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O corpo-objeto em O Conto da Aia a desperformatização do ... › ppgletras ›...

Date post: 06-Jul-2020
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512 O corpo-objeto em O Conto da Aia a desperformatização do corpo da mulher no universo distópico do romance The body as an object in The Handmaid’s Tale the not performance of women’s body in the dystopian universe of the novel Luana de Carvalho Krüger 1 Eduardo Marks de Marques 2 Abstract: The Handmaid’s Tale (2006), published for the first time in 1985, by Margaret Atwood is a dystopian novel which presents a totalitarian theocracy that assumes the power of United States in a period when the human fertility is undermined. In this scene, the women are divided in different castes, having their rights and duties delimited in their social role. One of those castes is the Handmaid’s, women who are supposedly fertile and are allotted to different houses, whose men work for the government, and once a month must keep sexual relations with them in order to give birth to a child for that family. In the novel the Handmaids are cared and kept under observation in an environment where the body’s care is essential, however, there is not recognition of this body as a subject, meaning, the Handmaids are a body as an object that should be preserved, although after the purpose is achieved they can be eliminated. According to Marisa Mello de Lima (2013) the studies among the body in the contemporaneity observe it as vector of the subject performative manifestations, the body takes its place beyond its functionality, so that the image influences, choices and social construction put the body in the focus of a performativity which is truly connected to the subject position in the society. In this perspective, it is observed that The Handmaid’s Tale though there is a body valuation, the women-subject is nullified in the handmaid’s caste, setting them as reproductive and disposable bodies in adverse social circumstances. Thus, the women-subject and mother-subject performance is nullified, emphasizing the bodies’ maintenance from the lack of subject performance, in other words, the nullifying of the body as a performance place, to the standard of an object-performance. In this paper, we intend to discuss the body importance in the discussions of subject performance and recognition from the absence imposed by the Handmaids and subversion of some character in the novel. Keywords: Dystopia, Body, Performance, Body as subject, Object-body. Resumo: O Conto da Aia (2006), de Margaret Atwood, publicado pela primeira vez em 1985, é um romance distópico que apresenta uma teocracia totalitária que assume o poder nos Estados Unidos em um período em que a fertilidade humana está comprometida. Nesse cenário, as mulheres são divididas em diferentes castas, tendo seus direitos e deveres delimitados aos seus papéis sociais. Uma dessas castas são as Aias, mulheres que supostamente são férteis e que são designadas a diferentes casas de homens ligados ao governo e uma vez ao mês devem manter relações sexuais com eles na tentativa de gerar um filho para aquela família. No romance, as Aias são cuidadas e mantidas sob observação em um ambiente onde o cuidado com o corpo torna-se fundamental, no entanto, não há o reconhecimento desse corpo como sujeito, ou seja, as Aias são um corpo- objeto que deve ser conservado, mas, quando atingido o objetivo, podem ser descartadas. De acordo com Marisa Mello de Lima (2013), os estudos acerca do corpo na contemporaneidade observam-no como vetor das manifestações performáticas do sujeito, o corpo ganha espaço para além de sua funcionalidade, de modo que as influências de imagem, escolhas e construção social colocam o corpo no foco de uma performatividade que está diretamente ligada a posição do sujeito na sociedade. Nessa perspectiva, observa-se que em O Conto da Aia, embora haja uma valorização do corpo, o sujeito-mulher é anulado na casca das Aias, colocando-as como objetos reprodutivos e descartáveis em circunstâncias adversas ao esperado socialmente. Logo, a performance de sujeito-mulher e mulher-mãe é anulada, enfatizando a manutenção dos corpos a partir da desperformatização do sujeito, ou seja, anulação do corpo como espaço performático dos sujeitos, para o desempenho de uma ‘performance-objeto’. Nesse trabalho, pretendemos discutir a importância do corpo nas discussões de performance e reconhecimento de sujeito a partir da ausência imposta pelas Aias e subversão de algumas personagens do romance. Palvras-chave: Distopia, Corpo, Performance, Corpo-sujeito, Corpo-objeto. 1 Graduada em Letras Português/Inglês e respectivas literaturas pela UFPel. Mestranda do Programa de Pós- Graduação em Letras Literatura Comparada da UFPel. E-mail: <[email protected]>. 2 Professor Associado Nível 1 da UFPel. E-mail: <[email protected]>.
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O corpo-objeto em O Conto da Aia – a desperformatização do corpo da mulher no

universo distópico do romance

The body as an object in The Handmaid’s Tale – the not performance of women’s body in

the dystopian universe of the novel

Luana de Carvalho Krüger1

Eduardo Marks de Marques2

Abstract: The Handmaid’s Tale (2006), published for the first time in 1985, by Margaret Atwood is a dystopian

novel which presents a totalitarian theocracy that assumes the power of United States in a period when the

human fertility is undermined. In this scene, the women are divided in different castes, having their rights and

duties delimited in their social role. One of those castes is the Handmaid’s, women who are supposedly fertile

and are allotted to different houses, whose men work for the government, and once a month must keep sexual

relations with them in order to give birth to a child for that family. In the novel the Handmaids are cared and

kept under observation in an environment where the body’s care is essential, however, there is not recognition of

this body as a subject, meaning, the Handmaids are a body as an object that should be preserved, although after

the purpose is achieved they can be eliminated. According to Marisa Mello de Lima (2013) the studies among

the body in the contemporaneity observe it as vector of the subject performative manifestations, the body takes

its place beyond its functionality, so that the image influences, choices and social construction put the body in

the focus of a performativity which is truly connected to the subject position in the society. In this perspective, it

is observed that The Handmaid’s Tale though there is a body valuation, the women-subject is nullified in the

handmaid’s caste, setting them as reproductive and disposable bodies in adverse social circumstances. Thus, the

women-subject and mother-subject performance is nullified, emphasizing the bodies’ maintenance from the lack

of subject performance, in other words, the nullifying of the body as a performance place, to the standard of an

object-performance. In this paper, we intend to discuss the body importance in the discussions of subject

performance and recognition from the absence imposed by the Handmaids and subversion of some character in

the novel.

