéneas e orgulhosamente progressistas, gastando prudentemente as férias de verão a fazer internatos em laborató-

com elas e comunicaram-lhes solenemente que já tinham idade para começar a ler a The Economist. Prosseguiram os estudos em univer-sidades seletivas, dotadas de boas equipas desportivas, como Duke ou Stanford, e depois abraçaram carreiras que deram bom nome

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aos pais – por exemplo, economista principal do Banco Mundial, depois de uns quantos anos compensadores na Joffrey Ballet.

Os membros da classe-bem passam grande parte das suas vidas adultas a entrar em salas e a acordar o complexo de inferioridade de toda a gente. O facto de serem sinceros, modestos e simpáticos acentua esse efeito. Nada lhes dá mais prazer do que convidar-nos

um aeroporto qualquer, na tarde de sexta-feira, onde chegam com um saco com os seus pertences, porque quando se tem um avião privado não é preciso malas que fechem.

Quem se meter numa destas aventuras o melhor é munir-se de barras de chocolate, pois o código de comportamento desta nova aristocracia leva a que o deixem praticamente à fome durante todo

duráveis e a despesas espartanas em bens consumíveis. Dão-lhe boleia num Gulfstream 5 de milhares de dólares, mas servem-lhe uma sanduíche de peru num pão mole do Safeway. Têm uma man-

mobília ser da IKEA e, no sábado, oferecem-lhe um daqueles al-moços de greve de fome – quatro folhas de alface e três gramas de salada de atum – porque acham que toda a gente come de forma tão saudável como eles.

Entre os membros da classe-bem tornou-se de bom-tom ter cães que medem um terço do pé direito da casa, por isso, possuem animais gigantescos que mais parecem ursos, com nomes de perso-nagens de Jane Austen. Os cães são cruzamentos de são-bernardos com velociraptors, capazes de pousar gentilmente o focinho sobre

consiste em longos períodos de atividade interrompidos por cur-tas análises à situação económica global e histórias brilhantes dos seus amigos mais próximos – o Rupert, o Warren, o Colin, o Ser-gey, o Bono e o Dalai Lama. À noite, deambulam até uma estância

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comunitária para comer um gelado e dar um passeio. Enquanto -

ressantes gelati, podem irromper, vindas dos passeios, ovações es-pontâneas. Há quem decida passar férias nesses sítios só para se banhar na aura da perfeição humana.

O encontro

Foi num lugar destes que, num belo dia de verão, um homem e uma mulher se encontraram pela primeira vez. Com vinte e mui-tos anos, estes jovens viriam a tornar-se os pais de Harold, um dos heróis desta história. E a primeira coisa que têm de saber destes pais anunciados é que ambos tinham bom coração, mas eram um

-te ambicioso e mais do tipo profundo. Foi a força gravitacional do sucesso da classe-bem, a que esperavam um dia pertencer, que os atraiu para este lugar. Estavam hospedados em pensões, com outros

lhes marcou o encontro ao almoço.Chamavam-se Rob e Julia e viram-se pela primeira vez em frente

de uma livraria Barnes & Noble. Ao aproximarem-se, Rob e Julia sorriram um para o outro, desencadeando um processo primitivo. Cada um deles viu coisas diferentes. Pertencendo a um certo tipo de homem, foi com os olhos que Rob decifrou a maior parte do que pretendia saber. Os seus antepassados do Pleistoceno confronta-ram-se com o intrigante facto de as fêmeas humanas não apresen-tarem quaisquer sinais físicos durante a ovulação, ao contrário do que acontece com muitos outros animais. Por isso, os primeiros ca-çadores tiveram de se bastar com os sinais de fertilidade disponíveis.

Assim, Rob procurou os traços que quase todos os homens he-terossexuais procuram numa mulher. David Buss estudou mais de

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dez mil indivíduos em 37 sociedades diferentes e descobriu que os padrões de beleza feminina são semelhantes em todo o mundo. Os homens apreciam uma pele macia, lábios carnudos, cabelo lon-go e brilhante, feições simétricas, distâncias mais pequenas entre a boca e o queixo e entre o nariz e o queixo, e um rácio peito-ancas de cerca de 0,7. Um estudo sobre pintura, abrangendo milhares de anos chegou à conclusão de que a maioria das mulheres retratadas têm esse rácio. Até a modelo Twiggy, famosa pela sua magreza, tinha um rácio peito-anca exatamente de 0,73.

Rob gostou do que viu. Foi tomado por uma sensação vaga mas entusiasmante de que Julia sabia estar, pois nada valoriza mais

abriu no seu rosto e reparou, inconscientemente, que a ponta das sobrancelhas se virava para baixo. O músculo Orbicularis oculi, que controla essa zona, não pode ser controlado conscientemete, por

é falso, é genuíno.Rob registou o nível geral de atração e recordou o facto de as

-tivamente mais altos.

