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O corpo-objeto em O Conto da Aia – a desperformatização do corpo da mulher no
universo distópico do romance
The body as an object in The Handmaid’s Tale – the not performance of women’s body in
the dystopian universe of the novel
Luana de Carvalho Krüger1
Eduardo Marks de Marques2
Abstract: The Handmaid’s Tale (2006), published for the first time in 1985, by Margaret Atwood is a dystopian
novel which presents a totalitarian theocracy that assumes the power of United States in a period when the
human fertility is undermined. In this scene, the women are divided in different castes, having their rights and
duties delimited in their social role. One of those castes is the Handmaid’s, women who are supposedly fertile
and are allotted to different houses, whose men work for the government, and once a month must keep sexual
relations with them in order to give birth to a child for that family. In the novel the Handmaids are cared and
kept under observation in an environment where the body’s care is essential, however, there is not recognition of
this body as a subject, meaning, the Handmaids are a body as an object that should be preserved, although after
the purpose is achieved they can be eliminated. According to Marisa Mello de Lima (2013) the studies among
the body in the contemporaneity observe it as vector of the subject performative manifestations, the body takes
its place beyond its functionality, so that the image influences, choices and social construction put the body in
the focus of a performativity which is truly connected to the subject position in the society. In this perspective, it
is observed that The Handmaid’s Tale though there is a body valuation, the women-subject is nullified in the
handmaid’s caste, setting them as reproductive and disposable bodies in adverse social circumstances. Thus, the
women-subject and mother-subject performance is nullified, emphasizing the bodies’ maintenance from the lack
of subject performance, in other words, the nullifying of the body as a performance place, to the standard of an
object-performance. In this paper, we intend to discuss the body importance in the discussions of subject
performance and recognition from the absence imposed by the Handmaids and subversion of some character in
the novel.
Keywords: Dystopia, Body, Performance, Body as subject, Object-body.
Resumo: O Conto da Aia (2006), de Margaret Atwood, publicado pela primeira vez em 1985, é um romance
distópico que apresenta uma teocracia totalitária que assume o poder nos Estados Unidos em um período em que
a fertilidade humana está comprometida. Nesse cenário, as mulheres são divididas em diferentes castas, tendo
seus direitos e deveres delimitados aos seus papéis sociais. Uma dessas castas são as Aias, mulheres que
supostamente são férteis e que são designadas a diferentes casas de homens ligados ao governo e uma vez ao
mês devem manter relações sexuais com eles na tentativa de gerar um filho para aquela família. No romance, as
Aias são cuidadas e mantidas sob observação em um ambiente onde o cuidado com o corpo torna-se
fundamental, no entanto, não há o reconhecimento desse corpo como sujeito, ou seja, as Aias são um corpo-
objeto que deve ser conservado, mas, quando atingido o objetivo, podem ser descartadas. De acordo com Marisa
Mello de Lima (2013), os estudos acerca do corpo na contemporaneidade observam-no como vetor das
manifestações performáticas do sujeito, o corpo ganha espaço para além de sua funcionalidade, de modo que as
influências de imagem, escolhas e construção social colocam o corpo no foco de uma performatividade que está
diretamente ligada a posição do sujeito na sociedade. Nessa perspectiva, observa-se que em O Conto da Aia,
embora haja uma valorização do corpo, o sujeito-mulher é anulado na casca das Aias, colocando-as como
objetos reprodutivos e descartáveis em circunstâncias adversas ao esperado socialmente. Logo, a performance de
sujeito-mulher e mulher-mãe é anulada, enfatizando a manutenção dos corpos a partir da desperformatização do
sujeito, ou seja, anulação do corpo como espaço performático dos sujeitos, para o desempenho de uma
‘performance-objeto’. Nesse trabalho, pretendemos discutir a importância do corpo nas discussões de
performance e reconhecimento de sujeito a partir da ausência imposta pelas Aias e subversão de algumas
personagens do romance.
Palvras-chave: Distopia, Corpo, Performance, Corpo-sujeito, Corpo-objeto.
1 Graduada em Letras Português/Inglês e respectivas literaturas pela UFPel. Mestranda do Programa de Pós-
Graduação em Letras – Literatura Comparada da UFPel. E-mail: <[email protected]>. 2 Professor Associado Nível 1 da UFPel. E-mail: <[email protected]>.
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O corpo tem sido tema relevante para a leitura de muitas distopias, desde a obra 1984
(1949), escrita por George Orwell, até trilogias atuais como Jogos Vorazes, sendo os livros
Jogos Vorazes (2010), Em chamas (2011) e A esperança (2011), de Suzanne Collins temos os
corpos das personagens sendo manipulados e modificados. Com os avanços tecnológicos e as
perspectivas de mudanças do futuro, a intervenção nos corpos fica mais evidente com o
objetivo de deixá-los mais fortes e mais adaptados ao meio, sejam mudanças puramente
estéticas ou com um fim funcional.
Há, portanto, o que identificamos como uma maior valorização dos corpos, logo, o que
dentro de algumas religiões e alguns dogmas da sociedade é compreendido como matéria,
passa a ser fonte de expressão e manifestação de aspectos do sujeito, relevantes socialmente.
O corpo fala. Palavras como empoderamento, por exemplo, não estão sendo usadas
inocentemente, de fato, o corpo manifesta formas de domínio, de lugar, de política e essas
manifestações além de refletir socialmente, também são apresentadas na literatura.