Keywords: Dystopia, Body, Performance, Body as subject, Object-body.

Resumo: O Conto da Aia (2006), de Margaret Atwood, publicado pela primeira vez em 1985, é um romance

distópico que apresenta uma teocracia totalitária que assume o poder nos Estados Unidos em um período em que

a fertilidade humana está comprometida. Nesse cenário, as mulheres são divididas em diferentes castas, tendo

seus direitos e deveres delimitados aos seus papéis sociais. Uma dessas castas são as Aias, mulheres que

supostamente são férteis e que são designadas a diferentes casas de homens ligados ao governo e uma vez ao

mês devem manter relações sexuais com eles na tentativa de gerar um filho para aquela família. No romance, as

Aias são cuidadas e mantidas sob observação em um ambiente onde o cuidado com o corpo torna-se

fundamental, no entanto, não há o reconhecimento desse corpo como sujeito, ou seja, as Aias são um corpo-

objeto que deve ser conservado, mas, quando atingido o objetivo, podem ser descartadas. De acordo com Marisa

Mello de Lima (2013), os estudos acerca do corpo na contemporaneidade observam-no como vetor das

manifestações performáticas do sujeito, o corpo ganha espaço para além de sua funcionalidade, de modo que as

influências de imagem, escolhas e construção social colocam o corpo no foco de uma performatividade que está

diretamente ligada a posição do sujeito na sociedade. Nessa perspectiva, observa-se que em O Conto da Aia,

embora haja uma valorização do corpo, o sujeito-mulher é anulado na casca das Aias, colocando-as como

objetos reprodutivos e descartáveis em circunstâncias adversas ao esperado socialmente. Logo, a performance de

sujeito-mulher e mulher-mãe é anulada, enfatizando a manutenção dos corpos a partir da desperformatização do

sujeito, ou seja, anulação do corpo como espaço performático dos sujeitos, para o desempenho de uma

‘performance-objeto’. Nesse trabalho, pretendemos discutir a importância do corpo nas discussões de

performance e reconhecimento de sujeito a partir da ausência imposta pelas Aias e subversão de algumas

personagens do romance.

Palvras-chave: Distopia, Corpo, Performance, Corpo-sujeito, Corpo-objeto.

1 Graduada em Letras Português/Inglês e respectivas literaturas pela UFPel. Mestranda do Programa de Pós-

Graduação em Letras – Literatura Comparada da UFPel. E-mail: <[email protected]>. 2 Professor Associado Nível 1 da UFPel. E-mail: <[email protected]>.

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O corpo tem sido tema relevante para a leitura de muitas distopias, desde a obra 1984

(1949), escrita por George Orwell, até trilogias atuais como Jogos Vorazes, sendo os livros

Jogos Vorazes (2010), Em chamas (2011) e A esperança (2011), de Suzanne Collins temos os

corpos das personagens sendo manipulados e modificados. Com os avanços tecnológicos e as

perspectivas de mudanças do futuro, a intervenção nos corpos fica mais evidente com o

objetivo de deixá-los mais fortes e mais adaptados ao meio, sejam mudanças puramente

estéticas ou com um fim funcional.

Há, portanto, o que identificamos como uma maior valorização dos corpos, logo, o que

dentro de algumas religiões e alguns dogmas da sociedade é compreendido como matéria,

passa a ser fonte de expressão e manifestação de aspectos do sujeito, relevantes socialmente.

O corpo fala. Palavras como empoderamento, por exemplo, não estão sendo usadas

inocentemente, de fato, o corpo manifesta formas de domínio, de lugar, de política e essas

manifestações além de refletir socialmente, também são apresentadas na literatura.

Em O Conto da Aia (2006) de Margaret Atwood, temos uma distopia que atualmente

despertou interesse de muitos leitores pelo cenário político em que se encontra os Estados

Unidos, tendo em vista o governo de Donald Trump, que está em uma posição de

conservadorismo e opressão de diferentes manifestações sociais. A obra mostra uma outra

ideia de corpo que parece desfazer o que se está construído política e socialmente. Ainda que

o livro tenha sido publicado em 1985, ao compreendermos as possíveis repressões de um

governo teocrático totalitário no cenário político atual, percebemos o quanto de retrocesso da

liberdade dos corpos teríamos que enfrentar socialmente.

No livro entramos em contato com a infertilidade sem nenhum motivo aparente e,

embora não tenhamos explicações ao certo do ocorrido e do motivo pelo qual muitas

mulheres deixaram de ser férteis, somos apresentados ao cenário em que o governo colocou

essas mulheres, principalmente através das medidas políticas que os governantes tomaram.

Elas são divididas em diferentes castas: Esposas, Marthas, Salvadoras, Tias e as Aias, sendo a

última casta, mulheres que são possivelmente férteis e que devem manter relações sexuais

com os Comandantes, ligados ao governo, e gerar um filho para as suas famílias. Ao final

desse processo, ou ainda quando não há sucesso, essas mulheres são descartadas, ou enviadas

para outras famílias.

Durante a estadia nas casas dos Comandantes, as Aias recebem uma alimentação

saudável, sem excessos, e não devem realizar nenhum tipo de atividade que possa

comprometer os seus corpos. Desse modo, compreendemos a valorização do corpo, no

entanto, observamos que esse corpo não carrega consigo a ideia de sujeito atrelada, mas sim

de um objeto com uma funcionalidade específica e completamente descartável a partir de sua

improdutividade e/ou infertilidade. A performance de sujeito é anulada, fazendo com que o

corpo não seja mais o vetor de subjetividades, mas somente um objeto.