Rob gostou também da curvatura que detetou debaixo da blusa e seguiu-lhe os contornos com um gosto que se enraizava no mais profundo do seu ser. Em alguma parte do cérebro sabia que uma mama é apenas um órgão, uma massa de pele e gordura, mas estava incapaz de pensar assim. Passava os dias a registar essas presenças em seu redor. O esboço de um peito numa folha de papel era o bastante para lhe chamar a atenção. O termo «tetas» era para ele uma fonte subliminar de irritação, pois essa palavra não merecia ser usada em referência a tão sagrada forma e parecia-lhe que eram as mulheres

E é claro que as mamas têm a forma que têm exatamente para despertar essa reação. Não existe outra razão para que as mamas

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humanas sejam tão grandes em relação às dos outros primatas. Os macacos têm o peito liso. As mamas maiores dos humanos não produzem mais leite do que as mamas mais pequenas, não servem qualquer propósito de nutrição. Mas servem como dispositivos de alerta capazes de desencadear espetáculos primitivos de luz no cére-bro do macho. Os homens apreciam mais as mulheres com corpos atraentes e caras não bonitas do que mulheres com caras bonitas e corpos não atraentes. A natureza não se dedica à arte pela arte, embora seja capaz de a produzir.

Julia, quando conheceu o seu parceiro para a vida, teve uma -

za indiscutível do homem que tinha à sua frente, mas as mulheres sentem-se sexualmente atraídas por homens com pupilas maiores. Seja qual for a sua origem, as mulheres preferem homens com fei-ções simétricas e ligeiramente mais velhos, mais altos e mais fortes do que elas. Segundo estes e outros padrões, o futuro pai de Ha-rold passara no teste.

Mas Julia era, por natureza e educação, reservada e lenta a ma-

ela não acreditava no amor à primeira vista, além de que se sentia menos impelida do que o seu futuro marido a julgar pelas aparên-cias. Em geral, as mulheres são menos sensíveis do que os homens à excitação visual, uma característica que quase reduz para metade

É assim porque no Pleistoceno os homens escolhiam as parcei-ras com base em indícios de fertilidade que podiam discernir com o olhar, enquanto as mulheres estavam perante um problema mais complexo. Os bebés humanos precisam de anos para se tornar au-

família. O que a motivava era poder escolher um homem não apenas para inseminação, mas também para companhia e apoio constan-

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te. E ainda hoje, quando uma mulher põe os olhos num potencial parceiro, o seu quadro temporal é diferente do dele.

É por isso que os homens saltam para a cama mais rápido do que as mulheres. Várias equipas realizaram um estudo simples. Pa-garam a uma mulher atraente para se dirigir a estudantes universi-tários e convidá-los a dormir com ela. Estudo após estudo, 75 por cento dos homens disseram que sim à proposta. Depois, mandaram um homem atraente fazer a mesma proposta a estudantes univer-sitárias. O resultado foi zero por cento.

As mulheres têm boas razões para ser cuidadosas. Embora a maioria dos homens seja fértil, há entre o sexo mais peludo grandes variações no que respeita a estabilidade. A probabilidade de depen-

é maior entre os homens. Há mais maçãs podres entre a população masculina do que entre a feminina. As mulheres descobriram que compensa ignorar alguns pontos no registo de primeiras impressões em troca de mais responsabilidade e inteligência social a longo prazo.

Então, enquanto Rob olhava para um decote, Julia procurava indícios de responsabilidade. Não precisava de o fazer consciente-

Marion Eals e Irwin Silverman, da Universidade de York, reali-zaram estudos que sugerem que as mulheres, em média, são sessen-

pormenores de uma cena e a localizar objetos. Ao longo dos úl-timos anos, Julia usara os seu poder de observação para descartar categorias de homens como potenciais parceiros, e algumas dessas opções tinham sido idiossincráticas. Rejeitara homens que vestiam Burberry, porque não se imaginava a olhar para o mesmo padrão de lenços e gabardinas para o resto da vida. De alguma forma, conse-

sempre inibida). Tinha os homens perfumados na conta em que

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Churchill tinha os alemães: quando não se arrojam aos nossos pés, atiram-se-nos à garganta. Não queria ter nada que ver com homens que usassem joalharia desportiva, porque o seu namorado não ha-via de gostar mais de Derek Jeter (jogador de basebol) do que dela. E embora tivesse tido um recente enlevo por homens que sabem cozinhar, não queria uma relação séria com alguém que soubesse picar os legumes melhor do que ela ou a surpreendesse pretensio-samente com tostas de gruyère para fazer as pazes depois de alguma briga. A manipulação tem limites.

Olhou Rob furtivamente enquanto caminhava na sua direção. Janine Willis e Alexander Todorov, de Princeton, descobriram que as pessoas podem fazer juízos precipitados sobre a honorabilidade, competência, agressividade e simpatia de alguém durante o primeiro décimo de segundo. As primeiras impressões deste tipo são surpre-endentemente certeiras para prever aquilo que as pessoas sentirão uma pela outra muitos meses mais tarde. Raramente alguém revê a sua primeira impressão, antes fortalecerá a certeza de que tinha razão. Num outro estudo, Todorov mostrou aos participantes, du-rante microssegundos, rostos de políticos em campanha e seten-ta por cento acertaram no candidato que viria a ganhar a eleição.