Em O Conto da Aia (2006) de Margaret Atwood, temos uma distopia que atualmente
despertou interesse de muitos leitores pelo cenário político em que se encontra os Estados
Unidos, tendo em vista o governo de Donald Trump, que está em uma posição de
conservadorismo e opressão de diferentes manifestações sociais. A obra mostra uma outra
ideia de corpo que parece desfazer o que se está construído política e socialmente. Ainda que
o livro tenha sido publicado em 1985, ao compreendermos as possíveis repressões de um
governo teocrático totalitário no cenário político atual, percebemos o quanto de retrocesso da
liberdade dos corpos teríamos que enfrentar socialmente.
No livro entramos em contato com a infertilidade sem nenhum motivo aparente e,
embora não tenhamos explicações ao certo do ocorrido e do motivo pelo qual muitas
mulheres deixaram de ser férteis, somos apresentados ao cenário em que o governo colocou
essas mulheres, principalmente através das medidas políticas que os governantes tomaram.
Elas são divididas em diferentes castas: Esposas, Marthas, Salvadoras, Tias e as Aias, sendo a
última casta, mulheres que são possivelmente férteis e que devem manter relações sexuais
com os Comandantes, ligados ao governo, e gerar um filho para as suas famílias. Ao final
desse processo, ou ainda quando não há sucesso, essas mulheres são descartadas, ou enviadas
para outras famílias.
Durante a estadia nas casas dos Comandantes, as Aias recebem uma alimentação
saudável, sem excessos, e não devem realizar nenhum tipo de atividade que possa
comprometer os seus corpos. Desse modo, compreendemos a valorização do corpo, no
entanto, observamos que esse corpo não carrega consigo a ideia de sujeito atrelada, mas sim
de um objeto com uma funcionalidade específica e completamente descartável a partir de sua
improdutividade e/ou infertilidade. A performance de sujeito é anulada, fazendo com que o
corpo não seja mais o vetor de subjetividades, mas somente um objeto.
Na última década, os romances distópicos ganharam maior visibilidade no cenário da
literatura juvenil, junto com eles, o mercado de venda desses produtos também foi
consolidado, promovendo divulgação literária e adaptações fílmicas. No entanto, é sabido que
os romances distópicos, em que uma nova perspectiva do futuro não muito amistosa e positiva
é colocada diante dos nossos olhos, apresentam-se como um alerta para o que está por vir, ou
ainda, um “aviso de incêndio, o qual, como todo recurso de emergência, busca chamar a
atenção para que o acontecimento perigoso seja controlado, e seus efeitos, embora já em
curso, sejam inibidos.” (HILÁRIO, 2013, p. 202, grifo do autor). Assim, compreendemos que
os romances distópicos apresentam esses questionamentos políticos que nos levam a observar
o nosso presente histórico, bem como o momento da narrativa.
Dentro dessas narrativas encontramos espaços caóticos, governos totalitários,
ambientes destruídos, qualidade de vida em níveis baixos para grande parte da população.
Além do mencionado acima, conseguimos perceber que muitas distopias apresentam
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interferências nos corpos e colocam-nos também com um espaço de discussão que está para
além de sua materialidade. Romances como a trilogia MaddAddam, sendo em ordem Oryx
and Crake (2003), The year of the flood (2009) e MaddAddam (2013), de Margaret Atwood,
Deuses de Pedra (2012) de Jeanette Winterson, para citar algumas obras, colocam as
mudanças no corpo, as adaptações genéticas e os avanços tecnológicos como um vetor para as
alterações dos humanos.
Valorizar o corpo significou ampliar o seu conceito, compreendendo-o para além de
um mero espaço físico ocupado por um conjunto de órgãos, pois passa a ser nele o
lugar em que se dá, se realiza e se manifesta não só as suas aptidões e contingências
físicas, mas também e sobretudo o conjunto complexo de reciprocidade e inter-
relações entre as emoções, a sexualidade, sentimentos, os pensamentos e os desejos
humanos, tornando assim a noção ou mesmo o conceito de “corpo” em algo
eminentemente rico e complexo. (LIMA, 2013, p. 3)
Compreendemos que há uma ligação entre esse caos anunciado pelos romances
distópicos e o corpo alterado, uma das justificativas são os avanços tecnológicos atrelados ao
capitalismo, na medida em que tais avanços caminham para melhorias nos corpos, o que
podemos considerar um ponto positivo, eles também abrem espaço para modificações que
estão atreladas ao desejo, conceito que move os investimentos capitalistas de modo geral, de
modo que se cria o desejo, as pessoas assumem o mesmo para elas o que gera o uso
desenfreado e o movimento da economia de cosméticos e cirurgias estéticas. Ao compararmos
com o passado, percebemos que:
Enquanto nas sociedades pré-modernas, as modificações e adereços do corpo eram
regidos por significados tradicionais e ritualizados, o corpo na modernidade tem sido
secularizado e é mais frequentemente tratado como um fenômeno a ser formado
como expressão da identidade de um indivíduo, em vez de em conformidade com
algum sistema de significado tradicionalmente dado. Na cultura contemporânea, nos
tornamos responsáveis pelo design de nossos próprios corpos (NEGRIM, 2008, p. 9-
10, tradução nossa)3
O alerta para o caos encontra-se ao passo em que o que é anunciado nos romances já
acontece nos nossos corpos atualmente, logo as transformações nos corpos são constantes e
podem chegar a níveis mais altos de alterações genéticas à medida que tais estudos e tais
interesses também aumentam. Transformações como as dos romances, nos colocam em um
ponto-chave das discussões acerca do corpo: o pós-humanismo, o corpo pós-humano e suas
implicações. Logo,
[c]onforme postulam os próprios defensores do movimento, a “pessoa” possuidora
de capacidades físicas e intelectuais sem precedentes, a entidade possuidora dos
princípios de sua auto formação e um caráter transcendente, porque potencialmente
imortal, é pós-humana, seja ciborgue ou máquina de inteligência artificial. Quem
atinge esse ponto não mais pode ser chamado de humano, e é para se chegar até o
mesmo converter-se em pós-humanos que muitos crentes na tecnologia vêm se
organizando desde o final do século XX. (RÜDIGER, 2008, p. 142, grifo do autor)
Ao passo que não podemos prever todas as modificações e nem mesmo o quanto isso
poderá trazer benefícios para a humanidade, também não poderíamos desconsiderar tais
3 “While in premodern societies, modifications and adornments of the body were governed by traditional,
ritualized meanings, the body in modernity has been secularized and is more frequently treated as a phenomenon
to be fashioned as an expression of an individual’s identity, rather than in accordance with some traditionally
given system of meaning. In contemporary culture, we have become responsible for the design of our own
bodies”.