Na última década, os romances distópicos ganharam maior visibilidade no cenário da

literatura juvenil, junto com eles, o mercado de venda desses produtos também foi

consolidado, promovendo divulgação literária e adaptações fílmicas. No entanto, é sabido que

os romances distópicos, em que uma nova perspectiva do futuro não muito amistosa e positiva

é colocada diante dos nossos olhos, apresentam-se como um alerta para o que está por vir, ou

ainda, um “aviso de incêndio, o qual, como todo recurso de emergência, busca chamar a

atenção para que o acontecimento perigoso seja controlado, e seus efeitos, embora já em

curso, sejam inibidos.” (HILÁRIO, 2013, p. 202, grifo do autor). Assim, compreendemos que

os romances distópicos apresentam esses questionamentos políticos que nos levam a observar

o nosso presente histórico, bem como o momento da narrativa.

Dentro dessas narrativas encontramos espaços caóticos, governos totalitários,

ambientes destruídos, qualidade de vida em níveis baixos para grande parte da população.

Além do mencionado acima, conseguimos perceber que muitas distopias apresentam

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interferências nos corpos e colocam-nos também com um espaço de discussão que está para

além de sua materialidade. Romances como a trilogia MaddAddam, sendo em ordem Oryx

and Crake (2003), The year of the flood (2009) e MaddAddam (2013), de Margaret Atwood,

Deuses de Pedra (2012) de Jeanette Winterson, para citar algumas obras, colocam as

mudanças no corpo, as adaptações genéticas e os avanços tecnológicos como um vetor para as

alterações dos humanos.

Valorizar o corpo significou ampliar o seu conceito, compreendendo-o para além de

um mero espaço físico ocupado por um conjunto de órgãos, pois passa a ser nele o

lugar em que se dá, se realiza e se manifesta não só as suas aptidões e contingências

físicas, mas também e sobretudo o conjunto complexo de reciprocidade e inter-

relações entre as emoções, a sexualidade, sentimentos, os pensamentos e os desejos

humanos, tornando assim a noção ou mesmo o conceito de “corpo” em algo

eminentemente rico e complexo. (LIMA, 2013, p. 3)

Compreendemos que há uma ligação entre esse caos anunciado pelos romances

distópicos e o corpo alterado, uma das justificativas são os avanços tecnológicos atrelados ao

capitalismo, na medida em que tais avanços caminham para melhorias nos corpos, o que

podemos considerar um ponto positivo, eles também abrem espaço para modificações que

estão atreladas ao desejo, conceito que move os investimentos capitalistas de modo geral, de

modo que se cria o desejo, as pessoas assumem o mesmo para elas o que gera o uso

desenfreado e o movimento da economia de cosméticos e cirurgias estéticas. Ao compararmos

com o passado, percebemos que:

Enquanto nas sociedades pré-modernas, as modificações e adereços do corpo eram

regidos por significados tradicionais e ritualizados, o corpo na modernidade tem sido

secularizado e é mais frequentemente tratado como um fenômeno a ser formado

como expressão da identidade de um indivíduo, em vez de em conformidade com

algum sistema de significado tradicionalmente dado. Na cultura contemporânea, nos

tornamos responsáveis pelo design de nossos próprios corpos (NEGRIM, 2008, p. 9-

10, tradução nossa)3

O alerta para o caos encontra-se ao passo em que o que é anunciado nos romances já

acontece nos nossos corpos atualmente, logo as transformações nos corpos são constantes e

podem chegar a níveis mais altos de alterações genéticas à medida que tais estudos e tais

interesses também aumentam. Transformações como as dos romances, nos colocam em um

ponto-chave das discussões acerca do corpo: o pós-humanismo, o corpo pós-humano e suas

implicações. Logo,

[c]onforme postulam os próprios defensores do movimento, a “pessoa” possuidora

de capacidades físicas e intelectuais sem precedentes, a entidade possuidora dos

princípios de sua auto formação e um caráter transcendente, porque potencialmente

imortal, é pós-humana, seja ciborgue ou máquina de inteligência artificial. Quem

atinge esse ponto não mais pode ser chamado de humano, e é para se chegar até o

mesmo converter-se em pós-humanos que muitos crentes na tecnologia vêm se

organizando desde o final do século XX. (RÜDIGER, 2008, p. 142, grifo do autor)

Ao passo que não podemos prever todas as modificações e nem mesmo o quanto isso

poderá trazer benefícios para a humanidade, também não poderíamos desconsiderar tais

3 “While in premodern societies, modifications and adornments of the body were governed by traditional,

ritualized meanings, the body in modernity has been secularized and is more frequently treated as a phenomenon

to be fashioned as an expression of an individual’s identity, rather than in accordance with some traditionally

given system of meaning. In contemporary culture, we have become responsible for the design of our own

bodies”.

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avanços, pois eles seriam praticamente impossíveis de serem controlados tendo em vista o

jogo de desejo e da publicidade que movimenta o capitalismo no século XXI. O corpo ganha

espaço de discussão de grande relevância, colocando-nos expostos às possíveis mudanças e

possíveis implicações para o que compreendemos como humanos, bem como humanidade.

Além disso, trazer à tona discussões sobre o corpo também nos permite discutir a inversão de

valores que ocorre entre corpo e alma ou corpo e mente, pois se tais avanços caminham para

um aprimoramento e manutenção do corpo e correção de imperfeições biológicas, eles

também colocam o corpo como igualmente valorizado, ou ainda mais valorizado que os

aspectos transcendentes e ou imateriais dos corpos.

Já em O Conto da Aia, o corpo não é mencionado tecnologicamente, não há nenhuma

espécie de modificação genética ocorrendo nas personagens. Ainda que seja um espaço

distópicos, ele não apresenta um futuro com perspectivas tecnológicas avançadas, pelo

contrário, o próprio conservadorismo do governo não permite que tais avanços ocorram.