Usando o dom de avaliação instantânea, Julia notou que Rob era bem-parecido, mas não era aquele tipo de homem que não preci-sasse de ser interessante. Enquanto Rob a despia mentalmente, ela vestia-o. Naquela altura, ele vestia calças castanhas de veludo cote-lê, um adorno da civilização ocidental, e um pullover roxo, o que lhe

das, o que sugeria que envelheceria bem e que um dia haveria de ser o mais bonito do lar de idosos.

Era alto, e isso era relevante, porque um estudo realizado nos Estados Unidos revelava que a cada 2,5 centímetros de altura cor-respondem seis mil dólares de salário anual. Também irradiava uma espécie de calma interior, o que tornaria irritante qualquer

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discussão com ele. O seu rápido olhar apreciativo viu uma dessas criaturas abençoadas pela sorte, sem cicatrizes profundas a mar-carem a psique e sem feridas ocultas ou a recear.

Mas quando os juízos favoráveis começavam a acumular-se, o qua-dro mental de Julia mudou. Julia tinha consciência de que uma das características mais desagradáveis do seu caráter era trazer dentro de si uma espécie de reguila hipercrítica. Podia estar a gozar a compa-nhia de um tipo normal, mas, de repente, dava-lhe para o escrutínio. E pouco tardava até ela aparecer como rainha nas colunas sociais e o pobre tipo metaforicamente de rastos numa poça de sangue.

A reguila interior de Julia reparou que Rob era um desses tipos que acham que ninguém repara se os sapatos estão ou não bem engraxados. Tinha as unhas mal cortadas. Ainda por cima, era sol-

coisa de menos sério e, como nunca namoraria com um homem casado, o número de homens por que poderia apaixonar-se era bas-tante reduzido.

John Tierney, do The New York Times, escreveu que muitos dos sol-

deteta instantaneamente defeitos em qualquer parceiro potencial. Um homem pode ser bem-parecido e brilhante, observa Tierney, mas vai para a pilha dos descartáveis porque tem os cotovelos sujos. Uma mu-lher pode ser sócia de um grande escritório de advogados, mas é ve-tada como parceira de longo prazo porque pronuncia mal «Goethe».

o preconceito «os homens são umas bestas». As mulheres tendem a encarar as situações sociais segundo uma estrutura decisória in-consciente que presume que os homens estão interessados em sexo casual e em mais nada. Agem como detetores de fumo ultrassensí-veis, predispostos a falsos alarmes, porque mais vale errar por ex-

haja interesse sexual algum, elas imaginam-no.

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Em escassos piscares de olhos, Julia percorreu ciclos inteiros de

contra Rob. A reguila interior estava à rédea solta. Felizmente, nes-se preciso momento, ele adiantou-se e disse olá.

A refeição

Quis o destino que Rob e Julia fossem feitos um para o outro. Mau grado o que possam ter ouvido sobre a atração entre extremos, a verdade é que as pessoas apaixonam-se normalmente por pessoas parecidas com elas. Como Helen Fisher escreveu num dos capítu-lo de The New Psycology of Love (A Nova Psicologia do Amor), «a maior parte dos homens e das mulheres apaixona-se por indivíduos da mesma esfera étnica, social, religiosa, educacional e económica, por pessoas de beleza física semelhante e inteligência comparável, com atitudes, expectativas, valores e interesses similares, e com similares aptidões sociais e comunicacionais». Há até indícios de que as pes-soas tendem a escolher parceiros com narizes de tamanho idêntico ao seu e uma distância entre os olhos semelhante à sua.

Um dos corolários deste padrão é que as pessoas tendem, sem o saber, a escolher parceiros que viveram perto de si pelo menos durante parte das suas vidas. Um estudo realizado durante os anos 1950 concluiu que 54 por cento dos casais que requereram licenças de casamento em Columbus, no estado do Ohio, viviam num espa-ço de 16 quarteirões quando começaram a namorar, e 37 por cento viviam num espaço de cinco. Na universidade, a probabilidade de alguém sair com uma pessoa de um dormitório situado na mesma

Rob e Julia depressa descobriram que tinham muito em comum. Tinham o mesmo póster de Edward Hopper pendurado na pare-

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opiniões políticas semelhantes. Descobriram que ambos adoravam Férias em Roma, que tinham a mesma opinião sobre as per-

sonagens de The Breakfast Club e que partilhavam a mesma falsa

gostava de cadeiras Eames e da pintura de Mondrian.Além disso, ambos armavam-se em conhecedores de coisas

prosaicas como hambúrgueres e chá gelado. Ambos exageraram a popularidade de que tinham desfrutado no liceu. Tinham frequen-tado os mesmos bares e visto as mesmas bandas de rock nas mes-mas digressões. Era como ir dispondo uma série de peças de um puzzle e, espantosamente, vê-las encaixar. Em geral, as pessoas so-brestimam a singularidade das suas vidas e, por isso, as coincidên-cias que Rob e Julia foram descobrindo pareceram-lhes uma série de milagres. E essas coincidências emprestaram à sua relação uma aura de destino cumprido.

