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O NASCIMENTO DA DEMOCRACIA OU POLÍTICA E …livros01.livrosgratis.com.br/cp121268.pdf · the...

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UFRJ O NASCIMENTO DA DEMOCRACIA OU POLÍTICA E ORALIDADE HELENAS Rafael Baère da Cunha Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciência Política, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência Política. Orientador: Válter Duarte Ferreira Filho Rio de Janeiro Novembro de 2009
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  • UFRJ

    O NASCIMENTO DA DEMOCRACIA OU POLTICA E ORALIDADE HELENAS

    Rafael Bare da Cunha

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa

    de Ps-graduao em Cincia Poltica, Instituto de

    Filosofia e Cincias Sociais, da Universidade Federal

    do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

    necessrios obteno do ttulo de Mestre em

    Cincia Poltica.

    Orientador: Vlter Duarte Ferreira Filho

    Rio de Janeiro

    Novembro de 2009

  • Livros Grtis

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  • ii

    O NASCIMENTO DA DEMOCRACIA OU POLTICA E ORALIDADE HELENAS

    Rafael Bare da Cunha

    Orientador: Vlter Duarte Ferreira Filho

    Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-graduao em

    Cincia Poltica, Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, da Universidade Federal do

    Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de

    Mestre em Cincia Poltica.

    Aprovada por:

    ___________________________________

    Presidente, Prof. Vlter Duarte Ferreira Filho

    ___________________________________

    Prof. Franklin Trein

    ___________________________________

    Prof. Joo Ricardo Moderno

    Rio de Janeiro

    Novembro de 2009

  • iii

    Cunha, Rafael Bare da.

    O nascimento da democracia ou poltica e oralidade helenas/ Rafael Bare da Cunha - Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2009.

    xi, 148f.: il.; 31 cm.

    Orientador: Vlter Duarte Ferreira Filho

    Dissertao (mestrado) UFRJ/ IFCS/ Programa de Ps-Graduao em Cincia Poltica, 2009.

    Referncias Bibliogrficas: f. 147-148.

    1. Democracia. 2. Instituies polticas. 3. Oralidade. 4. Participao poltica. 5. Demagogia. I. Cunha, Rafael Bare. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, Programa de Ps-graduao em Cincia Poltica. III. O nascimento da democracia ou poltica e oralidade helenas.

  • iv

    Resumo

    O NASCIMENTO DA DEMOCRACIA OU POLTICA E ORALIDADE HELENAS

    Rafael Bare da Cunha

    Orientador: Vlter Duarte Ferreira Filho

    Resumo da Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-

    graduao em Cincia Poltica da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ,

    como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Cincia

    Poltica.

    Trata-se de investigar o nascimento da democracia entre os gregos, luz da compreenso da importncia da oralidade em sua cultura e da compreenso de poltica vigente poca. A dissertao pretende abordar os aspectos mais importantes na composio da estrutura fundamental da democracia grega, tanto no mbito ntico, no qual ela se realizaou, como no mbito ontolgico, no qual ela foi idealizada. Pretende ainda explicar por quais motivos o povo grego aceitou esta nova maneira de se viver a poltica, bem como as consequncias imediatas para a poltica e o pensamento daquele tempo.

    Palavras-chave: democracia, instituies polticas, oralidade, participao poltica,

    demagogia.

    Rio de Janeiro

    Novembro de 2009

  • v

    THE BIRTH OF DEMOCRACY OR HELENISTIC POLITICS AND ORALITY

    Rafael Bare da Cunha

    Adviser: Vlter Duarte Ferreira Filho

    Abstract da Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-

    graduao em Cincia Poltica da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ,

    como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Cincia

    Poltica.

    The aim of this dissertation is to investigate the birth of democracy in the Greek ancient world, understanding the importance of orality and the relevance of politics in this culture. The dissertation intends to approach the most important aspects of the constitution of the fundamental structure of Greek democracy, in both instances: ontical in wich it has been experimented - and ontological in wich it has been conceived. It intends to explain how the Greeks accepted this new way of living politics and the immediate consequences for the politic and those times.

    Key words: democracy, political institutions, orality, political participation, demagogy.

  • vi

    Agradecimentos

    Agradeo a todos aqueles por mim considerados como pais intelectuais. So eles os

    professores Emmanuel Carneiro Leo, Franklin Trein e Valter Duarte Ferreira Filho.

    Aos falecidos professores Jos Amrico Motta Pessanha e Gerd Bornheim, com os

    quais aprendi atravs da leitura de seus textos. Agradeo a Plato, que me ensinou a

    amar conhecer; a Nietzsche, que me ensinou a viver; a Bachelard, que me ensinou a

    pensar.

  • vii

    Sumrio

    Introduo 1

    Captulo 1

    Poltica e oralidade helenas

    10

    Captulo 2

    Genealogia da democracia

    26

    Captulo 3

    Arqueologia da democracia

    55

    Captulo 4

    Etimologia da democracia

    96

    Captulo 5

    Significado poltico da democracia

    122

    Concluso 143

    Referncias Bibliogrficas 147

  • viii

    A prendre le terme dans la rigueur de

    lacception, il na jamais exist de

    vritable Dmocratie, et il nen existera

    jamais...

    (Rousseau, Du contract social)

    xalepa\ ta\ kala/ e)stin opv exei

    maqein (provrbio grego)

    As coisas belas so difceis de aprender

  • Introduo

    Em dois captulos com o mesmo ttulo, Conhecimento comum e conhecimento

    cientfico, decerto que em diferentes obras, Materialismo racional e Racionalismo

    aplicado, Bachelard destaca aquilo que considera o ponto crucial para que se

    comece a pensar no carter do conhecimento cientfico: a ruptura com o senso-

    comum: com efeito, julgamos que o progreso cientfico manifesta

    sempre uma ruptura, perptuas rupturas, entre o conhecimento comum e o

    conhecimento cientfico.1 E ainda:

    Mas nosso debate sobre as relaes entre o conhecimento vulgar e o conhecimento cientfico ficar, talvez, mais claro se conseguirmos separar nitidamente o conhecimento cientfico do conhecimento sensvel.2

    Sem dvida, isso corresponde indicao de que entre esses dois

    conhecimentos h descontinuidade, relao tal que aponta, entre outras coisas, os

    limites existentes entre as realidades a que se referem esses conhecimentos, pois o

    conhecimento comum, at mesmo por princpios enraizados no realismo, no

    ultrapassaria o que os sentidos podem alcanar e o conhecimento cientfico estaria

    voltado para projetar o pensamento para alm deste alcance, em que pesem as

    ausncias de suporte experimental estvel e as objees da razo:

    Com toda a evidncia, aqui, o objeto percebido e o objeto pensado pertencem a duas instncias filosficas diferentes. Pode-se, ento, descrever o objeto duas vezes: uma vez como o percebemos e uma vez como o pensamos.3

    1 Bachelard, Gaston. Le matrialisme rationnel. 2007: 207. No original consta: Nous croyons, em effet, que le progrs scientifique manifeste toujours une rupture, de perptuelles ruptures, entre connaissance commune et connaissance scientifique [...] 2 Bachelard, Gaston. Le rationalisme appliqu. 1998: 113. No original consta: Mais notre dbat sur les raports de la connaissance commune et de la connaissance scientifique ser peut-tre plus clair si nous arrivons sparer nettement la connaissance scientifique et la connaissance sensible 3 Bachelard, Gaston. Le rationalisme appliqu. 1998: 109. No original consta: De toute vidence, ici, lobjet peru et lobjet pens appartiennent deux instances philosophiques diffrents. On peut alors dcrire lobjet deux fois: une fois comme on le peroit, une fois comme on le pense.

  • 2

    Por isso mesmo Bachelard fala nos diferentes caracteres das realidades a que

    se prope estes dois tipos de conhecimento e possibilita ir alm para assinalar as

    diferenas igualmente prprias de ruptura, de descontinuidade entre os caracteres

    dos instrumentos que os servem para aproxim-los de suas especficas realidades.

    Para o conhecimento vulgar um jogo de lentes amplia um campo microscpico para o

    olhar, ou uma balana pesa miligramas (caso seja muito sensvel). Para o

    conhecimento cientfico um jogo instrumental num microscpio eletrnico capta

    comprimentos de onda impossveis para o olhar, mesmo com lentes, e um

    espectroscpio de massa pesa istopos baseado na ao de campos eltricos e

    magnticos. No primeiro, a instrumentalizao direta; no segundo, a

    instrumentalizao indireta.

    Assim, embora tenham como referncia procedimentos na Fsica e na

    Qumica, tomamos estas reflexes de Bachelard para aceitar o desafio que nos

    inspiram: discutir um tema em um tempo de uma sociedade completamente

    inacessvel aos nossos sentidos, de acesso impossvel por meio de qualquer

    instrumentalizao, porm acessvel ao pensamento por meio de documentos,

    descries e interpretaes que, devido a esse carter indireto de contato, o pe em

    permanente discusso.

    Nesta dissertao abordaremos a questo concernente ao nascimento e

    estabelecimento da democracia em Atenas, argumentando em favor da oralidade e

    da compreenso de poltica entre os gregos como fatores que podem ter

    possibilitado esse surgimento. Mas uma realidade sempre plural, sempre sntese de

    mltiplas determinaes, como bem apontou Marx. Com isso, poderemos deparar-

    nos com muitas explicaes, mas nenhuma com a pretenso de sobrepujar a outra.

    Alis, caracterstico das cincias sociais mesmo, no que diz respeito ao seu

    nascimento, a pluralidade de concepes sobre a mesma realidade. Atestamos isso

  • 3

    ao estudarmos seus quatro clssicos, a saber: Auguste Comte, Karl Marx, mile

    Durkheim e Max Weber.

    Bachelard nos ensina, de forma admirvel, como pode a velhice contribuir

    para a memria. Ao invs de caminhar na direo do lugar comum, que afirma a

    perda de memria, oriunda de uma idade avanada, como algo negativo, prefere

    pensar na possibilidade de reconstruo da memria via imaginao criadora, que

    refaz as imagens, reinventando-as, recriando o passado j esquecido, de acordo com

    a fertilidade da mente. Da mesma maneira, quanto mais nos afastamos dos gregos,

    mais fugidias, mais sombreadas vo ficando as lembranas sobre este povo. No por

    ausncia de documentos, pois estes esto a em abundncia, e o que foi escrito em

    tempos mais recentes dificilmente se perde, mas por afastamento cada vez maior de

    nossa realidade em relao realidade daqueles homens, arquitetos que foram de

    nossa estrutura poltica.4 Longe de desanimar o pesquisador, esse fato deve apenas

    incit-lo, convid-lo a mergulhar nessa realidade completamente aberta, e cada vez

    mais aberta s interpretaes, s discusses, s invenes.

    No h qualquer coisa errada ou condenvel em se interpretar o passado.