O livro é dividido em dois momentos: a história de Offred (narradora-personagem) e o

momento em que há acesso ao material que ela, Offred, gravou, sendo o primeiro, segundo

Howells (2006), previsto para o ano de 2005. Desse modo, não haveria como pensar em

muitas adaptações e manutenções do corpo como em distopias que se colocam mais à frente

no tempo. Esse romance é, portanto, “[...] centrado nos abusos dos direitos humanos e

particularmente na opressão das mulheres sob um regime fundamentalista, [...] inteiramente

social e político [...]”4 (HOWELLS, 2006, p. 163), onde as políticas rígidas de um governo

procuram, através da objetificação dos corpos das mulheres Aias, uma forma de manter o

nível de natalidade e prosseguir com o avanço da humanidade. Desse modo,

Atwood nos dá um relato dissidente por uma Aia que foi relegada às margens do

poder político. Essa estratégia narrativa inverte as relações estruturais entre os

mundos público e privado da distopia, permitindo que Atwood reivindique um

espaço feminino de emoções pessoais e identidade individual, destacado por sua

narrativa em primeira pessoa. (HOWELLS, 2006, p. 164, tradução nossa)5

Ainda que o cenário não seja amistoso, há algumas formas de subversão dessas

personagens que conseguem ser evidenciadas na narrativa e que colocam o corpo como ponto

de discussão a partir da narrativa da personagem.

Trinca (2008) afirma que, não somente aspectos estéticos dentro da medicina, mas

também a própria indústria da moda conseguiu determinar influências nos corpos,

principalmente acerca da exposição do corpo, renovando dogmas acerca do que seria

indecente socialmente. No entanto, observamos que, se não há dúvidas acerca dessa

influência, é porque houve abertura política e maior liberdade dos corpos para que isso

pudesse ocorrer e chegar à naturalidade. Nessa perspectiva, notamos que há dois momentos

no romance: pré-governo-totalitário-cristão e pós a ascensão do governo, quando a exposição

dos corpos retrocede e há um período de excesso de pudor, já apontado por Negrim (2008)

acima. No trecho abaixo, percebemos a imposição do governo diante da vestimenta das

mulheres:

Ela está com seu vestido habitual de Martha, que é verde desbotado como um traje

cirúrgico dos tempos anteriores. O feitio de suas roupas é muito parecido com o das

minhas, o vestido comprido escondendo as formas, mas com um avental de peitilho

4 “[…] centered on human rights abuses and particularly the oppression of women under a fundamentalist

regime, […] is entirely social and political […]”. 5 “Atwood gives us a dissident account by a Handmaid who has been relegated to the margins of political

power. This narrative strategy reverses the structural relations between public and private worlds of the

dystopia, allowing Atwood to reclaim a feminine space of personal emotions and individual identity, which is

highlighted by her first-person narrative”.

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por cima e sem a touca com abas brancas e o véu. Ela põe o véu para sair, mas

ninguém se importa muito com quem vê o rosto de uma Martha. [...]

O rosto dela poderia ser gentil se ela sorrisse. Mas o cenho franzido não é nada

pessoal contra mim: é o vestido vermelho que ela desaprova, e o que ele representa.

Ela acha que pode ser contagioso, como uma doença ou qualquer forma de má sorte.

(ATWOOD, 2006, p. 13)

Juntamente com o retrocesso, cria-se um espaço de diferença entre as diferentes castas,

no qual as Aias seriam as menos valorizadas. Além disso, os homens na narrativa possuem

maior liberdade, bem como divertimentos que estão para além de suas obrigações ligadas ao

governo. Dentro desse regime, que também os oprime, eles ainda são livres, ainda usam de

direitos que os mantêm em posição de poder, frequentando prostíbulos, conseguindo objetos

já proibidos, como revistas de moda. Já as mulheres, são colocadas em um outro espaço que

está para além do gênero, incluindo os aspectos sociais e políticos que a narrativa se

apresenta.

Segundo Butler (2016),

[s]e alguém “é” uma mulher, isso certamente não é tudo que esse alguém é; o termo

não logra ser exaustivo, não porque os traços pré-definidos de gênero da “pessoa”

transcendam a parafernália específica de seu gênero, mas porque o gênero nem

sempre se constitui de maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos

históricos, e porque o gênero estabelece interseções com modalidades raciais,

classicistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas.

Resulta que se tornou impossível separar a noção de gênero das interseções políticas

e culturais em que invariavelmente é produzida e mantida. (BUTLER, 2016, p. 21,

grifo da autora)

Dessa maneira, observamos que as performances de gênero em O conto do Aia

acontecem justamente dentro de um padrão político que se coloca como determinante e que

delimita as ações das mulheres. Essas performances são mais livres, em contrapartida, para os

homens que conseguem subverter algumas regras. Compreendemos o conceito de

performance como o modo de posicionar-se no mundo de cada sujeito, tendo em vista as

questões políticas e sociais desse espaço. O gênero, dessa forma, também é performance, ou

seja, constitui-se socialmente.

O fato de a realidade do gênero ser criada mediante performances sociais contínuas

significa que as próprias noções de sexo essencial e de masculinidade ou feminilidade

verdadeiras ou permanentes também são constituídas, como parte da estratégia que

oculta o caráter performativo do gênero e as possibilidades performativas de

proliferação das configurações de gênero fora das estruturas restritivas da dominação

masculina e da heterossexualidade compulsória. (BUTLER, 2016, p. 201, grifo da

autora)

Dentro da narrativa, essas performances seriam restritas e indiscutivelmente

heteronormativizadas, no entanto, é possível perceber algumas disparidades. Observamos essa

diferença quando os Comandantes têm acesso ao que chamam de clube, um lugar onde eles

podem manter relações sexuais com mulheres que não são as Aias e conseguir bebidas. Esse

lugar se assemelha a um prostíbulo, no entanto, devemos lembrar que, de acordo com a ordem

do governo, isso não seria permitido. A seguir temos um diálogo entre Offred e o seu

Comandante no qual percebemos essas diferenças:

— Bem, é assim que chamamos, entre nós. O clube.