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avanços, pois eles seriam praticamente impossíveis de serem controlados tendo em vista o
jogo de desejo e da publicidade que movimenta o capitalismo no século XXI. O corpo ganha
espaço de discussão de grande relevância, colocando-nos expostos às possíveis mudanças e
possíveis implicações para o que compreendemos como humanos, bem como humanidade.
Além disso, trazer à tona discussões sobre o corpo também nos permite discutir a inversão de
valores que ocorre entre corpo e alma ou corpo e mente, pois se tais avanços caminham para
um aprimoramento e manutenção do corpo e correção de imperfeições biológicas, eles
também colocam o corpo como igualmente valorizado, ou ainda mais valorizado que os
aspectos transcendentes e ou imateriais dos corpos.
Já em O Conto da Aia, o corpo não é mencionado tecnologicamente, não há nenhuma
espécie de modificação genética ocorrendo nas personagens. Ainda que seja um espaço
distópicos, ele não apresenta um futuro com perspectivas tecnológicas avançadas, pelo
contrário, o próprio conservadorismo do governo não permite que tais avanços ocorram.
O livro é dividido em dois momentos: a história de Offred (narradora-personagem) e o
momento em que há acesso ao material que ela, Offred, gravou, sendo o primeiro, segundo
Howells (2006), previsto para o ano de 2005. Desse modo, não haveria como pensar em
muitas adaptações e manutenções do corpo como em distopias que se colocam mais à frente
no tempo. Esse romance é, portanto, “[...] centrado nos abusos dos direitos humanos e
particularmente na opressão das mulheres sob um regime fundamentalista, [...] inteiramente
social e político [...]”4 (HOWELLS, 2006, p. 163), onde as políticas rígidas de um governo
procuram, através da objetificação dos corpos das mulheres Aias, uma forma de manter o
nível de natalidade e prosseguir com o avanço da humanidade. Desse modo,
Atwood nos dá um relato dissidente por uma Aia que foi relegada às margens do
poder político. Essa estratégia narrativa inverte as relações estruturais entre os
mundos público e privado da distopia, permitindo que Atwood reivindique um
espaço feminino de emoções pessoais e identidade individual, destacado por sua
narrativa em primeira pessoa. (HOWELLS, 2006, p. 164, tradução nossa)5
Ainda que o cenário não seja amistoso, há algumas formas de subversão dessas
personagens que conseguem ser evidenciadas na narrativa e que colocam o corpo como ponto
de discussão a partir da narrativa da personagem.
Trinca (2008) afirma que, não somente aspectos estéticos dentro da medicina, mas
também a própria indústria da moda conseguiu determinar influências nos corpos,
principalmente acerca da exposição do corpo, renovando dogmas acerca do que seria
indecente socialmente. No entanto, observamos que, se não há dúvidas acerca dessa
influência, é porque houve abertura política e maior liberdade dos corpos para que isso
pudesse ocorrer e chegar à naturalidade. Nessa perspectiva, notamos que há dois momentos
no romance: pré-governo-totalitário-cristão e pós a ascensão do governo, quando a exposição
dos corpos retrocede e há um período de excesso de pudor, já apontado por Negrim (2008)
acima. No trecho abaixo, percebemos a imposição do governo diante da vestimenta das
mulheres:
Ela está com seu vestido habitual de Martha, que é verde desbotado como um traje
cirúrgico dos tempos anteriores. O feitio de suas roupas é muito parecido com o das
minhas, o vestido comprido escondendo as formas, mas com um avental de peitilho
4 “[…] centered on human rights abuses and particularly the oppression of women under a fundamentalist
regime, […] is entirely social and political […]”. 5 “Atwood gives us a dissident account by a Handmaid who has been relegated to the margins of political
power. This narrative strategy reverses the structural relations between public and private worlds of the
dystopia, allowing Atwood to reclaim a feminine space of personal emotions and individual identity, which is
highlighted by her first-person narrative”.