    Menos ainda em criar conhecimento sobre o passado num tempo presente. A Histria

    se nos impe justamente como um desafio, como algo a ser enfrentado e

    compreendido, para logo depois ser combatido e transformado. A maior derrota que

    um pensador pode obter em sua vida acadmica ser um escravo da histria,

    aceitando-a passivamente. Todavia isso no significa liberdade para se dizer o que

    bem entender. No mbito do conhecimento h que se proceder com mais preciso.

    4 O professor Gerd Bornheim, falando a respeito dos pr-socrticos e de seu pensamento, afirma: Os vinte e cinco sculos que nos separam deles, tornaram a sua obra distante e aparentemente estranha s preocupaes do pensamento de hoje. Comparados moderna terminologia filosfica, expressam-se de um modo no raro enigmtico, frequentemente acusado de anti-filosfico. Tomamos essa passagem como inspirao para nossa tarefa, pois na poltica a questo da fossilidade e inutilidade de alguns conceitos, de algumas noes, tambm se impe nestes to pobres tempos do pensamento. Bornheim, Gerd. Os filsofos pr-socrticos: 15.

  • 4

    preciso fundamentar a proposta, embas-la com argumentos consistentes e

    coerentes, convencendo o leitor via razo argumentativa. Esse pequeno trabalho

    pretende, entre outras coisas, mostrar o quanto essas consideraes relevantes

    estiveram ausentes de muitos trabalhos cuja proposta anunciava-se como terica.

    Parece notvel que no se encontrem estudos filosficos ou em teoria poltica

    a respeito da democracia na Grcia antiga. Depois dos prprios gregos, apenas

    historiadores dedicaram-se a escrever a esse respeito. Porm, limitando-se sempre,

    como acontece no campo da histria, a enumerar fatos, a querer melhor elucid-los,

    a buscar dar-lhes encadeamento lgico. Discusso terica ou criao de

    conhecimento no foram comuns. Tratando-se de momento decisivo para a histria

    poltica do povo grego e, mais ainda, de toda a poltica ocidental, faz-se mister um

    estudo sobre valores, compreenses de mundo, experincias de pensamento,

    discusso terica em geral a respeito deste perodo e sua experincia entre os

    gregos.

    Procuraremos, deste modo, caracterizar a democracia em muitos aspectos,

    quantos forem possveis, ao mesmo tempo em que tentaremos interpret-la de

    vrias formas, mostrando sua riqueza de possibilidades, bem como deixando clara

    uma idia sobre conhecimento: vrias interpretaes sobre um mesmo

    acontecimento podem ser vlidas. A atitude de quem pergunta por algo nos parece

    apresentar-se desse modo. Longe de pretender uma pseudo-neutralidade

    cientfica, mas no seria uma redundncia colocar o termo grego antecedendo o

    nome moderno? buscaremos exatamente nos posicionarmos em relao

    democracia com bastante clareza, o que no significa necessariamente estar mera e

    simplesmente em seu favor ou contra ela.

    Para tal empreendimento, preciso que argumentemos a respeito de algumas

    questes de cunho epistemolgico e gnosiolgico, direcionando, assim, nossa

    discusso. Que significava, por exemplo, a manifestao das coisas entre os gregos?

  • 5

    Como interpretava esse povo o surgimento de uma nova possibilidade de vida

    poltica? A nosso ver, faz-se mister delinear uma discusso ainda que breve a

    respeito do significado que o termo criao pode ter assumido entre eles.

    No esprito do povo grego predominava a idia de determinao das coisas,

    ou seja, da manifestao, florescimento daquilo que estava na natureza. O

    surgimento de uma nova realidade era entendido como o devir de algo que

    sistematizar Aristteles mais tarde, existia em potncia. Todavia a discusso no se

    encerra aqui. H um captulo parte, extremamente delicado e difcil, do qual no

    podemos nos eximir: esse captulo chama-se Plato.

    Nos muitos textos aos quais poderamos recorrer parece-nos que Plato

    sugere um entendimento sensivelmente diferente em relao a esse esprito grego. A

    idia de parto do conhecimento, explicitada claramente no dilogo Teeteto nos

    faz elaborar a seguinte considerao: um parto, aps uma gestao, a

    manifestao, a determinao de algo que j estava em ns, ou trata-se de uma

    criao, de uma completa e diferente inveno? Se admitirmos a compreenso de

    criao como a ordenao de uma realidade natural, elaborada de maneira

    diferente por um ser humano que primeiramente a sonhou, poderemos considerar o

    parto do conhecimento como sendo essa inveno. Mas se considerarmos que a idia

    parida era apenas a determinao de algo que j estava na natureza, teremos

    dificuldades em aceitar a compreenso segundo a qual o surgimento de algo novo

    significava, entre os gregos, uma legtima criao.

    Mas as dificuldades no se encerram nesse ponto. Tratando-se dos gregos,

    no podemos deixar de avanar nessa discusso, sob pena de sermos mal-

    interpretados e o pior, de ns mesmos no entendermos o mundo no qual

    procuramos imergir. A teoria da reminiscncia em Plato constantemente

    considerada como tolhedora de qualquer possibilidade de criao, pois trataria

    apenas de se reconhecer algo de que se esqueceu. Entretanto essa nos parece uma

  • 6

    interpretao muito pobre e pouco esclarecedora a respeito do pensamento do

    filsofo. Se todo conhecimento for simplesmente um reconhecimento de algo que j

    est, estaremos reduzidos a no mais do que um jogo de memria. Conhecer ser

    lembrar bem. No se discute com o outro apenas para lembrar-se de algo.

    Muito pelo contrrio, se desejamos nos aproximar do divino por intermdio da

    filosofia, como nos diz Plato no Crtilo, quando esclarece o significado da palavra

    aleteia, o dilogo deve ter uma funo muito mais forte e penetrante na alma do

    indivduo do que simplesmente lembr-la. Deve ter uma funo transformadora.

    Fosse o dilogo apenas um meio de se descobrir o que est no mundo, esse mundo

    seria conservador. A prpria democracia, assunto do qual nos ocuparemos nesse

    trabalho, seria apenas a descoberta de algo que j estava na natureza e precisava

    apenas ser reconhecido. Segundo nossa compreenso a democracia foi, pelo

    contrrio, uma inveno dos gregos visando justamente descentralizar o comando,

    reorganizando-o militarmente.

    Os gregos, esse povo sbio e ingnuo5, gostavam de experimentar e saborear

    a vida. Eram muito mais corajosos para a vida do que podemos conceber, vivendo e

    sentindo todas as suas descobertas, sem terem a dimenso de suas posteriores

    conseqncias. Esta considerao nos faz entender um pouco mais ainda que

    apenas em parte como foi possvel, em um perodo to curto de tempo, ou seja,

    menos de um sculo, os gregos passarem por tantas transformaes polticas,

    intelectuais e artsticas como passaram ao longo de todo sculo V. Nenhum povo

    sairia inclume e no transformado tendo experimentado tirania, oligarquia,

    democracia, guerras freqentes, mudanas to bruscas de comando, mudana de

    5 Consideramos importante esclarecer, evitando assim controvrsias desnecessrias, a utilizao do termo ingnuo no texto. No pretendemos que ela signifique coisa alguma alm de simplesmente espontneo, ou de esprito jovem, jovialidade serena. No fizemos uso do termo com qualquer sentido pejorativo que o termo possa assumir hoje, seja de bobo, ignorante, estpido ou similares. Falamos tambm do povo de maneira geral, pois veremos que houve uma inteno por detrs da aparente e difundida inteno, poca, do estabelecimento da democracia.

  • 7

    Mito para Filosofia que significou mudana de postura em relao ao mundo ,

    ruptura na maneira prpria de se fazer arte...

    A Grcia parece-nos possuir uma peculiaridade em relao aos outros povos:

    quando a estudamos, eleger um tema para sobre ele debruar-se pode comprometer

    todo o trabalho. Isso porque essa sociedade relacionava com tal intimidade todas as

    suas realidades e pensava-se sempre de maneira totalizadora que, ao tratar um

    tema como a democracia, se desejamos honestidade intelectual e rigor na

    investigao, teremos de passar por tal gama de outros temas, como cultura,

    ambiente espiritual, movimento sofstico, contribuio dos historiadores, peas

    teatrais, poesia, arte em geral, que nos veremos completamente imersos num

    mundo do qual nada pode ser colocado de lado em detrimento de uma anlise

    especializada.

    Prestados estes primeiros esclarecimentos, caso sejam bem acolhidos,

    poderemos seguir com nosso trabalho, desenvolvendo-o ao longo de cinco captulos,

    a saber: Poltica e oralidade helenas; Genealogia da democracia; Arqueologia da

    democracia; Etimologia da democracia; Significado poltico da democracia. Com

    estes captulos pretendemos reunir alguns elementos que possam caracterizar, com

    qualidade, a democracia ateniense.

    No primeiro captulo pretendemos fazer notar a importncia da oralidade para

    a poltica ateniense. Tomaremos o trabalho de uma historiadora que se dedicou a

    investigar o fenmeno prprio da oralidade entre os gregos e toda a sua importncia

    para a formao do homem daquele tempo. Este trabalho possui elementos e

    documentao a respeito da oralidade que sero de grande valia para a relao que

    tencionamos estabelecer.

    No segundo captulo procuraremos investigar as origens histricas da

    democracia a partir da deposio dos tiranos e das reformas sociais operadas por

    Slon. Consideramos que partir deste ponto ser suficiente, sem que se precise

  • 8

    retroceder aos sculos X e XI a.C., sobre os quais a documentao parca e lacunar.

    Aps t-los estudado, consideramos que no comprometeriam o nosso trabalho caso

    no lhes fizssemos referncia.

    O terceiro captulo abordar a questo da alma da democracia. Seus

    princpios de funcionamento e manuteno, aquilo que a caracteriza enquanto tal e

    justificou, para os gregos, que lhe dessem este nome. Neste captulo entenderemos,

    com mais detalhes, como pde a democracia ser favorecida pela oralidade,

    componente de fundamental importncia para sua constituio. Teremos tambm a

    oportunidade de pormenorizar o significado que a participao na vida poltica

    assumiu entre os gregos.

    O captulo sobre etimologia, que vem a seguir, discutir a formao

    etimolgica do termo, a partir de duas integrantes que o compe. Nossa proposta

    questionar as tradues feitas ao longo da histria, bem como questionar os prprios

    elementos gregos que constituem a palavra. Os prprios estudiosos da Antiguidade

    divergem a respeito destes elementos e, quando convergem, divergem a respeito de

    suas tradues! Veremos como a soma de componentes, transformando-se numa

    nova palavra, significam muito mais do que sua simples justaposio.

    No captulo sobre o significado poltico da democracia, nossa preocupao

    ser a todo instante delinear, o quo claramente nos for possvel, as influncias da

    democracia para a histria grega subseqente, bem como a influncia na prpria

    compreenso de poltica de alguns autores gregos, que ter deixado conseqncias e

    repercutido sobre a compreenso de poltica que se teve posteriormente.