— Pensei que esse tipo de coisa fosse estritamente proibido.

— Bem, oficialmente, é — diz ele. — Mas, afinal, todo mundo é humano.

Espero que ele explique isso, mas não o faz, de modo que digo:

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— O que isso significa?

— Significa que não se pode trapacear com a Natureza — diz ele. — A Natureza

exige variedade para homens. É lógico, razoável, faz parte da estratégia de

procriação. É o plano da Natureza. — Não digo nada, de modo que ele prossegue.

— As mulheres sabem disso instintivamente. Por que elas compravam tantas roupas

diferentes, nos velhos tempos? Para enganar os homens levando-os a pensar que

eram várias mulheres diferentes. Uma nova a cada dia.

Ele diz isso como se de fato acreditasse, mas diz muitas coisas assim. Talvez

acredite mesmo, talvez não acredite ou talvez faça ambas as coisas ao mesmo tempo.

Impossível saber em que ele acredita.

— De modo que agora, que não temos roupas diferentes — digo —, vocês apenas

têm mulheres diferentes. — Isso é ironia, mas ele não demonstra ter notado.

— Resolve uma porção de problemas — diz, sem sequer pestanejar. (ATWOOD,

2006, p. 208-209)

Percebemos que os padrões sociais, culturais e políticos que se estabeleceram na

narrativa são da ordem do patriarcado, no qual os desejos dos homens estão frente aos desejos

das mulheres. Desse modo, há uma ideia de natureza que reforça a dicotomia macho/fêmea, a

qual coloca os homens como aqueles que necessitam de “variedade” enquanto elas devem

manter seus desejos internalizados. Há, portanto, uma quebra de regras e uma maior liberdade

aos homens, pois se estes estão ligados ao governo e fazem algo ilegal, possivelmente serão

acobertados pelos próprios membros do governo. As mulheres, no entanto, são colocadas

dentro de castas como uma forma de manter a ordem e a integridade do local, desse modo,

nenhuma delas pode fugir do seu papel, todas acabam “ganhando” deveres que são

limitadores, opressivos, onde não há espaço para manifestarem seus desejos, suas vontades,

onde não conseguem sair do espaço físico e social que lhes foi imposto.

“Como uma Aia privada de seu próprio nome e identidade, ela não tem direitos como

indivíduo, mas, em vez disso, foi recrutada para o serviço sexual ao estado, reduzida pela

doutrina do essencialismo biológico ao seu papel feminino como criadora de criança [...]”

(HOWELLS, 2006, p. 165, tradução nossa)6. As Aias, portanto, são uma propriedade do

governo e possuem importância somente por sua capacidade biológica. O não-nome (somente

determinação de pertencimento a um comandante) e a não identidade desumaniza essas

mulheres e coloca-as em um espaço de não-existência. Assim,

[...] compreender o processo de corporização supõe pensar o corpo como o resultado

de um processo de transformação da natureza, que inclui o corpo humano na

construção com esse processo de transformação e, portanto, como social e

historicamente produzido confirmando o fato de que o corpo humano é resultado da

sociedade e da história. (LIMA, 2013, p. 6)

Segundo Butler (2016), o gênero não é dotado de uma essência, e sim tem uma

impressão, uma ilusão de essência que é mantida através da repetição de performances. Logo,

a natureza feminina, segundo essa visão, é um mito propagado por discursos reguladores que

designam à mulher as performances determinadas na sociedade.

O que percebemos é que as mulheres, no romance, são colocadas em um espaço em

que a performatividade de gênero ganha forte influência política e religiosa, de modo que se não há uma essência e, portanto, as performances de gênero são arbitrárias, no romance são

totalmente controladas quando trata-se de uma mulher, ou seja, um corpo biologicamente

associado a um gênero heteronormativo que impõe um modo de agir diante de determinadas

6 “As a Handmaid deprived of her own name and identity, she has no rights as an individual but instead has

been conscripted into sexual service to the state, reduced by its doctrine of biological essentialism to her female

role as a child breeder […]”.

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situações. O que encontramos são performances prescritas, constrangedoras e mantenedoras

de uma utilização do corpo que elimina toda e qualquer subjetividade do indivíduo.

Se a performance manifesta-se através dos corpos, pois eles são capazes de colocar em

evidência aspectos do nosso modo de agir e colocar-se diante da sociedade, podemos pensar

que a performance das Aias, levando em conta a liberdade que possuíam anteriormente e o

que são determinadas a fazer no presente da narrativa, são muito mais anuladoras e

desperformizantes do que, de fato, livres socialmente.

O corpo é apenas funcional, de modo que cada personagem desempenha um papel

dentro de suas castas, há uniformes que padronizam esses corpos e atividades pré-

estabelecidas para eles, o modo de se comportar, agir, falar, está previsto para cada uma das

personagens de acordo com o papel que desempenham socialmente.

Afundo dentro de meu corpo como se dentro de um pântano, um atoleiro, onde só eu

conheço os pontos de apoio seguros para os pés. Terreno traiçoeiro, meu próprio

território. Torno-me a terra contra a qual encosto minha orelha, para escutar rumores

do futuro. Cada pontada, cada murmúrio de ligeira dor, ondulações sucessivas de

matéria na época de muda periódica, inchaços e diminuições de tecido, as secreções

viscosas da carne, esses são os sinais, essas são as coisas de que preciso saber. A

cada mês fico vigilante à espera de sangue, temerosamente, pois quando ele vem

significa fracasso. Falhei mais uma vez em satisfazer as expectativas de outros, que

se tornaram as minhas próprias expectativas.

Eu costumava pensar em meu corpo como um instrumento de prazer, ou um meio de

transporte, ou um implemento para a realização da minha vontade. Eu podia usá-lo

para correr, para apertar botões, deste ou daquele tipo, fazer coisas acontecerem.

