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O QUE A ANTROPOLOGIA DE ROBERTO DAMATTA TEM A DIZAR … · Revista do PPGPS / UENF. Campos dos...

Date post: 18-Jul-2020
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Atraso e desempenho institucional o que a antropologia de Roberto DaMatta tem a dizer sobre o capital social brasileiro Backwardness and institutional performance – what does the anthropology of Roberto DaMatta has to say about brazilian social capital Hélio Afonso de Aguilar Filho Doutorando do Programa de Doutorado em Economia - UFRGS E-mail: [email protected] RESUMO: O presente trabalho, reconhecendo a importância das instituições para a explicação dos fenômenos econômicos, estuda as limitações informais brasileiras, ou as questões relacionadas ao primeiro nível da chamada análise institucionalista. Destaca, particularmente, a importância e o papel do capital social na busca dos incentivos ao desenvolvimento econômico. Ressalta que, para este fim, é de suma importância que haja normas de conduta de caráter universal, em contraposição àquelas compartilhadas por grupos limitados, que se situam, por exemplo, na esfera da lealdade familiar e pessoal. Busca, portanto, a caracterização das instituições ou, mais especificamente, do capital social brasileiro, a partir da obra de um importante estudioso desta realidade, Roberto DaMatta. Com isto, pretende também melhor entender a formação social do Brasil, juntamente com os incentivos para melhorar sua performance econômica. Palavras-chaves: Desenvolvimento econômico; cultura; instituições; personalismo; limitações informais; restrições formais; Roberto DaMatta. ABSTRACT: This paper addresses concerns on the role of informal organizations and raises questions connected to the first level of institutional analysis to demonstrate the importance of institutions in explaining economic phenomena. The importance of social capital in the pursuit of incentives to economic development is also emphasized. A particular emphasizes is given to the need of universally driven rules to oppose interests shared only by specific groups, especially those situated in the domains of family and personal loyalty. Based on the work the Brazilian anthropologist Roberto DaMatta this paper seeks to characterize institutions and the specificities of Brazilian social capital development,. The ultimate goal is to improve existent understanding of Brazilian society formation coupled with incentives to improve economic performance. Key words: Economic developement; culture; instituitions; personalism; informal limitations; formal restrictions; Roberto Damatta. Agenda Social. Revista do PPGPS / UENF. Campos dos Goytacazes, v.2, n.3, out-dez / 2008, p.96-116, ISSN 1981-9862
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Atraso e desempenho institucional ─ o que a antropologia de Roberto DaMatta tem a dizer sobre o capital social brasileiro

Backwardness and institutional performance – what does the anthropology of Roberto DaMatta has to say about brazilian social capital

Hélio Afonso de Aguilar Filho

Doutorando do Programa de Doutorado em Economia - UFRGSE-mail: [email protected]

RESUMO: O presente trabalho, reconhecendo a importância das instituições para a explicação dos fenômenos econômicos, estuda as limitações informais brasileiras, ou as questões relacionadas ao primeiro nível da chamada análise institucionalista. Destaca, particularmente, a importância e o papel do capital social na busca dos incentivos ao desenvolvimento econômico. Ressalta que, para este fim, é de suma importância que haja normas de conduta de caráter universal, em contraposição àquelas compartilhadas por grupos limitados, que se situam, por exemplo, na esfera da lealdade familiar e pessoal. Busca, portanto, a caracterização das instituições ou, mais especificamente, do capital social brasileiro, a partir da obra de um importante estudioso desta realidade, Roberto DaMatta. Com isto, pretende também melhor entender a formação social do Brasil, juntamente com os incentivos para melhorar sua performance econômica.

Palavras-chaves: Desenvolvimento econômico; cultura; instituições; personalismo; limitações informais; restrições formais; Roberto DaMatta.

ABSTRACT: This paper addresses concerns on the role of informal organizations and raises questions connected to the first level of institutional analysis to demonstrate the importance of institutions in explaining economic phenomena. The importance of social capital in the pursuit of incentives to economic development is also emphasized. A particular emphasizes is given to the need of universally driven rules to oppose interests shared only by specific groups, especially those situated in the domains of family and personal loyalty. Based on the work the Brazilian anthropologist Roberto DaMatta this paper seeks to characterize institutions and the specificities of Brazilian social capital development,. The ultimate goal is to improve existent understanding of Brazilian society formation coupled with incentives to improve economic performance.

Key words: Economic developement; culture; instituitions; personalism; informal limitations; formal restrictions; Roberto Damatta.

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1. Introdução

Apesar da imprecisão e baixa delimitação do campo da análise institucional em economia, seu

uso tem sido crescente e tem ganhado cada vez mais espaço entre as publicações acadêmicas.

Os autores têm reconhecido a necessidade de incorporar às análises tradicionais questões

relativas aos direitos de propriedade, à estrutura de governança, além das particularidades

culturais e a história de cada região e país para explicar sua trajetória de crescimento de longo

prazo.