    Por fim, gostaramos de dizer que esse um trabalho que se escreve com

    amor. No o amor pelo conhecimento pois esse deve ser imanente a todos aqueles

    que pretendem seguir a vida filosfica mas o amor presente na alma, no corao, o

    amor que faz com que se escreva por prazer, e no por dio contra outro(s). Um

    filsofo no deve jamais escrever com raiva, rancor ou dio no corao, pois, o dio

  • 9

    , considerando intelectualmente, a Eterna Negao..., como bem nos alerta Oscar

    Wilde.6

    6 Wilde, Oscar. De profundis, Complete works of Oscar Wilde, 1989. No original consta: hate [..] is, intellectually considered, the Eternal Negation.

  • Captulo 1

    Poltica e oralidade helenas

    A faculdade oratria situa-se em plano idntico ao da inspirao das musas aos poetas. Reside antes de mais nada na judiciosa aptido para proferir palavras decisivas e bem fundamentadas. (Werner Jaeger, Paidia)

    Qual a importncia da oralidade para os gregos? O que significava fazer poltica

    numa sociedade desprovida de tradio escrita? So essas as questes desse

    captulo. Procuraremos refletir sobre todas as implicaes polticas de uma cultura

    majoritariamente oral, alm de analisar o significado cultural da palavra falada para

    um povo como o grego. Desempenhava a memria um papel relevante, por conta da

    ausncia de uma tradio escrita? Que significava aprender, por exemplo, a Ilada

    e a Odissia apenas por intermdio da citao paterna, ou atravs da convivncia

    social? Foram criados laos integrativos caractersticos do povo grego, possibilitando

    assim o surgimento, na histria, de uma maneira peculiar de se pensar a poltica?

    Em caso afirmativo, ter a realizao dessa poltica alguma relao com essa

    tradio oral? As diferenas entre a maneira de se conceber no apenas o

    aprendizado, a comunicao, a poltica, mas a prpria vida, caso tenhamos xito em

    desenvolver todas essas indagaes a respeito da cultura grega, podero ser

    compreendidas sob uma nova perspectiva.

    No h valor moderno que possa estabelecer qualquer relao com a

    oralidade grega em termos de significado e importncia para o povo. A experincia

    grega com a fala, o discurso, o debate, marcavam de tal forma a alma e a

    constituio do indivduo como um todo que difcil pensar, principalmente em

    tempos de to fraca e lacunar formao humana, em algo que possa ser indicado

    como indispensvel para a alma e dela positivamente indelvel, no que diz respeito

    sua constituio.

  • 11

    A prpria compreenso a respeito do que seria a oralidade e seu valor entre

    os gregos , por ns, pouco estudada. O trabalho a que faremos constantes

    referncias ao longo desse captulo, seja precisando o entendimento a respeito de

    oralidade e escrita, seja discutindo-a entre os gregos ser o de Rosalind Thomas.1

    Nessa obra a autora oferece um esforo de compreenso justamente a respeito do

    tema ao qual dedicaremos esse captulo.

    Muitas das perguntas por ns acima elaboradas encontraro, no trabalho da

    pesquisadora, excelentes caminhos para desenvolvimento. Comecemos, portanto,

    entendendo a oralidade a partir de suas diferenas com relao ao nosso modo de

    compreend-la. Diz a autora, logo de sada:

    A identidade prxima e confortante entre letramento e civilizao, que to forte na cultura do sculo XX, comea a parecer perifrica e, na pior das hipteses, irrelevante para a compreenso de uma sociedade como a da Grcia clssica e, at certo ponto, de todo o mundo antigo. Pois as linhas entre cultura e falta de cultura, educao e rusticidade eram traadas de modo diferente; a relao entre comunicao escrita e oral, e de ambas com a educao mais elevada, assumiam formas bem diferentes.2

    Temos aqui a primeira tentativa de esboar uma diferena entre a

    compreenso antiga e a moderna. Alm disso, comeamos a tatear a idia que se

    fazia da oralidade entre os gregos.

    Num segundo momento, preciso desenvolver essa noo de oralidade, para

    que no fique empobrecida, compreendida apenas como fala. Assim fosse, todo

    povo antigo que apenas se comunicasse pela fala seria enquadrado e reduzido a uma

    nica possibilidade de existncia, e os gregos seriam semelhantes a todos os seus

    povos vizinhos nos quais a fala predominasse. Como Rosalind Thomas mostra, essa

    1 Thomas, Rosalind. Literacy and orality in ancient Greece, 1992. 2 Idem, pg 2. No original consta: The close and comforting identity of literacy with civilization that is so strong in twentieth-century culture begins to seem peripheral and at worst irrelevant to the understanding of a society like that of the classical Greece and to some extent the whole of the ancient world. For the lines between culture and and lack of culture, education and backwardness, were drawn differently. (traduo para o portugus de Raul Fiker)

  • 12

    a tendncia da maior parte dos estudos modernos a respeito do tema.3 Ns

    procuraremos, alertados pela pesquisa da autora, nos colocar distncia dessa

    reduo simplificadora. Um exemplo simples ajuda-nos a entender o problema: seria

    a Grcia oral do sculo V a.C. o mesmo tipo de sociedade se comparada a uma tribo

    africana que se viu letrada e desenvolvedora de uma escrita apenas no sculo XIX? A

    oralidade no significa, portanto, homogeneidade, socializao e interao em todo

    lugar no qual est presente. Enquanto na Grcia pode-se estudar o quanto esse

    fenmeno contribuiu para a integrao social e para as transformaes polticas, em

    outros povos ele no impediu o individualismo4 e mesmo o afastamento entre os

    indivduos, por meio de guerras entre as famlias.

    As implicaes de uma cultura oral no funcionamento da poltica parecem

    assumir diferentes propores em relao s implicaes em outras reas. O debate

    entre os homens que se reuniam na gora, por exemplo, teve carter determinante

    no funcionamento da democracia, podendo mesmo ser considerado um de seus

    princpios. Alm disso, colaborou para o desenvolvimento da memria, elemento

    fundamental na cultura grega. Enquanto hoje o esquecimento aceito sem maiores

    questionamentos5, talvez mesmo devido cultura escrita e livreira, na Grcia era de

    fundamental importncia, inclusive para a prpria defesa num tribunal, o atributo da

    capacidade de reter o que se tinha ouvido. Plato nos mostra quo cara ela pode

    ser:

    3 Idem, pg 10. 4 Apenas por precauo, enfatizaremos que o individualismo aqui nomeado no o ingls, correntemente estudado na cincia poltica. Simplificamos, pensando em individualismo apenas como ausncia de laos integrativos de esprito coletivista em geral. 5 Barthes, Roland. Leon, 1978. Aula inaugural da cadeira de semiologia literria do Colgio de Frana, pronunciada a 7 de janeiro de 1977. A impresso que temos de que Barthes complacente com essa perda de memria com o passar dos sculos, e hoje a considera uma fora da vida contra a qual no se deve lutar. No original consta: Jentreprends donc de me laisser porter par la force de toute vie vivante: loubli. e a traduo fica: Empreendo, pois, o deixar-me levar pela fora de toda vida viva: o esquecimento. (Traduo de Leyla Perrone-Moiss)

  • 13

    Engenhosssimo Teuth, um homem capaz de criar os fundamentos de uma arte, mas outro deve julgar que parte de dano e de utilidade possui para quantos dela faro uso. Tu, neste momento, como pai da escrita que s, por lhe quereres bem, apontas-lhes efeitos contrrios queles que ela manifesta. que essa descoberta provocar nas almas o esquecimento de quanto se aprende, devido falta de exerccio da memria, porque, confiados na escrita, do exterior, por meio de sinais estranhos, e no de dentro, graas a esforo prprio, que obtero as recordaes.6

    Essa espcie de mito com histria contado por Scrates deixa clara a

    importncia da fala em detrimento da escrita, mesmo reproduzida por um autor que

    escreveu mais de trinta dilogos. bem provvel, alis, que Plato tenha escrito em

    dilogos justamente por desejar ver sua obra discutida, dramatizada, relacionando,

    portanto, dois ou mais participantes, fazendo assim com que se estabelecesse uma

    relao, uma conversa, no apenas uma leitura solitria. Rosalind Thomas faz a

    seguinte observao, a nosso ver extremamente pertinente:

    Por certo havia uma gama extraordinariamente sofisticada de atividade literria e intelectual nos sculos do perodo clssico. A maior parte da literatura grega, porm, tinha por finalidade ser ouvida ou cantada transmitida oralmente, portanto e havia uma forte corrente de averso pela palavra escrita, mesmo entre os altamente letrados: documentos escritos no eram considerados, por si mesmos, prova adequada em contextos legais at a segunda metade do sculo IV a.C. A poltica era conduzida oralmente.7

    Vemos, portanto, como a escrita estava a servio da fala, no o contrrio.

    Escrevia-se para melhor dizer mais adiante.

    6 Plato, Fedro, 275a. No original consta: "W texnikwtate Qeu/q, alloj me\n tekein dunato\j ta\ te/xnhj, alloj de\ krinai tin' exei moiran bla/bhj te kai wfeliaj toij me/llousi xrh=sqai: kai nu=n 275.a su/, path\r wn gramma/twn, di' eunoian tou)nantion eipej h du/natai. tou=to ga\r twn maqo/ntwn lh/qhn me\n e)n yuxaij pare/cei mnh/mhj a)melethsi#, ate dia\ pistin grafh=j ecwqen u(p' a)llotriwn tu/pwn, ou)k endoqen au)tou\j u(f' au(twn a)namimnvskome/nouj: (a traduo para o portugus de Jos Ribeiro Ferreira) 7 Thomas, Rosalind, op. cit, pg 3. No original consta: Certainly there was a extraordinarily sophisticated range of literary and intellectual activity in the classical centuries. Yet most Greek literature was meant to be heard or even sung thus transmited orally and there was a strong current of distaste for the written word even among the highly literate: written documents were not considered adequate proof by themselves in legal contexts till the second half of the fourth century b.C. Politics was conducted orally.

  • 14

    Qual a relao entre essa oralidade, extremamente valorizada pelos gregos, e

    a poltica? Parece-nos que a resposta pode ser encontrada na prpria vida poltica da

    polis, nas suas vivncias e vicissitudes, experincias e peripcias de realizao,

    modos de ser dela e dos que nela se inserem. Os grandes lderes entre os gregos,

    mesmo para alm do sculo V a.C. foram sobretudo grandes oradores. Como nos diz

    Finley: desejar liderar Atenas implicava um grande esforo de tentar convencer

    Atenas, e parte essencial disso consistia em oratria pblica.8

    A idia de que possvel se conduzir uma multido a partir do discurso

    empolgante, inflamado, tocante principalmente na alma, foi fundamental para os

    gregos e provavelmente desse efeito provocado pelo discurso, principalmente ao

    longo do perodo democrtico, que Plato perceber a importncia da fala, de sua

    funo, como veremos mais adiante, psicaggica, condutora de almas. E o problema

    poltico estava to ligado fala e ao discurso, desvinculado, portanto, de qualquer

    tradio escrita, que inmeros pensadores escreveram contra o regime democrtico

    e jamais sofreram qualquer tipo de condenao, ao passo que Scrates,9 que jamais

    escreveu uma nica linha, foi condenado morte e despertava um dio feroz em

    seus adversrios.

