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265 Eliseu Antônio da Silva Belo* O STF E O ARTIGO 44, I, DO CÓDIGO PENAL: REFLEXÕES EM TORNO DE SUA CONSTITUCIONALIDADE E DE SUA DERROTABILIDADE THE FEDERAL SUPREME COURT AND THE ARTICLE 44, I, FROM THE CRIMINAL CODE: REFLECTIONS UPON ITS CONSTITUTIONALITY AND ITS DEFEATING EL STF Y EL ARTíCULO 44, I, DEL CÓDIGO PENAL: REFLEXIONES SOBRE SU CONSTITUCIONALIDAD Y SU DERROTABILIDAD Resumo: O julgamento em que o Supremo Tribunal Federal declarou a in- constitucionalidade incidental da norma penal ordinária que vedava a substituição da pena privativa de liberdade em restritiva de direi- tos, nos casos de tráfico de drogas (HC n. 97.256-RS, rel. Min. Ayres Britto), conduz à reflexão em torno da constitucionalidade ou não do artigo 44, I, do Código Penal, quando este dispositivo veda a aludida substituição nas hipóteses em que o crime é cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, independente do quan- tum da pena privativa de liberdade imposta na sentença condena- tória. Nesse contexto, evidenciada a natureza jurídica de regra legal do artigo 44, I, do Código Penal, conclui-se que a sua edição, pelo legislador ordinário, no plano abstrato, é compatível com a Consti- tuição Federal. Isso, porém, não afasta a possibilidade, sempre ex- cepcional, de essa regra penal ser superada ou derrotada em certos casos concretos, cujas peculiaridades demandam a sua não aplicação, o que se faz com apoio na teoria da derrotabilidade de regras jurídicas. * Especializado em Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes/RJ. Promotor de Justiça do MP-GO.
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Eliseu Antônio da Silva Belo*

O STF E O ARTIGO 44, I, DO CÓDIGO PENAL: REFLEXÕES EM TORNO DE SUA

CONSTITUCIONALIDADE E DE SUA DERROTABILIDADE

THE FEDERAL SUPREME COURT AND THE ARTICLE 44, I, FROM THE CRIMINAL CODE: REFLECTIONS UPON

ITS CONSTITUTIONALITY AND ITS DEFEATING

EL STF Y EL ARTíCULO 44, I, DEL CÓDIGO PENAL: REFLEXIONES SOBRE SU CONSTITUCIONALIDAD

Y SU DERROTABILIDAD

Resumo:

O julgamento em que o Supremo Tribunal Federal declarou a in-constitucionalidade incidental da norma penal ordinária que vedavaa substituição da pena privativa de liberdade em restritiva de direi-tos, nos casos de tráfico de drogas (HC n. 97.256-RS, rel. Min.Ayres Britto), conduz à reflexão em torno da constitucionalidade ounão do artigo 44, I, do Código Penal, quando este dispositivo vedaa aludida substituição nas hipóteses em que o crime é cometidocom violência ou grave ameaça à pessoa, independente do quan-tum da pena privativa de liberdade imposta na sentença condena-tória. Nesse contexto, evidenciada a natureza jurídica de regra legaldo artigo 44, I, do Código Penal, conclui-se que a sua edição, pelolegislador ordinário, no plano abstrato, é compatível com a Consti-tuição Federal. Isso, porém, não afasta a possibilidade, sempre ex-cepcional, de essa regra penal ser superada ou derrotada emcertos casos concretos, cujas peculiaridades demandam a sua nãoaplicação, o que se faz com apoio na teoria da derrotabilidade deregras jurídicas.

* Especializado em Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes/RJ.Promotor de Justiça do MP-GO.

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Abstract:

The judgement in which the Federal Supreme Court declared theincidental inconstitutionality in the ordinary criminal rule that baredthe substitution of the deprivation of freedom penalty in deprivingrights, in the drug dealing cases (HC n. 97.256-RS, rel. Min. AyresBritto), take us to the reflection upon the constitutionality or not ofthe article 44, I, from the Criminal Code, when this instrument de-prives the alluded substitution in the hypothesis of crime committedwith violence or serious threaten to the person, not depending onthe quantum of the deprivation of freedom penalty imposed by theguilty verdict. In this context, highlighted the juridical nature of thelegal rule of the article 44, I, from de Criminal Code, it can be con-cluded that its edition, by the ordinary legislator, in the abstract plan,is compatible with the Federal Constitution. This, however, does notexclude the possibility, always exceptional, of this rule to be over-comed or defeated in certain concrete cases, whose peculiaritiesdemand not applying it, which is done with the support of the juridicalrules defeating theory.

Resumen:

La sentencia en que la Corte Suprema declaró la inconstitucio-nalidad incidental de la norma penal ordinaria que prohíbe la sus-titución de la pena de prisión por la de restricción de los derechosen los casos de tráfico de drogas (HC n. 97 256-RS, rel. Min.Ayres Britto) conduce a la reflexión sobre la constitucionalidad ono del artículo 44, I, del Código Penal, cuando este dispositivosella el reemplazo en los casos en que el delito se comete conviolencia o amenaza grave a la persona, independientemente delquantum de la pena de prisión impuesta en caso de condena. Eneste contexto, destacada la naturaleza jurídica de la norma jurí-dica del artículo 44, I, del Código Penal, se concluye que su edi-ción, por el legislador ordinario, en abstracto, es consistente conla Constitución Federal. Sin embargo, eso no excluye la posibili-dad, siempre excepcional, de que la norma penal puede ser su-perada o derrotada en casos concretos, cuyas peculiaridadesexigen que no sea aplicada, apoyándose en la teoría de la anu-labilidad de las normas jurídicas.

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Palavras-chaves:

Crime cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, subs-tituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos,regra proibitiva, constitucionalidade, derrotabilidade.

Keywords:

Crime committed with violence or serious threaten to the person,substitution of the deprivation of freedom penalty in deprivingrights, prohibitive rule, constitutionality, defeating.

Palabras clave:

Delito cometido con violencia o amenaza grave a la persona,sustitución de la pena de privación de libertad por la de restric-ción de los derechos, norma de prohibición, constitucionalidad,derrotabilidad.

INTRODUÇÃO

Em setembro de 2010, o Plenário do Supremo TribunalFederal, nos autos do HC n. 97.256-RS, rel. Min. Ayres Britto, consi-derou inconstitucional, em sede de controle difuso, a vedação desubstituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos,contida nos artigos 33, § 4º, e 44, ambos da Lei n. 11.343/2006,relativamente ao tráfico de drogas e condutas delituosas similares. Aementa desse precedente tem o seguinte teor:

EMENTA: HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. ART. 44DA LEI 11.343/2006: IMPOSSIBILIDADE DE CONVERSÃO DAPENA PRIVATIVA DE LIBERDADE EM PENA RESTRITIVA DEDIREITOS. DECLARAÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIO-NALIDADE. OFENSA À GARANTIA CONSTITUCIONAL DA IN-DIVIDUALIZAÇÃO DA PENA (INCISO XLVI DO ART. 5º DACF/88). ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA. 1. O processode individualização da pena é um caminhar no rumo da persona-lização da resposta punitiva do Estado, desenvolvendo-se em trêsmomentos individuados e complementares: o legislativo, o judicial

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e o executivo. Logo, a lei comum não tem a força de subtrairdo juiz sentenciante o poder-dever de impor ao delinqüentea sanção criminal que a ele, juiz, afigurar-se como expressãode um concreto balanceamento ou de uma empírica ponde-ração de circunstâncias objetivas com protagonizações sub-jetivas do fato-tipo. Implicando essa ponderação em concreto aopção jurídico-positiva pela prevalência do razoável sobre o ra-cional; ditada pelo permanente esforço do julgador para conciliarsegurança jurídica e justiça material. 2. No momento sentencialda dosimetria da pena, o juiz sentenciante se movimenta com ine-liminável discricionariedade entre aplicar a pena de privação oude restrição da liberdade do condenado e uma outra que já nãotenha por objeto esse bem jurídico maior da liberdade física dosentenciado. Pelo que é vedado subtrair da instância julgadora apossibilidade de se movimentar com certa discricionariedade nosquadrantes da alternatividade sancionatória. 3. As penas restritivasde direitos são, em essência, uma alternativa aos efeitos certa-mente traumáticos, estigmatizantes e onerosos do cárcere. Nãoé à toa que todas elas são comumente chamadas de penas alter-nativas, pois essa é mesmo a sua natureza: constituir-se numsubstitutivo ao encarceramento e suas seqüelas. E o fato é que apena privativa de liberdade corporal não é a única a cumprir a fun-ção retributivo-ressocializadora ou restritivo-preventiva da sançãopenal. As demais penas também são vocacionadas para esse ge-minado papel da retribuição-prevenção-ressocialização, e nin-guém melhor do que o juiz natural da causa para saber, no casoconcreto, qual o tipo alternativo de reprimenda é suficiente paracastigar e, ao mesmo tempo, recuperar socialmente o apenado,prevenindo comportamentos do gênero. 4. No plano dos tratadose convenções internacionais, aprovados e promulgados pelo Es-tado brasileiro, é conferido tratamento diferenciado ao tráfico ilícitode entorpecentes que se caracterize pelo seu menor potencialofensivo. Tratamento diferenciado, esse, para possibilitar alterna-tivas ao encarceramento. É o caso da Convenção Contra o TráficoIlícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas, incorpo-rada ao direito interno pelo Decreto 154, de 26 de junho de 1991.Norma supralegal de hierarquia intermediária, portanto, que auto-riza cada Estado soberano a adotar norma comum interna queviabilize a aplicação da pena substitutiva (a restritiva de direitos)no aludido crime de tráfico ilícito de entorpecentes. 5. Ordem parcial-mente concedida tão-somente para remover o óbice da parte final doart. 44 da Lei 11.343/2006, assim como da expressão análoga

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“vedada a conversão em penas restritivas de direitos”, constantedo § 4º do art. 33 do mesmo diploma legal. Declaração incidentalde inconstitucionalidade, com efeito ex nunc, da proibição de subs-tituição da pena privativa de liberdade pela pena restritiva de di-reitos; determinando-se ao Juízo da execução penal que faça aavaliação das condições objetivas e subjetivas da convolação emcausa, na concreta situação do paciente. (HC 97256, Relator(a):Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 01/09/2010,DJe-247 DIVULG 15-12-2010 PUBLIC 16-12-2010 EMENT VOL-02452-01 PP-00113 RTJ VOL-00220- PP-00402 RT v. 100, n. 909,2011, p. 279-333) (negrito nosso)

Uma primeira leitura do trecho anteriormente destacado levariao intérprete a concluir que não mais estariam valendo os requisitos im-postos pelo artigo 44 do Código Penal, que cuida das hipóteses em queo juiz poderá substituir a pena privativa de liberdade por restritivas de di-reitos, já que, de acordo com a própria ementa, o magistrado teria ampla“discricionariedade nos quadrantes da alternatividade sancionatória”.