Sem se aperceberem, estavam também a avaliar a compatibili-dade intelectual um do outro. Como Geoffrey Miller observa em The Mating Mind (A Mente Acasaladora), as pessoas tendem a esco-lher cônjuges com inteligência equiparável, e a maneira mais fácil de avaliar a inteligência de alguém é pelo seu vocabulário. Com QI de 80 hão de conhecer palavras como «teia», «enorme» e «escon-der», mas não «sentença», «desgastar» e «intercâmbio». Com QI de 90, conhecerão estas três últimas, mas provavelmente «desígnio», «ponderação» e «relutância», não. Assim, quem procura conhecer-se avalia subconscientemente se os respetivos vocabulários se conju-gam e adaptam ao nível da outra pessoa.

O empregado veio até à mesa e eles pediram bebidas e, depois, o almoço. É um facto básico da vida que podemos escolher aquilo que vamos pedir, mas não aquilo de que vamos gostar. As prefe-rências são construídas abaixo do nível da consciência, e acontecia que Rob adorava cabernet mas detestava merlot. Infelizmente, Julia pediu um copo de cabernet e Rob teve de pedir um de merlot, só para

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parecer diferente. A comida era horrível, mas o almoço foi maravi-lhoso. Aliás, Rob nunca tinha ido àquele restaurante, escolhera-o a conselho de um amigo comum que tinha as suas opiniões em alta conta. Mas o restaurante era daqueles com saladas que não se per-cebia muito bem o que eram e Julia, prevendo isso, optou por uma entrada que pudesse comer com um garfo e um segundo prato que não exigisse mestria com os talheres. Já Rob escolhera uma salada, que parecia muito bonita na ementa mas tinha uns tentáculos ver-des tão longos que não os conseguia meter na boca sem salpicar a cara. Em obediência a uma qualquer nostalgia da grande cozinha dos anos 1990, o segundo prato era um preparado de três andares de bife, batatas e cebola que mais parecia a montanha dos Encon-tros Imediatos do Terceiro Grau. Meter alguma coisa na boca era como raspar a camada geológica do monte Rushmore.

Mas nada disso teve importância: Rob e Julia tinham ligado.

educação, os interesses académicos em comunicação, o trabalho de relações públicas e respetivas frustrações e a sua visão acerca da empresa que um dia criaria, recorrendo ao marketing viral.

Julia debruçava-se para Rob enquanto explicava a sua missão na vida. Dava rápidos goles de água e mastigava incrivelmente de-pressa, como um esquilo, para poder continuar a falar. O entusias-mo dela era contagiante. «Pode ser fantástico!», entoava ela. «Pode mudar tudo!»

Noventa por cento da comunicação emocional é não verbal. Os gestos são uma linguagem inconsciente que usamos não só para expressar os nossos sentimentos, mas para os formar. Um gesto ajuda à formação de um estado interior. Rob e Julia lam-biam os lábios, debruçavam-se nas cadeiras, entreolhavam-se pelo

inconsciente próprios de quem namora. Sem saber, Julia exibiu a inclinação de cabeça própria das mulheres para indicar interesse

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sexual, um leve pender da cabeça que põe o pescoço a descoberto. -

mento, o seu eu supostamente tão duro. Agora, ali estava ela, feita sósia da Marilyn Monroe: atirando a franja, levantando os braços

Julia não tinha ainda consciência de como gostara de conversar com Rob. Mas a empregada registou a coloração dos seus rostos e isso agradou-lhe, porque os homens no seu primeiro encontro dão as melhores gorjetas de todas. Só dias mais tarde é que a importância desse almoço cristalizou. Durante décadas ainda por vir, Julia havia

-nas que o seu futuro marido comeu todo o pão que havia no cesto.

E no meio de tudo isso, a conversa foi correndo.As palavras são o combustível do namoro. Outras espécies con-

quistarão os parceiros mediante danças em crescendo, mas os hu-manos usam a conversa. Geoffrey Miller observa que a maior parte dos adultos tem um vocabulário de cerca de sessenta mil palavras. Para construir um tal vocabulário, as crianças têm de aprender entre dez e vinte palavras por dia entre as idades de 18 meses e 18 anos. Apesar de as cem palavras mais frequentes constituírem sessenta por cento de todas as conversas. As quatro mil palavras mais co-muns constituem 98 por cento das conversas. Porque se darão os humanos ao trabalho de aprender as restantes 56 mil?