    O problema da oralidade no estava apenas associado a uma positividade no

    seu exerccio. No se toma uma posio frente ao mundo apenas pelas vantagens

    oferecidas por ela. Havia tambm uma negao, um ataque ao livro e a seus efeitos,

    bem como a qualquer tradio escrita. O livro no permite um questionamento, no

    responde s perguntas de seu interlocutor, tampouco as faz. No livro, a idia perde

    sua mobilidade, deixa de devir e passa a ser, adquirindo um estancamento

    8 Finley, Moses. Democracy ancient and modern, 1973: 65. No original consta: [...] to wish to lead Athens implies the burden of trying to persuade Athens, and an essential part of that effort consisted in public oratory. (A traduo para o portugus de Walda Barcellos e Sandra Bedran). 9 Idem: 172, Finley faz essa aluso.

  • 15

    pernicioso filosofia e sua proposta mais originria. Plato fez essas observaes

    com muita propriedade no Fedro. No estamos, portanto, trazendo novidade alguma,

    apenas fazendo o que justamente Plato nos aconselhava, contra os livros: exercitar

    a memria e lembrar-se, ou melhor, no se esquecer, a-lthein. Intrigante

    compreenso da palavra grega comumente traduzida por verdade, pensada aqui

    enquanto negao do verbo esquecer! Mas como pode ter comeado essa ardente

    devoo pela palavra falada? Finley arrisca uma resposta: esta elevao da oratria

    a uma alta forma literria o resultado final da paixo grega pela palavra falada, um

    aspecto da sua vida que sempre se deve ter em conta, na considerao de sua

    literatura at o fim do perodo clssico.10

    Ainda assim, o autor no explica, pormenorizadamente, a possvel origem

    seja terica, seja prtica desta paixo pela palavra falada. Arriscamos conjecturar ,

    num breve parntese, a respeito da possvel origem desta paixo na vida espiritual

    dos gregos. Se tomarmos, por exemplo, as prticas das iniciaes nos ritos e

    mistrios eleusinos para ficarmos em apenas um exemplo da vida espiritual grega

    veremos que uma das atividades mais importantes era a declamao dos versos,

    dos ensinamentos, das palavras mgicas no momento da iniciao. A maior das

    preocupaes dizia respeito maneira atravs da qual o sacerdote enunciaria estes

    versos, estas lies ticas e ecatolgicas. O tom da voz, a impostao, o ritmo,

    mesmo a oscilao, tudo deveria ser minuciosamente acertado de acordo com certas

    regras pr-estabelecidas para que o ritual fosse considerado aceito e vlido. Um

    simples gaguejar, um pigarro, uma elevao mnima do tom era suficiente para

    macular todo um ritual!

    10Finley, Moses. The ancient Greeks, 1981: 95-96. No original consta: This elevation of oratory to a high literary form is the final outcome of the Greek addiction to the spoken word, an aspect of their life which has always to be kept in mind in any consideration of their literature down to the end of the classical period. ( A traduo para o portugus de Artur Moro).

  • 16

    Essa oposio entre fala e escrita no nica. A fala opunha-se, e pode

    continuar a se opor inclusive s imagens. Em tempos nos quais a imagem nos tirou o

    direito de sonhar, de formar nossas prprias imagens a partir dos sons, dos

    discursos, das histrias vividas e ouvidas, o entendimento de como podia a palavra

    ser to mais forte e contundente em relao aos fatos, traz inclusive certa

    dificuldade de compreenso. Levada s ltimas conseqncias, essa prtica contraria

    inclusive o realismo ingnuo e o empirismo estritamente materialista, pois a palavra

    podia ir contra as imagens, contra o que o real dizia. Alis, ela questionava a

    realidade do real, j, com segurana, podendo ser colocado entre parnteses. Ou

    no um discurso contra as imagens fceis e prontas, falsas e ilusrias que Plato

    nos oferece na alegoria da caverna? Uma bela histria a esse respeito, quem nos

    conta Vidal-Naquet:

    O Alexandre que vemos aparecer (antes reaparecer, progressivamente, nos trabalhos analisados por Chantal Grell), o Alexandre duplo, pura glria para uns, puro furor para outros, esse Alexandre desconhecido (ou quase) dos pintores e dos escultores. Rousseau, por exemplo, que conhece menos (ao que parece), a respeito de Alexandre, os textos do que os quadros, no sabe da existncia do Alexandre bbado, o Alexandre smbolo brutal de dominao militar, e ainda menos o Alexandre que encarna um paganismo destinado a ser vencido. A exceo encontrada por Christian Michel no meio desses inumerveis Alexandres virtuosos que desfilam por todo o sculo XVIII a de um quadro de Louis Lagrene que data de 1787. verdade que ele se insere num conjunto perfeitamente ortodoxo, inspirado mesmo, diretamente, na tradio do primeiro pintor de Lus XIV, Le Brun, mas o assunto de 1787 novo: Fidelidade de um strapa de Dario, isto : o suplcio inflingido ao governador de Gaza, o eunuco Batis (ou Btis) sendo torturado porque havia permanecido fiel ao rei legtimo; esse quadro, mostrando Alexandre cruel e cheio de fria, chocou. Nem os crticos e nem os filsofos tinham conseguido abalar a imagem do macednio.11

    11 Vidal-Naquet, Pierre. Os gregos, os historiadores, a democracia: o grande desvio. 2000: 122.

  • 17

    Vejamos que, embora ele jogue a favor das imagens, num primeiro momento,

    pois revelou um Alexandre at ento desconhecido, cuja personalidade violenta os

    discursos e crticos no haviam at ento revelado, ele oferece uma imagem do

    imperador para mero choque do espectador. No foi uma imagem subversiva,

    provocativa, pensativa, que convida a um dilogo. Toda a erudio do mundo pode

    ser ali desenvolvida, falada, discursada. Mas o produto da imagem no foi um

    produto voltado para o discurso. Aqui se abre um horizonte de discusso no qual no

    pretendemos entrar, mas, tal sua relevncia, devemos minimamente apontar alguns

    encaminhamentos. Deve a pintura estar a favor da formao do homem? Deve a

    imagem produzida pelo artista que pinta convidar ao dilogo, ou deve apenas

    entregar uma realidade acabada? A pintura um caminho que se abre ou uma

    verdade que se pretende apresentar? Como pensar uma arte da imagem plena de

    dinamismo, movimento, devir?

    Qual era a fora do discurso? Quo tocante poderia ser, nos mais diversos

    mbitos da vida, um lgos? Parece, por vezes, que o grande orador era aquele no

    s capaz de convencer, mas de convencer contra a vontade alheia, mostrando que

    possvel tocar a alma com a fala. Percebemos isso com mais facilidade nos debates

    filosficos quando, mesmo derrotado em sua argumentao, o debatedor no deseja

    mudar suas posies, pois sabe que alterar seus conhecimentos por conta de um

    lgos aceitar que outro o mude. O orgulho no apenas dos filsofos, mas dos

    homens em geral, no permite que se deixe por outro mudar. Assim solidificam-se

    convices e criam-se espritos obscurecidos pelo medo da filosofia enquanto

    argumentao ad hominem. Chester Starr fala de um agudo e incisivo Temstocles

    e de sua oratria persuasiva, cuja qualidade trazia para seu lado o apoio da

    maioria dos cidados.12

    12 Starr, Chester G. O nascimento da democracia ateniense. 2005: 37.

  • 18

    Poderia ser nica a experincia de se procurar falar mais a respeito dos

    gregos e menos sobre eles escrever. A prpria leitura em voz alta dos textos gregos,

    se possvel em grego, d a dimenso do que experimentavam os gregos ao

    conversarem. A linguagem era para eles algo a ser saboreado, experimentado, e os

    discursos serviam justamente para esse propsito. Diz-se comumente que, a

    respeito de certas experincias, preciso lev-las s ltimas conseqncias para

    melhor entend-las. No basta dedic-las alguns poucos minutos, ou apenas uma

    chance. preciso viv-las longa e densamente. Possivelmente seja esse o caso

    tambm com a oralidade em relao imagem e escrita. Uma vida que pudesse

    ser vivida, hoje, sob o signo da oralidade, sem qualquer apoio da escrita ou de

    imagens, ou pelo menos no to intensamente quanto se vive hoje em dia a elas

    exposto, poderia quem sabe? experimentar esse prazer de tudo aprender pela

    conversa, de todos os pensamentos desenvolver por meio dos discursos.

    Um exemplo a esse respeito ironia do destino! nos oferecido na obra de

    Patrick Susskind13, O perfume, no qual temos a oportunidade de conhecer a histria

    de Jean-Baptiste Grenouille, cuja vida parece estar marcada, mesmo antes do

    nascimento, para ser histrica. Jean-Baptiste nasce no meio da pobreza francesa, na

    sujeira, e sua me pretende mat-lo, por considerar seu nascimento inoportuno,

    uma desgraa. Salvo por homens que ouvem seu choro, tem a oportunidade de

    viver. Mas no levar uma vida comum. Sua constituio lhe faz nascer com uma

    capacidade olfativa muito superior humana. Alis, muito superior mesmo a dos

    animais. Essa poderamos chamar de ddiva? lhe permite uma experincia

    esttica sem igual. O restante da histria deixamos para o leitor curioso, inclusive

    porque conjecturamos que uma experincia como essa deva ser vivida, no contada.

    13 Patrick Susskind. Das Parfum. 1994.

  • 19

    Consideremos agora o seguinte: e se tivssemos a oportunidade de viver uma

    vida com todos os sentidos desenvolvidos como o de Jean-Baptiste? Uma vida levada

    s ltimas conseqncias? Contamos essa pequena histria esttica para que se

    pondere quais seriam as conseqncias de se levar uma vida entregue oralidade

    como fizeram os gregos.

    A retrica no teria atingido o patamar de importncia conseguido na

    antiguidade caso os gregos no valorizassem a oralidade. Mesmo os textos escritos,

    surgidos tardiamente na Grcia, quando j se tinha uma vida intelectual ativa e

    muito produtiva, eram lidos em voz alta, principalmente tratando-se dos textos

    literrios, como nos mostra Rosalind Thomas.14 Foi a manuteno dessa tradio que

    fez a retrica ser parte indispensvel da formao superior dos homens gregos, mas

    tambm romanos. Ler era uma atividade que no tinha um fim em si mesmo. Lia-se

    para memorizar o texto e recit-lo em voz alta. Por vezes, o prprio ato de escrever

    um texto visava a sua leitura em voz alta, ou memorizao para posterior recital. O

    exemplo clssico Plato, como falamos anteriormente. Na carta VII, que lhe

    atribuda, o filsofo pondera jamais ter deixado sob forma escrita o que lhe parecia

    mais importante, sobrando para seus escritos o lugar de meros apoios para

    recordao, bem como contedo da parte menos importante de seu pensamento.