Contudo, uma leitura de todo o acórdão e dos votos dos de-mais Ministros que seguiram o relator demonstra que esse entendi-mento é equivocado, pois foi consignado, expressamente, que opatamar objetivo de uma pena de quatro anos é razoável para quese impeça essa substituição, conforme se extrai do seguinte trechodo voto do Min. Cezar Peluso:

Ora, a lei não pode, sem alterar todo o sistema, impedir a escolhajudicial pela só referência à natureza jurídica do crime. Por quê?Porque a natureza do crime não compõe o âmbito dos critérios deindividualização da pena. Não se pode confundir a gravidade docrime com a natureza do crime. A gravidade do crime é apuradaem concreto pelo Juiz. Daí por que a própria lei prevê que aspenas acima de 4 anos – e que, portanto, pressupõem a gra-vidade do crime – não suportam a conversão. Nesse casoestá correto, porque aí está sendo levada em conta a gravi-dade concreta do crime. (negrito nosso)

O artigo 44 do Código Penal tem o seguinte teor:

Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substi-tuem as privativas de liberdade, quando:

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I - aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anose o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pes-soa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo;II - o réu não for reincidente em crime doloso;III - a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a perso-nalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstânciasindicarem que essa substituição seja suficiente.§ 1º (VETADO)§ 2º Na condenação igual ou inferior a um ano, a substituição podeser feita por multa ou por uma pena restritiva de direitos; se supe-rior a um ano, a pena privativa de liberdade pode ser substituídapor uma pena restritiva de direitos e multa ou por duas restritivasde direitos.§ 3º Se o condenado for reincidente, o juiz poderá aplicar a subs-tituição, desde que, em face de condenação anterior, a medidaseja socialmente recomendável e a reincidência não se tenha ope-rado em virtude da prática do mesmo crime.§ 4º A pena restritiva de direitos converte-se em privativa de liber-dade quando ocorrer o descumprimento injustificado da restriçãoimposta. No cálculo da pena privativa de liberdade a executar serádeduzido o tempo cumprido da pena restritiva de direitos, respei-tado o saldo mínimo de trinta dias de detenção ou reclusão.§ 5º Sobrevindo condenação a pena privativa de liberdade, poroutro crime, o juiz da execução penal decidirá sobre a conversão,podendo deixar de aplicá-la se for possível ao condenado cumprira pena substitutiva anterior.

Ocorre, porém, que no inciso I do transcrito artigo há a refe-rência, como óbice legal à substituição em comento, a alguns tiposde crimes cuja natureza (ou estrutura legal) seja caracterizada porviolência ou grave ameaça à pessoa. Assim, como foi afirmado quea mera natureza do crime não seria apropriada a impedir a aludidasubstituição, como se deu em relação ao tráfico de drogas, cuja na-tureza é de crime hediondo, impõe-se investigar se a previsão legaldestinada a impedir a substituição em foco, nos casos de crimes do-losos cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, seria ounão inconstitucional, sendo esse o objetivo maior do presente trabalho.

Veja-se que o tema ainda não foi apreciado pela SupremaCorte, mas seguramente, mais cedo ou mais tarde, o será, tendo emconta que, em sede de reclamação perante o STF, o assunto em

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questão já foi aventado, a propósito da aplicação de sua Súmula Vin-culante n. 10, em passagem assim registrada, no bojo de uma deci-são monocrática do Min. Dias Toffoli:

Decisão: Vistos. Trata-se de reclamação constitucional, com pe-dido de medida liminar, ajuizado pelo Ministério Público do Estadodo Rio Grande do Sul em face do Tribunal de Justiça estadual,cuja decisão teria afrontado a autoridade do Supremo Tribunal Fe-deral e negado aplicação à Súmula Vinculante nº 10. O recla-mante sustenta, em síntese, que a Terceira Câmara Criminaldaquele Tribunal de Justiça, ao invocar o princípio constitucionalda proporcionalidade para deixar de aplicar o disposto no art. 44,inciso I, do Código Penal sem a observância da cláusula de re-serva de plenário (art. 97 da Constituição Federal), violou o en-tendimento desta Suprema Corte consubstanciado na SúmulaVinculante nº 10. Aduz, para tanto, que: “[...] O acórdão embar-gado deixou de aplicar ao caso concreto o artigo 44, inciso I, doCódigo Penal, em nome do princípio da proporcionalidade. Con-forme o acórdão, ‘Nessa senda, apesar de o artigo 44, I, do CódigoPenal estabelecer, além do quantum de pena, outro requisito ob-jetivo, isto é, de que o delito não seja cometido com violência ougrave ameaça à pessoa, a doutrina vem amenizando o aludidocritério em nome do princípio da proporcionalidade. Nesse sentido,ALBERTO SILVA FRANCO e JULIANA BELLOQUE: Trata-se deuma presunção legal absoluta de que para todos aqueles que co-metem crime com violência ou grave a (sic) ameaça não se mos-tra suficiente para o cumprimento das finalidades da pena aaplicação de sanções restritivas de direitos. Tal previsão deve ser,contudo, abrandada em nome do princípio da proporcionalidade,para não atingir as condutas que se encaixam na definição legalde infrações de menor potencial ofensivo. Desta forma, para oscrimes de lesão corporal leve, ameaça, constrangimento ilegal eesbulho possessório, por exemplo, como sempre serão aplicáveisos substitutos penais, de maneira alternativa, através de transaçãopenal, não há razão para impedir a sua aplicação através da subs-tituição operada em sentença penal condenatória, quando frus-tradas as soluções alternativas do conflito penal previstas na Lei9.099/95. (Código Penal e sua Interpretação, p. 290, 2007)’.Ocorre que, como é sabido, é vedado aos órgãos fracionários dosTribunais Estaduais, por força da cláusula de reserva de plenário(full bench) do artigo 97 da Constituição Federal de 1988, proceder

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ao controle de constitucionalidade de dispositivos legais editadossob a sua égide – como é o caso do aludido artigo 44, I do CP –sem a instauração do incidente disciplinado pelos artigos 480, 481e 482 do Código de Processo Civil. No caso presente, reitera-se,o acórdão afastou a incidência de dispositivo (CP, art. 44, I) abso-lutamente constitucional, com base em argumento extraído daConstituição Federal (princípio da proporcionalidade). Acerca daconstitucionalidade do art. 44, I, do CP, pertinentes os seguintesprecedentes: [...]. Portanto, configurada a hipótese de descumpri-mento da Súmula Vinculante nº 10, impositiva a procedência dapresente reclamação” (fls. 3/4 da inicial). [...]. A situação trazida àpresente reclamação vai de encontro com o teor da Súmula Vin-culante nº 10 desta Corte, pois, como visto, o acórdão reclamado,proveniente de órgão fracionário daquele Tribunal de Justiça es-tadual, ao deixar de aplicar o disposto no art. 44, inciso I, do Có-digo Penal à espécie, violou expressamente o disposto no art. 97da Constituição Federal. Ante o exposto, com base no art. 161,parágrafo único, do Regimento Interno desta Suprema Corte,desde logo, julgo procedente a presente reclamação para cassaro acórdão proferido Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grandedo Sul nos autos da Apelação Criminal nº 70043965359, determi-nando que outro seja proferido em consonância com o art. 97 daCarta da República. Publique-se. Brasília, 8 de agosto de 2013.Ministro Dias Toffoli Relator1.

Como se vê, a decisão proferida apenas apreciou a alegadaviolação à Súmula Vinculante n. 10 do STF, sem adentrar, portanto, noexame de constitucionalidade ou não do artigo 44, I, do Código Penal, oque será feito pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul para quedepois, por meio de recurso extraordinário, chegue ao STF, se for o caso.

A NATUREZA JURÍDICA DA NORMA CONTIDA NO ARTIGO 44,I, DO CÓDIGO PENAL: REGRA OU PRINCÍPIO?

A definição da natureza jurídica dessa norma é de funda-mental importância para o desate da questão principal deste trabalho,

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1 Rcl 13038, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, julgado em 08/08/2013, publicado emPROCESSO ELETRÔNICO DJe-161 DIVULG 16/08/2013 PUBLIC 19/08/2013.

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tendo em conta que cada espécie normativa mencionada tem umarepercussão diversa no que se refere à relevância e à abrangênciados princípios democráticos e da separação de poderes em um Es-tado como o brasileiro, conforme será mais bem explicitado adiante.

Uma das conceituações mais difundidas dessas espéciesnormativas – considerada do tipo forte – é a fornecida pelo jusfilósofoalemão Robert Alexy (2012, p. 90-91), ao aprofundar a posição sus-tentada por Ronald Dworkin, nos seguintes termos:

O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que prin-cípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maiormedida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas exis-tentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimi-zação, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos emgraus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satis-fação não depende somente das possibilidades fáticas, mas tam-bém das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidadesjurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes.Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou nãosatisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamenteaquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, por-tanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridica-mente possível. Isso significa que a distinção entre regras eprincípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau.Toda norma é ou uma regra ou um princípio. (itálico no original)

Humberto Ávila (2014, p. 102), por sua vez, a par de tecerinúmeras críticas à definição anteriormente transcrita, diferencia umanorma da outra da seguinte maneira:

As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente re-trospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, paracuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, semprecentrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios quelhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção con-ceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos.Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primaria-mente prospectivas e com pretensão de complementaridade e deparcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação dacorrelação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos

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decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção.

(itálico no original)

Em seguida (p. 108), de forma mais simples e clara, omesmo autor salienta que as regras possuem, de modo destacado,“[...] um componente descritivo dos comportamentos permitidos, proi-bidos ou obrigatórios, isto é, dos comportamentos prescritos”. Paraele, “[...] enquanto as regras descrevem comportamentos permitidos,obrigatórios ou proibidos, os princípios descrevem estados ideaisque devem ser promovidos ou conservados”.

Nesse sentido, fica claro que o artigo 44, I, do Código Penalconstitui, sem dúvida, uma regra proibitiva, dirigida ao Poder Judi-ciário, que pode ser estruturada, em outras palavras, da seguinteforma: se a condenação imposta for por crime doloso cometido comviolência ou grave ameaça à pessoa, então está vedado ao magis-trado substituir a pena privativa de liberdade por restritivas de direitos.

Assim, é fácil perceber a correspondência certa entre a“construção conceitual do fato” ou a hipótese de incidência (a con-denação judicial por crime doloso cometido com violência ou graveameaça à pessoa) e a “construção conceitual da descrição norma-tiva” ou a consequência jurídica, que proíbe a cogitada substituição.