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por cima e sem a touca com abas brancas e o véu. Ela põe o véu para sair, mas
ninguém se importa muito com quem vê o rosto de uma Martha. [...]
O rosto dela poderia ser gentil se ela sorrisse. Mas o cenho franzido não é nada
pessoal contra mim: é o vestido vermelho que ela desaprova, e o que ele representa.
Ela acha que pode ser contagioso, como uma doença ou qualquer forma de má sorte.
(ATWOOD, 2006, p. 13)
Juntamente com o retrocesso, cria-se um espaço de diferença entre as diferentes castas,
no qual as Aias seriam as menos valorizadas. Além disso, os homens na narrativa possuem
maior liberdade, bem como divertimentos que estão para além de suas obrigações ligadas ao
governo. Dentro desse regime, que também os oprime, eles ainda são livres, ainda usam de
direitos que os mantêm em posição de poder, frequentando prostíbulos, conseguindo objetos
já proibidos, como revistas de moda. Já as mulheres, são colocadas em um outro espaço que
está para além do gênero, incluindo os aspectos sociais e políticos que a narrativa se
apresenta.
Segundo Butler (2016),
[s]e alguém “é” uma mulher, isso certamente não é tudo que esse alguém é; o termo
não logra ser exaustivo, não porque os traços pré-definidos de gênero da “pessoa”
transcendam a parafernália específica de seu gênero, mas porque o gênero nem
sempre se constitui de maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos
históricos, e porque o gênero estabelece interseções com modalidades raciais,
classicistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas.
Resulta que se tornou impossível separar a noção de gênero das interseções políticas
e culturais em que invariavelmente é produzida e mantida. (BUTLER, 2016, p. 21,
grifo da autora)
Dessa maneira, observamos que as performances de gênero em O conto do Aia
acontecem justamente dentro de um padrão político que se coloca como determinante e que
delimita as ações das mulheres. Essas performances são mais livres, em contrapartida, para os
homens que conseguem subverter algumas regras. Compreendemos o conceito de
performance como o modo de posicionar-se no mundo de cada sujeito, tendo em vista as
questões políticas e sociais desse espaço. O gênero, dessa forma, também é performance, ou
seja, constitui-se socialmente.
O fato de a realidade do gênero ser criada mediante performances sociais contínuas
significa que as próprias noções de sexo essencial e de masculinidade ou feminilidade
verdadeiras ou permanentes também são constituídas, como parte da estratégia que
oculta o caráter performativo do gênero e as possibilidades performativas de
proliferação das configurações de gênero fora das estruturas restritivas da dominação
masculina e da heterossexualidade compulsória. (BUTLER, 2016, p. 201, grifo da
autora)
Dentro da narrativa, essas performances seriam restritas e indiscutivelmente
heteronormativizadas, no entanto, é possível perceber algumas disparidades. Observamos essa
diferença quando os Comandantes têm acesso ao que chamam de clube, um lugar onde eles
podem manter relações sexuais com mulheres que não são as Aias e conseguir bebidas. Esse
lugar se assemelha a um prostíbulo, no entanto, devemos lembrar que, de acordo com a ordem
do governo, isso não seria permitido. A seguir temos um diálogo entre Offred e o seu
Comandante no qual percebemos essas diferenças:
— Bem, é assim que chamamos, entre nós. O clube.
— Pensei que esse tipo de coisa fosse estritamente proibido.
— Bem, oficialmente, é — diz ele. — Mas, afinal, todo mundo é humano.
Espero que ele explique isso, mas não o faz, de modo que digo:
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— O que isso significa?
— Significa que não se pode trapacear com a Natureza — diz ele. — A Natureza
exige variedade para homens. É lógico, razoável, faz parte da estratégia de
procriação. É o plano da Natureza. — Não digo nada, de modo que ele prossegue.
— As mulheres sabem disso instintivamente. Por que elas compravam tantas roupas
diferentes, nos velhos tempos? Para enganar os homens levando-os a pensar que
eram várias mulheres diferentes. Uma nova a cada dia.
Ele diz isso como se de fato acreditasse, mas diz muitas coisas assim. Talvez
acredite mesmo, talvez não acredite ou talvez faça ambas as coisas ao mesmo tempo.
Impossível saber em que ele acredita.
— De modo que agora, que não temos roupas diferentes — digo —, vocês apenas
têm mulheres diferentes. — Isso é ironia, mas ele não demonstra ter notado.
— Resolve uma porção de problemas — diz, sem sequer pestanejar. (ATWOOD,
2006, p. 208-209)
Percebemos que os padrões sociais, culturais e políticos que se estabeleceram na
narrativa são da ordem do patriarcado, no qual os desejos dos homens estão frente aos desejos
das mulheres. Desse modo, há uma ideia de natureza que reforça a dicotomia macho/fêmea, a
qual coloca os homens como aqueles que necessitam de “variedade” enquanto elas devem
manter seus desejos internalizados. Há, portanto, uma quebra de regras e uma maior liberdade
aos homens, pois se estes estão ligados ao governo e fazem algo ilegal, possivelmente serão
acobertados pelos próprios membros do governo. As mulheres, no entanto, são colocadas
dentro de castas como uma forma de manter a ordem e a integridade do local, desse modo,
nenhuma delas pode fugir do seu papel, todas acabam “ganhando” deveres que são
limitadores, opressivos, onde não há espaço para manifestarem seus desejos, suas vontades,
onde não conseguem sair do espaço físico e social que lhes foi imposto.