    Essas consideraes levaram inclusive uma tradio inteira da filosofia a criarem

    uma nova interpretao de Plato, a partir do que se chama de agrapha

    dogmata, ou seja, os ensinamentos no-escritos.

    Lembrando-nos de Scrates e de sua contribuio para a filosofia, vemos

    como a oralidade era independente e produtiva, no havendo espao para qualquer

    jogo ideolgico que pudesse atribuir a essa tradio uma lacuna na formao do

    homem. Por isso no entendemos a problematizao em torno do tema educao

    14 Thomas, Rosalind. Literacy and orality in ancient Greece, 1992: 13.

  • 20

    nos dias de hoje, no qual se aponta tanto para a falta de estrutura, fator que seria

    comprometedor da qualidade do ensino. No apenas sem o auxlio da escrita, mas

    sem caderno, lpis, computador, livros, sala de aula, quadro-negro, giz, cadeira, ou

    o que mais se deseje pensar, discutiam os filsofos os problemas mais difceis e

    complexos, alm de permitirem ao cidado comum o acesso, no havendo qualquer

    grade separando um do outro. O prprio fato de ser mediado por uma discusso,

    fazia do conhecimento um processo dinmico, menos cansativo, menos solitrio.

    Quando o livro surgir com mais freqncia e os homens comearem a escrever mais,

    veremos uma espcie de contradio: ao mesmo tempo que com o livro o

    conhecimento fica disposio do pblico, dando a impresso de descentralizao do

    conhecimento, apenas uma minoria buscar os livros para instruir-se. A nosso ver,

    isso se deve no falta de condio financeira do pblico, o que pode at ser levado

    em considerao, mas sim permanncia da tradio oral no esprito do povo.

    Alis, de suma importncia analisar as implicaes polticas da escrita. Por

    mais que se estabelea um alfabeto, ou que se tenha estabelecido um, a Grcia

    antiga estava longe de ter uma gramtica grega. Regras definidas e rgidas como

    as atuais no eram sequer cogitadas pelos antigos, inclusive se nos dermos conta da

    infindvel quantidade de dialetos num espao geogrfico to pequeno. A escrita, de

    certa forma, normatiza um vocabulrio, ordena de alguma forma o idioma. No

    foram poucos, nem de pouca importncia os autores que abordaram a questo da

    escrita como elemento que serve dominao, que centraliza e oferece uma ordem

    a ser respeitada. A oralidade, livre da maior parte das regras de uma gramtica,

    abre-se inclusive para a inveno de palavras, a criao de novas maneiras de se

    tratar de um assunto, mesmo a criao de novas aes, por meio da criao de

    novos verbos. Plato faz uso de verbos que no vemos repetirem-se em outros

    autores, por vezes sequer em outras obras suas.

  • 21

    A respeito da poltica na sua prtica, argumenta-se comumente contra a

    oralidade, afirmando que ela possibilitava os julgamentos mais diversos e a

    perpetuao da injustia, pois nada estava estabelecido e no havia um padro a

    seguir. A prpria Atenas democrtica abundantemente citada como exemplo de

    cidade na qual as leis escritas permitiam a todos os cidados conhec-las, bem como

    a elas fazer aluso num momento de julgamento, para que o ru no pudesse ser

    prejudicado. Pode-se facilmente objetar que havia cidades com leis escritas,

    fartamente conhecidas e acessveis pela maioria da populao, nas quais a justia

    no era feita e por vezes mesmo a tirania se instalava.

    As leis escritas podem, ento, ser uma condio necessria para a equidade judicial, mas isso no quer dizer que sejam suficientes. O contexto social e poltico determinava a eficcia das leis escritas na Grcia antiga, assim como em outros lugares, e podia, igualmente, ser tanto uma fora conservadora, ou aristocrtica, quanto democrtica. Suas associaes com a democracia se desenvolveram gradualmente no clima poltico especfico de Atenas.15

    A despeito da posio otimista e democrtica da autora, a argumentao

    ajuda muito a entender a colocao do problema tal como propusemos. No

    possvel afirmar taxativamente que Atenas foi prspera porque tinha leis escritas,

    inclusive porque essas leis chegaram tardiamente, ou seja, quando a cidade j havia

    prosperado muito apenas auxiliada pela oralidade, diga-se. Se a escrita fosse to

    indispensvel e ao mesmo tempo benfica para a poltica, Rosalind Thomas no

    precisaria dizer: Mesmo no sculo IV, os polticos ainda tendiam a confiar na

    memria e na comunicao oral onde era de se esperar uma prova escrita.16

    15 Thomas, Rosalind. Literacy and orality in ancient Greece, 1992: 147. No original consta: Written Law, then, may be a necessary condition for judicial fairness but it is not a sufficient one. The social and political context determined the efficacy of written Law in ancient Greece as elsewhere, and it could equally well have conservative or aristocratic as democratic force. Its associations with democracy developed gradually in the specific political climate of Athens. 16 Idem: 97. No original consta: Even in the fourth century, politicians still tended to rely on memory and oral communication where one might have expected written proof.

  • 22

    Apesar de eminentemente oral, a democracia grega favoreceu a difuso e

    mesmo o desenvolvimento da escrita. Como explicar esse acontecimento de modo a

    continuar validando a oralidade, da maneira to enftica como fizemos at agora?

    Em primeiro lugar, importante ressaltar as diferenas entre os vrios tipos de

    escrita. Uma dessas variantes, mstica, cujos fins eram quase sempre cultos,

    registros de iniciaes, relatos sobre os mistrios, comumente esquecida pelos

    estudiosos da Antiguidade. Num primeiro momento, a escrita no aparece na Grcia

    com fins racionais. Embora tenham sido escritos livros, peas de teatro, a escrita

    teve papel muito importante na vida espiritual grega. O lado poltico desse advento

    teve muito mais um carter de documentao, registro de situaes, com a

    finalidade de se criar uma espcie de arquivo, do que propriamente instruir e formar

    os homens. A Paidia no perdeu seu carter oral. Dessa forma parece possvel

    entender como uma sociedade oral favoreceu o desenvolvimento e a difuso da

    escrita.

    A vertente racional e racionalizante da escrita encontrava, nos filsofos

    e poetas em geral, sua realizao. Com relao a esse ponto no nos parece haver

    muitos problemas. A considerar, parece-nos significativo falar dos fins aos quais se

    propunham aqueles que escreviam. Como dissemos, Plato escreve, possivelmente,

    para estimular, com seus textos, o dilogo, a dramatizao. Mas no apenas isso. E

    no apenas Plato. poca democrtica, a escrita era uma maneira de preservar a

    memria de um povo rico em histria, mas tambm rico em estrias, mitos e lendas.

    A forma atravs da qual os autores expressavam seus pensamentos pode ser

    extremamente relevante para que reflitamos a respeito da oralidade e da memria.

    Se tomamos as obras de Homero, por exemplo, verificamos que ele escreve numa

    certa mtrica, que facilita a memorizao de quem l e de quem ouve o conto.

    Muitos filsofos e teatrlogos escreveram seus textos com a mesma preocupao, ou

    seja, a facilidade para se decorar, para se entender e melhor apreender o que se

  • 23

    estava dizendo. Certamente no pretendemos aqui submeter as obras de toda uma

    cultura antiga ao crivo da memorizao, tampouco reduzir a preocupao central

    quem sabe as preocupaes dos autores apenas com a memorizao. Escrever em

    verso oferecia a possibilidade de continuidade no pensamento, assim como era uma

    opo estilstica.

    Faz-se mister, ainda, abordar uma outra questo a respeito do valor da

    escrita e suas relaes com a oralidade: a questo da verdade. Para os gregos a

    verdade era uma preocupao constante, ainda que cada pensador dela tenha

    oferecido sua compreenso particular. A oralidade aparece aqui, como caminho para

    a verdade, de duas maneiras. A primeira, visando preservao daquilo que se

    considerava indispensvel para a formao do homem, ou seja, daquilo que no se

    poderia esquecer jamais. A-lthein, segundo interpretao de alguns tradutores a

    respeito da formao etimolgica do termo, significava no esquecer, a negao do

    verbo esquecer. Escrevia-se para que se lesse e lia-se para que se pudesse

    memorizar o que de mais importante havia.

    A outra abordagem, talvez mais filosfica, diz respeito interpretao da

    palavra verdade oferecida por Plato, no Crtilo.17 A verdade seria o movimento de

    divinizao do ser, theia l. Esse movimento, segundo o pensamento de Plato,

    poderia ser alcanado mediante o dilogo, fazendo assim com que a verdade fosse

    produto de uma discusso. A despeito de todos os nossos esforos de interpretao,

    estamos seguros de que no logramos apresentar ao leitor o esprito da oralidade

    helena, sua importncia fundamental na cultura e formao do povo. Todavia, tendo

    estudado os pesquisadores da Antiguidade, ficamos surpresos em ver que eles

    tambm encontraram essa dificuldade, o que nos parece indicar mais do que uma

    17 Plato. Cratilo, 421b.

  • 24

    simples insuficincia da razo, de que poderamos ser acusados, ou mesmo uma

    dificuldade do tema, de sua abordagem e explicitao.

    Trata-se, a rigor, de uma impossibilidade temporal. Estamos a mais de dois

    mil e quinhentos anos distantes do perodo ao qual nos remetemos. A enorme

    distncia histrica faz com que muitos dos valores, das orientaes dos gregos

    tenham sido perdidos e jamais tornem a ser resgatados. Esse problema no deve, de

    forma alguma, ser um entrave pesquisa. Deve, muito pelo contrrio, ser um

    estmulo a sua realizao, porquanto permite ao pesquisador interpretar livremente,

    pensar aquela realidade no sentido de tecer os acontecimentos, reunir os fatos

    com maior liberdade. E assim como reunimos os fatos, na tentativa de melhor

    entender suas sucesses, reuniremos alguns comentrios, algumas conjecturas de

    grandes pesquisadores sobre a Grcia, na tentativa justamente de saldar essa

    dvida, ao apresentarmos um tema do qual no demos conta, do ponto de vista

    qualitativo.