Havia limites, mas meu corpo era, apesar disso, flexível, único, sólido, parte de

mim. (ATWOOD, 2006, p. 68)

Nesse trecho, podemos perceber que não há mais uma ideia de pertencimento ao

próprio corpo que deveria ser o espaço para as performances do sujeito. Ao dizer que falhou,

Offred coloca-se em uma posição na qual nenhum dos seus desejos são ainda seus, ela anula-

se para o desejo de um governo, de uma família. Le Breton (2007), apresenta o corpo como

“vetor semântico pelo qual a evidência da relação com o mundo é construída: atividades

perceptivas, [...] relação com a dor, com o sofrimento, etc. Antes de qualquer coisa, a

existência é corporal.” (LE BRETON, 2007, p. 7). Desse modo, o corpo seria aquele meio

pelo qual a relação com o mundo é estabelecida, no entanto, não espera-se do corpo a posição

de inerte. Ao direcionarmos nossos estudos à sociologia do corpo, não poderíamos observa-lo

como observamos um objeto, pelo contrário. Todavia, a narrativa apresenta um modelo

político que desumaniza, desperformatiza e anula as Aias. Ao não se sentir dona do seu

próprio corpo, Offred não conseguiria mais manter nenhum tipo de performance, pois não se

sente parte desse vetor que nos coloca frente ao mundo, ainda que a própria subversão da

personagem-narradora ao posicionar-se diante do que está sentindo faz com que ela consiga

apresentar resquícios do passado e da liberdade que ela tinha antes.

Para as Aias há um cuidado significativo com os corpos, a alimentação é prescrita,

suas atividades são pré-estabelecidas, o acompanhamento médico é constante, pois o corpo

precisa estar perfeito, ou melhor, biologicamente perfeito para gestação.

Sou levada ao médico uma vez por mês, para fazer exames: de urina, hormônios,

preventivo de câncer, exame de sangue; os mesmos que antes, só que agora isso é

obrigatório.

[...]

Dentro da sala de espera há outras mulheres, três delas, de vermelho: este médico é

um especialista. Dissimuladamente observamos umas às outras, avaliando as

barrigas umas das outras: será que alguém teve sorte? O enfermeiro registra nossos

nomes e os números de nossos passes no Compudoc, para ver se somos quem

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devemos ser. Ele tem um metro e oitenta e dois, cerca de quarenta anos, uma cicatriz

que lhe risca a face; fica sentado digitando, suas mãos são grandes demais para o

teclado, ainda usa a pistola no coldre de ombro.

Quando estou nua me deito na mesa de exame, no lençol descartável de papel frio e

crepitante. Puxo o segundo lençol, o de pano, para cobrir meu corpo. Na altura do

pescoço há outro lençol, suspenso do teto. Ele me divide, de modo que o médico

nunca verá meu rosto. Ele lida apenas com meu torso.

[...]

Quando estou preparada estico a mão para fora, tateio em busca da pequena

alavanca do lado direito da mesa e puxo para trás. Em algum outro lugar um sino

toca, sem que eu o ouça. Depois de um minuto a porta se abre, passadas se

aproximam, há o som de respiração. Ele não deve falar comigo, exceto quando for

absolutamente necessário. (ATWOOD, 2006, p. 56)

Observamos nessa passagem que há alguns elementos importantes para anulação da

mulher, começando pelo controle rígido, onde elas não poderiam passar-se por outras ou

esconder suas identidades, ao mesmo tempo em que, durante os exames não deve haver

comunicação entre o médico e a paciente. Não há nenhum tipo de relação entre elas e os

médicos, de modo que, ao esconder o rosto, ao proibir a fala e ao coloca-las em um espaço

vigiado, faz com que toda forma de expressão e manifestação seja oprimida. Não há o direito

de fala, de observação do que acontece pelas mulheres com os seus próprios corpos, de modo

que o sujeito-mulher é anulado e o corpo e suas manifestações biológicas são os únicos

elementos considerados relevantes, elas reduzem-se a um corpo-objeto. Voltamos aqui para a

ideia de importância para o outro, pois se elas não possuem o direito de ver, é porque não são

mais donas dos seus corpos, e, portanto, a performance biologicamente perfeita, ou seja,

tornar-se mãe/gerar um filho, não é para a mulher no consultório médico, é somente uma

capacidade daquele corpo.

Desse modo, o corpo seria ao mesmo tempo o espaço para gerar um filho que não é

sequer considerado filho da Aia, ela não tem domínio sobre seu corpo, muito menos sobre o

corpo que ela gerou. É possível perceber a forma extremada dessa ação quando durante o

parto, as Aias e as Esposas passam pelo mesmo processo, participam no mesmo espaço como

se os dois corpos estivessem parindo o mesmo filho.

A Esposa do Comandante entra apressada, com sua ridícula camisola branca, as

pernas magrelas se espetando para fora abaixo dela. Duas das Esposas em seus

vestidos e véus azuis seguram-na pelos braços, como se precisasse disso; [...]. Ela

sobe rápido no Banco de Dar à Luz, senta-se no assento atrás e acima de Janine, de

modo que Janine fica emoldurada por ela: as pernas magras descem pelos dois lados,

como os braços de uma cadeira excêntrica. (ATWOOD, 2006, p. 112)

Apesar disso, percebemos que, enquanto a Esposa é agraciada, parabenizada e recebe

o filho no colo e inclusive tem o direito de dar nome a esse filho, a Aia é somente acalentada

pelas outras Aias, que dividem a sororidade de um espaço e de um lugar em que não há

reconhecimento nem de outras mulheres de castas distintas, bem como de outros indivíduos

que observam o ocorrido.

Janine terá permissão para amamentar o bebê, durante alguns meses, elas acreditam

em leite materno. Depois será transferida, para ver se consegue fazer de novo, com

alguma outra pessoa que precise de ajuda. Mas nunca será mandada para as

Colônias, nunca será declarada uma Não mulher. Essa é sua recompensa.