Miller acredita que os humanos aprendem essas palavras para melhor poderem impressionar e selecionar os potenciais parceiros. E calcula que, se um casal falar duas horas por dia e proferir em mé-

--histórica), esse casal terá trocado cerca de um milhão de palavras

para se ofender, maçar ou irritar mutuamente. São ampla oportu-nidade para discutir, fazer as pazes, explorar e emendar-se. Se um

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casal continua junto depois de tudo isto, há boas probabilidades

Os pais de Harold estavam apenas nos primeiros milhares do que viriam a ser, ao longo das suas vidas, milhões e milhões de palavras. E as coisas corriam lindamente. A acreditar nos estereótipos cultu-rais, julgar-se-ia que as mulheres são o mais romântico dos dois se-xos. Na realidade, há indícios de que os homens se apaixonam mais depressa e que subscrevem a convicção de que o verdadeiro amor é eterno. Razão por que a maior parte da conversa, nessa primeira noite e durante vários meses, teve que ver com fazer Julia baixar as defesas.

Os amigos de Rob, se o pudessem ver agora, não o reconhece-riam. Falava pensadamente das suas relações e parecia completamen-te alheado dos seus dotes físicos, embora, noutras circunstâncias, já tivesse sido visto a contemplar os bíceps durante longos minutos. Nem um sinal de cinismo. Apesar de os homens passarem normal-mente dois terços de uma conversa a falar de si próprios, nesta con-versa, Rob falava realmente dos problemas de Julia. O inquérito de David Buss sugere que a bondade é a qualidade mais desejada por homens e mulheres num parceiro sexual. O namoro consiste, em larga medida, em manifestações de simpatia, nas quais os parceiros tentam demonstrar mutuamente o grau de compaixão de que são capazes, como sabe bem de mais quem já viu namorados interagir com cães ou crianças.

Claro que há outros e menos nobres cálculos em progresso du-rante a escolha de um parceiro. Como experimentados corretores da Bolsa, as pessoas reagem de forma previsível, embora incons-cientes, às cotações da bolsa social. Inconscientemente, procuram o maior rendimento possível para o seu valor de mercado.

Quanto mais rico for o homem, mais jovem será a mulher que terá como parceira. Quanto mais bonita a mulher, mais rico o homem. A beleza de uma mulher é um índice extraordinário do rendimento do seu futuro marido.

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Um homem com lacunas em uma das categorias de status, poderá compensar com outra. Vários estudos de encontros online demons-tram que os homens baixos podem ter o mesmo sucesso que os ho-mens altos no mercado de encontros se ganharem mais. Gunther Hitsch, Ali Hortacsu e Dan Ariely calcularam que um homem com um metro e sessenta pode ter o mesmo sucesso que um homem com um metro e oitenta, desde que ganhe mais 175 mil dólares por ano. Um homem afro-americano pode ter o mesmo sucesso entre as mu-lheres brancas se ganhar mais 154 mil dólares anuais do que um ho-mem branco com atributos similares. (As mulheres são muito mais renitentes do que os homens a namoros fora do seu grupo étnico.)

A juntar a isto, Rob e Julia iam fazendo este tipo de cálculos in-conscientes – avaliando rácios de aspeto físico/rendimento, calcu-lando balanços social/capital. E cada indício sugeria que tinham encontrado um parceiro.

O passeio

A cultura humana existe, em larga medida, para conter os desejos naturais da espécie. A tensão do namoro tem origem na necessidade de abrandar quando os instintos querem atirar-se de cabeça. Tanto Rob como Julia estavam neste ponto, sujeitos a um impulso podero-so, e ambos com medo de dizer alguma coisa demasiado veemente e imperativa. Os namoros bem-sucedidos são aqueles que seguem o ritmo e a melodia de uma relação. Através de um processo de ava-liação mútua e contenção, os parceiros conseguirão ou não atingir o seu sincronismo pessoal e, através desse processo, estabelecerão as regras implícitas que regerão o seu comportamento recíproco.

«A maior felicidade que o amor pode proporcionar é a primei-ra pressão de mãos entre si e o ser amado», observou o escritor francês Stendhal. Chegados a este ponto, já os pais de Harold se

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entregavam àquele tipo de intercâmbio verbal que parece menos conversa e mais uma dança. Quando se levantaram da mesa, a Rob apeteceu-lhe pousar a mão nas costas de Julia para guiá-la até à porta, mas teve medo de que ela não gostasse da intimidade im-plícita no gesto. Julia lamentava em silêncio ter trazido uma mala quase do tamanho de uma furgoneta, com espaço para livros, te-lefones, agendas e talvez para uma trotineta. Durante a manhã, receara que levar uma mala pequena parecesse demasiado espe-rançoso, namoradeiro... E ali estava ela, numa das mais importan-tes refeições da sua vida... e com a mala errada!