Dentro da ótica institucionalista, as instituições importam por oferecerem aos agentes

econômicos as estruturas de incentivos, sejam políticos, econômicos ou sociais, para as

interações humanas. Oliver Williamson (2000), um dos principais expoentes do chamado

novo institucionalismo, destaca quatro níveis de análise para o economista que pretenda

incorporar as instituições aos estudos econômicos. A primeira seria a do embeddedness 1, e

estaria relacionada à teoria social e aos estudos sobre os costumes e as limitações informais

em geral. A segunda seria a do ambiente institucional, dizendo respeito aos estudos dos

teóricos da política positiva e dos direitos de propriedade, ou seja, seriam basicamente as

regras formais do jogo. A terceira seria a da governança, estando a cabo dos teóricos dos

custos de transação com preocupação em descrever o comportamento dos jogadores em

disputa. No quarto nível, situar-se-ia a teoria neoclássica e os pesquisadores da teoria da

agência, cuja preocupação seria com questões relativas à alocação e ao emprego de recursos.

1 O termo foi apresentado nas ciências sociais inicialmente por Karl Polanyi em 1957, sendo usado como parte de seu ataque ao liberalismo e às abordagens mais generalistas orientadas pelo princípio do mercado. Mark Granovetter retomou-o em seu clássico artigo de 1985, Economic Action in Social Structure: a theory of embeddedness, dando-lhe grande difusão ao descrever a maneira como os componentes sociais deviam ser considerados nas ações econômicas. A partir de então, o termo tem sido usado no sentido de retirar a economia ortodoxa de seu confinamento mediante sua articulação com as demais ciências sociais e a incorporação discreta de algumas variáveis de índole não econômica. Aqui, o termo é usado dentro da perspectiva de Williamson, referindo-se aos valores, às normas informais e à cultura de uma determinada sociedade.

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Dos quatro níveis da abordagem institucional, Williamson (2000) reconhece que os estudos

sobre as instituições informais, além de incipientes, são os que mais requerem pesquisas. Em

geral, as limitações informais, ou normas de comportamento, surgem de forma espontânea e

apresentam resistência maior à mudança. Uma questão importante passa a ser, então, a de

identificar e explicar a forma como essas limitações surgem e são mantidas no tempo, o que

poderá ajudar a entender o porquê da resistência a mudança.

Os trabalhos sobre o chamado capital social estariam também no primeiro nível da análise

institucional. Assim, autores como Putnam (1997), North (1990) e Lipset-Lens (2002),

destacam, dentro das limitações informais, aquelas instituições que incentivam as associações

impessoais e a cooperação complexa, e que com isto provêem as sociedades dos mecanismos

de coordenação necessários ao bom andamento econômico. Esses autores destacam também

que as regras que compõem tais mecanismos de coordenação podem ser contraproducentes aos

ganhos de eficiência e podem, mesmo assim, persistir num sistema social em função da

tradição, da socialização e do ritual. Quando não, podem entrar em conflito com as regras

formais, acarretando importantes conseqüências na maneira como as economias mudam.

Busca-se reapresentar aqui o argumento de Roberto DaMatta a fim de explicitar como surgem

as normas de conduta socialmente derivadas e como se opera o processo de mudança

institucional no Brasil. Propõe-se estudar, mais especialmente, as questões que estão no

primeiro nível da análise institucionalista, e como se estruturam os incentivos para os agentes

e as organizações na busca dos seus objetivos, sabendo-se que as instituições neste nível

possuem forte influência na aceleração ou estagnação do desenvolvimento econômico, se

fundadas em princípios universalistas ou personalistas. Isto porque elas podem incentivar ou

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não a redução dos custos de transação, gerando ou minando a confiança necessária às

inovações tecnológicas, além de garantir ou não a qualidade das políticas públicas 2.

O presente artigo está dividido em quatro seções contando com esta introdução. Na segunda

seção apresenta-se a discussão sobre a importância das instituições para o desempenho

econômico, abordando o papel das limitações informais, principalmente do capital social, e

sua relação com as instituições formais. Na terceira seção, de acordo com o pensamento de

DaMatta, analisa-se o comportamento das instituições brasileiras e o tipo de capital social que

daí deriva. Na quarta seção, concluí-se o trabalho.

2. Desempenho Institucional e Capital Social

Em economia, a percepção recente é que as variáveis econômicas, quando consideradas

isoladamente, são insuficientes para explicarem o fenômeno do desenvolvimento econômico.

Neste sentido, encontram-se trabalhos enfatizando o papel e a importância das instituições na

explicação do desempenho diferencial entre as nações e regiões ao longo do tempo. As

instituições e o sistema social seriam elementos-chave na busca de incentivos às atividades

produtivas e na resolução do problema do acesso e distribuição dos recursos produzidos.