“Como uma Aia privada de seu próprio nome e identidade, ela não tem direitos como
indivíduo, mas, em vez disso, foi recrutada para o serviço sexual ao estado, reduzida pela
doutrina do essencialismo biológico ao seu papel feminino como criadora de criança [...]”
(HOWELLS, 2006, p. 165, tradução nossa)6. As Aias, portanto, são uma propriedade do
governo e possuem importância somente por sua capacidade biológica. O não-nome (somente
determinação de pertencimento a um comandante) e a não identidade desumaniza essas
mulheres e coloca-as em um espaço de não-existência. Assim,
[...] compreender o processo de corporização supõe pensar o corpo como o resultado
de um processo de transformação da natureza, que inclui o corpo humano na
construção com esse processo de transformação e, portanto, como social e
historicamente produzido confirmando o fato de que o corpo humano é resultado da
sociedade e da história. (LIMA, 2013, p. 6)
Segundo Butler (2016), o gênero não é dotado de uma essência, e sim tem uma
impressão, uma ilusão de essência que é mantida através da repetição de performances. Logo,
a natureza feminina, segundo essa visão, é um mito propagado por discursos reguladores que
designam à mulher as performances determinadas na sociedade.
O que percebemos é que as mulheres, no romance, são colocadas em um espaço em
que a performatividade de gênero ganha forte influência política e religiosa, de modo que se não há uma essência e, portanto, as performances de gênero são arbitrárias, no romance são
totalmente controladas quando trata-se de uma mulher, ou seja, um corpo biologicamente
associado a um gênero heteronormativo que impõe um modo de agir diante de determinadas
6 “As a Handmaid deprived of her own name and identity, she has no rights as an individual but instead has
been conscripted into sexual service to the state, reduced by its doctrine of biological essentialism to her female
role as a child breeder […]”.
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situações. O que encontramos são performances prescritas, constrangedoras e mantenedoras
de uma utilização do corpo que elimina toda e qualquer subjetividade do indivíduo.
Se a performance manifesta-se através dos corpos, pois eles são capazes de colocar em
evidência aspectos do nosso modo de agir e colocar-se diante da sociedade, podemos pensar
que a performance das Aias, levando em conta a liberdade que possuíam anteriormente e o
que são determinadas a fazer no presente da narrativa, são muito mais anuladoras e
desperformizantes do que, de fato, livres socialmente.
O corpo é apenas funcional, de modo que cada personagem desempenha um papel
dentro de suas castas, há uniformes que padronizam esses corpos e atividades pré-
estabelecidas para eles, o modo de se comportar, agir, falar, está previsto para cada uma das
personagens de acordo com o papel que desempenham socialmente.
Afundo dentro de meu corpo como se dentro de um pântano, um atoleiro, onde só eu
conheço os pontos de apoio seguros para os pés. Terreno traiçoeiro, meu próprio
território. Torno-me a terra contra a qual encosto minha orelha, para escutar rumores
do futuro. Cada pontada, cada murmúrio de ligeira dor, ondulações sucessivas de
matéria na época de muda periódica, inchaços e diminuições de tecido, as secreções
viscosas da carne, esses são os sinais, essas são as coisas de que preciso saber. A
cada mês fico vigilante à espera de sangue, temerosamente, pois quando ele vem
significa fracasso. Falhei mais uma vez em satisfazer as expectativas de outros, que
se tornaram as minhas próprias expectativas.
Eu costumava pensar em meu corpo como um instrumento de prazer, ou um meio de
transporte, ou um implemento para a realização da minha vontade. Eu podia usá-lo
para correr, para apertar botões, deste ou daquele tipo, fazer coisas acontecerem.
Havia limites, mas meu corpo era, apesar disso, flexível, único, sólido, parte de
mim. (ATWOOD, 2006, p. 68)
Nesse trecho, podemos perceber que não há mais uma ideia de pertencimento ao
próprio corpo que deveria ser o espaço para as performances do sujeito. Ao dizer que falhou,
Offred coloca-se em uma posição na qual nenhum dos seus desejos são ainda seus, ela anula-
se para o desejo de um governo, de uma família. Le Breton (2007), apresenta o corpo como
“vetor semântico pelo qual a evidência da relação com o mundo é construída: atividades
perceptivas, [...] relação com a dor, com o sofrimento, etc. Antes de qualquer coisa, a
existência é corporal.” (LE BRETON, 2007, p. 7). Desse modo, o corpo seria aquele meio
pelo qual a relação com o mundo é estabelecida, no entanto, não espera-se do corpo a posição
de inerte. Ao direcionarmos nossos estudos à sociologia do corpo, não poderíamos observa-lo
como observamos um objeto, pelo contrário. Todavia, a narrativa apresenta um modelo
político que desumaniza, desperformatiza e anula as Aias. Ao não se sentir dona do seu
próprio corpo, Offred não conseguiria mais manter nenhum tipo de performance, pois não se
sente parte desse vetor que nos coloca frente ao mundo, ainda que a própria subversão da
personagem-narradora ao posicionar-se diante do que está sentindo faz com que ela consiga
apresentar resquícios do passado e da liberdade que ela tinha antes.