(ATWOOD, 2006, p. 113)

Observamos que na casta das Aias a utilização dos seus corpos é indispensável, ao

mesmo tempo em que completamente objetificada, de modo que se houvessem recursos

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tecnológicos que conseguissem obter os mesmos resultados de uma Aia, o uso desse objeto

funcionaria da mesma forma. Outro momento relevante da narrativa, nessa mesma

perspectiva, é quando mensalmente as Aias devem manter relações sexuais com os

Comandantes.

A Cerimônia se desenrola como de hábito.

Deito-me de barriga para cima, completamente vestida exceto pelos amplos calções

de algodão.

[...]

Não há calor neste quarto.

Acima de mim, em direção à cabeceira da cama, Serena Joy está posicionada,

estendida. Suas pernas estão abertas, deito-me entre elas, minha cabeça sobre seu

estômago, seu osso púbico sob a base de meu crânio, suas coxas uma de cada lado

de mim. Ela também está completamente vestida.

Meus braços estão levantados; ela segura minhas mãos, cada uma das minhas numa

das dela. Isso deveria significar que somos uma mesma carne, um mesmo ser. O que

realmente significa é que ela está no controle do processo e portanto do produto. Se

houver algum. Os anéis de sua mão esquerda se enterram em meus dedos. Pode ser

ou não vingança.

Minha saia vermelha é puxada para cima até minha cintura, mas não acima disso.

Abaixo dela o Comandante está fodendo. O que ele está fodendo é a parte inferior de

meu corpo. Não digo fazendo amor, porque não é o que ele está fazendo. Copular

também seria inadequado porque teria como pressuposto duas pessoas e apenas uma

está envolvida. Tampouco estupro descreve o ato: nada está acontecendo aqui que eu

não tenha concordado formalmente em fazer. Não havia muita escolha, mas havia

alguma, e isso foi o que escolhi. (ATWOOD, 2016, p. 85)

Ao descrever a cena acima, conseguimos observar o corpo da Aia sendo apenas um

terreno de passagem, um espaço entre corpos, um intruso. Um corpo que sente as ações da

rejeição, ao mesmo tempo que é fundamental para a manutenção de um ideal político. Com o

intuito de gerar filhos, as famílias importantes utilizam-se dele. Voltamos aqui para a ideia do

desejo como fonte de motivação para modificação, de modo que utiliza-se de um corpo como

o meio de alcançar um desejo e substitui-o se o desejo não for alcançado. Assim, objetifica-se

o corpo de modo a anular toda forma de manifestação de sujeito presente nas Aias, fazem-nas

invisíveis, diante de todo e qualquer abuso, pelo desejo e manter o nível de natalidade para

famílias que não teriam como realizar tal tarefa e anula-se todo e qualquer outro desejo. Le

Breton (2007) diz que:

[d]o corpo nascem e se propagam as significações que fundamentam a existência

individual e coletiva; ele é o eixo da relação com o mundo, o lugar e o tempo nos

quais a existência toma forma através da fisionomia singular de um ator. Através do

corpo, o homem apropria-se da substância de sua vida traduzindo-a para os outros,

servindo-se dos sistemas simbólicos que compartilha com os membros da

comunidade. (LE BRETON, 2007, p. 7)

No romance, quando tratamos mais objetivamente das Aias, essa afirmação é

descartada e esquecida, de modo que não há relação simbólica entre o sujeito-corpo-outros,

apenas outro-corpo-outros, o corpo como vetor alheio a qualquer simbolismo e individualidade das Aias. Enquanto os homens da narrativa, bem como as Esposas conseguem

colocar-se socialmente, realizar suas tarefas e desempenhar os papéis sociais que são

previstos, ou seja, conseguem ter domínio e apropriar-se de suas vidas, as Aias são

impossibilitadas do mesmo.

No entanto, o corpo é

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[...] o espaço em que o poder político é exercido e o espaço em que o abuso é

praticado e, por sua vez, ensaiado. Os corpos femininos de Atwood são documentos

socioculturais, mapas psicológicos, [...]. No corpo de trabalho de Atwood, os corpos

no trabalho nunca são locais neutros, mas são sempre articulações ativas de disputas

territoriais. (DAVIES, 2006, p. 58, tradução nossa)7

Observamos que ainda dentro de um espaço de opressão e anulação da mulher, as Aias

conseguem se posicionar diante de alguns dos seus desejos. Um dos exemplos que

consideramos relevante é no momento em que Moira, amiga de Offred, consegue fugir do

local em que as Aias em treinamento ficavam. Disfarçando-se, ela usa do seu corpo e de

artifícios que possui em função de suas características físicas para fugir.

Moira se levantou, se pôs bem empertigada e olhou firmemente para frente. Puxou

os ombros para trás, esticou bem a coluna e apertou os lábios. Essa não era nossa

postura costumeira. Habitualmente andávamos de cabeça baixa, os olhos fixos em

nossas mãos ou no chão. Moira não se parecia muito com tia Elizabeth, mesmo com

a touca de freira marrom enfiada na cabeça, mas sua postura de costas rígidas

aparentemente foi suficiente para convencer os Anjos montando guarda, que nunca

olhavam para nenhuma de nós muito de perto com atenção, nem e talvez,

especialmente, para as tias; porque Moira saiu decidida pela porta da frente, com a

postura de uma pessoa que sabia para onde estava indo, foi saudada com

continências, apresentou o passe de tia Elizabeth, que eles não se deram ao trabalho

de verificar, porque quem afrontaria uma Tia daquela maneira? E desapareceu.

(ATWOOD, 2006, p. 118)

Assim, ainda que haja subversão de algumas personagens, nada permite com que elas

consigam sair da condição em que são colocadas, nada altera socialmente suas performances

de Aias e suas não performances de mulher.

Pensamos que O Conto da Aia, assim como outras distopias, traz aspectos do corpo

que são relevantes quando observamos não só os alertas e avisos do gênero literário, mas

também porque possibilitam discussões acerca das questões políticas e sociais relevantes para

o nosso momento. No entanto, diferentemente do esperado, o corpo não ganha mais

autonomia ou maior duração no romance, pelo contrário, retrocede.