2 O exemplo pode ser extraído da obra de Douglass North (1990, p.151) sobre o ambiente institucional mexicano em contraste ao inglês em fins do século XIX. No primeiro país, a natureza intervencionista e geralmente arbitrária do meio institucional obrigou todas as empresas, urbanas ou rurais, a operarem de modo altamente politizado, valendo-se de redes de parentesco, influência política e prestigio familiar para ganharem acesso privilegiado aos créditos subsidiados. Nesse sentido, o êxito ou fracasso na área econômica dependia sempre da relação do produtor com as autoridades políticas. Em casos como este, de baixa competição econômica, as empresas têm poucos incentivos à inovação e se tornam pouco competitivas internacionalmente. Já no caso da Inglaterra, a tradição de individualismo e da impessoalidade contidas nas suas limitações informais, juntamente com as restrições formais ao poder político, deram condições para o surgimento da organização econômica eficiente. A garantia e a especificação dos direitos de propriedade, por aproximar a taxa de retorno privada à social, foi historicamente fundamental no incentivo aos investimentos produtivos e às inovações tecnológicas. As patentes são um exemplo uma vez que se tornaram fonte de inovação e incentivo aos investimentos por garantir retorno ao investimento privado através do monopólio temporário da invenção.

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Na definição consagrada de Douglass North (1990, p.03), instituições são “... as regras do jogo

em uma sociedade ou, mais formalmente, as limitações idealizadas pelo homem para dar

forma às interações humanas”. Essas regras estruturam, por conseguinte, incentivos ao

comportamento humano, sejam políticos, sociais ou econômicos. Adicionalmente, North

divide as instituições em regras formais, informais e enforcement. As instituições informais

provêm da informação transmitida socialmente e são partes constitutivas da herança que se

denomina cultura, elas definem a forma com que os indivíduos processam e utilizam a

informação. As instituições formais, em princípio, diferem apenas em grau das regras

informais, mas sua criação deriva das decisões de corpos políticos, jurídicos e econômicos,

baseadas nos modelos subjetivos dos governantes, os principais sujeitos, e daqueles que têm o

poder de colocar em pauta as regras que podem atender a seus interesses. O enforcement

refere-se às garantias de cumprimento (obrigatório), ou seja, levanta-se a questão de quais são

as possibilidades de que as sanções previstas nas regras venham a ser efetivamente

implementadas caso sejam necessárias.

Outro aspecto a ser destacado sobre as instituições é que as regras formais possuem

mecanismos de coordenação, como contratos, hierarquias, constituições, sistemas legais que

tornam os grupos bem sucedidos. Entretanto, as regras informais diminuem enormemente os

custos de transação 3, podendo, além disto, facilitar um grau maior de inovação tecnológica.

Quando, por exemplo, o nível de confiabilidade é maior entre as pessoas, os custos de

transação são menores, com isto pode-se dedicar menos recursos ao monitoramento das

atividades, sobrando mais recursos para investimentos. Dentre as limitações informais, um

tipo de instituição que tem merecido atenção por parte dos cientistas sociais é o chamado

3 Os custos de transação ocorrem devido à racionalidade limitada dos seres humanos e às incertezas próprias do meio que geram muitas vezes problemas na especificação dos direitos de propriedade e na elaboração de contratos; também surgem pela possibilidade de que os agentes manifestem uma conduta oportunista, tentando fugir dos compromissos assumidos nos contratos.

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capital social. Na definição de Putnam (1997, p.177), “o capital social diz respeito a

características da organização social, como confiança, normas e sistemas, que contribuem para

aumentar a eficiência da sociedade, facilitando as ações coordenadas”, podendo ser visto como

um conjunto de valores ou normas informais partilhadas por membros de um grupo que lhes

permite cooperar entre si.

A incapacidade de cooperar para o mútuo proveito não significa necessariamente ignorância

ou irracionalidade. Os especialistas em teoria dos jogos estudaram esse dilema fundamental

em diversas circunstâncias, como no “drama dos bens comuns, bens públicos”, na “lógica da

ação coletiva” e no “dilema do prisioneiro”. Em todas essas situações, as partes têm a ganhar

se cooperarem mas, na falta de compromisso mútuo confiável, cada qual prefere desertar,

tornando-se um oportunista.

A confiança implica uma previsão do comportamento de um ator independente em função de

normas incutidas e sustentadas por meio de condicionamento e socialização e da existência de

sanções que fortalecem a confiança social, reduzindo os custos de transação e facilitando a

cooperação. Em comunidades pequenas a confiança é irrestrita, resultado do convívio íntimo

com a outra pessoa. Em contextos mais amplos e complexos também existem regras, que por

meio da socialização e da sanção, atuam no sentido de fomentar a cooperação. Essas regras,

entretanto, baseiam-se numa forma de confiança mais impessoal ou indireta. Algumas delas

são basicamente horizontais, congregando agentes que tem o mesmo status e poder. Em

oposição, existem tipos de intercâmbio vertical, caracterizados por relações de poder entre os

indivíduos. A confiança em sociedades complexas emana de duas fontes conexas: as regras de

reciprocidade e os sistemas de participação cívica. Um tipo especial de reciprocidade, a

reciprocidade generalizada, permite aos indivíduos cooperarem sem contrapartida no presente,

na expectativa de que cooperem com ele no futuro. Outra forma de intercâmbio a ser

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destacada é a dos sistemas de participação cívica. Tais sistemas caracterizam-se por uma rede

de intercâmbio e comunicação interpessoal horizontal. O fato de ser horizontal significa que os

integrantes desse sistema compartilham do mesmo status e poder.