Note-se que não há, na norma ora em exame, o estabeleci-mento de um estado ideal de coisas a ser promovido ou conservado, ca-racterizador dos princípios, como se dá, por exemplo, com a previsãoconstitucional do direito à ampla defesa e ao contraditório (artigo 5º, LV,da Constituição Federal), e com vários outros direitos fundamentais, den-tre os quais citam-se o direito à livre manifestação do pensamento e osdireitos à honra, privacidade, imagem e intimidade das pessoas2.

Mesmo com base na distinção formulada por Alexy, ante-riormente citada, pode-se concluir que se cuida de uma regra, já quea norma sob análise não contém um mandamento de otimização, nosentido de que algo seja realizado na maior medida possível, dentrodas possibilidades fáticas e jurídicas. Ao contrário, dela se extrai um

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2 Para uma abordagem específica desses direitos em confronto com a prerrogativada imunidade parlamentar material brasileira, prevista no artigo 53, caput, da Cons-tituição Federal, cf. artigo de nossa autoria: Belo (2014).

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comando definitivo de caráter proibitivo, de modo que diante de suahipótese de incidência é preciso que se aplique, de forma plena e li-near, a sua consequência, que é a referida proibição de substituição.

Portanto, sem a menor dúvida, quanto ao artigo 44, I, doCódigo Penal, é correto afirmar que se trata de uma autêntica regrajurídica3, editada pelo legislador infraconstitucional, no pleno exercíciode sua liberdade de conformação normativa das diversas normasconstitucionais, aqui especificamente na seara penal.

O que se mostra agora relevante indagar é se o legisladoro fez de forma legítima ou não, diante do que estabelece a Consti-tuição Federal, em especial o rol de direitos fundamentais nela pre-visto, no qual se destaca o princípio constitucional utilizado peloSupremo Tribunal Federal no precedente que abre o presentetrabalho, qual seja, o da individualização da pena.

Inicialmente, não se pode esquecer que o artigo 5º, XXXIX,da Constituição, ao dispor que “não há crime sem lei anterior que odefina, nem pena sem prévia cominação legal”, confere ao legisladorordinário ampla liberdade para a definição legal daquelas condutasreputadas criminosas, bem como das respectivas sanções penaisa elas cominadas. Todavia, apesar de ampla, essa liberdade não éilimitada (cf. FELDENS, 2012, p. 61).

Para a doutrina:

[...] a Constituição e o Direito Penal compartem uma relação axio-lógico-normativa a partir da qual se podem deduzir três níveis deinteração: (i) a intervenção penal constitucionalmente proibida, (ii)a intervenção penal constitucionalmente possível e (iii) a intervençãopenal constitucionalmente obrigatória (deveres de proteção, naforma de mandados constitucionais de tutela penal). (FELDENS,2012, p. 65), itálico no original)

De acordo com esse pensamento, seria constitucionalmente

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3 Para a definição de uma importante norma constitucional (artigo 16 da Constituição)como autêntica regra jurídica, checar o julgamento em que o Supremo Tribunal Fe-deral afastou a aplicação da chamada “Lei da Ficha Limpa”, nas eleições de 2010,em especial o voto do Min. Luiz Fux, no RE 633703, Relator(a): Min. GILMAR MEN-DES, Tribunal Pleno, julgado em 23/03/2011, REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITODJe-219 DIVULG 17-11-2011 PUBLIC 18-11-2011 RTJ VOL-00221- PP-00462EMENT VOL-02628-01 PP-00065.

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proibida uma intervenção penal do legislador que criminalizasse: a)o que é garantido pelo âmbito de proteção dos direitos fundamentais,como, por exemplo, a livre manifestação do pensamento exercidaem protestos considerados pacíficos, por mais aborrecedores quesejam; b) certas condutas em proteção a valores ou interesses cons-titucionalmente proscritos, como criminalizar o homossexualismo; c)condutas socialmente irrelevantes, como as desprovidas de qualquercoeficiente de ofensividade (FELDENS, 2012, p. 65-67).

Além de não ser um tipo penal incriminador, facilmente senota que a proibição contida no artigo 44, I, do Código Penal não seencaixa em nenhuma dessas situações.

Com efeito, ao estabelecer esta regra penal, o legislador or-dinário o fez com o nítido objetivo de mais proteção ao princípio ba-silar da dignidade humana da vítima, sendo inquestionável que oselementos “violência e grave ameaça”, normalmente, atingem deforma intensa a dignidade física e psíquica da vítima. Ademais, pro-curou-se, em decorrência disso, incrementar os níveis de segurançapública. Logo, a previsão normativa em foco não alcança nada queesteja no âmbito de proteção de algum outro direito fundamental docondenado, sendo delineada pelo legislador para a proteção de umdos mais caros fundamentos da República brasileira.

Assim, o legislador, de maneira constitucionalmente le-gítima, considerou mais reprovável e, por isso mesmo, merecedorade uma sanção penal mais grave, a conduta daquele que, valendo-se do seu direito de liberdade, comete uma conduta dolosa crimi-nosa, com a prática de violência ou grave ameaça à pessoa davítima, o que torna essa conduta socialmente relevante. Como sevê, o artigo 44, I, do Código Penal, constitui uma espécie de inter-venção penal constitucionalmente possível.

Sob o ângulo jurisprudencial, o Supremo Tribunal Federalreconhece e respeita a liberdade de conformação do legislador naesfera penal. Veja-se o seguinte julgado, a propósito dos crimes deperigo abstrato previstos no Estatuto do Desarmamento, no qual orelator aduziu o seguinte:

Portanto, pode o legislador, dentro de suas amplas margens deavaliação e de decisão, definir quais as medidas mais adequadase necessárias para a efetiva proteção de determinado bem jurídico,

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o que lhe permite escolher espécies de tipificação próprias de umdireito penal preventivo.4

Também nos autos da ADI 3112-DF5, em que declarada ainconstitucionalidade de alguns dispositivos do Estatuto do Desar-mamento, o mesmo Min. Gilmar Mendes observou que:

O exercício do controle de constitucionalidade, especialmente emmatéria penal, deve ser exercido com observância das amplasmargens de ação constitucionalmente deferidas ao legislador paraa confecção de políticas criminais voltadas à segurança da popu-lação e à paz social.6

Se isso não for observado pelo Poder Judiciário, certamenteserão desrespeitados os princípios democrático e de separação depoderes, inviabilizando a legítima atuação do Poder Legislativo naedição de leis penais. Não é por outro motivo que o Min. JoaquimBarbosa, ao abrir divergência no julgamento do primeiro habeascorpus citado neste trabalho7, fez ponderações a esse respeito quemerecem detida e ampla reflexão, sob pena de ser admitida des-medida ampliação do sentido e alcance normativo do princípio cons-titucional de individualização da pena, a ponto de impedir, atémesmo, um dos planos de aplicação desse princípio, que é o legis-lativo8. Confira-se:

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4 Trecho do voto proferido pelo Min. Gilmar Mendes no HC 104410, do qual relator,Segunda Turma, julgado em 06/03/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-062 DI-VULG 26-03-2012 PUBLIC 27-03-2012.5 Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em02/05/2007, DJe-131 DIVULG 25-10-2007 PUBLIC 26-10-2007 DJ 26-10-2007 PP-00028 EMENT VOL-02295-03 PP-00386 RTJ VOL-00206-02 PP-00538.6 Com efeito, “doutrina e jurisprudência reconhecem ampla liberdade de conforma-ção ao legislador na definição dos crimes e das sanções, de acordo com as deman-das sociais e com as circunstâncias políticas e econômicas de cada época”(BARROSO, 2011, p. 403).7 HC 97256, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em01/09/2010, DJe-247 DIVULG 15-12-2010 PUBLIC 16-12-2010 EMENT VOL-02452-01 PP-00113 RTJ VOL-00220- PP-00402 RT v. 100, n. 909, 2011, p. 279-333.8 É importante ter em mente que “o reconhecimento de que juízes e tribunais podematuar criativamente em determinadas situações não lhes dá autorização para se so-breporem ao legislador, a menos que este tenha incorrido em inconstitucionalidade”(BARROSO, 2011, p. 444).

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Como se percebe, a substituição da pena não cabe em qualquercrime e, portanto, a atividade judicial de individualização da penaencontra este primeiro balizamento legal. A aplicação de penasalternativas é regulada pela lei, que estabelece quando elaspoderão ser aplicadas. Noutras palavras: o instituto da substitui-ção da pena não deriva, diretamente, do direito constitucionalà individualização da pena. O nosso ordenamento não outorgaao juiz essa liberdade ampla de analisar se a substituição écabível, em todo e qualquer caso concreto. Somente naque-las circunstâncias específicas previstas na lei é que a subs-tituição será possível.Vejamos alguns exemplos. O Código Penal veda a substituiçãoda pena nos casos de crimes cometidos com violência ou graveameaça. Esta vedação nunca foi considerada inconstitucional peloSupremo Tribunal Federal. E há crimes menos graves do queo tráfico de drogas que incidem nesta proibição, como porexemplo: crime de lesão corporal grave; crime de aborto; crimede roubo simples. Nenhum desses crimes é considerado he-diondo e, mesmo assim, não é possível a substituição da pena.[...].Neste aspecto, portanto, da cominação de penas, seja em relaçãoà espécie cabível em determinados crimes, seja ao mínimo emáximo legalmente cominados, seja, ainda, quanto ao regimeinicial de cumprimento, a liberdade do legislador é ampla, sendopermeada pelo princípio da proporcionalidade e pelas vedaçõesexpressas contempladas na Constituição da República a al-gumas espécies de pena. Nesta limitação, não há qualquernorma da Lei Maior que retire do legislador o poder de vedaras penas restritivas de direitos nos casos que considere maisgraves para a sociedade, nem, ainda, que delegue, com ex-clusividade, ao juiz da causa, a análise da sua aplicabilidadeou não no caso concreto.[...].Considerada a vagueza e abstração das normas constitucio-nais, o excesso interpretativo, longe de realizar os direitos e ga-rantias individuais, aumentará a tensão existente entre jurisdiçãoconstitucional e democracia representativa, produzindo a incons-titucionalidade de todo o ordenamento jurídico elaboradopelo legislador eleito, especialmente considerando uma Consti-tuição extensa como a brasileira. (destaques no original)

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Justamente por esses motivos é que não se pode concordarcom a premissa sustentada pelo Min. Cezar Peluso, já referida, nosentido de que a natureza do crime não revela a sua gravidade emconcreto. Pode até ser que a gravidade em concreto de um crimeseja evidenciada no momento de sua dosimetria penal concreta, pormeio da sentença penal condenatória, em que realizada a individua-lização judicial, mas esse aspecto não infirma a importância da na-tureza do crime quando se cuida da individualização legislativa, a serconcretizada pelo legislador em abstrato, no instante de edição dasleis penais. Pelos argumentos já expostos até aqui, fica claro que umcrime doloso cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ésuficientemente grave a ponto de autorizar, de maneira legítima, olegislador ordinário a vedar a substituição da pena privativa de liberdadepor restritivas de direitos em tais hipóteses, mesmo que a pena impostaem concreto pelo juiz não ultrapasse os quatro anos de prisão.