Rob acabou por lhe tocar no braço enquanto caminhavam para -

dando pelo passeio, ao longo das papelarias chiques, inconscien-tes de que faziam o passeio dos namorados: corpos junto um do outro, varrendo com olhos encantados o espaço à sua frente. Julia sentia-se verdadeiramente confortada junto de Rob. Durante toda

-to e obcecado que James Stewart lançava a Kim Novak em Vertigo, mas um olhar que a puxava para si.

Rob, por seu lado, tremia enquanto acompanhava Julia até ao carro. O coração palpitava-lhe e a respiração era acelerada. Sentia que fora extraodinariamente sagaz durante o jantar, encorajado pelo olhar resplandecente dela. Invadiam-no sensações vagas que mal compreendia. Desinibido, perguntou se a podia ver amanhã e, é claro, ela disse que sim. Não queria dar-lhe um aperto de mão, mas um beijo seria atrevimento a mais. Por isso, segurou-lhe o braço e roçou a sua face na dela.

Enquanto se semibeijavam, Julia e Rob aspiraram as feromo-nas um do outro. Os seus níveis de cortisol caíram. O olfato é um sentido surpreendentemente poderoso em situações como esta. As pessoas que perdem o olfato sofrem uma deterioração emocional maior do que as que perdem a visão. Isto porque o olfato é uma

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forma poderosa de ler as emoções. Numa experiência realizada no Monell Center, investigadores pediram a um número de homens e mulheres que colassem peças de gaze nas axilas e a seguir vissem

muito bem pagos – tinham de cheirar as peças de gaze. E, de alguma forma, acertaram, em percentagens muito superiores às do acaso, nas peças de gaze que tinham o cheiro do riso e nas que tinham o cheiro do medo – e as mulheres obtiveram melhores resultados do que os homens nesta experiência.

Numa fase mais adiantada da relação, Rob e Julia provaram a saliva um do outro, recolhendo informação genética. Segundo um famoso estudo de Claus Wedekind, da Universidade de Lausanne, as mulheres sentem-se atraídas por homens cujo código de antí-genos leucocitários humanos (HLA) seja diferente do seu. Julga-se que códigos complementares de HLA dão origem a melhores sis-temas imunitários nas crias.

Assistidos pela química e levados pelos sentimentos, Rob e Julia ambos, que aquela fora uma das mais importantes entrevistas das suas vidas. Na verdade, aquelas tinham sido as mais importantes duas horas da vida de qualquer um deles, pois não há decisão mais relevante para a felicidade perene do que a decisão sobre a pessoa com quem se casa. Durante esse início de tarde, ambos começaram a tomar uma decisão.

O almoço fora maravilhoso. Mas tinham também passado num exame que faria qualquer admissão à faculdade parecer uma brin-cadeira. Cada um deles gastara os últimos 120 minutos a desem-penhar delicadas tarefas sociais. Demonstraram graça, cortesia, empatia, tato e sentido de oportunidade. Seguiram o guião social a que obedecem os primeiros encontros na sua cultura. Cada um deles realizou milhares de juízos discriminatórios. Avaliaram as res-petivas reações emocionais com hierarquizações tão subtis que

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-dos –franzir de cara, um olhar, uma piada partilhada, uma pausa expectante. Colocaram-se mutuamente sob uma série de visores e

si próprios. A cada minuto, franquearam um ao outro passos cada vez mais próximos da intimidade dos seus corações.

Estas tarefas mentais só parecem fáceis porque toda a história de vida na Terra os preparara para esse momento. Rob e Julia não pre-cisaram de frequentar um curso sobre este tipo de decisões sociais, ao contrário do que tiveram de fazer com, por exemplo, a matemá-tica. O trabalho mental fora feito sobretudo de forma inconsciente. Não exigia esforço. Aparecia naturalmente.

Nesta altura, não conseguiam traduzir as suas conclusões por palavras, porque as sensações ainda não tinham ganho a coerên-cia de uma mensagem consciente. Mas a decisão de se apaixona-rem iria como que inchar dentro de cada um deles. Não parecia que tivessem feito uma escolha, parecia que uma escolha os toma-ra. Formara-se um desejo do outro. E passaria ainda algum tempo antes de um e outro compreender que uma vontade do outro já há muito se formara. O coração tem razões, disse Blaise Pascal, que a razão desconhece.

Mas é assim que a tomada de decisão funciona. É assim que a consciência daquilo que queremos acontece – não só no que respeita ao casamento, mas em muitos outros domínios impor-tantes da vida. Decidir-se quem se ama não é uma estranha e alienígena forma de tomada de decisões, um interlúdio român-tico no meio de uma vida normal. Pelo contrário, as decisões sobre quem amar são versões mais intensas do tipo de decisões que tomamos ao longo da vida, desde o prato que pedimos até à carreira que escolhemos. A tomada de decisões é um processo necessariamente emocional.