Como ilustrado pela figura 1, o capital social é um tipo de instituição informal que contribui

para aumentar o grau de confiança entre os membros de uma organização, justamente no

ponto em que a cooperação é baixa e a coerção de um terceiro, geralmente o Estado, é

demasiadamente onerosa.

FIGURA 1: INSTITUIÇÕES E CAPITAL SOCIAL

Nota: F = Regras Formais; I= Limitações Informais; E = Enforcement; CS= Capital Social.

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Em seu estudo sobre a Itália, Putnam (1997) constatou que o atraso econômico de

determinadas regiões do país se deve, fundamentalmente, às poucas virtudes cívicas existentes

nesses lugares. Nessas regiões, o incentivo tem sido para a formação de associações

compartilhadas por grupos limitados, com os agentes dispostos em relações simétricas de

hierarquia e dependência pessoal. O particularismo desse tipo de associação remete ao

conceito de familismo amoral, desenvolvido por Banfield, para caracterizar culturas

deficientes em valores comunitários que estimulam os laços de família 4. Nesta cultura

ninguém defenderá os interesses do grupo maior, salvo quando houver vantagens particulares

em fazê-lo, e é pequena a lealdade para com a grande comunidade, ou a aceitação de normas

de comportamento que exigem apoiar outros. Além disso, salienta Lipset-Lens (2002, p.185),

“o familismo amoral favorece a corrupção e estimula desvios de normas universalistas e de

mérito”. Tudo é permissível desde que atenda aos interesses da família.

A importância de valores compartilhados universalmente para o desenvolvimento das relações

econômicas foi ressaltada por Weber. Para o autor, a relevância da reforma protestante está

menos nas virtudes que ela difundia – honestidade, reciprocidade e frugalidade entre os

empresários – do que no fato de que essas virtudes eram pela primeira vez praticadas fora do

âmbito familiar 5. A lealdade pessoal, como sugere Weber, é uma obrigação particularista que

4 Na perspectiva do capital social, parece haver uma relação inversa entre laços de confiança e reciprocidade dentro e fora da família: quando na família esses laços são muito fortes, fora eles tendem a ser fracos e vice-versa. Isto pode ser exemplificado pelos casos da China e da América Latina. Nesses lugares, as relações familiares, em geral, são fortes, entretanto, na esfera pública, a confiança, a honestidade e a cooperação são baixas. 5 Bendix (1986) também enfatiza este aspecto da teoria de Weber, para quem a ética comercial puritana se aplicava igualmente a crentes e não crentes. Os controles sociais eram reforçados pela desvalorização de todos os vínculos pessoais. Inconscientemente, os teólogos puritanos produziram uma profunda despersonalização da vida familiar e grupal ao exigir que o homem fosse sóbrio em seu amor aos parentes e associados para não pôr em risco o trabalho fruto de sua “vocação”. O ódio seria tão perigoso para a alma quanto o amor. O necessário distanciamento emocional dentro da comunidade reduzia, pois, a distância social entre seus membros e os forasteiros do outro lado da “porteira”, por isto, quando a relação do individuo com seus parentes e associados é caracterizada pelo distanciamento, a rejeição ao estrangeiro torna-se menos imperativa.

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foi muito forte nas sociedades pré-capitalistas e feudais, no entanto, ela é a antítese do

mercado. O oposto do particularismo é o universalismo, ou seja, o compromisso de tratar os

outros segundo um padrão similar. Normas de mercado expressam o universalismo; por

conseqüência, o capitalismo exibe valores universais e é por eles sustentado 6.

Mais recentemente, a Nova Economia Institucional também tem reiterado a importância do

intercâmbio impessoal como pré-requisito fundamental para as economias que pretendem

aprofundar a divisão do trabalho, aumentando a escala de produção e os círculos virtuosos de

crescimento. Esse é, particularmente, o caso dos países do Terceiro Mundo que, segundo

Douglass North (1994), precisam criar uma infra-estrutura institucional que permita

ultrapassar as organizações sociais, políticas e econômicas centradas em laços familiares, além

da necessidade de promover organizações e instituições que possam aparar as inseguranças

associadas à extrema interdependência que caracteriza uma economia com alta especialização

e mercados impessoais. Um primeiro passo nessa direção é, segundo o autor, o

reconhecimento da importância das liberdades políticas e da educação.

Estabelecer instituições baseadas na iniciativa individual e no espírito de concorrência entre os

cidadãos não é tarefa fácil. Como argumenta Brett (1997), essas relações institucionais,

normalmente encontradas nas modernas democracias ocidentais, constituem-se em um modelo

tipo-ideal, que não podem ser transferidas de forma automática para outras sociedades. Para

que essas regras sejam funcionais, é necessário, em primeiro lugar, que existam estruturas

progressivas, conduzidas por elites igualmente progressistas. Em segundo lugar, é necessário

que as pessoas já tenham internalizado os valores do sistema requeridos para sustentar tais

condutas.