Não obstante, a despeito de assentada a constitucionali-dade do artigo 44, I, do Código Penal, no plano abstrato ou em tese,cabe indagar se seria legítimo o intérprete admitir algum tipo de ex-ceção a essa regra, de forma absolutamente excepcional e diantede particularidades do caso concreto apreciado, certamente não pre-vistas pelo legislador. Para tanto, é preciso investigar se seria viável,quanto a essa regra proibitiva, a adoção da chamada “teoria da supera-bilidade ou derrotabilidade das regras”, o que será examinado a seguir.

A DERROTABILIDADE DA REGRA PENAL EM FOCO

A teoria da derrotabilidade das regras, também expressapelo termo inglês defeasibility, está baseada na circunstância de serimpossível ao legislador prever todos os casos e suas específicasparticularidades, ao editar as regras legais que lhe competem9, de

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9 Conforme, nesse sentido, Bäcker (2011). Nas p. 60-61, ele afirma que: “Se olhar-mos para as regras, elas têm, em geral, exceções. Essas exceções, contudo, nãopodem ser enumeradas de forma conclusiva, devido ao fato de que as circunstân-cias que emergem dos casos futuros são desconhecidas. Portanto, regras jurídicassempre têm a capacidade de acomodar exceções, ou seja, elas são derrotáveis”.Em seguida, nas p. 67-68, conclui: “Em resumo, a derrotabilidade das regras se ori

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sorte que sempre haverá, ainda que de forma excepcional, a exis-tência de alguns raros casos que, embora se encaixem na hipótesede incidência dessas regras, não terão a aptidão de provocar a rea-lização da consequência jurídica nelas prevista, por razões que serãodelineadas na sequência.

Esse processo, porém, não é simples e exige do aplicadorum elevado ônus argumentativo, em virtude do importante papel de-sempenhado pelas regras no sistema jurídico.

Com efeito, a doutrina destaca as seguintes característicasdas regras que as tornam, necessariamente, de difícil – mas não im-possível – superação: a) afastam a controvérsia e a incerteza noexercício do poder; b) eliminam ou reduzem a arbitrariedade quepode surgir se houver aplicação direta de valores morais ou mesmodos diversos princípios; c) evitam problemas de coordenação, deli-beração e conhecimento; d) estão intimamente relacionadas com asegurança jurídica, a paz e a igualdade, desempenhando funçãodestacada de solução previsível, eficiente e normalmente equânimedos conflitos sociais (ÁVILA, 2014, p. 139-141).

Isso tudo decorre da circunstância política e jurídica de queas regras são fruto de decisões tomadas pelo legislador, no sopesa-mento inicial que a ele cabe fazer de todos os princípios constitucio-nais em eventual colisão, definindo, de forma quase absoluta, pormeio de regras, comportamentos (em sentido amplo) permitidos,proibidos ou obrigatórios, no desempenho de sua atuação embasadanos sobreprincípios do Estado de Direito e Democrático.

Por essa razão é que a doutrina, ao fazer a distinção entreo núcleo essencial dos princípios e aquilo que, embora relacionadoa eles, não se encaixa em tal núcleo, confere enorme respeito à atua-ção do Poder Legislativo, no estabelecimento das inúmeras regraslegais, ao dizer que:

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gina da limitação da capacidade humana em prever todas as circunstâncias rele-vantes e, por conseguinte, da correspondente deficiência estrutural das regras”. Domesmo modo, Bustamante (2010, p. 161), ao criticar o modelo simplista de Dworkin,de aplicação “tudo ou nada” das regras, advoga a tese de que: “O modelo mais di-ferenciado é necessário porque é sempre possível introduzir na motivação de umadecisão jurídica uma cláusula de exceção (em uma das regras). Quando isso acon-tece, então a regra perde seu caráter definitivo para a decisão do caso concreto”(itálico no original).

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[...] o restante da extensão possível do princípio deverá ser preen-chida pela deliberação majoritária, em função da convicção dasmaiorias em cada momento político: e nesse ponto teremos, emespecial, as regras infraconstitucionais. Isto é: esse espaço de ex-pansão do princípio fica reservado, pela Carta, à definição pelosmeios próprios da deliberação democrática em um ambiente depluralismo político. Em suma: caberá ao Legislativo e ao Execu-tivo, no exercício de suas competências constitucionais, formula-rem as opções que darão conteúdo aos princípios.O reflexo do que se acaba de expor [...]: as regras (constitucio-nais e infraconstitucionais) devem ter preferência sobre os prin-cípios. Isto é: em uma situação de conflito inevitável, a regradeve ser preservada e o princípio comprimido, e não o oposto.(BARCELLOS, 2003, p. 81)

Por isso que o afastamento de uma regra, sob a alegaçãode que ela estaria a violar a área não nuclear de um princípio, gerauma grave distorção consistente no seguinte:

[...] se se trata de uma regra infraconstitucional [como a do art. 44,I, do Código Penal], o intérprete estará conferindo à sua própriaconcepção pessoal acerca do melhor desenvolvimento do princí-pio maior importância do que à concepção majoritária, apuradapelos órgãos legitimados para tanto. (idem, p. 81)10

Em outras palavras, é preciso ter em mente que:

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10 Foi o que fez, no nosso entender, o Supremo Tribunal Federal no HC n. 97.256-RS, rel. Min. Ayres Britto, já citado, ao conferir amplitude desmedida ao princípioconstitucional de individualização da pena, para muito além de seu núcleo essencial,o que culminou com a invalidade de uma regra infraconstitucional legitimamente fi-xada pelo legislador ordinário. Tanto assim que o Min. Joaquim Barbosa, em seuvoto vencido, chamou a atenção da Corte para esse aspecto, ao pontuar que: “[...]se abstrairmos excessivamente o princípio da individualização da pena estabelecidono art. 5º, XLVI, chegaremos a uma situação em que o legislador não poderá es-tabelecer pena alguma: apenas o juiz poderia individualizar, de acordo com seujulgamento do caso concreto, a sanção penal cabível, dentre aquelas estabelecidasexclusivamente na Constituição da República” (destaques no original). Tambémo Min. Marco Aurélio, ao acompanhar o Min. Joaquim Barbosa, considerou que: “Alei especial surge no campo da opção político-normativa, tendo em conta a quadravivenciada, opção político-normativa que também levou o legislador a limitar o im-plemento da substituição nos crimes dolosos e em certas situações”.

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Na verdade, imaginando os princípios como círculos concêntricos,que ocupam grandes áreas, porém de maneira difusa e compouca densidade (com exceção de seu próprio núcleo), temos asregras como pontos de certeza espalhados por toda essa super-fície. Os princípios, para além de seu núcleo, estabelecem as fron-teiras de um largo campo de atuação possível, dentro de cujoslimites as opções políticas podem ser consideradas legítimas. Asregras correspondem exatamente a decisões políticas específicas,de efeitos determinados, já tomadas no interior de tais fronteiras.(BARCELLOS, 2003, p. 82)11

Deve-se, portanto, respeitar, em um Estado Democrático deDireito como o nosso, o legítimo exercício da função legislativa, es-pecialmente na fixação de regras nos mais variados campos do Di-reito, de sorte que somente em situações de inegável e evidenteincompatibilidade com a Constituição é que se impõe decidir, na es-fera jurisdicional e abstrata, pela invalidade de tais normas12.

Mas ainda que seja assentada, no plano abstrato ou emtese, a constitucionalidade de determinada regra, como a que é ob-jeto deste trabalho, é possível que ela, em determinados casos con-cretos, seja superada ou derrotada, pois “[...] regras em teseperfeitamente válidas podem mostrar-se, em determinadas incidên-cias, inconstitucionais, incompatíveis com outras disposições cons-titucionais ou profundamente injustas” (BARCELLOS, 2003, p. 90)13.

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11 Ou, nas palavras do Min. Roberto Barroso (2011, p. 445): “Quando o constituinte ouo legislador atuam por meio de uma regra, que expressa um mandado definitivo e nãouma ordem de otimização, fazem uma escolha que deve ser respeitada pelo intérprete”.12 Como bem ressalta a doutrina: “O juízo de inconstitucionalidade é um remédioexcepcional que deve ser reservado para as hipóteses em que há violação evidentee grave de disposições constitucionais e não como instrumento de afirmação dasconvicções políticas pessoais do intérprete” (BARCELLOS, 2005, p. 233-234).13 O próprio Supremo Tribunal Federal já assentou essa possibilidade, como sepode concluir dos seguintes precedentes: a) No HC 104410, Relator(a): Min. GIL-MAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 06/03/2012, ACÓRDÃO ELETRÔ-NICO DJe-062 DIVULG 26-03-2012 PUBLIC 27-03-2012, anteriormente citado, emque a Turma, embora reconhecendo a constitucionalidade em tese dos tipos penaisde perigo abstrato, previstos no Estatuto do Desarmamento, deixou consignado, naprópria ementa do acórdão, que “a questão, portanto, de possíveis injustiças pon-tuais, de absoluta ausência de significado lesivo deve ser aferida concretamente enão em linha diretiva de ilegitimidade normativa”. Com o mesmo teor, cf.: HC102087, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMARMENDES, Segunda Turma, julgado em 28/02/2012, DJe-159 DIVULG 13-08-2012

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Daí porque se passará agora a tratar das hipóteses em quea regra do artigo 44, I, do Código Penal – de plena constitucionali-dade no plano abstrato – poderá ser superada.

Da derrotabilidade legal sistemática

O ordenamento jurídico de um Estado como o brasileiro,apesar de complexo, é um conjunto normativo que forma uma uni-dade, de modo que o intérprete não pode prescindir do cânone sis-temático para a sua adequada interpretação.

Assim, é possível que o próprio legislador, ao editar certoconjunto normativo (um microssistema legal, por exemplo), acabepor provocar, em determinados casos ou tipos penais, a superaçãoda regra prevista no artigo 44, I, do Código Penal, de maneira implí-cita, como parece ter ocorrido diante da edição da Lei n. 9.099/1995,no que se refere aos chamados crimes de menor potencial ofensivo,cuja pena privativa de liberdade não pode exceder os dois anos deprisão (artigo 61 da mencionada lei)14.