Para as Aias há um cuidado significativo com os corpos, a alimentação é prescrita,
suas atividades são pré-estabelecidas, o acompanhamento médico é constante, pois o corpo
precisa estar perfeito, ou melhor, biologicamente perfeito para gestação.
Sou levada ao médico uma vez por mês, para fazer exames: de urina, hormônios,
preventivo de câncer, exame de sangue; os mesmos que antes, só que agora isso é
obrigatório.
[...]
Dentro da sala de espera há outras mulheres, três delas, de vermelho: este médico é
um especialista. Dissimuladamente observamos umas às outras, avaliando as
barrigas umas das outras: será que alguém teve sorte? O enfermeiro registra nossos
nomes e os números de nossos passes no Compudoc, para ver se somos quem
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devemos ser. Ele tem um metro e oitenta e dois, cerca de quarenta anos, uma cicatriz
que lhe risca a face; fica sentado digitando, suas mãos são grandes demais para o
teclado, ainda usa a pistola no coldre de ombro.
Quando estou nua me deito na mesa de exame, no lençol descartável de papel frio e
crepitante. Puxo o segundo lençol, o de pano, para cobrir meu corpo. Na altura do
pescoço há outro lençol, suspenso do teto. Ele me divide, de modo que o médico
nunca verá meu rosto. Ele lida apenas com meu torso.
[...]
Quando estou preparada estico a mão para fora, tateio em busca da pequena
alavanca do lado direito da mesa e puxo para trás. Em algum outro lugar um sino
toca, sem que eu o ouça. Depois de um minuto a porta se abre, passadas se
aproximam, há o som de respiração. Ele não deve falar comigo, exceto quando for
absolutamente necessário. (ATWOOD, 2006, p. 56)
Observamos nessa passagem que há alguns elementos importantes para anulação da
mulher, começando pelo controle rígido, onde elas não poderiam passar-se por outras ou
esconder suas identidades, ao mesmo tempo em que, durante os exames não deve haver
comunicação entre o médico e a paciente. Não há nenhum tipo de relação entre elas e os
médicos, de modo que, ao esconder o rosto, ao proibir a fala e ao coloca-las em um espaço
vigiado, faz com que toda forma de expressão e manifestação seja oprimida. Não há o direito
de fala, de observação do que acontece pelas mulheres com os seus próprios corpos, de modo
que o sujeito-mulher é anulado e o corpo e suas manifestações biológicas são os únicos
elementos considerados relevantes, elas reduzem-se a um corpo-objeto. Voltamos aqui para a
ideia de importância para o outro, pois se elas não possuem o direito de ver, é porque não são
mais donas dos seus corpos, e, portanto, a performance biologicamente perfeita, ou seja,
tornar-se mãe/gerar um filho, não é para a mulher no consultório médico, é somente uma
capacidade daquele corpo.
Desse modo, o corpo seria ao mesmo tempo o espaço para gerar um filho que não é
sequer considerado filho da Aia, ela não tem domínio sobre seu corpo, muito menos sobre o
corpo que ela gerou. É possível perceber a forma extremada dessa ação quando durante o
parto, as Aias e as Esposas passam pelo mesmo processo, participam no mesmo espaço como
se os dois corpos estivessem parindo o mesmo filho.
A Esposa do Comandante entra apressada, com sua ridícula camisola branca, as
pernas magrelas se espetando para fora abaixo dela. Duas das Esposas em seus
vestidos e véus azuis seguram-na pelos braços, como se precisasse disso; [...]. Ela
sobe rápido no Banco de Dar à Luz, senta-se no assento atrás e acima de Janine, de
modo que Janine fica emoldurada por ela: as pernas magras descem pelos dois lados,
como os braços de uma cadeira excêntrica. (ATWOOD, 2006, p. 112)
Apesar disso, percebemos que, enquanto a Esposa é agraciada, parabenizada e recebe
o filho no colo e inclusive tem o direito de dar nome a esse filho, a Aia é somente acalentada
pelas outras Aias, que dividem a sororidade de um espaço e de um lugar em que não há
reconhecimento nem de outras mulheres de castas distintas, bem como de outros indivíduos
que observam o ocorrido.
Janine terá permissão para amamentar o bebê, durante alguns meses, elas acreditam
em leite materno. Depois será transferida, para ver se consegue fazer de novo, com
alguma outra pessoa que precise de ajuda. Mas nunca será mandada para as
Colônias, nunca será declarada uma Não mulher. Essa é sua recompensa.
(ATWOOD, 2006, p. 113)
Observamos que na casta das Aias a utilização dos seus corpos é indispensável, ao
mesmo tempo em que completamente objetificada, de modo que se houvessem recursos
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tecnológicos que conseguissem obter os mesmos resultados de uma Aia, o uso desse objeto
funcionaria da mesma forma. Outro momento relevante da narrativa, nessa mesma
perspectiva, é quando mensalmente as Aias devem manter relações sexuais com os
Comandantes.
A Cerimônia se desenrola como de hábito.
Deito-me de barriga para cima, completamente vestida exceto pelos amplos calções
de algodão.
[...]
Não há calor neste quarto.