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O papel do amor

As revoluções sobre o entendimento que temos de nós próprios começam da forma mais estranha. Uma das descobertas que nos ajudaram a compreender a relação entre emoção e tomada de de-cisão começou com Elliot, cuja história se tornou umas das mais famosas no domínio da investigação do cérebro. Elliot sofrera le-sões nos lobos frontais em consequência de um tumor. Elliot era inteligente, bem informado e diplomático. Era dotado de uma vi-são realista do mundo. Mas, depois da intervenção cirúrgica, Elliot

dedicava a alguma coisa, acabava por ignorar as partes mais impor-tantes da tarefa e a mais pequena distração bastava para o desnor-

ali sentado a relê-lo. Ou gastava um dia inteiro a pensar qual seria o melhor sistema de arquivo. Passava horas a tentar decidir onde almoçar, e ainda assim não conseguia optar. Fez investimentos in-sensatos que lhe custaram todas as economias. Divorciou-se, ca-sou com outra mulher de quem a família não gostou, e depressa se divorciou novamente.

Elliot consultou o cientista António Damásio, que o submeteu a uma série de testes de avaliação. Os testes mostraram que Elliot tinha um QI superior. Que tinha excelente memória para núme-

com base em informação incompleta. Mas, ao longo das muitas horas de conversa que manteve com Elliot, Damásio notou que o homem nunca demonstrou emoção de espécie alguma. Era capaz de relatar a tragédia que se abatera sobre ele sem demonstrar o me-nor sinal de tristeza.

Damásio mostrou-lhe imagens horríveis e traumáticas de terra-motos, fogos, acidentes e inundações. Elliot compreendeu, como se pressupunha que reagisse emocionalmente perante tais imagens, só

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que não sentiu realmente nada. Damásio começou, então, a inves-tigar se as poucas emoções de Elliot desempenhavam algum papel nas suas decisões desastrosas.

Uma nova série de testes mostrou que Elliot compreendia como imaginar as diferentes opções ao tomar uma decisão. Era capaz de

era capaz de se preparar para optar por uma entre um complexo leque de possibilidades.

O que Elliot era incapaz de fazer era decidir propriamente. Era incapaz de atribuir um valor determinado a opções diferentes. Ou, nas palavras de Damásio, «a sua paisagem de tomada de decisões [era] desesperadamente plana».

Damásio. Um homem de meia-idade, que também perdera as fun-ções emocionais devido a uma lesão cerebral fora entrevistado

-tivas para a próxima visita. O homem puxou a agenda e começou a listar os prós e contras de cada uma das alternativas. Continuou

de data, condições meteorológicas previsíveis para cada dia, coin-cidências com outros compromissos. «Foi necessária uma enorme disciplina para ouvir tudo sem dar um murro na mesa e dizer-lhe para parar», escreveu Damásio. Mas ele e os seus assistentes limi-

do homem e marcou-lhe uma data. Sem uma pausa, o homem res-pondeu: «Está bem», e foi-se embora.

«Este comportamento é um bom exemplo dos limites da razão pura», escreveu Damásio no seu livro O Erro de Descartes: Emo-ção, Razão e o Cérebro Humano. É um exemplo de como a falta de emoção conduz a comportamentos autodestrutivos e perigosos. As pessoas privadas de emoção não vivem vidas lógicas e bem

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Vivem vidas tontas. Nos casos mais extremos, tornam-se socio-patas, impávidos perante a barbárie e incapazes de sentir o sofri-mento dos outros.

A partir destas e de outras experiências, Damásio desenvolveu uma teoria, «hipótese do marcador somático», sobre o papel da emoção no conhecimento humano. Partes da teoria são contesta-das – os cientistas divergem sobre quanto o cérebro e o corpo in-teragem –, mas para Damásio são as emoções medem o valor de uma coisa e ajudam-nos inconscientemente a traçar a rota da nos-sa vida, afastando-nos daquilo que provavelmente nos causará so-frimento e aproximando-nos do que pode contribuir para a nossa realização. «Os marcadores somáticos não deliberam por nós. Assis-tem a deliberação pondo em relevo algumas opções (sejam perigo-sas ou favoráveis) e subtraindo-as depois rapidamente de qualquer consideração posterior. Podemos entendê-los como um sistema de

não, para avaliar os cenários extremamente diversos do futuro an-tecipadamente posto perante nós. Podem ser entendidos como um mecanismo produtor de parcialidade.»

Ao longo do dia, somos bombardeados por milhões de estímu-los, uma ruidosa e borbulhante confusão de sons, visões, cheiros e movimentos. Mas eis que, perante a pirotecnia e o caos, partes diver-sas do cérebro e do organismo interagem para formar um sistema de posicionamento emocional (SPE). Tal como o GPS, ou sistema de posicionamento global, o SPE pressente a nossa situação atual e compara-a com o grande banco de dados que tem guardado na memória. Faz determinados juízos sobre se a rota que seguimos nos conduzirá a um desenlace bom ou mau e, depois, reveste cada pessoa, local ou circunstância de uma camada de emoção (medo ou entusiasmo, admiração ou repugnância) e de uma reação cor-

andar») que nos ajudam a navegar pelos nossos dias.