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PUBLIC 14-08-2012 REPUBLICAÇÃO: DJe-163 DIVULG 20-08-2013 PUBLIC 21-08-2013 EMENT VOL-02699-01 PP-00001; b) Na ADI 223 MC, Relator(a): Min.PAULO BROSSARD, Relator(a) p/ Acórdão: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribu-nal Pleno, julgado em 05/04/1990, DJ 29-06-1990 PP-06218 EMENT VOL-01587-01 PP-00001, em que o Tribunal Pleno examinou um conjunto de medidasprovisórias editadas no Plano Collor, por força das quais era vedada a concessãopelo Judiciário de medidas liminares em mandados de segurança e em outrasações. Alegava-se na ação desrespeito ao princípio constitucional de inafastabilidadedo controle judicial. Prevaleceu o voto do Min. Sepúlveda Pertence, do qual se extraique “[...] não seria possível em abstrato saber em que momento essa restrição deixade ser razoável e afeta essencialmente o princípio do acesso à Justiça. Apenasdiante do caso concreto será possível aferir essa inconstitucionalidade” (BARCEL-LOS, 2003, p. 87).14 Registre-se que no contexto da violência doméstica e familiar contra a mulher, aLei n. 11.340/2006, conhecida como “Lei Maria da Penha”, expressamente (em seuartigo 41), afastou a aplicação da Lei n. 9.099/1995 de seu âmbito de incidência.Sobre o sentido e alcance desse artigo 41, com críticas em relação ao julgamentodo Supremo Tribunal Federal quanto à sua plena constitucionalidade, cf. nosso livro:Belo (2014). A despeito dessa posição do STF, há um precedente da Quinta Turmado STJ admitindo a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de di-reitos, na hipótese de vias de fato, mesmo com incidência da Lei Maria da Penha:HC 207.978/MS, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em27/03/2012, DJe 13/04/2012.

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No rol desses crimes estão delitos como a lesão corporalleve (artigo 129, caput, do Código Penal); o constrangimento ilegal(artigo 146 do Código Penal); a ameaça (artigo 147 do CódigoPenal); o atentado contra a liberdade de trabalho (artigo 197 do Có-digo Penal); impedimento, perturbação ou fraude de concorrência(artigo 335 do Código Penal); violência ou fraude em arremataçãojudicial (artigo 358 do Código Penal), além de alguns outros.

Em todos eles, apesar de terem como elementos do tipo aviolência e a grave ameaça, é possível que, antes mesmo do ofere-cimento da respectiva ação penal, seja realizada a chamada transa-ção penal, em que, de forma consensual entre o suposto autor e oMinistério Público, será aplicada uma pena de multa ou restritiva dedireitos, se não for caso de arquivamento, nos termos do artigo 76da referida Lei n. 9.099/1995, afastando-se, assim, a aplicação depena privativa de liberdade.

Diante disso, indaga-se: se por algum motivo (como a pró-pria recusa do suposto autor, por exemplo) não for realizada a tran-sação penal, e o Ministério Público vier a oferecer a ação penal,havendo condenação a uma pena privativa de liberdade, poderá estaser substituída por restritiva de direitos, já que a pena não será su-perior a quatro anos e apesar da violência ou grave ameaça presenteno respectivo tipo penal?15

A resposta, no nosso entender, só pode ser positiva, já queo próprio legislador penal considera, em relação a esses delitos, sersuficiente e necessária a imposição de pena não privativa deliberdade, quer na fase de transação penal (sem falar em possívelcomposição civil dos danos), quer em eventual condenação ao finaldo processo, conforme se extrai do próprio artigo 62 dessa lei.

Ora, se essa diretriz foi traçada pelo legislador no instante emque não há sequer contraditório e ampla defesa (fase de transaçãopenal ou mesmo de composição civil dos danos, se pertinente), porque motivo haveria de ser impossibilitada a substituição da pena pri-vativa de liberdade por restritiva de direitos ao final da ação penal, emcaso de condenação, se presentes todos os requisitos do artigo 44 doCódigo Penal, com exceção da violência ou grave ameaça nesses

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15 Considerando-se também, por evidente, preenchidos todos os outros requisitosdo artigo 44 do Código Penal.

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tipos penais? Repita-se que esses elementos do tipo penal, quantoaos crimes de menor potencial ofensivo, não constituem óbice à rea-lização da referida transação penal ou da composição civil dos danos,pelo que, por coerência sistemática (artigo 62 da Lei n. 9.099/1995),não poderão impedir a citada substituição em caso de condenação.

A esse respeito, a doutrina majoritária assim se posiciona:

Se uma das finalidades da substituição é justamente evitar o encar-ceramento daquele que teria sido condenado ao cumprimento deuma pena de curta duração, nos crimes de lesão corporal leve, deconstrangimento ilegal ou mesmo de ameaça, onde a violência e agrave ameaça fazem parte desses tipos, estaria impossibilitada asubstituição? Entendemos que não, pois se as infrações penais seamoldam àquelas consideradas de menor potencial ofensivo, sendoo seu julgamento realizado até mesmo no Juizado Especial Criminal,seria um verdadeiro contrassenso impedir, justamente nesses casosa substituição. Assim, se a infração penal for da competência do Jui-zado Especial Criminal, em virtude da pena máxima a ela cominada,entendemos que, mesmo que haja o emprego de violência ou graveameaça, será possível a substituição. (GRECO, 2014, p. 543)16

[...]. Deveras, se é possível até mesmo a composição dos danoscivis, em determinados casos [em relação às infrações penais demenor potencial ofensivo], e frequentemente a transação penal,institutos muito mais benéficos, não seria pertinente a vedação dasubstituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.(MASSON, 2010, p. 651)17

Fica claro, portanto, que o próprio legislador penal ordinário,ao considerar esses crimes de menor potencial ofensivo e a eles es-tabelecer a sistemática contida na Lei n. 9.099/1995, acabou por inserir

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16 Nesse sentido, cf.: Revisão Criminal 1.0000.12.077178-7/000, Relator(a): Des.(a)Júlio Cezar Guttierrez, 2º GRUPO DE CÂMARAS CRIMINAIS, TJMG, julgamentoem 02/04/2013, publicação da súmula em 10/05/2013. De igual modo, considerandotambém um contrassenso impedir-se a substituição em foco, no caso de infraçõespenais de menor potencial ofensivo, o posicionamento de Bitencourt (2013, p. 126):“Seria um contrassenso uma lei nova [9.714/98], com objetivo nitidamente descar-cerizador, que amplia a aplicação de alternativas à pena privativa de liberdade, porequívoco interpretativo obrigar a aplicação de pena privativa de liberdade às infra-ções de menor potencial ofensivo” (itálico no original).17 Segundo Masson (2010), esse é o entendimento que prevalece na doutrina.

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no ordenamento jurídico brasileiro verdadeiras exceções ao inciso I doartigo 44 do Código Penal, na parte em que este veda a mencionadasubstituição quando se cuidar de infração penal cometida com violên-cia ou grave ameaça à pessoa. Por isso é que consideramos quehouve aqui a derrotabilidade legal sistemática dessa regra penal. Apropósito, com essa compreensão, o seguinte precedente:

DIREITO PENAL – AMEAÇA E VIAS DE FATO – CONDENA-ÇÃO. PROVAS ROBUSTAS – ÂNIMO EXALTADO QUE, POR SISÓ, NÃO EXCLUI O DOLO. EMBRIAGUEZ INCOMPLETA E IN-VOLUNTÁRIA QUE NÃO AFASTA A CULPABILIDADE. LEGí-TIMA DEFESA NÃO VERIFICADA – APLICAÇÃO DAS PENAS.POSSIBILIDADE DE SUBSTITUIÇÃO. EXCEÇÃO À PROIBI-ÇÃO DO INCISO I DO ART. 44 DO CÓDIGO PENAL. INFRA-ÇÕES DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO. I – [...]. V –Excepciona-se a proibição da substituição das penas de infraçõescometidos (sic) com violência e/ou grave ameaça quando elas serevelem de pequeno potencial ofensivo. (Apelação Criminal1.0408.09.021432-6/001, Relator(a): Des.(a) Adilson Lamounier,5ª CÂMARA CRIMINAL, TJMG, julgamento em 30/11/2010, pu-blicação da súmula em 14/01/2011)

Cumpre agora avaliar se seria possível – excluídas as infra-ções penais de menor potencial ofensivo – considerar a regra do ar-tigo 44, I, do Código Penal, derrotada, ainda que de modoexcepcional, em algum outro caso que cuide dos demais tipos de cri-mes que também tenham, em sua estrutura legal, a violência ou agrave ameaça. É o que será abordado no próximo tópico.

Da derrotabilidade doutrinária e jurisprudencial: a construçãode uma possibilidade

Embora não seja comum a hipótese de derrotabilidade juris-prudencial de uma regra penal, como a do artigo 44, I, do CódigoPenal, a doutrina costuma comentar bastante um emblemático pre-cedente do Supremo Tribunal Federal, em que foi superada a regrapenal segundo a qual o estupro cometido contra uma mulher, menorde catorze anos, trazia em si a presunção absoluta de violência contra

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a vítima, ainda que esta houvesse consentido com o ato. Cuida-sedo HC 73.662, Relator Min. Marco Aurélio, no qual a Segunda Turmado STF18, por votação majoritária, entendeu que essa regra, conside-radas as peculiaridades do caso concreto, não deveria ser aplicada,concluindo, assim, que a presunção de violência não poderia ser sem-pre absoluta, mas relativa, a depender das particularidades de cadacaso concreto submetido à apreciação do Poder Judiciário.

Dos votos vencedores proferidos19, podem-se extrair as se-guintes razões que culminaram com a superação da mencionadaregra penal: a) a vítima aparentava ser maior; b) ela levava vida dis-soluta; c) já havia transcorrido o prazo de cinco anos desde a con-denação imposta e o réu, nesse intervalo, já havia formado umafamília, que merecia proteção nos termos do art. 226 da Constituição;d) não havia o menor sinal de constrangimento da vítima e tanto elaquanto o réu eram pessoas simples e jovens, sem maior instrução;e) o Judiciário não pode aplicar o Direito como se fosse uma ciênciaexata, como se não precisasse raciocinar diante das particularidadesde cada caso concreto; f) o Direito não pode prescindir de uma inter-pretação evolutiva, que leve em conta a mudança de costumes dasociedade, ao longo de mais de cinquenta anos, a contar da ediçãoda regra superada; g) ficou comprovado que a vítima não tinha qual-quer tipo de alienação mental e consentiu com a relação sexual deforma expressa e espontânea.

Para Barcellos (2003, p. 93), “a decisão do STF apresenta umacircunstância particular: o princípio com o qual a regra examinadaestará colidindo é o princípio da justiça e da razoabilidade em umsentido difuso”.