Acima de mim, em direção à cabeceira da cama, Serena Joy está posicionada,
estendida. Suas pernas estão abertas, deito-me entre elas, minha cabeça sobre seu
estômago, seu osso púbico sob a base de meu crânio, suas coxas uma de cada lado
de mim. Ela também está completamente vestida.
Meus braços estão levantados; ela segura minhas mãos, cada uma das minhas numa
das dela. Isso deveria significar que somos uma mesma carne, um mesmo ser. O que
realmente significa é que ela está no controle do processo e portanto do produto. Se
houver algum. Os anéis de sua mão esquerda se enterram em meus dedos. Pode ser
ou não vingança.
Minha saia vermelha é puxada para cima até minha cintura, mas não acima disso.
Abaixo dela o Comandante está fodendo. O que ele está fodendo é a parte inferior de
meu corpo. Não digo fazendo amor, porque não é o que ele está fazendo. Copular
também seria inadequado porque teria como pressuposto duas pessoas e apenas uma
está envolvida. Tampouco estupro descreve o ato: nada está acontecendo aqui que eu
não tenha concordado formalmente em fazer. Não havia muita escolha, mas havia
alguma, e isso foi o que escolhi. (ATWOOD, 2016, p. 85)
Ao descrever a cena acima, conseguimos observar o corpo da Aia sendo apenas um
terreno de passagem, um espaço entre corpos, um intruso. Um corpo que sente as ações da
rejeição, ao mesmo tempo que é fundamental para a manutenção de um ideal político. Com o
intuito de gerar filhos, as famílias importantes utilizam-se dele. Voltamos aqui para a ideia do
desejo como fonte de motivação para modificação, de modo que utiliza-se de um corpo como
o meio de alcançar um desejo e substitui-o se o desejo não for alcançado. Assim, objetifica-se
o corpo de modo a anular toda forma de manifestação de sujeito presente nas Aias, fazem-nas
invisíveis, diante de todo e qualquer abuso, pelo desejo e manter o nível de natalidade para
famílias que não teriam como realizar tal tarefa e anula-se todo e qualquer outro desejo. Le
Breton (2007) diz que:
[d]o corpo nascem e se propagam as significações que fundamentam a existência
individual e coletiva; ele é o eixo da relação com o mundo, o lugar e o tempo nos
quais a existência toma forma através da fisionomia singular de um ator. Através do
corpo, o homem apropria-se da substância de sua vida traduzindo-a para os outros,
servindo-se dos sistemas simbólicos que compartilha com os membros da
comunidade. (LE BRETON, 2007, p. 7)
No romance, quando tratamos mais objetivamente das Aias, essa afirmação é
descartada e esquecida, de modo que não há relação simbólica entre o sujeito-corpo-outros,
apenas outro-corpo-outros, o corpo como vetor alheio a qualquer simbolismo e individualidade das Aias. Enquanto os homens da narrativa, bem como as Esposas conseguem
colocar-se socialmente, realizar suas tarefas e desempenhar os papéis sociais que são
previstos, ou seja, conseguem ter domínio e apropriar-se de suas vidas, as Aias são
impossibilitadas do mesmo.
No entanto, o corpo é
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[...] o espaço em que o poder político é exercido e o espaço em que o abuso é
praticado e, por sua vez, ensaiado. Os corpos femininos de Atwood são documentos
socioculturais, mapas psicológicos, [...]. No corpo de trabalho de Atwood, os corpos
no trabalho nunca são locais neutros, mas são sempre articulações ativas de disputas
territoriais. (DAVIES, 2006, p. 58, tradução nossa)7
Observamos que ainda dentro de um espaço de opressão e anulação da mulher, as Aias
conseguem se posicionar diante de alguns dos seus desejos. Um dos exemplos que
consideramos relevante é no momento em que Moira, amiga de Offred, consegue fugir do
local em que as Aias em treinamento ficavam. Disfarçando-se, ela usa do seu corpo e de
artifícios que possui em função de suas características físicas para fugir.
Moira se levantou, se pôs bem empertigada e olhou firmemente para frente. Puxou
os ombros para trás, esticou bem a coluna e apertou os lábios. Essa não era nossa
postura costumeira. Habitualmente andávamos de cabeça baixa, os olhos fixos em
nossas mãos ou no chão. Moira não se parecia muito com tia Elizabeth, mesmo com
a touca de freira marrom enfiada na cabeça, mas sua postura de costas rígidas
aparentemente foi suficiente para convencer os Anjos montando guarda, que nunca
olhavam para nenhuma de nós muito de perto com atenção, nem e talvez,
especialmente, para as tias; porque Moira saiu decidida pela porta da frente, com a
postura de uma pessoa que sabia para onde estava indo, foi saudada com
continências, apresentou o passe de tia Elizabeth, que eles não se deram ao trabalho
de verificar, porque quem afrontaria uma Tia daquela maneira? E desapareceu.
(ATWOOD, 2006, p. 118)
Assim, ainda que haja subversão de algumas personagens, nada permite com que elas
consigam sair da condição em que são colocadas, nada altera socialmente suas performances
de Aias e suas não performances de mulher.
Pensamos que O Conto da Aia, assim como outras distopias, traz aspectos do corpo
que são relevantes quando observamos não só os alertas e avisos do gênero literário, mas
também porque possibilitam discussões acerca das questões políticas e sociais relevantes para
o nosso momento. No entanto, diferentemente do esperado, o corpo não ganha mais
autonomia ou maior duração no romance, pelo contrário, retrocede.