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Imaginemos que à mesa do restaurante alguém estende o braço e lhe toca na mão. Instantaneamente, a mente passará em revista o banco de memória em busca de acontecimentos similares. Tal-vez haja uma cena de Casablanca em que Humphrey Bogart toca na mão de Ingrid Bergman. Talvez tenha sido um encontro nos tem-pos do liceu. Talvez uma distante memória da mãe estendendo os braços sobre a mesa para dar as mãos, na infância, durante uma ida ao McDonald’s.

-gir. O coração acelera. Aumenta a adrenalina. Abre-se um sorriso.

cérebro e do cérebro para o corpo. O corpo não vive separado do cérebro – foi esse o erro de Descartes. O físico e o mental estão ligados em redes complexas de reação e contrarreacções, e dessa interação emerge um valor emocional. O toque na mão já fora re-

Instantes depois, desencadeia-se nova série de convoluções, uma série mais funda de rotas de informação entre as partes evolucio-nárias mais antigas do cérebro e as mais recentes, mais modernas,

-ro sistema e estabelecer entre elas distinções mais judiciosas. («Esta mão que avança para me tocar não é bem como a mão da minha mãe. É mais como a mão de alguém com quem quis ter relações sexuais.») Pode também emitir sinais de alarme que levem a uma contenção inteligente. («Sinto-me tão feliz que me apetece pegar na mão e cobri-la de beijos, mas tenho outras memórias de pânico quando me viram agir assim.»)

Durante grande parte desta etapa o entendimento consciente está ainda ausente, argumenta Joseph LeDoux, outro destacado investiga-dor destes domínios. O toque na mão foi sentido e ressentido, ana-lisado e reanalisado. O organismo reagiu, foram concebidos planos,

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preparadas reações, e toda esta atividade complexa aconteceu abaixo da superfície do entendimento e num piscar de olhos. E este processo não ocorre apenas durante um encontro, por causa de um toque de mão. Acontece no supermercado, quando se passa em revista uma prateleira de cereais, no centro de emprego, quando são consideradas várias hipóteses de carreira. O sistema de posicionamento emocional vai revestindo cada possibilidade de valor emocional.

-pe no consciente – o desejo de optar por aquela caixa de cereais ou aquele emprego, de apertar aquela mão, de tocar naquela pessoa,

-fundezas. Pode não ser um impulso brilhante – às vezes a emoção desnorteia-nos e outras guia-nos. E não nos controla. Impulsiona e guia, mas pode ser ignorada. Como escreve LeDoux, «os estados cerebrais e as reações do organismo são fatores fundamentais da emoção, e os sentimentos conscientes são adornos na estrutura do bolo emocional».

As implicações

A compreensão do processo de tomada de decisão conduz-nos a algumas verdades essenciais. Razão e emoção não são indepen-

nela. A emoção atribui um valor às coisas, e a razão só pode fazer escolhas com base nessas valorações. A mente humana é capaz de pragmatismo porque, no fundo, é romântica.

A mente ou o eu não são uma coisa singular. A mente é uma série complicada de processos paralelos. Não há comandante ao leme a tomar decisões. Não há teatro cartesiano – um lugar onde se reunissem todos os diferentes processos e possibilidades para serem hierarquizados e onde se planeariam as ações. Ao contrário,

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e como diz o prémio Nobel Gerald Edelman, o cérebro parece um ecossistema, uma rede de associações complexas de impulsos, pa-drões, reações e sensações que comunicam e respondem a diferen-tes regiões do cérebro, competindo pelo controlo do organismo.

No século passado, a tomada de decisão era encarada como um pon-to no tempo. Reuniam-se factos, circunstâncias e indícios e, depois, optava-se. Na realidade, é mais correto dizer que somos peregrinos na paisagem social. Enquanto deambulamos, a mente faz um núme-

sonhos, desejos e maneiras de fazer as coisas. A chave para uma vida bem vivida é treinar as emoções para que emitam os sinais certos, e ser-se sensível aos seus chamamentos subtis.

Rob e Julia não eram as pessoas mais cultas do mundo nem as mais profundas. Mas sabiam como amar. Sentados à mesa do res-taurante, centrando a sua atenção um no outro, as emoções iam en-

inteiras de pequenas decisões, reorientando, gradualmente, as suas vidas. «Todo o processamento de informação é emocional», nota Kenneth Dodge, «no sentido em que a emoção é a energia que im-

seu turno, a experiência e a expressão dessa atividade.»Rob e Julia estavam a valorar-se mutuamente. Sentiam-se arreba-

tados pela forte e deliciosa corrente que os transportava para onde desejavam febrilmente ir. Já não tinha que ver com o tipo de aná-lise que a Julia reguila usara ao vislumbrar Rob pela primeira vez. Tratava-se, sim, de uma avaliação holística segundo um conjunto de regras completamente diferentes. Julia viria a apaixonar-se e a inventar, depois, as razões para a sua atração. Nesse dia, ela e Rob

suas vidas.


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