Dois outros casos mais recentes na jurisprudência do STFpodem ser apontados20. O primeiro deles foi discutido no HC n.119.567-RJ, redator para o acórdão Min. Roberto Barroso, j.22.05.201421. Cuidava-se de um militar que havia sido condenado aquatro meses de detenção, em regime aberto, pela prática do crime

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18 Julgado em 21/05/1996, DJ 20-09-1996 PP-34535 EMENT VOL-01842-02 PP-00310 RTJ VOL-00163-03 PP-01028.19 Acompanharam o Min. Marco Aurélio, os Ministros Francisco Rezek e MaurícioCorrêa. Ficaram vencidos os Ministros Carlos Velloso e Néri da Silveira.20 Ambos foram noticiados no Informativo STF n. 747, divulgado em 05.06.2014.21 A ata de julgamento foi publicada no DJE n. 110, de 06.06.2014.

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de deserção e requeria, em função de particularidades de sua con-duta, a suspensão condicional da execução da pena privativa de li-berdade, que encontrava óbice em dispositivos legais contidos noCódigo Penal Militar (artigo 88, II, “a”) e no Código de Processo PenalMilitar (artigo 617, II, “a”).

Por seis votos a cinco, o Plenário entendeu que essas nor-mas haviam sido recepcionadas pela Constituição Federal de 1988,sob o fundamento de que a própria Constituição estabelece a orga-nização das Forças Armadas com base na hierarquia e na disciplina,de modo que a opção do legislador ordinário em vedar a suspensãocondicional da execução da pena, nesse tipo de crime, seria legítima,devendo ser respeitada pelo Poder Judiciário.

Os cinco votos vencidos22, porém, consideravam que nãoteria ocorrido a recepção daquelas normas pela Constituição Federalde 1988. Todavia, embora tenham concluído pela incompatibilidadeem abstrato dessas normas questionadas no habeas corpus em re-lação à Constituição, é fácil perceber que a questão jurídica por elessustentada invoca, na realidade, a possibilidade de superação ouderrota dessa regra proibitiva, somente em virtude das peculiaridadesdo caso concreto apreciado.

Com efeito, os votos vencidos, em resumo, destacaram que

[...] diante de deserção consumada durante breve período e daapresentação voluntária do militar ao serviço, que assumiraas consequências de seu ato, não pareceria plausível quemero imperativo legal [uma regra] impedisse que o julgador apre-ciasse, em face da situação concreta registrada nos autos, ospressupostos subjetivos e objetivos inerentes à suspensão con-dicional da pena, para conceder ou não o benefício. [...]. Assen-tavam a possibilidade de se aplicar uma proporcionalidade“in concreto”. (negrito nosso)

Ora, as partes anteriormente destacadas, retiradas de passa-gem contida no Informativo STF n. 747, demonstram que, embora osvotos vencidos tenham concluído pela não recepção da regra proibitivapenal em relação à Constituição Federal de 1988, os fundamentos

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22 Proferidos pelos Ministros Dias Toffoli (relator), Rosa Weber, Gilmar Mendes,Celso de Mello e Joaquim Barbosa (então presidente da Corte).

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apresentados provocariam apenas a superação da mencionadaregra naquele específico caso concreto, de modo que, ao quetudo indica, a melhor solução teria sido uma opção intermediária: aregra teria sim sido recepcionada pela Constituição Federal de 1988,tal como sustentado pelos votos vencedores, mas não se aplicariaao apontado caso concreto, em virtude de suas peculiaridades23, asquais demonstravam ser proporcional e razoável (plausível) a pre-tendida substituição, o que – é preciso salientar – deveria ficar bemexposto em uma fundamentação que, de forma ampla e bem estru-turada, delineasse em seu bojo o elevado ônus argumentativo, capazde motivar a suscitada superação da regra, conforme será mais bemexaminado a seguir.

O segundo exemplo é relativo ao Direito Eleitoral, mais es-pecificamente à adequada interpretação da Súmula Vinculante n. 18do STF, assim redigida: “A dissolução da sociedade ou do vínculoconjugal, no curso do mandato, não afasta a inelegibilidade previstano § 7º do artigo 14 da Constituição Federal”.

A superação dessa regra jurisprudencial se deu no RE n.758.461-PB, rel. Min. Teori Zavascki, j. 22.05.201424, em que o Ple-nário, por votação unânime, acabou por inserir nela uma exceção,consistente em não aplicá-la “aos casos de extinção do vínculo con-jugal pela morte de um dos cônjuges”.

O raciocínio desenvolvido começou por firmar a finalidadeda norma constitucional (artigo 14, § 7º), que prevê essa inelegibili-dade, para, em seguida, concluir que a morte do titular do mandato,dentro ainda do prazo de desincompatibilização, em nada afetariaou prejudicaria essa finalidade, de sorte que a restrição ao direito deser votado e eleito não poderia ter aplicação nessa hipótese:

[O Plenário] afirmou que a referida norma teria por objetivo impedira hegemonia política de um mesmo grupo familiar, ao dar efetivi-dade à alternância no poder, preceito básico do regime democrático.

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23 Conforme pontuado pelo Min. Roberto Barroso (2011, p. 351), em trabalho dou-trinário: “O fato de uma norma ser constitucional em tese não exclui a possibilidadede ser inconstitucional in concreto, à vista da situação submetida a exame”. Em ou-tras palavras: “Por isso, não é de estranhar que determinadas normas possam serinconstitucionais em função desse seu contexto particular, a despeito da validadegeral do enunciado do qual derivam” (BARCELLOS, 2005, p. 232).24 A ata de julgamento foi publicada no DJE n. 110, de 06.06.2014.

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Destacou que, atualmente, a Corte viria interpretando teleologica-mente o dispositivo constitucional em questão no sentido de quea dissolução do vínculo matrimonial no curso do mandato nãoafastaria a inelegibilidade nos casos em que houvesse evidentefraude na separação ou divórcio, com o intuito de burlar a vedaçãoconstitucional e perpetuar o grupo familiar no poder. [...].A Corte sublinhou que, entre os desideratos do art. 14, § 7º, daCF, registrar-se-iam o de inibir a perpetuação política de gruposfamiliares e o de inviabilizar a utilização da máquina administrativaem benefício de parentes detentores de poder. Asseverou que, noentanto, a superveniência da morte do titular, no curso do prazolegal de desincompatibilização deste, afastaria ambas as situa-ções. Explicou que a morte, além de fazer desaparecer o “grupo po-lítico familiar”, impediria que os aspirantes ao poder se beneficiassemde eventuais benesses que o titular lhes poderia proporcionar.

Além disso, a Corte destacou particularidades do caso con-creto que não poderiam ser ignoradas e que também confirmavama necessidade de dar provimento ao recurso interposto, restabele-cendo-se o mandato da recorrente, mediante o afastamento da alu-dida súmula vinculante:

Consignou que haveria outras especificidades do caso que nãopoderiam ser desprezadas: a) o falecimento ter ocorrido mais deum ano antes do pleito, dentro, portanto, do prazo para desincom-patibilização do ex-prefeito; b) a cônjuge supérstite haver concor-rido contra o grupo político do ex-marido; c) a recorrente ter secasado novamente durante seu primeiro mandato e constituídonova instituição familiar; e d) o TSE ter respondido à consulta, paraassentar a elegibilidade de candidatos que, em tese, estivessemem situação idêntica à dos autos.

Importante observar também que, embora não tenha sidoexplícito nesse sentido, o STF justificou que a superação da regracontida na citada súmula vinculante tinha por fundamento a circuns-tância de que o Tribunal, ao assentá-la, não imaginou ou não previuuma situação de dissolução do vínculo matrimonial ou conjugal combase na morte de um dos cônjuges, o que se coaduna com a razãode ser da própria existência e admissão da teoria da derrotabilidadede regras jurídicas, consoante anteriormente explicitado. Confira-se,

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para tanto, o trecho final relativo a esse julgamento:

[O Tribunal] registrou que o fundamento para a edição do Verbete18 da Súmula Vinculante do STF fora a ocorrência de separaçõese divórcios fraudulentos, como forma de obstar a incidência dainelegibilidade. Aludiu que a hipótese ora versada, de extinção dovínculo matrimonial pela morte de um dos cônjuges, certamentenão teria sido considerada na oportunidade.

No direito processual penal constitucional, há interessanteem caso de superação de uma regra constitucional proibitiva que,pelo clássico raciocínio silogístico, deveria ter sido aplicada pelo Su-premo Tribunal Federal, mas não o foi, justamente em razão da ex-cepcionalidade extraordinária da qual se revestia o caso concretoexaminado pela Corte. Cuida-se da regra constitucional segundo aqual um parlamentar estadual não pode ser preso, após a diploma-ção, salvo em flagrante de crime inafiançável (artigo 53, § 2º, c/c oartigo 27, § 1º, ambos da Constituição Federal), hipótese em que de-verá ser feita a remessa dos autos à respectiva Casa Legislativa paraque esta resolva sobre a prisão.

A ementa desse precedente, por si só, revela, de formaclara, a derrotabilidade dessa regra constitucional, em função dosvalores e finalidades do próprio sistema constitucional como um todo,no qual ela está inserida, embora os votos condutores não tenhammencionado a teoria em comento:

EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. PRISÃODECRETADA EM AÇÃO PENAL POR MINISTRA DO SUPERIORTRIBUNAL DE JUSTIÇA. DEPUTADO ESTADUAL. ALEGAÇÃODE INCOMPETÊNCIA DA AUTORIDADE COATORA E NULI-DADE DA PRISÃO EM RAZÃO DE NÃO TER SIDO OBSER-VADA A IMUNIDADE PREVISTA NO § 3º DO ART. 53 C/CPARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 27, § 1º, DA CONSTITUIÇÃO DAREPÚBLICA. COMUNICAÇÃO DA PRISÃO À ASSEMBLÉIA LE-GISLATIVA DO ESTADO. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL. INTER-PRETAÇÃO E APLICAÇÃO À ESPÉCIE DA NORMACONSTITUCIONAL DO ART. 53, § 2º, DA CONSTITUIÇÃO DAREPÚBLICA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CONFIGU-RADO. 1. [...]. 2. Os elementos contidos nos autos impõem inter-pretação que considere mais que a regra proibitiva da prisão de

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parlamentar, isoladamente, como previsto no art. 53, § 2º, daConstituição da República. Há de se buscar interpretação queconduza à aplicação efetiva e eficaz do sistema constitucionalcomo um todo. A norma constitucional que cuida da imuni-dade parlamentar e da proibição de prisão do membro deórgão legislativo não pode ser tomada em sua literalidade,menos ainda como regra isolada do sistema constitucional.Os princípios determinam a interpretação e aplicação corre-tas da norma, sempre se considerando os fins a que ela sedestina. A Assembléia Legislativa do Estado de Rondônia, com-posta de vinte e quatro deputados, dos quais, vinte e três estãoindiciados em diversos inquéritos, afirma situação excepcionale, por isso, não se há de aplicar a regra constitucional do art.53, § 2º, da Constituição da República, de forma isolada e in-sujeita aos princípios fundamentais do sistema jurídico vi-gente. 3. Habeas corpus cuja ordem se denega. (HC 89417,Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em22/08/2006, DJ 15-12-2006 PP-00096 EMENT VOL-02260-05PP-00879)25. (negrito nosso)