6 O reconhecimento das obrigações coletivas e o auto-sacrifício dos agentes, segundo Brett (1997), importam mais do que a racionalidade auto-interessada do homo economicus neoclássico. Somente onde se criaram elos entre auto-interesse e solidariedade de grupo foi possível estabelecer instituições universais.

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Os aspectos salientados acima remetem-nos à questão da mudança institucional. Duas

considerações são importantes a esse respeito. A primeira é que, do ponto de vista do capital

social, as regras ganham certa estabilidade no tempo, nesse caso, agir cooperativamente ou

desertar tornam-se opções racionais para agentes inseridos dentro do contexto governado por

essas regras. Isto ocorre porque é mais fácil para um agente individual adaptar-se às regras do

jogo vigente do que mudá-las. E também porque quando o desenvolvimento toma determinado

rumo, a cultura organizacional, os costumes e os modelos mentais do mundo social reforçam

essa trajetória.

A segunda consideração é que as chamadas limitações informais, por persistirem no tempo,

acabam entrando em conflito com as regras formais causando importantes consequências na

maneira em que mudam as economias. Isto mostra que o problema da mudança institucional é,

em sua abrangência, muito mais complexo do que aquilo que está contido nas propostas de

reforma das instituições formais. Para a maior estabilidade do sistema político-econômico, é

desejável que as regras formais mudem em conformidade com as limitações informais. North

(1990) cita o caso dos Estados Unidos no século XIX, em que as características

adaptativamente eficientes da sua matriz institucional (tanto as normas formais quanto as

informais) tornaram-se um meio acolhedor para a promoção dos incentivos ao crescimento

econômico. Do outro lado, estaria a América Latina onde, na ausência de um sistema de

crenças compartilhadas e de instituições que limitassem o âmbito da política, acabou-se

gerando um sistema de poder concentrado, baseado na distribuição paternal de transferências e

de regalias.

Com a retomada das pesquisas em economia institucional tornou-se de interesse estudar as

características das instituições do Terceiro Mundo, instituições estas que tenderiam a perpetuar

o subdesenvolvimento. Esse interesse tem se direcionado, particularmente, para as instituições

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invisíveis que dificultam o crescimento econômico. Sabe-se, como assinalado por Lipset-Lens

(2002), que o surgimento de economias modernas teria sido facilitado pela ênfase na

racionalidade, na família reduzida, na realização material, na mobilidade social e no

universalismo – elementos que caracterizam a modernidade como distinta do tradicionalismo.

Estas, teoricamente, foram marcadas pelo declínio do familismo e dos valores que sustentam

sistemas particularistas de ajuda mútua, contrários aos valores que sustentam o mercado.

A seguir, estuda-se a obra de Roberto DaMatta, importante cientista social cujos trabalhos na

esfera da antropologia cultural têm procurado melhor caracterizar a identidade cultural do

Brasil, de modo que se devidamente relidos podem oferecer uma melhor compreensão das

instituições brasileiras que se encontram no nível denominado por Williamson de

embeddedness e, por conseguinte, ajudam também na caracterização do capital social

brasileiro. Por fim, podem mostrar a forma como as instituições situadas nesse nível interagem

com as regras formais e como se dá o processo de mudança institucional no Brasil.

3. A Antropologia de Roberto DaMatta e o Capital Social Brasileiro

Roberto DaMatta, nas múltiplas atividades que exerce, é acima de tudo antropólogo. Seus

estudos se concentram nos dilemas, contradições e soluções das questões sociais do Brasil.

Sua contribuição, conforme assinala Souza (2001), é significativa para a ciência social

brasileira, não só pelo questionamento radical do que seja a singularidade da formação

brasileira, mas também pela preocupação acerca dos pressupostos da teorização científica.

Para DaMatta existem duas interpretações do Brasil, a primeira, que tem como principal

expoente o sociólogo Gilberto Freyre, baseia-se nos microprocessos, ou no conjunto de

costumes que têm marcado a formação e a própria estrutura da sociedade brasileira. A

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segunda, tendo como referência Caio Prado Junior, é inteiramente institucional, partindo dos

macroprocessos históricos e econômicos e focalizando as leis e a lógica da economia política.

Estas duas maneiras de ver o Brasil não são contraditórias, mas faces diferentes de uma

mesma moeda. Ambas falam antes de uma sociedade que atua por meio de códigos

complementares: o código da casa e o código da rua.

A base para a compreensão da dualidade brasileira está, segundo DaMatta, na classificação de

Dumont (1985), que divide as sociedades em dois tipos, a saber, as modernas e individualistas

e as de tipo tradicional. Nas primeiras, o indivíduo como ser moral, racionalmente normativo

de todas as instituições, é o centro do sistema, tendo como atributos a igualdade e a liberdade 7

. Nas tradicionais, o princípio básico da sociedade é a hierarquia. Nestas, a diferença e a

complementariedade são a base do sistema 8. Á classificação de Dumont, DaMatta acrescenta

as sociedades de tipo relacional. Um sistema relacional é aquele em que podem conviver

dimensões e esferas de vida com valores diferentes. Este é segundo Barbosa (1992), o caso do

Brasil, cuja peculiaridade histórica e estrutural, fruto, sobretudo, da herança católica e latina e

da incorporação recente de valores ocidentais, deu contornos a uma sociedade

individualista/hierárquica e semi-tradicional.