    Jean-Pierre Vernant se expressa da seguinte maneira a respeito da oralidade

    e da sua contrapartida, a escrita:

    Era a palavra que formava, no quadro da cidade, o instrumento da vida poltica; a escrita que vai fornecer, no plano propriamente intelectual, o meio de uma cultura comum e permitir uma completa divulgao de conhecimentos previamente reservados ou interditos. Tomada dos fencios e modificada por uma transcrio mais precisa dos sons gregos, a escrita poder satisfazer essa funo de publicidade porque ela prpria se tornou, quase com o mesmo direito da lngua falada, o bem comum de todos os cidados.18

    18 Vernant, Jean-Pierre. Les origins de la pense grecque.1996: 47. No original consta: Ctait la parole qui formait, dans le cadre de la cit, linstrument de la vie politique; cest lcriture qui va fournir, sur le plan proprement intellectuel, le moyen dune culture commune et permettre une complte divulgation de savoirs pralablement rservs ou interdits. Emprunte aus Phniciens et modifie pour une transcription plus prcise de sons grecs, lcriture pourra satisfaire cette fonction de publicit parce quelle-mme est devenue, presque au mme titre que la langue parle, le bien commun de tous les citoyens. (A traduo para o portugus de sis Borges B. Fonseca).

  • 25

    Excelente a interpretao de Vernant a respeito do surgimento da escrita.

    Contudo, preciso que se avance um pouco mais, para que se entenda em oposio

    a que oralidade ele coloca essa escrita democrtica, e que tipo de escrita essa.

    Na pg. 58:

    Certamente, a verdade do sbio, como o segredo religioso, revelao do essencial, descoberta de uma realidade superior que ultrapassa muito o comum dos homens; mas, entregue escrita, ela destacada do crculo fechado das seitas para ser exposta em plena luz aos olhares da cidade inteira; isto significa reconhecer que ela por direito acessvel a todos, aceitar submet-la, como o debate poltico, ao julgamento de todos, com a esperana de que em definitivo ser por todos aceita e reconhecida.19

    Aqui temos a indicao da oralidade de que fala Vernant, bem como de que

    escrita! Como argumentamos acima, a escrita surge, num primeiro momento, mais

    voltada para os ritos, as iniciaes e a vida espiritual do que propriamente para a

    vida poltica e, portanto, para um debate a respeito da democracia. Essa escrita vem

    fazer oposio verdade revelada, verdade que se deve aceitar porque sobre-

    humana. Age contra a verdade do sbio, no contra a argumentao do filsofo.

    uma escrita ainda incipiente, insurgindo-se contra uma verdade imposta

    verticalmente, que no se discute na horizontalidade humana da gora.

    19 Idem. No original consta: Certes, la vrit du sage, comme le secret religieux, est rvlation de lessentiel, dvoilement dune ralit suprieure qui dpasse de beaucoup le commun des hommes; mais en la livrant lcrit on larrache au cercle ferm des sectes pour lexposer en pleine lumire aux regards de la cit entire; cest reconnatre quelle est en droit accessible tous, cest accepter de la soumettre, comme le dbat politique, au jugement de tous, avec lespoir quen dfinitive elle sera par tous accepte et reconnue.

  • Captulo 2

    Genealogia da democracia

    La place naturelle de la vertu est auprs de la libert; mais elle ne se trouve pas plus auprs de la libert extrme quauprs de la servitude. (Montesquieu, De lesprit des lois)

    Mais les devoirs respectifs de lEtat et des citoyens varient suivant les formes particulires des Etats. (mile Durkheim, Leons de sociologie)

    Uma genealogia no se constri pela simples (e simplificadora) constatao

    e justaposio de um ou mais fatos. Muito diversamente, o fato deve ser inserido

    num jogo complexo de razes, muitas vezes transformando a ordem de

    pensamento daquele mesmo que se prope a pens-lo. Um fato passado no um

    fato absoluto ou universal. um motivo de investigao desconfiada, de reflexo.

    Essa a importncia da genealogia. No se trata de um jogo da memria organizada,

    que apenas relembra ocorrncias passadas. Os pensadores tm como hbito, um

    preconceito: tomam os acontecimentos como escravos de sua razo. Com isso,

    terminam por submet-los a ela, fazendo-a assim senhora da histria. No se

    deixam, em ltima instncia, por eles transformar. No mudam seu jogo de razes

    para melhor acolh-lo. Tratam-no, enfim, como um agregado racional.

    Os espritos cientficos do sculo XX, e, mais contemporaneamente, os do

    sculo XXI, ainda em voga, tm como hbito intelectual - e hbitos intelectuais tm

    em sua maioria um conservadorismo que lhes inerente a busca pela

    comprovao cientfica ou pela demonstrao emprica. A nosso ver, a criao de

    conhecimento no passa exatamente por essas esferas, no que se refere

    psicologia do ato de conhecer. Todo filsofo traz consigo suas cargas emotivas,

    afinidades, intimidades de um espao interior que no deve jamais ser descartado,

    pois o que ele produz tem relao direta com sua personalidade. E precisamente

    nesse ponto qualquer apelo evidncia emprica sempre muito delicado,

    porquanto no se mede a intimidade, tampouco o psicolgico.

  • 27

    Portanto, preciso assentir: no sem vontade e imaginao criadora pode-

    se, no que tange a poltica na Grcia antiga, muito dizer. A simples reunio e

    subseqente aglomerao ordenada de fatos no nos mostra coisa alguma a

    respeito daquilo a que nos propomos investigar. Menos ainda, limita-nos a um mero

    contato, uma simples e vazia relao. Caso assim procedssemos, qual seria nossa

    atitude intelectual diante de um acontecimento mal-interpretado pela histria?

    Como epistemlogos da poltica, assumiremos nessa dissertao diferente postura.

    Para corroborarmos nossa argumentao, dediquemos especial ateno s palavras

    do historiador Alfred Edward Taylor, em seu livro a respeito de Scrates, no qual

    ele diz:

    A vida de um grande homem, particularmente quando ele pertence a uma poca remota, jamais pode ser o mero registro de fatos indiscutveis. Mesmo quando tais fatos so abundantes, a verdadeira tarefa do bigrafo consiste em interpret-los; deve penetrar, alm dos simples eventos, no propsito e no carter que eles revelam, o que s consegue fazer mediante um esforo de imaginao construtiva.1

    Embora no seja nosso propsito fazer uma biografia da democracia,

    inegvel que nossa genealogia contar com elementos de seu surgimento,

    estabelecimento e propsito. E exatamente nesse contexto que as palavras de

    Taylor so fundamentais.

    O reencontro com a democracia ateniense demanda outra compreenso dos

    valores. Embora sejamos herdeiros da tradio grega, estamos muito distantes de

    toda experincia por eles vivida. Os muitos sculos que nos separam acabaram por

    tornar seus autores, artistas e feitos muito distantes e mesmo estranhos a ns.

    Alm disso, comparadas s nossas preocupaes historiogrficas atuais, a

    documentao, deixada por eles mesmos, a respeito de sua histria, em geral

    parca e lacunar. Buscar as condies histricas nas quais um acontecimento poltico

    ocorre experimentar aquilo que no mais existe. olhar com olhos presentes o

    passado finito. Julgamos o passado com olhos do presente, recriando-o em nossa

    compreenso. H dois anacronismos nos quais no incorremos: olhar o presente e

    1 Taylor, A. E. Socrates, 1954: 15. (traduo nossa)

  • 28

    julg-lo pelo passado; olhar o passado e julg-lo pelo presente. Mas tambm

    sabemos da impossibilidade de se olhar para o passado com os olhos do passado. O

    caminho restante estreito e por ele deve-se caminhar cuidadosamente. Vamos ao

    passado tentar compreend-lo, sabendo das nossas diferenas em relao a valores

    no presente, mas procurando no enquadr-lo em nossa razo, inserindo-o,

    portanto, num jogo racional de um esprito do sculo XXI.2

    Ser pertinente falar das muitas origens da democracia? Nossos estudos

    tm nos apontado na direo dessa possibilidade. Todavia curioso notar como,

    alm de plurais, essas origens so, por vezes, contraditrias. Uma estranheza pode

    ser sentida quando se vai s origens de algo. Como entender, como ordenar pelo

    pensamento uma situao na qual, por exemplo, luta-se contra a tirania, acusando-

    a de todos os malefcios dos quais ela acusada historicamente, mas ao tirar-lhe

    do poder se exercita exatamente as suas prticas, mascaradas apenas por um novo

    nome? Embora parea estranho considerar essa hiptese, deixamos em aberto a

    pergunta que nos fizemos, aps pesquisar o que vir em seguida: no a prpria

    vontade dos homens algo desordenado e contraditrio?

    Os livros de histria esto repletos de relatos de fatos ocorridos no perodo

    que ora propomos nos deter com mais calma. Exatamente por esse motivo nos

    ocuparemos mais de argumentar sobre as motivaes e os valores que levaram os

    gregos ou melhor, alguns gregos a instaurarem a democracia. Colocamos o

    termo entre aspas com duas intenes: primeiramente, enfatizar o carter

    consciente do que se estava inaugurando na histria, por parte de alguns, ou seja,

    a democracia por seus autores. Esse carter de conscincia no nos permite, no

    entanto, dizer que se sabia exatamente o que estava acontecendo nem quais

    seriam suas conseqncias. Mas permite dizer que havia uma intencionalidade nas

    aes, eliminando qualquer possibilidade que remeta a uma inconscincia completa

    2 Esse pargrafo foi escrito inspirado pelo texto introdutrio de Introduo ao filosofar, de Gerd Bornheim.

  • 29

    do que estava acontecendo. Os gregos sabiam o que queriam, mas no sabiam o

    que haveriam de fazer para a histria posterior.

    Esboaremos, agora, um breve histrico dos antecedentes da democracia.

    No porque desconheamos a quantidade de livros de histria antiga que tratam

    desse tema, mas por considerarmos importante fazer a ligao entre eles, bem

    como estender a compeenso de seu significado, e isso nos parece passvel de

    discusso, variando muito a compreenso de cada autor em relao ao movimento

    da histria.

    Como mostrou Claude Mosse em sua obra A Grcia arcaica de Homero a

    squilo, o nascimento da chamada cidade-estado grega tem uma relao

    temporal com a redao dos poemas homricos.3 Como a democracia instaura-se

    justamente nessa cidade-estado, -nos de grande valia melhor conhecer sua

    formao e estrutura. E ela parece formar-se justamente por questes polticas,

    porquanto uma comunidade territorial comea a agrupar-se em torno de um centro

    urbano, deixando para trs a estrutura de diversos grupos tribais vivendo

    isoladamente, sem qualquer ligao uns com os outros. Alm disso, havia o

    reconhecimento da autoridade de um rei e de um conselho de ancios. Nessa

    poca, ainda remota, se comparada poca democrtica, a gora j existia e era

    utilizada para as reunies de cunho poltico, no mais funcionando como praa

    mercantil, onde se efetuavam trocas de produtos. Essas estruturas polticas

    permanecero, embora os sculos de poca clssica grega passem por grandes

    mudanas. Essa autoridade do rei diminuir, at que a figura representativa

    desaparea, e cada vez mais ocupar espao o coletivo, inclusive com alguma

    participao dos pobres, nas decises polticas.

    Contudo, esse aparecimento da cidade-estado no to simples assim.