Entendeu-se, basicamente, que a excepcionalidade do casosubmetido à apreciação da Primeira Turma do STF – consistente nacircunstância grave e de extraordinária ocorrência de que, dos vintee quatro deputados estaduais da Assembleia Legislativa de Rondônia,vinte e dois respondiam com o paciente do HC pela prática de crimeorganizado –, legitimava26 o afastamento da regra constitucional que

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25 Ficaram vencidos os Ministros Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio. Para umaabordagem desse precedente, especificamente em relação à teleologia constitu-cional da imunidade parlamentar material brasileira, cf. nosso artigo: Belo (2014). Adespeito da unidade da Constituição, esse precedente demonstra que há mesmo umaespécie de hierarquia axiológica entre regras e princípios constitucionais, “[...] devido aofato de os princípios condicionarem a compreensão das regras e até mesmo, em certashipóteses, poderem afastar sua incidência” (BARROSO, 2011, p. 342).26 Tal como sustentado pelos votos vencedores da relatora, Min. Cármen Lúcia, edos Ministros Ayres Britto e Sepúlveda Pertence. Em determinado trecho de seuvoto, a relatora consignou que: “à excepcionalidade do quadro há de correspondera excepcionalidade da forma de interpretar e aplicar os princípios e regras do sistemaconstitucional, não permitindo que para prestigiar uma regra – mais ainda, de exce-ção e de proibição e aplicada a pessoas para que atuem em benefício da sociedade– se transmute pelo seu isolamento de todas as outras do sistema e, assim, produzaefeitos opostos aos quais se dá e para o que foi criada e compreendida no ordena-mento”. Esse julgamento confere razão a Alexy (2012, p. 104), ao observar que: “Do

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proíbe a prisão preventiva de parlamentar estadual e, em caso deprisão em flagrante de crime inafiançável, estabelece ainda a neces-sidade de que a respectiva Casa Legislativa delibere a respeito damanutenção ou não da prisão.

Não obstante esses casos emblemáticos de nítida supera-ção de regras jurídicas pela jurisprudência27, é preciso estabeleceralgumas condições capazes de promover, validamente, a sua legiti-midade, mediante um controle intersubjetivo, já que uma regra legal,conforme destacado, tem elevada importância em um EstadoDemocrático de Direito.

Com esse desiderato, Ávila (2014, p. 141-147) apresenta asseguintes condições: 1) de ordem material: a) a superação excepcio-nal da regra, mediante o reconhecimento de uma exceção, não podeprejudicar o valor da segurança jurídica, devendo o caso concreto quea caracterizar ser de difícil reprodução na prática, de sorte que a jus-tiça geral realizada pela regra não venha a ser afetada; b) a admissãoda exceção não pode prejudicar a realização do valor, princípio oufinalidade subjacente à regra [foi o que se destacou anteriormente,quanto ao afastamento da Súmula Vinculante n. 18 do STF, por exemplo];2) de ordem procedimental: em face da eficácia decisiva que as regraspossuem em relação aos princípios, a sua superação somente poderáocorrer por razões extraordinárias e mediante um elevado ônusargumentativo,a ser externado na fundamentação da respectiva de-cisão judicial, sob pena de nulidade28.

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lado das regras, a necessidade de um modelo diferenciado decorre da possibilidadede se estabelecer uma cláusula de exceção em uma regra quando da decisão deum caso. Se isso ocorre, a regra perde, para a decisão do caso, seu caráter definitivo.A introdução de uma cláusula de exceção pode ocorrer em virtude de um princípio”.27 A própria ADPF n. 54, rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em12/04/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-080 DIVULG 29-04-2013 PUBLIC 30-04-2013, na qual se afastou a criminalidade do aborto de fetos anencéfalos, é tam-bém apontada pela doutrina como exemplo de derrotabilidade de normasjurídico-penais, pois ao tempo de edição da norma permissiva contida no artigo 128do Código Penal (início da década de 40 do século passado), o legislador não tinhacondição de prever que o avanço da medicina, décadas depois, poderia permitir,com certeza científica, a identificação desses fetos no início da gestação (e a invia-bilidade de sua vida extrauterina), de modo que, em função disso, caberia ao STFinserir naquela norma, mediante uma interpretação evolutiva, mais esse tipo per-missivo (verdadeira exceção ao crime de aborto), no sentido de não ser antijurídicoo aborto em tais casos. Nesse sentido, ver Torres (2012, p. 55).28 Esse aspecto foi bem ressaltado por Alexy (2014, p. 187), ao dizer que: “Com as

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Tendo em conta tais condições, indaga-se se seria juridica-mente viável a superação da regra contida no artigo 44, I, do CódigoPenal, em alguns dos outros crimes cometidos com violência ou graveameaça à pessoa e que não sejam de menor potencial ofensivo.

Para tanto, imagine-se, por exemplo, a prática do crime pre-visto no artigo 163, parágrafo único, I, do Código Penal (dano quali-ficado, cuja pena máxima é de três anos de detenção), em que umidoso de 65 (sessenta e cinco) anos de idade, mediante graveameaça exercida com um porrete, destrói a bicicleta do filho de seuvizinho, que tinha o costume de pedalar em frente à sua residência,fazendo certo barulho que o irritava.

Imagine-se, ainda, que o idoso seja primário, portador debons antecedentes e que tenha confessado espontaneamente suaconduta delituosa perante o juiz, colaborando com a Justiça. Alémdisso, quase todas as outras circunstâncias judiciais do artigo 59 doCódigo Penal lhe seriam favoráveis, de sorte que ao final da dosi-metria penal sua sanção ficasse no patamar de um ano de detenção,com a imposição concomitante de ressarcimento do dano provo-cado, em cumprimento ao disposto no artigo 387, IV, do Código deProcesso Penal. Pergunta-se: nesse caso, com essas peculiarida-des, poderia o magistrado afastar a regra do artigo 44, I, do CódigoPenal e substituir a pena privativa de liberdade imposta, por restritivade direitos? Entendemos que sim, pelos motivos a seguir expostos.

De acordo com o Ministério da Justiça, em torno de apenas1% (um por cento) (cf. MONTEIRO E CARDOSO, 2013, p. 102)29

da população carcerária brasileira tem mais de sessenta anos deidade. Esse dado, por si só, já preencheria a condição acima de não

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regras, em casos normais, em que os pressupostos conhecidos ocorrem, sucede aconsequência jurídica. Quem, com base em um princípio, quer fazer uma exceção auma regra, suporta o ônus da argumentação, de forma semelhante ao que ocorrequando se afastam precedentes ou quando se afastam regulamentações em geral”.Na mesma linha, Bustamante (2010, p. 161-162): “Estabelece-se, porém, uma cargade argumentação especial para quem advogar a não-aplicação de uma regra a umasituação coberta por sua hipótese de incidência, pois sempre haverá princípios formais(ou, como poderíamos chamar, princípios institucionais) que laboram em favor da ma-nutenção das consequências da regra estabelecida pelo legislador” (itálico no original).29 Os dados apresentados são de 2010. Por isso, não se deve estranhar a dificuldadede serem encontrados precedentes criminais nos Tribunais, em que tenha ocorridoa condenação de um idoso. Geralmente, ele figura como vítima, e não como agente.

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prejuízo ao valor relativo à segurança jurídica, pois essa hipótese decondenação de um idoso de sessenta e cinco anos pelo tipo penalmencionado é extremamente rara, logo, de difícil reprodução na prá-tica forense criminal, de modo que a exceção em seu favor (casoisolado e individual) em nada afetaria a justiça geral.

Quanto à finalidade subjacente à regra do artigo 44, I, doCódigo Penal, ela deve ser buscada no próprio Direito Penal, ao cui-dar da aplicação de penas, o que se encontra no caput do artigo 59desse código, ao estabelecer que a sanção penal deve ser neces-sária e suficiente para reprovação e prevenção do crime. No que serefere ao idoso, essa norma, que contém a finalidade da aplicaçãoda sanção penal, deve ser conjugada com o § 1º do artigo 82 da Leide Execução Penal (7.210/1984), segundo o qual “a mulher e o maiorde sessenta anos, separadamente, serão recolhidos a estabeleci-mento próprio e adequado à sua condição pessoal”.

Como se sabe, em quase todo o Brasil, infelizmente, essesestabelecimentos penais próprios e adequados à condição pessoaldas mulheres e idosos não existem, tal qual ocorre em nosso Estadode Goiás. Esse dado empírico da realidade carcerária nacional nãopode ser olvidado pelo magistrado. Também esse aspecto tem rele-vância argumentativa na decisão judicial. Com efeito, dele se podeextrair que faltaria razoabilidade para a aplicação cega, neste caso, daregra penal do artigo 44, I, do Código Penal, sob a seguinte perspectiva:

A razoabilidade como dever de harmonização do Direito com suascondições externas (dever de congruência) exige a relação das nor-mas com suas condições externas de aplicação, [...] demandandoum suporte empírico existente para a adoção de uma medida [...].(ÁVILA, 2014, p. 202)

Nesse contexto, torna-se legítimo considerar que tanto a pri-vação da liberdade quanto a substituição desta por restritiva de di-reitos, no exemplo ora imaginado, são capazes de promover(adequação ou idoneidade aproximada das medidas) as finalidadesda reprimenda penal, pelo que se impõe o ingresso do aplicador doDireito no teste de necessidade ou de exigibilidade da intervençãopunitiva estatal, em virtude do qual se deve optar pela alternativa(medida de intervenção) que menos restrinja o direito fundamental

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de liberdade do idoso (as penas restritivas de direitos), já que estenão pode ser prejudicado pela absurda e já permanente inércia doEstado em cumprir o dever que lhe é imposto pelo citado artigo 82da Lei de Execução Penal. Ou seja, com fundamento no postuladonormativo aplicativo da proporcionalidade30, estará atendida tambéma condição relativa ao não prejuízo do fim subjacente à regra penaldo inciso I do artigo 44 do Código Penal31.

Acrescente-se, por fim, que o próprio artigo 44 do CódigoPenal, ao tempo em que estabelece a proibição de substituição emrelação ao reincidente por crime doloso (inciso II), logo em seguida,em seu § 3º, prevê uma exceção a essa regra, nos seguintes termos:“Se o condenado for reincidente, o juiz poderá aplicar a substituição,desde que, em face de condenação anterior, a medida seja social-mente recomendável e a reincidência não se tenha operado em vir-tude da prática do mesmo crime” (negrito nosso).