7 Neste ponto, DaMatta (1985) procura complementar Karl Polanyi, além de conceber a idéia de uma grande transformação que permitiu que a terra e a energia humana passassem a serem vendidas num espaço social demarcado pelo dinheiro e pelo preço, sustenta que teria havido uma outra revolução que complementou a primeira, criando a cidadania e o individuo com um papel social central dentro do sistema.8 Na Índia, exemplo de sociedade tradicional prevalece o todo sobre as partes, não existe a noção de individuo propriamente dita. No ocidente, ocorreu a revolução individualista que instituiu o indivíduo como centro moral do sistema. Prevalece, também, a noção de cidadão com deveres e direitos. Para o caso das sociedades relacionais, destaca-se a coexistência de diversas concepções de mundo e, principalmente, de diversas éticas concorrentes. Este é o caso do Brasil, onde existem duas tradições, uma tomista, centralizadora e legalista, e outra, igualitária, individualista e liberal.

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Para se entender melhor os desvios do Brasil em relação à modernidade 9, DaMatta propõe

explorar as diferenças entre as sociedades de tipo moderno e individualista e as de tipo

relacional. Destaca as categorias fundamentais que compõem cada uma destas sociedades. Nas

modernas e individualistas, o indivíduo é visto numa contigüidade estrutural com o mundo das

leis impessoais que o submetem e o subordinam (Souza, 2001). Nas sociedades relacionais,

predomina a noção de pessoa, cuja compreensão advém em referência a um sistema social

onde as relações de compadrio, de família, de amizade e de troca de interesses e favores

constituem um elemento fundamental. Nesta perspectiva, a relação explica a distorção do

binômio cidadão-indivíduo, inviabilizando o funcionamento da democracia 10.

De posse dos conceitos de sociedade individualista e de sociedade relacional, DaMatta

contrapõe então o caso brasileiro ao dos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, sociedade

moderna e individualista, a comunidade pode ser entendida como igualitária porque não é

formada por famílias, parentelas e facções que, objetiva e efetivamente, têm propriedades,

tamanhos e interesses diferentes, mas por indivíduos-cidadãos. No Brasil, sociedade

relacional, a comunidade, por contraste, é necessariamente heterogênea, complementar e

hierarquizada 11. Sua unidade básica não está alicerçada em indivíduos (ou cidadãos), mas em

relações pessoais, familiares e de amizade. Assim, no caso do Brasil, se o indivíduo não tem

nenhuma ligação com uma pessoa ou instituição de prestígio na sociedade, ele é tratado como

9 Segundo Souza (2001), DaMatta, juntamente com Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro, faz parte do grupo de autores que enfatizam a permanência do personalismo como o núcleo da formação social brasileira. Personalismo este que teria íntima ligação com a herança ibérica. Neste sentido, estes autores teriam construído uma sociologia da “inautenticidade", onde o Brasil é visto como “o outro”, um desvio da modernidade, tendo sido sua modernização epidérmica e de fachada.10 Neste modelo dicotômico, o cidadão é a entidade que está sujeita à lei, ao passo que a família e as teias de amizade, as redes de relações, ainda que altamente formalizadas política, ideológica e socialmente, são entidades rigorosamente fora da lei. 11 Quanto maiores e mais numerosas as diferenças entre os indivíduos menor é o incentivo para a interação e a confiança entre eles. Estas diferenças podem incluir sangue e tipo étnico, linguagem, cultura, educação, renda, riqueza, ocupação, status social, direitos políticos e econômicos e distância geográfica.

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um inferior. Mas se ele tem proximidade com o poder, ou com aquilo que representa o centro

do poder, ele pode ser diferenciado e tratado com privilégios.

Por ter o seu funcionamento orientado, fundamentalmente, por relações pessoais, a sociedade

brasileira estimula valores compartilhados por grupos limitados. Valores estes que mudam

conforme o espaço em que se encontram os agentes. Existem, assim, espaços de significação

social, dado que o brasileiro separa lugares e cada ambiente contém visões de mundo ou éticas

particulares. A coexistência dessas diversas éticas sociais reflete um quadro em que não teria

se operado a revolução burguesa que deveria criar o indivíduo como categoria social única.

Enquanto as sociedades que passaram pela revolução individualista instituíram um código de

conduta hegemônico, fundado na idéia de cidadão, as sociedades relacionais fazem uso de

muitos códigos de relacionamento operados simultaneamente.

Em consonância com o pensamento de Weber, DaMatta (1994) conclui que a modernidade

exige um tipo de racionalidade que esteja apoiada em regras explícitas (em normas e

instituições mais do que em pessoas), válidas para todos, portanto, impessoais e independentes

da vontade ou motivação dos indivíduos. As perguntas que cabem, então, são as seguintes: por

que, apesar do alardeado credo liberal que se tem no Brasil, privilegiam-se as relações

pessoais? Por que as noções de cidadania e a categoria de indivíduo não funcionam no Brasil?