    Alguns componentes relevantes colaboraram para seu surgimento e devemos

    apont-los, pois sem as condies necessrias ela no teria se estabelecido e

    vingado da maneira como conseguiu. Os gregos antigos nunca tiveram unidade 3 Mosse, Claude. La Grce archaque dHomere Eschyle, 1984.

  • 30

    poltica ou territorial, pelo menos at bem tarde na antiguidade. Mesmo depois,

    essa diviso ainda se deu de maneira bem diferente de como compreendemos uma

    diviso poltica e territorial hoje em dia. Se quisermos pensar as aes polticas dos

    gregos devemos pens-las sempre como confrontos existentes a partir de divises

    tnicas e tribais. Os prprios gregos consideravam brbaros e inimigos aqueles que

    no falavam o dialeto por eles falado, caracterizando essa oposio que acabamos

    de mencionar. E talvez fosse esse dialeto um dos componentes mais importantes

    na conscincia que os gregos tinham de pertencer a uma nica cultura, tal como

    mostra Herdoto: seres da mesma raa e com a mesma lngua, possuindo

    santurios comuns dos deuses e iguais rituais, costumes semelhantes, que no

    seria lcito aos atenienses trair.4

    Esse foi um elemento que permitiu aos gregos permanecerem fortes e

    conscientes de seu helenismo, bem como sustentar uma autonomia e resistir ao

    domnio de outros povos. Assim, nos diz Finley: A tenacidade da pequena

    comunidade independente pode ser explicada apenas como um hbito que remonta

    a uma profunda e inabalvel convico sobre como se organizar para viver junto.5

    Embora pudssemos aqui falar da legislao criada por Drcon, como

    introduo s mudanas ocorridas nessa comunidade acima descrita, preferimos

    passar diretamente a Slon, pois entendemos que a partir de suas mudanas que

    veremos a democracia mais claramente, at seu delineamento mais ntido no

    segundo quartel do sculo V. Sem dvida no menosprezamos aqui as mudanas

    operadas por Drcon, pois abriram caminho para todas as reformas de Slon, mas

    como nossa proposta abordar a questo da democracia, procuraremos ficar-lhe o

    4 Herdoto. Histria, 1985, livro 8, nmero 144. No original consta: autij de\ to\ Ellhniko/n, e)o\n omaimo/n te kai o(mo/glwson, kai qewn idru/mata/ te koina\ kai qusiai hqea/ te "o(mo/tropa, twn prodo/taj gene/sqai Aqhnaiouj ou)k an euexoi. (Em portugus, h a traduo de Mrio da Gama Kury). 5 Finley, Moses. The ancient greeks, 1963: 33. No original consta: The tenacity of the small independent community can be explained only as a habit which amounted to a deep and ineradicable conviction about how living together ought to be arranged. (Em portugus, h a traduo de Artur Mouro).

  • 31

    mais prximo possvel. Como perceberemos ao longo do texto, cada personagem

    histrico, cada acontecimento ser o componente de um todo que no teria

    adquirido sua forma sem que cada um dos componentes tivesse ocorrido.

    Em 594 a.C., Slon divide Atenas em quatro diferentes categorias de

    riqueza. Essa diviso pretendia, entre outras coisas, hierarquizar a elegibilidade

    para cargos pblicos. Apenas as trs mais produtivas, do ponto de vista agrcola,

    podiam concorrer a cargos pblicos. Vemos que a democracia tem sua trajetria

    marcada, desde sua remota nascente, pelo elitismo da participao poltica. Essa

    diviso de terras e esse elitismo na preferncia por cargos pblicos derivam de uma

    Grcia na qual os ricos pagavam muito mais do que os pobres justamente por

    serem possuidores de mais propriedades e maiores rendas para a proteo

    interna. Por esse motivo parecia-lhes justo governar sozinhos, por meio de regras

    (mais adiante constituies) de carter eminentemente oligrquico. Mais tarde

    esse isolamento tornar-se- invivel, dada a fora que a marinha vir a adquirir,

    sendo elemento indispensvel para a manuteno do imprio que Atenas formar.

    Mas as medidas de Slon, que visavam acima de tudo erradicar de vez a

    tirania, no obtiveram sucesso. No resolvendo essas diferenas na sociedade civil,

    portanto no resolvendo o problema da stsis, a tirania instalou-se. Embora tenha

    atenuado as diferenas, com medidas como a abolio da escravatura por dvidas,

    a criao do direito de uma terceira parte para fazer justia no tribunal a favor de

    uma pessoa acusada, bem como a introduo de apelos a um tribunal popular,

    Slon apenas preparou o terreno poltico para que mais tarde nascesse o ideal de

    igualdade perante a lei, que ser to caro democracia.

    Tomados pela tirania da famlia de Pisstrato, os gregos passaram mais de

    trinta anos sob o domnio de um s homem. Quando no foi Pisstrato, foi um de

    seus filhos. Esse ponto ser extremamente relevante quando considerarmos o

    tempo de Pricles. Esse ltimo dominar a vida poltica ateniense por tambm mais

    de trinta anos, mas seu perodo, ao contrrio de tirnico, ser considerado

    democrtico. E ainda digno de nota: o mesmo povo dar apoio quase incondicional

  • 32

    a ambos os governantes! Mas voltemos, por ora, a Pisstrato. Sua primeira

    investida com vistas a tomar o poder ocorre por volta de 560 a.C. Todavia a

    partir de 545 que ele efetivamente comandar Atenas, praticamente at o perodo

    de sua morte, por volta de 527. Foi um perodo de grande desenvolvimento,

    marcado pelas obras pblicas e pelos grandes festivais religiosos. Uma questo que

    deve ser levada em conta justamente o sentimento nacionalista e patritico dos

    atenienses nesse tempo. Quando tudo era prspero, apoiavam Pisstrato e, logo

    depois, seu filho mais velho Hpias. No perodo democrtico, enquanto dominadores

    de outros povos, com a maior frota martima e diversas fontes de renda,

    provenientes dos vizinhos a Atenas submetidos, esses mesmos atenienses tambm

    apoiaro Pricles e a democracia!

    A tirania da famlia dos Pisistrtidas chegava ao fim, com o assassinato do

    filho de Pisstrato, Hiparco, e a fuga de Hpias, seu irmo mais velho. Atenas, mas

    pode-se pensar em toda a hlade, vivia um clima de incerteza, no sentido de

    instabilidade poltica, como muitas vezes sucede, na histria, em momentos de

    transio de um sistema poltico, com todos os seus aparatos, a outro. Estamos em

    torno de 510 a.C. Como se sentia a populao, pensando em sua vida poltica, em

    relao aos seus comandantes? De que tipo de relao com os ltimos saam nesse

    momento os primeiros? possvel que Aristteles tenha uma resposta a nos

    oferecer, num trecho bem esclarecedor a respeito de como Pisstrato fazia para

    retornar quando derrubado e se manter no poder: Com efeito, a maioria dos

    populares o apoiava, pois ele conciliava uns por meio do convvio, outros pela

    assistncia prestada a seus interesses privados, estando ainda naturalmente bem

    disposto para com ambos.6

    No de todo infrutfero pensar que essa cultura clientelista, associada

    herana grega, de mais de quatro sculos de tradio militar, fizesse parte da

    6 Aristteles. A constituio de Atenas 17. A passagem aqui diz: e)bou/lonto ga\r kai twn gnwrimwn kai twn dhmotikwn oi polloi. tou\j me\n ga\r taij o(miliaij, tou\j de\ taij eij ta\ idia bohqeiaij pros[h/] geto, kai pro\j a)mfote/rouj e)pefu/kei kalwj. (A traduo que encontramos em portugus foi a de Francisco Murari Pires).

  • 33

    bagagem cultural trazida pelos gregos, ainda que inconscientemente, mas refletida

    nas suas prticas polticas. Ainda que contidos pela futura nova prtica,

    democrtica, esses valores haveriam de permanecer por um bom tempo entre os

    gregos, e mais adiante teremos oportunidade de ratificar essa compreenso. Para

    melhor situar a discusso, deixaremos uma breve ordenao histrica dos

    comandantes de Atenas, facilitando assim o trnsito de um momento a outro sem

    que possa sentir-se prejudicado ou em dificuldades, dada a quantidade de nomes e,

    por vezes, a rpida passagem pela vida poltica. Aceitaremos a ordenao de

    Aristteles, na mesma Constituio de Atenas, como a referncia geral, embora

    autores como Claude Mosse e Moses Finley tenham feito quadros histricos que

    ajudem a mapear os acontecimentos entre os sculos VI e IV a.C.

    Com a palavra, Aristteles:

    Desde o princpio, portanto, o primeiro lder do povo foi Slon, e o segundo, Pisstrato, ambos de bero nobre e notveis. Aps a deposio da tirania foi Clstenes, da casa dos Alcmenidas, o qual no tinha nenhum adversrio desde a expulso dos partidrios de Isgoras. Posteriormente, Xantipo foi o lder do povo e Milcades o dos notveis; em seguida, Temstocles e Aristides; depois desses, Efialtes o do povo, e Cmon, filho de Milcades, o dos abastados; em seguida, Pricles o do povo e Tucdides, parente afim de Cmon, o da outra faco. Aps a morte de Pricles, Ncias, que veio a morrer na Siclia, era lder dos cidados distintos, ao passo que o do povo era Clon, filho de Cleneto. Este foi tido como quem mais corrompeu o povo com seu furor, e foi tambm o primeiro que, sobre a tribuna, ps-se a vociferar e a insultar e ainda a discursar com o manto arregaado, ao passo que os demais discorriam com compostura. Ento, depois desses, Termenes, filho de Hgnon, foi o lder da outra faco, e o do povo foi Cleofonte, o fabricante de liras, o primeiro a ter promovido a distribuio dos dois bolos ela foi concedida durante algum tempo, mas veio a ser abolida posteriormente por Calcrates de Penia, ao pela primeira vez prometer acrescentar mais um bolo aos outros dois. Ambos vieram mais tarde a ser condenados morte, pois a multido costuma, no caso de ver-se ludibriada, odiar os mesmos que a levaram a tomar uma deciso equivocada.7

    7 Idem, 27 e 28. Na edio brasileira: 61 e 63. No original consta: e)c a)rxh=j me\n ga\r kai prwtoj e)ge/neto prosta/thj tou= dh/mou So/lwn, deu/teroj de\ Peisistratoj, twn eu)genwn kai gnwrimwn: kataluqeishj de\ th=j turannidoj Kleisqe/nhj, tou= ge/nouj wn twn Alkmewnidwn, kai tou/t% me\n ou)deij hn a)ntistasiwthj, wj e)ce/peson oi peri to\n Isago/ran. meta\ de\ tau=ta tou= me\n dh/mou proeisth/kei Ca/nqippoj, twn de\ gnwrimwn Miltia/dhj, epeita Qemistoklh=j kai Aristeidhj: meta\ de\ tou/touj Efia/lthj me\n tou= dh/mou, Kimwn d' o( Miltia/dou twn eu)po/rwn: eita