Embora no exemplo imaginado não se cuide de idoso rein-cidente em crime doloso, mas primário, vale ponderar se a substitui-ção em comento seria também uma “medida socialmenterecomendável”. A respeito dessa expressão, a doutrina entende queela se relaciona com os fins da sanção penal, já delineados no caputdo artigo 59 do Código Penal, ou seja, ser suficiente e necessáriapara reprovação e prevenção do crime32. A jurisprudência pátria, deigual modo, parece caminhar nesse sentido:

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30 Como esse postulado, para o STF, decorre do devido processo legal substantivo (cf.MENDES, 1994), tem-se aqui uma situação na qual “[...] um enunciado normativo, válidoem tese e na maior parte de suas incidências, ao ser confrontado com determinadas circuns-tâncias concretas, produz uma norma inconstitucional” (BARCELLOS, 2005, p. 231-232).31 Além do fim legal destacado no texto, há nessa regra, como já mencionado, umafinalidade constitucional ligada ao incremento dos níveis de segurança pública e a umgrau mais elevado de proteção da dignidade humana da vítima de um crime cometidocom violência ou grave ameaça, que também deve ser considerada. No exemplo emquestão, a vítima sofreu apenas a ameaça (sua integridade física não foi atingida) e oseu prejuízo exclusivo foi de ordem patrimonial, o qual foi objeto de fixação do deverde indenizar, imposto na própria sentença penal condenatória. Esses aspectos tam-bém demonstram que a exceção ora defendida, de igual modo, não prejudica a refe-rida finalidade constitucional. Note-se que estamos adotando aqui, com relação àmáxima da proporcionalidade, a classificação de Ávila (2014) qual seja, de postuladonormativo aplicativo, em evolução à opção que fizemos em nossa obra: Belo (2014).32 Cf., por exemplo, Bitencourt (2013, p. 113-114).

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TJMG - APELAÇÃO CRIMINAL. RECEPTAÇÃO. SUBSTITUI-ÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVADE DIREITOS. IMPOSSIBILIDADE. INADEQUAÇÃO DA ME-DIDA. CUSTAS PROCESSUAIS. MATÉRIA AFETA À EXECU-ÇÃO PENAL. 1. Ainda que a reincidência do agente não sejaespecífica, não deve ser aplicada a substituição da pena privativade liberdade por restritiva de direitos se ela não se mostra ade-quada e nem socialmente recomendável para a reprovação e pre-venção do crime. 2. [...]. (Apelação Criminal n.0086232-50.2010.8.13.0382 (10382100086232001), 3ª CâmaraCriminal do TJMG, Rel. Maria Luíza de Marilac. j. 03.12.2013, DJ12.12.2013)

TJDFT - APELAÇÃO CRIMINAL. FURTO SIMPLES TENTADO.SUBTRAÇÃO DE PRODUTOS DO INTERIOR DE SUPERMER-CADO. SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DA DEFESA.PEDIDO DE RECONHECIMENTO DA CAUSA DE DIMINUIÇÃODO FURTO PRIVILEGIADO. RÉU PRIMÁRIO E PEQUENOVALOR DA RES FURTIVA. POSSIBILIDADE. QUANTUM DEREDUÇÃO PELA TENTATIVA. ITER CRIMINIS. FRAÇÃO ADE-QUADA ESTIPULADA NA SENTENÇA. SUBSTITUIÇÃO DAPENA PRIVATIVA DE LIBERDADE EXCLUSIVAMENTE PORPENA DE MULTA. INVIABILIDADE NO CASO CONCRETO. RE-CURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. 1. [...]. Nahipótese, embora a pena do réu seja de 04 (quatro) meses de re-clusão, a substituição apenas por pena de multa implicaria no es-vaziamento da dupla função da pena de prevenção e reprovaçãodo crime, além de não se mostrar socialmente recomendável, mor-mente diante da notícia do envolvimento do recorrente com outrosdelitos idênticos. 4. Recurso conhecido e parcialmente provido [...].(Processo n. 2013.01.1.063676-8 (743810), 2ª Turma Criminal doTJDFT, Rel. Roberval Casemiro Belinati. unânime, DJe 17.12.2013)

Tendo em conta o significado da aludida expressão, consi-deramos que no exemplo ora debatido seria socialmente recomen-dável33, em função dos fatores anteriormente destacados (dentre os

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33 Também considerando socialmente recomendável a substituição em comento,checar o seguinte precedente do STJ, em que o paciente tinha 69 (sessenta e nove)anos de idade; sua pena privativa de liberdade era de 4 (quatro) anos de reclusãoe havia três circunstâncias judiciais desfavoráveis, embora o crime praticado não

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quais a própria ausência de estabelecimento prisional adequado), asubstituição da pena privativa de liberdade de um ano de detenção,isto é, de curta duração34, por restritiva de direitos, em favor desseidoso de sessenta e cinco anos35, pois a reprovação e a prevençãodo crime cometido não estariam, de modo algum, prejudicadas comesta viabilidade excepcional e extraordinária, a despeito da regraproibitiva contida no inciso I do artigo 44 do Código Penal.

Sem dúvida alguma, a presente conclusão, a par de reco-nhecer a nota especial da dignidade humana de um idoso, mesmoencontrando-se este na condição de autor de um crime (de pequenagravidade, no caso), está embasada em razão humanitária que deveser ampliada em relação às pessoas idosas, consoante esclarece adoutrina, na seguinte passagem:

[...] o tratamento do idoso-agente funda-se em razões puramentehumanitárias e de expectativa de vida, ou seja, é uma norma ba-seada em argumentos de misericórdia, para diminuir as chancesde que idoso-agente passe o final de sua vida a receber reprimen-das penais. É por isso, aliás, que o art. 5º, XLVIII, da Constituiçãoprevê que o cumprimento da pena levará em conta a idade doapenado. (JÚNIOR, 2006, p. 18)

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tenha sido cometido com violência ou grave ameaça à pessoa: HC 220.270/SP,Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 28/02/2012, DJe08/03/2012. Veja-se, ainda, interessante julgado do STJ, no qual, de forma excep-cional, admitiu-se o cumprimento de prisão civil por dívida, relativa à pensão alimen-tícia, por meio de prisão domiciliar, em razão do paciente ser idoso e portador dedoenças graves: HC 57.915/SP, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS,TERCEIRA TURMA, julgado em 03/08/2006, DJ 14/08/2006, p. 276.34 Sobre os inconvenientes do cumprimento, no cárcere, de penas de curta duração, cf.nosso livro: Belo (2014, p. 77-78). De acordo com Barroso (2011, p. 402): “Boa parte dopensamento jurídico descrê das potencialidades das penas privativas de liberdade, quesomente deveriam ser empregadas em hipóteses extremas, quando não houvesse meiosalternativos eficazes para a proteção dos interesses constitucionalmente relevantes”.35 A própria dignidade humana de uma pessoa idosa tem um significado especial(artigo 230 da Constituição Federal), conforme reconhecido pela Primeira Turmado STF, no seguinte julgado: HC 83358, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, PrimeiraTurma, julgado em 04/05/2004, DJ 04-06-2004 PP-00047 EMENT VOL-02154-02PP-00312 RTJ VOL-00191-01 PP-00234 RMP n. 22, 2005, p. 441-444. Na página2 de seu voto, o eminente relator afirmou que: “[...] a dignidade de qualquer pessoa,especialmente a dos idosos, sempre será preponderante”.

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Tem-se, nesse ponto, um elemento de equidade a legitimara inserção da exceção ora proposta. Recorde-se que

[...] decidir segundo critérios de equidade não significa ferir o prin-cípio da universalidade. Uma decisão equitativa (no sentido téc-nico dessa expressão) implica introduzir uma exceção numa regrageral para evitar um resultado injusto; mas o critério utilizado nadecisão equitativa tem de valer também para qualquer outro casocom as mesmas características. A equidade, em resumo, dirige-se contra o caráter geral das regras, não contra o princípio da uni-versalidade. (ATIENZA, 2014, p. 145, itálico no original)

Note-se que todos esses fundamentos até aqui apresentadosacabam por satisfazer a condição procedimental anteriormente re-ferida, consistente no atendimento de um elevado ônus argumenta-tivo capaz de, excepcionalmente, superar ou derrotar a regra emcomento, atendendo-se assim ao dever de fundamentação – e decontrole intersubjetivo – de uma eventual decisão judicial que venhaa acolher a presente tese.

Deixe-se consignado que o caso ora imaginado é apenasum exemplo de superação da regra penal em exame, não esgotandoa possibilidade de algum outro caso vir a provocar idêntica superação,desde que, obviamente, atendidas todas as condições já delineadas36.

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36 O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por exemplo, tem outro precedente,a propósito do crime de roubo tentado, em que houve a superação dessa mesmaregra penal, embora, a nosso juízo, referido Tribunal não tenha, nesse caso, obser-vado as condições anteriores, especialmente a relacionada ao ônus argumentativomais elevado em sua fundamentação – pelo menos não de forma explícita –, demodo que o acórdão assim proferido parece ser de constitucionalidade duvidosa.Cf.: Apelação criminal n. 70018817890, rel. Desembargador Nereu José Giacomolli,Sexta Câmara Criminal, DJ. 14.06.2007.

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CONCLUSÃO

Ante o exposto, pode-se concluir que a norma contida noartigo 44, I, do Código Penal tem a natureza jurídica de uma autênticaregra legal, tendo o legislador ordinário, de forma legítima, estabele-cido-a com o objetivo primordial de resguardar, com mais segurança,a dignidade humana de uma vítima que venha a ser violentada ougravemente ameaçada pelo autor de um crime qualquer, em cuja es-trutura legal estejam presentes esses elementos. Assim, a condutadesse agente, por ser mais reprovável no plano abstrato, merece umtratamento legal penal mais rigoroso. Logo, a regra em foco não pa-dece de nenhuma inconstitucionalidade em tese (artigo 5º, XXXIX,da Constituição).

Não obstante, de acordo com os cânones e parâmetros dateoria da derrotabilidade das regras, tal norma pode ser, excepcio-nalmente, superada, sempre em relação a algum caso concreto,cujas peculiaridades acabem por exigir a sua não aplicação.

No presente caso, vislumbram-se dois tipos de superaçãodessa regra penal: a) legal sistemática, quanto às infrações penaisde menor potencial ofensivo, definidas no artigo 61 da Lei n.9.099/1995 e que tenham como elementos do tipo a violência ou agrave ameaça à pessoa; b) doutrinária e jurisprudencial, relativa-mente aos demais crimes cometidos com violência ou grave ameaçaà pessoa que, não sendo de menor potencial ofensivo, tenham umapena privativa de liberdade aplicada em concreto que não excedeos quatros anos de prisão.

Nesse último caso, rigorosas e extraordinárias condiçõesdevem ser atendidas pelo intérprete ou aplicador, sob pena de even-tual decisão judicial – proferida nesse sentido – carecer da devidafundamentação, ao tempo em que estará desrespeitando os princí-pios constitucionais da democracia e da separação de poderes, pas-sando a ser, em razão disso, nula de pleno Direito.

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