Portanto, O Conto da Aia coloca-nos diante de um aviso mais assustador, pois não
trata do futuro incerto, de avanços ainda impossíveis, ele trata daquilo que historicamente e
socialmente já conhecemos e que ainda não foi completamente superado.
As Aias, dessa maneira, perdem toda sua performance, não há nada manifestado,
representado, formado para as mulheres que desempenham esse papel, elas são objetificadas,
seus corpos são usados e mantidos com um fim muito claro que impossibilitam o que
identificamos como algo intrínseco ao indivíduo: ser. O corpo que deveria ser o vetor, aquele
que expressa e manifesta aspectos individuais e coletivos, resume-se à cor de uma roupa, que
coloca todas essas mulheres em um mesmo espaço de anulação. Ainda que, [i]ronicamente, a única esperança real de Offred se centra em seu próprio corpo, cuja
feminilidade foi reinscrita pelo discurso biológico de Gileade e suas opressivas
práticas sexuais do Antigo Testamento. Embora ela não tenha poder para rejeitar o
seu papel de Aia e permanecer viva, ela tem o poder de desafiar as prescrições
7 Do original: “[...] is the site on which political power is exercised and the site on which abuse is practiced and
in turn rehearsed. Atwood’s female bodies are socio-cultural documents, psychological maps [...]. In Atwood’s
body of work the bodies at work are never neutral sites but are always active articulations of territorial
disputes”.
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patriarcais alinhando-se de maneira diferente através de sua narrativa privada sobre
seu corpo. (HOWELLS, 2006, p. 167, tradução nossa)8
Ao passo que seu corpo pode desafiar as prescrições, ele não liberta, nem mesmo
muda o espaço em que elas se encontram. Da mesma maneira, as outras mulheres do romance
acabam sofrendo as consequências das ações políticas do governo, no entanto, parecem ainda
desempenhar atividades que as aproximam mais da ideia de existência, elas não são invisíveis
e descartáveis, elas não se envergonham do papel que desempenham.
Ao mesmo tempo em que os avanços tecnológicos nos direcionam para a evolução do
humano e colocam-nos diante de ideias transumanas e pós-humanas que são relevantes para
os estudos de corpo, também devemos voltar nossos olhares para possíveis anulações dos
corpos e, consequentemente, dos humanos diante de avanços políticos que distorcem e
eliminam progressos. Nesse sentido, o romance deixa marcado o seu aviso e coloca-nos diante
da anulação dos indivíduos através de limitações dos seus próprios corpos.
A fuga de Moira, a partir da troca de roupas, por exemplo, deixa claro o uso do corpo
como uma forma de se adaptar a esse espaço. Ao gravar, ao invés de escrever sua história,
Offred consegue utilizar de recursos do seu corpo, consegue colocar-se em uma posição onde
subverte todos os limites. No entanto, ainda assim, os corpos tornaram-se objetos e a ideia de
performance não precede, pois ao não ter domínio do seu próprio vetor de manifestações com
o mundo exterior, não há como performatizar qualquer ação. Por fim, observamos que ainda
que o corpo seja um espaço possível de manifestações, ele também é o primeiro a ser atingido
e anulado dentro de um ambiente de opressão, de modo que se ele está ligado a subjetividade
do indivíduo e sua performatividade, essa também se perde facilmente.
Referências:
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______. O Conto da Aia. Ebook. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
______. Oryx and Crake. Canadá: McClelland and Stewart, 2003.
______. The year of the flood. Canadá: McClelland and Stewart, 2009.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 10. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
COLLINS, Suzanne. A Esperança. Tradução de Alexandre D’Elia. Rio de Janeiro: Rocco,
2011.
______. Em Chamas. Tradução de Alexandre D’Elia. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
______. Jogos Vorazes. Tradução de Alexandre D’Elia. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.
DAVIES, Madeleine. Margaret Atwood’s female bodies. In: HOWELLS, Coral Ann. The
Cambridge Companion to Margaret Atwood. Nova York: Cambridge University Press, 2006.
HILÁRIO, Leomir Cardoso. Teoria Crítica e Literatura: a distopia como ferramenta de
análise radical da modernidade. Anuário de Literatura, Florianópolis, v. 18, n. 2, p. 201-215,
2013.
HOWELLS, Coral Ann. Margaret Atwood’s dystopian visions: The Handmaid’s Tale and
Oryx and Crake. In: HOWELLS, Coral Ann. The Cambridge Companion to Margaret
Atwood. Nova York: Cambridge University Press. 2006, p. 161-175.
LE BRETON, David. A sociologia do corpo. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2007.
8 “Ironically, Offred’s only real hope centers on her own body, whose femaleness has been resinscribed by
Gilead’s biological discourse and its oppressively Old Testament sexual practices. Though she has no power to
reject her Handmaid’s role and stay alive, she does have the power to defy patriarchal prescriptions by aligning
herself differently through her private narrative about her body”.
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LIMA, Marisa Mello de. Do corpo sob o olhar de Bourdieu ao corpo contemporâneo.
IV Seminário Nacional Corpo e Cultura, 2013, Goiânia. IV Seminário Nacional Corpo e
Cultura, 2013.
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