Portanto, O Conto da Aia coloca-nos diante de um aviso mais assustador, pois não

trata do futuro incerto, de avanços ainda impossíveis, ele trata daquilo que historicamente e

socialmente já conhecemos e que ainda não foi completamente superado.

As Aias, dessa maneira, perdem toda sua performance, não há nada manifestado,

representado, formado para as mulheres que desempenham esse papel, elas são objetificadas,

seus corpos são usados e mantidos com um fim muito claro que impossibilitam o que

identificamos como algo intrínseco ao indivíduo: ser. O corpo que deveria ser o vetor, aquele

que expressa e manifesta aspectos individuais e coletivos, resume-se à cor de uma roupa, que

coloca todas essas mulheres em um mesmo espaço de anulação. Ainda que, [i]ronicamente, a única esperança real de Offred se centra em seu próprio corpo, cuja

feminilidade foi reinscrita pelo discurso biológico de Gileade e suas opressivas

práticas sexuais do Antigo Testamento. Embora ela não tenha poder para rejeitar o

seu papel de Aia e permanecer viva, ela tem o poder de desafiar as prescrições

7 Do original: “[...] is the site on which political power is exercised and the site on which abuse is practiced and

in turn rehearsed. Atwood’s female bodies are socio-cultural documents, psychological maps [...]. In Atwood’s

body of work the bodies at work are never neutral sites but are always active articulations of territorial

disputes”.

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patriarcais alinhando-se de maneira diferente através de sua narrativa privada sobre

seu corpo. (HOWELLS, 2006, p. 167, tradução nossa)8

Ao passo que seu corpo pode desafiar as prescrições, ele não liberta, nem mesmo

muda o espaço em que elas se encontram. Da mesma maneira, as outras mulheres do romance

acabam sofrendo as consequências das ações políticas do governo, no entanto, parecem ainda

desempenhar atividades que as aproximam mais da ideia de existência, elas não são invisíveis

e descartáveis, elas não se envergonham do papel que desempenham.

Ao mesmo tempo em que os avanços tecnológicos nos direcionam para a evolução do

humano e colocam-nos diante de ideias transumanas e pós-humanas que são relevantes para

os estudos de corpo, também devemos voltar nossos olhares para possíveis anulações dos

corpos e, consequentemente, dos humanos diante de avanços políticos que distorcem e

eliminam progressos. Nesse sentido, o romance deixa marcado o seu aviso e coloca-nos diante

da anulação dos indivíduos através de limitações dos seus próprios corpos.

A fuga de Moira, a partir da troca de roupas, por exemplo, deixa claro o uso do corpo

como uma forma de se adaptar a esse espaço. Ao gravar, ao invés de escrever sua história,

Offred consegue utilizar de recursos do seu corpo, consegue colocar-se em uma posição onde

subverte todos os limites. No entanto, ainda assim, os corpos tornaram-se objetos e a ideia de

performance não precede, pois ao não ter domínio do seu próprio vetor de manifestações com

o mundo exterior, não há como performatizar qualquer ação. Por fim, observamos que ainda

que o corpo seja um espaço possível de manifestações, ele também é o primeiro a ser atingido

e anulado dentro de um ambiente de opressão, de modo que se ele está ligado a subjetividade

do indivíduo e sua performatividade, essa também se perde facilmente.

Referências:

ATWOOD, Margaret. MaddAddam. Canadá: McClelland and Stewart, 2013.

______. O Conto da Aia. Ebook. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.

______. Oryx and Crake. Canadá: McClelland and Stewart, 2003.

______. The year of the flood. Canadá: McClelland and Stewart, 2009.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 10. ed. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

COLLINS, Suzanne. A Esperança. Tradução de Alexandre D’Elia. Rio de Janeiro: Rocco,

2011.

______. Em Chamas. Tradução de Alexandre D’Elia. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

______. Jogos Vorazes. Tradução de Alexandre D’Elia. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.

DAVIES, Madeleine. Margaret Atwood’s female bodies. In: HOWELLS, Coral Ann. The

Cambridge Companion to Margaret Atwood. Nova York: Cambridge University Press, 2006.

HILÁRIO, Leomir Cardoso. Teoria Crítica e Literatura: a distopia como ferramenta de

análise radical da modernidade. Anuário de Literatura, Florianópolis, v. 18, n. 2, p. 201-215,

2013.

HOWELLS, Coral Ann. Margaret Atwood’s dystopian visions: The Handmaid’s Tale and

Oryx and Crake. In: HOWELLS, Coral Ann. The Cambridge Companion to Margaret

Atwood. Nova York: Cambridge University Press. 2006, p. 161-175.

LE BRETON, David. A sociologia do corpo. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2007.

8 “Ironically, Offred’s only real hope centers on her own body, whose femaleness has been resinscribed by

Gilead’s biological discourse and its oppressively Old Testament sexual practices. Though she has no power to

reject her Handmaid’s role and stay alive, she does have the power to defy patriarchal prescriptions by aligning

herself differently through her private narrative about her body”.

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LIMA, Marisa Mello de. Do corpo sob o olhar de Bourdieu ao corpo contemporâneo.

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Cultura, 2013.

NEGRIM, Llewellyn. Appereance and Identity. In: ______. Appearance and Identity:

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ORWELL, George. 1984. Londres: Harvill Secker, 1949.

RÜDIGER, Francisco. Anúncios do pós-humanismo: Marcos e problemática. In: ______.

Cibercultura e Pós-humanismo: Exercícios de arqueologia e criticismo. Porto Alegre:

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TRINCA, Tatiane. O corpo-imagem na “cultura do consumo”: uma análise histórico-social

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WINTERSON, Jeanette. Deuses de Pedra. São Paulo: Editora Record, 2012.


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