  • 34

    Este momento de transio pode ser resumido, sem prejuzo de contedo,

    nas reformas de Clstenes e nas duas maiores batalhas daquele tempo: Maratona e

    Salamina, em 490 e 480 a.C, respectivamente. Salamina foi extremamente

    marcante, decisiva para a democracia e o imprio ateniense. Coroou a frota

    marinha, portanto, os marinheiros. Dir o velho oligarca, por vezes chamado de

    pseudo-Xenofonte: Os que tripulam os barcos so os que fornecem poder ao

    Estado. Mas vejamos antes um pouco a respeito das reformas clisteneanas:

    Por tais razes, portanto, o povo confiava em Clstenes. Estando como lder da multido nessa ocasio no quarto ano aps a deposio da tirania, sob o arcontado de Isgoras, primeiramente repartiu todos os cidados em dez tribos ao invs de quatro, com o propsito de mistur-los, a fim de que mais pessoas participassem do regime (da surgiu o dito, aos que pretendiam investigar as linhagens, de no discriminarem pelas tribos). Em seguida, comps o conselho com quinhentos membros ao invs de quatrocentos, cinqenta de cada tribo (antes eram cem). Por isso no os distribuiu por doze tribos, a fim de no cair em uma repartio conforme s trtias anteriormente existentes; pois havia doze trtias derivadas das quatro tribos, e nesse caso no resultaria numa mistura da multido. Dividiu o pas por demos em trinta partes dez com demos dos arredores da cidade, dez com demos da praia e dez com demos do interior e, dando-lhes a denominao de trtias, sorteou trs para cada tribo, a fim de que cada uma participasse de todas as regies. Definiu como uma comunidade de dmotas os habitantes de cada demos, tendo em mira a que os novos cidados no fossem revelados pela sua denominao patronmica, mas sim designados pela denominao dos demos; da originou-se o costume de os atenienses levarem o nome do seu demos. Instituiu tambm demarcos possuindo os mesmos encargos dos nucraros anteriormente, pois colocou os demos no lugar das naucrarias. Deu a alguns demos o nome de sua localidade, e a outros o de seus fundadores, pois nem todos tinham j correspondncia com sua localidade. Permitiu que os cls, as fratrias e os sacerdcios permanecessem conforme as tradies ancestrais. Fixou dez epnimos para as tribos, os quais

    Periklh=j me\n tou= dh/mou, Qoukudidhj de\ twn e(te/rwn, khdesth\j wn Kimwnoj. Perikle/ouj de\ teleuth/santoj, twn me\n e)pifanwn proeisth/kei Nikiaj o( e)n Sikeli# teleuth/saj, tou= de\ dh/mou Kle/wn o( Kleaine/tou, oj dokei ma/lista diafqeirai to\n dh=mon taij o(rmaij, kai prwtoj e)pi tou= bh/matoj a)ne/krage kai e)loidorh/sato, kai perizwsa/menoj e)dhmhgo/rhse, twn allwn e)n ko/sm% lego/ntwn. eita meta\ tou/touj twn me\n e(te/rwn Qhrame/nhj o( Agnwnoj, tou= de\ dh/mou Kleofwn o( luropoio/j, oj kai th\n diwbelian e)po/rise prwtoj: kai xro/non me/n tina diedidou, meta\ de\ tau=ta kate/luse Kallikra/thj Paianieu/j, prwtoj u(posxo/menoj e)piqh/sein pro\j toin duoin o)boloin allon o)bolo/n. tou/twn me\n oun a)mfote/rwn qa/naton kate/gnwsan usteron: eiwqen ga\r kan e)capathqv= to\ plh=qoj usteron misein tou/j ti proagago/n taj poiein au)tou\j twn mh\ kalwj e)xo/ntwn.

  • 35

    foram escolhidos pela Ptia dentre os cem heris previamente indicados.8

    Esse o resumo, escrito por Aristteles, das realizaes de Clstenes.

    importante, porm, que se una, pouco a pouco, os pedaos de histria que estamos

    apontando, coordenados pelas nossas interpretaes deles. Veremos que Clstenes

    foi mais um degrau rumo democracia aps Drcon, Slon e mesmo Pisstrato. At

    aqui, o que mais claramente se pode destacar, esquecendo-se os critrios utilizados

    nas divises dos legisladores, a tentativa de fazer com que o povo crie laos

    integrativos comunitrios e perceba a descentralizao do poder. Com isso, no

    apenas as antigas associaes so desfeitas, mas tambm os pobres passam a ter

    maior participao nas decises polticas.

    O Conselho dos quinhentos, a boul, foi a arma criada por Clstenes para

    conter as relaes de influncia e clientelistas dos proprietrios de terras e dos

    poderosos aristocratas. Com voto aberto, liberdade de assistncia e dispositivo que

    proibia repetir a participao de algum membro, foi possvel restringir as influncias

    polticas e fazer com que todos participassem, de alguma forma, das decises

    polticas. Estas medidas de Clstenes tiveram implicaes decisivas para a histria

    poltica da Grcia, como teremos oportunidade de discutir nesta dissertao.

    8 Idem, ibidem, 27 e 28. Na edio brasileira: 49 e 51. Em grego: Dia\ me\n oun tau/taj ta\j aitiaj e)pisteuen o( dh=moj t% Kleisqe/nei. to/te de\ tou= plh/qouj proesthkwj, etei teta/r21.2 t% meta\ th\n twn tura/nnwn kata/lusin, e)pi Isago/rou arxontoj, prwton me\n sune/neime pa/ntaj eij de/ka fula\j a)nti twn tetta/rwn, a)nameicai boulo/menoj, opwj meta/sxwsi pleiouj th=j politeiaj: oqen e)le/xqh kai to\ mh\ fulokrinein, pro\j tou\j e)ceta/zein ta\ ge/nh boulome/nouj. epeita th\n boulh\n pentakosio[u]j a)nti tetrakosiwn kate/sthsen, penth/konta e)c e(ka/sthj fulh=j. to/te d' hsan e(kato/n. dia\ tou=to de\ ou)k eij dwdeka fula\j sune/tacen, opw[j] au)t% mh\ sumbainv merizein pro\j ta\j prou+parxou/saj trittu=j. hsan ga\r e)k d fulwn dwdeka trittu/ej, wst' ou) [sun]e/pipten a)namisgesqai to\ plh=qoj. die/neime de\ kai th\n xwran kata\ dh/mouj tria/konta me/rh, de/ka me\n twn peri to\ astu, de/ka de\ th=j paraliaj, de/ka de\ th=j mesogeiou, kai tau/taj e)ponoma/saj trittu=j, e)klh/rwsen treij eij th\n fulh\n e(ka/- sthn, opwj e(ka/sth mete/xv pa/ntwn twn to/pwn. kai dhmo/taj e)poihsen a)llh/lwn tou\j oikou=ntaj e)n e(ka/st% twn dh/mwn, ina mh\ patro/qen prosagoreu/ontej e)cele/gxwsin tou\j neopolitaj, a)lla\ twn dh/mwn a)nagoreu/wsin. oqen kai kalou=sin Aqhnaioi sfa=j au)tou\j twn dh/mwn. katesthse de\ kai dhma/rxouj, th\n au)th\n exontaj e)pime/leian toij pro/teron naukra/roij. kai ga\r tou\j dh/mouj a)nti twn naukrariwn e)poihsen. proshgo/reuse de\ twn dh/mwn tou\j me\n a)po\ twn to/pwn, tou\j de\ a)po\ twn ktisa/ntwn: ou) ga\r apantej u(ph=rxon e)n toij to/poij. ta\ de\ ge/nh kai ta\j fratriaj kai ta\j ierwsu/naj eiasen exein e(ka/stouj kata\ ta\ pa/tria. taij de\ fulaij e)poihsen e)pwnu/mouj e)k twn prokriqe/ntwn e(kato\n a)rxhgetwn, ouj a)neilen h( Puqia de/k.

  • 36

    Os gregos que podem ser aqui considerados proprietrios de terras e

    isso na Grcia antiga significava poder e riqueza material eram os mais

    interessados em manter suas propriedades e ganhos. Percebendo o aumento

    considervel de escravos e de artesos, bem como de outros habitantes que no

    faziam parte dessa classe mais tradicional, herdeira ainda da estrutura palaciana,

    decidem que preciso fazer alguma coisa para conter o poder que se anunciava.

    Sem o emprego de uma idia marxista embora no seja de todo invivel

    tratava-se apenas de reorganizar a sociedade de modo a controlar essa fora que

    poderia tornar-se contrria e possivelmente revolucionria, no sentido de ela

    transformar a sociedade em seu favor, acabando com o domnio cultural, material e

    militar desses proprietrios de terras. exatamente nesse momento que se

    realizar o que chamaremos de experimento esttico9 na poltica ateniense, mas

    com implicaes para toda a Grcia: a democracia, termo e forma de governo at

    ento completamente desconhecidos entre os gregos.

    Faamos nesse pargrafo um breve parntese para melhor explicarmos as

    diferenas sociais naquele tempo, pois o esprito moderno certamente considera

    estranho o fato de serem os cidados do campo os mais instrudos e poderosos em

    relao aos da cidade. Como se encontrava distribuda a populao naquela Atenas

    pr-democrtica? Em primeiro lugar, como salientou Finley, que durante quase

    todo o sculo V, na verdade, a parte urbana da populao talvez estivesse mais

    prxima de um tero do total do que da metade.10

    Se a populao urbana era minoria to clara, fica evidente que com isso no

    havia um centro urbano movimentado. Vivendo os cidados base da agricultura e

    em pequenas comunidades razoavelmente independentes, no se impe a

    existncia de um centro comum. A democracia far, por exemplo, a gora passar

    9 Falamos em experimento esttico porque a noo de beleza tinha fundamental importncia na vida grega, nos mais variados mbitos. Tambm a democracia constituiu-se num experimento em busca do belo, o belo na poltica. Mas, como veremos, esse belo precisava conciliar-se com as vontades e projetos de seus autores. 10 Finley, Moses. Democracy ancient and modern. 1973: 17. No original consta: for most of the fifth century, in fact, the urban fraction was probably nearer one third than one half.

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    de mercado e local de trocas, passageiro entre os cidados, a centro das discusses

    polticas mais importantes. Sendo a populao rural a maioria, no deve causar

    espanto que o poder fosse oriundo da posse da terra, e no de cargos polticos.

    Com as mudanas na estrutura poltica operadas por Clstenes

    consideradas a quinta etapa de um processo de onze reformas, at o retorno dos

    elementos do Pireu e de File pode-se falar de uma diminuio do poder poltico

    entre os ricos, quando relacionado ao poder que ora recebiam os pobres. Embora

    soe extremamente moderna essa comparao entre ricos e pobres, parecendo

    remeter a uma discusso que envolva burguesia e proletariado na antiguidade,


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