A resposta a ambas as questões segundo DaMatta:

é uma mescla de questões culturais, históricas e estruturais (...). No Brasil, o Estado nasceu operando a partir de leis e instituições que ele criava como seus instrumentos de progresso, mudança e controle (...). Predomina uma organização burocrática onde o todo predomina sobre as partes (1985, p. 76).

Conforme visto na seção anterior, o capital social positivo gera relações que, por um lado,

aumentam o grau de confiabilidade e o intercâmbio impessoal e, por outro, reduzem os custos

de transação. No caso dos valores constatados para o Brasil, depreende-se que estes, por

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diminuírem o grau de confiança e por aumentarem o oportunismo e os tipos de maximização

míope de riqueza, elevam os custos de transação da sociedade. Estabelecem-se, portanto,

relações, no geral, semelhantes às vigentes no sul da Itália, estudadas por Banfield, onde

predomina o familismo amoral. O próprio DaMatta argumenta sobre este tipo de

comportamento e sobre os seus custos sociais, enfatizando que no Brasil há “... uma enorme

desconfiança de sistemas universais governados por regras únicas e que valem para todos”

(1994, p.169-171). O autor complementa dizendo o seguinte: “... jogamos com dois pesos e

duas medidas, repassando os lucros para os amigos e os gastos para a sociedade ou para o

governo” (Id. Ibid.)

Na segunda seção, ressaltou-se também a importância do capital social no incentivo às

inovações tecnológicas. Em primeiro lugar porque, com custos de transação menores, sobram

mais recursos para investimentos produtivos. Em segundo porque, de acordo Douglass North,

existem valores que estimulam o potencial criativo das sociedades além de fomentarem um

maior nível de concorrência entre os agentes econômicos. Estes valores atuam no sentido de

reduzirem os chamados custos de transformação (que incluem os custos de produção). Para

isto, North pressupôs educação universal e o respeito às liberdades fundamentais (dentre os

quais figura a garantia dos direitos de propriedade). Sobre a capacidade do sistema social

brasileiro ser competitivo e gerar inovações, DaMatta apresenta argumenta contrariamente a

estas expectativas:

Há na realidade vários mercados que operam simultaneamente. Alguns são financiados pelo Estado e seus empresários desfrutam todos os lucros e nenhum risco. Outros operam na dura base da lei da oferta e da procura. E há, ainda, aquela esfera dominada pelos letrados, tecnocratas ou, para usarmos a expressão definitiva de Raymundo Faoro, os “donos do poder”, esses que vivem num universo sem competição, pagos pelo Estado e sustentados pelos misteriosos laços de simpatia e lealdade pessoais (DaMatta ,1985, p.21).

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Outra questão é que o capital social positivo tende a melhorar a qualidade das políticas

públicas. Isto é fundamental no mundo moderno, cuja exigência de impessoalidade das regras,

divorcia e neutraliza os interesses da esfera pública em relação aos interesses da esfera

privada. No entanto, não é o que ocorre para o caso do Brasil. Nesse caso, o autor

complementa afirmando que:

No fundo, vivemos em uma sociedade onde existe uma espécie de combate entre o mundo público das leis universais e do mercado; e o universo privado da família, dos compadres, parentes e amigos[...] A obediência às leis configura na sociedade brasileira uma situação de pleno anonimato e grande inferioridade. Todos os brasileiros navegam socialmente realizando um cálculo personalizado de sua atuação. O resultado é que toda instituição brasileira está sujeita a dois tipos de pressão, uma universalista, que vem das normas burocráticas e legais, a outra é determinada pelas redes de relação. E como prestígio social é algo que se localiza na teia de relações - e nas relações - tanto quanto nos indivíduos, uma pessoa pode efetivamente colocar à disposição de outra suas redes de relações pessoais, fazendo com que todas as instituições possam se tornar eficientes (DaMatta, 1985, p. 82-83).

Também é ponto importante do debate a forma como as regras do jogo mudam na sociedade

brasileira. Do ponto de vista da abordagem do capital social, as regras sociais condicionam

profundamente o processo de mudança histórica. Dir-se-á que em função disso, o processo de

mudança institucional é incremental. Isto quer dizer que as sociedades que usam reformas no

âmbito da política como estratégias de mudança institucional, vêem-se constantemente

frustradas com os resultados alcançados. As mudanças, nesse caso, ocorrem de forma

meramente epidérmicas e de fachada. Este caso pode ser ilustrado com o exemplo brasileiro,

que segundo DaMatta, tem uma tradição política mudancista:

...isto é, uma tradição caracterizada pela preferência por mudar superficial e institucionalmente na vã e messiânica esperança de corrigir o sistema de uma vez por todas [...] o plano político foi tomado como esfera privilegiada da mudança, como o domínio que importa corrigir. Era como se preferíssemos mudar a frágil esfera pública para não mexermos na formidavelmente forte esfera da “casa” e dos laços de família (1994, p.157).

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Para uma compreensão efetiva do que seja o processo de mudança institucional no Brasil, é

preciso ter em vista outra perspectiva. No caso da perspectiva damattiana, o sistema ritual

brasileiro é um modo complexo de estabelecer e, até mesmo, de propor uma relação

permanente e forte entre a casa e a rua. Para a Nova Economia Institucional, a importância

atribuída às limitações informais está em se pressupor que os agentes processam informação

através de modelos subjetivos imperfeitos, fundados no hábito e nas convenções sociais, e que

só poderão corrigir suas opções de maneira incompleta no tempo. Estas limitações informais,

ao persistirem no tempo, entram em conflito com as regras formais. Para o caso brasileiro, a

relação entre limitações informais, regras formais e mudança institucional, de acordo com as

inferências da leitura de DaMatta, é muito mais complexa, refletindo antes a forma como

partes separadas, mas complementares, reforçam sua unidade. Isto pode ser constado a partir

da leitura do seguinte trecho:

O que parece singular entre nós não é a presença mútua de universalismo e particularismo, fenômeno de resto comum a todas as sociedades nacionais contemporâneas, mas suas presenças múltiplas e fortemente contextualizadas no nosso sistema. Assim, os dois operam simultaneamente no Brasil tendo, ao que tudo indica, a mesma importância ideológica e o mesmo peso político (DaMatta, 1994, p. 160).

Em síntese, pela própria definição de capital social, um sistema que partilhasse valores

universais, operando com um código único de conduta teria maiores chances de produzir

melhores resultados em termos de desempenho econômico. O Brasil herdou dos estados

ibéricos o centralismo e a burocracia patrimonialista característica de suas instituições. O país

prescinde, no dizer de DaMatta, de uma revolução individualista, que institua o indivíduo

como sujeito principal da sociedade pois, no Brasil, o Estado cria leis e instituições a partir de

seus próprios códigos ou agenda de seus sujeitos principais. Com a vigência dos valores

constatados por DaMatta, entende-se, ao contrário, que as possibilidades maiores no Brasil são

as de se gerarem estratificações ocupacionais, produzindo direitos de propriedades fundados

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na posição e hierarquia e não nos valores individuais, ou seja, o valor maior seguirá sendo

conferido à pessoa e às suas teias de relações. A cultura brasileira, tal como descrita, estimula,

portanto, um tipo de capital social cuja maior característica é o personalismo e o

particularismo.

4. Conclusão:

Existe hoje uma maior concordância entre os economistas de que as instituições de uma

sociedade são fundamentais para explicar o desempenho econômico no longo prazo. Alguns

autores institucionalistas e demais autores que trabalham com questões culturais,

principalmente com a noção de capital social, enfatizam a necessidade de se criar regras de

conduta universalmente válidas, ou seja, a necessidade de se ter valores que operem num meio

social homogêneo, portanto, que possam ter o seu reconhecimento garantido em todos os

confins da sociedade.

Sociedades como a brasileira, em que o Estado teve de assumir o comando do processo de

modernização e transformação, criando leis fundadas a partir de seus próprios mecanismos de

mudança, progresso e controle, tendem a criar estratificações ocupacionais e espaços

privilegiados que inviabilizam a institucionalização do indivíduo como centro moral do

sistema. Neste sentido, impõem-se restrições ao completo desenvolvimento da plena cidadania

e da distribuição de direitos de propriedade baseados nos valores de mercado.

Ocorre também que a adoção dos códigos jurídicos externos, ou a anuência de regras formais

consubstanciadas nas experiências dos países ocidentais, tem poucas chances de produzir

resultados semelhantes aos dos países de origem. Isto porque os mecanismos de cumprimento

obrigatório - a forma em que se exerce a obrigatoriedade das normas de conduta – seguem os

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modelos subjetivos diferentes entre os países. É o que tem ocorrido na América Latina e,

particularmente, no Brasil, onde vem sendo imposto um conjunto alheio de normas sobre uma

herança muito antiga de controles burocráticos centralizados, procedimentos personalizados e

percepções ideológicas correspondentes. As evidências parecem apontar para o fato de que a

herança colonial ibérica em correspondência com os códigos de ação do Estado tem

inviabilizado a formação de instituições que levem o país a superar o seu atraso econômico.

Para usar uma expressão comum aos novos institucionalistas, pode-se dizer que o marco

institucional brasileiro não tem gerado incentivos para o desenvolvimento econômico. Mais

particularmente, pode-se dizer que o tipo de capital social aqui existente não tem produzido as

normas e redes de relações que facilitam a coordenação das ações e melhoram a eficiência da

sociedade. O que também pode ser inferido da leitura de DaMatta é que as instituições no

Brasil privilegiam mais as relações e se fundam em hierarquias, criando como regra, em

conseqüência, condutas baseadas no cálculo personalista. Contudo, a proximidade em relação

à racionalidade instrumental e ao intercâmbio impessoal complexo é um pré-requisito

fundamental para aproveitar todas as oportunidades lucrativas abertas pela tecnologia

moderna.

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